AFASIA
AFASIA Arthus Fochi
Ilustrações: Liv Nicolsky Thiago Amaral
outrar-se
Dedicado à memória de Antar Parra
“No quiero problema...”
“... Mas sempre tive a mão giz-de-cera Porque cinza deixa mórbido Ou morno, ou ambos Foi assim que aprendi a colorir poeira...”
Liv Nicolsky
ÍNDICE Homenagem a Walt Whitman - 15 Desejo o outro - 17 Ser - 19 Veja a cordilheira branca... - 21 Não sei... - 23 Vou à praia... - 25 Perdi o sol... - 27 As vozes do passado... - 29 Entre fronteras/Entre fronteiras - 30/31 Da Pampa a la Cordillera- 35 À Montevideo - 39 De vez em quando... - 41 Aqui - 43 O termo fuma a imagem... - 45 Veja pela janela... - 47 Para ti... - 53 Terra I - 55 Barrigas de Roundup - 61 Onde olho... - 63 Alimentando as Saíras com banana - 65 (Contemporânea I - 57)
Carta VI - 69 Carta XIV - 70 Carta XVI - 72 Carta Austral - 73 PlĂĄstico Paraguai - Hules - 77 No coletivo I - 79 Comia um pastel... - 81 Nas redondezas... - 83 A cultura venezuelana... - 85 Quatro dias sĂsmicos - 89
Homenagem a Walt Whitman Trago a fumaça das gerações passadas As que passaram e preconizaram Este passar sem nada deixar Trago fumaça Para transformar em oxigênio Respiro-te Pois bebo das marés altas e baixas Que levam garrafas recheadas de mensagens Por estes países, continentes Migro no ar Cansado de sustentar A inane segurança De um caminho já traçado Sou todos animais Etnias, hierarquias, Nada me detém! Doméstico e selvagem
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Mostro aqui, prestes a vomitar Nossa própria geração: Um deserto num mar.
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Desejo o outro Desejo seu cotidiano Sua comida, seu trabalho Sua angústia e alegria O cansaço de asfalto dos motoristas Os sorrisos de porcelana das aeromoças As mãos encardidas do mecânico As roupas manchadas do pintor Desejo o outro E sinto-me um pouco Destes livros que caminham Pelas calçadas Rostos que falam sem dizer palavras Anseio por essas peles de papel Por essa gente misteriosa Que nada é, senão o inadiável Penso por eles Por essa multidão de alguéns Pela sabedoria do porvir Ando por eles
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Às nuvens de chuva Às estrelas que anunciam A manhã ensolarada Anseio pelo outro Num congestionamento À luz de algum sol
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Ser Contempla a chuva E o gole de vinho Vai pelo sol E volte molhado Sente o calor E o frio Das nuvens Depois de tua varanda Deseja as peles Atrás das grades Sê personagem Das histórias alheias E se apenas água Puderes beber Se apenas teu suor Pode te molhar Se não houver sonhos Depois de tua varanda
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E somente existir plรกstico Atrรกs de tudo Histรณrias sem futuro Presente ou passado Tenta assim mesmo contemplar Sentir, desejar...
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Veja a cordilheira branca, intacta Montanhas rodeiam Os animais dos vales
Uma criança mira fascinada Os cumes reluzentes As primeiras terras Que fitam O nascer do sol (Aos pouquinhos) Escorre à gua Pura De Seus Corpos O suor do gigante Purifica o que surge
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A seus pés cria mananciais E deixa o mistério: Quantos anos mais Aguentará A neve que aí está?
