Sobpressao 06

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ANO 2 - Nº 06

Maio/Junho - 2005

Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza

Aborto Clínicas disfarçadas realizam ato proibido pela lei (páginas 3,4 e 5)

Cassinos Apostadores perdem dinheiro entre roletas e cartas de baralhos (páginas 12,13,14 e 15)

Jogo do bicho Culturalmente aceito, jogo mais popular do Brasil supera idéia de contravenção (páginas 6,7 e 8)

Drogas Traficantes mantêm bocas-defumo e dominam o morro (páginas 16 e 17)

Comércio de Pássaros Silvestres Venda ilegal burla fiscalização na Feira da Parangaba (páginas 9 e 10)

Brigas de galo Rinhas divertem galistas e driblam defensores de animais (páginas 18 e 19)


Editorial

Nos territórios proibidos Discutir proibição trata-se, antes de qualquer lei, de uma discussão sobre ética e moral. Por que proibir? As proibições existem de diferentes formas. Na religião, tenta-se evitar o pecado. No dia a dia, conduz-se a vida pela ética e a moral individual. Por isso, o Estado cria leis que regulam e controlam o comportamento humano, com finalidade de promover a harmonia entre os cidadãos. As justificativas das proibições, quase sempre, são por questões morais. Proíbem-se jogos de azar para não destruir famílias, nem patrimônios pessoais. Para garantir a vida do ser humano, ainda em formação, o aborto é proibido, pois “ninguém tem direito de tirar a vida de outra pessoa”. Com argumentos diferentes, mas pensando no ser humano, considera-se a comercialização das drogas atitude ilícita, pois vicia e estimula a violência. Vender um animal pode ser crime, caso esteja em extinção e não haja autorização do órgão regulador. Listar argumentos e proibições existentes na constituição seria inviável, devido à grande quantidade existente. Vive-se num mundo de regras onde as proibições são constantes. As ilegalidades incomodam alguns cidadãos, outros não se preocupam tanto. Para alguns agentes reguladores, inclusive, o lugar torna oportunidade de extorsão financeira. Ora, tem-se então uma contradição: os mesmos que proíbem e são incumbidos de fiscalizar gozam da autoridade e praticam as atividades ilegais. Autoridades civis apostam fortunas nos cassinos. Policiais recebem propinas para se calarem diante do tráfico e, quando não recebem a quantia desejada, coíbem os traficantes. Ao mesmo tempo, o cidadão “consciente” compra peças roubadas na Feira dos Pássaros. Clínica de aborto traz na fachada o nome de clínica ginecológica e oferece o “procedimento” mais moderno. No centro da cidade, o “Banco Paratodos” movimenta milhões provenientes do jogo do bicho, também considerado ilegal. Pronto, num rápido pas-

seio pela cidade, encontra-se uma série de lugares proibidos pela lei, mas que funcionam normalmente. A proibição, algumas vezes, se confunde com castração e autoritarismo. Não por acaso, filósofos, artistas e intelectuais que se colocaram contra as proibições, pregavam a liberdade, em contrapartida. A música “É Proibido Proibir”, de Caetano Veloso, tornou-se hino entre os militantes engajados, contra a repressão dos militares que se utilizavam da coerção física para garantir leis autoritárias. Na mesma época, estudantes franceses iam às ruas pedindo liberdade no famoso maio de 68. Anos antes, o francês Jean Paul Sartre lançava a trilogia “Os Caminhos da Liberdade”, livros de cabeceira dos jovens. Mundialmente, jovens questionavam e combatiam as proibições legais com as quais não concordavam. A discussão do lugar proibido é tema da sexta edição do Sobpressão. Ao contrário dos filósofos, não interessa ao jornal tomar algum posicionamento. Apenas questionam-se as proibições e, ao mesmo tempo, mostra-se a ineficiência destas. Os estudantes-repórteres do Sobpressão passaram por lugares perigosos e arriscados, no intuito de conhecê-los e de apresentá-los ao leitor. Apesar de proibido, o acesso aos locais não é tão difícil. Eles são até bastante acessíveis. Teve-se a preocupação de ouvir o máximo de fontes envolvidas com o processo e preservar a identidade de algumas, para não comprometê-las. Por questão de coerência, preserva-se também o endereço dos lugares proibidos, não há interesse em denunciar. Interessa provocar, pois as questões não têm respostas definidas. Não se pretende fechar nenhum ponto apresentado nas reportagens. Este papel é da policia. O interesse é contribuir para o debate com a sociedade, permitir que o leitor possa avaliar e entender as causas e conseqüências, como se dão as proibições e como elas existem efetivamente ou são facilmente burlada.

Você é contra ou a favor do aborto? “Eu sou católica e a Igreja não permite o aborto, porque tira uma vida. No caso de estupro, eu concordo, porque a criança não foi feita com vontade de ambos.” Milene Colares, estudante de Ciências Contábeis

“Eu sou contra porque não se pode tirar a vida de um inocente. Às vezes, meninas de 12 ou 15 anos se prostituem, pegam filho e abortam. Isso não é certo. E se não tiver condições de sustentar que dê para adoção.” Francisco Daniel, vendedor de pipoca

“Eu sou contra e a favor. Por exemplo, eu sou contra quando a mulher fértil pode reproduzir um filho saudável. Eu sou a favor quando a criança nasce com hidrocefalia. A justiça deveria ser mais flexível para que a mulher sofra durante nove meses sabendo que o filho irá morrer minutos depois.” Isabel Marinho, estudante de admistração e copista

“Depende. Eu sou a favor quando o feto não tem chance de sobrevivência ou quando vai nascer com muita anomalia. Nos outros casos, não. Quando é por pura conveniência ou quando a mãe não quer, ela não tem esse direito de escolher.” Luciana Guimarães, estudante de psicologia

“É muito difícil falar sobre o aborto, porque existem casos como o estupro ou a má formação do feto, que precisam ser analisados separadamente. Tem muita gente que acha que filho não é nada, mas é muita coisa.” Naeliton de Lima, representante de livro

“Eu sou contra tirar a vida de uma pessoa que ainda não teve o direito de nascer e de se defender. É uma vida ainda indefesa. Mas tem que ver cada caso. Por exemplo, eu estou grávida e sei das mudanças psicológicas e físicas que a mulher sofre, e se o bebê não tiver condições de sobreviver, como no caso da hidrocefalia, não faz sentido manter a gravidez.” Michele Albuquerque, estudante de enfermagem

Expediente Jornal Laboratório do Curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza (Unifor) - Disciplina: Projeto Experimental em Jornalismo Impresso - Fundação Edson Queiroz - Universidade de Fortaleza (Unifor) - Diretor do Centro de Ciências Humanas: José Batista de Lima - Coordenadora do Curso de Jornalismo: Erotilde Honório - Reportagem e Edição: Ana Karine, Paula Neves, Izakeline de Paiva, Juliana Rolim, Tiago Coutinho, Camila Rocha e André Henrique - Fotógrafos: Ana Karine, Paula Neves, Juliana Rolim, Tiago Coutinho e João Henrique - Projeto Gráfico: Eduardo Freire - Diagramação: Aldeci Tomaz - Professores orientadores: Nilton Melo Almeida e Aderson Sampaio- Conselho Editorial: Geísa Matos, Nilton Melo Almeida e Paulo Ernesto Serpa - Impressão: Gráfica Unifor - Tiragem: 1000 exemplares Colaborou nesta edição: José Valdevino Neto.

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Clínicas ginecológicas disfarçam casas de aborto Na fachada, elas se intitulam clínicas ginecológicas, mas na realidade são casas de aborto extremamente populares entre os fortalezenses. O aborto é uma atividade proibida pela legislação brasileira e prevê três anos de detenção à mulher que realizá-lo. Ana Karine Zaranza

Uma “clínica ginecológica” localizada num dos bairros católicos mais tradicionais de Fortaleza, o bairro de Fátima, convive harmoniosamente com a vizinhança. A surpresa é que nela é praticado um ato proibido pelas normas da Igreja Católica e pelas lei brasileira: o aborto. A clínica visitada pela reportagem funciona encoberta pela noite e por um forte esquema de segurança. Na porta trancafiada por cadeados fica um vigia e na sala de espera, igual a todas as outras, um diferencial: sistema interno de câmeras. Na sala de espera, motivos diversos: pouca idade para responsabilidade, pais ou parceiros que não aceitam a chegada do bebê, interrupção dos planos de estudo ou profissional e impossibilidade financeira. Mas, quando chegam ao encontro do experiente médico, ginecologista-obstetra, as mulheres encontram palavras de apoio. A consulta custa R$ 50 por apenas cinco minutos. Entretanto, muitas não pagam, fica por conta do “procedimento”, sucção, ou pagam pela Unimed. Hoje, o médico cobra R$1.300 pelos honorários e pela internação. Há varias formas de pagamento. Dependendo do cartão, pode ser parcelado de três vezes sem juros e até 20 vezes com juros. E a pessoa ainda sai com a receita de dois medicamentos: um para evitar hemorragia e o anestésico. Há seis anos, o preço era R$ 400. Foi quando Aparecida (nome fictício), 36, empregada doméstica, realizou o terceiro aborto. Aparecida não pagou o “procedimento” porque a amiga que a levou era também amiga do médico e por consideração ele nada cobrou. “Sou grata a ele e a minha amiga. Não senti nada. Cheguei lá ao meio dia. Ele me deu anestesia e fez a curetagem. À noite fui para casa”. A decisão foi tomada junto com o marido. Não queriam ter o filho porque estavam economizando dinheiro para construir sua casa. Embora seja “proibido”, o lugar é extremamente conhecido pela classe média de Fortaleza. Nem o médico, 49 anos, e muito menos as atendentes escondem o que realmente é feito na clínica. No Brasil, vigoram leis de 1940, data do Código Penal, que prevêem a interrupção da gestação somen-

te em caso de estupro ou de risco de morte para a mãe. A mulher que interrompe a gravidez por se considerar sem condições socio-econômicas para criar um filho ou por outro motivo é considerada criminosa. Sujeita à condenação de até três anos de detenção. Outra clínica clandestina, localizada no bairro Mondubim, também é muito conhecida. A médica tem uma longa carreira, aproximadamente, 25 anos só de abortos ilegais. Diferentemente da do bairro de Fátima, lá não é aceito nenhum plano de saúde e o pagamento, R$ 1.000, não pode ser parcelado. A consulta custa R$ 50 e o procedimento utilizado é a curetagem e o Misoprostol para provocar as contrações.

