Revista A Ponte # 12

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N° 12 • ANO VI Revista do Curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza Semestre 2009.1 - Agosto de 2009



Erato

04 12 18

Teatro José de Alencar História contada por quem faz parte do teatro

Woodstock Desmemórias do verão do amor

Supermemórias Filme reúne memórias gravadas em câmeras Super-8

Euterpe

23 29 34

Adoção Relatos de famílias que viveram o processo

Para a eternidade Um amor que perdura mesmo após a morte

Coleções Memórias de um colecionador de carros

Polímnia

39 42

Tecnologia Memória digital: infinitas possibilidades

Violência Situação que perdura na memória de diversos brasileiros

Clio

58 66

O chumbo derreteu 45 anos do Golpe Militar de 1964

Che Guevara Estudante à procura do significado do ídolo

Constante

48 72

Ensaio fotográfico Unifor em jardins Artigo Evolução do rádio no Brasil

Clio, Euterpe e Tália - Eustache Le Sueur, 1652-1655 Museu do Louvre, Paris Montaigne


cartas

Esporte Fiquei muito feliz ao ler A Ponte com o tema “identidades”, pois trouxe uma matéria sobre futebol. Como fã do esporte, realmente sentia falta do assunto nas edições anteriores que, invariavelmente, traziam reportagens sobre cultura ou personalidades. Identifiquei-me muito com a abordagem apresentada em “Vivendo as Paixões” e gostaria de agradecer. Roberto Curchatuz advogado

Gênero EXPEDIENTE Revista do Curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza Centro de Ciências Humanas - Universidade de Fortaleza Fundação Edson Queiroz Diretora do Centro de Ciências Humanas: Erotilde Honório Coordenador do Curso de Jornalismo: Eduardo Freire Conselho editorial: Alejandro Sepúlveda, Eduardo Freire e Erotilde Honório Coordenação editorial: Alejandro Sepúlveda Coordenação de produção: Alejandro Sepúlveda Gerente do Laboratório de Jornalismo: Ricardo Sabóia Supervisão de produção gráfica: Aldeci Tomaz Diagramação e tratamento de imagens: Aldeci Tomaz e Felipe Goes Supervisão de fotografia: Júlio Alcântara Revisão: Fernanda Vieira, Gabriela Gomes, Raquel Maia, Renata Maia e Sara Rebeca Aguiar Suporte técnico: Aldeci Tomaz Supervisor da gráfica: Francisco Roberto Impressão: Gráfica da UNIFOR ESTUDANTES DE COMUNICAÇÃO SOCIAL / UNIFOR: Coordenação de equipe: Gabriela Gomes e Raquel Maia Editores assistentes: Fernanda Vieira e Renata Maia Capa: Felipe Goes Foto da Capa: Evelyn Onofre 2ª e 3ª Capa: Agência de Publicidade - NIC Projeto gráfico: Eduardo Martins Fotografias: Celio Scipião, Danielle Rotholi, Fabiane de Paula, Mariane Braga, Millene Haer, Bruno Anderson e Fabio Gurgel. Redação: Alunos da disciplina Princípios e Técnicas de Jornalismo Impresso II de 2008.2 ( Aline Veras, Camila Bitar, Celma Prata, Clara Furtado, Cleidinaldia Maia, Déborah Milholme, Eva Cardoso, Gabriela Gomes, Gregório Freire, Heyva Amanda, Ivana Moreira, Joicy Muniz, Laura Bandeira, Lucas Abreu, Mariana Dantas, Monique de Oliveira, Otávio Augusto, Renata Wirtzbiki, Sávio Mota e Tainá Nascimento).

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Quero parabenizar a toda a equipe que faz A Ponte pela excelente qualidade da última edição, intitulada Identidades. Em especial, pela reportagem “Assumir faz a diferença”, pois aborda o tema da relação de amor entre duas mulheres com responsabilidade e seriedade. Espero que continuem a nos oferecer um jornalismo de qualidade. Marília Vivanco corretora de imóveis

Jornalismo inovador “Desde a primeira edição leio a revista A Ponte. Ela traz um caráter inovador ao jornalismo produzido dentro da faculdade. Quando entrei no curso, foi o produto das disciplinas que mais me encantou. A ousadia de trabalhar a homossexualidade na última edição só nos incentiva ainda mais, como estudantes, a buscar um jornalismo que fale com beleza e sem preconceitos assuntos tão polêmicos como este. Próximo semestre é a minha vez de participar da produção dela. E eu já não vejo a hora de fazer parte dessa equipe”. Amanda Santos, 4º semestre de jornalismo/Unifor.


No editorial da última edição d’A Ponte, a profa. Geísa Mattos, ao se despedir da revista e da equipe do Labjor, após cinco anos como coordenadora editorial, deixou-nos uma bela mensagem: “somos ‘efêmeros, fugazes e passageiros’”. Motivado por essas palavras, assumo, a partir deste número, a coordenação editorial d’A Ponte ciente do valioso legado jornalístico que foi deixado impresso por muitos estudantes, professores, estagiários e técnicos do Labjor nas páginas das edições anteriores. As reportagens que compõem esta nova edição foram elaboradas pelos estudantes da disciplina de Impresso II sob o signo da deusa Memória. Elas reúnem registros de lembranças que ficaram na memória como palavras talhadas a navalha no tronco de uma velha árvore. Para os antigos gregos, a memória era um ser sobrenatural representado pela deusa Mnemosine, filha do Urano (Céu) e Gaia (Terra), e mãe das nove Musas inspiradoras e protetoras da criação artística e científica, como a Euterpe (Música), Erato (Poesia Lírica), a Polímnia (Geometria e Meditação) ou Clio (História). Em homenagem à deusa Mnemosine, escolhemos quatro de suas filhas musas para dar nome às editorias deste número. O tema Memória é abordado em reportagens matizadas por um olhar caleidoscópico: o Teatro José de Alencar rememora a sua história com voz própria para misturar-se com as lembranças de vida do palhaço Trepinha, do maquinista Raimundo e do iluminador José Brasil;

a história de Fortaleza é contada através de memórias particulares registradas em filmes no formato Super-8, projeto desenvolvido por Danilo Carvalho, diretor do filme Supermemórias; Woodstock, o Verão do Amor, completa 40 anos e é lembrado em entrevista por Duque Estrada, ex-marinheiro que participou da grande festa; adoção e memória aparecem entrelaçadas nos destinos de Solange e Bárbara, e nas lembranças fragmentadas da vida de Fernanda; o mais antigo cemitério de Fortaleza, o São João Batista, guarda muitas histórias, entre elas, a de Francisco Alves, o Chico da Sucata, um homem que vive dividido entre o comércio de ferro-velho e o culto à memória da sua eterna amada, Eliete, morta há 15 anos; José Arnóbio é um colecionador apaixonado, principalmente de carros antigos, pois eles reavivam as lembranças da sua primeira paixão: um Aerowillys; histórias de violência, como as narradas por Enoque Melo, Tereza Lima e Oneide Braga, ficaram marcadas a ferro e fogo, para sempre, nas suas memórias; o computador transformou-se na extensão do cérebro e na possibilidade infinita de armazenar memória, como vaticinara o pesquisador McLuhan; os “anos de chumbo” parecem ter se derretido na memória das novas gerações, mas não para aqueles que ainda lutam por um mundo mais justo, como a professora Maria Luiza Fontenele e o deputado Chico Lopes; o mito Che Guevara reascende da memória através de novas interpretações dos jovens; e, a história do rádio, no Brasil, é relembrada através de artigo assinado. Esperamos que as próximas páginas fiquem na memória...

ao leitor

Sob o signo da memória

Prof. Alejandro Sepúlveda Coordenação Editorial

Memory, obra de 1886 do escultor Daniel Chester French, concebida em homenagem à memória

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Crônicas de uma vida de lembranças ·

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texto

· aline veras · joicy muniz · fotos · joicy muniz ·

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Erato

Minha história começou quando ainda raiavam os primeiros dias do século XX, mais precisamente em 20 de agosto de 1904, quando a Assembléia Estadual autorizou a minha construção. No entanto, minhas primeiras células foram se formando somente quatro anos depois, em 1908. Meu pai era um engenheiro militar muito famoso na época, Capitão Bernardo José de Melo. Confesso aos leitores que demorei um pouco para crescer, amadureci mais lentamente do que grandes amigos meus como os Teatros São Pedro, o Municipal do Rio de Janeiro, Santa Isabel, Alberto Maranhão. Como me chamo? Teatro José de Alencar

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Próximo ao piano, dizem que o fantasma da bailarina Maria Amélia aparece

Minha inauguração aconteceu no dia 17 de junho de 1910. Muitas pessoas me homenagearam. O jornalista e abolicionista Júlio César da Fonseca Filho, um importante intelectual da época, fez o discurso inaugural falando sobre o papel de destaque que eu, dali em diante, teria na formação cultural da sociedade cearense. Ouvindo as palavras do jornalista, senti-me ao mesmo tempo orgulhoso e com muito medo pensando se daria conta de tão pesado fardo. Na ocasião, houve um concerto da Orquestra Sinfônica, sob a regência de Luigi Maria Smido. Houve, também, um grande espetáculo pirotécnico com rodas de fogo, morteiros, foguetes e girândolas. Realmente uma beleza de festa. Alguns meses depois da minha inauguração, no dia 23 de setembro, ocorreu o meu primeiro espetáculo teatral. A peça chamava-se “O Dote”, de Arthur de Azevedo. Nesse dia, o público veio em peso, ocupou todas as minhas cadeiras. Quando a peça terminou, foi uma alegria só. Ouvi sons de aplausos, gritos de “Bravo!” e tantos outros sons eufóricos. As pessoas gostaram

e a peça fez tanto sucesso que ficou se apresentando durante cerca de dois meses. A partir daí, vieram grandes companhias de teatro. Tenho hoje, o orgulho de dizer que no meu palco já se apresentaram Chico Anysio, Nelson Gonçalves, Hiramisa Serra, Lucile Perez, Raul Cortez, Miguel Falabella, a Orquestra Sinfônica de São Paulo e muitas outras atrizes e atores dos mais diversos lugares desse mundo. É, meus amigos, se eu fosse enumerar o que já aconteceu dentro de mim, teriam que fazer uma revista especial da A Ponte somente para as minhas histórias. Bem que eu merecia, não? Agora vou deixar que vocês leiam a narrativa de algumas pessoas que fazem parte da minha vida e vice-versa. Existem pessoas às quais dedico inteira confiança e sentimento. São pessoas que já me viram rir, chorar, sentir medo e nos momentos que mergulhei em profunda depressão. Vamos conhecer as histórias do palhaço Trepinha que eu conheço há 55 anos. Um grande palhaço que sabe, como ninguém, fazer uma criança dar uma boa risada. Há, também, o Seu Brasil. Conheci seu avô e seu pai, dois bons homens. O simpático Nonato é outro que vai contar um pouco da história dele e da minha. Até mais, caros leitores, e lembrem-se de que a cortina se fecha no final do dia, mas na manhã seguinte ela se abre novamente para um novo fim.


O sorriso do teatro Hoje o dia está um tanto quanto frio. A chuva é uma das manifestações da natureza das quais o que mais me impressiona é a beleza. O céu fica belo, o clima fica aconchegante, meu segundo lar, o Teatro José de Alencar, parece que emerge do céu cinzento. A não ser por um detalhe, a idade já me pesa, os dias frios fazem que minhas pernas, já trêmulas e marcadas pela idade, não tenham a mesma força de outrora. Explico. Aliás, o leitor nesse momento já deve estar curioso, visto que nessas poucas linhas sequer revelei meu nome. Prefiro que me conheçam como Trepinha, o palhaço oficial do Teatro José de Alencar. Mudei-me para o teatro há aproximadamente 55 anos, quando já havia passado por tantas coisas na vida. Mas isso não vem ao caso, a memória que quero lhes trazer, é de outro ser, de um grande amigo. Sim, o teatro que já me fez tanto sorrir e chorar como uma criança, que já me deixou com as pernas bambas de emoção. Mas elas

também já ficaram assim por medo. Hoje, estão assim pela idade e pelo frio. Retomo aí ao que contava-lhes inicialmente, sobre o que os dias de frio fazem comigo. Aqui estou eu, parado na frente desse espelho, o camarim está deveras úmido. Pudera! Em dias de chuva não há um cristão que chegue cedo por aqui. Encontrei-me com Silêda, da administração do teatro, logo na entrada. Ela pedia para cancelar a apresentação de hoje. “Fora de questão!”, disse-lhe. Preciso fazer isso até meus últimos dias. Repito sempre. Não percamos, porém, o foco de nossos relatos. Nasci em Santa Fé, na Paraíba, saí de casa jovem e logo virei um nômade do Circo Garcia. Carregava dois grandes galões d’água para os animais, e nesse vai e vem dava umas 30 voltas por dia. O que me chamava atenção no circo era o palhaço, eu o imitava. E, certo dia, numa sessão de matinê, o palhaço adoeceu e fui chamado pra substituí-lo. Foi

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Trepinha, palhaço oficial do Teatro José de Alencar, no camarim


Palhaço Trepinha em cena com o seu particular dom de emocionar

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aí quando tudo começou. Lembro-me com clareza de todas as palhaçadas, das roupas que me deram e da primeira maquiagem. O circo possibilitou-me conhecer muitos lugares, até que cheguei a Fortaleza, e é justo que o leitor saiba de um segredo que guardaria a sete chaves, caso não fosse tão óbvio a olho nu, já conheci muitos teatros mas nenhum era como esse. Como meu bom amigo Teatro José de Alencar nunca vi, com ele vejo figuras importantes pra todos os lados que passo a vista. Lembro a época em que aqui morava, inclusive, essa é minha maior saudade. Sinto falta até das muriçocas, acho que elas também sentem minha ausência. Ou, pelo menos, de meu suculento sangue. Com o perdão da anedota. Sei de tudo que aconteceu aqui, e tudo que não aconteceu também. Dizem por aí que o teatro é habitado pelo espírito de uma professora de balé, a bailarina Maria Amélia.

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Bom, eu já a vi. Certa vez, estava eu voltando ao meu quarto, era um dia chuvoso, como este de hoje, as luzes estavam apagadas e eu subi as escadas. De repente, ouvi um barulho ensurdecedor. Oh, céus! Meus tímpanos quase estouraram!Biiim! De onde vinha aquilo? Trêmulo, perguntei em voz alta: “Quem está aí?”. Corri lá fora, mas o terraço principal estava vazio. Entrei em pânico e só então vi um enorme rato. Nunca saberei se aquilo foi uma brincadeira de meu amigo Teatro. Se foi, perdoo-o. Certo é que, na segunda vez em que me apareceu Maria Amélia, vi-a com clareza. Ela era linda, de uma brancura que beirava a transparência e louca. Quando viva, ela andava nua pelo teatro, era ríspida com suas alunas, as xingava caso achasse necessário. Talvez tenha ficado assim porque foi abandonada em pleno altar. Tenho calafrios só em pensar... Ah! Os sorrisos, os sorrisos de minhas crianças me provocam profunda emoção. O teatro também me faz sorrir. Será que ele se sente como eu? Certa vez, o Chico Anysio veio se apresentar no teatro e esqueceram de comprar o algodão para tirar a maquiagem forte que ele usava. Mandaram um meninote, que não me recordo o nome agora, ir comprar. Perdoe-me a expressão, mas o mentecapto trouxe absorvente ao invés de algodão! No final, demos todos boas risadas com o episódio, já que o Chico acabou se limpando com o produto! O Teatro José de Alencar é hospitaleiro. Já recebeu tantas pessoas ilustres, anônimas, bonitas, feias, brutas, amáveis, vivas e mortas. Recebeu todas com prazer. Getúlio naquela janela principal do foyer, a praça cercada para a festa da mocidade há alguns anos atrás, hoje é cercada com pedaços de madeiras, é deserta e suja. Não a reconheço. As pessoas que iam trabalhar nos seringais no Amazonas e os corpos usados no antigo necrotério ainda estão vívidos em minhas lembranças. Sinto arrepios! Eles se confundem com o medo que eu tinha e o frio que estou sentindo no dia de hoje. Termino minha maquiagem, faltam alguns retoques. O espelho me confirma que estou impecável. A cesta está repleta de balas, chocolates. As crianças me esperam lá fora.


