PORTUGAL COMO DESTINO Seguido de mitologia da saudade
Eduardo Lourenรงo 1
Ă?ndice Dramaturgia cultural portuguesa ................. 4 Tempo portuguĂŞs .............................................. 38
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PORTUGAL COMO DESTINO Dramaturgia cultural portuguesa
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É tentador assimilar o destino de um povo ao do indivíduo, com o seu nascimento, a sua adolescência, maturidade e declínio. A analogia organicista é, naturalmente, falaciosa. Nem a povos ou civilizações extintos o paradigma humano se aplica. O tempo do indivíduo, a leitura que ele próprio faz do seu percurso, pode ajustar-se a esse processo de surgimento, afirmação e desaparição. Um povo tem igualmente uma história e, por comodidade hermenêutica, pode ser tentado a ler o seu percurso em termos subjectivos de afirmação de si, de presença mais ou menos forte entre os outros ou de existência precária ou ameaçada neste ou naquele momento. Mas o tempo dessa história não é, como o dos indivíduos, percebido ao mesmo tempo como finito e irreversível. O tempo de um povo é trans-histórico na própria medida em que é «historicidade», jogo imprevisível com os tempos diversos em que o seu destino se espelhou até ao presente e que o futuro reorganizará de maneira misteriosa. Cada povo só o é por se conceber e viver justamente como destino. Isto é, simbolicamente, como se existisse
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desde sempre e tivesse consigo uma promessa de duração eterna. É essa conv icção que confere a cada povo, a cada cultura, pois ambos são indissociáveis, o que chamamos «identidade». Como para os indivíduos, a identidade só se define na relação com o outro. Como essa relação varia com o tempo — é o que chamamos a nossa história —, a identidade é percebida e vivida por um povo em termos simultaneamente históricos e trans-históricos. Mas só o que a cada momento da vida de um povo aparece como para doxalmente inalterável ou subsistente através da sucessão dos tempos confere sentido ao conceito de identidade. Podemos assimilar essa estranha permanência no seio da mudança àquilo que os românticos alemães designaram, para desespero da historio grafia iluminista, como «alma dos povos».
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Citação Nº 2
Frutuosamente na Índia, tomando-se a primeira potência colonizadora europeia, perde num único combate o seu jovem rei, D. Sebastião, e põe em perigo uma independência política velha de mais de quatro séculos. O Império-refúgio tinha-se tornado, com o tempo, um refúgio ilusório e fizera perder ao pequeno país que o inventara o sentido das realidades.
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Monismo castelhano em geral, mas também interesse e fascínio pela cultura lusitana, sobretudo pela sua poesia lírica. Nada disto se altera com a perda de independência política. Mas altera-se aos poucos e, por fim, duravelmente, a imagem recíproca dos dois países. A Espanha, durante o século XVII, integra, inconscientemente ou não, o património cultural lusitano no seu e Portugal, consciente ou inconscientemente, reflui para si mesmo, toma-se de ilha imperial gloriosa em ilha perdida na qual espera a ressurreição do seu passado simbolicamente intacto e como que sublimado naquela obra que durante esses sessenta anos guardará intacta a memória do passado. O sebastianismo é apenas a forma popular dessa crença de uma vinda do rei vencido. O verdadeiro Sebastião é o texto dos Lusíadas que desde então — embora só o romantismo lhe confira esse estatuto — se converteu na referência icónica da cultura portuguesa.