O aborto é a quinta principal causa de internação hospitalar de mulheres no Sistema Único de Saúde

Fátima (nome fictício), 28, visitou esta clínica em 2003. Decidiu com o marido interromper a gravidez . “Nós tínhamos, na época, uma filha de quatro anos. Há três anos estava sem trabalhar e acabara de conseguir emprego. Não saberia conciliar um recém-nascido com trabalho”, explica. Antes, comprou em uma farmácia quatro comprimidos de Cytotec, remédio para úlcera chamado , famoso por provocar aborto. A venda do medicamento está proibida em farmácias desde 1998, mesmo assim, não é difícil comprar um conjunto com quatro comprimidos por R$ 60, e só hospitais têm permissão do Ministério da Saúde para adquiri-lo. Tentou provocar o aborto em casa, mas não conseguiu. Uma farmacêutica a encaminhou para a “clínica”. O caminho tomado por Fátima é a opção da maioria das mulheres que provocam aborto opta: o Cytotec. Aparecida também usou o me-

dicamento. Quando tinha 25 anos, fez o segundo aborto. Tomou dois comprimidos e colocou os outros dois na vagina. Segundo ela, foi fácil comprar por R$ 100. Dessa vez, sentiu muitas dores. “Senti muitas cólicas. Às vezes vinha como se fosse um sangue coalhado, uns pedaços. Acho que era da criança, mas não veio tudo”. A dona da casa onde trabalhava a levou para o Hospital César Cals, onde fez-se a curetagem. Conforme a enfermeira da equipe interdisciplinar da Maternidade Escola Assis Chateaubriand (Meac) Vera Rolim, as mulheres atendidas na Meac alegam aborto espontâneo, mas ela adverte que os dados não são confiáveis porque muitas mentem por medo. Rolim explica que a maioria utiliza os comprimidos para iniciar o processo de abortamento em casa e chega à Maternidade sangrando, obrigando que os médicos façam a curetagem para evitar infecções. Na Meac, é feito em média de 200 a 250 procedimentos de curetagem por mês. A diretora da Maternidade, Zenilda Vieira, diz que o número de morte de mulheres em decorrência de aborto inseguro diminuiu, mas informa que, no ano passado, dois óbitos foram registrados. O último relatório divulgado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), em 2005, revela que cerca de 68 mil mulheres do mundo morrem em conseqüência de abortos feitos sem condições de segurança. Diagnóstico da Campanha por uma Convenção Interamericana de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos mostra que um milhão de abortos clandestinos são realizados por ano no Brasil. A prática também é a quinta principal causa de internação hospitalar de mulheres no Sistema Único de Saúde e responde por 9% das mortes maternas e 25% dos casos de esterilidade por problemas tubários. Os danos psicológicos vêm, na maioria dos casos, uma semana depois de realizada a interrupção da gravidez. A psicóloga integrante da equipe multiprofissional da Meac Ilana Barbosa diagnostica sentimento de culpa entre as pacientes que permanecem no programa de planejamento familiar depois que abortaram. “ Não é pra menos, o Brasil é um país extremamente religioso e católico. E mesmo que a mulher não seja praticante isso pesa muito. Além disso, a lei considera crime”. Aparecida confessa que não se arrependeu de ter feito três abortos porque não teria condições de criar e se ficasse grávida de novo sem querer faria novamente. De vez em quando pede que Deus a perdoe pelas vidas que tirou. “Acho que isso é um crime, tirar a vida de um ser, não deveria ser legalizado, não, dependendo do caso”. Fátima e Aparecida ainda guardam lembranças do ocorrido. (continua nas páginas 4 e 5)

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“Cachimbeiras” resistem Outras mulheres, por falta de dinheiro, recorrem a aborteiras de fundo de quintaltambém conhecidas como “cachimbeiras” ou “curiosas”- e aparecem nos prontos-socorros com o útero perfurado e órgãos mutilados. Como aborto é ilegal, mesmo nesses casos bizarros, muitas evitam até o último minuto ir ao hospital. Dentre os meios usados por essas “curiosas” está a utilização de vegetais, tais como: cravagem, centeio, arruda, sabina, thuia, tanaceto e o teixo, bem como a introdução de objetos (agulhas de tricô, tesouras, antenas etc.), esquartejando o feto ainda dentro do ventre materno. Há também injeções de sabão ou sal, banhos quentes, massagens e fricções no baixo ventre, duchas ferventes no colo uterino e rolhões vaginais (utilização de algodão gaze levado até o final da vagina), além das famosas baforadas de fumaça de cachimbo, com substâncias que causam torpor

mental na “paciente”, o que lhes rendeu a alcunha de cachimbeiras. Aparecida não gosta nem de recordar do primeiro aborto que fez. Levada por uma amiga à casa de uma abortadeira, na Aldeota, a mulher, que beirava os 60 anos, colocou o Cytotec em sua vagina e tentou retirar o feto com uma pinça. “Senti umas cólicas muito fortes. Passei uma semana com febre decorrente da infecção. Quando não agüentava mais fui para o Hospital de Messejana. Lá eles fizeram a curetagem porque ainda tinham ficado restos”. Ela pagou R$ 50 e admitiu que jamais deixaria que a levassem novamente para uma profissional desse tipo. Por pouco, salvou-se de complicações maiores, como perfuração do útero. “ Não tinha condições de criar e nem namorava mais o pai da criança. Não tinha casa, morava em casa de família e só tinha 23 anos. Por isso eu agüentei tudo isso”, desabafa.

Fonte: Monografia de Alzira Frota e entrevistas

Aborto no mundo

Legalização em Cuba reduz mortalidade em 60% Fonte:Women on Waves

Nos países onde o aborto é legalizado, seguro e disponível, as coisas são diferentes. É o caso da Holanda, onde apenas uma mulher morreu nos últimos 20 anos depois de um aborto. Mas o motivo foi dose exagerada de anestesia. Em Cuba, depois da legalização, em 1968, a mortalidade causada por aborto caiu 60%, segundo a Organização Mundial da Saúde. Em países como França, Alemanha e Inglaterra, não só é legal como há até centros de acompanhamento psicológico. Maria (nome fictício), 37, fez aborto quando tinha 23 anos, em Munique, Alemanha. Estava de viagem marcada para a Europa e descobriu que estava grávida dois dias antes de embarcar. Resolveu abortar escondida da família no exterior porque o bebê que esperava era fruto de um relacionamen-

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Legenda: Preto:o aborto é ilegal em quase ou todas as circunstâncias. Se permitido, é apenas em caso de risco de morte da mulher ou estupro. Rosa: O aborto é permitido em caso de estupro e risco de morte da mulher e ameaça a saúde da gestante. Branco:Lugares onde basta uma requisição para fazer aborto. to com um homem casado. Os amigos alemães levaram-na para uma clínica especializada. Antes do procedimento, teve assistência da uma psicóloga que a acompanhou durante e depois do aborto. “ Não senti nada. A enfermeira aplicou uma injeção sedativa. Passei duas horas em

repouso e fui embora”. Desde então nunca mais tinha falado sobre o assunto. Resolveu esquecer porque depois nunca conseguiu se perdoar. Apesar de toda a assistência que teve, hoje considera o aborto como crime, o que antes não admitia.

Laranja: O aborto é permitido por lei em risco de morte ou também para proteger a saúde mental da mulher. Verde - O aborto é permitido por lei até mesmo por motivos socioeconômicos.


Foto: Divulgação

Ministério da Saúde muda lei para aborto legal O ministro da Saúde, Humberto

lescentes” traz como principal mudança a

Costa, lançou, este ano, a Política Naci-

não exigência do Boletim de Ocorrência

onal de Direitos Sexuais e Reprodutivos.

(BO) policial pelas vítimas de estupro para

A orientação do governo para o assunto

a realização do abortamento legal. E já

tem como base o documento Direitos

foi publicada no Diário Oficial.

Sexuais e Direitos Reprodutivos: Uma

Segundo o Ministério, serão gas-

Prioridade de Governo. São normas de

tos R$ 40 milhões por ano para a distriFotos: Ana Karine

buição de pílulas, DIU e as pílulas do dia seguinte. Mas o que está causando discussão é a facilidade com que as mulheres poderão fazer o aborto nos hospitais, agora sem B.O, apenas alegando que foram violentadas sexualmente.

Vieira: “Aqui, aborto mata por ser ilegal”

Zenilda

saúde pública que, dentre outras, vão de

Vieira, diretora da Maternidade Escola

pílulas anticoncepcionais ao aborto em

Assis Chateaubriand (Meac), acredita

mulheres que foram violentadas.

que não aumentará o número de abor-

A norma técnica “Prevenção e Tra-

tos em decorrência dessa nova política.

tamento dos Agravos Resultantes da Vi-

“O que pode acontecer é diminuir o nú-

olência Sexual contra Mulheres e Ado-

mero de mulheres que chegam ao hospital com o abortamento iniciado, provocado em casa. Aqui, aborto mata por ser ilegal. Quem morre são mulheres pobres, que não podem pagar para fazer em uma clínica”, completa. A psicóloga Ilana Barbosa ressalta que com a antiga lei, o processo era muito demorado e quando a mulher conseguia a autorização, já passava de 12 semanas, tempo máximo permitindo para a realização do aborto legal, impossibilitando o procedimento. Entretanto, o número de aborto legal realizado no Brasil é insignificante. Desde 1998, a Meac tem o serviço e só registrou um caso, realizado em março deste ano. Até o ano passado era o único hospital de Fortaleza apto a fazer o abortamento legal, agora o Gonzaguinha de Messejana também é referência. Para a enfermeira Vera Rolim é preciso que se divulgue mais esse direito da mulher. Rolim adverte que a questão é muito delicada porque muitos médicos se recusam a fazer esse tipo de procedimento

Diário de reportagem Uma rápida procura no guia médico de um plano de saúde e pronto. Achei o telefone da clínica ginecológica que, na realidade, é uma casa de aborto. Telefonei marcando a consulta, mas a atendente me explicou que não era necessário. “ É por ordem de chegada”. Informou também que as “consultas” só aconteciam a partir das 17 horas e que se não tivesse plano de saúde, a visita custaria R$ 50. Cheguei às 19 horas à clínica na companhia de minha prima. Nenhuma cliente esperava, e as duas atendentes se mostraram muito receptivas. Perguntaram logo de início se nós duas faríamos o “procedimento”. Respondemos que queríamos primeiro conversar. As câmeras e o cadastro feito me fizeram sentir um pouco de medo. “Será que entrarei em contradição e ele me decobrirá?”, pensei. Aguardamos uns dez minutos. E enquanto isso, uma mulher, vestida como enfermeira, apareceu na sala e chamou uma das atendentes. Perguntei se sempre era assim, “vazio”. Ela respondeu orgulhosa que é sempre cheio. “ Está assim por causa da Semana Santa”. Na parede, várias placas e certificados do médico. Junto a eles, uma citação de John Kennedy: “Não sei o caminho para o sucesso, mas para o fracasso, com certeza, é querer agradar todo mundo”. A atendente abriu a porta da sala e me convidou a entrar. O médico de aparência jovem me surpreendeu. Esperava um senhor de mais idade. A consulta foi de apenas cinco minutos. O meu nervosismo era aceitável. Afinal, as mulheres que vão lá devem estar nervosas. O médico fez questão de ressaltar que o procedimento não deixaria marcas. “Com dois meses, nenhum ginecologista saberá que foi feita uma sucção”. Nos despedimos com um aperto de mão. Quando saí, a atendente me explicou as formas de pagamento e queria marcar a data para a volta. Disse que ligaria depois. O cartão não passou, mas ela disse que quando eu voltasse, tentaria novamente. Entrei no carro e a sensação de medo e de estar num lugar proibido acabaram. Meu dever estava cumprido. Fui embora, mas duas outras mulheres ficaram esperando. (A.K.Z)

por questões de ordem, ética, religiosa, Meac só registrou um caso de abortamento legal desde 1998

moral e de familiar.

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O jogo do bicho, um dos hábitos ou vícios mais praticados no país, sobrevive ao longo de 64 anos porque conseguiu localizar-se numa zona cinzenta e semi-aceita. A lei o designa como contravenção, ilícito que não chega a ser crime. Juliana Rolim

Foto: Juliana Rolim

O operário Benedito da Silva faz a sua fezinha do dia com o cambista, na Avenida Oliveira Paiva

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Fortaleza é a prova do território de ambigüidades e disfarces que deu ao jogo do bicho aura de impunidade para uns e legitimidade para outros. “Os apostadores julgam não ser crime fazer uma fezinha, mas o jogo do bicho é muito mais do que uma aposta inofensiva que se faz na esquina, é um conglomerado de atividades que se entrelaçam e se confundem, algumas aparentemente lícitas outras escusas e criminosas. Dificilmente o bicho escapa das seduções bilionárias do narcotráfico”, analisa o advogado Henrique Maciel. No centro de Fortaleza é possível encontrar em quase toda esquina aquelas mesinhas pretas com o nome Paratodos gravado em verde. São os cambistas que fazem os jogos e ao final do dia repassam a poule (comprovante do jogo) para o banco Paratodos, no Edifício Mororó, na Avenida Tristão Gonçalves, no Centro.