A força do teatro Chamo-me Raimundo Nonato Barroso e trabalho no Teatro José de Alencar há 15 anos. Minha história no teatro começou quando eu ainda trabalhava no Museu do Ceará. Lá, eu passava o dia sentado, não fazia nada porque não tinha o que fazer, detestava aquilo! Na hora do almoço, me pediam para ir pegar a comida no Sesc. Então, cortava caminho pelo teatro. Sempre fazia isso. Até que certo dia, quis entrar e ver como era aquele monumento por dentro. Quando vi o palco todo iluminado, encanteime. O teatro deixou-me aéreo. Não sei explicar o que aconteceu comigo. A partir daquele dia, sempre que tinha uma oportunidade, entrava e ficava vendo as luzes e a parafernália do cenário. Conheci, nessas minhas visitas, o Seu Brasil que me chamou para trabalhar com ele porque precisava de um maquinista. Foi assim que entrei nesse mundo de magia que é o teatro. Ao longo dos anos, passei por muitas situações. Tenho muitas lembranças boas e outras nem tanto, mas todo dia agradeço por ter vindo trabalhar no teatro. Às vezes, chego cansado, mas quando piso no palco e vejo o cenário se formando, o caminhão das companhias cheios de objetos que mais tarde serão uma espécie de portal para a imaginação, grandes interpretações e aplausos, esqueço tudo. E sempre que tenho a chance, assisto a alguma peça. Depois que acabo de ajudar a montar os cenários, sento em uma cadeira da última fileira. Já tive o prazer de trabalhar com grandes atores como Chico Anysio, Denise Fraga, Glória Menezes, Luana Piovani. Essa última, inclusive, não faz muito tempo, veio se apresentar no teatro com a peça “O pequeno príncipe”. Logo no começo do espetáculo, quando ela estava entrando em cena, a cortina começou a pegar fogo e o camareiro dela viu e começou a gritar: “Patroa, patroa! O cenário está pegando fogo!”. Então ele segurou a atriz nos braços e saiu correndo. Nesse dia, ela não quis voltar e a peça não continuou. Nunca me esqueci do jeito que o tal camareiro gritava desesperado. O que eu gosto de fazer, também, é tirar fotos com os artistas. Tiro fotos com eles pessoalmente e

depois já caracterizados. Gosto de ver como fica a transformação. Estou pensando em comprar uma câmera para registrar os funcionários trabalhando, o processo de formação dos cenários, alguns momentos dos atores nos ensaios e até do próprio espetáculo. Acho isso importante, documentar alguns fatos que poderão acontecer no teatro para as gerações futuras. Se me perguntassem se eu já pensei em sair daqui, eu diria que sim. Muitas vezes, aliás. A vida aqui é difícil, nós trabalhamos de terça à domingo. Não consigo me sustentar com o que recebo aqui, então faço alguns trabalhos fora. Na verdade, eu não conseguiria abandonar o teatro totalmente. Aqui, fiz grandes amizades, aprendi muita coisa, vivi momentos que vou guardar para sempre na minha memória.

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Raimundo Nonato Barroso, amor à primeira vista pelo Teatro

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Francisco José Brasil, terceira geração da família Silveira

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Os olhos do teatro Conheço o teatro José de Alencar como poucos. E acho que posso dizer que o teatro também me conhece mais do que qualquer pessoa. Esse lugar representa o meu passado, presente e, porque não, meu futuro. Venho aqui desde meus 11 anos de idade. Isso mesmo, 11 anos. Meu avô, Álvaro de Alencar Brasil, trabalhou aqui. Meu pai, Lamartine Camurça, conseguiu emprego no teatro no mesmo ano em que nasci, em 1954. Então, eu, Francisco José Brasil da Silveira, sou a terceira geração da minha família que trabalha no teatro José de Alencar e, quem sabe, haverá também uma quarta geração. Meu filho Jorge também é iluminador, assim como eu sou e meu pai e meu avô foram. A primeira vez que vim ao teatro acompanhando meu pai foi no ano de 1965. Nesse dia, estavam encenando uma peça que nunca esqueci: “A valsa proibida”. Lembro que um dos atores principais era o Orlando Leite. A partir desse dia, sempre que meu pai vinha trabalhar, eu ficava pedindo para me levar junto. Quando chegávamos, eu corria para a sala dos espetáculos, sentava em uma cadeira e esperava a peça começar. Enquanto os atores não apareciam, eu me deslumbrava com as pinturas no teto. Achava que o céu deveria ser daquela forma que estava retratada ali. Então, de repente, as cortinas se abriam e um novo mundo onde tudo poderia acontecer começava a se agitar. Nessas minhas idas quase diárias ao teatro, conheci o sonoplasta Mauro Coutinho que também trabalhava na antiga TV Ceará. Ele não podia ficar à tarde no teatro porque era o horário do seu expediente na televisão. Então, um dia ele chamou-me e resolveu ensinar-me a mexer na iluminação. A partir daí, eu fui aprendendo sozinho até que o Afonso Jucá, ex-administrador do teatro, contratou-me, em 1975. Em 34 anos como iluminador, passo mais tempo aqui do que na minha própria casa. Minha esposa vive reclamando disso. Tenho,

também, muitas saudades de algumas pessoas que conheci e convivi por muitos anos aqui no teatro e que já se foram. Vou mencionar o Seu Muriçoca, uma figura folclórica que era dono de uma cantina aqui dentro. O ex-governador Tasso Jereissati, inclusive, o homenageou com uma placa que está pendurada ao lado da sala da administração. Infelizmente, ele faleceu em 2003 e, sem dúvida, amava esse teatro mais do que qualquer coisa na vida. Todos que ainda trabalham aqui se lembram do Seu Muriçoca com grande carinho. Recordo-me de uma boa história do Martinho da Vila. Na década de 70, houve um show do Martinho aqui no teatro. Não sei direito o que aconteceu, mas não veio praticamente ninguém. Só sei que o cantor parou o show, foi até a rua e chamou todas as pessoas que passavam para entrar no teatro e assistir à apresentação. Esse dia foi uma verdadeira festa. O teatro José de Alencar ficou tão cheio que parecia mais um ensaio de uma escola de samba. Esse teatro, eu acho que foi a grande paixão do meu avô. Foi ele quem inventou a luz com resistência. É uma técnica que faz com que a luz acenda e vá se apagando lentamente. Até hoje, essa técnica de iluminação é usada nos palcos de todo o Brasil e do mundo. Eu herdei o apreço por esse lugar tanto por causa da história que minha família tem aqui, mas, principalmente pelos momentos que já passei nesse teatro, desde minha infância até hoje. Sinto que minha vida está entrelaçada de tal forma à vida do teatro que não consigo distinguir onde começam as minhas lembranças sem a presença desse monumento tão cheio de alegrias, tristezas e histórias. Próximo ano, o Teatro José de Alencar completará seu centenário. Planejo ficar aqui, pelo menos, até 2011. Depois vejo o que faço, mas só deixo essa minha segunda casa, quando eu perceber que estou cansado e que meu corpo não agüenta mais.

Só deixo essa minha segunda casa, quando eu

perceber que meu corpo não aguenta mais

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Desmemórias do Verão do Amor: 40 anos de

Woodstock · texto · clara dourado · gregório freire neto · fotos · clara dourado ·

A década de 1960 ficará registrada na História como um dos períodos mais conturbados do mundo. Fatos como a construção do muro de Berlim, em 1961; a campanha contra a segregação racial liderada por Marthin Luther King, em 1963; a morte do guerrilheiro Che Guevara, em 1967 na Bolívia e a Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung na China, em 1966, são alguns dos acontecimentos históricos que formam o cenário onde fermentaram e se desenvolveram as ideias do que se convencionou chamar de Movimento Hippie, culminando, em agosto de 1969, no “Verão do Amor”, durante o Festival de Woodstock


Erato

l al, M ichae s d o Festiv re o d a ie iz n rt a A e Os org l Rosenman Roberts, Joe P. os 20 n d h a Jo , ix g Lan s na fa o d to , ca o p r na é ial arrecada Kornfeld – o ideia inic m co s a m a ra h pa anos - tin ra si quanto a p to n ta il o m eir algum dinh men os 1 8 6 tocar, pelo m ia rte a e p u e q rand b and as s à venda. G o st o p m ra p gar, ois ingressos fo ndo sem pa a tr n e u o b aca ireção do público endo em d v o m co lo ões se eram multid e ocorreu ao local. uatro dias q u ro u d lmenO evento Y, EUA. Inicia N l, e th e B da em as, mas 500 numa fazen 0 mil pesso 0 2 s a d ra e eologias te eram esp as pelas id íd a tr a m ra l. ce das no loca mil compare riam cultiva se te n , e to m n a e st cim que supo deste aconte s o n a 0 4 n r ovime Ao completa fez desse m se e u q o : unta surge a perg nte hoje? le está prese e o m lencar, 54, co e to sical Calé A u m r to u d istória. Para o pro va para a h si ci e d i fo 0 ra 196 nsciência pa a década de mada de co to a m u so l, m enta “Nela se te comportam , ca ti lí o p – to os . O movimen todos os lad fica”, explica só lo fi e ca ti cial, artís

rico-social e ntexto histó co e ss e d u e moção hippie nasc ndeira, a pro a b l a p ci n ri p uerra tinha, como o contra a G rs cu is d o e amor nascimento da paz e do -se a isso o m a v a m o S conceito do Vietnã. contra o pre s o st te ro p , o s. Os do feminism o das droga çã za li a g le vor da gnificativa racial e a fa de forma si m a ír u ib tr seriam hippies con valores que o d n ra e g e dad de então. para a socie dos a partir ti a b e d te n em nossa amplame ecem atuais n a rm e p s ssão e Estes valore muita discu m e d n re a d ain sociedade e a mídia. de espaço n n ra g m a presente, p cu o pie se faz ip h to n e a das O movim ória coletiv m e m a n , ente ça ao redor principalm . Essa presen is ta n e d ci o s os fatores sociedade como um d a it d e cr lé a C stock. do mundo, al de Wood iv st Fe o d s ante evento do mais import tudo num u zo li a n ca l mostrar “O Festiva utiliza para se a ri st ú d in lturia qual a próp , era contracu e d a rd ve a n que, pela mídia, uma cultura o do evento tr is g re o d dor do ra. A partir nantes ao re o ss re s to n o os p foram criad plica. ex a Geração mundo”, ovimento é m e ss e d o ã mbém O embri tores que ta ri sc e r o p da ores e ideais Beat, forma s conservad re lo a v s o negavam


ncia de m a experiê ra ça e m co s s. Ele alucinógeno americanos. o efeito de b so o ra çã a tu d ra soli fazer lite para a con te n a rt o p ra im cultu s Outro fator ca foram as o p é a n s ie o ipp o budismo, dos ideais h tais, como n e ri o i, h s d e n iõ a e G e as relig pacifistas d s a ri o te s a d e a ban a hinduísmo por meio d te n e d ci o o trazidas para The Beatles. da década: r la u p o p a época do is a m mbranças d le a rd a u g a i de alCalé aind acompanhe e s o n a 4 1 m tinha demoram u festival: “Eu as, às vezes, is co s A . a sm me o, guma form O impacto s. a d ri e ig d m anos pouco a sere do final dos io e v só s, arense ue acontece para nós ce os 70”. O q d ço e m co iava por 60 para o 64 já se inic 9 1 e sd e d que dos de no Brasil – ue, em mea q é – r a it il lpe m conjuntura conta do go nciados pela e u fl in , 9 6 9 s servem 1968 para 1 s brasileiro ta is rt a s o al, ue acontece internacion s sabem o q le “E ”. a n te e comecomo “an conscientes o it u m o ã st e vés da no mundo, militar atra ra u d a it d a o ntar e o Teatro d çam a enfre quando nasc É . lé a e u C q a l Boa arte”, afirm por Augusto a d ia cr la o sc bém é Oprimido, e mundo. Tam o n s a ci n ê u s s infl lia, os Novo gera grande m a Tropicá e rg su e o u a q h an a época em – o Brasil g ema Novo in C filme o e s m o Baian annes co o C m e ro u O a de e cria essas prêmio Palm ssas. “O qu e m ro P e d década O Pagador que toma a o it ír sp e e ess Calé. condições é so”, pontua is m e m u ss que a funcionáe os artistas atualmente , a d ra st E e m um a Já Duqu Festival e te o a i fo s, De brá to Hippie. rio da Petro o Movimen d te n re e e if m a pro ssa opinião d poca existia é a n , le e ra pobre acordo com o que não e d n u m o d . To da Marinha da mudança oca, ele era p é a N . u falar do comparece ando ouviu u q o d n a g e v e estava na

rte. “Eu g” – pura so in n e p p a “H o do que Woodstock, ipado de tu ic rt a p r te e do d o Woodstock me arrepen e ter achado d r sa e p a , o ipei dos era colorid social. Partic a ci n ê ri e p ex passei uma grande lembro que e a st fe e d dias l e querendo últimos três do o Festiva n a tr la o id o a estudar muito temp té começar a s e õ iç d e vei as ir para outr mentário. Le cu o d m u r e ia e v stock foi o Antropolog r que Wood ri b o sc e d ra ercial 40 anos pa seu lado com a h in T . io íc o owm i a preparaçã primeiro sh la época fo e u q A a h . in ta is m , em e consum capitalismo o d o çã a d a li n i ape s para a conso gal, mas fo le i fo l a iv o Fest auguração d opinião. O . Prefiro a in im m co ra si a ú p m uma festa eiro. O único o Rio de Jan n r, o d endrix, a H o i V Circo foi o Jim ck o st d o o . no W rra”, revela interessante uso da guita o u o n ie o p ci s hip s que revolu inda, que “o a , ra e d si n , classe Estrada co asse média cl e d m ra ck e dos hippies de Woodsto m os chama ra e s le e l, si o buscar alta. No Bra um tentand a d ca , a n a m pies de fim de se tade dos hip e M . a ri p ró ade p anto a outra uma identid moda, enqu ra e e u rq o eológica era hippie p mudança id a m u n a v a a dit u acho que metade acre ernativas. E lt a s e ra u d a lt id cu a e comun perdeu com s hippies se e ss e d ábado à ’ S a e si d e ‘po balos m ‘E : 0 7 s o n os a americana d nsumo, etc”. ústria do co d in a ’, e it o N

o Festival Memória d da de 60, as informações vãoz

déca de cada ve No final da ma velocida u m co s a id d gam. É sendo difun de se propa a rd e b li e d a eais tipada entre maior e os id gura estereo fi a m u ”, e e u rg q quando su pie de bouti poca, o “hip é a d chic”. e d tu n juve mo “hippie co ia íd m la o pe ippies tanto denominad o qual os h a tr n co ”, estéticas O “sistema racterísticas ca s a e rv so cial de lutavam, ab como poten za li ti u s a e ento dissociando desse movim eturpando e d s, ze ve r o consumo, p