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As categorias de ordem profana, tais como a historiografia moderna as explicitou, subordinando toda a compreensão a um processo de causas e consequências e inscrevendo a aventura humana numa temporalidade irreversível desvinculada do seu suporte simbólico e transtemporal, adaptam-se mal a fenómenos da pura ordem do desejo e do sonho como o do sebastianismo. Só numa cultura intrinsecamente mística que coloca na ressurreição e, por conseguinte, no futuro o tempo que, resumindo todos os tempos, lhe dá sentido é que uma espera messiânica, real ou simbólica, como a que o sebastianismo encarnou em Portugal, é compreensível. E ninguém a ilustrou melhor do que o autor da História do Futuro, o padre António Vieira. Nenhum desmentido da experiência o arrancou ao sonho do regresso de D. Sebastião, que deveria representar para um Portugal restaurado, mas sempre em vias de perder a sua recuperada independência, não só a confirmação dessa nova vida, mas também o anúncio e já o começo de um Quinto Império, o de Cristo, de que Portugal seria a histórica manifestação. António Vieira
não era um louco rema tado, antes um sagaz observador do mundo, diplomata insigne com o seu quê de maquiavélico, entenda-se, ao serviço de causa em si mesmo boa, como é próprio de um eminente jesuíta. A sua visão, de forte inspiração bíblica, constitui um todo. Não há outro código para decifrar os aparentemente contraditórios e até perturbantes acontecimentos de um mundo criado por Deus e governado pela sua Providência além do texto bíblico. Que é um texto, não acidental, mas intrinsecamente profético. O tempo da profecia não se regula pelos imperativos da temporalidade humana. Tudo nele são sinais e indícios. Portugal não é para ele uma nação como outra qualquer. É uma nação literalmente eleita. Eleita para anunciar e ilustrar o reino universal de Cristo, tal como ele e os seus companheiros de missão o anunciam em terras da China ou nas florestas da Amazónia. O destino singular e universal de Portugal não se resume no facto de a sua presença e, com ela, a imagem de Cristo terem chegado aos quatro cantos da Terra. Esse é apenas um indício exterior. Mesmo antes de se lançar na sua aventura descobridora e missionária, Portugal, para António Vieira, era já um povo messiânico. Um povo assim não pode perecer. As suas quedas — como a de Alcácer Quibir ou a da perda da independência — explicam-se por qualquer desvio do ideal de que é portador. Não há na cultura portuguesa discurso mais alucinatório e sublime que o de António Vieira. É a síntese arrebatada, mas
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simbolicamente coerente, de cinco séculos de vida colectiva vividos com a convicção arreigada mas também culturalmente cultivada de que a própria existência de Portugal é da ordem não só do milagre, como da profecia. Pela sua pública fidelidade crística, Portugal profetiza. Pelo menos, profetizava nos tempos de Vieira, nesse século XVII em que a cultura portuguesa, no sentido profano, mas também religioso, dialoga cautamente com a cultura dominante do tempo. O seu tempo próprio é outro, o da fidelidade incondicional, exageradamente passiva, à ortodoxia consagrada pelo Concílio de Trento. Exagerou-se sem dúvida, num tempo de reatamento com o movimento geral da Europa, como foi já o do século XVIII, ainda no tempo de D. João V, monarca faustoso e mecenas de vários artistas europeus, e sobretudo no de Pombal, o nosso isolamento, tido como indeclinável decadência. Mesmo António Vieira, que na segunda metade do século XVII muito viajara na Europa ao serviço do Portugal restaurado, patriota ardente, sofreu com essa imagem de povo decaído, pouco conhecido e considerado na Europa. Sessenta anos de submissão política a Espanha haviam subalternizado Portugal e, quando, em 1640, os Portugueses recuperam, penosamente, com forte auxílio diplomático ou conivência da Inglaterra e da França, a sua autonomia, é como se tivessem acordado outros. Conscientes disso, os seus reis não são representados com a sua coroa real na cabeça, mas com ela ao lado, em rica mesa.
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Alguma coisa se quebrara com o interregno filipino — assim será pensado o domínio espanhol após a Restauração — e a memória portuguesa integra uma espécie de não-tempo, que desde então será sempre não só dolorosamente recordado, mas como que subtraído ao curso glorificado da nossa história. Emergindo desse tempo, baptizado como cativeiro, uma vez mais assimilado à época de escravidão do povo judaico em Babilónia, a Restauração só podia ser pensada e vivida como o terceiro milagre português. E ninguém contribuiu mais do que António Vieira para lhe conferir esse estatuto. Na lógica profética de António Vieira importa tanto a temporalidade sincrónica dos acontecimentos como a capacidade de os usar para fins, na lógica ordinária, inconciliáveis. Sobre a experiência dos tempos de cativeiro, resgatados pelo seu fim providencial, António Vieira, reunindo numa só visão as profecias do sapateiro Bandarra, émulo de Nostradamus, as esperanças no regresso de D. Sebastião, refundador não só do reino perdido, mas de um novo reino, erguerá a sua utopia de um Quinto Império, prometido, segundo ele, ao primeiro rei de Portugal e contido nos Descobrimentos iniciadores e iniciáticos do infante D. Henrique. Esta utopia e o seu sonho chegaram intactos até à Mensagem, de Fernando Pessoa.