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Não sei
Se as ostras Que coletei Ferem o mar em suas ausências Se falta farão Seus corpos, seus cálcios Nesta unidade e imensidão Levo-as para cidade Num plano artificial Levo-as para que conheçam outras ostras Produtos das marés de lá Do pacífico tiro a beleza fria de ondas golpeando pedras Para deixar suspiros nas praias atlânticas Coleto algo selvagem Para que possam imaginar Ostras não sabem nadar
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Vou à praia
Limpar o cheiro De tabaco e enxofre das mãos Ver o horizonte imenso De fantasia e sonho Na névoa das incertezas Voy con dedos desnudos Intentando puentes de fertilidad Ando aos pássaros No céu mais sólido e terrestre De um ser que não sou eu Viviendo bajo alfombras de héroes Cazando culebras en las cunetas Para marcar nova impressão Nesse papel rasurado Do pensamento
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Em Caracas, na Venezuela: 1. A palavra “revolução” é utilizada em propagandas, na publicidade. Exemplo: “Uma revolução de sabor” “O shopping da revolução de preços”
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Perdi o sol
mas vou à praia assim mesmo A roda do carro Tá fora do eixo O homem de chapéu Não conheço A moça pôs a blusa do avesso Quanto mais tropeço Menos meço
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2. Uma enquete num canal nacional perguntava ao público se era a favor ou contra o ensino socialista nos colégios estatais. E aí? Sim ou não?
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As vozes do passado chegam até mim E com elas pedaços de almas perdidas Algumas histórias sem fim Em todas as vidas há Gritos de uma vida passada Quem eu era? Quem nós éramos? Por que sinto algo que nego e parece não me pertencer? No limiar das iniciações e decisões Vivo medos antigos e dores de feridas incicatrizáveis
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Entre Fronteras Es verano en la cordillera Hay cabellos blancos apenas en las más altas cumbres Un gran cuerpo moreno Luce en el horizonte sobre El alba de Mendoza De a poco nos acercamos A la gigante ola de piedra y tierra Horas de colores pedrosos y secos De infinitos arbustos que poco me dicen Nada se mueve, ni el viento... De repente un valle! Una verde esperanza sustenta en las copas Lenguas de nieve que más parecen llamas la llama indigena no está muerta: Suena en una zampoña, en imaginación,
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Entre Fronteiras É verão na cordilheira Há cabeleira branca Apenas nos mais altos cumes Um grande corpo moreno Brilha no horizonte Sobre a alvorada de Mendoza Aos poucos nos aproximamos Da gigante onda de pedra e terra Horas de cores rochosas e secas De infinitos arbustos que pouco me dizem Nada se move, nem vento... De repente um vale! Uma verde esperança sustenta nas copas Línguas de neve que mais parecem llamas A chama indígena não está morta: Soa numa distante zampoña, em imaginação,
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Como si de las grietas de la montaĂąa Y de la soledad Brotasen en sĂĄbanas de paz.
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Como se das frestas da montanha E da solidão Brotassem em lençóis de paz.
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3. Um taxista disse-me que lavava as m達os com gasolina.
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Da Pampa a la Cordillera Ando enfermo de contradições Por la manhã desayuno mate caliente Olho e vejo um belo negro Camarada de la pampa Me faço Portunhol Y vivo varios mundos Dentro de sotaques y acentos Suspiro una savana de pieles y expressões Soy doente de contradicciones Mergulho em playas Para boiar en Vulcões
Rosario, Argentina. Fevereiro de 2010.
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4. O mesmo taxista contou-me que havia um decreto-lei que obrigava as rádios tocarem 50% da programação de música folclórica venezuelana.
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Pedindo licença ao Galeano
Num muro de Montevideo: “ Onde termina o estado, começa o orgasmo.”