Lançado em 1969, o livro um “Notas de do” fa sa velho s le ar h C de é Bukowski co um mar da literatura or pelo seu te te provocan


esse visual em relação às ideo logias inerente ao movimento s da paz e do am or. Hoje em dia, podemos per ceber que o Movimento H ippie ainda infl uencia produç artísticas, mes ões mo que dentr o de uma cult do consumo. ur a Como, por ex emplo, no mus Across The Uni ical verse, dirigido por Julie Taym em 2007, film or e com músicas dos Beatles que retrata a déc ada de 60 e a descoberta movimento hi do ppie por um rapaz inglês q desembarca no ue s EUA . Em ag osto de 2009 tréia Taking W esoodstock, novo filme do diret Ang Lee sobre or o Festival. O fi lme é baseado livro de mesm no o nome e cont a a história de rapaz do interi um or de Nova Io rque que mor fazenda onde a na aconteceu o W oodstock. Tam bém existe o N ew Weird Am erica, designa de um grupo ção de artistas cont emporâneos q possuem influê ue ncias de divers os grupos de rock e folk da décad a de 60 e tam bém influência brasileiras com s o os participan tes da Tropicál e o grupo Nov ia os Baianos. Apesar da en orme quantid ade de bens de consumo normalmente d is so ciados da filosofia da paz e do amor e in sp irados apenas na estética hi ppie, as quest ões de liberd abordadas pel ade o movimento em Woodstoc ainda consegue k m agregar pes soas que estã interessadas em o praticar essas ideologias até

hoje. Desde 2004, no feri ado de Carna é realizado n val, o Brasil um evento cham Psicodália. Até ad o 2006 ocorreu na cidade de Lapa, no Paraná , e desde entã o é realizado em São Martinho, Santa Catarin a. É um Festival de música in dependente on d e também são promovidas ofi cinas. As pessoa s participam do evento com a intenção de co mpartilhar um consciência ec a ológica e com un itária. Em um linha semelha a nte, existe a Fa mília Arco-Íris Tribo do Arco (o u -Íris), uma afi liação de pes ao redor do m soas undo, que pro move encontro esporádicos em s diversos loca is. O primeiro evento deste gr upo no Brasil se deu em 20 na Chapada D 06 iamantina. Ba se ados nos prec tos da paz e do ei amor, esses en contros difund a preservação em da natureza, o desenvolvimen da espiritualid to ade e o respei to às diferença Essa “família” s. não possui líd eres ou uma trutura organi es zada. A época do Festival de W oodstock, segundo Calé, “a glutinou tanta in fo rmação que terá sempre re percussão nas gerações futura Foi a derrubad s. a de conceito s e pré-conceit dos parâmetro os , s conser vador es. O Woodst foi marcante ne oc k sse panorama internacional. a década que É determina o sé culo e marca lutas sociais. as Solidariedade, b usca pela paz liberdade de , construir seu próprio itiner sua história. ár io , Sem preconcei to, sem censur sem atitudes co a, nser vadoras, cr iando ruptura para reafirmar s a sua liberdad e”.


Geração Beat

Movimento ar tístico ocorrido nos anos 50, no de “beatnicks s EUA , cujos pa ”. Suas obras rticipantes fica tin ham foco na experiência co ram conhecidos espiritualidad m drogas aluc posteriormente e (muitos eram in ógenas e vive Ginsberg, Will adeptos do ze r de forma inte iam S. Burrou n-budismo), na nsa. Nesse grup ghs e Jack Kero o se destacam uac (foto). os autores Alle n

Teatro do Op rim

ido

Elaborado po r Augusto Boal , consiste em teatrais e tem um método te como objetivo atral que siste a democratizaç matiza exercíci o final da déca ão dos meios os, jogos e técn da de 60 e o de produção começo da de icas cotidiano e qu do teatro no Br 70. Parte do pr e o teatro deve asil. Surgiu en incípio de qu ser um diálog tre e a linguagem do o e não um m teatro é a do onólogo.

Tropicália

Movimento artís tico brasileiro do fim da década de e outros da arte 60 que, por mei pop e da vangua o da música, un rd a erudita. A tro época e procur ia elementos da pi cália ia contra as ava universaliz cultura naciona ar a linguagem tendências tradi l rock, a psicode da cionalistas e na M PB , incorporando lia e a guitarra cionalistas da elementos da cu elétrica. Podem ltura jovem mun os destacar com o principais artis dial, como o tas Caetano Ve loso e Gilberto Gil.

Budismo/Hind

uísmo

O Budismo é uma filosofia nascida no Nep tos do 1º. Buda al (entre os sé , Sidarta Gaut culos VI e IV a. ama. Os precei bem” e a lei de C.) que se base tos do Budism ia nos ensinam ação-reação) o (como “siga es enpa lharam-se pela popular em to o caminho do Ásia e, muito do o mundo. meio”, “cultiv pe O e lo H o in movimento hi duísmo é uma país como o br ppie, hoje é ba religião indian amanismo, a Yo st a an ga ba te seado em trad (foto) e a cren livro sagrado ça em diversos ições milenare é o Bhagavad s deste deuses – por ex Gītā e a existên emplo, Ganesh cia do Hinduísm a e Kali. Seu o data de 4000 a 6000 mil an os a.C.

Bohemian Ch

ic

É um estilo de vestuário popu larizado pela 2004. Com in s inglesas Sien spiração na ve na Miller (atr st im enta hippie e para designar iz) e Kate Mos no estilo ciga os ciganos) é s (modelo), em no (o termo fr ta m bém conhecid impacto na m ancês “bohém o como Boho oda tornando ien” é usado ou Folk chic. -se bastante coleções até popular entre O estilo caus hoje. ou grande pessoas de to do o mundo e influenciand o


Danilo Carvalho, diretor do filme Supermem贸rias

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Erato

Ele é um apaixonado por memórias e vive cercado delas. Foi o que constatamos logo na chegada ao seu apartamento no Edifício Dona Bela, localizado em um dos primeiros conjuntos de prédios residenciais construídos na cidade, em 1952. Uma escolha pessoal, como parecem ser todas as outras, na vida desse sujeito multimídia

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Entre gravadores de rolo e cassetes, tocadiscos e vinis do Miles Davis, Eumir Deodato e Hank Crawford, filmadoras Super-8 e projetores antigos, máquinas fotográficas analógicas e aparelhos que não deixam dúvida sobre as suas opções e preferências, Danilo Carvalho, diretor do filme Supermemórias, nos recebeu para uma conversa. Natural de Parnaíba, Piauí, começou a fotografar cedo e sempre se interessou por imagens antigas. Cursou Música na Universidade Estadual do Ceará (UECE), tocou com a banda cearense Cidadão Instigado e com o grupo instrumental e experimental Realejo Jazz Quartet. É um dos idealizadores da Alumbramento Produções Cinematográficas e participou de várias realizações cearenses (documentários, curtas e longas), sempre atuando na captação e finalização de áudio. Segundo Danilo, atualmente, a base do seu trabalho é a emoção alheia, a paixão pelas pessoas e suas histórias, a vontade de reunir lembranças pessoais, guardadas em imagens simples, cotidianas e a busca por uma verdadeira intimidade em seus arquivos de família, traduzidas em filmes realizados em Super-8. Há vários anos, um de seus projetos é fazer um filme sobre a história do Super-8 no Brasil e “Supermemórias” aconteceu como uma possibilidade de iniciar esse trabalho. O filme é fruto

Câmera Super-8 formato cinematográfico desenvolvido nos anos 1960

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de um projeto contemplado pelo I Edital das Artes, promovido pela Prefeitura Municipal de Fortaleza, por meio da Fundação de Cultura, Esporte e Turismo (Funcet). A idéia do filme é reunir as memórias particulares de amigos e pessoas que se dispuseram a ceder ou emprestar seu material e, por meio delas, contar um pouco da nossa história recente, em uma espécie de crônica audiovisual do cotidiano das pessoas e da cidade naquela época. Para o cineasta e professor Glauber Filho, o Nordeste “tem seus problemas, mas é formado por pessoas inteligentes que conseguem superar as adversidades da vida, de forma bem-humorada, afetuosa e criativa”. Na opinião do cineasta, “a proposta do filme de Danilinho é muito bacana. Dar visibilidade ao afetivo, ao lado emocional das memórias, através da utilização de filmes amadores produzidos em Super-8 é uma proposta diferente, que sai do lugar-comum do resgate histórico, dando espaço a um olhar mais sentimental na busca pela naturalidade e delicadeza das coisas simples”. A visão de Glauber nos lembra uma frase famosa sobre a fotografia que se relaciona com a questão do olhar de modo particular para as coisas: “A fotografia é original quando consegue alterar o significado do que foi fotografado”.

De arquivos remotos às supermemórias Nos filmes que Danilo recebeu de seus colaboradores, o período abrangido pelas memórias coincide com o auge da utilização dos filmes no formato Super-8. O mais antigo é de 1962 e o mais novo de 1986. Vinte e quatro anos de um período muito rico do século passado, recheado de mudanças e transformações na vida das pessoas e no cotidiano da cidade. Esse material todo, cerca de 500 filmes, ressalta a importância dos registros feitos de forma amadora para o patrimônio cultural de um determinado local, mostrando sua gente, seus costumes, o ambiente (natural e urbano) e suas alterações, em uma espécie de força contrária ao movimento de dissolução do mundo.

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Segundo Danilo, o material dos filmes que recebeu é feito principalmente de momentos importantes na vida das pessoas que colaboraram. São registros afetivos de nascimentos, batizados e casamentos. Somente as ocasiões mais importantes eram gravadas, pois o material usado para gravação era caro, pelo menos aqui no Brasil, já que nos Estados Unidos, onde foi lançado, o formato Super-8 tinha por objetivo popularizar o registro de imagens. Na época, os momentos eram gravados com mais objetividade, mostrando apenas as coisas mais importantes e, na opinião do diretor de Supermemórias, pareciam ser, também, gravados com mais poesia. “Hoje as pessoas


gravam qualquer coisa, não têm objetividade e muitas vezes nem um propósito. Por isso será difícil se daqui a 20 ou 30 anos, alguém quiser fazer um filme com todo o arquivo digital dos amigos, por exemplo. Será muito material”, adverte. Essa ponderação de Danilo tem fundamento. A tecnologia possibilita hoje, praticamente a qualquer pessoa, a produção de imagens (fotos e filmes) em quantidade e qualidade impensáveis na época do Super-8. É a revolução tecnológica, que traz também preocupações. O que fazer com tanto material? E a instabilidade dos registros digitais? Se os registros no formato Super-8 e as fotografias analógicas em películas e cromos correm o risco de, além da obsolescência, caírem no esquecimento, o que acontecerá com a impressionante quantidade de registros digitais, amadores e profissionais, daqui a alguns anos? Conjecturas a parte, o filme Supermemórias está em sua fase final, necessitando agora de transposição para o formato 35 milímetros, afinal, o projeto foi contemplado nesta categoria no Primeiro Edital das Artes, o que limita sua duração, devido principalmente aos custos envolvidos. Danilo acredita que o filme terá aproximadamente 20 minutos e brinca: “Embora seja um curta, teve uma ‘looonga’ gestação”. Muita coisa foi cortada, daí a idéia de transformar

Supermemórias numa série e rodar um longametragem, aproveitando melhor o material recebido, que tem coisas lindas. Ele diz que o seu objetivo não é obter prêmios ou dinheiro. Como recompensa pelo trabalho, conta com a divulgação do material produzido, que resgata a história da cidade e da sua gente. “Sobre meu sentimento com esse filme, bem, o que ganhei de mais valioso com esse projeto do Supermemórias foi conhecer pessoas maravilhosas, suas histórias e as experiências que tive com algumas famílias durante as projeções de seus próprios filmes Super-8 que eu fiz em suas casas, sempre desencadeando falas e reflexões espontâneas sobre a vida delas”, confessa. Em um tom meio reflexivo meio emocionado, complementa: “As imagens que recebi são muito fortes já sozinhas e os sons de alguns filmes são maravilhosos também. Meu desafio nessa montagem, além de organizar 500 rolos, é criar uma narrativa procurando um recorte mais simples e poético, tentando falar de uma coisa que muitos, com medo de serem bobos, não falam. O Amor! É, pode-se dizer que Supermemórias é um filme de amor!”.

Serviço Alumbramento Produções - (85) 3251.1965 www.filmesupermemórias.com.br

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Super-8 ou Oito milímetros Super-8 (ou Super 8mm) é um formato cinematográfico desenvolvido nos anos 1960 e lançado no mercado em 1965 pela Kodak, como um aperfeiçoamento do antigo formato 8mm, mantendo a mesma bitola. O filme tem 8 milímetros de largura, exatamente o mesmo que o antigo padrão e também tem perfurações de apenas um lado, mas as suas perfurações são menores, permitindo um aumento na área de exposição da película e, portanto, mais qualidade de imagem. O formato Super-8 ainda reserva uma área, no lado oposto ao das perfurações, em que uma pista magnética permite a gravação sincronizada do som. Quando surgiu, o Super-8 foi proposto para uso amador - registro de eventos sociais, viagens e cenas domésticas. Seu baixo custo em relação às bitolas profissionais de cinema (35mm e 16mm) e a sua maior qualidade em relação ao 8mm tradicional fizeram com que se tornasse, nos anos 1970 e 1980, o formato preferencial para filmes de estudantes, filmes experimentais e mesmo para tentativas semi-profissionais de cineastas iniciantes.

Danilo Carvalho reúne imagens caseiras de super-8 para a produção de seu filme

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Documentário Rio de Memórias Premiado no XV Festival do Cinema Brasileiro de Gramado, o filme/documentário do médico psiquiatra cearense e cineasta nas horas vagas, José Inácio Parente, é um mergulho na memória visual do Rio de Janeiro, extraindo de mais de 70 mil fotos buscadas nos mais diversos locais, 327 que compõem os 33 minutos de “Rio de Memórias”, média metragem em preto & branco, que ficou com três Kikitos em sua categoria: melhor filme, montagem (Luelane Corrêa) e pesquisa (Patrícia Monte-Mór). “Rio de Memórias”, pela utilização inteligente e sensível que fez de 327 fotografias - entre material de nomes famosos como Malta, Marc Ferrez, Guttierrez, Henrique Klumb e Cristiano Júnior - é um filme do maior interesse a quem se liga em fotografias e preservação do passado.


