perigos y possibilidades (zine #01)

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p e r i g o s y possibilidades


perigos y possibilidades zine #01 (2020) projeto gráfico rodrigo lopes revisão ana aline furtado e rômulo silva apoio LAC - Laboratório de Arte Contemporânea LEFA - Laboratório de Estética e Filosofia da Arte COVIO - Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Conflitualidade e Violência (UECE)


p e r i g o s y possibilidades


S U M Á R I O

editorial

06-07

alan lima aline albuquerque aline furtado amábile alexandre amyla vidal andré severo brendo da silva bruna ianara bruno albuquerque

26 70-71 74-75 43 12-13 49 10-11 68 38-39 15 65 20 61

carol vieira carolina castanho carolina ferreira

cícera barbosa clara bastos daniele negreiros débora nunes douglas da silva edna olímpia higor camargo iara andrade isaura caroline ítalo ferreira jaque rodrigues joedson kelvin jonh coutinho

40-41 24 44-45 34 42 66 32-33 36 67 63 16 21 56-57


ficha técnica joubert arrais juliana oliveira kalina lívia karine araújo khaerlen forte levi noli lina pereira luara frança luiz eduardo maiara ferreira marcel diogo maria cecília calaça meiridiane domingues

52-53 58-59 62 17 60 18 19 27 37 54-55 14 22 69

messias souza ornela fortes rachel nunes raquel cerdeira renata laíze rodrigo lopes rômulo facó rômulo silva rozeane leal sadi borges sassá sulamita lima tadeu morato

76-79 72-73 35 46-47 51 50 23 28 30-31;65 48 29 25 08-09 64


EDITORIAL

Um salve às mais velhas, aos mais velhos e a quem está germinando apontando para um futuro-possível do agora. Um abraço [im]possível aos que estão aqui, hoje, nas arquiteturas do nosso corpo, pelos fios invisíveis da internet e ao longo do olhar de reconhecimento em meio as múltiplas clausuras. Esta e-zine-coletiva é uma carta alquimista, um elogio a bruxaria, magia-negra... Escrita durante o curso online Crítica da Razão Negra: Achille Mbembe, você encontrará aqui arquivos-vivos de múltiplos-territórios de um Brasil inventado. Nos últimos quatro meses, temos partilhado reflexões a partir do pensamento de Frantz Fanon, Grada Kilomba, Edouard Glissant e Achille Mbembe com pessoas de diferentes lugares do país e, portanto, de Todo-o-Mundo.


Acompanhando a discussão dos escritos, os encontros contaram com apresentação de obras de arte. Em diálogo permanente com chaves-de-leitura das/os autores, experiências individuais e coletivas também compuseram os afetos nas telas-virtuais: devir-abraço. Esta e-zine-coletiva pode ser vista como uma face particular da Semente que produz vida em meio às zonas-áridas, por vezes, estéreis. Nas palavras de Fanon, onde um autêntico ressurgimento pode acontecer. Esta zine-carta possui sim destinatários: somente alquimistas conseguirão lê-la. Não há nada a decifrar, é, aliás, uma convocação ao sensível que nos convoca a outro Tempo, à poética da Declosão: abertura de nossas clausuras e abandonos de nossas muletas de estimação. Leia esta e-zine em voz alta como Poeta recitando para a multidão de si.














lembro de ler em algum lugar algo assim narciso quando mergulha na agua ele mergulha apaixonado pelo seu entorno, quer dizer, pelo céu. era noite, ai que ele viu as estrelas ali na água. cai na água como quem pensa cair no céu. não exata mente apaixonado por si. mas, por pensar que as estrelas estariam lá onde tem peixe. queria ele ser a estrela? não deixa de ser miragem, fantasminhas. cair é bom demais, deixar cair em sí, linguaruda, lambida-de-mundo. dizem que céu está caindo. será que é porque narciso se jogou na agua confuso dido de deus, mania de dono, mania de mapa, de cruzadas , messianismos e altas furadas? e se água, lago ou mar fosse céu mesmo, delicia crueldade ele comer assim narciso. então pensemos que foi mui to bom esse jogar-se. agora, sera que narciso pensa ainda pensa estar no ceu e ser estrela? então água, peço a você, que depois desse caudo bote narciso na terra. aqui ele pode encontrar quem vive e cultiva nela. quem sabe, encontrar uma serpente se quiser alçar outros vôos e mergulhos. agua cuspa narciso de volta. mas, o cuspa assim deitado na terra. de pança pra cima ou não. aliás, bote ele no meio. no entre terra e céu. estadia de encontro e passagem.







