A ponte # 16

Revista do curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza N° 16 - ANO VII Semestre 2011.1 Agosto/Setembro 2011

InvisĂ­veis

Nem todos CONTOS DE FADA os heróis são de

Para Banco Itaú ú Agência 3827 827 CC 08318-3

A Revarte é uma associação que busca resgatar valores culturais e pessoais, agindo na comunidade do Conjunto Alvorada. Incentivando a leitura, o esporte, a arte e a educação, procuramos melhorar pouco a pouco a vida e o espiríto de cidania da sociedade.

A Revarte se mantem com o auxílio de seus vários parceiros e amigos.

Empresas podem fazer doações individuais ou participar do nosso programa de parcerias. Já você, pessoalmente, pode ajudar se voluntariando como professor ou auxiliar da Revarte e também com doações de todos os tamanhos.

Venha nos visitar.

Quando se quer fazer a diferença, qualquer ajuda é um ato heróico.

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CONSTANTES

03 27 66

Ao leitor “O essencial é invisível aos olhos” Uma década de conquistas Ensaio fotográfico Invisibilidade

Artigo Onde está a democracia?

RASTROS

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Desertão de Inhamus Habitantes migram em busca de um futuro melhor

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A praia dos outros Três jovens em uma praia de nudismo

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Invisíveis públicos A realidade dos moradores da Comunidade do Dendê Suzane Lobo

LEMBRANÇAS

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“Éramos uma verdadeira família” Entrevista com Ary Sherlock, um dos fundadores da TV Ceará O poeta não morreu Homenagem póstuma a um amigo

REALIDADES

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Vozes anônimas A história de uma locutora e uma atendente de telemarketing

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“Esse trabalho é para tentar formar cidadãos” Vigilante do HGF usa o futebol para desenvolver projeto social

cartas

Alienígenas Achei muito interessante a matéria “Eles estão entre nós”, pois mostra de uma forma clara e simples todos os aspectos da Ufologia, como também os casos ocorridos aqui no Ceará.

Matheus Teles Pamplona Estudante de Jornalismo/Unifor

Assuntos interessantes

EXPEDIENTE Centro de Ciências Humanas - Universidade de Fortaleza Fundação Edson Queiroz Revista-laboratório do Curso de Jornalismo Diretora do Centro de Ciências Humanas: Erotilde Honório Coordenador do Curso de Jornalismo: Wagner Borges Conselho editorial: Erotilde Honório, Wagner Borges e Alejandro Sepúlveda Coordenação editorial e de produção: Alejandro Sepúlveda Gerente do Laboratório de Jornalismo: Alejandro Sepúlveda Supervisão de produção gráfica e suporte técnico: Aldeci Tomaz Diagramação e tratamento de imagens: Aldeci Tomaz e Fernanda Carneiro Supervisão de Fotografia: Júlio Alcântara Edição de Fotografia: Thalyta Martins Revisão: Antônio Celiomar Pinto Araújo Secretária do Laboratório de Jornalismo: Cleoneide Rodrigues Supervisor da gráfica: Francisco Roberto Impressão: Gráfica da UNIFOR ESTUDANTES DE COMUNICAÇÃO SOCIAL / UNIFOR: Editora assistente: Marília Pedroza Capa: Aldeci Tomaz e Fernanda Carneiro Logotipo: Vicente Valdevino Leite Neto Anúncios e infográfico: Agência de Publicidade - NIC (Acauan Sanders, Beatriz de Holanda Coimbra, Bruna Karine Sena Victor, Bruno Guilherme Damasceno, Fellipe F. Amorim e Vasconcelos, José Cândido dos Santos Neto, Luana Peixoto Magalhães, Naiara Martins Pereira, Raul Holanda Ponte, Rodrigo de Borba Gondim, Saul Lemos Sales e Victor Matos Garcia) Projeto gráfico: Eduardo Martins Fotografias das Reportagens: Áquila Leite, Arthur Petrola, Ercília Rocha, Geovana Rodrigues e Larissa Barreto Redação: Alunos da disciplina Princípios e Técnicas de Jornalismo Impresso II, turma 2011.1 (André Ítalo Rocha, Áquila Leite, Célio Scipião, Celso Nóbrega, Érika Zaituni, Geovana Rodrigues, Giovanna Almeida, Jáder Santana, Mailson Bruno, Márcia Feitosa, Maria Falcão e Natália Silva)

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Esta edição superou minhas expectativas.

Trouxe temas interessantes, como os depoimentos de pessoas que já viram UFOs aqui, no Ceará, e tratou de assuntos que muitos de nós desconhecemos, como o candomblé, pessoas que “vivem” de luz e a existência de Igrejas que aceitam fiéis de qualquer identidade sexual.

Luiz Carlos Bomfim Estudante de Jornalismo/Unifor

Diversidade e esmero Eu adorei essa revista, porque ela aborda de tudo um pouco. Os assuntos são diversos, que começam na nossa própria Universidade e vão além do que nós imaginamos. As matérias são bem interessantes e prendem a nossa atenção para a leitura textual e fotográfica. Fico feliz em saber que temos bons futuros jornalistas.

Alanna Karine Costa de Freitas Estudante de Publicidade/Unifor

Casais incomuns Gostei bastante das matérias sobre relacionamento! Por um lado, as pessoas parecem liberais demais e não entendem porque dois jovens decidiram esperar. Mas, ao mesmo tempo, parecem Caxias demais e não aceitam uma mulher mais velha com um namorado mais novo.

Rebeca Marinho Estudante de Jornalismo/Unifor

A frase do título é do escritor francês Antoine de SaintExupéry. Com as nossas vidas sempre tão corridas pouco ou nada vemos do que se passa a nossa volta.

Focados em alcançar os nossos objetivos em busca do sucesso (material), o essencial - a própria vida - se torna invisível. Esta edição d’A Ponte convida o leitor a olhar para pessoas e realidades que nos rodeiam, mas que, de alguma maneira, talvez por estarem muito perto dos olhos, se tornaram invisíveis.

Por isso, primeiro, é preciso chamar atenção para uma novidade que pode não ter sido notada pelo leitor.

A revista está de logomarca nova, fruto de um concurso realizado em parceria com a Agência de Publicidade, cujo vencedor foi o estudante Vicente Leite. A mudança fez parte das atividades comemorativas dos 10 anos do curso de Jornalismo (leia texto abaixo).

Quanto ao conteúdo da edição, destacamos pessoas que fazem a diferença em nossa cidade, em nosso Estado, em nossa vida. Habitantes do interior do Ceará, que sobrevivem em lugares inóspitos mas não deixam de sonhar com uma vida melhor, como o Zé da Toinha, que saiu de sua cidade natal aos 17 anos e hoje vive nos Estados Unidos. Pessoas que vivem em comunidades de baixa renda e não são vistas. O que sabemos sobre a vida que há nas favelas? Será que em comunidades carentes, como a do Dendê, em Forta-

leza, só há miséria e violência? Além da violência que é escancarada na mídia diariamente há gente como a Dona Cilene, que, com sua Associação, está mudando a vida de moradoras do Dendê. E qual é a cara de quem fala nos rádios? Você sabe quem é o dono da voz que nos faz companhia? Quem é a atendente de telemarketing que nos liga para nos oferecer os mais diversos serviços? Conheça uma atendente e locutores de rádio e veja como trabalham estas pessoas.

Temos a história de jovens que viveram a experiência de ir à uma praia de nudistas localizada perto de João Pessoa, capital da Paraíba. Também trazemos a entrevista com um grande ator cearense que já foi indicado ao prêmio de Melhor Ator do Mundo, por um Festival realizado na Espanha. Um poeta que não está mais entre nós, mas deixou seu rastro marcado na vida das pessoas com quem conviveu. E ainda a história de um técnico de futebol que está salvando vidas.

Com vocês, pessoas que valem a pena serem vistas.

ao leitor

“O essencial é invisível aos olhos”

Giselle Nuaz Estudante bolsista do Labjor

Uma década de conquistas Em 2011, o Curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza (Unifor) completou 10 anos, por isso esta edição d’A Ponte leva na capa o selo azulzinho comemorativo. E eu, estudante bolsista do Laboratório de Jornalismo (Labjor), fui incumbida da nobre missão de escrever sobre a data.

Não estava aqui quando o curso foi criado (cheguei no início de 2008), mas sei que muita gente contribuiu para fazer a sua história nesse período. Um deles foi o professor Antônio Simões Menezes, que, com seu jeito educado e ponderado, deixou sábias lições. Nunca esquecerei do incentivo e da ajuda que ele me deu para inscrever um trabalho no Congresso da Intercom, o mais importante da América Latina na área de Comunicação.

Na ocasião ganhei um prêmio e experiências que levarei por toda a minha vida profissional.

Também o Curso de Jornalismo foi várias vezes premiado em outros eventos da Intercom. Esta revista e o jornal-laboratório do curso, o Sobpressão, foram eleitos os melhores do Brasil, em 2010, e o Mural da Justiça, em 2011, ambos produzidos pelos estagiários

do Labjor. Neste laboratório somos responsáveis pel’A Ponte, o Sobpressão e seus vários cadernos, um blog e ainda trabalhamos com assessoria de comunicação. É uma ótima oportunidade, porque nos permite enfrentar os mesmos desafios que qualquer jornalista encara no seu cotidiano. Além, é claro, da liberdade de poder experimentar.

Pessoalmente, sinto muito orgulho por estudar na melhor universidade particular do Nordeste e do Norte, e 13ª do Brasil, segundo o Guia do Estudante da Editora Abril de 2011. O Guia também classificou o curso de Jornalismo da Unifor com quatro estrelas (sendo cinco a nota máxima nesse ranking), um merecido reconhecimento no seu décimo aniversário.

Marília Pedroza Estudante bolsista do Labjor

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·

texto

· márcia feitosa · giovanna almeida ·

fotos

· arquivo pessoal

Foto: Arthur Petrola

Em algumas regiões do Ceará, a concentração fundiária, a falta de emprego e de políticas públicas que tragam desenvolvimento e progresso colocam para os jovens um futuro incerto que os obriga a migrar. Muitas cidades sofrem com esse abandono: ruas vazias, violência, lojas fechadas, casas abandonadas e muitas saudades dos que partiram. É como se cidades inteiras fossem sumindo lentamente do mapa, condenadas a desaparecer junto com seus habitantes. Essa é a realidade que vivem as cidades do Sertão de Inhamuns

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estes seriam os pioneiros na ocupação e povoamento dos Inhamuns.

Os irmãos saíram de Pernambuco, junto com descendentes de famílias tradicionais do Estado, procurando terras para se instalar e criar gado. Os Feitosa escolheram a parte que viria a ser a microrregião dos Inhamuns.

Durante muitos anos, a família Feitosa manteve a hegemonia do poder, pois além de deter as riquezas, adotou a endogamia (casamento entre parentes) para assegurar o monopólio das terras.

A riqueza de algumas poucas famílias contrastava com a miséria dos outros habitantes. O domínio das terras, já bastante extenso, foi desencadeando movimentos migratórios, gerando o despovoamento.

“A concentração fundiária fazia com que, principalmente em épocas de seca, as pessoas migrassem. Por incrível que pareça, o que causa fome e miséria no sertão não é a falta de água, mas a falta de terra”, explica

Foto: Arquivo pessoal - Márcia Feitosa

As dificuldades da luta diária pela sobrevivência no sertão, que exige destreza para lidar com espinhos e coragem para retirálos do caminho

O Ceará não despertou de imediato o interesse dos colonizadores portugueses. Enquanto outros estados, como Pernambuco e Bahia, já anunciavam o começo do desenvolvimento, o Ceará sequer havia sido povoado pelos colonizadores.

Um dos primeiros pontos de povoamento foi, por ironia, o que menos prosperou: o Sertão dos Inhamuns. Trata-se de uma microrregião composta por seis cidades de nomes estranhos: Aiuaba, Arneiroz, Saboeiro, Parambu, Catarina e Tauá. O nome “inhamuns” vem do tupi e significa “sertão alto”.

No final século XVIII, um homem chamado João, que vinha da cidade de Feitosa, em Portugal, chegou à região de Penedo, Pernambuco. Como este era um nome muito comum, começaram a identificá-lo pelo nome de sua cidade de origem, ou seja, João da Feitosa. Ele acabou por adotar Feitosa como seu sobrenome e chamou seus dois filhos de Francisco Alves Feitosa e Lourenço Alves Feitosa. Segundo os historiadores,

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Fotos: Arthur Petrola

Sérgio Feitosa, historiador e estudioso da região dos Inhamuns.

A situação não mudou muito nos dias atuais.

A propriedade da terra em poucas mãos faz com que muitos jovens partam para os grandes centros urbanos em busca de emprego e de um futuro mais promissor. Essa realidade criou um instinto de desapegar-se do chão em que esses jovens nasceram, pois muitos sabem que, em breve, terão que partir. Além disso, os conflitos pela terra e uma cultura tradicional de valores cria o fermento para um estado em que as desavenças são resolvidas pela violência.

O descaso com que o poder público trata a região de Inhamuns é outro fator determinante para o êxodo dos habitantes. A falta de incentivos aos jovens, de oportunidades de emprego e educação e, principalmente, a pobreza extrema faz com que eles busquem em outros lugares um futuro melhor, longe da fome e da violência.

Cadê Zé de Toinha?

É frequente para os inhamuenses ver seus jovens migrarem, cheios de esperança, em busca de emprego. Os parentes que ficam esperam ansiosos os telefonemas dos que partiram, quase sempre, com o passar do tempo, em domingos cada vez mais espaçados.

O dinheiro prometido pelos maridos nem sempre aparece. O filho avisa à mãe que esse ano ainda não vai dar para estar em casa no Natal. Assim, muitos inhamuenses vão se perdendo pelo mundo, rompendo seus laços com a região e a sua gente. É o caso de José Divino da Silva, filho de Antônia Irene Bernardo Pereira, conhecido como Zé de Toinha. A mãe não sabe bem o que diz, mas quando perguntam: “Cadê o Zé?”. Ela responde prontamente: “Tá em Flórida”. O filho dela, assim como outros tantos outros Zés, apostou na sorte e usou a coragem que é tão intrínseca dos inhamuenses.

Zé da Toinha veio morar em Fortaleza para trabalhar como caseiro, na chácara de um conterrâneo de Aiuaba. Ao chegar à capital cearense, conheceu um amigo do patrão que sempre frequentava a casa e morava nos Estados Unidos. Zé recebeu um

convite para ser seu motorista na Flórida.

Não pensou duas vezes para aceitar.

Por algum tempo, ele ficou no país clandestinamente. Depois, casou-se, teve filhos e hoje vive como cidadão americano. Mesmo levando uma vida que parece de sucesso, ele confessa que se pudesse nunca teria saído de sua cidade. O jovem partiu de casa aos 17 anos e nunca mais voltou. Dona Toinha, sua mãe, diz que mesmo dezesseis anos depois da partida, ele ainda se emociona quando fala com os parentes e quando lembra do pai que morreu nesse meio tempo. Com a voz saudosa, ela diz: “Pior é saber que o dia que ele saiu de Aiuaba foi o último que esteve aqui, porque ele não tem condições

A opção por partir do sertão parece a mais sábia, afinal nada parece mais difícil que lidar com a falta de oportunidades de sua terra estéril (foto no alto) Por mais que o tempo passe, as coisas mudem e a vida pacata do sertão tenha que ser deixada para trás, os Inhamuns permanecerão na vida de cada um de seus filhos (foto acima)

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de voltar trazendo toda a família. Eu queria muito vê-lo novamente”.

Dona Toinha não tem ideia do quanto está distante do filho. Não sabe que estão em estados, países e Américas distintas. Para ela, que já está tão calejada de saudades, estão igualmente longe Zé ou Nazaré, a filha caçula, que mora há 12 anos em Santo André, Região Metropolitana de São Paulo. No entanto, quando fala de Zé ela diz: “Coitadinho de meu filho, morar nesse lugar que não tem um conhecido, não tem uma pessoa que possa dar notícias aqui de casa”.