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Mas porventura o mais original, nesta versão de um Quinto e último império sob a égide de Cristo, foi o facto de António Vieira ter imaginado que a sua prova, e igualmente o seu centro mítico, não seria tanto o abatido Portugal como o Portugal restaurado, para quem o jovem Brasil era já a antecipada certeza de perenidade e grandeza. Atentou-se pouco, tomando-a como interessado desvario, que o Norte do Brasil fora a terra missionária de eleição de António Vieira, nesta translação do sonho imperial português do Oriente para o Brasil. Nos dois casos, Portugal habituarase a viver fora de si mesmo e a vincular a sua imagem única de povo europeu a esses dois espaços. Mas um encolhia a olhos vistos, o do Oriente ou o da primeira expansão africana. Ainda nos meados do século XVI, Portugal abandona os seus pontos fortes em Marrocos. E no século XVII vai deixando a Holandeses e Ingleses o monopólio comercial do Oriente. Com a Restauração, para assegurar o apoio inglês, cede Bombaim, Tânger e a mão de uma princesa à aliada e, desde então, sempre protectora
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Inglaterra. Ficava o Brasil, que, liberto da ameaça holandesa que António Vieira vivera de cruz, arma e palavra nos lábios, se desenhava como refúgio, promessa e garantia de uma sobrevivência política nacional sem par. Durante mais de dois séculos, Portugal — e ainda mais os portugueses do Brasil e os já brasileiros — inventa o Brasil e o Brasil assegura a Portugal, por vezes em sentido literal, a sua sobrevivência.
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De tão fundas consequências como a fundação «historial» de Herculano foi a recriação visionária e mítica de Garrett. O que Herculano fundou em prosa epicamente nostálgica, Garrett fundou em nostalgia elegíaca, colocando Camões, de uma vez para sempre, no centro da nova mitologia pátria, pátria de feitos, sem dúvida, mas pátria de canto, de cultura, sem as quais a memória deles não existe. Mas não o pôs no centro sem lhe mudar de algum modo o conteúdo e, até, de o inverter. É ele o verdadeiro rei Sebastião ou, pelo menos, o seu livro o novo Gral, pois foi por via dele, como no seu drama Frei Luís de Sousa é manifesto, que a esperança da ressurreição pátria se conservou. Pátria que nesse momento de liberdade triunfante, mas impotente — tão vulnerável a sente Garrett como quase todo o seu século —, precisa de se lembrar do seu passado glorioso para não desesperar do futuro. Portugal existe porque existiu e existiu porque Camões o salvaguardou na sua memória, como a dos Hebreus se perpetua na Bíblia. Garrett não espera o futuro e o
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renascimento da alma e da cultura portuguesas de qualquer profecia com garantia providencial, mas da vontade e da capacidade de reescrever o seu passado como se fosse presente e de reler nas pedras do presente que atestam tão glorioso passado, «viajando na nossa terra», a mensagem do futuro. A saudade é gosto amargo do bem passado, «delicioso pungir de acerbo espinho», mas igualmente penhor de ressurreição do que, por excesso de vida, não pode morrer. Com ele, a saudade não é apenas perfume de alegrias mortas, sentimento um pouco desencantado de não encontrar no presente a imagem perdida de um país fora da história, como lhe parece — ou parece o seu a olhos estranhos —, mas o corpo e a sombra da alma portuguesa. Unindo historicamente, e não acidental ou liricamente, Portugal e a saudade, Garrett instaurou a primeira mitologia cultural portuguesa sem transcendência. A que fez do país de Camões o país-saudade, o Portugalsaudade, que não tem outro destino senão o da busca de si mesmo. Com adequação aos tempos e aos modos da futura vida portuguesa, o essencial desta percepção mítica de Portugal permanecerá intacto até aos dias de Pascoais e de Pessoa.
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O mundo e a visão romanescos de Júlio Dinis são mais intranscendentes. Mas o seu retrato de Portugal, contemporâneo do de Camilo, retrato de pose longa, como então se usava na fotografia, desenha, por assim dizer, a outra face, se não do mesmo Portugal, a sua versão numa óptica desdramatizada ou, em todo o caso, não trágica, adequada a uma sociedade que aceita a mudança e o progresso ainda parco do século e caminha por dentro e por fora ao seu ritmo. O Portugal de Júlio Dinis, os seus personagens, a cultura que eles ilustram ou neles e com eles se exprime não vão para parte alguma, utópica ou passionalmente desejada, estão. neste estar configuram um particular momento da cultura portuguesa, menos parada do que parece, cultura de um país que abandona tranquilamente o «mundo antigo», o da cosmologia, da teologia, da ideologia que o romantismo mal se atrevera a pôr em causa. Aceitando uma espécie de sabedoria moderna, amigo do progresso, confiante na bondade inata