O luxuoso prédio, de quatro andares e fiscalizado por mais de 50 seguranças, funciona regularmente de segunda a sábado, das 9h às 17h. É neste banco que os ganhadores do jogo do bicho podem retirar a premiação e ainda contar com a segurança prestada pelo Paratodos. Se o prêmio for acima de R$ 4.000, um segurança acompanha o ganhador até a casa. O sorteio, aberto ao público, também é realizado no Edifício Mororó, diariamente às 14h e 18h. Segundo Maria de Souza (nome fictício), empregada do banco há 20 anos, trabalham no Edifício Mororó cerca de 300 funcionários. Como autônomos, ou seja, sem carteira assinada, eles mesmos pagam todos os encargos sociais. “Seria bom se o jogo do bicho fosse legalizado, a gente ia ganhar menos, mas ia trabalhar com carteira assinada, o que é bem melhor”, diz Maria. Atualmente, o jogo do bicho é contravenção penal, de acordo com o decreto de lei N.° 3.688, de 3 de outubro de 1941. No capítulo VII das contravenções relativas à polícia de costumes, o jogo do bicho é considerado jogo de azar, pois se classifica como jogo em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte. Segundo o Artigo 50, estabelecer ou explorar jogo de azar em lu-

gar público ou acessível ao público prevê prisão simples de três meses a um ano e multa. Apesar de a lei ser clara, funciona regularmente na Avenida Oliveira Paiva, na Cidade dos Funcionários a Loteria Gomes, representante do Paratodos. Na loja da Avenida Oliveira Paiva trabalham duas balconistas e um segurança. “São 45 lojas da Loteria Gomes espalhadas por Fortaleza, por dia é contabilizado cerca de R$ 1000 só com apostas do jogo do bicho em cada loja”, declara Érica Oliveira, balconista da loja. Não é necessário muito dinheiro para jogar no bicho. Qualquer nota de R$ 1,00 ou moeda de 50 centavos é suficiente. Basta sonhar com um animal ou ver uma placa de carro com o número sugestivo. As apostas são anotadas em um pedaço de papel. O apostador confia. O bicheiro garante. O funcionário paga. No fim, ninguém fica sem o prêmio. “Eu jogo todos os dias, jogar no bicho é mais divertido que jogar na sena. Não precisa preencher cartão de números, não tem que ficar em filas e não acumula”, explica o operário Benedito da Silva. Maria Rodrigues, vendedora ambulante, joga sempre que tem um palpite ou alguma conta para pagar. “A conta da luz já chegou, por isso eu estou jogando, e se Deus quiser eu vou ganhar”, sonha a vendedora. O apostador tem apenas três dias úteis para conferir os resultados, após o qual o jogo perde validade. Para conferir as extrações, o apostador dispõe do informador popular 144, dos jornais impressos e da Rádio Dragão do Mar, que anuncia os resultados às 14h e 18h. As divulgações são feitas diariamente, desrespeitando o Artigo 57 que prevê multa para quem divulgar por meio de jornal ou outro impresso, de rádio, cinema, ou qualquer outra forma, ainda que disfarçadamente, anúncio, aviso ou resultado de extração de jogos de azar. As agências que representam o Paratodos ficam com 30% do dinheiro arrecadado em apostas do jogo do bicho, já os cambistas ou passadores do bicho, com 25% das apostas. Edílson Gomes trabalha como cambista há 27 anos, sustenta a esposa e os quatro filhos com o dinheiro do jogo. “No Ceará foi sempre liberado, nesses 27 anos nunca tive que me esconder da polícia pra trabalhar”, respondeu Gomes ao ser perguntado sobre a legalidade do jogo. A tributação de atividades ilícitas causa perplexidade e incompreensão. Em primeiro lugar, indagam os leigos, se uma determinada atividade é considerada ilegal pelo Estado pode o Poder Público cobrar imposto de tal atividade considerada ilíci-


Foto: Juliana Rolim

ta? Em segundo lugar, se o Poder Público clusivamente da União”, explica Maciel. passar a cobrar imposto de uma atividade O jogo do bicho, atividade que era consiilícita, isso não importa verdadeira “legali- derada ilícita antes de ser tributada, contização” dessa atividade? nuará a ser ilícita mesmo depois de ser triO advogado Henrique Maciel expli- butada. Isso porque no caso do jogo do ca que por mais estranho que possa pare- bicho, mesmo com a cobrança do Imposto cer aos leigos, sim e não são as respostas Sobre Serviço (ISS) não significa “legalicabíveis a cada uma dessas duas indaga- zar” a contravenção. ções. Quanto à priA Câmara dos Foto: Juliana Rolim meira pergunta, a Deputados pode liresposta é sim. O berar o jogo do biPoder Público cho a partir de uma pode considerar mudança no projeilegal uma determito de lei que regula nada atividade, o os jogos de azar no jogo do bicho, por Brasil. A proposta, exemplo, e ao mesque já está pronta mo tempo cobrar para entrar na pautributo da atividade ta de votação da O jogo do bicho é o mais procurado na loteria ilícita. “É o que deCâmara dos Depucorre do princípio da abstração da ilicitude tados, é do senador Maguito Vilela na interpretação da definição legal do fato (PMDB-GO), que propõe conceder à gerador da obrigação tributária”, esclare- União, aos Estados e ao Distrito Federal ce Maciel. o poder de autorizar ou até terceirizar a Com relação à segunda pergunta, se exploração de loterias de qualquer ordem. o Poder Público passa a cobrar imposto A proposta, de apenas 22 linhas, aprede uma atividade ilícita, não será somen- senta mudanças ao decreto 3.688 de 1941, que te em razão dessa nova atitude do Poder classifica o jogo do bicho como contravenção Público que se poderá considerar “legali- penal. Prevê o crime em casos de exploração zada” a atividade tributada. “A competên- de loteria não autorizada, mas dá aos Estados o cia para legislar sobre o Direito Penal não poder de decidir quais loterias autorizar, é do Município e nem do Estado, mas ex- indiscriminadamente. (continua na página 8)

Edifício Mororó: banco do Paratodos, no centro da cidade

A história

E tudo começou no zoológico “A zebra distribuiu entre os ganhadores do jogo do bicho de terça-feira, no Zoológico, a gorda quantia de 1:450$040 (um conto quatrocentos e cinqüenta mil e quarenta réis). Uma fortuna.” Essa foi a manchete do jornal carioca Diário de Notícias no dia 3 de julho de 1889, data que se inicia a prática do jogo do bicho no Brasil. O jogo inventado pelo Barão de Drummond, em 1888, tinha a finalidade de arrecadar fundos para a manutenção do seu Jardim Zoológico, que se situava em Vila Isabel, bairro do Rio de Janeiro. O Barão de Drummond, usando a ordem alfabética, relacionou 25 animais, numerandoos seguidamente a começar do número 01. Foi erguido um mastro dentro do zoológico e, diari-

amente, às 07 horas, em segredo, o nome de um dos 25 bichos selecionados era colocado dentro de uma caixa, e esta erguida até o topo dele. Os ingressos para a visita ao zoológico, além

da figura, tinham o nome por extenso de um dos 25 animais. Às 17 horas, a caixa era arriada e aberta para que fosse anunciado o bicho do dia. Os visitantes portadores dos ingressos com a

imagem do bicho sorteado ganhavam um prêmio: uma parte do total arrecadado no dia, a parte menor, é claro, pois a maior ficava para o zoológico. Já no ano de 1892 as autoridades perceberam que estavam acobertando uma jogatina, havia pessoas que compravam os ingressos e imediatamente iam embora sem visitar o zoológico, somente voltando ao fim da tarde para conferir a sorte, assim o jogo do bicho foi proibido. Mas era tarde, a novidade havia se espalhado por quase todo o país. O sorteio não era mais com nome de bicho hasteado em poste. Realizava-se nas roletas, e permitia que além de se jogar apenas no grupo, fosse jogado, também, na dezena, na centena e no milhar. (J.R.)

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Águia: 2

20 Cachorro: 5

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Carneiro: 7

Camelo: 8

Cobra: 9

Coelho: 10

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44 Cavalo: 11

48 Elefante: 12

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60 Jacaré: 15

Gato: 14

Gala: 13

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73

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62

66

70

74

78

63

67

71

75

79

64

68

72

Leão: 16

Macaco: 17

76 Pavão: 19

Porco: 18

80 Peru: 20

81

85

89

93

97

82

86

90

94

98

83

87

91

95

99

84 Touro: 21

88 Tigre: 22

De acordo com a interpretação dos sonhos para a prática do jogo do bicho, cada sonho pode ser relacionado a um dos 25 bichos. Água: águia

Igreja: cobra

Aliança: avestruz

Leite: cavalo

Adultério: urso

Livro: burro

Anjo: elefante

Mãe: porco

Beijo: coelho

Mar: cobra

Casa: pavão

Marido: jacaré

Casamento: porco

Navio: tigre

Criança: borboleta

Pai: urso

Deserto: cobra

Pão: pavão

Dinheiro: peru

Ponte: cobra

Escada: camelo

Praia: tigre

Espelho: vaca

Relógio: touro

Fogo: pavão

Sangue: elefante

Hospital: borboleta

Vinho: carneiro

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16 Borbuleta: 4

21

Cabra: 6

8

12 Burro: 3

92 Urso: 23

96 Veado: 24

Como jogar? Como no sistema decimal as dezenas são em número de 100, e os bichos são apenas 25, a cada bicho coube quatro dezenas, distribuídas seguidamente em ordem crescente, a partir da primeira. Uma centena de um bicho é todo número de três algarismos terminado por uma das dezenas que a ele pertence. Por exemplo, 709 é uma centena de burro, porque termina em 09 que é uma dezena dele. E um milhar de um bicho é todo número de quatro algarismos terminado por uma das dezenas que a ele pertence, como 1234 é um milhar de cobra, porque termina em 34 que é dezena dela.

100 Vaca: 25

Glossário Poule: comprovante do jogo do bicho Cambista ou passador do bicho: pessoas que trabalham na rua fazendo as apostas e ao final do dia as repassam para o banco do PARATODOS. Deu no poste: gíria utilizada pelos cambistas para se referir ao resultado da extração. Jogar na cabeça: jogar só no 1° prêmio (o jogo do bicho tem a premiação que vai de 1 a 10, o 1° é mais difícil acertar).

jogo do bicho eletrônico

Jogar na milhar seca: jogar para concorrer apenas na milhar.