Memórias do que

não se viveu ·

texto

· sávio mota ·

fotos

· waleska santiago ·

Há várias maneiras de enxergar a adoção. No dicionário, é ato de se aceitar espontaneamente como filho de determinada pessoa. Mas pode ser visto de forma mais simples: um ato de amor

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Solange não imaginava, quando viu pela primeira vez onde trabalharia, que um dia seria mais do que uma pedagoga naquele local. “Era um lugar terrível: as portas eram azuis e as paredes brancas. Parecia um hospital! Avisei à supervisora que não queria voltar aqui”. Acabaria voltando, mas para vê-lo mais colorido e alegre, inclusive sua sala, que se encheu de brinquedos, cartolinas com nomes, desenhos; tudo muito diferente do que tinha visto no início. Há quatorze anos, meninos e meninas do abrigo em que trabalha bagunçam a sala dessa educadora. Ali, a cada dia útil passa um punhado das mais de setenta crianças na fila de adoção. Brincam com carrinhos e bonecas que logo mais, depois do almoço ou quando forem para a escola, passarão a outras mãos miúdas, ganharão outros nomes, outras casas, outros caminhos. Em um desses descaminhos da vida, em 1998, Bárbara, um bebê com menos de dois meses, apareceu no abrigo. “Quando a vi, pela primeira vez, a menina tinha acabado de chegar de casa e dormia no berçário. Logo tive afeição por ela; ali, deitada no berço, o rostinho recostado no colchão, era a cara do meu pai!”, lembra Solange. Encantada, esperou ansiosamente até o dia seguinte para vê-la acordada. Ao pegá-la no colo, a menina estremeceu: tinha pavor ao contato humano. “Descobri que ela havia so-

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frido agressão em casa. A mãe teve um acesso de loucura e quis agredir a neném com uma telha; por sorte, o pai estava em casa: mesmo naquele momento, ele colocou a perna sobre a filha, para protegê-la. Quebraram-se perna e telha juntas”, conta. Naquele instante, a empatia profunda da pedagoga venceria o comportamento estritamente profissional. Durante nove meses acompanhou a bebê, levando-a para casa em fins de semana, como ainda podem fazer os funcionários do abrigo. Passaram juntas o Natal daquele ano. Foi motivada pelo que se chama de “instinto materno”, aguçado por dois filhos já crescidos do primeiro casamento. A menina também parecia retribuir o carinho e a identificação: aquietava-se com Solange, mirava seu rosto fixamente, cochilava no seu colo. “Era como se nós duas já nos conhecêssemos; ou nos esperássemos”, revela. As colegas do abrigo sugeriam que Solange buscasse adotá-la. Em janeiro de 1999, decidiu finalmente por adotar a neném. No entanto, Solange recorda que o caminho para tê-la foi árduo e longo: “Aquela não era minha melhor condição financeira ou pessoal; meu atual marido também não achava uma boa idéia. Eu sempre havia cogitado adotar uma criança; mas nunca supus que seria, de certa forma, levada a isso de maneira tão


pessoal”. Ademais, Bárbara fora para o abrigo provisoriamente, para se manter em algum lugar seguro enquanto sua família original se ajustava – de pai ausente, mãe doente mental, oito irmãos criados à revelia nas ruas, na casa dos avôs, das tias... Portanto, a menina não estava disposta à adoção e, mesmo se estivesse, não é protocolo que as pessoas escolham seus filhos assim, a dedo.

Quatro anos de gestação

Nos primeiros minutos de conversa, nota-se logo que a franqueza de Solange não é só uma promessa no início do papo: tudo que fala de si vem entremeado de uma memória clara, precisa e muito vívida. Quando fala de Bárbara, os olhos miram alto, como que buscando uma lembrança incerta, mas, por detrás dos óculos grandes, não se vê imprecisão; talvez lágrimas teimando em não cair. Mas a voz não embarga, as mãos se cruzam sobre a mesa e a pedagoga se apressa em ratificar: “Não usei nenhum artifício para tê-la comigo; eu era vizinha de um procurador de adoção, conhecida do juiz que avaliava seu caso... mas não quis tirar vantagem disso. Se ela se tornasse minha filha, seria naturalmente - e eu tinha certeza que isso aconteceria”. Foram quatro anos de processo adotivo - ou “de uma gestação muito difícil”, nas palavras de Solange. Depois de cumprir todos os requisitos para adoção e preencher o cadastro com o perfil de filho adotivo desejado, a pedagoga estava na fila de espera para adoção. “Várias vezes, ao longo desses anos, fui a primeira da fila e voltava para o fim, porque tentavam me convencer a levar outra menina com o perfil de Bárbara e, claro, eu não podia aceitar. Escolher não é o procedimento correto, mas aquela não era mais uma questão de escolha: eu já a tinha por filha e ela me tinha por mãe”, explica Solange. Todos os envolvidos no processo – os colegas do abrigo, os funcionários do fórum, do setor de adoção - apoiavam sua iniciativa e sabiam da relação próxima que criara com a menina. O juiz do processo, entretanto, foi sempre criterioso: na primeira audiência, o pai biológico recusara terminantemente ceder a filha à adoção, o que acabou adiando inúmeras vezes um parecer favorável à intenções de Solange.

Durante todo esse tempo, o maior medo de Solange era que alguém acabasse adotando a criança em seu lugar. Bárbara também tinha seus temores: sempre sentia e lembrava, na pouca idade de dois, três anos, que ao fim das tardes a pedagoga ia embora. Chorava, ficava triste; até que Solange decidia pôr fim ao acalento conformador e ia embora, prometendo voltar no dia seguinte. A menina também já emendava de maneira orgulhosa o seu prenome ao sobrenome da família adotiva. “Meu nome é Bárbara Salino!”, era sua maneira de amenizar suas dúvidas e afastar o medo. Outra prova de uma memória sua bastante vívida, tangível, táctil: sempre que chegava na casa de Solange para passar um dos fins de semana com ela, a primeira coisa que fazia era correr para o banho atirando as peças de roupa do abrigo pelos cantos da sala. Fora do abrigo, Bárbara não suportava usar aquelas peças de roupa e tinha uma gaveta com as roupas que só


usava nesses dias de licença. Quando se aproximava a volta ao abrigo, vesti-la novamente era sempre custoso. Solange precisava propiciar um aprendizado incômodo, para que Bárbara entendesse sua real condição. “Nós duas nos identificávamos muito, mas isso não era e nem podia ser pleno: eu tomava todos os cuidados para não a tratar de modo diferente ou inadequado quanto às outras crianças”, esclarece. “Mas, ao mesmo tempo, era muito ruim ver aquela criança crescendo sem a oportunidade de ter uma família definitiva, perdendo sua primeira infância, importantíssima...”, acrescenta. Questionada sobre como ela percebia essa identificação mútua, por meio de quais atos ou traços a menina apresentava, Solange subitamente interrompe a entrevista e pede para sairmos da sala em busca de água ou café. Fomos, desconversando. Seria um sinal de hesitação que antes nos escapara? Talvez aqueles olhos pedissem pela água que não podiam verter. Ligeiramente, Solange tomou dois goles de água e nenhum café.

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De volta à sala, ela contou um pouco de sua vida particular. “Não tenho a menor vergonha de falar dela, porque não vejo as pessoas com desconfiança, com malícia... sou uma pessoa aberta; o que eu falo com você é o que penso”, garante. Retoma, logo em seguida, sua linha de raciocínio: “da vez em que finalmente adotei Bárbara, na última audiência, ninguém da família biológica compareceu. O Conselho Tutelar e o Serviço Social foram visitá-los e viram que não havia qualquer melhoria efetiva no ambiente familiar para receber a menina. Já havia passado quatro anos e só eu realmente dava importância à menina. O pai até declarou, desdenhoso, que achava que a menina já tinha sido adotada; com isso, consegui o parecer favorável”.

Criatura de si

Na casa de Solange, onde muitas vezes estivera como visitante, Bárbara logo passaria pelas experiências singulares e tantas vezes difíceis que vive um filho adotivo. “A primeira insegurança que sentia era a de ter de voltar ao abrigo”, relembra Solange, que não sabia como explicar tudo de uma vez a uma criança de quatro, cinco anos. Planejava fazê-la entender pouco a pouco tudo o que vivera, mas alguns eventos anteciparam seus planos. Certo dia, Bárbara brincava com uma criança vizinha na área comum do condomínio, quando acidentalmente se estranharam por uma diferença qualquer. Em um lapso, entre vingança e chantagem, a vizinha disse: “Eu sei de sua vida; sei que você é adotada!”. Como ocorre no mundo das crianças, o estigma de ser chamada assim parecia muito pior pela gravidade com que a colega enfatizava a fala do que pela palavra em si, que Bárbara já tinha ouvido tantas outras vezes. Sem saber o que fazer, a filha de Solange foi para casa e esperou a tarde inteira até que a mãe voltasse do abrigo, quando inquiriu: - Mãe, a minha amiguinha disse que eu era adotada. Eu sou adotada? A pedagoga mirou um dos filhos do primeiro casamento (naquela altura recostado na porta da cozinha, preocupado com aquela situação) e explicou: - Bárbara, você é adotada; seus irmãos são adotados, eu sou, seu pai é.. adotar é dizer que


o filho é seu, e foi o que eu fiz. Está lá registrado num lugar [um cartório] que todo mundo pode ver: Bárbara Salino é filha de Solange Salino. Outra vez, Solange foi surpreendida pela menina, ainda com cinco anos. Bárbara, já há algum tempo, explicava a todos: “Antes, eu e minha mãe morávamos no abrigo, ela só não dormia lá. Agora, moramos em casa e a mamãe só trabalha lá no abrigo”. Era sua maneira de revisar as coisas sob outra ótica, algo bastante criativo e consistente com suas conveniências, mas que um dia provocou essa estranheza: - Mãe - disse Bárbara - por que você me deixou no abrigo quando eu era menor? “Esse foi um dia difícil”, relembra Solange. “Tive de lembrar-lhe tudo que esperava recontar ao longo da infância”. Ainda hoje, quando explica para a filha sua história, sua origem consanguínea, Solange é direta: “Você veio da barriga de outra pessoa. Mas, quando lhe vi, você nasceu no meu coração!”. - Mãe, como uma pessoa nasce no coração? - Quando você escolhe um amiguinho, ele nasce no seu coração. E você escolheu sua mãe, seu pai, seus irmãos – você escolhe todo dia, não é? Então todo mundo nasce no seu coração todo dia. Distantes como aquele abrigo monocromático com jeito de hospital, os livros de fisiologia, no capítulo de homeostase, revelam tacitamente um princípio fundamental da vida: o sangue só corre se houver um coração.

Memória é identidade

Quando se é adotado ainda pequeno (não importa se de maneira regular ou irregular), o que está em jogo é a própria personalidade do adotado. Ao recusar a alguém a oportunidade de construir uma memória extensa de si desde muito cedo, coloca-se em risco não só a relação afetiva que se tem (ou se pode ter) com o filho, mas ainda a própria idéia que ele tem de si. Afinal, a identidade é toda composta de memória: o que sabemos de nós - todas as vezes em que pensamos em termos de caráter, natureza, personalidade - quebra-se e se emaranha em lembranças fragmentadas da vida, que nunca se repetem tal qual se viveu. Se uma lembrança nunca é a mesma, equiva-

le dizer que a nossa identidade, tomada em cada instante diferente, também está sempre a se fazer. É o que aconteceu com Fernanda. Ela soube que era adotada numa situação desagradável: aos 11 anos, quando tentava defender a mãe numa discussão com o tio materno, este a repreendeu e a chamou de “enjeitada”. No calor da discussão, Fernanda trancou-se no quarto entregue a mil perguntas. O tempo passou e trouxe consigo algumas certezas: diante do silêncio insistente dos pais sobre o assunto, concluiu que havia ali algo que estava sendo escondido. Era adotada, ia se convencendo; e todas as vezes anteriores em que se sentira só, diferente e rejeitada, fizeram cada vez mais sentido. Por um momento, desconfiara do comportamento arredio da mãe. Seria rejeição? Mas a mãe era assim com todos! O pai era esquivo; até conversava sobre o assunto quando inquirido pela filha, mas sempre sob a alegação de que esquecera da história toda. “Só muito tempo depois fui fazendo conexões, juntando as peças que sobressaíam das discussões que tive com minha mãe; e foram muitas!”, lembra. São muitas brigas, até hoje. Mas o maior progresso foi feito em um dia só, quando “baixou o Espírito Santo na mãe e ela resolveu contar tudo em um dia, sem pressão, sem rispidez”, ironiza. A televisão pode ter contribuído: passara no noticiário daquela noite, enquanto mãe e filha assistiam juntas, um caso famoso de rapto de crianças e adoção irregular. A mãe de Fernanda lhe entregou a “ficha do bebê”, formulário do hospital em que nascera, onde se via o nome da mãe biológica, Maria. Também a roupa e as meias pequeninas que vestiu na menina quando foi buscá-la, e uma carta, escrita do próprio punho de sua genitora, de todo muito reveladora. Na carta, sua mãe biológica pedia a alguém um “remédio” para abortar. Era o quarto mês de gestação. Aí, finalmente, soube da maior parte da história: sua mãe era uma adolescente solteira quando engravidou. Não tinha condição financeira ruim, como Fernanda esperava; ao contrário. Maria era de família abastada, com todas as condições para criá-la, mas vivera a pior das agruras quando seu pai exigiu uma escolha de Maria: que desse conta de criar Fernanda sozinha, com recursos próprios e sem a ajuda da família; ou se desfizesse da

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menina, não importava como, para voltar para casa. O resto é memória. A primeira sensação de Fernanda foi repúdio, raiva da mãe biológica. Achava que Maria podia ter lutado por ela; mas havia aquela carta... “A impressão que eu tinha era a de que, se a reconhecesse, a primeira coisa que eu faria seria agredi-la fisicamente”, revela. A única curiosidade que tinha era saber o que Maria pensou, o que a fez decidir pela doação. Hoje, mais adulta, brinca com alguma seriedade ao revelar que nunca gostou de ser chamada de “alvinha”, “branca” – antes mesmo de saber que Branca era o apelido da genitora. Tateia uma lembrança improvável: “talvez eu traga isso da barriga, quando as pessoas a chamavam assim”.

O que não se viveu

Quando brincam com carrinhos e bonecas no abrigo em que Solange trabalha como pedagoga, aquelas mãos miúdas de tantos nomes projetam um mundo de desejos e esperanças: desejo de adoção, esperança de ter uma família. Todo dia, neste ou em outros abrigos, uma criança pensa na casa de bonecas antes de dormir ou no futuro de um carro ultra tecnológico com que sonhar. E assim correm os sonhos fantasiosos por outros nomes, outras casas, outros caminhos. É em cada traço, cada gesto repetido, cada grão da pele que um filho adotivo percebe as contradições entre ser filho de quem não o criou e se criar à semelhança de quem se tem por pai ou mãe. A evidência por vezes é tátil e visível;

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mas, na alma de quem descobre tardiamente a própria adoção, ninguém pode calar o poder de imaginar, entre idéias e suspeitas, um passado possivelmente diferente; um futuro potencialmente singular. A imaginação preenche os cantos vazios da memória, torna-se ela mesma memória; e com isso ganhamos involuntariamente o poder de nos reinventar. A vida dos filhos adotivos ou a adotar soa sempre maior: sua família está aqui, próxima; sua origem, lá fora – e, em certo sentido, a origem é tudo que está fora, é o mundo. Mas tal diferença entre adotados e não-adotados, na verdade, é artificial: a criação de si é apenas mais evidente entre os que descobrem uma origem distinta. Solange, por exemplo, se reinventou: foi criada pela avó materna, pois o pai viúvo, sem dinheiro e muito novo, não tinha como cuidar dela e de seus irmãos. Nunca tomou isso como um problema; mesmo porque a avó nunca deixou, não se opôs ao pai nem se posicionou como mãe. Talvez por isso Solange não recuou ao resolver adotar uma criança tantos anos depois de dar a última mamadeira aos filhos adultos, ainda que muitas pessoas se opusessem e temessem por qualquer problema. Em última instância, essa feitura parece uma questão de escolha para cada ser humano: retomar ou superar a lembrança do que tanto se queria e não se viveu. *Nessa reportagem, os nomes foram trocados para preservar a intimidade das entrevistadas


Euterpe

Um amor para recordar ·

texto

· laura luiza · heyvah amanda · tainá nobre · fotos · fernanda vieira ·

Não..não é um filme, mas bem que poderia ser. A história de amor de Francisco Alves e Eliete de Oliveira impressiona qualquer um. Contrariando o juramento de “até que a morte os separe”, Franscisco continua amando sua esposa, mesmo 15 anos depois da morte da companheira

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Atravessamos o grande portão de entrada do Cemitério São João Batista, localizado na Rua Padre Mororó, no Centro de Fortaleza, e vemos, logo à frente, a capela onde são velados os corpos antes de serem sepultados. Mas um outro sentimento, além da tristeza que imediatamente nos abate, logo nos surpreende: o encantamento pela arquitetura. Misturas de belas linhas neoclássicas e góticas nos remetem ao passado. Na outra extremidade do cemitério, bem no canto de um muro, um homem de cabeça baixa reza em silêncio sentado ao lado de um grande túmulo. Ele tem aparência simples, apesar das visíveis marcas de um passado sofrido. Seu nome é Francisco Alves de Oliveira, mais conhecido como Chico Sucata, um assíduo visitante do secular cemitério. Coberta por uma sombra natural das árvores, a sepultura construída de granito chama nossa atenção. Destaca-se uma cruz de mais ou menos três metros de altura, um altar enfeitado com revestimentos em ouro e, ao centro, a foto de uma mulher com um sorriso aberto, feliz. O retrato deixa a lembrança de uma pessoa forte, alegre e que lutou muito contra a doença que a levou para longe de seu marido.