O tempo e ausência cobram seu preço.

Os amigos de Zé mal se lembram dele, os vizinhos dizem não recordar muito bem da sua fisionomia.

O antigo patrão levou seu irmão mais novo para ocupar a vaga de caseiro da chácara que ele deixou; a primeira namorada e grande amor da adolescência casou-se com seu melhor amigo.

Marcados pela morte Em regiões como os Inhamuns, a relação que o sertanejo mantém com os seus princípios

ainda é muito forte, resistindo às regras da sociedade contemporânea. Muitos são fiéis à lei que determina que palavra de homem não deve voltar atrás. Nesse cenário de tradições antigas, famílias inteiras são dizimadas pela violência. De tão corriqueiras, o número de mortes já nem impressiona. A frequência dos assassinatos acabou anulando a indignação pelos exageros cometidos. Por lá, matar é parte do cotidiano.

O comportamento instintivo de revidar provocações é outro velho conhecido. “Os Inhamuns nasceram sob a égide da violência. Sob as brigas que se deram pela disputa das terras e dos choques de vaidades dos que naquela época eram potentados”, explica o pesquisador Sérgio Feitosa.

As mortes do passado se arrastam até hoje e deixam marcas que jamais são apagadas, nem diminuídas. As perdas de entes queridos por mortes violentas dão lugar à vingança. Ela toma conta e engole os outros sentimentos, de modo que é raro que um crime não incentive outro.

Museu regional

Foto: Arquivo pessoal – Fátima Feitosa

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O Museu Regional dos Inhamuns está sediado no prédio centenário da antiga intendência da cidade de Tauá, onde fica a Fundação Bernardo Feitosa. A fundação existe desde 1992 e é mantenedora também da Biblioteca Joaquim de Castro Feitosa. Além dos seus acervos, ela ainda é guardiã de 72 sítios arqueológicos, que acompanham o curso do rio Carrapateiras, pertencente à bacia hidrográfica dos Inhamuns. A iniciativa de preservar a história dos Inhamuns é levada a frente pela presidente Dolores Feitosa e toda a equipe multidisciplinar que a acompanha.

O Museu conta com exposições fixas de objetos da lida diária dos trabalhadores do campo, indumentária dos vaqueiros, peças do artesanato local, entre muitas outras coisas que imediatamente nos remetem à vida que alí se leva. A fundação promove saraus lítero-musicais mensalmente, nos quais a tradição dos rabequeiros tauaenses

Um catavento barulhento sinaliza a chegada a Cococi. No terreno onde existia uma cidade inteira, apenas o catavento continua funcionando.

Os belíssimos casarões estão em ruínas, abandonados. Os prédios onde antes funcionavam o hotel municipal, a Câmara, a Coletoria de Impostos e a Prefeitura agora servem de sombra para os animais. Apenas duas casas estão ocupadas e abrigam sete moradores ao todo. O ponto de origem da região dos Inhamuns, o primeiro lugar povoado, desapareceu. Tudo que havia foi se dissipando.

Todos foram embora. Cococi sumiu.

A fé sustenta o lugar na lembrança e na convivência daqueles que de alguma forma tiveram suas histórias ligadas ao município. A igreja de Cococi foi a primeira dos Inhamuns e tem como padroeira Nossa Senhora da Imaculada Conceição.

A devoção, mesmo depois do abandono dos moradores, continua inabalada. Todo dia 08 de

é reativada, bem como capacitações para professores de história, cursos para agentes ambientais e palestras nas escolas sobre a história dos Inhamuns.

A vice-presidente da Fundação Bernardo Feitosa, Fátima Feitosa, desenvolve um trabalho de preservação dos sítios arqueológicos, das pinturas rupestres e das fontes de águas cristalinas descobertas na região. Formada em geologia, acredita que “a determinação é uma marca do povo dos Inhamuns. Dificuldades existem, mas isso não impede de continuarmos nosso trabalho social, cultural e ambiental. Futuramente os sítios arqueológicos poderão ser visitados, o que irá colocar os Inhamuns na rota do turismo ecológico. O acervo do museu já é o terceiro em importância no Estado, e isto nos conferiu o título de Ponto de Cultura Cearense. Buscamos incansavelmente o reconhecimento e expansão dos valores do semi-árido cearense”, ressalta.

Foto: Arquivo pessoal – Marcia Feitosa

Uma cidade fantasma

dezembro as ruínas de Cococi são visitadas por centenas de pessoas que vêm pedir as bênçãos da Santa. A Igreja e o cemitério são as únicas instituições que permanecem conservadas.

Extinta em 1968, Cococi começou como vila, passou a ser distrito de Parambu e depois foi emancipada. Segundo Fátima Feitosa, geóloga e vice-presidente da Fundação Bernardo Feitosa, os únicos registros históricos apontam a fundação de Cococi em 1708, após a chegada do coronel Francisco Alves Feitosa naquele município. “A partir deste núcleo, outras famílias foram se instalando. Então começou a ser popularizado. Foi designado município em 1954, mas em 1968 foi destituído para distrito de Parambu”, conta Fátima.

De acordo com os poucos moradores da antiga cidade, pessoas interessadas em conhecer ou gravar documentários sobre a região dos Inhamuns passam todos os dias por lá. Cococi já foi tema de livros e de um filme produzido pela Rede Globo, chamado Lua Cambará. O lugar desperta a curiosidade por causa das histórias de muitos dos seus moradores, como a de Ana Feitosa, que morreu depois de ser picada por uma das cobras que criava.

Os poucos moradores que ficaram afirmam que Cococi foi terra de personagens aguerridos, de homens ricos e poderosos, de mesas fartas, de demonstrações de opulência, de amizades eternas, amores sem fim. Daí o fascínio que a extinta cidade desperta até hoje. Ela virou ruínas, histórias e memórias. Cococi permanece na crença dos que acreditam em sua padroeira, na saudade de quem visita seus mortos, na animação de quem vai pela primeira vez à terra de seus antepassados e na curiosidade dos que buscam o lugar onde, literalmente, o ouro virou pó.

Uma das sete moradoras contempla as ruínas, antes onde estava a avenida principal de Cococi

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Pedro, 24 anos, é cearense e foi passar as últimas férias em João Pessoa, onde conheceu duas jovens que também estavam a passeio pelo litoral pernambucano: Marina, 27, natural do Piauí, dentista; Ana Lúcia, 28, carioca, dançarina profissional. Dois dias depois de se conhecerem, os três combinaram um passeio de buggy. A ideia era irem para uma praia quase virgem, longe da agitação dos veranistas e com o mínimo de infraestrutura. Acertaram a viagem com um bugueiro da rua Major Ciraulo, no bairro de Manaíra, que disse conhecer o lugar ideal que eles procuravam: uma praia quase selvagem, a 30 minutos da capital. Seria uma surpresa para os três. Leia, a seguir, a crônica dessa viagem ·

Nos dias de calor, o sol castiga para valer quem transita pela PB-008, rodovia que margeia boa parte do litoral paraibano e cruza matas, manguezais, falésias coloridas e praias pouco exploradas. Saindo de João Pessoa, Marina, Ana Lúcia e Pedro seguem em um buggy vermelho desbotado em direção ao sul do Estado, com o vento batendo no rosto e os lábios ressecados pela umidade tropical da região. Em um ponto da rodovia, o motorista do veículo faz uma curva brusca e coloca o veículo sobre uma estrada de terra seca e areia, ladeada por arbustos que arranham a pele dos passageiros. Nenhum dos três turistas parece querer reclamar. Na verdade, eles estão concentrados e curiosos para descobrir o destino final daquele trajeto.

Em um determinado trecho da estrada de terra, o motorista faz uma curva suave à esquerda e inicia a descida de uma ladeira íngreme, feita com pedras de calçamento que parecem milimetricamente cortadas e perfeitamente encaixadas, reluzentes sob o sol. Mais abaixo, começam a divisar ao longe um mar sem ondas que se estende até a linha do horizonte e um grande pare-

texto

· jáder santana ·

ilustrações

· anderson leitão

dão de rochas, que interrompe abruptamente a faixa de areia fina. O bugueiro estaciona ao lado de outros carros de passeio, diante de uma pequena barraca de bambu que exibe camisetas, bonés e toalhas de várias cores.

Os três turistas descem do buggy acompanhados pelo motorista. Pedro quer saber onde estão, mas o motorista faz apenas um sinal para ele entrar. Diante do balcão da barraca, uma morena os recebe com um sorriso acolhedor. Marina pergunta para ela: “que praia é esta?”

“Praia de Tambaba”, responde a morena apontando para uma placa colocada ao lado do paredão rochoso.

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Uma outra placa, colocada no início de uma escadaria que permite atravessar o paredão rochoso dando acesso à praia, informa:

Diante da cara de surpresa dos três, o motorista do buggy começa a rir. As duas garotas logo percebem que se trata de uma praia de nudismo e também acham engraçado. Pedro ainda parece não acreditar. Ana Lúcia toma a iniciativa de perguntar: - “O que é preciso para entrar?”

- “Vocês duas vão levar essas sacolas plásticas e vão tirar a roupa do outro lado da pedra. Quanto ao rapaz”, disse a recepcionista apontando para Pedro, “precisa ler a última frase da placa”.

Ao ler a placa, Pedro faz uma cara de alívio, pois pensou de imediato: “não precisarei me despir”. Mas logo escuta o motorista dizer: - “Você precisa entrar com uma das meninas, como se fossem parceiros, namorados, ou outra coisa do tipo”.

Vendo as duas indo em direção à escadaria, Pedro não vê outra alternativa senão segui-las.

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P���A DE ������A RE��N�O �A�U��S�A L�I ���I����L 256/2�02

É ���ME �O��G�A�AR , ����AR �U G�A�AR ���G��S S�M O DE���O C��S�N��M�N�O, TER C���OR��M�N�O S�����M�NTE �ST���I�O, �OR�AR �U U���I�AR D����S ���I��S, ����AR C��ST�����M�N�O P��A P�Á�I�A DE A�I��D�S ���D������S

�I�A P������O O ��GR���O, �A ÁR�A ��PE�Í�I�A �A�A P�Á�I�A �O �A�U����O, DE ��M��S D��AC����N����S DE ��LHER�S (L�� M��i��p�� Nº 286/2�04)

Nus no mar

A areia parecia mais limpa, o mar mais azul, as ondas mais tranquilas. Parado sobre os últimos degraus da escadaria, quem olhasse para a extensão da praia veria uma cena inusitada: fincadas no solo, uma fileira de barraquinhas de palha seca, sem cadeiras nem mesas, apenas algumas toalhas estendidas pelo chão e uma pequena multidão de homens, mulheres e crianças aproveitavam o agradável sol de domingo completamente nus. Viam-se rapazes jogando futebol, moças estiradas sobre toalhas tomando sol, vovós ajudando seus netinhos na construção de castelos de areia, casais abraçados dentro do mar, jovens dançando um samba antigo que saía de um aparelho de som... Todos pelados.

O rapaz e as duas moças terminaram de descer a escadaria e pararam por alguns segundo como se estivessem avaliando se deveriam ir adiante. Pedro se perguntava: “Como é possível passear pela praia sem lembrar-se dos quilos extras, das celulites e expressões de idade?”. Sentiu-se intimidado com a naturalidade com que todas aquelas pessoas desfrutavam da nudez.

Ele perguntou para elas se seguiriam em frente ou se retornariam. Ana Lúcia respondeu com uma atitude: desamarrou a parte de cima do biquíni e caminhou lentamente para a primeira barraca livre. Pedro e Marina, ainda vestidos, seguiram os passos de Ana e colocaram suas mochilas sobre a areia, protegendo-se do sol no sombreado da barraca. Nenhum dos dois olhou para Ana Lúcia quando ela arrancou a parte debaixo do biquíni, fingindo que estavam olhando para os outros frequentadores. A dançarina caminhou discretamente em direção ao mar, completamente nua. Talvez sentindo-se impressionada com a naturalidade da amiga, Marina livrou-se rápido das suas roupas e saiu a passo acelerado, alcançando Marina antes que esta entrasse no mar.

Pedro ficou atônito observando as duas jovens, protegido pela sombra da barraca.

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Pensava de onde tiraria coragem para tirar a roupa, quando foi interrompido por um senhor moreno com aparência de avô: - “Bom dia, amigo. Sou fiscal da Praia de Tambaba. É sua primeira vez aqui?”, perguntou ele.

- “Sim, é minha primeira vez...”, respondeu Pedro com um sorriso constrangido.

- “Ótimo. Você deve estar um pouco nervoso, apreensivo com a situação”, disse ele esperando uma resposta que não veio.

- “Olha só, você não pode ficar vestido aqui. É regra da praia, precisa tirar a roupa. Eu sempre digo aos novatos que tirem a roupa e fiquem dentro da água até que se sintam acostumados ao naturismo. Você pode tentar”, sugeriu.

Esse “pode tentar” não pareceu para o rapaz propriamente uma opção. Ele agradeceu ao fiscal pelo conselho e, enquanto este se afastava, começou a tirar a camisa, grudada ao seu corpo pelo suor do nervosismo. Dobrou e redobrou milimetricamente aquele pedaço de tecido, como para ganhar tempo esperando acordar desse pesadelo.

Escutou as duas amigas chamando-o pelo nome. Acenavam do mar e faziam sinal de positivo com os dedos. Tudo lhe pareceu incomodamente natural. Desabotoou o botão da bermuda e ouviu o barulho do velcro que se abria devagar. Apoiou as mãos em um dos troncos da barraca e tirou com dificuldade a segunda peça de roupa. Já em trajes íntimos, sentiu-se mais constrangido e ridículo do que antes, e imaginou que aquela demora para se livrar da última peça de roupa chamaria mais a atenção dos banhistas do que se já estivesse completamente despido. Então fechou os olhos e abaixou a cueca, colocando-a junto ao saco plástico que havia recebido da morena do balcão. Ensaiou um sorriso torto no rosto e mediu a distância que o separava das garotas.

Eram uns trinta metros de areia que deveria percorrer da forma mais natural possível.

Hesitante, deu o primeiro passo para fora da barraca, levantou a cabeça olhando fixamente para as garotas e iniciou a caminhada

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forçando ainda mais um sorriso no canto da boca. Sentiu que a praia inteira tinha parado para vê-lo passar. Atravessou entre os rapazes que jogavam futebol, passou ao lado do grupo que sambava, pelas crianças que davam os últimos retoques no castelo de areia e pelo fiscal que o havia aconselhado há pouco. O trajeto pareceu-lhe infinito. Tudo o que ele queria era afundar logo nas águas azuis da Tambaba para esconder a sua vergonhosa nudez.

Logo que seus pés sentiram a espuma do mar, acelerou os passos e se jogou na água, entre as duas garotas que riam do seu nervosismo. Deixou-se estar submerso, sem pensar em nada, apenas sentindo a água gelada que esfriava cada poro de seu corpo. Levantou a cabeça, limpou o sal dos olhos e aproximou-se de Ana Lúcia e Marina. Com o pé enraizado no chão, já refeito, riu com as duas quando viram passar uma senhora que lutava para livrar-se da parte de cima do biquíni.

Ana avisou que sairia para beber uma cerveja, Marina concordou que era uma ótima pedida para esse momento. Ergueram-se da água sem preâmbulos, deixando à mostra seus corpos reluzentes sob o sol de meio-dia.

- “O que vocês acharam dessa experiência?”, gritou-lhes o rapaz, ainda submerso até o pescoço.

- “Normal”, disse Ana Lúcia, olhando para um outro rapaz que passava.

- “Ainda não sei. É meio estranho, mas eu estou me sentindo leve”, explicou a dentista.