Foto: João Henrique Lopes

Comércio de pássaros silvestres resiste na Parangaba parangaba Localizada na Parangaba, a Feira dos Pássaros constitui espaço tradicional da cidade, onde a venda ilegal de pássaros silvestres, aos domingos, atrai vendedores e compradores. Lazer para alguns e trabalho para outros confundem-se com atividades proibidas Izakeline Ribeiro

Todos os domingos, no Pólo de Lazer da Parangaba, acontecem diferentes tipos de transações comerciais, de carros a animais silvestres. Em frente à arborizada lagoa, as facilidades de compra atraem pessoas da Região Metropolitana de Fortaleza, deixando as áreas próximas com muito engarrafamento. Ao circular pela feira, percebe-se que os territórios são bem definidos. Existem o espaço dos carros, outro onde estão as motos, e mais perto da lagoa ficam as bicicletas e mobiletes. São comercializadas ainda roupas, frutas, animais domésticos e silvestres. A venda de pássaros também levanta e sustenta a venda de ração, gaiolas de madeira, ferro, alumínio, inclusive o alçapão (armadilha feita de madeira). Às 10 horas da manhã torna-se difícil circular livremente, hora em que a feira encontra-se cheia. E sem conhecer os atalhos é quase impossível andar. Entre as barracas há também a área de alimentação, no qual são servidos lanches e refeições como buchada, sarrabulho, panelada, feijoada, espetinhos, salgados e até

Papa-arroz do-brejo na mão do comprador

mesmo o simples caldo de cana com pastel. Lazer para muitas pessoas, as roletas proporcionam diversão para jogadores que enchem as barracas. Mesmo com o aumento da fiscalização, o comércio de pássaros persiste. Segundo Pedro (nome fictício), um dos vendedores mais conhecidos por ter grande variedade de espécies, a venda de pássaros sempre foi o que chamou atenção de compradores em geral. Quando ele começou na atividade, em 1975, a feira ainda funcionava no bairro Jardim América, e a fiscalização não era acirrada como atualmente. Portanto, poucos pássaros silvestres ainda são vistos à venda no local. Devido às constantes fiscalizações dos agentes do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama) ou da Polícia Ambiental, os feirantes escondem os animais em casas próximas à feira ou nos próprios carros. São desconfiados, observam e comentam entre si quando percebem alguém que não é familiar. Chegar lá com câmera fotográfica ou filmadora é motivo para o visitante ser seguido a cada passo. E sempre alguém brinca e diz: “Lá vem o Ibama, corre aí negrada”, porém é só alarme falso. Segundo Pedro, eles ficaram temerosos porque depois de reportagens de televisão ou jornal, em seguida acontecia uma blitz do Ibama ou da Polícia Ambiental. Também é comum agentes do Ibama disfarçados fotografarem os feirantes e os animais. Muitos deles já foram presos e multados, dentre os quais Pedro, detido por estar com dois canários. Logo foi solto. Atualmente, não coloca mais os animais na feira, que segundo ele, tornou-se um ponto de encontro, para onde leva apenas gaiolas. Quando os compradores o procuram, ele vai à sua casa e o pega . Como Pedro, outros feirantes são conhecidos pela variedade de animais que possuem, circulam pela feira, conversam com compradores e outros vendedores e, quando solicitados, vão buscar os pássaros.

Azulão na Feira dos Pássaros: pássaro de origem do centro-sul do Brasil Alguns policiais civis ou militares, reclama Pedro, aproveitam a autoridade e tentam extorquir os comerciantes, fazem ameaças para conseguir os mais caros e os repassam a outros vendedores. Situação vivida por João (Nome Fictício), ele trazia os pássaros de Crateús, e para não ser denunciado era obrigado a dar uma das melhores aves. Foi então que começaram a pedir um “Pintassilgo-baiano”que está em extinção, tem canto muito bonito e bom preço de venda, contam os vendedores. João levou 20 e pediu que o policial ficasse esperando enquanto ia pegar um dos animais no carro. Acabou seguido, agredido e lhe tomaram todos os pássaros. Tentaram repassar para outros vendedores da feira Pedro e Beto dizem que não aceitaram. Beto (nome fictício) é vendedor há 25 anos, já foi detido tantas vezes que não lembra mais. Na última prisão, passou dois meses preso, autuado como traficante internacional, por ter o número do telefone de um estrangeiro no celular. Multado em R$ 15 mil. Entretanto, as multas não são motivo para barrar o comércio. “A multa, a gente rasga. Eu não tenho dinheiro para pagar mesmo”, diz Beto, que vende pássaros porque gosta da atividade e de criar também. O mesmo acontece com Pedro, que tem a atividade como profissão: “ É de onde tiro meu sustento. A natureza é para o homem explorar, sem exagerar, é claro”. Pedro não considera a atividade ilegal. Para ele, só

é proibido na feira porque são pobres, para os ricos que têm sítios e fazendas ter pássaros em cativeiro não é proibido. “Tomam aqui, vão dar para os ricos”, protesta Pedro. Marcelo (nome fictício) vende pássaros na feira há três anos, começou como comprador e, tendo algumas criações, passou a vender. Diz que é contra o tráfico de animais que vêm de outros estados, maltratados, mais de 10 pássaros em uma mesma gaiola. “Vender os pássaros da fauna cearense não é crime e deveria ser legalizado para nós”, afirma Marcelo. Rolfran Cacho Ribeiro, do setor de fiscalização do Ibama, explica que a feira da Parangaba é tradicional e muitos feirantes agrediam os fiscais do Ibama, colocando em risco a integridade física dos agentes. Atualmente, os fiscais vão acompanhados da Polícia Ambiental que tem poder de prisão e levam os vendedores para fazer o Boletim de Ocorrência (B.O). Os animais vão para o Ibama passar por uma triagem. Os que estão sem deficiências são soltos e os outros, tratados. A Feira da Parangaba não é registrada na Secretaria Regional IV de Fortaleza. Segundo Pedro Rodrigues, encarregado de bancas, a feira é completamente irregular e não tem nenhuma associação. E devido às suas dimensões ainda não existe projeto para regularizar a situação dos feirantes. Há muito tempo cogita-se a idéia de mudar a feira de lugar, mas não passa da idéia. (continua na página 10)

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Lei Ambiental proíbe venda de animais silvestres Foto: João Henrique Lopes

Segundo o Artigo 29 da lei de crimes ambientais contra a fauna, é crime matar, perseguir, caçar, apanhar, utilizar espécimes da fauna silvestre, nativos ou em rota migratória, sem a devida permissão, licença ou autorização ou em desacordo com a autoridade competente. Além disso também é crime impedir a procriação da fauna, sem licença, modificar, danificar ou destruir ninho, abrigo ou criadouro natural. De acordo com a lei, vender, expor à venda, exportar ou adquirir, guardar, ter em cativeiro ou depósito, utilizar ou transportar ovos, larvas ou espécimes da fauna silvestre, nativa ou em rota migratória, bem como produtos e objetos dela oriundos, provenientes de criadouros não autorizados ou sem a devida permissão, licença ou autorização da autoridade competente (Ibama) é crime.

Quem comprar também comete crime e sofre as mesmas penas que variam de detenção de seis meses a 1 ano e multas, como a aplicada ao vendedor Beto de R$15 mil.Às vezes, as multas são convertidas em prestação de serviços à comunidade. Mas Roberto (nome fictíceo), criador de pássaros, não se incomoda e sempre vai à feira em busca de um pássaro que tenha um canto bonito. “Eu gosto de criar, de ouvir os pássaros cantarem, por isso eu compro”, diz Roberto, que sabe que pode ser preso e multado tanto como os vendedores. Para obter um pássaro silvestre regulamentado, o criador deve procurar o Ibama, que tem animais criados em cativeiro, mas nem todos estão disponíveis. Existem ainda criadores que se cadastram e vendem pássaros anilhados ( veja matéria ao lado) pelo Ibama.

Comércio

Aves negociadas na feira

Galo de campina: um dos pássaros mais vendidos na feira

Como ter um pássaro regulamentado O Ibama fornece anilhas e tem um cadastro on-line para pessoas que criam ou permitem a procriação em cativeiro, o criador amadorista. As anilhas são anéis nos quais são gravados um número único, a data de nascimento dos pássaros, servindo como identida-

Arara-una

Bem-tevi

Cardeal

Papagaio

Sabiá - laranjeira

Sabiá - praiana

Pássaro anilhado

Tié

Tucano

Pintassilgo-baiano

Arapaçu-do- Nordeste

Araponga-de-barbela

Pica-pau-anão

de do animal. As anilhas têm diâmetro de acordo com a espécie e só passam pelo pé do pássaro de cinco a oito dias depois do nascimento, tentanto impedir que sejam colocadas anilhas em pássaros não autorizados. O cadastro é feito on-line, através do Sistema de Cadastro de

Criadores Amadoristas de Passeriformes (Sispass). A regulamentação é comprovada pela relação atualizada dos passeriformes do criador impressa pelo Sispass. As transações comerciais entre os criadores também devem constar nos arquivos da internet. Se o criador já Foto: Divulgação tem um pássaro de origem desconhecida, ou seja, que não foi adquirido em transação com um criador amadorista ou comercial cadastrado, não pode regularizar sua situação. No caso, os vendedores da Feira dos Pássaros compraram ou pegaram seus pássaros de forma ilegal. O criador tem direito a 50 anilhas anualmente, se forem reproduzidos mais de 50 pássaros, o criador deve atualizar o seu cadastro como criador comercial. Cada anilha custa R$ 3. Para ser efetivado, após o cadastro via internet, deve ser impresso e pago um boleto no valor de R$ 10. (I.R)

Serviço Site do Sispass: www.ibama.gov.br/sispass Ibama em Fortaleza - Rua Visconde do Rio Branco, Nº 3.900 - Fátima Fortaleza-CE - CEP: 60055-172 - Fone: (85) 272 1600

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Peças roubadas, pela metade do preço, a céu aberto Foto: Divulgação

Eletrodomésticos, roupas, calçados, frutas e verduras, cd´s, dvd´s, artigos do lar, bugigangas e até hélice de ventilador quebrado foi encontrada. O detalhe é que a maioria dos produtos colocados a venda é de procedência duvidosa, ou sem o eufemismo – roubados. Mesmo assim, Polícia e órgãos de fiscalização da Prefeitura fingem não ver.

André Alencar

Na feira da Parangaba é fácil comprar produtos roubados. São bicicletas, aparelhos eletrodomésticos, sons de carros, peças automotivas e até mesmo automóveis. Tudo é vendido ao ar livre - sem notas fiscais, sem consulta ao SPC ou Serasa, enfim, sem a menor burocracia. Ilegalidade que o tempo a tornou legítima. O costume virou tradição associado à omissão dos órgãos de fiscalização. Por causa da procedência duvidosa dos produtos, quem visita o local pode comprar o que quiser a preço muito abaixo do estipulado no varejo. Um aparelho de som, por exemplo, vendido em média a R$ 500 no comércio, é encontrado com até 50% de desconto. “É Sony. Modelo novo e de boa qualidade”, garante o ven-

dedor. O ambulante Aurélio Silva não se queixa de ter que caminhar vários metros debaixo de um sol a pino, mas não esclarece por que vende o produto a esse preço, assim também como não apresenta a nota fiscal do produto e nem diz como adquiriu o aparelho. São questões simples que levam a um raciocínio lógico: o aparelho de som colocado à venda na banca do ambulante é aquele mesmo que você comprou na loja. Chegou à Parangaba depois que seu carro foi arrombado. Apesar do notório conhecimento da prática de receptação, a Polícia não cumpre o seu papel. Não realiza blitzes durante os domingos, e por isso, permite a banalização do crime. “É proibido, mas fazemos isso há mais de cinco anos. Nunca fui preso”,diz outro vendedor. A feira da Parangaba está localizada a poucos quilômetros do 5º Distrito Policial.