O QUE A BRANQUITUDE TEM A ESCONDER?





Máscaras em-Comum Francisco Rômulo do Nascimento Silva1 Como a contradição entre os traços cria a harmonia do rosto proclamamos a unicidade do sofrimento e da revolta. (Frantz Fanon) Eu acho que, quando eu ver, eu te perguntarei, que Andrés Aubry viu a parte do povo Zapatista que é voltado para dentro. Como se esta cidade tivesse decidido não só virar o mundo, mas também a sua percepção, e ele teria feito a sua essência, o que o define, olhar para dentro, não para fora. Como se a balaclava fosse uma armadura de uso múltiplo: força, trincheira, espelho externo e, ao mesmo tempo, coberto com algo em gestação. (Subcomandante Insurgente Marcos - tradução minha)

Hoje caminhei até o mercado aqui pertinho de casa para comprar meu “pão-com-pão”2, tentar respirar fora da clausura-domiciliar, sentir o vento e o sol no rosto... Diferente de muitos dos meus semelhantes, já não consigo contar os dias e até aqui tenho condições de permanecer isolado, mas não sei ao certo ainda por quanto tempo. Por aqui, o fluxo de pessoas na rua é menor do que era no início do isolamento social que logo depois se tornou obrigatório, devido ao aumento de casos em UTIs provocado pelos efeitos da Covid-19. Já se passaram três meses e nunca estive tão conectado à internet e, ao mesmo tempo, oscilando entre os sentimentos de solidão e abandono... Diferentemente da solidão, a sensação de abandono é parecida com a do luto ou talvez semelhante à da amputação de um dos membros do corpo... É a poética do encontro e do abraço como prolongamentos de si que falta. Alguns dos encontros e abraços possíveis foram os cursos on-line que Ana Aline Furtado, Rodrigo Lopes e eu tivemos a alegria de mediar - esta e-zine-coletiva é um dos gestos de contar histórias, criar-rastros, formar bandos com centenas de pessoas espalhadas pelo Brasil e por outros países no mundo. A Crítica da Razão Negra de Achille Mbembe, a Pele Negra Máscaras Brancas de Frantz Fanon, as Memórias da 1

Poeta e pesquisador. Nascido e criado no Pantanal (atual Planalto Ayrton Senna), periferia de Fortaleza (CE). É integrante do Laboratório de Estudos da Conflitualidade e Violência (COVIO/UECE), onde também coordena a linha de pesquisa "Estudos afro-atlânticos". Tem interesses nas áreas da Sociologia e Antropologia da Literatura, Escrita, Performance e Oralidade; Sociologia da Ação Coletiva e dos Movimentos Contemporâneos de Juventudes, além dos Estudos Críticos à Colonialidade. Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS/UECE). Instagram: @franromulosilva E-mail: franromulosilva@gmail.com 2 Nas palavras de Vinícius Oliveira Santos, baiano de 12 anos, também conhecido como Vini ‘Boca de 09’ que viralizou logo no início do isolamento social aqui no Brasil: instagram: @vini_do_0800