As duas caminharam até a barraca e se sentaram na areia. Pedro resolveu ficar mais alguns minutos no mar. Sentindo-se livre, mergulhou como se estivesse em uma das praias de sua cidade. Mas logo pensou que teria que fazer o trajeto de volta até as amigas. Olhou para as pegadas que havia deixado na areia, antes de entrar na água. Tentou contar quantos passos havia dado, mas o vento e as ondas haviam apagado algumas marcas. Olhou em volta: o futebol continuava animado, um grupo ainda maior ensaiava passos de samba, o garotinho construía uma espécie de fosso ao redor do castelo e o casal de namorados conversava enquanto dividia um sanduíche natural. Cada um vivia sua rotina, como se as roupas fossem meros acessórios e ornamentos fúteis para aqueles corpos livres, cheios de imperfeições e traços que traziam gravados um pouco da história de seus donos. Viu as garotas abrirem a primeira cerveja. A espuma escorria do gargalo e o líquido gelado umedeceu os copos de vidro. Pensou: “É hora de sair do mar, a bebida vai esquentar”.

Como chegar> Ponte

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· geovana rodrigues

Em muitos lugares do Brasil, encontramos comunidades de baixa renda vivendo em quase total estado de abandono por parte do poder público, sobrevivendo sem rede de esgoto, escolas, ruas asfaltadas, energia elétrica, hospitais, etc. Em muitos casos, os habitantes dessas comunidades ainda são obrigados a conviver diariamente com a violência e a criminalidade. Em Fortaleza, uma comunidade desse tipo vem lutando há décadas para superar os seus problemas e mudar a sua realidade, graças em boa parte à liderança e organização das mulheres. Trata-se da Comunidade do Dendê, localizada no bairro Edson Queiroz, atrás da Universidade de Fortaleza, margeada pelo rio Cocó e um condomínio de luxo.

A Ponte foi conhecer de perto essa comunidade que, apesar de ocupar uma extensa área do bairro, ainda é desconhecida por muitos que vivem e transitam pela região

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- “Siga em frente, vire à esquerda. Logo após o muro da empresa de gás, vire à direita e não fale com ninguém. É meio perigoso!”.

Foi com essa advertência que uma pessoa na rua nos respondeu quando lhe perguntamos sobre a localização da Rádio Comunitária Dendê Sol, ponto de partida previamente acertado com João, o radialista que nos serviria de guia para visitar a comunidade.

Rabiscamos o trajeto em um pedaço de papel e, em menos de cinco minutos, estávamos em frente à Rádio. Instalada em uma sala de pouco mais de 3m quadrados, a emissora possui um computador e uma mesa de som, equipamentos que João utiliza para levar aos moradores as músicas e novidades Sede da Associação de Moradores Dendê Sol, que oferece biblioteca e diversos cursos à comunidade

da comunidade. Ali, ele nos falou demoradamente sobre os problemas do Dendê e, principalmente, sobre as grandes conquistas ao longo dos anos.

Em seguida, saímos da rádio para conhecer um pouco as ruas. O vento quente batia em nossos rostos carregando os odores provocados pela falta de saneamento básico. À primeira vista, a impressão que se tem é de que estamos em uma rua como qualquer outra de um bairro popular. Mas um olhar mais atento permite perceber que muitas delas são um pouco mais estreitas do que o habitual. Mais adiante pudemos observar ruas com comércio bastante movimentado e até uma feira livre vendendo alimentos, roupas, utensílios domésticos e outros produtos.

João chama a nossa atenção para as marcações verdes pintadas nas fachadas de algumas casas. Trata-se de uma letra acompanhada de quatro dígitos. Segundo o nosso guia, essas marcas fazem parte de um projeto da Prefeitura de Fortaleza que visa reordenar as casas, tirando os moradores das áreas de risco e implantando um sistema de saneamento básico. “Há mais de três anos que estão aqui (as marcas) e nada foi feito ainda”, informa ele. De acordo com a assessoria de comunicação da Prefeitura, não há projeto previsto para a comunidade do Dendê neste ano. Estão programados o alargamento das ruas da comunidade e a implantação de um sistema de saneamento, mas ainda não há data para o início das obras.

Enquanto caminhávamos foi se desenhando um paradoxo. Vimos várias casas conectadas à Internet e com TV por assinatura, enquanto muitas crianças se divertiam Vista parcial do muro que divide a “Baixada” do resto da comunidade

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brincando na rua despreocupadas com os perigos que a falta de saneamento pode trazer à saúde. Um grupo delas brinca com um ímã amarrado a um fio de nylon. O objetivo da brincadeira é pescar moedas dentro de bueiros. As pequenas mãos pegam no imã e depois são ingenuamente levadas à boca.

A nossa primeira parada é no Conselho Social de Segurança. Acordes de violão levemente desafinados nos recepcionam. João nos apresenta a uma senhora de pouco mais de um metro e meio de altura, magra, dona de uma fisionomia marcada pelos seus 32 anos de luta pela comunidade do Dendê. Esta é dona Toinha, vice-presidente da Associação de Moradores Dendê Sol. Ela nos apresenta a um grupo de 35 crianças e jovens, entre 9 a 14 anos, que estão estudando violão.

Seus professores são soldados da Polícia Militar. “São os mais jovens a nossa maior preocupação. Eles ainda não têm a mente formada e a gente pode plantar o bem”, diz orgulhosa dona Toinha. Como para corroborar o que ela afirma, algumas das crianças mais experientes tocam uma canção completa de música gospel.

Resgate pela cultura

Dentro da comunidade do Dendê há uma relação que é bastante comum a todas as favelas do Brasil: juventude e drogas. São quatro gangues que se enfrentam pelo controle do tráfico da região. No meio dessa disputa, os jovens sem oportunidades muitas vezes procuram o caminho “mais fácil”. O tráfico é favorecido pela existência de um grande número de becos e vielas que dificultam o acesso do poder púbico e de viaturas da polícia nos locais mais críticos.

Projeto Cultura e Arte do Dendê, desenvolvido por soldados da Polícia Militar

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De frutas a eletrodomésticos: feira livre do Dendê movimenta a economia

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Dennis Milanez é um dos fundadores do Procad (Projeto Cultura e Arte do Dendê). Ele é cantor e soldado da Polícia Militar. Aos sábados pela manhã, dá aulas para meninos e meninas do Dendê. “Temos o conhecimento que esta região, infelizmente, é conhecida pelo alto índice de criminalidade, principalmente com a participação de adolescentes.

Assaltos, furtos, tráfico de drogas e uso de entorpecentes são praticados com frequência por estes jovens. Estas aulas têm o objetivo de tirar os adolescentes da ociosidade, pois é uma das principais razões para a procura pelo mundo do crime”, explica o professor.

João nos conta que garotos de 15, 16 anos não querem mais saber de programas de inclusão. “Já não temos o que fazer.

Nessa idade já são donos da própria vida e fazem o que querem. A vida do crime é o caminho que eles escolheram e os pais não têm controle sobre eles. Tem mãe que diz que não pode mais mandar neles. Eles se comandam. Por isso nós estamos buscando resgatar desde pequenos pro caminho do bem”.

Dona Toinha diz que age diferente. De tempos em tempos, ela reúne os pais e alguns desses jovens e comanda uma espécie de reabilitação familiar. “Tenho que dar puxão de orelha em menino que vi nascer. Hoje quer usar droga, quer roubar? Não é assim, não!”. Além do Conselho de Segurança, outras organizações disputam a liderança pelo controle das ações sociais do bairro, a Associação de Moradores da Água Fria e a Associação de Mulheres Dendê Sol, além de grupos evangélicos.

“Baixada”

A comunidade do Dendê é subdividida em três partes bem definidas. O setor mais desenvolvido, no qual se concentra o comércio, com ruas asfaltadas e melhores condições de vida. Um outro, que é conhecido por “Baixada”, próximo ao rio, onde 496 famílias sobrevivem em casas de madeira ou de papelão sem esgoto ou ruas asfaltadas.

E, um terceiro, que foi há pouco invadido, localizado atrás da comunidade, mas que ainda não foi mapeado pelo Conselho de

Moradores. Os moradores chamam esse lugar de Comunidade Chico Mendes, em homenagem ao seringueiro e ativista ambiental morto em 1988 na luta contra os grandes latifundiários do Acre.

Uma das nossas curiosidades era conhecer a “Baixada”, uma área mais carente do Dendê que fica às margens do rio Cocó, mas o nosso guia não recomendou nossa entrada lá. “Eu ando por todos os lugares aqui, mas nunca se sabe. Não posso deixar vocês entrarem lá agora, mas quem sabe na próxima visita a gente dá um jeito?”. No dia seguinte, tentamos mais uma vez e chegamos a um terreno mais baixo - daí o seu nome -, separado do resto da comunidade por uma muralha de mais de dois metros de altura e outros tantos de comprimento. De longe, pode se ver no fundo um tubo de esgoto gigante levando água suja para o rio, casas feitas com papelão, madeira e tijolos velhos, crianças brincando na rua de terra batida ainda molhada da chuva da noite anterior.

Na verdade, o local, às margens do rio, é um mangue, que, quando chove, alaga tudo. Casas são inundadas pela água, lixo e lama suja.

As mães logo correm para pegar seus filhos. “Lá vem chuva de novo”, reclama uma delas.

“Não aguento mais esses meninos doentes, mas não tem jeito.

Com esse tempo e essa terra”, falam parecendo tentar justificar a falta de cuidados com os pequenos.

Cozinha Saborosa: uma das formas de renda das mulheres da comunidade

“Uma ilha de pobreza em meio a um mar de riqueza” A maioria das famílias que hoje mora na comunidade do Dendê chegou ao bairro na década de 70, após serem removidas das favelas Verdes Mares, Dom Luiz, Cervejaria Brahma, Cidade 2000, Hospital Geral e Meireles. Hoje são cerca de 25 mil pessoas.

O Dendê tem graves problemas estruturais e contrastes dentro e fora da comunidade. A “Baixada” é uma localidade onde há muitas famílias em condições miseráveis, enquanto nas ruas, ao redor do comércio, muitas famílias de classe média ostentam TV por assinatura, internet e carro na garagem.

Mas a maior contradição da comunidade do Dendê está na localização. Nas proximidades de uma das áreas nobres residenciais que mais cresce em Fortaleza: a Água Fria e o Edson Queiroz, e próxima ainda de equipamentos de classe A, como universidades, shopping centers, lojas de grife, rede de fast-food ou concessionárias de veículos de luxo.

“Uma ilha de pobreza em meio a um mar de riquezas” é a realidade relatada por moradores da favela do Dendê.

Uma comunidade de gente humilde e digna escondida por trás de grandes empresas e mansões.

Muitas destas famílias vivem sem condições básicas de sobrevivência, em barracos sem água encanada ou esgoto sanitário. Há muitas casas em áreas de risco, onde, em época de chuvas, ruas inteiras são alagadas trazendo doenças e desespero para os moradores, ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana.

Mesmo com as todas as dificuldades, mesmo invisível aos olhos do poder público, a comunidade do Dendê tem seu lugar ao sol. Ela se sustenta e se desenvolve em meio aos prédios de alto luxo e toda a cidade que cresce sem perceber seu povo.

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Insistimos em entrar mais na “Baixada”, mas nosso guia nos adverte: “Olha, aí podem se esconder pessoas que não são daqui, que eu não conheço e não sei quais as intenções. É melhor que a gente fique só por aqui”. Por cima da muralha é possível ver pouco. Tiramos algumas fotos e depois nos afastamos.

Renda e moeda social

João nos leva para conhecer a dona Cilene, presidente da Associação das Mulheres Dendê Sol, instalado em um prédio com boa ventilação. Bonecas de pano e outros produtos artesanais enfeitam as paredes brancas da Associação. Ao sermos apresentadas, ela nos recebe no início com ar de desconfiança, mas logo estabelece uma conversa demorada e nos mostra as instalações, as máquinas de costura, o material para pintura, desenho e artesanato, trabalho que ajuda na maior parte da renda das mulheres da comunidade do Dendê. “A associação, graças a Deus, consegue gerar renda para as mulheres com a feirinha dos sábados. Elas, hoje, conseguem tirar um salário mínimo e, quando tem uma demanda maior, conseguem até

mais do que isso”, relata com um brilho contagiante nos olhos.

Elas produzem bonecas, brinquedos, bijuterias e até bancos feitos com garrafas plásticas. Trabalham de segunda a sextafeira. No sábado à noite, elas se reúnem na Praça da Justiça, na verdade um estacionamento por trás do Fórum Clóvis Beviláqua, onde organizam uma feirinha.

Além disso, a Associação possui uma pequena cozinha, onde encontramos duas cozinheiras preparando uma refeição encomendada por um cliente. A “Cozinha Saborosa” é mais um dos projetos desenvolvidos pela associação para geração de renda.

Também conhecemos o Banco Dendê Sol, uma banco comunitário que trabalha com moeda social. O projeto de economia solidária é um instrumento de desenvolvimento destinado a beneficiar os grupos que participam da economia local, com empréstimos que visam a gerar renda para os usuários. Seu uso é restrito à comunidade e a sua circulação beneficia a redistribuição dos recursos da própria comunidade.

Números do Dendê Habitantes: ................. 25 mil Casas em áreas de risco: ..496 Escolas: ...............................3 Posto de saúde: ....................1 Associação de moradores: ....3 Ilha digital: ..........................1 Gangues rivais: .....................4 Ruas saneadas: .....................0 Praças de lazer: ...................0 22

Fonte: Associação de Moradores Dendê Sol

MUITO

PRAZER ,

SOMOS

O PLANETA

DOS SETE

BILHÕES

primeira vista o ser humano parece não ter nada de especial.

Por que esse bicho estranho, que não possui armas naturais ou mecanismos de sobrevivência continua a evoluir e se multiplicar enquanto centenas de espécies entram em extinção?

A resposta é simples: O homem se adapta, ele cria, inventa, dá aquele jeitinho e assim sobrevive ao ciclo da natureza. Foi assim que dos aproximadamente 4 milhões de homo sapiens existentes em 10.000 A.C chegamos aos 7 bilhões.

7 bilhões de provas da sobrevivência humana, 7 bilhões de histórias, 7 bilhões de consequências ao planeta. Como chegamos até aqui? Para onde vamos? O que essa quantidade de pessoas signif ica para você e para os outros 6.999.999.999 habitantes do mundo?

A Terra, nossa modesta morada, é o quinto maior planeta, entre os 8 do Sistema Solar. Sua superfície atinge, aproximadamente, 510 milhões de quilómetros quadrados de superfície. Isso pode parecer mais do que o suficiente para os seres humanos, mas é bom lembrar que quase 71% da Terra é ocupado por água, e dos outros 150 milhões de quilómetros quadrados de terreno, menos da metade é propício para a vida humana.

Para uma pessoa, esse espaço é bem mais do que o suficiente, mas para 7 bilhões, cabe todo mundo?

Na prática, signif ica que: Se dividirmos o espaço habitável pelo número de habitantes atual, cada pessoa teria direito a 9.000m² para si, quase dois Ginásios Poliesportivos da Unifor.

Pode parecer muito, mas em 1800, você teria direito a 64.000m², mais da metade da área do Shopping Iguatemi.

1800.

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Depois de quase 200 mil anos desde o nosso surgimento, atingimos a marca do primeiro bilhão de habitantes. Que orgulho.

ou tub r

setemb s ago

jan eir o

io ma

junho

julh o

dezembro

bro em nov

Pare para contar, em quais meses no ano você tem mais festas de aniversário para ir? Novembro?

Abril? o r Esse pensamento pode parecer i re ro feve pura coincidência, mas um m a rç estudo da Universidade de o bro Pernambuco descobriu que ab to ril existem motivos científicos para os picos de nascimento no Brasil. Você, que sempre acreditou naquela lenda de que nascimento é 9 meses depois do Carnaval, pode ficar sabendo que o primeiro semestre é mais trabalhoso para as cegonhas, sendo Março o recordista. O motivo ainda não foi completamente desvendado, mas uma possibilidade é a temperatura no inverno que produz, digamos assim, um maior aconchego entre as pessoas. Foram feitos estudos parecidos no resto do mundo e o resultado você pode checar na imagem acima.

mês em vermelho: maior taxa de natalidade.