Bicicletas roubadas são vendidas sem nenhuma fiscalização Durante os domingos, a delegacia não abre – uma vez que não funciona em regime de plantão. A área da Parangaba fica na responsabilidade do 11º DP, que fica no bairro Pan-Americano. “Não é papel da Polícia Civil realizar as blitze na Parangaba. O comércio da feira virou tradição na cidade. Nós não temos condições estruturais de fiscalizar a ação de Foto: Divulgação

Som de carro é comercializado sem nota fiscal

mais de dez mil pessoas durante os domingos. A Polícia Militar poderia fazer frente a esses ambulantes. Mas as condições de trabalho da PM são as mesmas da gente. Na verdade, a Secretaria de Segurança Pública precisa nos equipar mais”, reclama o delegado do 5º DP, Francisco Aldísio. Essas pessoas estão na Parangaba há muitos anos. O ambulante Antonio Pompeu, por exemplo, vende aparelhos eletrônicos desde os anos 70. Eles explicam que o comércio funciona naquele espaço desde 1988, mas já vendiam os produtos em outro local. A feira reúne mais de cinco mil bancas. É um espaço público onde nada é regulamentado. Os ambulantes trabalham de forma irregular. Não possuem o termo de permissão e uso – documento jurídico concedido pela Prefeitura de Fortaleza, que legitima a utilização do espaço. Por isso, não contribuem com centavo algum para a prefeitura. O chefe do distrito de meio ambiente da Secretaria Executiva Regional IV da Prefeitura de Fortaleza, Alan Arraes, promete que a Prefeitura ainda vai fazer o recadastramento dos feirantes. “A regional IV abriga oito feiras, nós temos o controle de todas, exceto a da Parangaba. A Polícia deveria agir com mais rigor no local”, defende Arraes. Enquanto isso, a feira se consolida como vai se tornando o principal ponto de venda de produtos roubados na capital cearense.

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No cassino de Fortaleza, além das inúmeras máquinas de caça-níquel, pode-se jogar roletas e cartas. Todos são jogos proibidos. A diversão fala mais alto, e a atividade funciona normalmente

Tiago Coutinho

- Coloca um real. É melhor de entender quando joga de verdade! O jogo começa. Rapidamente entenA visita “Na época, Las Vegas era o local onde dem-se a lógica e os comandos. Primeiro, uma milhões de otários vinham deixar milhões de nota de R$ 5, depois uma de dez. Perde. Faz dólares. Isso é Las Vegas. Jogadores não têm uma linha, recupera uma parte. Perde de novo. vez. O essencial é mantê-los jogando e fazer Ganha pouco, perde muito. Em alguns minutos já se foram R$ 30. com que voltem. QuanUma senhora eleto mais tempo jogam, gante, com a chave de mais perdem. No fim, fiMulheres um carro importado na camos com tudo”, explimão, observa o jogo. ca o personagem bonitas andam - Olha, quase Rothstein, um sócio pelo ambiente, dava certo fazer a liproprietário de cassino, nha. Essa máquina é no clássico filme “O conversam com safada... Cassino ”, de Martin os clientes e - É mesmo, tá Scorcese (1995). levando meu dinheiRealidade e ficção dão dicas aos ro. Já se foram 30 se encontram. É possíjogadores. O contos. vel sentir a sensação do - Isso não é nada. jogo clandestino sem prazer, com Só hoje já gastei R$ precisar ir a Las Vegas. investimento 280. Aqui em Fortaleza, no Não disse o bairro Mucuripe, promaior, pode ir nome. Havia chegado curando com atenção, além do jogo e ao cassino às 16 horas. facilmente tem-se moNo caça-níquel, ela já mento de prazer das carser um prazer perdeu muito dinheiro, tas e das roletas. Apecarnal não consegue nem sar de as cifras, as luzes contabilizar quanto. O e os luxuosos salões semáximo ganho em um rem mais simples que os do filme, o fascínio e a lógica assemelham-se. dia foi R$ 500, ínfima quantia diante do “inA entrada nem é tão discreta, há uma luminá- vestimento”. - Meu filho, não queira se viciar. Jogo ria com o nome bem na frente do estabelecimento, e as máquinas de caça-níquel pedem é bom, mas você só faz perder – alerta. - A senhora tem duas de cinco que posatenção com os sons e as luzes fortes. Os jogos se iniciam baratinho, com R$ 0,25 pode sa trocar uma de 10? - Eu? – estranha a pergunta, dá uma começar a aposta, mas a máquina só aceita leve risadinha e completa – Estou lisa total! notas, nada de moeda. A elegante senhora mostrava que a noite - Como é que se joga isso? A moça tenta explicar. Parece difícil de estava apenas começando. Havia jogo mais caro ali. Os R$ 280 perdidos não eram nada entender. Ela dá uma solução rápida: diante do “jogo lá de cima”. - Não está gostando das máquinas, senhor? - pergunta a funcionária.

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- Queria um jogo mais caro. Uma roleta! - Roleta? Pois não, senhor. Fulano, acompanha o moço até a roleta, por favor! Ao subir as escadas, logo se vê o tapete vermelho. Um lugar bem escondido. No meio de espelhos, uma porta se abre. As mesas, com os panos verdes, encontram-se cheias de fichas, arrumadas alinhadamente. O ambiente deve comportar aproximadamente 200 pessoas. Simpáticos, todos sorriem para quem acaba de chegar. O sotaque estrangeiro dos gringos impera. Vários banqueiros, aqueles que comandam as mesas, muito bem vestidos com as camisas vermelhas, oferecem e explicam os jogos: bacará, black jack e roleta (ver matéria pág. 15). Para uma partida de roleta, a aposta mínima é de R$ 5. Nas cartas, cada partida custa, no mínimo, R$ 20. A rapidez impressiona. O italiano calado no canto da mesa já perdia mais de R$ 1000. Os banqueiros têm muita agilidade. Recebem o

dinheiro, entregam as fichas, fazem o jogo, dizem que perdeu e já pegam de volta as fichas compradas há menos de um minuto. No final do jogo, trocam-se as fichas, se houver, pelo dinheiro equivalente. Geralmente, quando há um saldo de R$ 100 ou R$ 200, vem a pergunta: vai parar com tão pouco? O dinheiro fica guardado num cofre perto da mesa. Mulheres bonitas andam pelo ambiente, conversam com os clientes e dão dicas aos jogadores. O prazer, com investimento maior, pode ir além do jogo e ser um prazer carnal. O garçom caminha pelo salão e oferece cerveja, uísque, refrigerante, água, tudo por conta da casa. Dá vontade de não sair. Se quiser, é possível ficar até gastar o último tostão. - Aqui só tem hora para abrir, dez da manhã. Só fecha, quando o último cliente vai embora – informa um funcionário. É, eles parecem não temer mesmo estar em um lugar proibido.


Problemas com a lei A Constituição Federal traz com muita clareza. Estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público, segundo o artigo 50 do Decreto-lei nº 3.688, de 1941, é crime, prevendo pena de prisão simples, de três meses a um ano, e multa, estendendo-se os efeitos da condenação à perda do imóvel, dos móveis e objetos de decoração do local. Jogos de azar, segundo o mesmo decreto, são aqueles nos quais a vitória e a derrota dependem exclusiva ou principalmente da sorte (leia também matéria da página 4). A lei inclui como jogos de azar as apostas sobre corrida de cavalos e as apostas sobre qualquer outra competição esportiva. O artigo, em seu último parágrafo, proibe estabelecimentos destinados à exploração de jogo de azar, ainda que se dissimule esse destino.

Na justificativa da lei, coloca-se o cassino como espaço onde há degradação moral dos costumes humanos. A idéia não é de agora, há muito já se condenam os jogos. Na Bíblia, Isaías conta que o Messias ensinaria aos discípulos “mas a vós que vos apartais do Senhor, que vos esqueceis do meu santo monte, que preparais uma mesa para a fortuna e que misturais vinho para o destino, também vos destinarei à espada, e todos vós encurvareis à matança, porquanto chamei, e não respondestes; falei, e não ouvistes, mas fizestes o que é mal aos meus olhos e escolhestes aquilo em que eu não tinha prazer” (Isaias 65-11-12). Para o padre João Rodrigues, professor do Seminário da Prainha e membro da Teologia da Libertação, tudo deve ser servido na medida certa. Qualquer vício, para ele, se torna prejudicial. Vicio

é considerado uma fuga para os proble- virtuais, assim como também não há legismas, assim como a bebida e o cigarro. A lação específica nem controle eficiente polêmica feita sobre legalização dos cas- para a internet. “Por enquanto, pratica-se, sinos não o interessa tanto. “Eu, particu- no mundo virtual, a mesma legislação do larmente, prefiro me engajar em outras real. Ela só consegue eficiência nos cricausas, como tentar matar a fome das mes mais comuns. Atualmente, um estudo pessoas. Procuro trabalhar com leis que está em processo para criar uma legislação, regulamentando a virtualidade”. Casmelhorem a vida das famílias”. Padre João acredita que todo jogo sino virtual é crime, e os organizadores deem excesso faz mal, assim como tudo na vem sofrer as mesmas penalidades dos provida. Na opinião do padre, o problema não prietários de casas de jogos clandestinas. A distinção entre um jogo de azar ou se encontra no jogo de azar. Ele não concorda com a tentativa de ganhar dinheiro não é feita pela Secretaria de Segurança Púsem trabalhar, arriscando a sorte como blica, através do Instituto de Criminalista, fonte de renda. Jogar por meio de estudos espedrinha, apostando tatísticos. O Instituto, segundo Delano, consicom o amigo para saPesquisa dera bingos e loterias leber quem atira mais gais por não apresentalonge, é tão problemáconstata que, rem exorbitantes gastos tico quanto apostar em em uma cassino. E levanta uma de dinheiro. Jogos de semana, mais questão importante. cassino, como baralho, caça-níquel e roleta, en“Proíbem os jogos de de dois milhões volvem maior volume azar, os cassinos, mas, de jogadores de perda de dinheiro. contraditoriamente, As instituições permitem o baú da feacessaram dois licidade, as loterias felegais, como bingos e mil cassinos derais e estaduais.” lotéricas, trabalham com incentivos aos Além das loterias, virtuais e esportes e buscam faexistem também na apostaram, em zer parcerias. Cassiinternet, há pelo menos dez anos, cassinos virtuno, segundo Delano, 2003, cerca de ais. O consultor de é contravenção penal. U$$ 4 bilhões marketing e diretor preAs acusações vêm por formação de quasidente e sócio do Madia drilha e/ou associaMundo Marketing, Francisco Alberto Madia, em artigo publica- ção criminosa. Nesses casos, as penas do no portal Terra, no dia cinco de abril deste vão de 3 a 10 anos de prisão, para proano, mostrou dados das últimas pesquisas re- prietários, cúmplices e jogadores. Os alizadas sobre cassinos virtuais pela revista funcionários públicos envolvidos no Newsweek. O estudo constatou, em uma se- processo, principalmente policiais, permana, o acesso de mais de dois milhões de dem os cargos. Delano participou, enjogadores a dois mil cassinos virtuais. Os aces- tre 2003 e 2004, do processo de defesa sos são feitos em casas e/ou escritórios, e os de policiais civis e federais envolvidos jogadores deixaram, em 2003, nos cassinos no escândalo dos caça-níqueis, ocorrivirtuais, cerca de U$$ 4 bilhões. Os jogos são do em Fortaleza. (continua nas páginas 14 e 15) os mesmos dos cassinos reais: blackjack, dados, cartas. O pagamento é debitado no cartão de crédito. Ficam algumas questões no ar: se jogo de azar são aqueles que dependem da sorte, por que bingos e loterias são permitidos?; cassino virtual também é proibido por lei? O advogado e consultor jurídico Delano Cruz explica. Não existe uma lei apenas sobre os cassinos