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À Montevideo Os Plátanos e Ibiscos das ruas Sopram folhas Agarradas nos sapatos O chão sujo de Matias Reclama, mas ri Em Pajas Blancas Sereno o ser sentindo A calma de Andrés Alumbrada numa vela A chama dança Nos acordes de Sebastian A calçada chove Como tortas fritas Das moças e senhoras Com seus mates tomados Melodias amigas Do Cuarteto Ricacosa Criam poema e fantasia! Abrem caderno curioso
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Assovio à mata colorida Violões atraem fauna Ao ritmo de Milonga A cidade anda de bicicleta Quadros são pintados Pela aurora do Rio da Prata E as veias incham num canto: O amor batuca tambores De uma Murga apaixonadamente política Os altos tetos das casas Criam uma paz acusticamente sonhadora
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De vez em quando
Precisamos mudar de cidade Pela insegurança criada em gaiola Ardem os pesadelos de ir até ali Em chiquitos momentos Esquinas Ruelas amizades Marchas sofrimentos Becos compromissos Dá de dor Querer ser árvore Em cada vento Ter raiz sentidos Ai, oi, ei... Como o lobo que uiva Como o ancestral negro Sem lágrima que chore Um enxame detido
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Aqui Neste prédio em que vivemos Os vizinhos de cima rugem Com suas camas inquietas De projetar amanhãs sem porquês Subimos às alturas do nada e tudo Para sermos um pouco do pouco E vivermos escondendo nossos medos Nos jogos que existem Neste prédio em que vivemos O vizinho do lado mija pela janela De madrugada para que ninguém veja E ele possa rir em paz Subimos aos mais infames métodos Para fazer com que consigamos Um tantinho, um quase tudo ou nada De nós mesmos
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Em dia de tragédia no morro do Bumba
O termo fuma a imagem E sopra no ar sentidos certos Pontos desmoronam Casebres adubam à penúria Corações pintam chuvas de verão E o carvão dos olhares Mostra um não dito
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Veja pela janela as árvores
balançarem num espetáculo que só existe Para os que a têm Sente tristeza em lamentar Enquanto aprecia?
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“Terra mãe, é mulher...”
Leal Carvalho
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Para ti
Nenhum poema vale Para ti, sim Todos e miúdos Ruídos e cálices Dos crepúsculos da história Para ti As cores do ar O som das auroras Para ti A ancestralidade da genética minha A voz dos meus pés O luar de minhas mãos A juventude da construção! Para ti O protelar de um gozo... Para que desabrochem sorrisos continentais!
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Para ti Todo o tremer dos pronomes O cálcio das conchas O sopro dos mares A terra que parte-se em pedra O ar que se modifica A canção feita numa cantiga O peito que amamenta O rio que não enjeita A trama da natureza O saber que a alma existe As pétalas que compõem as mães O filho que quero ter Para ti Aquilo que já plantei Com o tudo que plantarei Mas, nenhum poema Vale
à Marina
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Terra I A terra ascende nas jovens almas Feldspatos, açucenas, acauãs Evocam os elementais Árvores crescem em fortaleza O dom do ar Poliniza grãos de paz Salamandras sopram Séculos em dias de mata Fauna e flora Juntam-se em corredor Contemplam o homem consciente de suas mãos
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Contemporânea I Entrou na casa como quem entra no mar Fez poemas e canções das paredes Fincou bandeira no telhado Semeou entre raízes do pátio Colheita de ilhas Sementes de ilusões Sua foz é na nascente Não deságua em parte alguma Vai vil Assorear em si mesma Nas orlas sorriam curumis Entre a neblina crivada na passagem Iara disse: - Não vá! Guri atenta à mãe? O idílio desfez o campo Flores e sonhos em ida Nos idos Névoa gris...
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Ao fundo Dum poรงo opaco
Flutuantes estรกtuas
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) 59
No Mercado Municipal de Guayaquil: 1. Um pregador grita a seu Deus por ajuda e canta entre a multid達o.
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Barrigas de Roundup Barrigas crescem Na ausência de calos Obsoletas enxadas Criam limo no canto Cultivos padecem Fome de manejo adequado Embalsamaram a diversidade! Em Livros-museus-naturais Desnutrindo a terra em ócio Ventres de Roundup Crescem na ferrugem do facão
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2. Um gato malhado come dentro dum recipiente de restos.