“Nasci e vivi só para você”

Ele nos conta que sua mulher, Eliete, faleceu no ano de 1994, após uma incansável luta contra um câncer de mama. “Eu fiz o que pude. A levei para se tratar no hospital mais caro do Brasil, o Albert Einstein. Lá, não conseguiram curá-la. Fomos para Cuba, de avião fretado, tudo no dinheiro, mas também não deu certo. O câncer dela já estava avançado demais e tomando conta dos outros órgãos”, recorda Chico. Antes de continuar, tira do bolso um lenço, já desbotado, e enxuga uma lágrima, que timidamente escorre em seu rosto. “Sabe qual foi a última frase que ela me disse antes de morrer?”, pergunta. Diante da negativa, ele mesmo responde: “Meu filho, nasci e vivi só para você!”. Eliete, a sua inesquecível esposa, partiu deixando lembranças que jamais se apagarão da sua memória, garante Chico Sucata. “Só quando eu morrer”, enfatiza.

Chico construiu um grande túmulo para homenagear sua mulher pouco tempo depois que ela morreu

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Proveniente do interior da Paraíba, do município de Catolé do Rocha, a 376 Km da capital, Chico Sucata conheceu Eliete ainda criança, ele com 10 e ela com 7 anos e, desde então, nunca mais se separaram. Veio ganhar a vida em Fortaleza em 1970, acompanhado de sua esposa. Atualmente, mora no bairro Monte Castelo, próximo ao Cemitério São João Batista. Para ele, quanto mais perto estiver dela, melhor. Chico nos conta, com muito pesar, que, desde o falecimento de Eliete, sua vida nunca mais foi a mesma. Ela era sua companheira até nos negócios. Não deixava faltar nada em casa e, sempre com um sorriso estampado em seu rosto, administrava com maestria sua vida e o coração de Chico. Com a descoberta do câncer de Eliete, todas as atenções se voltaram para ela e os negócios começaram a desandar. “Não me arrependo de um centavo que gastei com ela. Se eu pudesse, faria tudo de novo para tê-la comigo”, afirma. Apesar de não poder ter mais a companheira ao seu lado, Chico resolveu mantê-la viva em sua memória e presente em seu

dia-a-dia, de uma forma diferente. Desde que a esposa faleceu, ele guarda todos os pertences da amada. Perfumes importados, vestidos ainda novos, escova de dente, perucas que ela usava quando fazia tratamento quimioterápico, batons, sapatos, calças jeans, blusas e até roupas íntimas. “São as que eu mais gosto de guardar. Não deixo ninguém lavar. Somente eu”, ressalta com um sorriso no rosto. A cama de casal, onde ambos dormiam abraçados, ainda está do mesmo jeito. Para ele, é uma forma de tê-la sempre ao seu lado. “Faz quinze anos que conservo o quarto que a minha mulher gostava. Não tenho coragem de me desfazer de tudo que ela e eu construímos com tanto suor”, revela. Chico Sucata visita o cemitério São João Batista com frequência. E o que mais surpreende é que ele chega a passar a noite sobre a sepultura da amada em dias festivos ou comemorações, como no Natal, Ano Novo, Sexta-feira da Paixão, na Quarta-feira de cinzas ou na véspera do Dia de Finados. “São os dias em que mais sinto a falta dela, pois sempre estávamos

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Diante do retrato da falecida esposa, Chico recorda os bons momentos que viveram juntos

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Atrás da foto de Eliete estão os detalhes em ouro nos azulejos do jazigo

juntos nessas datas comemorativas. Não gosto de passar com ninguém, somente com ela”, conta. Especialmente na semana que antecede o Dia de Finados, todas as atenções ficam voltadas para esta data. Prepara santinhos com a foto dela para distribuir durante todo o dia, contrata um padre para celebrar a missa exatamente no horário em que ela faleceu (às 17 horas) espalha balões ao redor da sepultura, convoca toda a família para estar junto dele nesse dia. Permanece, desde as vésperas do dia de Finados até a noite do dia 2 de novembro, no túmulo de Eliete.

Sucata e memória

Francisco Alves ocupa meio quarteirão só com o depósito de ferro-velho, fato que contribuiu para ganhar o apelido de Chico Sucata. Ele vive disso. Vende, troca, faz todo tipo de negócio com a sucata. “Faz 34 anos que trabalho de domingo a domingo. Nunca tirei uma folga”, orgulha-se. Por todos os lados encontram-se fotos da falecida esposa emolduradas nas colunas de concreto que sustentam o estabelecimento. Uma vez ou outra ele se pega olhando

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fixamente a foto da amada. Um olhar triste e vazio invade a fisionomia do viúvo. “Não me canso de olhar para ela”, confessa. Em meios às sucatas, cobertas por duas capas pretas, cheias de poeira, Chico nos mostra outros dois tesouros. Dois carros com os quais ele a presenteou: um de marca Del Rei e, um Versalles, ambos novinhos, adquiridos bem no início da década de 90. Ele os havia comprado antes de detectarem a doença de Eliete. “Teve um em que ela só andou dois meses. Depois ficou debilitada e não pôde mais dirigir”, lembra com tristeza. Chico e Eliete tiveram quatro filhos. Dois casais. Todos já estão bem encaminhados na vida, como ele mesmo afirma. Mas, mesmo assim, nada mais o torna completo. De vez em quando, ele assiste a um dos filmes em que aparecem juntos. Momentos que, até hoje, ele relembra com muita saudade. Festas a que eles sempre iam juntos, passeios rememorando a infância que tiveram. Um tempo que nunca mais voltará, mas permanecerá para sempre na memória deste homem que, ainda hoje, vive e revive uma eterna história de amor.


141 anos de história São João Batista é o cemitério mais antigo de Fortaleza. Fundado em 1868, foi inaugurado às pressas após o enterro de uma criança de apenas três anos de idade. Foi de morte morrida, como se costumava dizer. Motivos de doenças, que hoje podem ser considerados banais, não foram detectados em tempo hábil para tratamento. O que, naquela época, não sendo de conhecimento da Ciência, poderia ser uma doença grave e atingir crianças, jovens e adultos. Layanne Gadêlha, de apenas 18 anos de idade, é guia no cemitério. Ela explica que, no século passado, havia certa competitividade entre as famílias. “Naquela época, quanto maior e mais bonito o jazigo, maior era a fortuna e o afeto que a família tinha pelo ente querido que fosse ser enterrado”, explica. Nos lado sul e norte, como é dividido o cemitério, encontramos verdadeiras obras de arte. Rememorando culturas de outros países como a francesa, judaica, italiana, o cemitério tem uma arquitetura peculiar. Durante a visita, a guia vai apontando para as principais fotografias estampadas nos túmulos. Ela conta a história de uma criança de apenas dois anos de idade que morreu em um acidente de carro. Não só o pouco tempo de vida que a pequena Lúcia teve a faz especial. “Dizem que ela faz milagres. Olha aqui em baixo do túmulo, as pessoas agradecem pelas graças

alcançadas. Flores são colocadas diariamente para ela”, comenta. “Ah! Sabe quem é o Zé Pilintra? Ele está enterrado aqui também. Toda segunda-feira pessoas da religião Umbanda vêm para o cemitério e ficam fazendo umas ‘coisas’ ao redor do túmulo dele. Ficam aqui até de noite. Acendem velas, trazem uma galinha preta, sangue, frutas e até dinheiro. Jogam tudo em uma só bandeja. Fazem um ritual com músicas, danças e orações. No outro dia os coveiros vêm, limpam, tiram o dinheiro e o resto jogam no lixo”, conta Layanne. Jazigos cobertos de ouro e prata, túmulos construídos com mármores de Carrara vindos da Itália, compõem um cenário artístico. Porém, não é só a beleza arquitetônica que impressiona no local. Lá encontram-se as sepulturas de grandes homens que em vida lutaram por um mundo melhor e mais justo que ainda hoje estão presentes na memória do povo. Frei Tito, Bezerra de Menezes, Quintino Cunha, Liberato Barroso, Major Facundo, Juvenal de Carvalho, General Sampaio, Senador Pompeu e muitos outros estão enterrados no Cemitério São João Batista. O ar macabro e o signo de morte se dissolvem diante dos nossos olhos para darem lugar à admiração: o cemitério preserva memórias cuja importância se compartilha entre as histórias particulares, como a de Chico Sucata e a história do nosso povo.

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O Dr. Arn贸bio posa ao lado de um dos seus Aerowillys, autom贸vel que despertou sua paix茫o por carros antigos

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que já foi novo um dia ·

texto e fotos

· ivana morei

ra · lucas abre

u · cleidinald

ia maia ·

O tempo passa e o que ficam mesmo são as nossas memórias. Lembranças que guardamos do que nos foi importante, do que nos marcou, do que amamos. E, às vezes, o apego e o fascínio pelo objeto amado é tanto, que não conseguimos nos desfazer dele. Assim, se originam as coleções

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Área livre do sítio de Arnóbio, localizado no Eusébio, região metropolitana de Fortaleza

Alguns dos carros que fazem parte das exposições: Pumas, Fuscas e Mercedes

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O local não é fácil de achar. Ao sairmos do asfalto da Estrada do Fio, uma estradinha estreita nos leva até um portão preto. Ao entrarmos, nos deparamos com um sítio enorme, de terra batida, cheio de árvores e alguns carros estacionados. Um homem simpático, com um copo de uísque na mão, nos recebe perguntando: “Foi difícil de achar? Vocês se perderam?” José Arnóbio Menezes Tomaz é mais do que um médico cirurgião, é um apaixonado. Sempre gostou de antiguidades, de carros e de coleções. Essas três paixões, aparentemente distintas, fazem com que ele colecione carros antigos até hoje. Começou ainda criança, aos cinco anos, acumulando carteiras de cigarros, caixas de fósforos, chaveiros, lápis, revistas e cédulas de dinheiro. Conta que, aos seis anos de idade, ficou deslumbrado com um Aerowillys zero quilômetro que estacionou em frente a sua casa.”Eram cinco horas da tarde. Eu estava sentado em uma cadeira de balanço. Quando olhei para aquele Aerowillys, na minha frente todo sujo de lama, zero quilômetro, meu Deus do Céu! Foi o primeiro automóvel que os meus olhos viram, em 1962”, lembra.

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O Aerowillys, considerado o automóvel mais caro da época, pertencia ao então prefeito de Reriutaba, Edson Bezerra, que veio a Fortaleza com a esposa Maria do Carmo e com o motorista Amadeu festejar o carnaval, e resolvera visitar o pai de Arnóbio. “Quatro dias depois, andei nele por uma fazenda chamada Contendas, próxima ao açude do Araras, atual Varjota. Era um sábado de carnaval. E pensei: ‘no dia em que eu puder, vou ter um desses’”, recorda Arnóbio. A partir de então, decidiu que também iria colecionar carros.

A coleção

Em outubro de 1989, 27 anos depois, comprou o seu primeiro Aerowillys em São Paulo. Era um de cor vinho e o seu interior era todo revestido de branco. Dois meses depois, adquiriu um modelo mais moderno. Hoje, já conta com oito modelos da mesma marca para satisfazer a sua paixão de infância. Contaminado pelo “vírus da ferrugem”, como é chamada entre os colecionadores a fixação por carros antigos, demorou apenas quatro meses para tornar-se presidente do Museu do Automóvel, depois de sua primeira visita.


Mais do que um hobby, colecionar e cuidar de carros antigos são a sua vida. Com alegria, segundo afirma, todo final de semana abre as portas do seu sítio para os amigos, curiosos e colecionadores como ele. Construiu o sítio, que antes era a Fazenda Lagoa dos Porcos, quando acumulava 30 carros. Por suas mãos já passaram mais de 300 automóveis antigos. Atualmente, possui 90, dos quais 15 encontram-se em sua residência no Lago do Jacareí, em Fortaleza. Alguns carros já foram alugados para casamentos e o sítio já foi solicitado para ambientar festas ao estilo dos anos 60. No porão principal do sítio, guarda os seus Aerowillys, Chevettes, Kombis, Jipes. Também encontram-se relógios e rádios antigos que datam de 1830 a 1910. Fotografias de seus carros preferidos emolduradas e suas coleções de mais de 500 miniaturas. Na área livre, debaixo de árvores, ficam estacionados dois ônibus, uma caminhonete Rural de 34 anos, um MP Lafer do ano de 1976 e alguns fuscas. Ainda tem espalhadas em oficinas e em casa marcas antigas como Mercedes, Corcel, Galaxie, Opala, Tufão, Jaguar, Sinca, Dodge, BMW, DKW, dentre

Dentre os vários objetos antigos de Arnóbio, está uma bomba de gasolina da Shell

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outras. Alguns carros são nacionais, outros americanos e ingleses. Um carro que chama a atenção e que se destaca da coleção é um “carrinho” em que seus filhos andavam quando pequenos. De marca Bugatti, a réplica em miniatura data de 1974. “Os meus filhos andavam muito nestes carrinhos aqui no sítio, geralmente nos finais de semana. Hoje, os guardo e os conservo para eles mostrarem para seus filhos, meus netos, no futuro”, conta.

