SOTERRAMENTO
CURADORIA
LUCAS DILACERDA
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EXPOSIÇÃO
SOTERRAMENTO
CURADORIA
LUCAS DILACERDA
À memória de Kaciano Gadelha
SUMÁRIO
KACIANO GADELHA
(13-17)
LAC - LABORATÓRIO DE ARTE CONTEMPORÂNEA LUCAS DILACERDA
(19-25)
EU AINDA NÃO NASCI RODRIGO LOPES
— EU AINDA (41-49) LEMBRO DE VOCÊ ANNA LUISA COSTA
DISPOSITIVOS DE SOTERRAMENTO
(51-61)
TEXTOS CRÍTICOS
RÔMULO SILVA
DESCOLONIZAÇÃO DO OLHAR HÉRCULES LIMA
(225-231)
(233-237)
ARTE E ANTROPOLOGIA EM PASSAGEM KAUANY DUARTE
OS LIMITES DA (239-247) REPRESENTATIVIDADE NEGRA NOS BANCOS DE IMAGEM LUCAS DILACERDA
O FIM DO MUNDO (249-263) COMO CONHECEMOS
SUMÁRIO
(63-69)
ARARA (71-81) ARTHUR SIEBRA(83-89) CORPA CAIRONI DAVID FELÍCIO (91-107) & JORGE SILVESTRE (109-117) EDU MOREIRA (119-125) GEORGIA VITRILIS (127-133) ISADORA RAVENA (135-139) KALY GERONIMO
ARTISTAS
(141-147)
LOUISE FELIX (149-155) LUCAS DILACERDA (157-161) MARÍLIA OLIVEIRA (163-171) NOÁ BONOBA (173-177) PEAUG (179-185) rnld NOGUEIRA (187-193) RODRIGO LOPES (195-199) TERRORISTAS DEL AMOR (201-223) QUEM PODE FALAR?
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LAC Laboratório de Arte Contemporânea
ARTE
CONTEMPORÂNEA
DE
LABORATÓRIO
LAC
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KACIANO GADELHA
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TEXTOS CRÍTICOS
O Laboratório de Arte Contemporânea emergiu das possibilidades de integração das pessoas que tenham interesse em pesquisar e produzir no/do fazer artístico contemporâneo. Com esse objetivo, o LAC promove encontros onde há a leitura de textos, aliada a discussões que agenciam processos coletivos e individuais na pesquisa e produção acadêmica e nas mais diversas linguagens artísticas. O laboratório vem articulando também palestras, oficinas, mesas, eventos para a comunidade onde se gere novas percepções em processos e produções artísticas. Um desses eventos foi o I Colóquio de Multidões Queer, que buscou trazer discussões que atravessem as ideias do projeto. Assim, propiciamos encontros entre interessados e estudantes de todos os cursos, cambiando saberes. Estudantes de graduação, pós-graduação, mestrado, doutorado, professores, servidores da UFC e de outras instituições de ensino, assim como pessoas fora do meio acadêmico são benvindas para multiplicar e gerar afetos no/do percurso criativo no decorrer das atividades do LAC.
KACIANO GADELHA
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Ao todo tivemos, ao longo do primeiro semestre ativo do projeto, 14 encontros formando o nosso primeiro grupo de estudos com o tema de Arte e Pensamento, onde tivemos a participação de estudantes e interessados de diversas áreas e cursos da UFC e de outras universidades. Realizamos diversas atividades extras com artistas, professores e pesquisadores divididos em conferências e workshops com o objetivo de trazer um outro tipo de discussão ligada também aos temas que estávamos trazendo nos encontros do grupo de estudos. Para melhor divulgar as nossas atividades, criamos uma página no Facebook com o nome Laboratório de Arte Contemporânea – LAC que atualmente possui 1275 curtidas e desde a sua criação acumulou um total de 85 mil pessoas alcançadas. Um reflexo do interesse e efeitos que as nossas atividades veem causando na comunidade fortalezense.