Plantação de Grada Kilomba e a revisita à primeira obra desses ciclos de encontrosvirtuais têm sido para mim um verdadeiro gesto de cura e aprendizado. É na partilha que conseguimos caminhar, efetuar pequenos e potentes saltos na existência – esta cada vez mais ameaçada e que nos convoca, conforme bem nos lembra Édouard Glissant, a “abrir-se ao outro sem asfixiar o eu mesmo”. Penso ser essa a questão de nosso tempo. Em grande medida, somos convocados a constatar que existe muito mais do Outro em nós do que imaginamos. Nas poucas vezes que tive que sair de casa durante o isolamento-social, verifiquei que o tecido que encobre parte do nosso rosto e que nos afasta decorre de uma inominável força que, a um só tempo, tanto se apresenta assimetricamente como potências de vida quanto potências de morte: máscaras emComum. Como um espelho, todos ali passamos, em geral, a ter uma aparência-sem-rosto: a invisibilidade e o silenciamento histórico e social de determinados corpos. Portanto, histórias individuais e formas de vida de seus semelhantes afirmam, na contemporaneidade, uma inimaginável e longa era do Home Office ou era Computacional; uma lógica da utilidade não exclusivamente nova, mas que reencena imagens da seleção, da exploração e do descarte de corpos a partir da instrumentalização de populações inteiras. Cada vez mais distantes um do outro, o uso da máscara possibilita, ao mesmo tempo, o em-Comum enquanto corpo que se insurge não como Uno (ou o Mesmo, verticalhorizontal, portanto, autoritário), mas como múltiplas forças acompanhadas de uma práxis libertadora por meio do Diverso. A poética do Diverso não é o caótico nem o estéril, significa o esforço e desejo do espírito humano em direção a uma relação transversa das imprevisibilidades, dos emaranhados encontros nas encruzilhadas da existência. Se a máscara é uma potencial força que esconde o rosto e nos homogeneíza, usemo-la provisoriamente como trincheira do em-Comum contrária a toda lógica que nos asfixia há séculos!






@iaraandradeo












O Engraxate O engraxate de pés descalços e calejados Pele preta de um corpo sofrido e dilacerado Corpo preso nas correntes da escravidão Vida roubada e traficada Nos porões de navios negreiros Fez brilhar os pés dos brancos Com suor e sangue africano Na labuta do dia a dia Os Negros construíram esta Nação Gritamos hoje por Liberdade, Pelo corpos Negros tombados Gritamos hoje por Direito à Vida Gritamos hoje contra o Racismo








Quando Você Fechar os olhos

Me diga O que vê.

MAIARA FERREIRA_ARAIAM/ 2020


Eigrengrau: cor que vemos quando fechamos os olhos. Nem preto, nem branco, nem cinza. Quando fecho os olhos lembro do som da águas da cachoeira, das ondas do mar quebrando praia, do sorriso delx. Quando fecho os olhos remeto às lembranças mais remotas de minhas infância, do cafuné de minha mãe, do colo de minha avó. Das mulheres da minha vida. Quando fecho olhos quem eu fui não deixou de existir e permanece aqui em meio a sonhos e dores. Ao fechar os olhos eu sou quem sou e não quem me dizem ser não somente corpo de mulher, mas verdadeiramente mulher. Preta! Mulher Preta!

A foto que escolhi Museu do Negro Liberto, no município de Redenção- CE. Esse local é a senzala localizada na parte inferior da casa-grande, em que até hoje existem os resquícios das torturas, dores, lágrimas derramadas pelos nossos irmãos e irmãs. Nesse instante da foto minhas pernas paralisaram e não consegui andar então por milésimos de segundo ouvi lamentos e por um impulso bati a foto. Cada um tem seus processos, e no hoje já com tantas re-existências, lutas e conquistas eu só pude me expressar dessa maneira. Queria eu ter podido colorir e traçar outras imagens. Gratidão pelas inquietações e trocas. Somos necessárixs!




Tendo o campo de batalha sido delimitado, entrei na luta.







... para explodir esse mundo branco

A identidade fechada é uma ilusão... Somos metamorfoses

A minha existência é uma insurgência







Essa foto foi �rada na Praça Mauá no Rio de Janeiro, a um quarteirão do Cais do Valo onde chegaram mais de um milhão de africanos escravizados, são lugares que com região denominada de “Pequena Àfrica”. Por ali, na Gamboa, também ficava a cas Ciata, berço do samba e do choro cariocas. Recentemente, a prefeitura do Rio num total desrespeito, seguindo a tradição da crueldade e do racismo estrutural, cons trilhos do VLT sobre a área do Cemitério dos Pretos Novos, que era o local onde se ent os negros que morriam na travessia de África para cá, centenas, milhares de corp enterrados ali. Ao descer do metrô na Uruguaiana, a gente sente a presença preta an fica di�cil segurar a emoção ao andar por aquelas ruas. Eu realizo um trabalho qu AGITPROP, é uma instalação cole�va em movimento. Por onde vou, vou colhendo f luta e resistência. Nesse dia armei meu barraquinho na Praça Mauá e conheci ess linda que é o Alvimar dos Santos, ou Neném, um professor de história que estava es uma turma de alunos para fazer um passeio pela Pequena África, ensinando importância dessa região. Alvimar me contou sobre essa campanha para reaver sagrados da Umbanda e do Candomblé, que no início do sec. XX �nham sido apree