19 00.

Com a Revolução Industrial se espalhando pelo mundo, crescemos mais nesses 100 anos do que nos últimos 800.

mês em azul: menor taxa de natalidade.

19 30.

Quando você olha aquelas fotos antigas, da família toda reunida na sala, com os filhos rodeando os pais sentados no centro, não é estranho contar 10, 12 ou até mais pessoas. Naquele tempo era normal esse número de filhos. Sem o advento dos anticoncepcionais, o estilo de vida caseiro e agropecuário levava ao aumento da família brasileira. Alguns dizem que é porque não tinha televisão.

6,3

por familia em 1954

Em 1950, a maioria da população era rural e uma grande quantidade de filhos significava ajuda na lavoura. As mulheres, apenas donasde-casa naquela época, começavam a ter filhos muito cedo.

1,8

por familia em 2011

De 1999 até 2009, o número de filhos por família caiu bruscamente. Entre outros fatores está a migração da população para os centros urbanos, o ingresso da mulher no mercado de trabalho e o bom e velho anticoncepcional.

Enquanto demoramos quase toda a nossa história para atingir o 1º bilhão, o segundo chegou em apenas 130 anos.

19 59.

E o terceiro em menos de 30.

25

A pequena filipina Danica May Camacho nasceu no dia 31 de Outubro de 2011, poucos minutos antes da meia-noite e foi escolhida pela ONU como símbolo do marco.

Quem é a pessoa 7 bilhão?

Se você tivesse nascido em 21/11/2011 você: - Seria a 83,222,701,612ª pessoa a andar sobre a Terra desde o surgimento do homem.

- A 7,001,487,435ª viva hoje em dia.

- 369,892 crianças teriam nascido no mesmo dia que você.

- E mais de 500.000 espécies teriam entrado em extinção.

É impossível saber com toda a certeza a pessoa de número 7 bilhão, já que todas os dados são estimativas feitas por diversas instituições.

E você, quem você seria nesse mundo se tivesse nascido dia 21 de Novembro de 2011, data da produção desse infográfico?

O site 7billionandme.org consegue, baseado em dados coletados ao longo dos anos, calcular o seu número em relação a história do planeta. Quantas espécies entraram em extinção desde que você nasceu, como era a vida das pessoas, quantas nasceram no mesmo dia. É um bom jeito de ver que cada um dos 7 bilhões é parte da história da Terra.

Infografia

19 60.

O feminismo entra em jogo. Com a invenção da pílula anticoncepcional, o planejamento 26 e o ingresso da mulher no mercado familiar de trabalho, o crescimento mundial despenca.

19 99.

Mesmo com toda a diminuição na taxa de crescimento, nas vésperas do século XXI, dobramos a população.

Foto: Camila Nogueira

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Há coisas da vida que os nossos olhos vêem mas não nos damos conta; são portanto invisíveis. Os olhos acomodados com o rotineiro são surpreendidos com novas perspectivas de um cenário até então banal.

Detalhes da natureza,texturas, situações do cotidiano e lugares despercebidos se mostram inéditos, momentos insuspeitos, sob o olhar afiado de alguns fotógrafos. A fotografia, assim como fez o realista francês Gustave Courbet em sua pintura inovadora e revolucionária, abre espaço para novas visões.

Ao encontrar o seu próprio caminho, novas possibilidades se descortinaram para a fotografia. O artísta e fotógrafo russo Aleksandr Rodtchenko enfatizou a liberdade de criação que a câmera concedeu aos fotógrafos: “Os contrastes das perspectivas, os contrastes da luz e da forma. Pontos de vista impossíveis em outras maneiras de representação visual, encurtamentos exagerados e a impiedosa textura da matéria. Momentos inéditos de movimento, gente, animais, carros. Momentos antes desconhecidos, ou se conhecidos, certamente despercebidos.”

Na linha de Courbet e Rodtchenko, buscamos compor este ensaio: uma teia de aranha abandonada, o ralo de um bueiro desgastado pelo tempo, uma resina luminosa que escorre do tronco de um pinheiro; as crianças malabaristas pedintes no farol, vistas através do parabrisa de um carro fechado que nos separa dos seus apelos inaudíveis; o mistério das sombras que nos cercam e não notamos; tudo isso está ao nosso alcance, por todos os lados, pequenos detalhes que ganham visibilidade sob a ótica de alguns fotógrafos.

Thalyta Martins editora de imagens e fotógrafa

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Thalyta Martins

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Iago Ribeiro

Antonio de Lima

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Rachel Castelo

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DamiĂŁo Soares

Thalyta Martins

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Thalyta Martins

Suzane Lobo

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Valeska Ponce

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Farley Aguiar

Marina Duarte

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DamiĂŁo Soares

Jivago Soares

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Samara Mesquita

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“Éramos uma verdadeira ·

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texto

· andré ítalo rocha ·

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· larissa barreto

O sobralense Ary Rodrigues de Araújo Sherlock, ou apenas Sherlock (apelido herdado do pai, apaixonado leitor de As aventuras de Sherlock Holmes), completou em agosto passado 80 anos, 58 dos quais interpretando papéis para o teatro, a TV e o cinema. Já fez Stanislavski e Bertolt Brecht, entre outros. Participou da fundação da primeira televisão do Estado, a TV Ceará, em 26 de novembro de 1960. Um dos momentos mais importantes da sua vida profissional foi a sua indicação como Melhor Ator do Mundo em um festival em Barcelona, Espanha, por sua atuação na peça Fúria dos Justos, adaptação da obra Os deserdados, de Eduardo Campos.

Este ano participou das filmagens de A Sedição de Juazeiro, no papel de Padre Cícero, com direção de Daniel Abreu, e do espetáculo infantil O Fabuloso Catador de Histórias. O ator recebeu A Ponte para uma entrevista em seu apartamento, no semestre passado, e que o leitor pode conferir a seguir

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O primeiro dos dois encontros que eu teria com Sherlock estava marcado para as 10 horas de uma manhã de segunda-feira. Mas já eram 10:15 e eu ainda estava na rua, preso no trânsito da Avenida Santos Dumont. Achei melhor telefonar para ele e justificar a minha demora:

enquanto suas feições assumem expressões variadas, o que revela a sua profissão de ator.

Após finalizar o primeiro encontro para a entrevista, já na porta do seu apartamento, Sherlock entregou-me as chaves do portão para que eu pudesse sair do prédio.

– “Ary, as ruas estão engarrafadas, vou me atrasar”, avisei.

– “Ok. Estou a tua espera”, respondeu, paciente.

– “E depois que fechar, como vou devolvêla?”, perguntei-lhe.

– “Não se preocupe. Eu vou descer pela varanda uma cestinha. Aí você coloca e eu puxo. É alta tecnologia”, brincou.

Já eram quase 11h quando estacionei em frente ao prédio onde ele mora, na Rua Coronel Ferraz. Olhei para o alto do edifício e pude vêlo na varanda do seu apartamento, à minha espera. Como não havia ninguém para abrir o portão de entrada, ele gritou lá de cima que ia jogar a chave. Jogou, mas eu deixei cair no chão. Abri o portão, entrei e subi até o segundo. Assim que entrei em seu apartamento, em tom de brincadeira ele comentou: – “Parece que você é meu parente, fica se atrasando...”.

Embaraçado, não tive como responder, apenas ri. Como para quebrar o gelo, a cadela do ator, Shana, apareceu se impondo com seus latidos. “Essa daí tá imunda. Toma banho e é o mesmo que nada”, reclama.

O apartamento onde mora com o filho é pequeno, mas cheio de enfeites, quadros e fotografias. Logo de cara, não tem como não notar, na parede da sala de estar, há uma fotografia enorme, onde figuram todos os atores e realizadores da TV Ceará em 1960. Dentre os enfeites, destacam-se inúmeras estatuetas de São Francisco de Assis, santo interpretado por ele em uma das novelas que mais sucesso fez na emissora: “Pobrezinho de Assis”. No chão, quatro malas prontas para viagem revelam que, mesmo aos 80 anos, ele continua na ativa. Logo sairia para Juazeiro do Norte para cumprir mais uma etapa das filmagens de “A Sedição de Juazeiro”.

De fala mansa, Sherlock transmite calma, bom-humor e paciência. A sua voz é firme e saudosa quando rememora seu tempo na TV Ceará, emissora que considera uma “verdadeira família”. Gesticula pouco e discretamente,

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Mas, ao ganhar a rua, eu já ia em direção ao carro me esquecendo de devolver a chave.

– “Você ia roubar minha chave?”, gritou da varanda enquanto descia uma cestinha vermelha.

No outro dia marcado para a entrevista, foi a minha vez de amargar uma espera. Pontual, cheguei às 10h. Ainda tive a sorte de encontrar o portão do prédio aberto. Assim, subi rapidamente até o apartamento. Apertei a campainha várias vezes, mas ninguém atendeu.

A porta da vizinha de Sherlock se abriu e saiu uma simpática senhora para saber quem era que estava batendo. Enquanto Sherlock não abria a porta, ela ficou conversando comigo e a repórter fotográfica que me acompanhava.

Mas, depois de um tempo, a vizinha foi até a porta do ator e gritou em tom irônico: – “Aqui é onde mora o seu Ary Sherlock?”

Lá de dentro, ele respondeu: – “Já vou, estou me arrumando”.

Minutos depois, abriu a porta.

– “Eu estava me arrumando... você queria que eu os atendesse nu?”, disse rindo.

– “Você tem razão”, concordou ela, “quem é que iria querer ver uma coisa feia que nem você pelado?”.

O resultado dos dois encontros com Sherlock rendeu essa entrevista e as fotos que a acompanham.

Ponte – Como foi a sua participação na fundação da TV Ceará?

Ary Sherlock – Eu tinha uma peça para estrear no dia 27. Chamava-se “A fúria dos justos”, uma peça do Eduardo Campos. Era o começo do teleteatro na televisão cearense. Nós íamos apresentá-la ao vivo na TV Ceará. No dia 26, um dia antes, eu estava ensaiando. Inclusive, o nome original da peça era “Os deserdados”, mas nós fizemos uma adaptação para a TV. Essa mesma peça foi para uma Festival de Barcelona, onde nos classificamos em terceiro lugar e eu tive a ventura de ser indicado para Melhor Ator do Mundo, com o papel de Gedeon. No dia 27, quando essa peça foi apresentada, ela fazia parte do programa “O contador de histórias”, que era um programa da TV Ceará em que era apresentada ao vivo uma peça completa e ia ao ar todo sábado.

P – Então você nem chegou a acompanhar a inauguração?

AS – Não, infelizmente não acompanhei.

Enquanto eu ensaiava, a inauguração acontecia na Concha Acústica, na UFC [Universidade Federal do Ceará]. E lá, se apresentaram um coral da universidade, um cantor de fora - eu não estou recordando o nome dele, e o balé da Regina Picanço.

P – E como foi que entrou na TV Ceará?

AS – Naquela época, a emissora fez um concurso para selecionar seis realizadores, que era como nós chamávamos aqueles que produziam, escreviam, dirigiam e atuavam. 43 se candidataram e apenas seis

foram aprovados. Os aprovados fomos eu, Guilherme Neto, João Ramos, Augusto Borges, Lustosa da Costa e Renato Aragão. Antes de sermos escolhidos, nós passamos pelo CPET, que significa Curso de Preparação Estética em Televisão. Como o próprio nome diz, o CPET era um curso de preparação para quem queria trabalhar na TV Ceará. Nós, como realizadores, tínhamos alguns programas sob nossa responsabilidade. Por exemplo, às segundas, quartas e sextas, o programa TV de Romance, que eram adaptações de obras clássicas, era feito por nós. O curioso do TV de Romance é que nós só produzíamos adaptações de obras com mais de 60 anos, porque na época havia uma lei que dizia que uma obra com mais de 60 anos podia ser reproduzida sem necessidade de autorização.

P – Quais eram outros programas de responsabilidade dos realizadores?

AS – Nas terças e quintas, tínhamos o Videorama, que eram apresentações de novelas regionais, com duração de no máximo um mês. Só eu que fui teimoso e desobedeci essa regra, fazendo uma novela de 6 meses, que por sinal foi minha última novela. Era “O pobrezinho de Assis”, que era sobre a vida de São Francisco de Assis. E o bom do Videorama é que nós não tínhamos problemas com direitos autorais, já que eram obras nossas.

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P – A novela “O pobrezinho de Assis” fez muito sucesso. Quais lembranças você tem dessa novela?

AS – Essa novela foi escrita por mim, e eu lembro de ter lido 43 livros sobra a vida de São Francisco de Assis para poder escrevê-la.

Uma das principais dificuldades dessa novela, e de outras também, é que não tínhamos a tecnologia avançada que se tem hoje. Para fazer algumas cenas mais complicadas tínhamos que improvisar alguns truques, o que hoje é muito fácil. Nós fazíamos cenas de São Francisco subindo para o céu, recebendo as chagas. Tudo isso a gente fazia com inteligência, audácia e poucos recursos.

P – Tinha gente que achava que você realmente era São Francisco de Assis.

AS – Sim, tinha demais. Eu lembro, inclusive, de uma situação muito embaraçosa que passei.

Eu estava na TV, todo vestido de São Francisco de Assis e decorando o meu texto, quando de repente, uma mulher com um filho nos braços, apareceu na minha frente e jogou a criança nos meus pés, dizendo: “Salve meu filho, por

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favor!”. A criança estava doente. Eu me senti em um impasse terrível. Não sabia se tirava a fé daquela criatura ou fazia de conta que era mesmo São Francisco. O que eu podia fazer?

De última hora, resolvi fingir que havia curado a criança. Ela saiu dizendo: “Obrigado, obrigado, Deus lhe pague!”. Eu espero que aquela criança tenha realmente se curado (risos).

P – Quanto às peças, quais obras vocês adaptaram?

AS – Ah, nós fizemos todas as peças de José de Alencar. Inclusive tem uma história curiosa sobre a vez em que adaptamos Lucíola. Havia, na época, em Fortaleza, um jornal católico chamado O Nordeste, que era muito moralista. Eles ficaram muito irritados com uma cena que foi exibida na TV Ceará, quando apresentávamos Lucíola.

Na cena, vários homens, inclusive eu, estávamos em um casa de jogos e uma atriz, que tinha apenas 17 anos, fazia uma dança muito sensual. Durante essa dança, a câmera fez uma imagem dela apenas começando a tirar a parte de cima de sua roupa, e logo em seguida, fazia uma imagem de seus pés, mostrando

a calcinha caindo no chão. A impressão que dava era que ela havia tirado tudo, mas não tinha tirado, e nada foi mostrado. Porém, o jornal criticou pesado, e o Juizado de Menores proibiu a exibição da peça, só porque a atriz tinha só 17 anos e a cena dava a impressão de que ela estava nua.

P – Como vocês faziam para conseguir os figurinos?

AS – Nós tínhamos a Dona Francisca, que era uma costureira maravilhosa. E quando costurava, ela se baseava em um livro que o Péricles Leal trouxe da França. Esse livro tinha todas as vestimentas típicas de todas as épocas e todos os lugares. Além disso, tínhamos que improvisar. Como era tudo ao vivo, tínhamos que trocar de roupa muito rápido e, às vezes, eram de 8 a 10 roupas diferentes. Lembro nitidamente da Cleide Holanda, uma excelente atriz que fazia mais novelas de época. Como não tinha intervalo, a Cleide vestia de 3 ou 4 vestidos de uma vez, um em cima do outro. Daí, ela ia só sacando e voltando pra cena. Em relação às perucas, também tínhamos nossos truques.

Lembro que costumávamos deixar o cabelo e a barba grandes, porque nunca sabíamos quando íamos fazer um papel com cabelo ou barba grande.

P – Como era o seu dia-a-dia na TV Ceará?