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do coração, Júlio Dinis tem um ar de discípulo do vigário saboiardo, corrigido pela fleuma inglesa. Com ele, além duma original captação do tempo, ou, antes, da sua duração, surge no horizonte da nossa cultura, destinado a futuro sucesso, o fan tasma da Inglaterra como influência paradigmática não apenas na ordem da economia, da política, do poder, mas também na da ficção. Vendo bem, esta segunda emergência do paradigma inglês na nossa cultura é então mais epidérmica do que o fora no romantismo. Não nos trouxe nem o desafio transgressivo de Byron, nem o amor de passados arquétipos, fonte de novos nacionalismos, como Walter Scott. Júlio Dinis, conhecedor do meio inglês do Porto, como mais tarde António Nobre, é uma excepção, não a regra. Nos meados do último século, Portugal começa a sentir-se, sem mórbido sentimento de inferioridade, provincial e pro v incianamente, um pequeno país, politicamente pacífico, esfor çando-se por acompanhar uma Europa já em plena segunda revolução industrial, sem imaginar sequer o que os seus efeitos irão induzir na ordem dos comportamentos, das ideias, das
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crenças, pelo menos nos seus centros nevrálgicos, Lisboa e Porto, e na sua única cidade universitária, Coimbra. Portugal não está ainda na Europa, mesmo se a nova Europa da máquina de vapor e do telégrafo, da maior circulação dos jornais, está já dentro das suas fronteiras. Na década de 60, Paris, então capital cultural da Europa, fica ligada a Lisboa. Em sentido próprio, Portugal acede um pouco ao coração da Europa. Portugal, isto é, a sua escassa classe financeira, industrial, aristocrática e política, mas também, e de uma maneira paradoxal, a sua classe intelectual. É nesse momento exacto que uma nova geração, como se acabasse de descobrir um tesouro caído do céu, descobre que não é europeia, isto é, que não sente, nem conhece, nem pensa, nem cria como podia fazêlo se estivesse «realmente» nessa Europa que lhe envia as suas criações e os ecos reais ou fantásticos do que toda uma juventude vai nomear a «vida superior», a da Civilização, com maiúscula.
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Antero assume a pose do profeta da revolução, melhor, do seu apóstolo, perfeitamente consciente do quixotismo que a sua crítica radical do passado nacional representa, mas não menos convicto de que a revolução que anuncia e de que espera um novo Portugal é de essência religiosa. A sua célebre conferência termina assimilando o socialismo ao cristianismo do mundo moderno: «o cristianismo foi a revolução do mundo antigo: a revolução não é mais que o cristianismo do mundo moderno.» Pelo seu carácter utopista, pela própria ambiguidade de um discurso que, ao mesmo tempo que recusava a imagem do passado nacional, lhe anunciava um futuro digno de um Portugal anterior à sua merecida decadência de povo que não soubera conquistar a liberdade de consciência, nem cultivar o espírito científico, nem libertar-se da tentação imperial de tipo guerreiro, um texto como o da «conferência» de Antero parecia votado não apenas ao destino de uma provocação
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retórica, como ao mais melancólico da inoperância, não só no plano ideológico, como no mais decisivo, de ordem cultural. Não foi o caso: pela sua radicalidade, pelo seu retrato impiedoso — mesmo se, em parte, injusto ou parcial —, não apenas deste ou daquele aspecto da sociedade portuguesa, mas de Portugal enquanto cultura estrutu ralmente anacrónica, desfasada do novo espírito europeu, filho da revolução e do progresso na ordem da crítica e da ciência, o texto de Antero alcançou um estatuto sem equivalente na história da cultura portuguesa. Independentemente da sua pertinência ou extravagância, esse texto instituiu Portugal, enquanto destino histórico e cultural, e não apenas como sujeito político, como aconteceu no romantismo, em assunto privilegiado da nossa cultura. Ou, com mais precisão, instaurou a cultura, não só nossa, mas em geral, como o horizonte dentro do qual um povo se define como actor efectivo ou mero espectador da aventura da humanidade concebida como um todo.
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Em menos de duas décadas, o panorama cultural português sofreu uma metamorfose que só pode comparar-se à que o impacto do Renascimento italiano produzira entre nós no século XVI. Numa perspectiva quase só literária, o nosso romantismo reatara o antigo diálogo com a Europa. De 1870 a 1890, esse diálogo tornou-se imperativo e foi vivido e ilustrado, como Antero o havia anunciado, em termos que poderíamos rotular de «sociológicos» de inspiração diversa e por vezes inconciliável ao nível dos princípios, que iam de Proudhon a Auguste Comte, mas que obedeciam a um leitmotiv comum: europeizar Portugal, único meio de o arrancar à sua passividade e ao influxo do passado. A europeização fazia-se em termos pragmáticos, pelos progressos induzidos pela revolução industrial em curso, a que introduzia em Portugal, como no resto da Europa, ou no longínquo Far West, o caminho-de-ferro e o telégrafo, a especulação financeira, uma tímida indústria.