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Onde
OLHO
PALE E N LA JA Vejo Pasto Árvores? Amigas? Apareçam Deste V a s t o D e r r a m e E se não for infame pedir...
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Avise aos indígenas: VENDE-SE LOTES AQUI!
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Alimentando as saĂras com bananas De estorvos sinistros Sameio no campo muito longe Com meu balaio levo o mundo Construindo pontes de embaĂbas Para passar dos rios Que estrovam a gente
Ă agricultura familiar
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3. O feirante grita: - Gringo! Venga mirar!!
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4. Vejo um dólar encostado no queijo da barraca de frios; Pedaço de Abacaxi – Piña - por $ 50 cents
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Carta VI ¿Como estás, mi Hermano? Te extraño, y me acuerdo siempre al echar jabón en la esponja (¿Te acuerdas que me enseñaste a echar en la parte amarilla?), al pensar en las miradas, y en el poder que tienen estas junto a la palabra. Ando con una mirada muy reservada, me gusta las madres, me atrae el oficio cada cual en su concentración. Mi atracción es, sin embargo, sexual, natural, reptil... Quiero la experiencia, no la ansiedad, y veo un seno futuro susceptible, listo para recibir el cuerpo delgado del mundo. Baja del hambre, el hambre de placer, el hambre de guerra. Somos el mundo, uno está en si y en él. Cuando nazca un niño la aurora será la misma, de necesidad, de atención, de naturaleza. Así pienso la vida y recuerdo. Para Andrés Deus, representando meus irmãos.
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Carta XIV Senti uma pontada no peito. Minha avó, não fique assombrada com a expressão de minha dor; aproximei-me como nunca da morte e vi a angústia da humanidade refletida em todo rincão. Vi filhos da escravidão deitados baixo duma estátua de conquistador. Escutei nas conversas a inane lembrança de fatos televisivos, os artistas cantando e atuando sem amanhã. Queria chegar a casa para escrever todo fardo do olhar. Quando entrei todas as luzes estavam acesas, apaguei e perguntei para ao irmão: - Você trabalha para poder desperdiçar? Saiu um pouco aturdido, e voltou. Você, de uma época remota, de guerra, sabe das expressões de dor, via os conterrâneos italianos à beira do fuzilamento. Talvez porque presenciou, sente que não estou brincando. Há muito arder pelo ar, e nesta tarde foi tudo para meu peito... O sangue dos desertos árabes, as ruínas
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por impérios, o ranço das tribos nômades. Os corpos e olhares dos torturados. A vida dos sorridentes explorados. Quanto mais sei, mais morro. E há quem diga que são gases.
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Carta XVI Chegando ao Rio, casas simples ao corpo do primeiro morro avistado. Um homem solta pipa frente à rodoviária sob a observação de um menino (deduzi como filho) que enrola na lata a linha que o pai puxa, trazendo o brinquedo alado do céu. Displicente cidadão caminha pelo meio da rua. Feroz automóvel assusta-o e parte. O céu está azul, faz calor, é janeiro. Parece tempo de bonança, porém, notícias confirmam o revés. Na calçada, uma senhora negra fala só, loucura de uma dor hereditária. Acho que sua melhor amiga foi à brisa que lhe tocara.
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Carta austral Don Sérgio, em Quellón, disse-nos que o vulcão Michimahuida destruiu a cidade de Chaiten nas bordas da erupção que construiu uma imensa escada de cinzas no espaço. A nuvem gris fechou as persianas sobre os vales da cordilheira levando a história até Quellón, onde o conheci.
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Dicas de Carona: 1. Em MontevidĂŠu, voltando sentido Brasil, buscar pelo Mercado Modelo - equivalente ao CEASA.