AS – Eu praticamente morava na emissora.

Lembro que, na época, eu pagava um hotel, mas nunca ia lá. Era muito trabalho. Às vezes, dava 4 horas da tarde e eu sentia uma dor de estômago muito forte, daí eu me dava conta de que não tinha comido nem dormido nada. Eu passava a madrugada inteira escrevendo peças e novelas. Durante o dia, eu resolvia problemas de cenário, de figurino, dirigia, atuava. Quando eu precisava dormir, pegava um colchão da emissora, estendia no chão e dormia.

P – E o assédio, como era, havia muito?

AS – Nós éramos famosíssimos. Não só pelo nosso talento, mas também porque éramos poucos artistas. Hoje em dia o Tarcísio Meira é famoso, mas têm outros mil atores famosos como ele. Aqui só tinha a gente. E todo mundo queria saber da gente. Inclusive, havia, aqui em Fortaleza, revistas especializadas em falar de gente famosa, que dizia até qual era a pasta de dente que nós usávamos, o sabonete, tudo! Era terrível. O sucesso era tanto que as pessoas nos chamavam para participar de festas de aniversários, só para agradar. E como nós gostávamos de agradar o público, acabávamos indo. O problema é que nós chegávamos muito tarde, pois a programação acabava meia-noite e a gente só podia sair da TV depois desse horário. Foi por isso que os artistas da TV ganharam o apelido de corujas. Além disso, os grupos de teatro faziam questão que a gente fizesse parte de suas peças, para poder atrair público. E quando aparecíamos, era uma loucura, principalmente eu ou o Emiliano Queiroz.

Eu não podia sair na rua. Eu morava na beira

da praia, e não podia ir à praia. Uma vez, num dia de domingo, eu fui à varanda da minha casa. Começou a juntar muita gente e eu não tive paz. Foi aquela loucura.

P – O que as fãs queriam saber sobre vocês, além da pasta de dente e do sabonete?

AS – Todo mundo queria saber com quem a gente dormia ou deixava de dormir, se éramos casados, essas coisas. Aquela época foi também um período de muito preconceito. Tinha ainda o tabu da virgindade e do homossexualismo, que hoje não tem mais. Daí as pessoas queriam saber se aquela atriz era ou não virgem, se aquele ator era “veado” ou não. Tinha muito isso. Uma hora chegou a incomodar. No começo, a gente quer popularidade, mas depois isso satura. A gente vê que passa a não ter mais vida

privada, e isso não é legal. O Emiliano Queiroz sempre se incomodou. Eu lembro que, sempre aos domingos, a emissora era aberta para que os pais levassem seus filhos para nos conhecer.

O Emiliano não gostava. Ele dizia que se sentia em um zoológico, onde nós éramos os bichos.

Eu, ao contrário, sempre fui muito receptivo com os fãs e com as crianças.

P – Na sua opinião, qual era o segredo do sucesso da TV Ceará?

AS – O segredo do sucesso era o planejamento.

Na TV, tudo era muito bem planejado. Quando a televisão veio para o Brasil, em 1950, havia muita improvisação, mas, quando ela veio para o Ceará, nós já tínhamos 10 anos de experiência de televisão no País. Por isso, o Péricles Leal trouxe o CPET [Curso de Preparação Estética em Televisão]. No departamento de jornalismo, tudo também funcionava muito bem. Às vezes, as pessoas nos encontravam na rua e pediam que improvisássemos algo e contássemos algo engraçado, mas não era assim. O sucesso da TV Ceará estava justamente no planejamento.

P – Como era o grupo pioneiro da TV no Ceará?

AS – Ah, nós éramos uma verdadeira família. Éramos muito amigos, a gente se ajudava.

Era como nosso chefe maior, dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, dizia: “Aqui, tudo que se faz, se faz com amor”. Era essa frase que conduzia a TV Ceará e aqueles que faziam parte dela. Além disso, havia o talento. Nós tínhamos grandes estrelas, muitas das quais eu descobria e dava nomes artísticos.

Eu lembro que, na década de 60, um grande ator chamado José Teixeira Mendes Filho chegou à TV Ceará. Ele era ótimo, mas não tinha um bom nome. Então eu o batizei como Jório Nertal (risos). O pai e a mãe dele morreram chamando-o de Jório Nertal. As pessoas me chamavam de “Talent’s discover”, que significa descobridor de talentos, em inglês.

P – Esses talentos vinham do teatro?

AS – Geralmente, no Brasil todo, naquele tempo, o que bombava era a radionovela.

Então as grandes estrelas vinham do rádio.

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No entanto, muitos não davam certo. Por exemplo, muitas atrizes faziam, no rádio, papéis de moças ingênuas, com vozes doces e meigas, mas pessoalmente eram enormes de gordas (risos). Essas não podiam ir para a televisão fazer novela. A mesma coisa acontecia no cinema mudo. Quando veio o cinema falado, mulheres belíssimas não podiam atuar porque tinham vozes horrorosas. Enfim, os atores vinham do teatro e do rádio, mas a maioria era do rádio.

P – O que você pensa da televisão que é feita hoje?

AS – Eu fico muito triste com a televisão de hoje. Os canais de hoje praticamente mostram sexo explícito. E eu sou contra isso. A televisão é algo que entra na casa do telespectador sem pedir licença. Além disso, é um meio de comunicação muito poderoso e capaz de influenciar as pessoas. Lembro de uma novela que fizemos, que tinha um personagem que se enforcava. No dia seguinte, em Fortaleza, teve-se notícia de muitas pessoas que se enforcaram. Foi uma coisa terrível.

Por esses motivos, eu acredito que a televisão deve ter a função de educar, e não de deseducar. Eu até prefiro não reclamar muito, porque senão vão dizer que eu tô reclamando à toa, porque naquele tempo era diferente e blá-blá-blá.

P – E da TV Ceará, você tem saudade?

AS – Até hoje eu tenho saudade. Mas não é por isso que vou morrer. Foi uma época muito boa, éramos uma verdadeira família.

Mas a gente tem que seguir a vida. Se eu não seguir minha vida, estou lascado (risos).

Mas que a gente sente falta, a gente sente falta, sim!

Foto: Internet

P – Durante o regime militar, a TV Ceará chegou a sofrer algum tipo de censura?

AS – Nós não sofríamos censura porque a censura era feita dentro da própria emissora.

Nós éramos instruídos a não escrever nenhuma peça ou novela que tivesse algo contra o regime militar. Por isso, a gente costumava adaptar histórias de época, porque eram histórias “água com açúcar” e não traziam perigo algum.

TV Ceará A emissora foi inaugurada no dia 26 de novembro de 1960, através do Canal 2, consagrando-se como a primeira emissora de televisão do Estado. Ela chegou aqui como componente dos Diários Associados, que na época era o maior conglomerado de veículos de comunicação do Brasil, sendo comandado pelo jornalista e empresário Assis Chateaubriand. A festa de lançamento aconteceu na Concha Acústica da Universidade Federal do Ceará, rendendo reportagens nos principais jornais de Fortaleza.

Estavam presentes várias autoridades, entre as quais o prefeito da cidade, Cordeiro Neto. Além deles, apenas quem teve a sorte de estar perto de um dos 100 televisores espalhados pela capital pôde acompanhar o início da TV Ceará. Em sua programação, que começava pela manhã e ia até meia-noite, o canal ofertava ao telespectador cearense novelas, musicais, programas de auditórios e telejornais. Tornavam isso possível grandes estrelas e talentos como Guilherme Neto, Narcélio Limaverde, Augusto Borges, Ary Sherlock, Emiliano Queiroz, Renato Aragão, Karla Peixoto e Armando Vasconcelos, todos liderados por Eduardo Campos, o Manuelito, superintendente da emissora. Dentre as produções que fizeram sucesso na TV Ceará, estão a novela “O pobrezinho de Assis”, a apresentação de peças de teatro no programa “O contador de histórias”, a comédia “Vídeo Alegre”, da qual Renato Aragão fez parte, e o telejornal “Repórter Cruzeiro”. A chegada do videotape, em 1965, e a crise financeira dos Diários Associados, na década de 70, foram os dois principais fatores que contribuíram para o declínio da emissora, saindo definitivamente do ar em 1980.

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·

texto

· érika zaituni ·

fotos

· arquivo pessoal

O relato, a seguir, é uma homenagem. Ele conta a história do jovem estudante e poeta Marcelo Bittencourt, morto no ano passado. Marcelo esteve internado algumas vezes, todas em consequência de tentativas de suicídio.

Quem o conheceu, lembra dele sempre com um sorriso largo no rosto, a testa franzida, o suor escorrendo pelo corpo, a barba por fazer. De forma experimental, o depoimento abaixo está na primeira pessoa, como se fosse a voz dele a falar. Não é fruto de psicografia ou de alguma carta que ele tenha deixado. É fruto de uma intimidade intrínseca, de leituras e releituras de seus textos, coleta de documentos e de entrevistas nostálgicas, carregadas de tristeza e saudade com a família e com os amigos. Há trechos em grifo que são extratos dos seus escritos. O texto contou com o apoio e ajuda de sua mãe, Margarida Ximenes, e de suas irmãs, Marianna e Manuella, sem os quais não teria sido possível a sua publicação

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“Nasci às cinco e meia da tarde do dia trinta de dezembro de mil novecentos e setenta e oito, um sábado, na cidade de Fortaleza da Nossa Senhora da Assunção, antiga província do Siará Grande. Morei, durante parte da adolescência, em Petrópolis e Rio de Janeiro.

Estudei em escola católica, mas optei pela igreja do mundo. Escutei muita música de Nélson Gonçalves, Noite Ilustrada, Roberto Carlos, Maria Bethânia e Chico Buarque por intermédio dos pais (mais tarde, por meu padrastro Chicão). A família era muito importante pra mim. Nessa época ainda não a definia como instituição. Rabiscava seus nomes dando forma de coração - o de minha mãe Margarida, uma rosa que me fez ex-cravo, minhas irmãs Marianna e Manuella, o de meu pai, Gentil Marcelo de Barros Bittencourt. E, assim, já ensaiava, aos cinco anos, a poesia concretista. Quando meus pais se separaram, eu me perguntava pelos cantos dos papéis o que iria fazer sem a presença dele. Estava com vinte e sete anos quando meu velho morreu, mas essa mesma pergunta, já não senti necessidade de me fazer.

Quanto à minha infância, fui o primogênito de três e único menino, fruto do segundo casamento de um homem louco para ser pai.

Por algum tempo fui um príncipe, cheio de mimos e vontades. Meus pais tinham uma vida financeira muito boa. Eu tinha tudo o que queria. Depois nasceram minhas irmãs, Manuella e Marianna, e esta atenção ficou um pouco dividida. Sempre me consideraram um menino muito inteligente, pois tirava ótimas notas, era doce com meus familiares e destruía todos os brinquedos pra saber como funcionavam. Mas tudo isso até, aproximadamente meus nove anos, quando meus pais, definitivamente, se separaram. Depois disso muita coisa mudou. Passei a ser agressivo com todos, não estudava e fui expulso do colégio.

Sinto que era uma forma de chamar a atenção deles. Acho que eu queria dizer: - ‘Ei! Eu era tão feliz. Por que tudo mudou? Não me abandonem!!’ Enfim... Daí, a solução que encontrei foi convencer meus imaturos pais a mandar-me para longe, para um colégio interno em Petrópolis-RJ. E lá...lá a vida real começou a ser construída. Lá, conheci a so-

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lidão, o álcool, os amigos, a música... Lá fui trilhando o meu caminho. Quanto aos meus pais, não os culpo. Foi o que eles acharam certo na época. Um primo mais velho foi para a mesma escola e os caminhos foram diferentes. Mas, quem somos nós pra julgar qual caminho foi o certo? Certo pra quem?

Esta resposta acho que nunca teremos.

Na adolescência, conheci o rock’n roll através das bandas da geração de 80 e, depois, nas entidades de Jim Morrison, Raul Seixas, Jimi Hendrix, Kurt Cobain e aí vai... Vi shows de Chico Science e dancei debaixo da chuva com ele. A música me ensinou sobre a vida.

Aprendi a tocar baixo e vomitei sobre meu instrumento em festivais de punk rock da cidade. Algum tempo depois, fui integrante da banda Johnny Framboesa. Era divertido observar a expressão no rosto das pessoas quando nos perguntavam o significado desse nome. Criamos esse personagem e todos acreditaram que ele realmente existia. A boa música corria em minhas veias, nos bares que frequentava, nos quartos sujos que alugava pra morar, nos bancos da praça da Gentilândia que escolhia pra me acalentar. Mas tal inclinação está intrinsecamente ligada à literatura. Nela as coisas começaram

com Monteiro Lobato (ainda bem). Posteriormente, as descobertas de Drummond, Vinícius e Fernando Pessoa. Mais tarde, li Ginsberg, Keroack, Bukowisky e o grande maldito José Alcides Pinto, fato que marcou profundamente a minha visão de mundo. Por causa desses caras, decidi estudar filosofia e praticar poesia.

Fui parar na Universidade Estadual do Ceará e morar no Benfica, bairro boêmio de Fortaleza.

Meus amigos costumavam brincar, perguntando como não fui jubilado. A verdade é que passei mais tempo no ‘cantinho da filosofia’ do que nas disciplinas dela. Vestia um macacão jeans propositalmente manchado de tinta e caminhava até a UECE, Spinoza na cabeça. Mas, antes de chegar, encontrava o barzinho. Sabia que tinha nada que fumar um atrás do outro, mas fumava. Sabia que tinha nada que beber uma atrás da outra, mas bebia. Acendia outro careta e esperava a chuva passar. Eram três da tarde mas não parecia. Perecia. O abandono só não era total porque me faziam companhia o vício, o t(r)emor e o suor. Sujo. Sólido.

Sórdido. Estava vivendo uma trajetória deleuziana. E sentado na mesa de bar discutia com Nietzsche, Goethe, Bakunin.

Mamãe entendia, mesmo sem alegria, quando lhe dizia que queria ser normal. Que se eu fosse normal seria mais feliz. Mas eu não podia. Já tava cansado de ter de fingir. Fingir pra todos o tempo todo. Fingir que tô alegre, que sou feliz, que tudo é belo, que amo as pessoas. Fingir que corro ao encontro de alguém e o @ braço enquanto meu vizinho passa frio e fome ao lado do restaurante onde jogam os restos fora e não permitem que toquem em seu lixo sagrado. Restos que a elite, que mantém a porra toda do jeito que tá, rejeita. Enquanto o outro, rejeitado como os restos (ele também é um resto) fica lá, sendomerdando. Eu, de bucho cheio, vou gastar o pouco dinheiro que usurpo dos merdas que pensam que sou uma pessoa alegre e feliz com bebidas amargas que me fazem crer no que finjo. Eu, então, acredito na palhaçada toda criada por mim e por todos de minha esfera que me fazem companhia na estrada do fingimento, da mentira, do crime, da canalhice e do cocô.

Para acalmar essa raiva toda, eu publicava em algumas revistas, sites, coletâneas e fanzi-

nes (um deles foi de minha autoria, O Samba do Crioulo Doido no Bordel de Mdme. Clessy).

Fazia performances e peças de teatro (tatuei no bíceps seu símbolo universal), produzia eventos nas horas vagas e organizava um livro inacabado, meu TEXTOS RUÍNaS. Fiz muitos amigos e inimigos também, por causa da minha personalidade explosiva, de minhas convicções tempestivas, do alcoolismo e da depressão constante em que vivia. O que me deprimia era pensar sobre a inegável metamorfose da sociedade em biotério: porque desde sempre fomos criados para sermos experimentados. Pois desde a nossa alimentação, passando por todos os estágios de subordinação desnecessária, tais como pagar transporte público, dar a cervejinha para o funcionalismo público, baixar a cabeça, dizer ‘sim, senhor!’ e ser extorquido muitas vezes sob violência física pelos responsáveis da segurança (?) pública, a obrigatoriedade do serviço

Grude, como era chamado por alguns amigos, interrompe discussão filosófica para pousar com sua testa interrogativa no pátio do Centro de Humanidades da UECE

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Marcelo em setembro de 2010, no Festival de Teatro de Guaramiranga.