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Mais difícil, nos termos em que a Geração de 70 e, com ela, a maioria da classe liberal a dese javam, era a revolução cultural que o progresso técnico supunha, a transformação do ensino, a criação de uma tradição científica, o gosto da experimentação, condições da liquidação do passado e da construção de um novo Portugal. Ora, como era fatal, os estigmas denunciados por Antero eram tudo menos estímulos, eram os próprios obstáculos a essa europeização mítica. Nós não podíamos, por artes mágicas, transformar-nos nos Claude Bernard, nos Charcot, nos Liebieg, nos Darwin ou mesmo nos Michelet, nos Niebhur, nos Renan ou nos Comte, que essa geração lia com paixão, mas também como frutos excepcionais de uma cultura que lhes caía em casa literalmente do céu. O para doxo da Geração de 70, que se dera como missão «europeizar» Portugal, libertálo, na medida do possível, do seu arcaísmo, foi o de retratar um país, como ninguém o fizera antes, em função de um modelo de civilização que tinha em Paris, Londres ou Berlim a sua vitrina. O resultado, como seria de esperar, e
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contrariamente aos seus propósitos de aggiornamento, foi um retrato deprimente da sociedade portuguesa, o de um Portugal não apenas pouco ou nada «europeu», como essa geração o sonhava ou pretendia, ao menos nas suas classes dominantes ou instituições representativas (Igreja, Parlamento, Banca, Universidade), mas mórbida e mimeticamente fascinado por essa mesma Europa que ele não era, mas oniricamente imaginava ser. Nunca se tirou a Portugal e à sua cultura um retrato mais cruel do que aquele que Eça de Queirós deixou, com o rasto indelével do génio satírico e realista que foi o seu, nos mais famosos romances da nossa literatura. O facto de os retratistas estarem também inscritos no retrato em nada atenua a verdade nem o alcance desse olhar sem piedade sobre nós mesmos. Até porque a ironia e a auto-ironia, cada vez mais presentes nessa descida ao coração do tempo português, redimiam pouco a pouco essa espeleologia, para não dizer esse exercício de anatomia, sobre o corpo morto de Portugal. Que no fim da lição, que era para os seus autores uma mistura indiscernível de júbilo e maceração, acabou por ressuscitar e mesmo por subir ao céu.
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Para cada geração, a menos que haja catástrofe natural ou herança amaldiçoada, o momento de entrada na vida é um esplendor. A geração da República conheceu o seu esplendor, sobretudo quando ainda o não era. O Portugal de então era paupérrimo, mas estava cheio de boa vontade. Lá fora, o mundo e o século abriam em fanfarra. Os homens lançam-se nos ares. Os transatlânticos de luxo anunciam catástrofes em que ninguém acreditava. Mesmo a guerra não suspendeu o furor patético e universal do progresso. A guerra fazia o seu mal com a velocidade e a tragédia, como sempre. Os pobres sentiamse menos pobres com tanta exposição universal. Depois da belle époque, os anos loucos. Portugal acompanhava de longe a festa dos outros. Sem que ninguém lhe pedisse, ia bater-se na Flandres. Era a nossa maneira de «estar na Europa» com lama pelos joelhos. Foi modesta, mas entusiasta e de boa vontade, a nossa República. Queria saber, interessavase pela instrução, pela pedagogia, era sinceramente povo e popular. À parte as colónias, não tinha ideal nenhum, queria ser uma pequena
França entre Douro e Guadiana. Mas os tempos não iam para Franças. Qualquer coisa nova, mais tarde baptizada de «rebelião das massas», exigia ser actor da história, não apenas de feiras, festejos públicos e trabalho sem garantias. O bolchevismo na atrasadíssima Rússia, o fascismo na paupérrima Itália, ofereciam os seus modelos. Escolhemos o mais latino e o mais próximo. E demos-lhe uma de mão caseira, familiaríssima, revanche do tradicional catolicismo contra o citadino anticlericalismo, cautério da economia doméstica sobre a dependência excessiva do crédito e do investimento estrangeiro. [...] O Portugal real, rústico, pobre, politicamente imerso em convulsões anedóticas, sofrendo as repercussões da Europa, só retém das rêveries quiméricas de Pascoais, como reterá das não menos quiméricas de Pessoa, o que pode ensartar no seu ramalhete de nacionalismo ancestral. O profético e o dinâmico delas escapam-lhe. Sofre e orgulha-se por morrer na Flandres, exalta-se por atravessar o Atlântico, sabe Deus com que custo, para religar as duas metades de um mundo luso-brasileiro então ainda sentimentalmente próximas. Mas não há um sujeito destes feitos com sabor a epopeia forçada. A República democrática, como se fosse uma pequena Weimar, sonha com uma nova ordem. Em 1918, o primeiro de uma longa série de «caudilhos» dispostos a porem ordem na «desordem» europeia estabelece uma breve ditadura em Portugal. Chamava-se Sidónio Pais e, talvez por ter sido