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Os personagens da história O cassino sobrevive na ilegalidade, segundo qüilamente no ambiente permitido pela lei. Nenhum o comissário da Polícia Civil Alberto Matos (a pe- projeto visando a legalização das casas de jogo tramita dido da fonte, nome fictício), por haver cumplicida- hoje na Câmara dos Deputados. Existe engavetado, atude entres os policiais e os donos das casas. “Os co- almente, o Projeto de Lei Complementar nº 4652, de missários conhecem, muitas vezes, os cassinos e até 1994, de autoria do deputado Federal Aracely de Paula jogam neles, em alguns casos. Existe muitos adep- (PL-MG) que tenta legalizar os cassinos e o jogo do tos da jogatina. Por isso os cassinos estão abertos”. bicho. O projeto nem chegou a ser votado, pois fora Os policiais, segundo o comissário, recebem verbas arquivado pelo Senado Federal, em 1996. O estabelecimento funcionaria, de acordo com nas cifras dos milhões. Ele também adverte que os donos dos cassinos são pessoas extremamente ricas o projeto, como estímulo à industria do turismo e e perigosas, às vezes, envolvidas também com pros- ao desenvolvimento sócio-econômico do País, tornando-se patrimônio turístico e permitindo o investituição e tráfico de drogas. Alberto ressalta, no entanto, que nem todos timento estrangeiro no negócio. O cassino teria de compartilham da cumplicidade. Alguns acabam cer- promover programas artísticos nacionais. Utilizacando as casas e tentam fechá-las. Por isso, os cas- ria mão de obra local e realizaria trabalhos de presinos buscam mudar constantemente as sedes. servação do meio-ambiente. Nenhum proprietário poderia possuir mais do “Existem dois tipos dessas casas. Uma fixa, onde que três cassinos. Os donos e os policiais até jogam ou refuncionários estariam impedicebem propina para ignorados de participar do jogo, rerem o local. Outra, rotativa, “Existem dois tirar remuneração das comispara não chamar tanto a atentipos dessas sões conseguidas nas apostas, ção”. Os cassinos que mifazer empréstimos aos cliengram de locais se instalam na casas. Uma fixa, tes, ter benefício fiscal, rececasa de algum viciado e reonde os policiais ber empréstimos de financeicebem outros jogadores duras oficiais. rante um final de semana. até jogam ou Eles receberiam concesAlém dos rotativos, o recebem propina sões do Governo Federal, com corretor de imóveis Augusto autorização de funcionamento César (a pedido da fonte, para ignorarem o de um ano, podendo ser consnome fictício), ex-viciado em local. Outra, tantemente renovado. As casas jogos de azar, diz que os casde jogos ficariam obrigadas a sinos funcionam por temporotativa, para colaborar com iniciativas que radas. Quando há um feriado não chamar fomentem o turismo na área prolongado, jogadores de toonde se localizasse, promovendos os lugares do Brasil, tanto a atenção” do ou patrocinando eventos arcomo São Paulo, Brasília, tísticos e/ou esportivos e espeMato Grosso, viajam, sozitáculos locais. nhos ou acompanhados pela Muitos dos argumentos contrários aos casfamília, a Fortaleza para jogar. Eles fazem depósitos na conta do dono do cassino. Na contrapartida, sinos apresentam o espaço como local repleto de o propietário garante hospedagem, alimentação, criminalidade, prostituição, perda de valores mopassagem de ida e volta, além de prostituição, caso rais e dissolução da família. Mesmo ilegal, eles funo cliente queira. Parece mais um pacote de turis- cionam diariamente, sem nenhuma burocracia para mo. O depósito de aproximadamente R$ 30 mil entrar no espaço. Medo da lei e das complicações transforma-se em fichas para jogar. Depois do fe- penais parece realmente não existir. E talvez Rothstein esteja certo. Quanto mais se joga, mais riado, se ainda houver crédito, faz-se o saque. Segundo Augusto, quase nunca acontece lu- se perde. Não chega a ser uma Las Vegas, mas cro. “Sempre é a casa que ganha. Você pode até ga- com certeza a lógica é a mesma. nhar um dia ou outro, mas no geral, sempre se perde. Essa é a regra”. Geralmente, os jogadores apostam tudo e ainda depositam mais dinheiro na conta dos proprietários. Dinheiro, quase nunca é o problema. O público do ambiente, segundo Augusto, se constitui de grandes empresários, fazendeiros, políticos, juízes e desembargadores. Uma elite disposta a pagar caro pelo prazer propiciado pelas apostas. Não há, porém, previsão de quando a elite poderá jogar tran-

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O vício da jogatina Jogo dinâmico! Você recebe as fichas, quando menos espera, elas acabam. Compra mais e acabam de novo. Perde dinheiro hoje. Amanhã, tenta recuperar o dinheiro perdido. Na tentativa, a frustração. “Hoje não é meu dia de sorte, quem sabe amanhã, de novo. Mas é tão bom jogar, tão prazeroso”. E, quando menos se vê, o vício tomou de conta.

Vicio é considerado uma fuga para os problemas, assim como a bebida e o cigarro (padre João Rodrigues)

É mais ou menos assim que começa o vício, sejam bingos, jogo do bicho, roleta ou baralho. Augusto César (a pedido da fonte, nome fictício) viveu durante cinco anos o problema. Quando viciado, freqüentava o cassino até três vezes na semana. Hoje, não joga mais. Começou a freqüentar por diversão, farra e gandaia. A jogatina o emocionava e

sempre havia a expectativa de ganhar. A sensação do simplesmente ganhar trazia, para ele, uma maior emoção que o dinheiro ganho. Mas ele nunca ganhava. Chegou a perder em uma noite até R$ 50 mil. Havia semanas em que a despesa ultrapassava R$ 100 mil. Com constantes derrotas, continuava jogando, na esperança de conseguir recuperar parte do dinheiro. Além de jogo, o cassino também oferecia a ele prostituição. César conseguiu sair do jogo, há pelo menos três anos. Se tivesse continuado, provavelmente levaria sua empresa a falência. Normalmente, o jogador só sente o vício do jogo como um problema, quando há grandes prejuízos econômicos. Essa é a opinião da psicóloga Karla Magalhães, do Centro de Estudos em Psicologia (Cemp), que realiza terapias com viciados em jogos. O vício, segundo Karla, é considerado doença, chamada de Transtorno Psiquiátrico. O tratamento, às vezes, é feito com receitas médicas, mas poucos viciados procuram ajuda médica e psíquica. “Durante o processo de jogo, do ato de jogar, existe um grande prazer no jogador, ele não pensa em nada, esquece todos os problemas e se concentra apenas no momento”, explica. Depois, vêm os prejuízos, quase sempre financeiros que remetem aos familiares e a outros relacionamentos. Faltam dados estatísticos, conforme Karla, para se saber quais os principais motivos que levam alguém a ini-

ciar o vício. Cada caso traz características específicas. Pode-se afirmar, no entanto, que o jogador busca um prazer não encontrado em outro espaço. Uma fuga dos problemas familiares ou de outros problemas. A satisfação imediata só existe no jogo. Mesmo sem dados, Karla atenta para o fato de ela constantemente consultar aposentados. “Normalmente os aposentados são pessoas ociosas, sem ocupação e encontram no jogo um passatempo”. Em Fortaleza, especificamente, os bingos se encontram no centro da cidade, onde também há concentração de financiadoras. Aposentados e pensionistas têm facilidades para conseguir empréstimos. Alguns planos já descontam di-

retamente no salário do INSS. Torna-se um ciclo. O aposentado perde no bingo, vai à financiadora e volta ao bingo para gastar o dinheiro. “Peguei casos em que os senhores estavam extremamente endividados. Não recebiam nenhum centavo no final do mês, pois haviam comprometido com dívidas de jogos”, completa. Karla lamenta, pois quando o paciente procura o tratamento, já se encontra bastante prejudicado psicologicamente e endividado. Ela também diz não haver período específico de quanto tempo leva o tratamento. Assim como o motivo que leva alguém a se viciar, o tratamento modifica de acordo com a realidade de cada paciente.

Regras

Quais são os jogos e como jogar? Bacará: De origem francesa, é jogado com cartas de baralho. Participam do jogo um banqueiro, representando o cassino, e vários jogadores. Cada jogador aposta nas oito cartas tiradas para a banca, ou nas oito tiradas para os clientes. Ganha aquele que com a soma de duas ou três cartas conseguir chegar a nove ou próximo dele. Quem ultrapassar a nove perde e entrega as fichas apostadas ao banqueiro.

Black Jack: Também conhecido como 21, o jogo se assemelha ao Bacará. O banqueiro distribui duas cartas para todos na mesa, inclusive para ele. O objetivo do jogo é somar 21 entre as cartas ou chegar o mais próximo dele. Se, com as duas cartas, o número for muito pequeno, como oito ou dez, o apostador pode pedir cartas à mesa, para chegar ao valor mais próximo de 21, mas se extrapolar, perde o jogo, e o banqueiro recebe suas fichas.

Roleta: Numa mesa, ficam distribuídas 36 casas, numeradas de 1 a 36. O jogador aposta em uma casa, ou em quantas quiser, para tentar a sorte. O banqueiro gira a roleta, com todos os números, e joga uma bolinha. Quando a roleta pára, aquele que tiver acertado o número da roleta, recebe a aposta de todos os outros jogadores. Caso ninguém acerte, o banqueiro recebe as fichas de todos os apostadores.

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O comércio ilegal é “atividade” antiga em um morro localizado no centro de Fortaleza, conhecido como um dos maiores pontos de vendas da cidade. Apesar da ronda diária, policiais são subornados frequentemente por traficantes e “aviões” Camila Rocha

Produção de fotos: João Henrique e Camila

Ruas esburacadas, casas amontoadas umas sobre as outras, falta de saneamento básico, crianças jogando bola, mães com bacias de verduras trepadas na cabeça e algumas senhoras sentadas nas calçadas. Este é o cenário de um Morro (nome preservado) localizado no Centro de Fortaleza, conhecido por ter um dos maiores ponto de vendas de drogas da cidade. Logo na subida, os moradores já identificam a casa de Carlos (nome fictício), um dos traficantes. Tratado com respeito pelos moradores, ele conta que o comércio de drogas existe há muito tempo na área e os “homens” (nome dado aos policiais) nunca conseguiram acabar