Por trás dos carros

A exposição promovida por Paulo Fiúza traz, além dos automóveis, miniaturas, livros e camisetas

Na casa, onde vive com a esposa Adriana, podem ser vistos telefones antigos, quadros, relógios de paredes, cadeiras antigas, pratarias, cristaleira, dentre outras relíquias. Um verdadeiro museu de antiguidades. Adriana é a única da família que participa de perto das façanhas do colecionador. É quem sonha junto com ele. Com a mesma dedicação do marido, ela cuida de todas as peças do acervo. Limpa, enverniza, organiza e administra. “Não é atrás, não. E, sim, ao lado. Ao lado de um grande homem há sempre uma grande mulher”, ela brinca. Até o seu escritório de consultas médicas é “antigo”. “Alguns criticam, outros elogiam. Canso-me de contar as histórias dos objetos antigos que tenho na minha sala. Mas isso está no sangue. Considero um privilégio. E é preciso

caras como eu para preservar. Porque isso tudo é antigo, mas já foi novo um dia. Tomara que haja no futuro quem colecione o que existe de bom hoje”, observa. Em nome dessa paixão, Arnóbio conta que há vinte anos desistiu de comprar uma casa de praia no Icaraí para investir em carros. E não se arrepende: “É o melhor investimento que há. Foi a melhor coisa que fiz na minha vida, pois, apesar dos gastos - cinco mil reais por mês, aproximadamente -, com mecânica, bateria, limpeza, licenciamento, e alguns seguros, não pago IPVA e é algo que me dá muita alegria”. Já próximo de se aposentar, com os seus filhos quase adultos, residindo em outras cidades, Arnóbio faz planos para o futuro. Dentro de cinco anos, com suas economias e com o apoio da esposa e de amigos, ele planeja transformar seu sítio em uma cidade cinematográfica, onde pretende morar. “No chão, pedras portuguesas, uma pracinha central com bancos, postes com boa iluminação, músicas das décadas de 40, 50 e 60 e todos os meus carros expostos. Entrada paga e cara. Lógico! Só vai entrar gente interessada, que goste realmente. Senão, vou acabar tendo prejuízos. O meu maior sonho é morar aqui e gastar o meu tempo limpando as minhas coleções”, imagina. E ainda acrescenta que pretende escrever um livro. Quando tem tempo, Arnóbio freqüenta exposições de carros antigos, como as organizadas todo mês no Parque do Cocó, em Fortaleza, por Paulo Fiúza, que também coleciona miniaturas. Sempre que possível, vai a São Paulo participar das grandes exposições, nas quais costumam ser exibidos cerca de mil carros. Grandes coleções podem parecer apenas um hobby para alguns. No entanto, elas ajudam a preservar a memória histórica de uma época e a reviver lembranças que se relacionam com os objetos colecionados. Homens como Arnóbio dedicam-se a fazer esse trabalho, conservando tudo o que já foi novo um dia. SERVIçO Classic Cars Fortaleza - Organizador: Paulo Fiúza. Todo terceiro sábado do mês, a partir das 16h, no Anfiteatro do Parque do Cocó

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Polímnia

Memória digital:

infinitas possibilidades ·

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· eva cardoso · mariana dantas

Todas as informações que necessitamos diariamente estão relacionadas à nossa memória. O cheiro da brisa do mar, o gosto do biscoito doce de nossa avó, a música que embalou aquele fim de tarde na praia, o perfume de alguém, são lembranças registradas na memória e formam a experiência contínua de nossas vidas

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Nem sempre conseguimos guardar todos os acontecimentos diários na memória. Há centenas de detalhes sutis como cheiros, sabores, objetos, rostos, sons, comportamentos e cenários que se perdem em nosso cérebro ao longo dos anos. São tantas as informações que recebemos todos os dias, algumas complexas e outras simples, que não é raro que muitos dados sejam esquecidos. Como a vida, nos dias de hoje, parece cada vez mais depender de um volume maior de informações do que em épocas passadas, surge a necessidade de recorrer a outros meios para registrar e preservar a memória em um outro lugar. O computador e as novas tecnologias suprem essa necessidade. Em função de suas vastas memórias, colocamos neles informações sigilosas, diversas senhas, trabalhos acadêmicos, fotos, vídeos ou dossiês de empresas. Podemos gravar e consultar em arquivos digitais inúmeras informações e passamos até a dividir relatos da nossa vida em blogs ou sites de relacionamentos em uma rede virtual. A Internet facilitou o acesso à informação de que precisamos diariamente. Os dados disponíveis nas milhões de páginas virtuais representam agora uma significativa parcela da nossa memória, agora navegável. Quem um dia imaginou poder levar uma enciclopédia de livros ou uma coleção completa de músicas do seu cantor preferido dentro do bolso? Graças aos pen-drives isso é possível. Atualmente, os pen-drives não são só uma peça obrigatória para o armazenamento de informações, eles representam além da eficiência, a versatilidade. Cada vez mais usados, eles estão disponíveis no mercado em forma de chaveiros, colares, peça de decoração e, para os mais exigentes, embutidos em joias. Apesar disso, os recursos de memória oferecidos por essas novas tecnologias não são completamente seguros. A empresa americana de mídia online Akimbo Systems

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(hoje chamada Bleu Falcon Networks) teve seu banco de dados invadido em 2003, pelo seu ex-funcionáro Steven Barnes, que disponibilizou todas as informações da empresa por mensagens eletrônicas não solicitadas - Spam, enviadas para a população. Barner foi condenado à prisão por um ano e teve que restituir à empresa o valor de US$ 54 mil. O melhor a fazer nesses casos - afirma o técnico de suporte da Controladoria e Ouvidoria Geral do Estado (CGE), Thiago Fernandes, é se precaver. Ele aconselha que diante da troca de funcionários, a empresa se preocupe com a renovação das senhas do seu banco de dados, evitando frau-

des como essa. Fernandes também afirma que a melhor forma de não perder os arquivos do computador é fazer regularmente um “backup” de seus conteúdos, que consiste em salvar os arquivos em uma mídia externa: cds, dvds ou pen-drives.

Extensão do cérebro

Tememos catástrofes naturais, mas uma catástrofe digital seria igualmente lamentável. O filósofo canadense Marshall McLuhan (1911–1980) insistiu em teses que levam a crer que os meios


tecnológicos de comunicação são a extensão do homem, no livro Understanding Media. McLuhan explica: “quase tudo que temos à nossa volta é uma extensão de nosso corpo ou de nossos sentidos”. Por exemplo, a roupa que vestimos é a extensão da pele, a faca é uma extensão dos dentes, o carro é uma extensão dos nossos pés. Para ele, qualquer meio de comunicação, também se tornará a extensão do homem. O rádio será a extensão da boca (para quem está falando) e do ouvido (para quem a ouve), a televisão será a dos olhos e do ouvido e o computador, a extensão do nosso cérebro. Por isso, hoje, fica difícil imaginar como

seria o mundo sem o avanço tecnológico que nos permite fazer uma série de atividades com apenas alguns cliques no mouse do computador. Vivenciamos novas experiências e esquecemos outras. Não nos lembramos de dar espaço a informações que se misturam às antigas e se transformam, o que gera novos conhecimentos. Com isso, desenvolvemos meios mais complexos para guardar e reproduzir o que precisamos: as máquinas funcionam como uma extensão da nossa memória. A internet, por exemplo, é uma espécie de memória in-

terminável onde se coloca tudo e continuam crescendo a cada segundo em suas milhares de páginas. Sabemos que para lembrar é necessário aprender; não há memória sem aprendizagem. A “Era tecnológica” pode se tornar a “Era do Esquecimento” e toda a memória do computador de nada valerá sem o intermédio da memória humana. Para isso é preciso preservá-la.

Uma questão de preservação

Por muito tempo se acreditou que a falta de memória se devia à idade, causada pela degeneração dos neurônios cerebrais e que a idade avançada apressaria sua perda. Porém, neurologistas afirmam que os neurônios não se degeneram em quantidades grandes com o passar do tempo. O neurologista Avelino Leonardo da Silva, especialista em fisiologia cerebral, explica que os neurônios “apenas tornam-se inativos por falta de estímulos e não pelo passar dos anos”. A memória depende dos estímulos que damos ao cérebro, ou seja, uma espécie de ginástica cerebral que consiste em colocar a cabeça para pensar. O que pode ser feito através da leitura, de jogos, palavras cruzadas, entre outros. “Como o corpo precisa de exercícios para deixar os músculos mais fortes e ágeis, o cérebro também necessita de ginástica para estimular as células, favorecendo, desta maneira, não só a memória, mas a capacidade intelectual como um todo”, acrescenta Avelino Leonardo. Não basta ao homem criar uma série de mecanismos que facilitem o armazenamento de informações e deixar de trabalhar o seu intelecto. A memória digital veio para complementar a nossa memória. Assim, de nada adianta fiar-se apenas no computador. As possibilidades de uma memória digital só se tornam infinitas quando aliada ao bom cérebro humano.

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Quando fica difícil ·

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· gabriela gomes ribeiro · deborah milhome · · fotos · waleska santiago ·

Dar o primeiro beijo. Passar em uma prova difícil. Conseguir o primeiro emprego. Todos esses são momentos que ficam guardados em nossa memória. Podemos sempre os reviver. Mas a mente humana não guarda só os bons momentos. Há situações ruins que teimam em se repetir, por mais que as tentemos esquecer. Quando isso acontece, podemos nos deixar abater por nossa memória ou procurar uma forma de conviver com ela

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Ligar a televisão e assistir a um jornal faz parte do cotidiano de diversos brasileiros. A violência é assunto constante dos âncoras e repórteres. Ela está tão presente que acabamos nos blindando – acostumamo-nos com toda espécie de atrocidade. Nada mais parece nos espantar. Os números da violência são apenas dados frios. São números que ouvimos, admiramo-nos e esquecemos. Mas, quando passamos a fazer parte das estatísticas, a situação de violência dificilmente é esquecida, fica gravada na memória para sempre. A lembrança constante afeta cada situação rotineira da vida, dificultando ações que antes pareciam pequenas, como a simples ida ao trabalho ou um passeio com amigos. O jovem Enoque Melo foi vítima de uma tentativa de homicídio. Tereza Lima sofria diversos tipos de agressões do marido. Oneide Braga perdeu sua filha para a violência do trânsito. Eles dão rosto e voz às estatísticas e dividem conosco as suas memórias da violência.

Com a permissão de Deus

Começou com a maconha. Depois foi para a cocaína. Não gostou. Procurou o crack. Só então encontrou a sensação que procurava: sentia-se confortável com a droga. Queria sempre mais. O vício consumiu seu emprego, seus bens, sua namorada. Com as drogas, só havia dois destinos possíveis que Enoque Melo, 22, via para si: a cadeia ou a morte. Eram caminhos que não tinham volta. Por causa de uma dívida de apenas quinze reais, Enoque levou três tiros, na frente de sua casa. O traficante que o alvejou tentou acertar sua cabeça, seu coração e sua coluna. O tiro destinado à cabeça atingiu o braço; o do coração, alojou-se no pulmão. O da coluna, deixou-o paraplégico. Mesmo assim, para Enoque, esses tiros foram recebidos “com a permissão de Deus”. Na hora em que levou os tiros, ele não sentiu raiva nem pensou em se vingar. Seu principal sentimento foi inusitado: alívio. Enoque estava se livrando do fardo que era o

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vício. Sua única preocupação foi morrer sem salvação; sendo evangélico, só pensou em pedir perdão a Deus. A memória do que aconteceu sempre o perturba. Com um sorriso triste, ele diz que percebe, hoje, a grande mudança trazida por esse evento em sua vida. O que aconteceu o ajudou a enfrentar dificuldades e o fez voltar para a igreja. Na religião, ele encontrou um remédio para amenizar o gosto amargo de suas lembranças. Os traumas, a raiva e o desejo de vingança cederam lugar à fé. Não denunciou o agressor. Hoje, só quer saber de paz em sua vida.

Só escapava porque corria

Tem olhos que parecem mais velhos do que o corpo, tal qual sua homônima no poema “Teresa” de Manuel Bandeira. Tereza da Silva Lima, 44, assemelha-se o estereótipo da mulher que é abusada pelo marido. Baixinha, morena e entroncada, passa longe da mulher forte e sofisticada que faz a vida parecer fácil em anúncios de televisão. Casou cedo. Teve cinco filhos naturais e adotou outros dois. Foi dona de casa até o marido parar de trabalhar e passar a viver bebendo. A alegria de Tereza é quase incompreensível quando ela conta sua história: começou a trabalhar como diarista para sustentar o marido alcoólatra e os filhos. Como chegava tarde da noite, o marido a recebia atirando pedras, ameaçando-a. Escapou de apanhar e de morrer porque conseguia fugir. No outro dia, perdoava tudo. Voltava ao trabalho, pensando em suicídio; quando pensava nos filhos, no entanto, desistia. A família fez com que Tereza largasse o marido. “Minhas irmãs disseram que eu tinha que me decidir. Se eu resolvesse ficar com ele, elas nunca mais atenderiam a um chamado meu. Fiquei com medo e decidi sair de casa mais uma vez. Eu vim morar com meu pai e, uns dias depois, ele apareceu com a faca na mão, dizendo que iria me matar. Então, foi a primeira vez que fui à delegacia prestar queixa


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contra ele. Contra minha vontade, mas fui”, relata. Ela disse que suas filhas ainda pediram para que ela retirasse a queixa contra o pai. A dor apodera-se de seu semblante alegre quando Tereza relembra o que teve de fazer para superar. Venceu a memória da violência do marido e da separação conversando: “Quando deixei meu marido, eu me sentia sozinha e fui fazendo amizades. Sempre gostei de conversar, mas depois disso conversei ainda mais. Com os amigos conquistados fui abafando o sofrimento. Não esqueci, lembro cada detalhe, mas não fico me remoendo por tudo o que passei”, revela.

A morte da bailarina

Era a única filha mulher. Bailarina. Destemida. Renata Braga, 20, estava há quatro anos morando no Rio de Janeiro. Segundo sua mãe, Oneide Braga, ela já havia fechado um contrato com a Rede Globo de Televisão para participar de uma novela. Quando estava passando as férias em Fortaleza, voltando do “Pirata Bar”, na noite do dia 28 de dezembro de 1993, Renata e seus amigos quase se envolveram em um acidente de trânsito, pois um motorista avançou a preferencial da rua por onde trafegavam. Xingaram o condutor do outro carro e resolveram seguir viagem. Foram surpreendidos mais adiante pelo motorista que os havia trancado: insatisfeito com a situação, ele atirou no Jeep em que Renata estava. O tiro atingiu o olho da bailarina. Ela morreu no hospital na mesma noite. Relembrando a história da morte da filha, que tanto mudou sua vida, Oneide Braga não revela muitos sinais de tristeza. Mas, perguntada sobre seus sentimentos quando soube que sua filha havia morrido, a fortaleza dela se torna frágil. Sua voz muda para um tom melancólico. Seus olhos se enchem de lágrimas. “A hora em que soube do falecimento da minha filha eu nunca gosto de lembrar, sabe? Toda vez que vem esse pensamento na minha cabeça, eu tento afastar. Mas a sensação foi, assim, de uma parede, de um muro que interceptou a minha caminhada”, relembra. Oneide Braga, hoje, é coordenadora da Associação de Parentes e Amigos das Vítimas

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da Violência (APAVV). A memória da perda de sua filha nunca vai se apagar. A mãe, no entanto, diz que Deus e a Associação lhe dão forças para seguir no dia a dia.

Apagando as marcas

Muitas pessoas, depois de sofrerem alguma violência, têm dificuldade em continuar a viver normalmente. Ficam revivendo situações, têm medo constante de serem vítimas novamente. É para prestar auxílio a essas pessoas que existem a Associação de Parentes e Amigos das Vítimas da Violência (APAVV) e o Centro Estadual de Referência e Apoio à Mulher (CERAM). A APAVV surgiu como uma pequena associação que procurava, por meio de reuniões mensais, fazer com que as vítimas dialogassem sobre as situações que viveram e sobre a dificuldade que tinham de esquecer. Com o tempo, a associação foi crescendo e o número de pessoas que a procuravam também. Hoje, conta com psicólogos e agentes sociais que ajudam pessoas carentes a superar suas perdas e traumas. O CERAM oferece atendimento apenas para mulheres vítimas de violência doméstica. O Centro é provido de uma enfermeira e uma ginecologista, uma psicóloga, uma assistente social, defensores jurídicos e uma pedagoga. Todo esse aparato não é garantia, no entanto, de que as vítimas se recuperem. Muitas das mulheres voltam a viver com o agressor. Várias vítimas não têm condições de continuar o tratamento por não terem dinheiro para pagar o transporte. O tratamento, mesmo que feito até o fim, pode falhar. Não há certezas. A violência deixa marcas na memória difíceis de serem apagadas. As recordações nunca deixam de doer e sempre estarão presentes, mesmo da parte das vítimas que não procuram ajuda. O remédio testado e aprovado pelos entrevistados foi: levantar a cabeça e continuar a viver. Buscaram apoio na família, na igreja, nos amigos ou nas pessoas que também foram vítimas. Cada um encontrou sua própria fórmula de superação e aprendizado. Acharam vida após a memória da violência.