Como o próprio legendou a foto: “carregado”.

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militar (para legitimá-lo alegam, além dos deveres de defesa de nossas belas fronteiras, o pretexto de que ‘se serve ao exército para aprender a ser homem’), a obrigatoriedade do voto, institucionalizando perpetuamente o cabresto nos eleitores, até a morte em vida pela escravidão, são experimentos a que somos submetidos sumariamente por aqueles que podem, que têm poder. Experimentos que estão para além da vontade, pois uma vontade sem consciência é uma vontade que não é vontade e sim escravidão, logo, morte. Deixar-nos ser experimentados por (ou experiências de) quem o faz de forma velada sem o nosso consentimento prévio é suicidar-se ou, ao menos, entregar sua vida aos desígnios de sabe-se lá quem. E é o que fazemos diariamente. Damo-nos a esta morte que está para além da morte física. É a morte da imanência, a nossa morte em vida.

E por falar em morte, acabei lembrando de suicídio, tema que escolhi para a minha monografia. Na minha opinião, esse ato é apenas uma maneira mais rápida de fazer a passagem. Questão de livre-arbítrio.

Na primeira vez em que tentei, em 1997, estava na casa de mamãe.

Tinha vinte anos e estava arrasado com o fim de um namoro com uma garota que, pra mim, significava a junção de mar&sol. Tão sensível. Me debrucei no para-

peito da varanda do nosso apartamento, que ficava no quarto andar. Minha irmã Marianna sentiu um aperto no peito e foi correndo em direção à sala, mas quando chegou lá, eu já estava pendurado pra fora. Não sei de onde ela tirou forças, mas conseguiu puxar-me de volta.

A segunda vez, em 1999, também por causa de uma namorada, Kerolaine, aconteceu da mesma forma. Na época morávamos no segundo andar de outro apartamento. Minha irmã Marianna pressentiu novamente e se encaminhou para sala de ‘mal-estar’. E lá estava eu, pendurado de novo. Só que, desta vez, suava muito e estava agitado. Pedia, pelo amor de Deus, que ela não me deixasse cair, mas não conseguiu.

Senti suas mãos escorregando e fincando as unhas em meus braços. Quando ela percebeu que não conseguiria me puxar de volta, gritou para o porteiro: ‘Seu Paulo, me ajuda e tenta “aparar” a cabeça dele!’. Escapuli. Quebrei duas vértebras e a fé no amor. Mas no fundo, eu sabia, ia acontecer de novo. A terceira vez foi em agosto de 2003, às seis horas da manhã de um domingo. Ismaela Berinjela. Cortei os pulsos a esta fêmea a que chamo por nomes estranhos: crisântemo pousado sobre falanges e dedos mortos [mortos dedos meus, Ariadne de fio disposto

Foto: Marília Pedroza

em labirinto de livre acesso, [d i s p e r s o, fênix ressurgida dourada, cunhã de luz, patuá que livra do mau agouro. A esta mulher que entrego o meu ser. A própria Eurídice encontrou Orfeu de rosto pálido caído ao chão. Enquanto o sangue jorrava em sua roupa branca, linda orixá, eu devaneava sobre Cleópatra, Nietzsche, Ana Cristina César, Torquato Neto, Sylvia Plath e sobre Hemingway, com quem tenho muito em comum. Ao longo de sua vida, o escritor abordou o suicídio em seus textos, cartas e conversas. Seu pai suicidou-se com problemas de saúde e de dinheiro. Ele usou a mesma arma e, assim como escolhia para a maioria de seus personagens, escolheu um fim trágico para si. E o meu? A quarta vez eu não tentei, consegui.

Morri no dia seis de outubro de dois mil e dez, uma quarta-feira, na cidade de Fortaleza da Nossa Senhora da Assunção, antiga província do Siará Grande. Não foi mulher, partido ou crença que me levou a isso. Foi uma escolha minha por mim e pronto. Ninguém teve culpa. Na verdade, culpa é uma invenção judaico-cristã e eu me recuso a senti-la. Aconteceu assim: Por volta de onze horas do dia cinco de outubro encontrei com um colega da UECE no bar Cantinho da Filosofia, nas imediações da mesma. Ele comentou que iria levar sua namorada, também estudante de filosofia, ao motel. Falei que, gentilmente, poderia emprestar meu apartamento. O que estou chamando de apartamento era, na verdade, um quartinho verde-musgo com um banheiro úmido e apertado, uma cama velha encostada ao lado da porta, uma geladeira que funcionava mal e um fogão de duas bocas que eu costumava usar mais para acender cigarro do que para cozinhar.

Depois de tomarmos umas cervejas no bar até às duas da tarde, caminhamos até minha residência e continuamos a beber. Às quatro da tarde entreguei-lhe a chave para que meu colega pudesse ir buscar a namorada e voltei ao bar. O casal chegou por volta de nove da noite e, às onze, tiveram seu coito interrompido por meus gritos do portão.

Subi, deitei meu corpo embriagado em uma rede ao lado deles. Tomamos algumas doses

Os suicidas deixam pistas O suicídio é um fenômeno complexo, que tem chamado a atenção de pesquisadores e despertado o interesse de artistas durante séculos. Segundo a tanatóloga Giselle Mesquita, hoje, o suicídio está sendo tratado como uma questão de saúde pública. José Bertolote, responsável pelo setor de Transtornos Mentais e Cerebrais da OMS (Organização Mundial da Saúde), informa que a cada 40 segundos, alguém comete suicídio no mundo, o que corresponde a três mil mortes por dia. Estima-se que, para cada suicídio consumado, houve 20 tentativas.

No Brasil, Fortaleza ocupa atualmente a 5° posição em notificações de mortes por suicídio. Esses dados não são exatos, já que existe uma subnotificação dos casos, pelo fato de que muitas dessas mortes, por diversos fatores, são noticiadas como sendo acidentes. A OMS criou, em 1999, uma iniciativa mundial para prevenção do suicídio, o SUPRE-MISS (da sigla em inglês: Estudo Multicêntrico de Intervenção no Comportamento Suicida). Dessa iniciativa, faz parte até um Manual para Profissionais da Mídia, que enfatiza o impacto que a cobertura midiática pode causar nos suicídios e orienta como abordá-lo de uma maneira responsável. O assunto ainda é tabu para a imprensa.

A tanatóloga Giselle diz que uma das grandes preocupações é o aumento de casos de suicídios associados ao transtorno da depressão, “em especial na adolescência, período de maior risco de manifestação, mas com um aumento significativo nos adultos jovens. Na clínica, tenho observado um número cada vez maior de pacientes portadores de depressão com ideação suicida”. E faz um alerta: “Nunca devemos ignorar as pessoas que falam de ideações suicidas, pois essas podem realmente virem a consumar o fato. Devemos estar atentos, pois a maioria das pessoas que cometem o suicídio deixam pistas de que o faria”.

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de cachaça enquanto ouvíamos música e li para eles um trecho do livro Assim Falava Zaratustra, de Nietzsche. Deixei-os lá dormindo e saí pra tomar mais um trago. Quando voltei, uma hora da manhã, adentrei a casa e senti desde a espinha: havia algo de nada no reino priapó. Em meu colchão sevandijas e sumos sexuais variados. Em meu corpo também. Meus versos, que saíam gagos do gargalo da minha garganta, espalhados em meio às cinzas, o esporro e o escarro cinza, me deixavam triste demais para dormir. Lembrei de uma conversa que tive com o poeta Léo Mackellene, onde dizia pra ele que Deleuze escreveu que a gente precisa experimentar tudo nessa vida: a sensação de matar uma pessoa, a sensação de morrer. Depois acrescentei que uma forma de experimentar os dois ao mesmo tempo seria se matando: a sensação de matar e morrer.

Então, com os punhos de minha rede fétida e

encardida, me enforquei. Às três da manhã, a menina acordou para ir ao banheiro e deparou-se comigo, o pescoço entrelaçado, joelhos dobrados. Pensou que se tratava de uma performance teatral. Bravo!

No dia quinze de outubro de dois mil e dez, nove dias após meu suicídio, um amigo de codinome Sr. Hyena escreveu uma carta aberta dizendo que grande parte da cidade estava de luto. Que todos estavam chocados e que eu conseguira parar o tempo. Não era essa a intenção. Mas espero que o mundo ressurja mais aberto, que as pessoas se tornem menos preconceituosas - não que eu acredite nisso, claro, mas seria lindo me ver com tal poder. Não deixei nenhuma carta idiota. Minha poesia fala por mim. As pessoas não podem mais me ver, mas podem ler a minha última história, a história da carochinha. E outras tantas”.

“acordou e foi direto à cloaca. uma dor no peito. outra no estômago. outra no fígado. outra no baço. outra no braço. sentou e deu início a sinfonia escrota: acordou e foi direto à cloaca. uma dor no peito. outra no estômago. outra no fígado. outra no baço. outra no braço. sentou e deu início a sinfonia escrota: TRRÚÚÚ BLÉÉÉRRG BLÉÉÉRRG PRRÚÚÚ BLOFFF TRÚÚÚ TRÚÚÚ... vomitarcagar vomitarcagar vomitarcagar. todo melado daquilo, com dores ainda piores, pensou por longos segundos na mulher que não o amou, no filho que nunca o amaria, no amor que nunca teve por si e no sangue que punha corpo a fora pelo cu e pela boca. tentou levantar. arrastou-se pelo chão imundo até o armário onde mantinha suas

pílulas, seus trapos e a corda para o fim. no meio do trajeto mais sangue em meio a vômito jorrou que, agora, se misturavam às guimbas, aos insetos e a toda sujeira que não se conseguia identificar. caiu. apesar de muito tentar, não conseguiu mover-se. neste momento, com os olhos postos em baixo do sofá, olhava fixamente uma barata. sua vista começou a tontear e escurecer. a Kafkazinha rodava e escurecia junto. depois: NADA. Késia, que, por uma benevolência cristã, a cada dois sábados tentava manter o chiqueiro em ordem, abriu o apartamento e o encontrou no chão. normal. o sacudiu: -acorda, porra, acorda!!! sua cabeça caiu pro lado com os sopapos que Késia lhe aplicava. de sua boca Kafkazinha saiu para contar a estória”.

Ilustração retirada do Livro “Encontos e desencontos” / Nuno Gonçalves (org.). - Fortaleza: ED!BAR, 2007

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Tanatóloga explica transtorno depressivo As estatísticas da OMS (Organização Mundial de Saúde) nos mostram que 5% da população mundial sofre de depressão, sendo a maior incidência em mulheres. Estima-se que 10% da população apresentarão pelo menos uma crise de depressão durante a vida, sendo que, na maioria dos casos, tende a se tornar um transtorno crônico. Porém, percebe-se que somente cerca de 40% das pessoas que sofrem desse transtorno buscam tratamento adequado. Acredita-se que muitos desses casos deixem de ser tratados por falta de um diagnóstico adequado. É importante ressaltarmos a diferença entre a depressão e uma tristeza prolongada. Quase todas as pessoas experimentam sentimentos temporários de tristeza em certos momentos da vida, em especial em processos de luto. No entanto, eles tendem a desaparecer sem tratamento. A depressão é uma patologia provocada por fatores genéticos, hormonais, familiares, psicológicos e sociais, com sintomas específicos, com duração e gravidade que impossibilitam uma vida cotidiana normal.

Um dos principais sentimentos associados a essa idéia é a desesperança, muito presente na depressão, onde o sujeito não consegue vislumbrar nenhuma outra forma de dar fim a seu sofrimento que não seja eliminando a

própria vida. Ressalto também, que essa decisão pode ser tomada diante de uma crise ou forte tensão emocional provocada por diversas situações como, por exemplo, rompimento de um relacionamento, perda do emprego ou de um ente querido. O risco torna-se ainda maior se a esses fatos forem associados o uso de álcool ou drogas, o que pode dificultar um diagnóstico e tratamento adequado.

O ideal é que o individuo que esteja passando por esse sofrimento busque ajuda, ou que a família ofereça essa ajuda caso perceba os sinais. O tratamento deve ser feito inicialmente, nos casos mais graves, através da terapia medicamentosa. Mas a psicoterapia com um profissional qualificado para lidar com essa temática torna-se indispensável, visto que esses pacientes que buscam ajuda psicoterápica adquirem autoconhecimento e mecanismos saudáveis para lidar com as dificuldades cotidianas, o que favorece uma melhor qualidade de vida.

No entanto, caso o ato seja consumado, é necessário também um olhar especial para os sobreviventes desse fato devastador, em especial a família, pois esse torna-se um dos lutos mais difíceis de ser elaborado.

Giselle Maranhão Sucupira Mesquita (Psicóloga e professora da Universidade de Fortaleza)

O Mito de Sísifo O assunto já foi tema de reflexão também de filósofos. O escritor e filósofo francês Albert Camus diz em O Mito de Sísifo (Ensaio Sobre o Absurdo), que só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. “O suicídio sempre foi tratado somente como um fenômeno social. Ao invés disso, aqui se trata, para começar, da relação entre o pensamento individual e o suicídio. Um gesto como este se prepara no silêncio do coração, da mesma forma que uma grande obra. O próprio homem o ignora. Começar a pensar é começar a

ser minado. A sociedade não tem muito a ver com esses começos. O verme se acha no coração do homem. É ali que é preciso procurá-lo. É preciso seguir e compreender esse jogo mortal que arrasta a lucidez em face da existência à evasão para fora da luz.

Os jornais falam freqüentemente de ‘profundos desgostos’ ou de ‘doença incurável’.

Mas matar-se é de certo modo, como no melodrama, confessar. Confessar que se foi ultrapassado pela vida ou que não se tem como compreendê-la”.

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É comum, no dia-a-dia, ouvirmos mensagens transmitidas por caixas de sons em supermercados, aeroportos, rodoviárias e lojas de departamentos informando sobre a promoção de algum produto, chamadas para o embarque de passageiros ou ainda o horário de saída do próximo ônibus. E nunca nos perguntamos de quem são essas vozes, como serão os seus donos. É o que acontece também quando falamos com telefonistas para reclamar de algum produto ou serviço, ou quando ouvimos a voz metálica do locutor de um programa radiofônico. A Ponte foi conhecer um pouco dessas duas profissões, através das histórias de Rose Marie, uma ex-operadora de telemarketing em um Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC), e de Camila Carla, locutora de um famoso programa de rádio

VOZES anônimas ·

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· célio scipião · natália Silva ·

fotos

· ercília rocha

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Apesar de receberem treinamento para saber lidar com as emoções, os operadores, muitas vezes, ficam em dúvida se devem agir com a cabeça ou com o coração

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Quando entramos em contato por telefone com algum Serviço de Atendimento ao Cliente (SAC), em geral, somos atendidos por operadoras de telemarketing que realizam um procedimento padrão impessoal e formal. Com uma voz que parece ensaiada, as atendentes, quase sempre mulheres, perguntam por nossos endereços, números de CPF e RG, data de nascimento ou o nome dos nossos pais com um tom de cordialidade burocrática. Mal imaginamos o rosto delas, menos ainda sabemos o que se passa no dia a dia dessas profissionais “sem rosto”.

Rose tem 34 anos e trabalhou como operadora de telemarketing durante 3 anos, em uma grande empresa de telefonia nacional, no cargo de Atendente Receptiva de Retenção. Ou seja, sua função era atender clientes que queriam cancelar suas linhas telefônicas e convencê-los a mudar de ideia. Em uma rotina de trabalho de seis horas diárias, seis dias por semana, ela atendia, em média, 30 clientes durante o expediente. Em todo o período, em um cálculo aproximado, acredita ter atendido por volta de 27.500 clientes.