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com a venda ilegal do produto. “No início, quando o trem passava por aqui, a maconha chegava em saca, e a polícia não dava tanto em cima, havendo uma cumplicidade mais pacífica por parte deles”, diz Carlos. Vários tipos de drogas são comercializadas no Morro, como maconha, ripinol, aranha, cocaína e crack. Cada produto obedece a uma forma diferenciada de distribuição. O “comprimido”(Ripinol), por exemplo, é fornecido diretamente para o cliente sem intermediários. Em geral, a droga é repassada por pessoas que trabalham com contrabando de medicamentos farmacêuticos. A cocaína, extraída da folha de coca, passa por um processo especializado. Ela é refinada até virar um pó branco. Já o crack, vendido em pequenas pedras, é feito em laboratório e consiste, basicamente, em uma pasta de cocaína não refinada. “O laboratório é a cozinha dos traficantes”, enfatiza Carlos. As drogas consideradas mais modernas, como é o caso da cocaína e do crack, provêm do Rio de Janeiro e de São Paulo. No caso da maconha, geralmente, vem do Maranhão. Diferença de classes não existe no vocabulário dos traficantes. “Todo mundo sobe o morro a procura da droga, tanto a classe A, B e C, e o preço é o mesmo pra todo mundo”, explica o traficante. Carlos não nega que na maioria das vezes as pessoas das classes menos favorecidas sempre são as mais prejudicadas. Os “zumbis da noite”, nome popular dado aos viciados de classe baixa, começam a roubar para garantir a droga e acabam presos. As prostitutas e os engraxates são exemplos de consumidores que trabalham para sustentar o vício. “Eles correm de real em real, e como não têm acesso fácil às drogas acabam presos, espancados e até mortos por pirangagem”. Entre o traficante e o cliente existe uma pessoa que faz a intermediação da droga, o chamado “avião”. Conhecidos também como “laranjas”, os repassadores ganham de R$ 10 a cada R$ 50 apurados. O preço das drogas é variado. A maconha é vendida em balinha de R$ 2. O sacolé, saquinhos com aproximadamente 5 g de cocaína, custa R$ 10 cada. “O valor do pó depende do bolso do viciado, se ele tiver condições de comprar é vendido mais”, declara Carlos, com tom sarcástico. Para ter acesso aos “aviões”, muitas vezes os clientes precisam subir o morro e correr riscos de serem resvistados pela


polícia, ou passarem pelo famoso “baculejo”, avisa. Quando isso acontece, o cliente sai no prejuízo porque além de recolher a droga, a Polícia ainda exige dinheiro de valor alto para liberar o flagrante. “Quando o viciado não solta a grana, a polícia coloca ele na viatura e dá umas voltas ou até mesmo umas lapadinhas, dependendo da classe social”. Diariamente acon-

No Morro, os traficantes são vistos como pessoas poderosas. “Aqui no Morro, primeiro Deus, depois nós”, diz Carlos.

tecem prisões em flagrante no Morro, mas os policiais são sempre subornados segundo um dos moradores do Morro que não quis revelar o nome. Carlos revela que tem, atualmente, cerca de seis “aviões”. Quando eles caem nas armadilhas da Polícia o traficante paga logo a soltura dos mesmos. “A gente não deixa nem chegar na delegacia. Antes de ser levado, já intercepta os responsáveis e negocia”, revela ao afirmar que “nesta vida só não tem jeito pra morte”. O traficante chega a pagar em torno de R$ 500 para livrar um flagrante, que se eleva é ele próprio.

O que mais atrapalha o comércio das drogas, além da ronda diária da Polícia, é a concorrência no Morro. Vários traficantes detêm o poder do produto dificultando a transação ou “cruzetagem”, como costumam chamar. Mas nem só de dinheiro em espécie sobrevivem. “Na falta do papel moeda a gente não dispensa aparelhos modernos, não”, diz Carlos. Em troca da droga, o cliente oferece celulares, câmeras digitais, sons e até carros. Os produtos são vendidos ou passam a lhes pertencer. Mesmo vistos como traficantes, os donos da droga são respeitados no Morro. Eles prestam ajuda aos moradores, dando prioridade às famílias dos “aviões”. “Se uma mulher precisa ser levada à maternidade, a gente leva, se uma família tá precisando de remédio para os filhos, a gente providencia. O pão de cada dia, a gente coloca na mesa também”, alega Carlos. Ele responde não ter medo de ser entregue pelos moradores, já que muitos compram o produto para consumo próprio.“Nós é que ajudamos a comunidade. Político aqui só chega, promete e não faz nada”, revolta-se. Mas nem todos os moradores da favela conseguem conviver em meio à tensão daquele comércio. Alguns arriscam fazer denúncias anônimas e acabam sendo prejudicados. “Hoje em dia, a polícia facilita tudo pra todo mundo, principalmente para os traficantes. O maior prejudicado sempre vai ser o morador, caso ele venha nos entregar. A polícia só se interessa no dinheiro e muitas vezes agride até gente inocente”, comenta. No Morro, os traficantes são vistos como pessoas poderosas. “Aqui no Morro, primeiro Deus, depois nós”, filosofa Carlos. E o lucro mensal? Esta informação ele prefere não revelar.

Círculo mantém vício Fernando (nome fictício), 20 anos, é “avião” há três. Ele conta que a maioria dos repassadores é viciado no produto, logo, todo o lucro no comércio das drogas é convertido no próprio consumo. “ O lucro de um ‘avião’ é prejuízo pra ‘mente’ ”, enfatiza.Fernando se considera um viciado e confessa que entrou nessa “profissão” pela necessidade de garantir a droga, já que se considera um viciado. “Eu não queria roubar, nem matar, então pelo menos eu trabalho pra consumir o produto”, resigna-se. Obstáculos são muitos para que o comércio “funcione”. A polícia é apontada, sempre, como sendo um dos principais.”Eles maltratam a gente, judiam e até batem sem pena”. Ser preso não é mais novidade para os “aviões”. Fernando, por exemplo, foi pego em flagrante três vezes. “ A primeira vez me bateram para eu entregar uma pessoa grande aqui no Morro, não entreguei”, conta ao explicar que preferiu ser preso temendo represálias. Na segunda vez, a prisão ocorreu na subida do Morro, mas o tuxal, forma que denominam os chefes do tráfico, providenciou a soltura antes de ser conduzido à delegacia. Mais uma vez o policial foi subornado. Fernando responde por tráfico de drogas. Questionado como os clientes o reconheciam como “avião”, Fernando não ousou responder: “Eu pergunto só quantas”. Em geral, os clientes são pessoas conhecidas no local e quando sobe um estranho e sem procedência, dificilmente é atendido. “ A gente nega que vende o produto e não libera, não”, declara Fernando ao

informar que a polícia costuma subir à paisano para estourar o cerco. Fernando não esconde que conhece as táticas de disfarce da polícia.”Eles, às vezes, chegam vestidos com fardas da Cagece, de gari, aí o nego fica ligado”, esclarece ao garantir que não vende droga a pessoas estranhas. A família de Fernando sabe de seu envolvimento com o comércio ilegal das

drogas, mas, segundo ele, não existe nenhum problema.” Eles são ‘tudo viciado’ também e não podem nem reclamar de mim”, fala revoltado. Fernando não pensa em desistir e confessa não ter medo da polícia. “ A gente vive nessa vida mesmo, né? Fazer o quê?”, conclui com uma minuto de silêncio.

Glossário Zumbi da noite – Viciado de classe baixa que começa a roubar para comprar a droga. Avião ou laranja – Homem que repassa a droga para o cliente Sacolé - Saquinhos de cocaína Pirangagem ( pirangar) - Pessoa que pede e vive de esmolas. Baculejo - Revista feito por policais Cruzetagem - transação ou troca das drogas com outros traficantes Tuxal - nome dado ao chefe do tráfico (termo denominado da palavra tuxaua que significa chefe político)

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Rinhas desafiam defensores de animais Maus-tratos para uns e entretenimento para outros, as brigas de galo acontecem livremente em diversos bairros de Fortaleza, desafiando defensores de animais e a Lei de Crimes Ambientais, que proíbe, em seu artigo 32, práticas de abuso contra os animais. Paula Neves

A conversa é “mole” e não pretende impor uma opinião. Jorge (nome fictício), criador de galos e proprietário de uma rinha na Barra do Ceará, é bastante atencioso e explica com gosto como os galos são tratados. “Nós damos a melhor ração, remédio para verme, tudo. Eu gasto mais de R$ 300,00 por mês na alimentação de 96 galos. Às vezes, a comida deles é mais cara que a minha”, diz, abrindo uma das gaiolas individuais e mostrando um animal com algumas cicatrizes. Assim como ele se mostra acessível, não é complicado descobrir onde se localiza o endereço da rinha, fornecido por um centro de treinamento de galos no bairro da Parquelândia. Os vizinhos são os primeiros a indicar onde

fica a entrada, também permitida a estranhos. Ninguém se mostra constrangido. A rinha, que funciona naquele terreno há quatro anos, faz parte do cotidiano. Crianças, mulheres, todos circulam ao redor naturalmente. Lá dentro, embora o ambiente seja predominantemente masculino, a presença de mulheres não é proibida. É a esposa de Jorge que atende num pequeno bar que próximo ao local onde acontecem os embates entre os galos, um tipo de poço de mais ou menos meio metro de altura por um e meio de largura. “Nós não incitamos os galos a brigarem. Não há treinamento específico para a luta. É do instinto de sobrevivência deles. A gente faz é separar porque eles já nascem violentos”, argumenta Jorge, esclarecendo não viver do dinheiro da rinha, e sim de sua aposentadoria. Afirma que se os galos de raça não fossem criados para a briga, entrariam em extinção, ninguém mais os domesticaria. Segundo Jorge, a idade certa para o galo se iniciar em competições depende mais do dono do animal. “Geralmente é a partir dos 14 meses, mas quem não tem condições

Foto: Arquivo pessoal

A advogada Geuza Leitão mostra galo apreendido em rinha

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de criar o animal por muito tempo, acaba coA nova Lei de Crimes Ambientais, Lei locando para a briga mais cedo”. 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, no seu É fácil encontrar quem faça coro a Jorge. artigo 32, ainda mais rigorosa, surgiu para preDonos de galos, freqüentadores e apostadores encher possíveis lacunas das leis anteriores. parecem concordar ele. Há quem defenda ser o Proíbe a prática de ato de abuso, maus-tracavalo é muito mais maltratado em competi- tos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésções, tomando estimulantes, enquanto o galo ticos ou domesticados, nativos ou exóticos. apenas segue seu extinto. E existe quem argu- A pena é a detenção de três a um ano, mais mente se tratar de um esporte milenar, sem ra- multa. Pode ser aumentada de um sexto a um zões de ser proibido pela justiça. Outros defen- terço quando ocorre a morte do animal. dem que os policiais deveriam procurar bandiA Secretária da Comissão do Meio Ambidos porque ali não se ente da OAB-Ce e preestá fazendo mal a ninsidente da União Interguém, “nem bebida alnacional Protetora dos É o instinto de coólica entra”. NeAnimais Seção Ceará sobrevivência do nhum deles, no entan(Uipa), advogada to, quer sua identidaGeuza Leitão, afirma galo que faz ele de à mostra. que “a legislação não brigar, A preocupasão respeitadas” porque ção não é à toa. As as rinhas são freqüentaargumenta Jorge rinhas haviam sido das por autoridades, proibidas desde 18 como promotores e pode maio de 1961 liciais. “Eles não têm copelo então presidente Jânio Quadros, que ragem de seguir a lei. A própria polícia, muitas assinou a Lei 50.620, prevendo punição vezes, não tem coragem de entrar nesses lugares”. para quem promovesse ou participasse de Geuza Leitão há bastante tempo tenta senbriga de galo. A pena poderia variar de 10 sibilizar a sociedade para o que considera a mais dias a um mês de detenção. A decisão foi “horrífica de todas as lutas, apenas comparada tomada na época com base no Decreto com a luta de gladiadores das arenas romanas”, 3.688, de 1941, que não considerava cri- informa ter enviado solicitações ao Ministério Púme, mas contravenção penal a exibição de blico para que as rinhas sejam extintas. Porém, animais em espetáculos públicos e o trata- reclama que os ofícios somem e que chegou inmento cruel dados aos mesmos. clusive a receber ameaças e a ser perseguida.