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Plástico Paraguai – Hules Visitei Ykua´Karanda´y, que em guarani significa: “Água que brota”. Companhia de Luque, villa de hules, onde há moradias feitas de plástico. O banheiro é a latrina, um buraco no chão. As famílias que ali vivem ocuparam o baldio, não fazem parte da arrecadação tributária. Não há luz, água, saneamento. Dez metros adiante da rua que cruza o bairro brilham luxuosas mansões. Na caminhada pelo lugar parei numa casa, precisava molhar a cabeça - o calor tonteava, quase tombava a gente. Buscava hidratar-me e via ao lado um córrego por onde passavam os dejetos dos que viviam ali. No lar que estive, um homem silencioso serviu-me água do poço generosamente. Crianças pescavam girinos nas veias do podre regato. Este bairro fica a poucos minutos da capital Asunción.
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No dicionário português, Assunção significa a elevação de um cargo ou dignidade. No dicionário espanhol, ação e efeito de assumir.
Assunção, 2008.
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No coletivo I No ônibus indo para Ilhéus ouvimos Flávia, de Eunápolis até São João da Panelinha. Ela entrou no coletivo entoando um grito estridente, completado duma larga risada. A primeira sensação que tivemos ao vêla foi de conforto: - viva a esperança! Pensei na Alegria do povo Baiano. A voz de Flávia ecoava com humor durante a viagem. “Capar o Gato” foi uma das expressões que usou querendo dizer: Tomar outro rumo. - Eu vou é capar o gato pra lá! Suas filhas são Bruna e Bruniele. Flávia disse querer um filho, mas contou que a despesa já é muita. Perguntou se no Rio de Janeiro havia farinha de Mandioca, e complacente com nossa condição de viajantes ofereceu-nos abrigo em sua casa. Nos despedimos agradecidos, e ela saiu - sorridente, em paz com as meninas, cheia de algo simples e eloqüente.
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Comia um pastel no Rio Grande do Sul, em Santa Cruz do Sul, quando uma senhora – destas que passam o dia coletando lixo – apareceu de repente. Tão de repente chegou perguntando: “- Tá vendo? Este ônibus! Aí, olha! Foi meu filho quem desenhou, é ônibus para deficiente. Meu menino é muito bom, sempre gostou de desenhar; ele desenha de tudo. Flores, bolas, brinquedos, saem do papel e viram realidade...! Viu o ônibus?” Disse que sim, que era bonito. Ela sorria, sorria... Fui pensando se a historinha era verdade. Por que a senhora vivia maltrapilha se o filho projetava ônibus? Naquela tarde tanto a verdade quanto a mentira, valia. Pois no mistério dos dois estava a felicidade, e a celebração de uma fantasia.
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2. Olhe bem no olho, e vai!
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Nas redondezas do Mercado Municipal de Sucre (Bolívia), um engraxate de dez anos chamado Javier pediu-me para comprar-lhe um caderno. Comprei o caderno e quis saber mais sobre a vida e o trabalho do menino. Na Bolívia o trabalho infantil é comum, seja rural ou urbano. A criança é incorporada ao labor na arrecadação familiar, antes até de concluir seus primeiros anos de estudo. Tal fato inibe a criatividade quando a criança assume responsabilidades de um mundo impróprio para recebê-la – sem os descompromissos de infância. Javier era engraxate desde os sete anos. Estudava à tarde, trabalhava na manhã. Convidei-lhe para almoçar no mercado. Surpreendeu-me quando após poucas garfadas colocou seu almoço numa sacola plástica, e levou-a para casa. (É um costume popular) No outro dia disse-me que dividira com a mãe.
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Vi aquele menino tímido, pensei na minha infância colorida, no desperdício e na equidade.