Números da violência no Brasil O Mapa da Violência nos Municípios Brasileiros, produzido pela Organização dos Estados Íberoamericanos para Educação, Ciência e Cultura, afirma que as vítimas de homicídio são preferencialmente jovens, de quinze a vinte e quatro anos, cujas taxas de homicídio giram em torno de sessenta e cinco mortes por cem mil jovens, por ano, no Brasil. O trânsito vitima cerca de 1,2 milhão de pessoas por ano, segundo as estimativas da Organização Mundial de Saúde (OMS). Os casos de violência contra a mulher também são recorrentes, tendo sido contabilizados, em 2008, 24.523 relatos de agressão contra a mulher, de acordo com dados da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres.

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Unifor em jardins

A Universidade de Fortaleza, Unifor, surpreende pela integração de sua estrutura física com a natureza exuberante que a permeia. O caos crescente da cidade ao redor, que avança desordenadamente, contrasta com convívio harmonioso no espaço da universidade de emas, iguanas e saguis que transitam entre seres humanos, bicicletas e veículos. Esse espaço privilegiado, resultado de uma ação persistente de mais de três décadas, é a memória viva do que Fortaleza poderia ter sido e, paradoxalmente, do que no futuro poderá se tornar. Este ensaio fotográfico foi integralmente realizado dentro dos limites do campus da Unifor por estagiários do Laboratório de Jornalismo e alunos das disciplinas de Fotografia 1 e Fotojornalismo, do curso de Jornalismo. Dele saiu também a capa desta edição, de autoria da aluna Evelyn Onofre. O trabalho como um todo foi fruto de uma sugestão oportuna e estímulo do professor Eduardo Freire, coordenador do curso de Jornalismo, e do apoio inestimável da professora Cristiana Parente. Prof. Júlio Alcântara Supervisor de Fotografia

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49 Danielle Rotholi


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Fabiene de Paula


Mariane Braga

Millene Haeer


Celio Scipi達o

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AGOSTO ABRIL 2009 2009


Evelyn Onofre

Danielle Rotholi


Renata Gauche

Clara Magalhรฃes

Danielle Rotholi

Fรกbio Gurgel


Bruno Anderson Fabiane de Paula

Fabiane de Paula


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Fabiene de Paula


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O chumbo derreteu: memórias esquecidas da ditadura militar ·

texto

· camila bitar · celma prata ·

“(...) É um tempo de guerra É um tempo sem sol (bis) E você que me prossegue E vai ver feliz a terra Lembre bem do nosso tempo Desse tempo que é de guerra (...)”

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Clio “Vocês conhecem essa música?”, pergunta a ex-prefeita de Fortaleza Maria Luiza Fontenele, 67, após cantarolar ao telefone alguns versos da música “É um tempo de guerra”, produzida por Edu Lobo, Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, em 1965. Era a terceira vez que telefonávamos para a ex-prefeita para que nos falasse sobre um dos períodos mais duros da história recente do país, os chamados “anos de chumbo”, quando nos surpreendeu com a sua voz rouca entoando um dos “hinos” preferidos da geração que lutou contra a ditadura militar. No dia seguinte, por e-mail, ela escreveu que “a ditadura militar instalou-se no Brasil quando o capitalismo não respondia mais à proposta da revolução burguesa de liberdade, igualdade e fraternidade”, ao comentar o movimento que teve início em 1964 e que, este ano, completa 45 anos. Para Maria Luiza, ativista política desde os tempos do colégio, a ditadura militar no Brasil ocorreu em um momento de bipolarização mundial entre o capitalismo e o socialismo, “entre os que defendiam o avanço do capitalismo e os que lutavam na perspectiva de transformação do sistema”. Visando a derrubada do governo reformista de João Goulart e o fim dos movimentos populares tidos como revolucionários, ocorre então, lembra ela, a “implantação de um regime autoritário com a quebra do Estado de Direito e aplicação de medidas repressivas e do terror, como torturas, desaparecimentos e mortes. Sequelas profundas marcaram as vidas dos que sobreviveram aos ‘anos de chumbo’”.

valores de difícil reposição. O calendário marcava 31 de março de 1964. Para uns, a ação militar foi uma revolução; para outros, um golpe. Os que defendem a primeira opção enxergam na ação militar uma medida necessária de interesse coletivo, contrapondo-se àqueles que classificam o movimento como um golpe. De acordo com os dicionários, a palavra “golpe” significa “ação desleal” e “revolução” quer dizer “revolta; agitação; inovação”. Apesar de hoje a maior parte da bibliografia sobre o assunto referir-se ao movimento político-militar de 1964 como um “golpe”, até pouco tempo atrás a expressão mais usada era a de “revolução”. De acordo com a cientista política Suzeley Kalil, 45 anos, em artigo publicado no portal www.militar. com.br, “O significado de 1964 nunca foi consensual. Ainda hoje, há setores da sociedade que tratam o golpe como revolução, como

Revolução ou golpe?

Tanques, caminhões e jipes de guerra ocuparam as ruas das principais cidades brasileiras. Manifestantes corriam para todos os lados. Bombas de gás eram jogadas para dispersar a multidão. Sedes de partidos políticos, associações e sindicatos foram tomadas por soldados fortemente armados. Cenas como essas deram início a uma ditadura militar que se estendeu por 21 anos, e arrancou do povo brasileiro direitos civis e

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Antes da edição do AI-5, que proibiria atos públicos, manifestantes saem à rua para reinvindicar o retorno à democracia

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os integrantes mais conservadores das Forças Armadas”. Do grupo que classifica o movimento de 1964 de “revolução democrática”, A Ponte ouviu o general de divisão reformado do Exército Francisco Batista Torres de Melo, 84, na sede de onde dirige a entidade filantrópica Lar Torres de Melo, no bairro de Jacarecanga, em Fortaleza. “Esse negócio de dizer que nós tomamos o poder à força, que nós acabamos com a democracia, é uma balela”, defende o general. “Eles queriam implantar aqui um regime de força, tipo Cuba, URSS, e se tivessem ganhado, talvez tivesse morrido um milhão de pessoas”, explica. E ainda acrescenta: “Quem chama de golpe é a esquerda, que é bandida; quem chama de revolução são os democratas.” Entre os que denominam o movimento de 1964 de golpe militar estão os ativistas políticos de esquerda que na época lutaram contra o regime, como o deputado federal Chico

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Lopes, 70 anos. Militante do PC do B (Partido Comunista do Brasil), ele foi perseguido, preso e torturado nos porões da ditadura militar. Lopes relembra os vários infortúnios que enfrentou ao se opor aos militares. “Com o AI-5, se dá a minha primeira prisão como professor. Fui preso outra vez e torturado na ‘Casa dos Horrores’”, conta. A “Casa dos Horrores” era o nome dado a uma prisão clandestina cuja localização até hoje é ignorada, onde os presos políticos eram interrogados e torturados.

Memórias esquecidas dos “anos de chumbo”

Quando soube da tomada do poder pelos militares, Maria Luiza Fontenele era uma jovem estudante de 22 anos que cursava Serviço Social na Universidade Estadual do Ceará (UECE). A notícia a pegou no meio de uma reunião da Aliança Operária Estudantil Camponesa, movimento social do qual participava mesmo antes de ingressar na vida universitária. Um amigo


garante que ela saiu da reunião em disparada para a rua quando soube da notícia, “mas não é verdade”, esclarece ela bem-humorada. A exemplo de muitos jovens estudantes brasileiros do período, cheios de sonhos de justiça social, Chico Lopes e Maria Luiza também foram às ruas, enfrentaram a polícia e promoveram passeatas por um país mais justo e igualitário. Vários foram presos e torturados. Alguns morreram. Eles sabiam, contudo, por que lutavam. O cotidiano dos jovens brasileiros deste início de século é bem diferente do de 45 anos atrás. Muitos parecem desconhecer ou não se interessar muito com o que aconteceu às gerações que lutaram pelo retorno à democracia, dos anos 1960 aos 1980. A Ponte conversou com alguns estudantes universitários para saber se conheciam a expressão “anos de chumbo” ou as siglas DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações Centro de Operações de Defesa Interna), mas a maioria não soube responder e poucos afirmaram que elas estavam relacionadas ao período do regime militar. “Não faço a menor ideia”, diz a estudante de Direito Bruna Santana, 22. “Lembra ditadura militar, tortura... É sobre repressão, não é?”, responde por sua vez a estudante de Jornalismo Joicy Muniz, 21. Já Celso Nóbrega, 23, também estudante de Jornalismo, demonstrou estar mais informado: “Foi um período de muita repressão e censura. Torturas eram cometidas”. É pouco provável que existam respostas prontas que apontem o paradeiro dos sonhos daquela juventude de quatro décadas e meia atrás ou algo que possa explicar a apatia da geração atual por assuntos políticos e o seu total desconhecimento sobre a história recente do país. O deputado Chico Lopes atribui ao capitalismo a responsabilidade pela alienação política das atuais gerações. “A gente fica falando mal dos jovens, mas o que fizemos para que eles não fossem dessa maneira? A minha geração construiu um ideal de um novo mundo, mas não tínhamos a perseguição de uma sociedade de consumo”, reconhece. Para o general Torres de Melo, o conhecimento apenas parcial, e

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unilateral, sobre o período de duas décadas de regime militar, deve-se ao perfil ideológico que domina a universidade brasileira. “Hoje, só quem pode ser professor, só quem pode dar aula são aqueles que fazem a esquerda, eu não tenho esse direito, ninguém me chama, todo mundo tem medo de ouvir a verdadeira história”, afirma.

Resgate da memória

E o que teria acontecido ao Brasil se não tivesse ocorrido o movimento militar de 1964? Será que o país seria muito diferente? Na opinião da ex-prefeita Maria Luiza, “quanto aos aspectos de injustiças e desigualdades sociais, a nossa situação atual não difere da de outros países que não foram atingidos por golpes militares”. Ela credita a situação à natureza própria do sistema capitalista, que “em sua essência é alienante, excludente e destruidor das perspectivas humanas e da natureza”. De acordo com a ex-prefeita, é importante conservar a memória daqueles acontecimentos “para compreendermos historicamente o porquê de tais fatos e de suas consequências”. “Além do mais”, acrescenta, “é fundamental entender por que tantas lutas não foram

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vitoriosas na perspectiva transformadora”. E enfatiza a necessidade da memória: “vale ressaltar a bravura de todos os que hastearam as bandeiras libertárias e denunciar, sem tréguas, o processo de terror e de tortura do Estado para que tais barbaridades não se repitam”. Os relatos dos entrevistados demonstram que ainda há muito a ser discutido e esclarecido. Embora sob pontos de vista diferentes, em uma questão todos parecem estar de acordo: é importante o resgate dos acontecimentos do período da ditadura militar, para evitar que os chamados “anos de chumbo” se derretam para sempre na memória do povo brasileiro.


“A minha juventude construiu um ideal” Francisco Lopes da Silva, 70, casado, seis filhos, professor aposentado e ex-preso político, hoje deputado federal pelo PCdoB do Ceará, viveu terríveis momentos como ativista político quando foi preso durante o regime militar. Chico Lopes, como é mais conhecido, concedeu uma entrevista para A Ponte em uma pequena sala da sede do partido, em Fortaleza, para falar da prisão, de política e dos jovens de hoje

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Sofremos tortura psicológica, mas não muito séria e nos soltaram. Depois, em 1973, volto a ser preso, desta vez torturado fisicamente. AP – Como foi viver na clandestinidade? CL – Naquela época quem fazia opção pelo socialismo tinha de mudar de comportamento, se preparar para a clandestinidade, para ser transferido para qualquer estado do país, dependendo da necessidade do partido. O que modificou na minha vida foi a falta de segurança de um emprego, a dificuldade de me relacionar com a família, pois a nossa norma geral era tirar a família desses vexames, a gente topava qualquer negócio desde que deixasse a família de fora... AP – Como essa experiência afetou sua vida? CL – Ficaram traumas, pesadelos, eu passei muitos anos sem poder ver camionetas pretas, tipo “Veraneio”, eu já pensava que era o pessoal da Polícia Federal.

Chico Lopes afirma que a ditadura acabou, mas os traumas continuam

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A Ponte – Por que senhor foi preso em 1973? Chico Lopes – Bem, existe uma história antes disso. Eu comecei a militar quando, aos 12 anos, entrei para a prefeitura para ser distribuidor de jornais. Naquela época existiam vários jornais em Fortaleza, dos quais apenas dois sobrevivem: O Povo e O Estado. Semianalfabeto, fiz a prova para o Senac (Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial), peguei o 3º ano primário e fui escolhido líder de turma. Comecei a me interessar pelo movimento estudantil. Iniciei minha vida política como líder sindical dos servidores públicos. Em 1964, fui indiciado na Comissão Militar de Inquérito, respondi processo, mas não perdi o emprego. Em 1968, entrei para a Universidade e fui recrutado pelo PCB. Comecei minha militância pelo comunismo marxista-leninista, entrei no partido e fui destacado na clandestinidade para trabalhar em duas cooperativas. Com o AI-5, no mesmo ano, se dá a minha primeira prisão como professor. Eu e um amigo, com codinomes, fomos presos pela Polícia Federal.

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AP – Quais eram os ideais políticos do jovem Chico Lopes? CL – Os mesmos de hoje. Transformação da sociedade. Uma terra em que a mulher tem que ganhar a vida vendendo o corpo, uma pessoa tem que mendigar porque não tem acesso às necessidade básicas, isso não é a sociedade dos meus sonhos. Não posso mais sonhar com aquele comunismo dos primeiros tempos, mas continuo perseguindo a sociedade socialista. O capitalismo nos derrotou temporariamente na União Soviética. O nosso rompimento com o “partidão” foi exatamente devido ao modo como a União Soviética conduzia o socialismo, daí houve a nossa divisão, e assumimos a sigla PCdoB, porque achávamos e achamos que o marxismo-leninismo merece um re-estudo e um aprofundamento. É um momento histórico de analisar os nossos erros, os nossos acertos e procurar avançar. Devemos trazer uma nova visão do socialismo, a nova tecnologia que está aí no mundo, as novas cabeças, mas o capitalismo não é a solução, a atual crise econômica mundial prova isso. AP – O que diferencia os jovens de hoje dos jovens da sua geração?


CL – Eu sou muito arredio em falar mal dos jovens. Fala-se mal dos jovens, mas o que eu fiz para que os jovens não fossem dessa maneira? Essa é uma indagação que tenho sempre. A minha juventude construiu um ideal. O ideal de uma nova sociedade, um novo mundo, uma nova era, mas nós não tínhamos a perseguição de uma sociedade de consumo, como os jovens têm hoje. Nós não tivemos os avanços tecnológicos, como estamos tendo hoje. Então nós temos que pensar na juventude dentro da realidade atual, e não na realidade antiga da brilhantina ou do sapato bicolor. Quer dizer, eles acreditam que é possível uma nova sociedade, podem não ter assim o mesmo compromisso que a minha geração teve, pois os jovens de hoje por terem muito mais informações, podem ter dificuldade em processar tudo isso. A juventude procura seus caminhos, mas o país não ajuda. A violência é alimentada pela sociedade. Os jovens não têm perspectivas numa sociedade de consumo e terminam enveredando por outros caminhos. A própria família se modificou de uma maneira tal, que perdeu a liderança. A escola não dá mais uma resposta às necessidades dos jovens. São grupos empresariais que têm entre as empresas, uma escola. E a formação do jovem, como fica? Este governo, porém, quer mudar essa “tortura” chamada vestibular, o que pode alterar todo esse sistema cruel. Há, portanto, uma perspectiva de mudanças, de melhorias. AP – Se o senhor fosse fazer uma palestra para os jovens sobre o movimento de 1964, o que lhes diria? CL – Eu diria para conhecerem a História do Brasil, pesquisarem e que procurassem não repetir, mas utilizar as esperanças anteriores para avançar rumo à democracia. Mas a democracia popular, em que homens e mulheres possam conviver sem essa preocupação de acumular tantos bens materiais que não lhes servem, pelo contrário, fazem é atrapalhar a felicidade. Não estou negando o “viver bem”, não estou negando “ter bens”, mas estou dizendo que a sociedade de consumo pode ser uma arma contra a própria sociedade, quando os mais pobres se revoltam porque não têm condições financeiras de adquirir esses bens.