Enfrentou muitas situações difíceis e outras engraçadas. Conta que um dia chegou a ser ameaçada por um cliente. “Um homem do Rio Grande do Norte disse que viria até Fortaleza para me matar, porque o serviço que ele queria que eu fizesse não podia ser feito. Eu tentei explicar que eu não podia atender à solicitação dele, porque ele estava inadimplente, mas ele não entendeu e disse que iria dar um jeito de me fazer algum mal”.

Apesar do susto, a ameaça não se concretizou.

Uma situação engraçada foi quando estava atendendo um cliente e o deixou aguardando no mute (na espera). “De repente, ele disse: ‘A voz dela é bonita, mas eu acho que ela não é bonita.

Essas atendentes de telemarketing que têm a voz bonita são umas barangas’. Eles imaginam que pelo fato de a voz ser bonita, a gente é totalmente o oposto da voz”. Mas Rose não pensa assim.

“Quando eu ligo para um serviço de telemarketing, e o atendente tem uma voz de locutor, eu imagino logo que ele é bonito e alto. Mas, se for uma mulher, mesmo que ela tenha uma voz bonita, eu imagino que ela é feia”.

A voz de uma pessoa desconhecida pode mesmo encantar alguns e alimentar a sua imaginação. Um homem ficou tão encantado com a voz de Rose, que lhe fez uma oferta.

“Um cliente da Bahia disse que eu tinha a voz muito bonita e perguntou se eu tinha planos de morar lá. Eu respondi que não, mas que eu poderia ir passar férias. Então, ele disse que eu pegasse o telefone dele porque, quando eu fosse à Bahia para passar férias ou para o carnaval, ele conseguiria uma casa para mim por um bom preço”.

Rose Marie recorda duas histórias que mais lhe causaram alegria e emoção. Uma foi um telefonema do seu chefe e, a outra, a de uma atriz famosa. “Um dia, eu atendi um homem com sotaque carioca. Pouco antes de encerrar a ligação, ele disse que eu o atendi muito bem.

Quando desliguei, várias pessoas vieram gritando e batendo palmas em minha direção. Elas estavam

mistérios

com bolinhas e pompons, e eu não entendia nada. O que eu não sabia era que homem que eu tinha acabado de atender era um dos sóciosproprietário (da empresa)! A ligação era um teste e ele me deu nota dez!”.

No outro caso, ela atendeu a atriz Flávia Alessandra. “Ela ligou querendo cancelar a linha porque iria mudar de endereço. Quando ela disse o nome, e eu vi na tela do computador o estado, o local de trabalho e a profissão, pedi um minuto e falei: ‘Jesus, e agora? É ela!’”. Rose diz que a atriz foi muito educada e simpática. “Eu fiquei muito nervosa, mas procurei ser o mais educada e normal possível. Às vezes, eu ficava com vontade de dizer que tinha visto a novela”, diz sorrindo. “Foi ótimo porque atendi uma atriz famosa e ainda bati a meta, já que ela não cancelou a linha. Eu fiz apenas a mudança de endereço, e ela continuou com o mesmo número”.

Irritação e advertência Mas nem sempre Rose viveu dias como esses.

Embora os operadores de telemarketing sejam treinados para nunca perder o controle da situação, ela, como qualquer mortal, teve um dia em que perdeu completamente a paciência.

“Uma vez, uma cliente de Pernambuco me irritou ao extremo e falou vários nomes feios.

Mas, como eu não podia responder e já tinha perdido a paciência, eu a deixei esperando por duas horas e meia. Ela cansou de esperar, desligou, mas eu estava sendo monitorada e recebi uma nota zero”, lamenta.

Em outro caso, ganhou uma advertência.

“Um funcionário (da empresa) de Minas Gerais ligou, fora do horário de trabalho dele, para cancelar uma linha. Quando eu coloquei a ligação no mute, percebi que ele estava se passando pelo pai, que estava ao lado. Eu disse que não concluiria o procedimento sem falar com o titular da linha. Ele não passou o telefone para o pai e ainda pegou meu nome para passar para a supervisora dele. Eu fiz o mesmo, mas fiquei muito mal e com medo.

No outro dia, chorei bastante porque recebi uma advertência, apesar de ter agido corretamente. Por sorte, no dia da ligação, eu pedi para minha supervisora monitorar a ligação.

Como ela tinha ouvido quase toda a ligação, ela passou uma resposta para (a empresa) de Minas, minha advertência foi suspensa e o funcionário que me fez chorar foi quem acabou ficando com a advertência”.

Hoje, Rose é comerciária e diz que, apesar dos desafios que enfrentou, voltaria a trabalhar como operadora, caso o salário fosse muito melhor do que é pago hoje. Ela também citou pontos negativos e positivos da profissão. “Às vezes, eu chegava em casa com a cabeça cheia. Eu ouvia desaforos e ainda tinha que ser psicóloga de alguns clientes.

Mas eu também me divertia muito fazendo parte da Liga da Motivação, um grupo que passava nas baterias cantando paródias sobre o serviço, e também com as palhaçadas que eu ouvia dos clientes e dos meus amigos”. Lembra que também é possível fazer muitos amigos, “porque os opera-

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dores de telemarketing, geralmente, são pessoas comunicativas e divertidas”.

Ela diz ainda que, no caso dela, o maior desafio era enfrentar a pressão diária de manter o cliente. “No meu caso, o pior era a pressão.

Eu tinha que convencer o cliente a manter um serviço que não era essencial. Havia clientes que diziam que só tinham dinheiro para comer e pagar o aluguel. Mas, mesmo assim, eu tinha que tentar convencê-lo a ficar com a linha porque eu precisava bater a meta”.

Antes de encerrar a entrevista, Rose faz uma análise da profissão. “Esse tipo de trabalho não dá estabilidade, porque a rotatividade é muito grande. As empresas preferem descartar as pessoas antes que os problemas de saúde aconteçam.

Eu nunca tive problema físico ou emocional, mas eu sou uma exceção. De qualquer forma, para primeiro emprego, é uma ótima experiência”.

Desde o dia em que ouviu Camila Carla pela primeira vez, Valônia sonhava em conhecê-la

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A voz do rádio Um dos ramos da comunicação onde o rosto também não participa é o rádio. Nesse veículo,

a voz é tudo. É ela que faz com que os ouvintes se encantem com os locutores. Antigamente, a empostação da voz era regra na locução radiofônica, o que gerava um certo distanciamento entre ouvinte e locutor. Hoje, o tom usado por eles é mais informal, principalmente os que se dirigem aos jovens tentam usar um vocabulário que os aproxime mais dos seus ouvintes. Mas, tanto antes quanto hoje, os ouvintes continuam a formar imagens muito vagas dos locutores.

No mundo do Forró, Camila Carla, locutora da emissora de rádio A3 FM 91,3, é uma das mais ouvidas pelos jovens que apreciam o gênero.

“Entre 9h e 10h da manhã, meu programa ocupa o 2º e 3º lugar geral entre o público popular jovem”, garante. A rádio funciona no prédio Torre Quixadá, no alto do 19º andar, em um estúdio de aproximadamente 25m2, de onde pode ser vista uma boa parte da cidade.

Camilinha, como é conhecida pelos fãs, nasceu no interior do Ceará e sua voz foi descoberta aos 15 anos, quando ligou para uma rádio. “Eu nunca imaginei trabalhar em rádio.

Na verdade, eu fui escolhida. Eu liguei para uma rádio para pedir uma música, o locutor disse que minha voz era linda e me convidou para conhecer a rádio. Tudo começou aí”, lembra. Logo se transferiu para Fortaleza.

Todos os dias, vários ouvintes vão até a rádio para conhecer pessoalmente a dona da voz que comanda o programa. Alguns vem de longe.

“Tem uma ouvinte de São José dos Campos que me ouve há mais de um ano pela Internet. Ela já entrou no ar e outro dia veio conhecer a rádio”.

Camila, que é dona de uma voz forte e, ao mesmo tempo, bonita e delicada, conta que recebe muitos elogios, inclusive alguns “mais ousados”. Enquanto fala sobre esse assunto, sorri bastante, o que demonstra que os tais elogios não a incomodam. Mas, apesar de ter uma voz muito admirada, ela garante que nunca teve um namorado que tenha se apaixonado primeiramente por sua voz.

Para ela, trabalhar em um veículo onde a sua imagem é a sua voz não a incomoda, mas diz ficar sempre curiosa em saber qual é a imagem que as pessoas criam dela quando ouvem a sua voz. “Eu gosto de perguntar: ‘E aí, como que você imaginava que eu era?’ Só que as pessoas mudam de assunto. Nenhum ouvinte tem coragem de responder”, diz rindo. Mas, apesar do anonimato, situação comum entre os locutores, ela já foi reconhecida na rua. “Com a Internet, basta alguém colocar uma fotinha para que no outro dia as pessoas te reconheçam na rua”.

A nossa conversa com a radialista foi interrompida quando a porta do estúdio se abriu e uma fã da locutora foi convidada a entrar para receber um prêmio e conhecer Camila. Presenciamos um momento mágico. A ouvinte entrou no estúdio para ver pela primeira vez a radialista.

Fã conhece a radialista A ouvinte que foi conhecer pessoalmente Camila é Valônia, uma estudante de Administração de 32 anos. Seus olhos brilharam quando viu a locutora e seu rosto corou quando a locutora lhe deu um abraço carinhoso. A estudante diz que acompanha o trabalho de Camila há dois anos e acredita que a simpatia da locutora faz com que ela conquiste cada vez mais admiradores. Ela foi até a rádio receber um faqueiro que havia ganhado em uma promoção. Mas, o mais importante para ela, na

verdade, era conhecer a dona da voz que faz parte de sua vida há dois anos.

Ela diz que, quando ouviu a voz de Camila pela primeira vez, não conseguiu mais deixar de ouvir o programa. “Não tem como não gostar da Camila. Ela sabe cativar os ouvintes e, além disso, faz um programa de forró, que é um ritmo que ouço desde pequena”.

O dia foi especial para a ouvinte-fã, pois teve a oportunidade de assistir ao vivo, dentro do estúdio, ao programa que escuta todos os dias em casa. “Foi um momento de muita emoção.

Queria ter passado mais tempo e conversado mais [com ela], mas sei que não foi possível porque estava sendo um dia muito corrido na rádio”.

Camila era como Valônia imaginava?

Ela hesita em responder. Mas acabou falando que a imagem que fazia da radialista na sua cabeça era a de uma mulher branquinha, loira, magra e que, provavelmente, gostava de se vestir com blusa gola polo, calça jeans e salto.

Além dessas características, tinha certeza que ela deveria ser pessoalmente assim como ela é no rádio, uma pessoa simples, simpática e alegre. Valônia se enganou nas características físicas, mas acertou em cheio nos quesitos simplicidade, simpatia e alegria.

Valônia (esq.) finalmente conhece Camila Carla

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“Esse trabalho é para tentar formar cidadãos” ·

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texto

· áquila Leite · celso nóbrega ·

fotos

· áquila Leite ·

Com a determinação de formar cidadãos por meio do esporte, o vigilante do Hospital Geral de Fortaleza e técnico nas horas vagas, o cearense Odair Mota da Silva, 36 anos, comanda um projeto de inclusão social que abre portas para as crianças e adolescentes do bairro Dias Macedo, um dos mais carentes de Fortaleza. É através da ação discreta, quase invisível, desse anônimo que muitos jovens têm ficado longe da violência e das drogas

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O nosso primeiro contato com Odair foi marcado para uma noite em que haveria um jogo de futsal no bairro. O ponto de encontro: uma pracinha onde há uma quadra pública que os garotos usam para jogar. Porém, começou a cair uma chuva forte que demorou a passar.

Quando chegamos à praça, não havia ninguém. Depois de alguns minutos de espera, resolvemos ligar para saber o que tinha acontecido.

– “Odair?”

– “É ele”.

– “A gente está aqui na praça.

Você vem?”

– “Tava saindo de casa e vi a chuva. Achei que vocês não viriam mais...”

– “Você quer que a gente vá até sua casa?”

– “Precisa não. Espera um pouquinho, que eu já chego aí.”

O “pouquinho” que ele falou não foi tão breve assim, mas a espera permitiu que conhecêssemos melhor o lugar onde estávamos.

A praça é relativamente grande, em formato retangular, com banquinhos nos seus quatro cantos. Parece adequada para a prática de esportes.

Tem poucos buracos, mas as linhas que demarcam os limites do campo de jogo já estão um pouco apagadas.

No entorno da praça, as ruas são pouco pavimentadas. Não vimos outros espaços para o lazer, exceto uma área de terra batida onde as crianças soltam pipas nos dias de vento. Grande parte do local é coberto por mato e um pouco de lixo, além de não possuir uma boa iluminação.

As casas parecem pequenas, de poucos cômodos, e só se diferenciam pela cor da pintura. Surpreendemo-

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nos ao ver que a maioria delas estava com as janelas e as portas abertas, embora fossem quase nove horas da noite. Fato raro de se ver em vários bairros da cidade, onde muitos temem pela sua segurança. Ali, os morados conversavam sossegados nas calçadas e na praça, sem nenhuma preocupação aparente em saber o que aconteceria no capítulo da novela daquele noite ou se seriam surpreendidos por algum criminoso, que poderia abordá-los sem a menor dificuldade, se assim quisesse. Quem nunca saiu dos limites da Aldeota ou do Dionísio Torres, bairros abastados da cidade, nem imaginaria que estávamos em Fortaleza. Mais parecia que estávamos em alguma rua de uma cidadezinha do interior do Estado.

Graças a Deus, não dependo do projeto para viver.

Tenho meu trabalho e, quando estou de folga, treino essa molecada Quando Odair Mota da Silva chegou, foi logo falando e esbanjando simpatia. De estatura mediana e corpo relativamente em forma, usava cabelos curtos, estilo militar, talvez por exigência da profissão. Vestia uma camisa do Sport Club Corinthians Paulista sobre uma pele curtida pelo sol. Trazia alguns papéis nas mãos (que, depois, revelou serem dados do projeto do qual iríamos tratar, pois temia que perguntássemos algo que não soubesse responder), e no rosto a satisfação de ter se tornado recentemente o presidente do Projeto Pais e Filhos/Everest.

Sentamos com ele em um dos banquinhos da praça para conversar sobre o projeto.

Parceria

O Everest teve início em 2005 e era uma espécie de seleção dos jogadores do Dias Macedo, onde só jogavam os melhores atletas do bairro. Odair assumiu como treinador do time no fim de 2006, sagrando-se campeão cearense já no ano seguinte na categoria Sub-11 e conquistando o bicampeonato em 2008, com a categoria Sub-13.

Os títulos deram ao técnico a esperança de conseguir algum tipo de patrocínio para a continuidade do projeto, o que acabou não acontecendo. Sem condições financeiras, o Everest estava prestes a acabar no ano de 2009, quando Carlos Pose, então presidente de outro projeto social do bairro, o Pais e Filhos, propôs uma parceria que poderia evitar o fim prematuro de uma equipe vitoriosa.

A salvação do Everest chegou a ser irônica. Carlos Pose e alguns pais de jogadores do bairro criaram o projeto Pais e Filhos com o intuito de dar chance a quem não se destacava o suficiente para ter vaga no Everest. Foi pensando no bem comum dos garotos que escolinha e seleção se uniram e se tornaram um só time.

Atualmente, além de presidente do Pais e Filhos/Everest, Silva treina o Sub-15 e Sub-17 e recebe um valor simbólico de 10 reais por aula, que, segundo ele, é investido nos próprios atletas. “Graças a Deus, não dependo do projeto para viver. Tenho meu trabalho e, quando estou de folga, treino essa molecada. São jovens que, em sua maioria, têm poucas condições fi nanceiras. Às vezes, um rasga a chuteiras ou o outro não tem dinheiro para pegar o ônibus para vir treinar. Tento ajudar sempre que posso”, garante o treinador, que concilia seu trabalho de vigilante no Hospital Geral de Fortaleza com o cargo de técnico de futsal.