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“A cultura Venezuelana tem importante referência na região dos llanos, uma região de planície e pântano – as savanas venezuelanas.” Contou-me um homem no ônibus de Mérida à Barinas, que ostentava um grande sombrero feito da fibra de uma palmeira (Palma Moriche) bastante encontrada na região e utilizada na confecção artesanal ancestral. Tratou de explicar-me que aquele era um exemplar venezuelano, e que é bom comprar produtos nacionais. Disse também que o couro do gado era utilizado na fabricação de redes para descanso. Perguntei-lhe o que pensava do governo. Disse-me que estava melhorando a vida de todos – dos mais pobres. Atravessado, perguntei: - E os ricos estão insatisfeitos? Ele: - sim, sim... Há pouco meu presi-
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dente expulsou os latifundiários que existiam por aí. Trezentos... Duzentos mil hectares na mão de um, dois, ou três? Agora o povo está lá produzindo.
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3. Sorria, agradeรงa, construa uma lembranรงa se puder.
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Quatro dias sísmicos 1º dia (27 de fevereiro de 2010) Sinto a terra tremer, os objetos em cima da mesa estão instáveis. Não estou bêbado. Despertamos aproximadamente três horas da manhã como gatos assustados correndo pro pátio. A estante de livros que acabamos de levantar carrega uma cicatriz e alguns pedaços pelo chão. Nunca havia visto a lua dançar de tal maneira! Para mim a terra sempre foi o mais seguro, fixa, invariável, como o dito popular: “ Do chão não passa...” Tocou-me pensar hoje na liquidez da terra, em como poderia abrir-se uma boca do solo e tragar a superfície. Do quintal víamos a casa como um brinquedo frágil. Tentávamos permanecer de pé ainda um pouco mareados pelo levantar no susto, entre o áspero e o elástico. Os cães ladram no vizinho, anunciam um pequeno tremor... Aqui é Nancagua, campo chileno, sul da 6º região. Eduardo foi ao hospital saber
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se necessitam de sua ajuda. Meus companheiros de casa estão tensionados, alguns buscam informações na rádio – onde haverá sido o epicentro deste terremoto? Descansamos um pouco. Quando Eduardo voltou soubemos que na cidade as casas mais antigas haviam caído, que lhe tocou ver dois mortos, e que o hospital estava cheio e impossibilitado de transferir seus pacientes a outros postos. Em meio à catástrofe comentou sobre um nascimento, o que soou um engraçado paradoxo, pois o ministério do interior anunciava na rádio 64 falecimentos. As replicas tremiam as taças de café enquanto nos olhávamos. As calçadas enfeitadas de laranjeiras estão cheias de laranjas caídas e escombros. Há cheiro de escombro e um silêncio de laranja no ar. A igreja de Nossa Senhora das Mercedes possui rachaduras por sua estrutura, talvez caia o campanário não resistindo as replicas. As caminhonetes passam carregadas de despojos: telhas, madeiras, pedras. Há um conjunto de casas em monte,
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haverá gente soterrada? A população se junta ao redor, poucos falam, alguns tiram fotos... Como estarão as outras cidades? Chillan, Curicó? Cidades maiores e mais próximas do Epicentro. Há impotência frente ao caos. Apenas uma rádio funciona e as informações são difusas, dizem que há risco de Tsunami e que nas cidades costeiras estão evacuando a população para as montanhas. A energia e a água foram cortadas. A população sai com garrafas em busca de um vizinho generoso, um poço. Os muros estão literalmente desfeitos. Encontramos Eduardo saindo de uma ambulância. Disse-nos que havia mais dois óbitos por queda de escombros, e que teve de ir aos locais mortais fazer as notas de falecimento, ou seja, averiguar se estavam mortos. Conversamos sobre o médico e sua importância como entidade dentro de um povoado pequeno. Nestes momentos são instituições elementares que acalmam a população.
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Nossa ponte com o sangue da tragédia, Eduardo, voltou pela tarde contando novas notícias. Os lesionados em sua maioria se machucaram durante o desespero da fuga: tropeços, golpes contra parede, e feridas causadas pela queda de escombros. No hospital há gerador de energia e a televisão mostrou um edifício de 16 andares partido ao meio em Concepción, onde o terremoto foi mais violento. Acreditamos que o número de mortos passa facilmente os cem. O dia passou devagar, foi um dos mais duradouros de minha vida, às vezes volto a lembrar do ruído da terra tremendo, das montanhas, da lua numa febre agitada, e de nossa languida existência ante a natureza.