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assassinado um ano depois, transformou-se num dos raros personagens lendários da medíocre história portuguesa deste século. Uma vez mais ressuscitou-se nele o espectro regenerador de D. Sebastião. Deste, tinha a coragem e o garbo. Adorado pelas mulheres, em plena aurora do cinema, foi a primeira star da nossa moderna mitologia. Suscitou paixões, de nítido fundo anti-republicano e pré-ditatorial. Para que nunca mais fosse esquecido, entusiasmou Fernando Pessoa, que nunca morreu de amores pela «democracia à portuguesa». Tínhamos, na tradição de Oliveira Martins, um possível Bismark. Morto, tivemos uma referência para uma nova ordem. [...] Até aos sobressaltos dos anos 60, conspícuos jornais do Ocidente referiram-se ao Estado Novo como ao exemplo mesmo de «ditadura sábia». Começa a ser possível, após vinte anos de democracia, num povo tão pragmático como o português, situarmo-nos melhor em relação a esse meio século da história nacional, que teve a pretensão e a vontade, como nenhum outro desde o século XVIII e da reforma liberal de Mousinho da Silveira, de remodelar, em profundidade, não só o destino político empírico de Portugal, mas a sua mentalidade. O que, a bem dizer, não era um trabalho de Hércules, pois o essencial — à parte o esforço de modernização material induzido pela época e pelo seu dinamismo— dessa «remodelação» destinava-se, ao menos simbolicamente, a rasurar
sistematicamente os mais incómodos vestígios da ideologia e da prática do século de liberalismo que o precedeu. Provavelmente, embora noutros termos, esta é a situação da maioria das nações europeias — todas velhas, mesmo as que parecem novas — implicadas na edificação de um inédito organismo histórico-político chamado Europa. Talvez só a Inglaterra lhe escape, que nunca foi nação «só europeia», ou a Itália, que nunca foi nação. Todas as outras, a começar pela mais orgânica de todas, em termos políticos, a França ou a Alemanha, poderosa massa etnocultural, conhecem no seu interior as dores inéditas de uma mudança de ser, estar, actuar no mundo que ninguém sabe como assumir. O caso de Portugal é único. Nunca esteve aco mpanhado na definição do seu destino. Está agora acompanhado de mais, de certo modo sobreprotegido, contente com a companhia e as ajudas que recebe, que o compensam do Império perdido e, aparentemente, não o privam de nada. Como no célebre monólogo de Gil Vicente, pode ocupar com desembaraço os lugares de «tudo» e de «ninguém». Mas, obscuramente, no meio de orgias pagas com o dinheiro dos outros, pela primeira vez, Portugal não sabe bem o que é. Não sabe bem o que é como destinocendo pouco esse nome por serem eco do mero estado político ou ideológico da Nação, Portugal está sofrendo uma metamorfose cultural de rara intensidade. Determinada por uma séria revisitação do seu lastro histórico e
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cultural próprio — em arqueologia, em história, em organização administrativa e jurídica autónomas, em vida simbólica —, tanto como pela pressão de novos saberes e técnicas que já não nos chegam com anos-luz de atraso, mas em tempo real. Embora tudo se passe, em geral, em compartimentos estanques, sem enquadramento num plano que vise simbolicamente esse «outro Portugal», mais interessante que o sonhado, para folclóricas exibições para o mundo ver, como Quinto Império. O Quinto Império está em nossa casa se o não leiloarmos tão obscenamente na feira dos mitos extintos. E é aqui que o sintagma «Portugal como destino» adquire a sua pertinência. De uma certa maneira, como a última exposição do século o mostrou — ao menos em parte e através do seu conceito «oceânico» —, o mundo está todo em Portugal e Portugal em parte alguma. Parece o sonho de Pessoa, mas não é. É mesmo o contrário. A simbólica dispersão oceânica não nos trouxe de volta o «mar português», este sentimento de ser uma «realidade específica» em diálogo com o mundo, um sítio nosso, e não um espaço de reciclagem virtual das invenções, dos sentimentos, dos escândalos dos outros, à la page pelos meridianos de resto inacessíveis e, no fundo, desinteressantes — de Amsterdão, ou de São Francisco, ou da nova Moscovo. A história e o destino de Portugal nunca foram trágicos fora da tragédia adiada que a vida é. Também não o são agora. Pela primeira vez, o nosso país vive-se a si mesmo e começa até a ser visto pelos outros, que sabem onde ficamos