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TEXTOS CRÍTICOS
Kaciano Gadelha (Fortaleza, CE, 19802021) foi professor, sociólogo, curador e pesquisador em artes. Doutor em Sociologia pela Universidade Livre de Berlim (2014), com pós-doutorado em Artes pela Universidade Federal do Ceará. Foi professor adjunto de Sociologia no Instituto de Ciências Humanas e da Informação na Universidade Federal do Rio Grande (FURG) e coordenador do Núcleo de Estudos AfroBrasileiros e Indígenas (NEABI) da FURG e membro do NuSEX do PPGAS/Museu Nacional. Fundou e coordenou o LAC de 2015 a 2018.
KACIANO GADELHA
SANTOS, Kauany Duarte Barbosa dos; DILACERDA, Lucas Oliveira; LIMA, Hércules Gomes de; GADELHA, Kaciano Barbosa; COSTA, Pablo Assumpção Barros. Laboratório de arte contemporânea. Revista Encontros Universitários da UFC, Fortaleza, v. 1, n. 1, 2016.
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Eu ainda não nasci NASCI
EU
AINDA
NÃO
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Soterramento Um mundo foi construído sobre a terra. Planeta terra. O mundo é uma ferida sobre a terra. Estuprada, colonizada, domesticada, instrumentalizada, a terra se tornou propriedade, objeto, produto e mercadoria. Se acham donos da terra, superiores a ela, apartados da natureza. A terra se protege, cobrindo de vegetação e reivindicando suas obras. Terremoto, tempestade, erupção, inundação, soterramento. Enterramos nossos mortos. Descartamos nossos objetos. Enterramos nossos lixos. Que corpos são descartáveis? Que corpos são matáveis? Há um soterramento que quer soterrar nossas memórias, nossas histórias, nossas corpas e nossas existências. É contra esse soterramento, que soterramos o mundo. Matamos o mundo antes que ele nos mate. Ruína. túmulo. Jogamos terra para aquilo que morre, mas é da terra que tudo nasce. Brotamos do soterramento deste mundo, deste túmulo de terra, somos extra-terrestres, precarizadas no submundo, demônias do submundo. O apocalipse é o nosso projeto político. Matamos o mundo.
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TEXTOS CRÍTICOS
Sobrevivência A palavra pra nós é vida! Estamos esgotadas deste modo de existência que nos foi imposto, deste mundo falido que não nos encaixamos. Somos alienígenas, não pertencemos a este mundo. Somos atópicas, não nos encaixamos em nenhum lugar. Somos anacrônicas, estamos no futuro. Somos meteoros, fomos lançados em direção ao mundo para destruí-lo. Somos muitas! Uma chuva de meteoros radioativos, estrelas brilhantes no universo. Para ver nosso brilho, é preciso enxergar no escuro de nossas sobrevivências monstruosas, brilhantes, reluzentes, como os pequenos lampejos dos vagalumes, que dançam no escuro calado da noite. O gato é preto. E ele mia: por favor, parem de jogar seus holofotes de luz sobre nós, ao contrário, joguem sombra, para que brilhemos com nossa própria luz. É na penumbra que nós gestamos novos mundos, engravidamos novas possibilidades de vida. fazemos da arte, não um substantivo ou adjetivo, mas sim um verbo. Como viver?
LUCAS DILACERDA
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TEXTOS CRÍTICOS
Lucas Dilacerda é Curador e Crítico de Arte. É coordenador da CAV - Curadoria em Artes Visuais; do LAC - Laboratório de Arte Contemporânea; e do LEFA - Laboratório de Estética e Filosofia da Arte. É sócio da ABCA - Associação Brasileira de Críticos de Arte. Graduação em Artes Visuais, pela UECE; e Mestrado em Artes, pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Graduado (Licenciatura e Bacharelado) em Filosofia, com distinção Summa Cum Laude, pela UFC; e Mestre em Filosofia, com ênfase em Estética e Filosofia da Arte, pela UFC. Realizou mais de 20 curadorias. Ministrou mais de 50 cursos e 150 apresentações em diversas instituições de arte do Brasil. Possui mais de 20 textos, críticas de arte e artigos publicados. É autor do livro “Pensamento alienígena: a fabulação de novos mundos possíveis”.