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O guerrilheiro foi assassinado há 42 anos, mas ainda hoje é idolatrado por pessoas nos quatro cantos do mundo. Suas frases estão pichadas em muros de casas, seu rosto está estampado em camisetas, adesivos e biquínis; sua imagem já foi utilizada em campanha publicitária de bebida alcoólica e tatuada no peito do boxeador Mike Tyson. Mas por que, depois de tantos anos de sua morte, Ernesto Che Guevara ainda é considerado “o cara”? ·

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renata wirtzbiki ·

fotos

divulgação ·

Che


é pop AGOSTO 2009

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Sendo uma estudante de jornalismo do século XXI e adepta às novas tecnologias, inicio minha pesquisa sobre Ernesto Guevara de La Serna por meio da Internet. Presa em casa em pleno sábado devido a uma gripe – que, apesar de não ser a suína, me impede de sair à rua – escuto música e converso com amigos pelo MSN enquanto acesso o site Wikipédia. Descubro, então, que a imagem do guerrilheiro argentino é a segunda mais difundida da era contemporânea, perdendo apenas para a de Jesus Cristo. A mais famosa foto de Che – aquela de perfil e boina – foi tirada pelo fotógrafo Alberto Korda, em 1967; e ficou mundialmente conhecida após sua publicação na revista francesa Paris Match. Caso Che Guevara ainda fosse vivo, estaria hoje com 81 anos. Nascido na pequena cidade de Rosário, em 14 de junho, Che é um nativo do signo de gêmeos, que tem como principais características a alegria, a capacidade de comunicação, o dinamismo, a persuasão, o charme, a humildade e a inteligência. Após ler as informações da Wikipédia e fazer uma análise de seu perfil astrológico, parto para uma pesquisa no Orkut. A intenção é contabilizar o número de comunidades que fazem referência a Che, mas interrompo a contagem quando chego à posição 70. Já entendi que são muitas. Algumas têm nomes inspiradores: Che Guevara, O Herói; Eu me inspiro em Che Guevara; Admiradores de Che Guevara; Fãs do Che Guevara. A primeira comunidade do Orkut em sua homenagem foi criada em 2004, e é também a que tem o maior número de membros: 113.934. Outras comunidades procuram homenagear de uma forma, digamos, mais alternativa: Saio na foto igual a Che Guevara, Seu Madruga é o Che Guevara, Che Guevara é lindo – esta última “destinada a mulheres que consideram

Che Guevara o revolucionário mais lindo da América Latina”, conforme consta na descrição. Culpa do charme geminiano e do sex appel latino. Mas não são somente os admiradores que mantêm viva sua memória: no Orkut também há comunidades que repudiam o guerrilheiro. Che Guevara: a maior farsa; Che Guevara, um fracassado; e Eu Odeio Che Guevara, são alguns dos exemplos. Curiosa, quero saber o motivo pelo qual alguém odiaria Che Guevara. Deixo um scrap na página do dono de uma das comunidades – Eu Odeio Che Guevara, que tem 753 membros – o paulista Ricardo Santos, de 31 anos; e consigo uma entrevista por e-mail. “A iniciativa surgiu como uma brincadeira com um amigo que é fanático pelo comunismo e suas figuras-chave, e como uma forma de protesto à alienação causada pela mitificação da personagem heróica, cujos atos são questionáveis”, responde Ricardo. O criador da comunidade diz que recebe críticas constantes no Orkut por parte de fãs


de Che; mas seus amigos pessoais – mesmo os que admiram o comunismo – entendem sua posição. “O meu desafeto pelo sujeito é, na verdade, pelo estrago que causa na mente dos menos preparados para entender que, como toda figura histórica, ele tem sim seus pontos a admirar e seus pontos a condenar. A alienação é a maior inimiga do desenvolvimento, seja ele pessoal ou em sociedade”, acrescenta. Assim como Ricardo, o também paulista Denis Zanotto, dono de umas das comunidades que levam o nome de Che Guevara, com 24.554 membros, recebe muitas críticas, mas pelo motivo oposto: é condenado exatamente por gostar do argentino. “Há aquelas pessoas que, por alienação ou influência, encaram Che Guevara como um assassino, um homem frio, algo mais próximo a um terrorista do que um revolucionário”, diz Denis, pelo MSN. Ele fala que se interessou pela trajetória de Che Guevara aos 15 anos (hoje está com 26). Ligo para uma psicóloga amiga de minha mãe, Germana Figueiredo, a fim de entender esse “lance” de herói e ídolo, principalmente

por parte dos adolescentes. Ela diz que faz parte do processo de auto-afirmação. “Ele (jovem) idealiza o que o outro fez, então vivencia a história das conquistas do outro por não ter atingido a própria identidade. Projeta no outro o que quer para si”, esclarece. Sábado, quase 23h30. Dou uma rápida olhada em meus contatos do MSN, e me deparo com a frase “La única lucha que se pierde es la que se abandona”. Está escrita no nick (apelido) de um amigo, André Marinoni, que também resolveu ficar em casa esta noite. Puxo conversa para saber o que ele acha do Che. “Adoro. Acho um grande pensador. Ele é um exemplo de força na crença por valores”, acredita André. As frases de Che, como “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás”, são reproduzidas até hoje por pessoas de todo o mundo. Na opinião da professora de literatura da Universidade de Fortaleza (Unifor) Aíla Sampaio, Che ficou mitificado, pois foi morto em plena luta, aos 39 anos, como um guerrilheiro revolucionário. “Nunca foi santo, mas é venerado como se fosse”, acrescenta. Para ela, essa frase, em especial, “permaneceu inseminada no imaginário coletivo”. “Existe alguma frase dele que lhe inspira?”, pergunto. “Gosto de repetir: ‘Se você é capaz de tremer de indignação a cada vez que se comete uma injustiça no mundo, então somos companheiros’. Penso exatamente como o Che e lamento que hoje, 42 após a morte dele, as pessoas estejam perdendo a capacidade de indignar-se. As injustiças e a violência estão tão banalizadas que já se admite essa forma de vida como normal. Não quero nunca perder a minha capacidade de ficar indignada... e o Che é a minha inspiração”, explica a professora. Mais cedo, havia conversado com outro grande amigo que admira Che Guevara, o estudante de jornalismo Márcio Dornelles. No começo de 2009, ele realizou uma viagem de carona do Ceará ao

Che Guevara com a esposa, Aleida March, e seus quatro filhos


Márcio Dornelles em sua viagem de carona do Ceará ao Rio Grande do Sul

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Rio Grande do Sul (seu estado de origem). Os relatos da aventura serão transformados em um livro-reportagem. Lembro-me da viagem realizada por Che com o amigo Alberto Granado pela América do Sul, em 1952. No início a viagem é feita de moto – batizada de La Poderosa – que quebra oito meses após o início da aventura, fazendo-os seguir o percurso pegando caronas e caminhando. Em 2004, a história foi transformada no filme Diários de Motocicleta, dirigido pelo brasileiro Walter Salles. Pergunto a Márcio se ele se identifica com Che Guevara. “Sim, me identifico em muitas coisas com ele. Antes de revolucionário, ele era um aventureiro, um cara que buscava respostas para as coisas, um humanitário”. Domingo, 19 horas. Um pouco melhor da gripe, encontro-me com um amigo que voltou no início deste ano de Buenos Aires, onde fez intercâmbio universitário por um ano, o estudante de Direito da Unifor Laércio Avelino. Quero saber como é a relação dos argentinos com a memória de Ernesto Che Guevara. “O que percebi do povo argentino não foi muito diferente do que há aqui em Fortaleza. Não há uma unidade sobre o que pensam do Che. Entre os revolucionários, são poucos os que se filiam a este estilo de vida, não passa de uma tenra admiração pelo homem que foi. Na cidade de Buenos Aires me pareceu que eles

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travam o debate político em torno das idéias de Perón e Evita”, frisa. Diz Laércio que na cidade de Alta Gracias, na província de Córdoba, onde Che viveu dos quatro anos de idade até sua adolescência – por recomendações médicas, já que a cidade é conhecida por seu ar puro – existe hoje o Museo del Che. Lá estão expostos seus cadernos, livros, fardas do exército revolucionário cubano, além da moto La Poderosa. E para Laércio, o que Che significa? “Para mim, o Che é exemplo de vida e de lutador social. Encarou um estilo de militância socialista pela via revolucionária e o fez sem perder a ternura, tanto que, desde a conquista e desde a Constituição do Estado socialista Cubano, até hoje, já são 50 anos de história numa ilha segregada pelo capital de mercado financeiro. Isso não é fácil! Ser a pororoca, diante da correnteza!”, enfatiza o estudante, que também é militante do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Considerado uma das 100 personalidades mais importantes do século XX pela revista norte-americana Time Magazine, Che ainda faz muito sucesso no século XXI. Com certeza você, assim como eu, já se deparou com alguém vestindo uma camisa do revolucionário, um adesivo estampado na traseira de um carro, ou mesmo um discreto chaveiro. Há quem vá além: personalidades como o jogador de


futebol Diego Maradona e o boxeador Mike Tyson resolveram marcar, para sempre, a imagem de Che na pele. À procura de alguém conhecido que também tenha uma tatuagem do Che, encontro o amigo de um amigo, Raffaello Pajata, 27 anos. “Resolvi tatuar o Che por julgar eterna a admiração à sua história de vida e coragem. Uma homenagem mesmo, a uma pessoa que tentou fazer algo por aquilo que acreditava. Que em nenhum momento colocou interesses pessoais como prioridade de nada. Acho que isto meio que se explica sem precisar de palavras, mas com a sua própria morte, na forma como aconteceu”, revela. Rafaello ressalta, no entanto, que não é comunista – apenas admira Che Guevara. “Che acabou que virando sinônimo de comunismo. Uma foto do Che é hoje uma espécie de suástica às avessas. ‘Olhem, um comunista ! Olhem, um nazista !’. Eu não bato no peito pra levantar bandeira política nenhuma”, afirma. Numa segunda-feira chuvosa, saio da Unifor após o horário CD na companhia de uma colega de jornalismo, Arituza “Ruiva” Freitas, rumo ao centro de Fortaleza. Estamos em busca de produtos com a imagem de Che Guevara. Vamos à avenida Senador Pompeu, onde fica localizada a galeria Pedro Jorge. O segundo andar do prédio reúne mais de dez lojas, e é ponto de encontro de gente alterna-

tiva, em especial jovens roqueiros e skatistas. Entramos na loja Darkners, e deparamonos com uma camiseta do revolucionário exposta. Mas, peraí! Aquele não é o Che Guevara... É Chuck, o Boneco Assassino, com jeitão de guerrilheiro argentino! E parece que Homer Simpson e seu Madruga também lutaram pelo comunismo na América Latina! O vendedor Magnos Dirceu se aproxima e explica que é grande a procura por camisetas que fazem sátiras ao Che. “Os principais compradores são universitários, militantes do PCdoB, PSTU, PSOL, e os ‘pseudo-cabeça”, acrescenta um outro vendedor, Daniel Antunes. As camisetas custam em média R$ 25 reais, “mas se chorar um pouquinho, baixa pra 20”, revela Daniel. Quase ao lado, a loja Street House vende as mesmas camisetas, pelo mesmo preço, e também vende quadros do Che, à R$ 20 (também pode ser por R$ 18). No entanto, pelo menos nessa loja, a imagem de Ernesto Che Guevara não é a mais reproduzida: os campeões de vendas são Bob Marley e Kurt Cobain. “Derrota tras derrota hasta la victoria final”, diria el Che.

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Igreja na região de Córdoba, cidade onde Che Guevara morou

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artigo 72

Desde sua inauguração no Brasil, na década de 1920, o rádio passou por mudanças visíveis tanto na audiência quanto na grade de programação. Primeiro, com o sonho de democratizar o conhecimento no Brasil, Roquette Pinto conseguiu, em 1923, iniciar a trajetória de um dos mais populares meios de comunicação. A primeira emissora brasileira, a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, fundada por ele, tinha como principal meta a transmissão de educação e cultura. No início, os programas eram eruditos, mas, pouco tempo depois, foram dando lugar à apresentação de cantores locais e programas para públicos diferentes. Em outros estados, as emissoras seguiram o padrão da Rádio Sociedade. Na verdade, as rádios funcionavam como clubes, em que um seleto grupo de intelectuais fazia a programação de acordo com seus interesses para um público também seleto, visto que, na época, as camadas populares não tinham acesso ao rádio, devido ao alto custo do aparelho. Durante a década de 1930, houve uma tendência para a programação mais comercial nas rádios, sem esquecer sua função educativa. Adotando o modelo de radiodifusão norte americano, o governo passou a distribuir concessões a empresas particulares. Foi nessa época que o aparelho radiofônico tornou-se acessível à população, pela baixa no preço, e isso levou ao crescimento da audiência do veículo. Nota-se, agora, uma mudança na programação: os musicais variam entre o popular e o clássico. A década de 1940 foi marcada pelo investimento dos anunciantes estrangeiros que conseguiram mudar o curso da programação do rádio comercial brasileiro. Os programas eram criados a partir do interesse dos anunciantes, em grande parte americanos, que divulgavam, geralmente nas radionovelas, o american way of life. O rádio começa a registrar uma queda na audiência a partir da década de 1950, com o surgimento da televisão no País. Buscando algo diferente e em que pudessem investir para não perderem audiência, os produtores dos rádios passaram a reinventar a grade de programas existentes. Surgiu uma nova programação na qual a prestação de serviços, o jornalismo e as músicas eram os conteúdos fundamentais adotados pelos profissionais do meio. Com a característica singular de agilidade na transmissão de informações, o rádio conseguiu, pelo menos nesse ponto, superar a televisão. O rádio FM é caracterizado por possuir uma grade de programas quase que exclusivamente voltados

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Nas ondas da

história ·

por

· fernanda vieira ·

Estudante do 4º semestre do curso de Jornalismo da Unifor

para música e entretenimento. Foi assim que o meio conquistou sua maior audiência entre o público jovem. As pessoas aprenderam a conviver com o novo estilo descontraído da grade de programas radiofônicos muito facilmente e em um curto espaço de tempo. Isso se deve às inúmeras concessões de canais FM distribuídas pelo governo a partir dos anos 70, abalando o equilíbrio do veículo. Outra causa dessa crescente audiência é a nova forma de transmissão via Internet que dispensou concessões fiscais para sua instalação. Essa versão começou a ser utilizada nos anos 90 e pôde ser criada por qualquer pessoa com acesso franqueado e que dominasse as tecnologias de transmissão de áudio na rede. Por isso, a transmissão via Internet obteve sucesso absoluto, visto que esse meio está se tornando bem acessível a quase toda população. Partindo dessa perspectiva, a história do rádio no Brasil sempre foi trilhada pelo mesmo caminho, porém, cada época era protagonizada por diferentes personagens que tinham como principal objetivo o próprio interesse econômico e/ou social. Não podemos esquecer que o rádio teve também uma história enriquecedora para o nosso País, pois contribuiu muito para a construção de uma cultura de massa, popular e até mesmo erudita e que ainda tem muito a contribuir se forem dadas chances para os coadjuvantes descobrirem caminhos alternativos de resgate da cidadania.


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