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e quem somos, como um povo insolentemente feliz. Exibicionistamente feliz, até, como nos está nas veras da alma. Antes isso que o masoquismo, um tudo nada hipócrita, com que éramos «os lusíadas coitados». Mas de que está cheio este novíssimo contentamento de arraial minhoto? Da total ausência de interesse pela «ideia de Portugal» que tenha qualquer conteúdo além do da sua representação, da sua imagem, do seu look no espelho alheio, seja ele desportivo, turístico, artístico, cultural, já que não é fácil imaginar que aí figure como uma referência obrigatória na ordem económica ou científica. No meio século de cultura salazarista, Portugal só tinha «exterior». Ele mesmo era uma ilha, um «oásis de paz», como lhe chamou Marcelo Caetano, e só podia distrair-se com a balbúrdia do mundo e as suas extravagâncias. Desde há um quarto de século, sem cuidados de império, rendeiros módicos da nova Europa, podemos cultivar, enfim, o nosso jardim, como o Cândido de Voltaire. Não sem sucesso em tudo o que diz respeito a alindamento público e doméstico, ao acesso a um conforto que a segunda vaga migratória trouxe até às aldeias camilianas da província portuguesa, prelúdio a uma «mundialização» de comportamentos, costumes, divertimento nocturno e diurno que, pela primeira vez ou segunda, se pensarmos nos Descobrimentos ou na revolução do caminho-de-ferro, pôs termo, real e metafisicamente, ao fosso característico da cultura portuguesa e da maneira como durante séculos se
viveu e se amou nesse viver. Refiro-me, naturalmente, à tão nacional dicotomia — ao mesmo tempo geográfica, metafísica e simbólica — do cá dentro e lá fora. Depois de Camões, contornando o lugar extinto de Antero, Pascoais e Pessoa conceberam a empresa de «imaginar» um destino para Portugal. Com uma radicalidade sem exemplo. Reimaginando-o, não «pensando-o» em moldes ou exemplos que nunca haviam sido os seus e adaptados como se o fossem, se foi ele dissolvendo num país sempre atrasado na imitação de modelos alheios que, como amigos de Job, vinham até à sua enxerga para o consolar. Portugal não foi o único país da Europa que se contorcionou na impotência de se viver e sentir menos do que era ou tinha sido por não estar à altura de uma modernidade incontornável por fora e, mais ainda, por dentro. A questão ainda não terminou, inverteu apenas os termos em que era vivida nos fins do século XIX e princípios do século XX. A Rússia de Dostoievski e de Tolstoi e a Espanha de Unamuno transformaram o seu mal-estar civilizacional e histórico em drama espiritual e exportaram-no para o mundo, primeiro simbólica ou miticamente, depois nas convulsões de uma revolução destinada a mudar não apenas «o destino de uma nação», mas também o da humanidade inteira.
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PORTUGAL COMO DESTINO Tempo português
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A cultura portuguesa nunca produziu — pelo menos até Eça de Queirós — nem Montaigne, nem Montesquieu, nem Swift, nem Lessing, isto é, um olhar exterior a si mesma que a acordasse, não de qualquer cegueira dogmática ou culposa, mas da contemplação feliz e maravilhada de si mesma. Todos os povos vivem, mais ou menos, confinados no amor de si próprios. Mas a maneira como os Portugueses se comprazem nessa adoração é verdadeiramente singular. Seria absurdo pretender que um povo entre outros, e ainda por cima um pequeno povo, possa estar fora ou escapar a esse maelström a que chamamos História. Contudo, evitar o destino comum, instalarse, não se sabe por que aberração ou milagre, à margem do mundo, é um pouco aquilo que o povo português sempre, tem feito. Portugal vivese «por dentro», numa espécie de isolamento sublimado, e «por fora», como o exemplo dos povos de vocação universal, indo ao ponto de dispersar o seu corpo e a sua alma pelo mundo inteiro. A imagem é de Camões e todos os portugueses a conhecem de cor. Essa mitologia está inscrita
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na bandeira portuguesa. Portugal foi o único país que colocou no centro da sua bandeira a esfera armilar, em suma, a representação do universo. Isto não espanta ninguém e ainda menos os Portugueses. Essa imagem não é apenas de ordem cosmológica — consagração do papel de Portugal como descobridor de «novas terras e novos céus» —, mas de ordem crística: a do convidado modesto sentado no lugar de honra dos eleitos. esse, desenrolarse-á sem entraves no seu espaço interior, de Luís de Camões ao padre António Vieira e a Pessoa, ao mais banal dos seus governantes. O mais curioso é que, num momento de fanatismo, Portugal amputou-se ou recalcou a sua parte de Israel para se tomar, paradoxalmente, uma espécie de Israel católico. Talvez estivesse na ordem das coisas ou, pelo menos, da história. Em nome de Cristo, Portugal assumiu o papel impossível de povo «eleito». À volta do brasão de Portugal, evocando as cinco chagas de Cristo, os reis desse país, então senhor dos mares, do Brasil ao Japão, ousaram colocar-se no centro do mundo. Os Portugueses não são o único povo que se sente desconhecido, mal conhecido ou decaído do antigo esplendor, real ou imaginário. De algum modo, é o caso de toda a gente e, hoje, até daqueles povos e culturas que, durante séculos, os outros olharam como faróis do mundo. Mas o que surpreende, nos Portugueses, é o facto de parecer terem decidido viver como os cristãos nas catacumbas. Não porque pese sobre eles qualquer ameaça efectiva,