LUCAS DILACERDA
Texto curatorial da exposição Soterramento, que aconteceu de 01 a 05 de outubro de 2018, na Materioteca, do Instituto de Cultura e Arte (ICA), da Universidade Federal do Ceará (UFC).
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- Eu ainda lembro de você EU
AINDA
LEMBRO
DE
VOCÊ
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RODRIGO LOPES
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TEXTOS CRÍTICOS
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RODRIGO LOPES
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Em 2018, no penúltimo ano de graduação na Universidade Federal do Ceará, eu fazia parte do Laboratório de Arte Contemporânea. Comecei frequentando os grupos de estudo que aconteciam nas salas do Instituto de Cultura e Arte, à tarde ou à noite. Lembro das aulas ministradas pelo professor Kaciano Gadelha com carinho e admiração. São aqueles raros momentos que vivemos na universidade em que algo nos toca, de uma maneira tão inesperada, desafiadora e amorosa, que é impossível voltar para casa do mesmo jeito que chegamos. Foi assim, num desses encontros, que conheci o pensamento da artista Grada Kilomba².
Quem pode falar? Falando do centro, descolonizando o conhecimento foi um dos primeiros textos que li. Ela começa narrando uma lembrança das suas aulas: conta que todo semestre, no primeiro dia do seu seminário, fazia uma série de perguntas à turma como “O que foi a Conferência de Berlim em 1884-85?”, “Quantos anos durou a colonização alemã no continente africano?” e “Quem escreveu Pele Negra, Máscaras Brancas?”³. Ao fazê-las, ela percebe que a maioria das(os) estudantes brancas(os) era incapaz de respondê-las, enquanto as(os) estudantes negras(os) respondiam quase
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todas e corretamente. Por que algumas pessoas possuíam “aquele” conhecimento e outras não? Qual conhecimento tem sido considerado como “válido” nas agendas acadêmicas? Quem pode determinar o que deve (ou não) ser pesquisado? Esse silêncio na sala de aula não tinha a ver com uma incapacidade de articular a própria voz ou língua, mas ajudava a perceber como as noções de “conhecimento” e “ciência” estão relacionadas com o poder racial. Ela nos recorda que a universidade não é um espaço neutro, mas sim um espaço de violência onde nós, pessoas negras e indígenas, fomos/temos sido produzidas como “objetos” (inclusive, de pesquisa) na história dessa instituição. Se a ausência das nossas vozes no “centro” acadêmico evidencia que o conhecimento que nós temos produzido é sistematicamente colocado às “margens” desse espaço, ou seja, desqualificado como acientífico, específico, subjetivo e pessoal... qual é o nosso desafio? Como articular vozes que estão nas “margens” sem romantizar as assimetrias de poder que constroem essas estruturas de fala/escuta? Foi nessa época que recebi o convite para desenvolver uma proposta educativa para a exposição Soterramento4 com
RODRIGO LOPES
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bolsistas do PET Comunicação Social da UFC. Estudar esse texto foi o nosso ponto de partida. Quais palavras temos lido/escutado nas aulas? Onde é produzido o conhecimento que circula em nossas salas? Como são definidos os critérios de seleção para as bibliografias dos cursos? Quem pode falar – e ser escutada(o/e) – nas universidades públicas no contexto brasileiro? O que acontece quando nos esquivamos de fixar essas vozes na posição marginalizada, de não-escuta, em que foram colocadas? O processo de criação do educativoinstalativo passava por lidar com essas questões5. A partir de oficinas de bordado livre, produzimos um conjunto de bordados em tecidos de algodão emoldurados em bastidores de madeira. Em cinco deles, retratamos pessoas cujas vozes consideramos relevantes para reverberar no espaço expositivo e nas estruturas da universidade. Os retratos foram dispostos sobre uma mesa de madeira e fazem referência a Cacique Pequena (liderança da etnia Jenipapo-Kanindé, no Ceará), Jota Mombaça (artista e escritora), Indianarae Siqueira (ativista e fundadore da CasaNem, casa de acolhimento para pessoas LGBTQIA+ no Rio de Janeiro),