Como as chuvas não dão trégua nos primeiros meses do ano, a garotada não

Projeto Futsal SESC O Projeto Futsal SESC teve início em 2008, mediante uma parceria do Serviço Social do Comércio no Ceará com o exatleta Manoel Tobias, que é considerado um dos melhores e mais importantes jogadores de futsal de todos os tempos.

Nascido na cidade de Salgueiro, em Pernambuco, ele foi conhecido nacionalmente jogando no Ceará, onde vive atualmente e é coordenador geral da iniciativa que leva seu nome.

Visando a inclusão social de jovens carentes através do esporte e o estímulo de hábitos saudáveis, o projeto, segundo dados de 1010, beneficiava mais de 800 alunos, com idades de 8 a 17 anos, em seis bairros de Fortaleza (Dias Macedo, Pirambu, Farias Brito, Meireles, Centro, e Vila União).

Todos os garotos recebem complementação alimentar - em parceria com o Projeto Mesa Brasil SESC -, acompanhamento educacional e físico/ esportivo, além de acesso gratuito a vários serviços da entidade. Os alunos também ganham o uniforme completo do projeto para treinarem e disputarem partidas oficiais.

Para fazer parte do Projeto, é preciso estudar em escola pública, comprovar a baixa renda familiar e ter autorização dos pais ou responsável.

Manoel Tobias exibe cartilha do Projeto Futsal SESC, no qual é coordenador

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tem como realizar treinos e jogos, já que a quadra é descoberta. As várias poças d’água que se formam no piso impossibilitam a prática do esporte.

Na época, diante desse inconveniente, Silva precisou ir atrás de um local adequado para que os treinos não parassem. Valendo-se do fato de ser ex-aluno e, atualmente, voluntário da Escola de Ensino Fundamental e Médio Guilherme Waessen, também localizada no Bairro Dias Macedo, o técnico conseguiu a liberação da quadra coberta do colégio para efetuar os treinamento aos sábados pela manhã.

Benefício mútuo

Meses depois, conta o treinador, o Pais e Filhos/Everest selou uma nova parceria, desta vez com o SESC (Serviço Social do Comércio), fruto do Projeto Manoel Tobias de Futsal. A entidade providenciou uma reforma na quadra da praça. As marcações foram refeitas, o piso foi restaurado e as redes trocadas. Ela também cede bolas e material esportivo, o que, para a alegria de Silva, economiza um pouco os dez reais que ganha. Em troca, os jogadores que se destacam no projeto são mandados para treinar no SESC, onde podem até ganhar bolsas de estudo em colégios particulares.

Para o treinador, tratase de um benefício mútuo, já que isso pode abrir portas para a molecada boa de bola. “Sei que nem 10% dos garotos que jogam aqui conseguirão seguir carreira como profissional, mas não

é esse meu grande objetivo. O que me impulsiona a seguir fazendo esse trabalho é tentar formar cidadãos e mostrar para essa molecada que existem caminhos para se levar uma vida digna e honesta. O crime e a violência moram aqui do lado e podem ser uma tentação para quem não tem grandes perspectivas para o futuro”, reflete.

(Fomos momentaneamente interrompidos por uma cena inusitada: um grupo de missionários de uma capela do bairro passou calmamente na nossa frente; um deles tocava músicas religiosas com um violão surrado. A música parou por uns instantes e uma senhora de rosto gentil entregou um pequeno panfleto para cada um de nós, onde se lia: “Venha participar conosco do Encontro Especial com Crianças e Adolescentes. Sábado 02 de abril, às 17h”. Coincidência: assim como Silva, eles também parecem preocupados com os jovens).

Em seguida, ele explica que mais de 100 garotos participam do projeto, dividindo-se em cinco categorias (Sub-9, Sub-11, Sub-13, Sub-15 e Sub17). Afirma só aceitar alunos da rede pública e que comprovem as boas notas na escola.

Além disso, todos precisam ser comportados na quadra. Palavrões s ã o p ro i b i d o s tanto para os garotos quanto para o treinador.

“Não quero conquistar ninguém através do medo, mas sim do respeito.

Falo duro quando necessário, mas jamais ofendo meus atletas. Acredito que é desse jeito que conseguimos formar boas pessoas”.

Odair Mota da Silva e seu inseparável apito durante um treino do projeto Pais e Filhos-Everest

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Apesar da sua dedicação, já teve problemas com alguns garotos. Silva lembra com tristeza o caso de um garoto que se envolveu com drogas e teve que ser desligado do projeto. “A gente tenta afastá-los tanto quanto possível dessas coisas, mas nem sempre conseguimos. Quando soube que ele estava seguindo esse caminho, tentei convencê-lo a largar as drogas, mas não obtive sucesso e acabei tendo que afastá-lo”.

Não quero conquistar ninguém através do medo, mas sim do respeito. Falo duro quando necessário, mas jamais ofendo meus atletas Mas o treinador também já viu alguns de seus atletas realizarem o sonho de chegarem às grandes equipes do futebol brasileiro. “É uma pena que não aconteça com frequência, mas meninos já se destacaram aqui e conseguiram dar voos mais altos na vida. Tenho ex-atletas que estão nas categorias de base de gigantes do futebol nacional como Ceará e Internacional de Porto Alegre, e outro que já passou pela Portuguesa de São Paulo. Fico muito feliz e espero que, além de terem aprendido a jogar bola, tenham se tornado boas pessoas”, diz com um sorriso no rosto. Já outros garotos que passaram pelo projeto Pais e Filhos/ Everest continuam nas quadras, mas jogando em agremiações maiores, como BNB Clube e SESC. O técnico/vigilante revela que sonha em se graduar em Educação Física para obter mais conhecimentos, tanto na área técnica quanto fisiológica, o que lhe permitirá ajudar mais a garotada do sofrido bairro Dias Macedo.

O sonho de Vitor, 16 anos “Quase todo mundo diz que eu falo demais, mas acho natural. Moro no Dias Macedo e aqui as pessoas costumam se falar. O que eu acho do projeto? Muito bom, cara! Acredito que é uma forma de unir mais os filhos com os pais, pois eles costumam acompanhar quando estamos jogando por aqui. Também acho que é uma grande oportunidade para todos que estão aí nas ruas se perdendo, ficando perto de coisa ruim. Não tenha dúvida que todos aqui sonham em ser jogadores de futebol, mas poucos têm verdadeiramente essa intenção. Sonhar é bom, mas a realidade é outra, né? Deixa essa pretensão para os mais novos, que ainda não têm muita preocupação na vida... O que eu quero mesmo é estudar para passar no ENEM [Exame Nacional do Ensino Médio], na AFA [Academia da Força Aérea], ou no EsPCex [Escola Preparatória de Cadetes do Exército]. Aí, sim, vou ter um futuro garantido, ou pelo menos eu acho.

Estou aqui no projeto porque gosto de jogar, gosto da rapaziada e do Odair. Ele é um cara que ensina muito, tanto no esporte, quanto na vida. Às vezes, a rapaziada não entende por que ele reclama quando um fica faltando o treino, ou o outro sempre chega atrasado. É questão de compromisso. Se a gente não tiver compromisso e força de vontade em todas as áreas da nossa vida jamais conseguiremos alguma coisa. O Odair mora no bairro, é gente da gente. Conhece os nossos pais e, às vezes, até conversa com eles para explicar por que temos que treinar tanto. É engraçado quando ele se estressa. Algumas vezes não se conforma com algo que a gente fez errado na quadra e começa a gritar feito louco. Jamais deixa de ser um cara gente fina, mas fala duro quando tem que falar. Sempre diz que o projeto é para aqueles que realmente querem alguma coisa na vida.

Cada vez mais eu enxergo isso, sabe? Não acho que sou um craque de bola, mas, se Deus quiser, serei um craque na vida. Agora vocês me dão licença que o técnico tá ali me chamando para treinar. E vocês já sabem o grito que pode acontecer se eu não for, né? Valeu galera, até mais”.

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artigo 66

· por · mailson bruno

Onde está a democracia?

A política norte-americana é um fenômeno complexo. Os agentes que participam efetivamente de sua confi guração nem sempre reforçam o discurso oficial da Casa Branca em defesa dos direitos civis. As estratégias geopolíticas e os interesses das grandes corporações se sobrepõem às bandeiras da liberdade e da democracia.

Em vários casos, Washington age de forma a evitar que se tornem públicas ações que violam princípios e valores considerados sagrados pela maioria dos norte-americanos.

Após a 2ª. Guerra Mundial, teve início o período da história denominado Guerra Fria. A União Soviética era considerada a grande ameaça ao capitalismo americano, e a diplomacia dos EUA estava disposta a usar todas as formas de poder para frear o avanço do comunismo no mundo, sobretudo em suas áreas de influência política e econômica.

Após a Revolução Liberal de 1944, a Guatemala foi governada por líderes que haviam estabelecido um ciclo de reformas como meta de desenvolvimento social. No entanto, as elites locais e o imperialismo econômico se aliaram para combater um cenário que contrariavam os seus interesses. Em 1954, o coronel Castillo Armas, com o apoio da Casa Branca, organizou um golpe de Estado que pôs fim ao processo de reformas no país. Cinco anos mais tarde, os EUA não conseguiram impedir a queda de Fulgêncio Batista em Cuba. Fidel Castro e Che Guevara lideraram uma revolução que arrancou da influência de Washington o pequeno país caribenho.

Cuba se manteve alinhada ao imperialismo americano até 1958.

Inclusive, uma emenda constitucional permitia a interferência da Casa Branca em seus assuntos inter-

nos. Além disso, as empresas norte-americanas eram responsáveis por cerca de 35% da economia cubana. Em 1959, após o exílio de Batista, Fidel Castro colocou em marcha um plano de nacionalização das empresas estrangeiras. John Kennedy, presidente dos EUA, rompeu relações diplomáticas com Havana e patrocinou a invasão da ilha por um grupo de exilados cubanos, treinados pela agência de inteligência norte-americana, a CIA, em Miami.

Em abril de 1961, os revolucionários resistiram à tentativa de invasão e frustraram os planos de Washington. Em dezembro do mesmo ano, Cuba anunciava oficialmente sua adesão ao marxismo.

Em retaliação, no ano se-guinte, o governo americano decretou o bloqueio econômico da ilha e conseguiu sua exclusão da Organização dos Estados Americanos (OEA).

O ano de 1959, portanto, foi bastante controverso para os Estados Unidos. A Revolução Cubana era um grande desafio para a política externa americana e o crescimento dos movimentos de esquerda na América Latina ameaçavam a influência de Washington sobre uma região que por muitas décadas esteve sob o seu domínio. Os golpes de Estado que eclodiram no continente latino-americano, durante a segunda metade do século XX, representam perfeitamente as estratégias encobertas de Washington para assegurar seus interesses, e o Brasil era o ponto de equilíbrio da diplomacia dos EUA na América Latina.

Após a renúncia de Jânio Quadros, João Goulart ensaiou pôr em prática reformas sociais que contrariavam os interesses das elites locais. A proposta de Jango lhe custou um golpe de Estado e, posteriormente, o exílio no Uruguai. Embora o Exército brasileiro tenha tomado o poder sem uma resistência organizada por parte dos seus opositores, os EUA já tinham elaborado de forma sigilosa a “Operação Brother Sam”, um plano para sufocar qualquer tentativa de oposição à “Revolução Redentora”, como foi chamada pelos militares. A operação consistia no deslocamento de uma frota da Marinha americana concentrada no Caribe em direção à costa brasileira. Os Estados

Unidos, embora apoiassem o regime militar, não participaram diretamente do golpe de 64, mas no Chile a história seria escrita de outra forma.

Salvador Allende havia sido o primeiro presidente de orientação marxista a ser eleito democraticamente na América Latina, mas logo seria derrubado pelas forças reacionárias apoiadas por Washington. A Casa Branca boicotou os empréstimos ao Chile, suspendeu o comércio com o país andino e, através da CIA, financiou uma greve de proprietários de caminhões que paralisou parcialmente o seu mercado interno. A asfixia econômica resultou numa crise social e política generalizada.

As bases para o golpe estavam lançadas. Em 11 de setembro de 1973, com apoio ostensivo dos Estados Unidos, as Forças Armadas, lideradas pelo então comandante chefe das Forças Armadas, o general Augusto Pinochet, conduziram o golpe de Estado que derrubou o governo de Allende, culminando com o suicídio do presidente.

Americanos e chilenos compartilham o dia 11 de setembro como um dia fatídico. Os EUA haviam declarado, após os ataques às Torres Gêmeas, que a legião do mal pretendia atingir a liberdade e a democracia, mas esses valores se tornaram invisíveis quando Washington apoiou uma ação violenta contra um governo eleito de forma livre e democrática.

Assim como na América Latina, a política exercida hoje pelos norte-americanos no Oriente Médio também é marcada por contradições. A Casa Branca afirma que o presidente Mahmmoud Ahmadinejad está produzindo armas de destruição em massa e ameaça o Irã devido ao seu programa nuclear. Caso Teerã esteja de fato desenvolvendo a bomba atômica, o país passaria a fazer parte de um grupo seleto que tem como principais integrantes os EUA. Aliás, o poderio atômico foi usado em guerra apenas pelos americanos, e os japoneses foram vítimas do maior atentado terrorista da história. A república dos aiatolás também recebe críticas de Washington por desrespeitar os direitos humanos, sobretudo após Shakineh Asthiani ser condenada a penda de morte por lapidação. Na mesma época, mais de 50 mulheres americanas estavam no corredor da morte esperando o cumprimento da decisão judicial. No Irã, o caso se torna um desrespeito aos direitos humanos. Nos EUA, a mesma sentença não está suscetível a críticas, e a Carta Universal de 1948 se torna invisível.

A reação tímida dos Estados Unidos diante das revoltas no Magreb e no Oriente Médio é outro

caso contraditório envolvendo a diplomacia americana. Na Tunísia, a Revolução de Jasmin já anunciava a insatisfação generalizada dos árabes com as autocracias apoiados por Washington, que preferiu adotar um discurso cauteloso diante das manifestações contra o governo de Ben Ali. Embora os protestos exigissem liberdade e democracia, a manutenção de um aliado era fundamental para a Casa Branca resguardar sua zona de influência na África Setentrional. Mas a colaboração estrangeira não impediu a queda do regime de exceção na Tunísia.

A “Revolta de Lótus” também foi conduzida com muito cuidado pela diplomacia americana por razões geopolíticas. Como o Egito e a Jordânia são os únicos países árabes que reconhecem Israel, manter a aliança com Mubarak era fundamental para o governo americano diminuir as tensões no Oriente Médio e proteger o regime sionista. Inclusive, os EUA davam apoio logístico ao Egito, enviando anualmente ao Cairo dois bilhões de dólares.

A autocracia no Egito, mantida durante 29 anos, contou com o beneplácito de Washington, enquanto a liberdade e a democracia eram ignoradas. A parceria entre a Casa Branca e seus aliados pelo mundo pode ser sintetizada pela frase de Noam Chomsky, professor do Instituto de Tecnologia de Massachusetts: “Na política externa, os EUA não punem atrocidades, apenas desobediência.”

As ações “invisíveis”, por mais paradoxais que sejam, sempre estiveram presentes na política externa norte-americana. Essa expressão não se limita exclusivamente ao seu significado ortodoxo.

A hipocrisia dos discursos, os acordos sigilosos e as intervenções militares são formas deliberadas de invisibilidade usadas pela Casa Branca para garantir sua hegemonia mundial.

José Saramago, um dos maiores escritores da língua portuguesa, afirmou que a democracia não existe. Segundo ele, o poder dos cidadãos, na esfera política, se limita a tirar um governo do qual não gosta e eleger outro de que talvez venha a gostar. Já as grandes decisões são tomadas em outras instâncias, formada pelas grandes organizações financeiras, onde os seus representantes não são eleitos de forma democrática. Ele termina sua reflexão com a seguinte pergunta: “Onde está a democracia”?

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