Fotos: Divulgação

Espetáculo ou crueldade? São duas verdades que se chocam de frente e uma Lei que até hoje não conseguiu ser cumprida. Enquanto defensores de animais tentam comprovar a agressividade a que os animais são submetidos nos embates sangrentos, que muitas vezes envolvem dinheiro e sadismo, donos de rinhas e frequentadores argumentam que essa é uma prática inofensiva, praticada em vários países e que, por isso, não teria motivo para ser proibida. De um lado os primeiros afirmam existir um treinamento cruel de preparação dos animais para os combates. Do outro, tenta-se fazer crer que, na realidade, nada é feito para incitar o animal à briga. Talvez seja por acreditar nisso que estes últimos não se sintam desrespeitando à lei. Para eles, tudo é uma questão de tempo e de um grande mal entendido. “Em alguns estados já existem leis que regularizam as rinhas”, informa Jorge, citando a existência de um Centro Galístico Brasileiro (CGB) que, segundo ele, estaria à frente da regularização nacional do esporte. Várias dessas leis municipais e estaduais, no entanto, já foram derrubadas por Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIn) em

Preparação

A vida de “atleta” do galo Os galos de luta se iniciam no treinamento, que dura cerca de dois meses, ainda cedo. Pálpebras, parbelas (penas que correspondem à barba) e as penas do pescoço, coxas e debaixo das asas são cortadas. Para o fortalecimento das pernas do animal, o treinador tem de jogá-lo ao alto várias vezes e esparramá-lo no chão. As unhas, por sua vez, são fortificadas com o animal sendo puxado e arrastado pelo rabo, simulando o desenho de um oito ou de um círculo no areia. Finalizado o aspecto físico do treinamento, ele começa a simular brigas usando biqueiras e buchas nas esporas para que eles não se machuquem e possam ir inteiros para a briga real, onde finalmente são preparados com esporas padronizadas de 2,5 centímetros e têm de lutar com um animal do mesmo tamanho.

As brigas duram geralmente 1h45 e são dividas em rounds, como em lutas de boxe. O primeiro de 15 minutos, e os demais de 20, com intervalos de 5 minutos. A luta se encerra quando um deles morre, é mutilado ou quando o proprietário de um dos animais desiste. O em-

pate ocorre caso nenhum deles desista ou morra. Embora a Lei proíba claramente o esporte, é fácil comprar ração especial para esses animais em qualquer loja especializada. O manutenção de um campeão, muitas vezes, pode ser bem onerosa ao seu criador.

estados como Rio de Janeiro, Santa Catarina e Bahia, que já tentaram de várias formas mudar o artigo 32 da Lei de Crimes Ambientais e não conseguiram. A eterna luta de galistas versus ambientalistas e poder público se estende já há algum tempo. O diretor do Centro Esportivo Cearense, outra rinha que funcionou no bairro Joaquim Távora, que não se identifica por motivos óbvios, lembra que a primeira lei que proibia as rinhas foi criada por Jânio Quadros, por intriga e ciúmes. “O sogro dele era viciado em briga de galo, mas como ele tinha brigado com sua esposa e ela não suportava o esporte, acabou

proibindo as rinhas para agradála”, pondera o diretor. O Centro Esportivo Cearense funcionou por mais de 60 anos e há cerca de um mês foi fechado. Era frequentado sobretudo pelas classes mais altas e, de acordo com Jorge, um dos motivos para o fechamento foi a falta de espaço interno para estacionamento, o que constrangia os frequentadores. A dificuldade de pôr em prática a Lei é também ressaltada pelo analista ambiental de Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Francisco Antonio de Brito. Para ele, as coisas não são simples e não caberia apenas ao órgão a proteção dos animais, e sim à Polícia Federal, Uipa e OAB. “Não adianta repressão, tem que haver diálogo. Não é simplesmente chegar e fazer o flagrante, você tem que chegar com a polícia federal, promotores. Sem falar que esse pessoal que é aficionado por rinha muda muito de lugar.” Ele considera que a prática já diminiu bastante no Estado e que quem aciona o órgão é o Ministério Público. “O Ibama não pode fazer muita coisa sozinho. Sociedade e imprensa têm de se conscientizar.”

Briga radical e secular Não é somente por hobby que galistas, apostadores e freqüentadores driblam as leis e buscam a regularização das rinhas. Para eles, mais do que um simples entretenimento, a briga entre galos é uma prática séria, com mais de quatro séculos de história. Exemplo disso, Duda Mendonça, principal marketeiro da campanha vitoriosa de Lula à presidência da república, quando foi autuado em flagrante em uma rinha de luxo no Rio de Janeiro, no dia 21 de outubro de 2004, não fez questão de negar que é freqüentador assíduo e disse, ainda, que era do conhecimento nacional essa sua paixão. Esporte conhecido e praticado em várias partes do mundo, as rinhas nasceram, provavelmente, na Inglaterra em tempos medievais. Te r i a m sido introduzidas no Brasil por aventureiros europeus em meados do século XVII, que teriam trazido

os primeiros galos de briga nos porões dos grandes navios. Similares às lutas de valetudo, acontecem numa espécie de ringue ou arena onde os apostadores analisam desde força, agilidade para golpear e se defender, resistência, firmeza no bico e golpes certeiros dos animais. Tão fácil como encontrar uma rinha numa grande cidade é encontrar quem as defenda com veemência. “Se você colocar um cavalo perto de uma carroça, ele não vai atrelar-se à ela e sair puxando. Agora experimente colocar um galo de combate próximo a outro. Depois tente explicar onde estão os “maus tratos”, argumenta um defensor em um fórum à favor do esporte na Internet. Dentre as raças mais conhecidas e cobiçadas estão a tailandesa, a japonesa, a inglesa, a espanhola e a mexicana. O preço de um galo vencedor pode chegar a custar em torno de 10 mil reais ou mais.

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Emoção e polêmica marcam lançamento do Sobpressão Fotos: Arquivos CIUMS

O lançamento da quinta edição do Sobpressão, realizado dia 14 de abril, no auditório da biblioteca da Unifor, trouxe à tona um tema que muitas vezes é deixado de lado pela mídia dado o seu grau de complexidade, o trabalho infanto-juvenil e, em particular, o trabalho infanto-juvenil doméstico Paula Neves

A idéia de discutir o tema surgiu a partir de uma inquietação. Tratava-se de um problema que, além de estar arraigado na cultura escravocrata do País, merecia discussão já que, ainda hoje, só no Ceará, quase 200 mil crianças e adolescentes continuam sendo atingidas. Assim nasceu a quinta edição do Sobpressão, jornal da disciplina de Projeto Experimental em Impresso. O jornal abordou vários aspectos do trabalho infanto-juvenil, suas causas, conseqüências e o que está sendo feito com o objetivo de erradicá-lo. O lançamento do jornal contou com a participação de alunos e professores que assistiram à apresentação de “Você viu a Rosinha?”. A peça é produto de pesquisa sobre o trabalho infanto-juvenil doméstico desenvolvida no âmbito da Pró-Reitoria de Extensão da UFC, onde os alunos de psicologia, economia doméstica e direito abordam a questão.

Após a exibição da peça, o debate tornou-se o grande momento. O professor de Marketing, Flamarion Pelúcio, relatou já ter vivenciado de perto a questão, quando abrigou uma menor em sua residência. Para ele, “um dos grandes culpados dessa realidade é a estrutura capitalista sob a qual vivemos”. Helena Matos, professora de Ciência da Informação, defendeu que “o importante é a tomada de consciência dos cidadãos no que diz respeito à responsabilidade da sociedade, se o que desejamos é uma mudança da realidade”. Quem também expôs um caso pessoal foi a estudante de jornalismo Edilene Vasconcelos, que num depoimento emocionado explicou como se viu obrigada, ainda criança, a sair do convívio familiar, no interior do Ceará, para trabalhar na casa de uma tia em Fortaleza. Edilene deixou claro que, embora tenha conseguido dar a volta por cima, “essa é uma marca que não é apagada com o tempo, que sempre trará enormes conseqüências na vida da criança ou do adolescente”. (Ver entrevista abaixo)

Apresentação de “Você viu a rosinha?” “A temática do jornal foi muito feliz, mexeu muito, desmascarou o problema. Envolve um aspecto da cultura que devemos enfrentar. É um desafio aos direitos humanos”, salientou a professora Célia Gurgel, autora do texto da peça “Você viu a Rosinha”. Ela acrescentou que pessoas com histórias similares geralmente encontramse ao nosso lado, e parabenizou o tratamento gráfico e o esforço dispensado na

Platéia assiste à peça elaboração do Sobpressão. Lembrou que “um dos fatores essenciais para a erradicação do trabalho infanto-juvenil é somar esforços”.

Quando a vida imita a arte Foto: Luiza Holanda

Personagem importante no lançamento da quinta edição do Sobpressão, a estudante de jornalismo Edilene Vasconcelos emocionou a platéia quando falou de uma situação semelhante à da personagem Rosinha que viveu ainda criança, quando foi obrigada a morar na casa de uma tia. Edilene avalia que mesmo depois de viver outra realidade, essa é uma marca do passado difícil de ser apagada. Sobpressão: Que importância você atribui a iniciativas de retratar a realidade de milhares de crianças e adolescentes que são vítimas do trabalho infanto-juvenil? Edilene: É um assunto que repercute muito. Quantas pessoas não trazem crianças do interior para trabalhar? Acho que tanto a questão da exploração infantil, como os efeitos psicológicos foram muito bem abordados no jornal. Ele comove bastante. Sobpressão: No dia do lançamento do jornal você expôs o seu próprio caso publicamente. O que a motivou a fazer isso? Edilene: Eu tenho que admitir que eu não pensei muito antes de falar, não (risos). Mas acho que a ficha das pessoas ainda não tinha caído naquele momento. Foi somente a partir dos depoimentos que as pessoas começaram a entender as conseqüências do trabalho infanto-juvenil. Eu me senti a própria Rosinha.

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Sobpressão: Como você lida com o fato de ter sido vítima do trabalho infantil doméstico? Que conseqüências você ainda traz consigo? Edilene: Eu nunca me envergonhei do meu passado, tem muita coisa que eu até levo na brincadeira, mas confesso que sair de casa para casar aos 14 anos, a separação e a minha filha, que tive aos 16 anos, foram a forma que arranjei de sair daquela situação. Eu ainda tenho contato com a minha tia, mas ainda não consegui perdoá-la. Sobpressão: É possível dizer que você conseguiu dar a volta por cima? Edilene: Eu sempre fui muito diferente. Na época que meus sete irmãos e eu viemos para Fortaleza, minha mãe fazia algumas coisas e só eu tinha coragem de vender. Ia vender coxinha na feira, roupa...Trabalhei de garçonete, recepcionista, vendedora de concessionária, de mototaxista.

Sempre tive um relacionamento muito bom com todo mundo, aonde eu chegava. Quando estava morando em Itapipoca, fui chamada para trabalhar na parte comercial da rádio 101,1, do dr. Márcio Moreira. No dia de estréia do programa o locutor faltou, eu acabei fazendo a locução e ganhei meu próprio programa. Depois disso, voltei para Fortaleza para fazer o curso de radialista. Daí, comecei a estagiar na Rádio Metropolitana, onde apresentava o programa “A hora H do pão”, de 5hs às 7hs da manhã. Há alguns anos, fui incentivada por amigos e pelo meu companheiro da época a voltar a estudar. Fiz um ano de Contabilidade na UNICE e depois transferi para o Jornalismo. Hoje, além de estudar, tenho uma locadora de vídeo. Sou a única dos meus irmãos a estar na faculdade. Acho que a minha sorte foi encontrar pessoas maravilhosas no meu caminho.

Edilene Vasconcelos: estudante de jornalismo


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