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TEXTOS CRÍTICOS
além de Matheusa Passareli (estudante de artes visuais na UERJ) e Marielle Franco (socióloga e vereadora), ambas assassinadas em 2018. Entre os bastidores, há um conjunto de envelopes pretos, dentro dos quais encontramos cartas com trechos de discursos ou textos das pessoas retratadas. No centro, o microfone ligado à uma caixa de som, com uma cadeira à sua frente, fazia um convite: incorporar as palavras reunidas e ecoá-las com a nossa voz. Quatro anos depois, as palavras escritas por Grada Kilomba ecoadas na voz de Kaciano Gadelha naquela pequena sala branca e quente ainda me inquietam por muitos motivos. Talvez porque estava diante de algo maior do que a imagem que eu podia ver e não sabia. Talvez porque ainda sinto minha matéria invadida por essas vozes.
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Rodrigo Lopes é artista, arte/educador e designer. Álbuns de família, fotografias e outros fragmentos de tempo estão no coração do seu trabalho. Coordena o LAC Laboratório de Arte Contemporânea. Doutorando em Arte e Educação (UNESP), mestrado em Arte e Educação (UNESP / bolsa CAPES-DS) e graduação em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda (UFC). Em sua pesquisa, dedicase a investigar os aspectos materiais e ficcionais dos álbuns e desarticular os efeitos da colonialidade em arquivos familares. Desde 2018, realiza projetos com arte e educação em instituições como MAC Dragão, Museu Murillo La Greca, CCSP, Sesc, IAC - Insituto de Arte Contemporânea, EAV Parque Lage, Fundação Bienal e Pinacoteca do Ceará. Tem experiência no desenvolvimento de design para exposições, catálogos, materiais educativos, além do acompanhamento de pesquisas e processos de criação em arte e educação. É autor do livro “Para nunca esquecer” (2019).
Passô, Grace. Vaga Carne. 2. ed. Belo Horizonte: Javali, 2020.
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Grada Kilomba (Lisboa, 1968) é escritora, teórica e artista interdisciplinar. Seu trabalho aborda as noções de memória, trauma, raça e gênero, criando espaços híbridos entre as linguagens acadêmica e artística, através de fotografia, vídeo, instalação e performance. Tem ensinado em diversas universidades internacionais, tendo sido por último Professora de Estudos de Gênero e Estudos Pós-Coloniais, na Universidade de Humboldt, em Berlim. Atualmente, integra a comissão curatorial da 35a Bienal de São Paulo. 2
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução de Jess Oliveira. 1. ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. 3
A exposição Soterramento integrou a VI SPP - Semana de Publicidade e Propaganda da UFC com o título Quem pode falar? Micropolítica, Identidades e Memória. Realizada de 01 a 04 de outubro de 2018, a programação foi composta por mesas redondas, oficinas e exposição de arte e contou com a participação de artistas, professoras(es), ONG's e pesquisadoras(es) como Alessandra Bouty, ana aline furtado, Darwin Marinho, Deisimer Gorczevski, Escola de Cinema Indígena, Helena Martins, Helena Vieira, Inês Vitorino, Jean Pierre Gomes Ferreira, Kaio Lemos e Marcos Rocha (Fábrica de Imagens). 4
Este trabalho foi produzido colaborativamente com Beatriz Rabelo, Gabriel Monteiro, Rafael Viana, Romã Carvalho, Suyane Lima (bolsistas do PETCom) e Lucas Dilacerda. 5
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Disposi-tivos de soterramento
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DISPOSITIVOS
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TEXTOS CRÍTICOS
Era minha primeira vez visitando o Instituto Inhotim e ainda assim eu guiava meu pai e meu irmão nas longas caminhadas entre as obras e pavilhões como se eu já conhecesse o lugar há muito tempo. Ao final do dia, todos estavam exaustos, mas eu ainda queria visitar um último pavilhão que ficava próximo à entrada do Instituto do qual já estávamos de saída. Ninguém se dispôs a me acompanhar, já não valia mais a pena o esforço, então caminhei sozinha até o pavilhão Lygia Pape.