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Essa foto foi tirada na Praça Mauá no Rio de Janeiro, a um quarteirão do Cais do Valongo por onde chegaram mais de um milhão de africanos escravizados, são lugares que compõem a região denominada de “Pequena Àfrica”. ço do samba e do choro cariocas. Recentemente, a prefeitura do Rio num gesto de total desrespeito, seguindo a tradição da crueldade e do racismo estrutural, construiu os trilhos o local onde se enterravam os negros que morriam na travessia de África para cá, centenas, milhares de corpos estão enterrados ali. Ao descer do metrô na Uruguaiana, a gente sente a presenpor aquelas ruas. Eu realizo um trabalho que chama AGIvou, vou colhendo frases de luta e resistência.

um professor de história que estava esperando uma turma de alunos para fazer um passeio pela Pequena África, ensinando sobre a importância dessa região. Alvimar me contou sobre essa campanha para reaver objedo sec. XX tinham sido apreendidos e desde então estavam

em cartaz no MAR – Museu de Arte do Rio, na exposição “Quem não luta tá morto”. Alvimar me contou que foi Santos, entre muitas outras aventuras. Agradeço aos orixás esse encontro lindo e à amizade que nasceu neste dia.






FICHA TÉCNICA

Ana Aline Furtado, 1985 Artista visual multilinguagem Integra a TERRA (coletiva) E-mail: analine.furtado@gmail.com nascida no sertão do inhamuns, região fronteiriça entre PI y CE, no nordeste do Brasil ~ encontra em sua trajetória não-individual a matéria de seus possíveis ~ a atuação como advogada na luta por DDHH é a base de sua vida artística-política ~ pesquisas anticolonais sobre: memória, pertencimento, processos de emergência étnica, território, corpo-denúncia, apagamento, raça, gênero, dinâmicas de descontinuidade da lógica de pacificação, escuta y cura como processo.


Rômulo Silva, 1987 Poeta e pesquisador Instagram: @franromulosilva E-mail: franromulosilva@gmail.com Poeta e pesquisador. Nascido e criado no Pantanal (atual Planalto Ayrton Senna), periferia de Fortaleza (CE). É integrante do Laboratório de Estudos da Conflitualidade e Violência (COVIO/UECE), onde também coordena a linha de pesquisa "Estudos afro-atlânticos". Tem interesses nas áreas da Sociologia e Antropologia da Literatura, Escrita, Performance e Oralidade; Sociologia da Ação Coletiva e dos Movimentos Contemporâneos de Juventudes, além dos Estudos Críticos à Colonialidade. Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS/UECE).


Rodrigo Lopes, 1995 Artista, arte-educador e designer Instagram: @bichantirracista E-mail: rodrigolopesco@gmail.com Nascido e criado em Fortaleza (CE). Coordena o LAC - Laboratório de Arte Contemporânea, onde pesquisa relações entre álbum de família, arquivo e sexualidade. Graduado em Comunicação Social (UFC) e mestrando no Programa de Pós-Graduação em Artes (PPGArtes/UNESP). Foi arte-educador no Museu da Indústria e no Museu da Fotografia Fortaleza. Participou da equipe de criação de vídeos para a instalação Transition and Apocalypse (2019), de Jota Mombaça (Festival The Present Is Not Enough Performing Queer Histories and Futures / HAU Berlim), Pequenos Trabalhos Não São Trabahos Pequenos (2019), Território Somos Nós (2019) com curadoria de Clébson Óscar, Corpos Furiosos - Mostra Trovoa (2019 produção) com curadoria das Terroristas del Amor, Soterramento (2018) com curadoria de Lucas Dilacerda.


desde então estavam jogados nos porões de delegacias de polícia. Essa plaquinha p compor a instalação que ficou em cartaz no MAR – Museu de Arte do Rio, na exposiçã não luta tá morto”. Alvimar me contou que foi figurante em filmes de Glauber Rocha Pereira dos Santos, entre muitas outras aventuras. Agradeço aos orixás esse encontro amizade que nasceu neste dia.


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