O vagar perdido

Page 1

O Vagar Perdido Antonio Mengs Neide Jallageas | Tradução


Você está lendo um trecho selecionado do livro PANORAMA TARKÓVSKI, 2a edição, publicado pela Kinoruss Edições e Cultura, em maio de 2019. (corresponde às páginas 155 a 159).


O

cinema, enquanto linguagem, articulase na sucessão. Como toda linguagem, cria um ritmo novo, uma inteligência específica; como linguagem artística, dispõe dessa liberdade exigida por seu objeto que a leva a distanciar-se, com propriedade, das estruturas convencionais. O cinema é outro tempo, um desvio do calendário e da hora, uma forma do “vagar perdido”. Dentre suas estruturas “clássicas”, a mais simples é também, como na literatura, aquela que narra os fatos sequencialmente, o raciocínio linear: descreve o movimento, propõe o desenvolvimento e assinala um desfecho. Quando a arte toma consciência das formas de expressividade inerentes à nossa natureza psíquica, a busca da exatidão resulta em uma intenção de ordem autônoma. O artista pode ignorar qualquer uma dessas etapas e antecipar o futuro, postergar o passado, eliminar o nexo causal, repetir a mesma cena com ou sem variações etc. O resultado será um tempo mais ou menos próximo ao da vida conforme a percebemos, um mundo


diferente que cumpre sua particular função de significado. Esculpir no tempo, o título que Tarkóvski deu a suas memórias - citado frequentemente por sua eloquência -, resume, em uma imagem, a noção de que o tempo é o verdadeiro material cinematográfico. A música, o roteiro, a encenação, o tratamento da cor e a fotografia e, principalmente, a configuração do plano constituem os utensílios dos quais se vale o escultor para dar forma a essa inapreensível fluência, o tempo, necessariamente delimitado por si mesmo na duração objetiva do filme, porque “um verdadeiro filme, com um tempo fixado com precisão no celulóide, que flui para fora dos limites do plano, vive no tempo apenas quando o tempo, por sua vez, vive nele” (TARKOVSKI, 1991, p. 143-144). Em Stalker, o realizador fez uma abordagem oposta ao de seu antecessor, Zerkalo (O Espelho), elaborado sobre a base de uma complexa e intrincada estrutura tempo-espacial. Aqui considerou imprescindível levar ao extremo a simplicidade narrativa, de maneira que o tempo percebido pelo espectador, amoldando-se à sequência natural dos fatos, resulte próximo ao tempo da vivência. Não há saltos para o passado e sequer para o futuro, como tampouco extrapolações de lugar. Inclusive a visão de Stalker, a única sequência psicológica do filme, se diferencia apenas no tempo e na cenografia, em relação às outras: nós a percebemos em continuidade, pertencendo à mesma trama do conjunto (TARKOVSKI, 1991, p. 219). Essa aproximação da simplicidade, no entanto, possui matizes que a diferenciam por completo do que poderíamos denominar um padrão narrativo, pois Tarkóvski, partindo da estrutura linear clássica, vai romper a dimensão do tempo por meio da revelação de seus pontos de fuga. Ao contrário do que é usual no cinema, e talvez pelo fato das personagens de Stalker serem elementos de um conjunto integrado, não há especial interesse em falar sobre elas, sobre suas vidas e suas


circunstâncias, mas sim deixá-las que falem por si. Contemplado a partir deste ponto de vista, a abordagem da personagem denota imediaticidade, respeito e caracterização não subordinada a elementos contingentes: observamos, à nossa frente, três pessoas sobre as quais nada sabemos e nada nos é contado. Tampouco essas pessoas se conhecem, por isso mal podem nos dar referências umas das outras. Não apenas somos privados do conhecimento sobre as circunstâncias objetivas nas quais se desenvolve a vida dos protagonistas, mas também desconhecemos por que foram retirados dela e transpostos para um contexto incomum. O grau de abstração em que são focalizados é evidente: três figuras, homens apenas, meio à natureza inculta, cujas vestes, tão neutras, fazem que pareçam estar nus, sem história ou origem, representando uma função. Homens que se separam de um caminho ―que não corresponde exatamente às suas expectativas― e se desviam, por uma senda alheia ao tumulto da sociedade, da vida urbana, no campo. Homens que se veem inesperadamente envolvidos pelas implicações de um excurso, em todos os sentidos. Para além da abordagem incidental, evidencia-se a delicadeza com que Tarkóvski interpreta essas ausências temporais, tais como os acampamentos de verão ou as excursões juvenis - talvez ele tivesse em mente a expedição geológica da qual ele mesmo participara -, que assinalam uma experiência singular em determinada etapa da vida1. Depois de um tempo, notamos que aquilo nos transformou; em um momento de desvio, retorna à memória sob a forma de fuga e com o desejo de ausentar-se das ocupações habituais e compromissos, para sugerir essa ação perigosa ou a necessidade de um breve retiro, uma suspensão das circunstâncias da vida.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.