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Lembro de ter sentido uma inquietação quando visualizei, do lado de fora, aquela estrutura de concreto em forma de cubo retorcido. Pensava no motivo pelo qual os projetistas optaram por torcer as paredes daquela forma, e ao entrar, obtive a resposta. Eu ainda não conhecia Ttéia, obra de Lygia Pape que ocupa o pavilhão. As diferentes direções pelas quais os feixes de fio metalizado atravessam diagonalmente o espaço central da galeria dialogam diretamente com a forma externa que serve de continente. Esse foi o primeiro momento em que me dei conta que a arquitetura que se oferece como invólucro de uma obra de arte específica não possui uma ação passiva diante dela, mas influencia ativamente no modo como a percebemos. A partir desse momento, a importância dos espaços expositivos na percepção das obras de arte passou a se tornar questão central do meu caminho de investigação e pesquisa. Na formação em arquitetura, começava a me interessar menos pela criação de novos espaços, sem história ou referência, e mais no que poderia influenciar e interferir nos espaços que já existem. Busquei entender essa influência a partir das artes visuais, que constantemente me confirma que obras de arte possuem poder modificador de percepção do espaço construído no qual elas se instalam, e consequentemente
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TEXTOS CRÍTICOS
também modificam a forma como elas são percebidas pelo espectador. Da forma como o sistema da arte está compreendido hoje, a exposição de arte é o lugar e o momento onde a prática e os objetos artísticos manifestam a sua existência no espaço público, liberando suas interpretações aos visitantes. Num determinado momento entendi que, para compreender as influências que regem a relação entre a arte e a arquitetura, as exposições de arte deveriam ser o ponto de partida. O estudo das práticas de exposição se tornou um tema de crescente interesse nos últimos anos. As razões são várias e permeiam uma diversidade de temas do campo da arte, como as novas tipologias de objetos artísticos, a disseminação de grandes exposições, o surgimento da figura do curador como autor de uma exposição, o aquecimento do mercado de arte, entre outros. Na trajetória em que eu buscava compreender a complexidade do fenômeno da exposição, tive contato com o trabalho da Profa. Ana Maria Albani, que defende a ideia de a exposição de arte atuar no mundo contemporâneo como um espaço-tempo onde se decodifica o significado e, ao mesmo tempo, se legitima e se institucionaliza a obra de arte que está
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sendo exposta. Por isso, a exposição se torna parte constitutiva e agente estrutural tanto da produção artística quanto da teoria crítica. Numa tentativa de compreender a exposição enquanto fenômeno complexo, Albani retoma o conceito de dispositivo em Deleuze, que o entende como um “conjunto multilinear”, cujas linhas estabelecem trajetórias em múltiplas direções e tanto se aproximam quanto se afastam, configurando assim um circuito em rede. De forma geral, a exposição seria esse dispositivo “multilinear” em rede, dentro do qual existem mecanismos e ações de diferentes naturezas que podem ser caracterizadas tanto por um caráter mais simbólico quanto por ordem técnica. Por exemplo, o partido conceitual de uma curadoria pode ser visto como uma operação do campo simbólico, e projetos de expografia e comunicação visual como aqueles de ordem técnica. Porém, Albani defende a necessidade de os aspectos técnicos e simbólicos presentes numa exposição não operarem num “dualismo”, como se fossem dois conjuntos de fenômenos que ocorrem independentemente um do outro, mas sim como dimensões que se organizam recursivamente.