mas porque não suportam ser olhados por quem ignore ou tenha esquecido a sua vida imaginária. Preferem então, a exemplo de Fernando Pessoa, ausentar-se de si mesmos e outorgar-se, como ele o fez com insólita fulgurância, o próprio estatuto da ausência. Uma ausência onde tudo e nada são indefinidamente reversíveis: Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. Os leitores estrangeiros imaginam muitas vezes que Fernando Pessoa, convertido em português universal, é uma excepção. A título de génio literário, sem dúvida. Não a título de português, a despeito do seu desejo de querer «ser tudo de todas as maneiras» e sair assim, por conta de todos, da «pequena casa lusitana», esse sítio simultaneamente banal e onírico que é o único onde os Portugueses se sentem em casa. Nele são tão estrangeiros como fora dele. O seu lugar não se situa apenas no mapa. E muito menos se circunscreve ao pequeno rectângulo, deitado à beira do Atlântico, carregado de passado e vida singulares, que chamamos Portugal. Desde os tempos mais recuados que essa terra, Atlântida sem lembrança dela, parece desertar a Europa. Por necessidade ou cupidez, raro por aventura, os Portugueses partiram dela ao longo dos séculos, por vezes sem esperança de regresso. A longa história de Portugal, incluindo nela a anterior ao seu nascimento como reino, é a de uma deriva e de uma fuga sem fim. Isso explica a dispersão dos Portugueses e a sua presença no
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mundo, outrora no Brasil, na África, no Oriente e hoje no Canadá, nos Estados Unidos, na Venezuela, no Havai ou mais perto, nesta Europa, em França, na Alemanha na Suíça, mesmo na vizinha Espanha. Mas nem essa deriva, nem essa fuga, explicam a singularidade dos Portugueses. Povo emigrante antes de o ser, por vontade ou à força, adaptável, discreto no meio dos outros, sempre pronto, na aparência, a trocar a sua identidade pela dos outros, na realidade nunca abandonou o seu ponto de partida. Quer dizer, a sua verdadeira pátria, a do sonho adormecido mas nunca extinto no fundo do seu ser. A saudade, a nostalgia ou a melancolia são modalidades, modulações da nossa relação de seres de memória e sensibilidade com o tempo. Ou, antes, com a temporalidade, aquilo que, a exemplo de Georges Poulet, designarei como «tempo humano». Isso significa que essa temporalidade é diversa daquela outra, abstractamente universal, que atribuímos ao tempo como sucessão irreversível. Só esse «tempo humano», jogo da memória e constitutivo dela, permite a inversão, a suspensão ficcional do tempo irreversível, fonte de uma emoção a nenhuma outra comparável. Nela e através dela sentimos ao mesmo tempo a nossa fugacidade e a nossa eternidade. A esse título, a nostalgia, a melancolia, a própria saudade, revindicada pelos Portugueses como um estado intraduzível e singular, são sentimentos ou vivências universais. Da universalidade do «tempo humano», precisamente. É o conteúdo,
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a cor desse tempo, a diversidade do jogo que a memória desenha na sua leitura do passado o que distingue a nostalgia da melancolia e estas duas da saudade. Em si mesma, a saudade não tem história. Mas têm-na as manifestações dela. Só em termos historicistas, e sem nenhuma coerência interna, essa história — escrita com fins dogmáticos — mereceu alguma atenção. Antes de ser pensada, a saudade foi cantada e é filha e prisioneira do lirismo que primeiro lhe deu voz. Antes de se tomar o mito que já a não deixa pensar e a configura num papel hagiográfico-patriótico, a saudade não foi mais que a expressão do excesso de amor em relação a tudo o que merece ser amado: o amigo ausente, a amada distante, a natureza imemorial e íntima, escrínio de todos os amores, flor de verde pinho, ondas do mar. Nenhuma ressonância trágica perpassa naquelas canções em que a saudade comparece em toda a sua ingenuidade. No seu berço céltico, o da Galícia e Portugal, a saudade parece modulada pelo ritmo universal do mar. Descobre-se, sem bem o saber ainda, que a eternidade é feita de tempo e o tempo de eternidade. Tudo é aí, simultaneamente, passado e presente. Esta música de fundo, primeiro exterior, tornar-se-á música da alma. Sabemos que o jovem Sartre pensou no título Melancholia para o livro que havia de se tomar célebre com o nome de A Náusea.
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