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2º dia . Somos títeres neste mundo. Despertamos em Nancagua às oito da manhã. Dividimos dois pães em quatro e tomamos café. Hernan, pai de Eduardo havia racionado a comida para que tivéssemos este pão antes de viajar. Na estrada observei muros desfeitos, poucos veículos viajando, e certo alento desolado no ar. Os postos de gasolina estavam fechados, e as exceções abertas possuíam filas de formigueiro. No caminho, um desvio. Uma ponte tombada, quantas não haverão caído? Lembrei que Eduardo fez curativo na testa de um motociclista. Justamente no momento do terremoto, passava por uma pontezinha.
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3º dia .
(Nota-se que o terceiro e o quarto dia têm linguagem mais dura, jornalística. Codifiquei como marcada pela influência da cidade, do contato com a população e com os meios de comunicação)
Em Santiago víamos bairros enfileirados na frente dos mercados. Soubemos da notícia que em Concepción os saques haviam começado. Ficamos discutindo sobre a moral do roubo, e em sua fragilidade ante a necessidade. O estado havia colapsado em alguns lugares, e o monopólio da violência voltava ao rigor. Fui para casa de Valentina, seu bairro estava em paz, faltava luz, mas nada havia caído - nenhum muro ou parede, os anos de estudo em arquitetura sísmica bastaram àquelas casas. Fomos para casa de Nicolas, conversamos sobre os dias e decidimos visitar o grupo da FECH (Federação de Estudantes da Universidade de Chile) de voluntários. Se não fosse fazendo algo, não seria. Turista?
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4º dia . Jovens na maioria, se reuniam para ajudar os bairros mais afetados pelo terremoto. Tomamos o metrô em direção à Comuna de Santiago. Havia muitas casas comerciais, o que não nos interessava tanto. As casas familiares eram antigas, quase todas feitas de adobe - as que sofreram mais danos. Estávamos vivos finalmente. Depois de três dias prostrados, enfim, conversávamos com a população, sentíamos suas necessidades e medos. Era um trabalho psicológico na medida que escutávamos com empatia as moléstias causadas pelo terremoto. Dona Dina vivia só numa pequena vila, a casa de adobe fundiu-se. Havia rachaduras por toda parte, e o teto estava na sala. A senhora de oitenta anos possuía úmedo olhar, mas era forte. Quando perguntei para onde iria, respondeu: “ Yo no sé, mi hijo...” A parte mais penosa deste cadastro de danos foi escrever as recomendações para prefeitura: URGÊNCIA. Senhora idosa, só,
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sem apoio familiar. Visitamos casas e conversamos com seus donos, certas ocasiões averiguávamos como técnicos, a estrutura da casa, o risco de queda, e a urgência dos tetos e muros. O primeiro encontro foi simbólico, uma família ocupava de móveis e objetos o baú de um caminhão. A casa estava sob decreto de demolição, porém, todos encaravam com risos o ocorrido, e a última embarcada foi a bandeira chilena. Disse um cidadão ao se despedir, balançando-a e sorrindo: “Apesar de todo, continuamos chilenos!” Pensei na tragédia e no nacionalismo, em seus respectivos laços.
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Arthus Fochi arthusfochi@gmail.com Editores Responsáveis: Wohlfeilheit Duran e Arthus Fochi Diagramação: Barateza Duran Revisão: Jaca Foca Créditos das ilustrações: Liv Nicolsky - Capa e págs. 51, 67, 88 e 97. Thiago Amaral - págs. 5 e 75.
Rio de Janeiro, 2010 Todos os esquerdos reservados. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, para fins não comerciais, desde que citado o autor. Porque não permitir a reprodução de livros numa fotocopiadora é promover o desaparecimento de leitores.
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