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TEXTOS CRÍTICOS
Alguns dos aspectos considerados eminentemente técnicos, como os trabalhos de montagem, legendas, distância entre as obras etc., são parte integrante da construção dos sentidos e significados da exposição. Uma exposição só se efetiva com a experiência observacional direta do espectador com as obras no espaço de exibição, e por um período de tempo. Logo, o significado de aspectos conceituais, como o partido curatorial ou a intenção dos artistas, precisa inevitavelmente ser compreendido e relacionado diretamente à forma como essas questões estão sendo apresentadas no espaço. Tenho a concordar com essa concepção de que seria mais produtivo tratar as exposições de arte mais como dispositivos e menos como resultado da agência individualizada de um agente específico como o curador. Essa visão ampliaria os nossos horizontes para além da dicotomia técnico-simbólica que permeia parte significativa dos estudos sobre o tema. Em meados de 2018, no entremeio entre aquela primeira experiência em Inhotim e o contato com a definição de exposição como dispositivo, recebi o convite para colaborar com o projeto de expografia da exposição Soterramento (2018).
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Como viver? Essa foi a pergunta que ecoou tanto sobre o conceito curatorial da exposição como também fez parte, em maior ou menor medida, das inquietações abordadas por cada artista que se apresentou. Havia o sentimento de soterramento causado pela sombra de um possível futuro que ainda viria a ser, numa exposição realizada às vésperas de uma eleição que – com razão – nos apavorava e nos consumia. Ainda assim, diante dessa pressão newtoniana de toneladas de terra sendo jogada em cima de nós, buscávamos alguma resposta, alguma saída. Como sobreviver? Como expor? As forças que envolvem a desestruturação das relações hegemônicas de poder acabam por realizar movimentos de ampliação de limites e borram as fronteiras da ação. O projeto de expografia da Soterramento (2018) foi dialogado individualmente com cada artista, produção e curadoria desde a seleção das obras, passando pela abertura e se renovando rotineiramente até o encerramento da exposição. Estávamos realizando ali – acredito que até mesmo sem saber – uma evidente operação de exposição como dispositivo. Uma operação hierárquica entre os aspectos simbólicos e técnicos não fazia sentido naquela experiência, pois buscávamos, coletivamente, o
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desejo de operar fora das convenções tradicionais dos modelos expositivos. As duas naturezas de atuação dialogavam mutuamente, buscando construir uma linguagem única que envolvesse cada uma das vozes emanadas pelas obras no espaço expositivo. Não à toa o ponto de partida deste ensaio foi a origem de meu interesse pela relação entre a arte e o espaço que a contém. Foi na vivência prática da realização de exposições, como a Soterramento (2018), que percebi que essa relação não possui apenas dois atores, mas faz parte desse “dispositivo” que é atravessado pelas demandas de artistas, instituições, curadorias, arquitetos, designers, produtores, e tantas outras personagens dessa rede. Agradeço imensamente ter feito parte da equipe da Soterramento (2018), além das trocas proporcionadas. Sem dúvida é um marco na trajetória de todes que fizeram parte desse projeto no qual muitos frutos já foram, estão ou serão germinados, a partir da possibilidade que foi atestar a nossa existência no espaço naquele momento.
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Anna Luisa Costa é arquiteta formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Mestre em Artes Visuais pela Universidade de São Paulo (PPGAV-ECA/USP) e Doutoranda no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP). Dedica sua pesquisa à análise das relações entre o espaço expositivo, a materialidade da arte contemporânea e a experiência do espectador nas arquiteturas das exposições.
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ARARA
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Arara (1992) é artista, pesquisadora, diretora de arte, figurinista e designer de moda. Produz trabalhos individuais e coletivos sob a insistente tentativa de imersão criativa e de experimentação sensorial, por meio da indumentária e das artes visuais. Vive entre as cidades de Boa Viagem e Fortaleza, no Ceará.
Não-lugar se configura como uma instalação que lentamente altera a sua forma diante do público. É composta por estilhaços e placas de vidro envoltas em um tecido orgânico de seda na cor vermelho, que, por sua vez, está envolvido em um material plástico semitransparente suspenso. Ao passar das horas e dos dias, o peso da soma dos elementos suspensos vai lentamente criando fissuras na obra. Esse movimento cria uma interferência visual e sonora sutil no espaço, pois pequenos cacos de vidro vão caindo na superfície do chão, criando uma composição de sons gerados pelo trincar das placas de vidro, que parecem se contorcer para caber no interior da composição. Esse movimento resulta em fissuras cada vez maiores nos tecidos que revestem a obra e acaba revelando suas camadas internas, encarnadas e pontiagudas. É através dessa articulação de materiais, composições e ações que reflito e experimento a minha própria experiência enquanto pessoa racializada, dissidente de sexo e gênero, dentro de espaços normativos, institucionais e acadêmicos.
Não-lugar, 2015 plástico, vidro e tecidos 120 x 60 x 60 cm
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Não-lugar, 2015 plástico, vidro e tecidos 120 x 60 x 60 cm
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ARARA (1992) é artista, pesquisadora, diretora de arte, figurinista e designer de moda. Produz trabalhos individuais e coletivos sob a insistente tentativa de imersão criativa e de experimentação sensorial, por meio da indumentária e das artes visuais. Vive entre as cidades de Boa Viagem e Fortaleza, no Ceará.
Não-lugar, Classifico como2015 Gritoplástico, vidro e tecidos Rito, não como 120 xlinguagem 60 x 60 cm mas como “forma de falar” ou “posicionamento”, me inspiro nos trabalhos da artista Aline Furtado que em 2018 levou uma obra para o Salão de Abril classificando-a como grito-rito. Esta experiência estética pesquisa artística política poética pretende transitar no âmbito da arte ritualística, bodyart e também na arte contemporânea para trabalhar o artivismo político cotidiano negro. Ao mergulhar meu corpo na experiência da ação de remover uma tatuagem esfolando meu corpo, em um ritual de cura por meio da liberação da dor recalcada em meu corpo, dor que se acumula diariamente nos corpos racializados. Tento fazer a ferida em meu corpo vibrar nos corpos dos espectadores, o ritual que se constrói a partir da contemplação, uma ferida compartilhada.
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ARTHUR SIEBRA
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ARTHUR SIEBRA
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Nascido em Crato-CE, foi para Fortaleza estudar História e, após três semestres, transferiu para Filosofia, curso no qual se formou. É mestre, e doutorando em Filosofia (Ética e Filosofia Política) pela Universidade Federal do Ceará (UFC), onde pesquisa a natureza no campo ético a partir de Diógenes de Sinope e Henry David Thoreau. Estuda e desenvolve sua pintura desde 2010, como autodidata, utilizando tinta acrílica sobre telas, além de papéis e placas de papel machê. Firmou-se na abordagem pictórico-figurativa sob uma perspectiva clássico-realístico-simbólica, tratando principalmente de cenas narrativas que espelham vivências e condições humanas atemporais.
A condição humana diz muito respeito a como nos relacionamos e vivemos no mundo. Nisto, basicamente, está, no cru de toda essa dinâmica, a relação do ser humano com a própria adversidade, infortúnios, ou, por que não, tragédia; algumas, oriundas do curso das causalidades inerentes aos eventos naturais e à vida, outras, oriundas da própria deliberação e ação humana no decorrer histórico. O grilhão é inquebrável, temos que, quer queira quer não, lidar de alguma forma. As pinturas apresentadas tratam de vários sentimentos e condições que envolvem formas desse “lide”, desde o desespero até a esperança.
Sem título, 2015 acrílica sobre papel 21 x 29,5 cm Cores para quem não as ver, 2017 acrílica sobre tela 40 x 40 cm Diante da graça, 2017 acrílica sobre papel 28 x 31 cm Insanidade, 2017 acrílica sobre tela 30 x 20 cm O que me deixaste, 2017 acrílica sobre papel 29 x 42 cm Sob percepção da finitude, 2017 acrílica sobre tela 50 x 50 cm Deixa-me ser, 2018 acrílica sobre papel 42 x 29 cm
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Sem título, 2015 acrílica sobre papel 21 x 29,5 cm
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Deixa-me ser, 2018 acrílica sobre papel 42 x 29 cm Insanidade, 2017 acrílica sobre tela 30 x 20 cm O que me deixaste, 2017 acrílica sobre papel 29 x 42 cm
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Sob percepção da finitude, 2017 acrílica sobre tela 50 x 50 cm Cores para quem não as ver, 2017 acrílica sobre tela 40 x 40 cm Diante da graça, 2017 acrílica sobre papel 28 x 31 cm
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Deixa-me ser, 2018 acrílica sobre papel 42 x 29 cm O que me deixaste, 2017 acrílica sobre papel 29 x 42 cm Insanidade, 2017 acrílica sobre tela 30 x 20 cm Sob percepção da finitude, 2017 acrílica sobre tela 50 x 50 cm Cores para quem não as ver, 2017 acrílica sobre tela 40 x 40 cm Diante da graça, 2017 acrílica sobre papel 28 x 31 cm
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Corpa Caironi é uma professora multiartista do corpo. Recém-formada pelo curso de Dança da Universidade Federal do Ceará. Vivendo entre imersões e subversões, vem experimentando e dedicando seu tempo aos processos em arte pelo Nordeste do Brasil. Tem como existência a sobrevivência de tudo aquilo que pode o corpo, ou a corpa. Performa dançando as canções das maquiagens que atua e queima desejando a mudança em vida.
Uma corpa trans chega com suas malas em um espaço, despeja tudo ao chão e, com isso, nos imerge em uma golfada. As questões na qual borbulham a performance são um complexo de vivências que estão inscritas num corpo em início de transição. A transição apresentada se trata de um golfo, como um bebê recémnascido que, ainda aprendendo a viver em seu novo corpo, vai se adequando aos trâmites das sensações por conta do novo espaço que lhe alimenta. Vestida de vestígios, a corpa que ali se expõe transita entre os diversos looks depositados no chão, abrindo assim um leque de possibilidades. Roupa não tem gênero para alguns, mas para outros vem como uma afirmação ou até como um acessório intrínseco ao que se deseja mostrar. Entre trocas de variadas roupas, maquiagens, perucas, poses, olhares, respirações, atenções, estímulos, dúvidas e a sonoplastia externa, a performer vai se experimentando, assim como fazia todos os dias no seu quarto, para logo em seguida ter que enfrentar a sociedade em transportes públicos e instituições. Para alguns isso é nada demais, mas para ela é tudo o que poderia ou não poderia vestir, uma busca incessante do que serve para se vestir. Qual a questão no ato de vestir? Qual corpo pode vestir uma saia? Qual corpo pode vestir uma bermuda? Qual corpo pode vestir calcinha? E cueca? E como se veste o nu? Quem veste o corpo? O que veste? Combina? Serve? Vestida para o meu corpo ou vestida para receber o seu corpo? Vestir traz respeito? Despir traz nuance? Quem me veste? Vestir serve? E se vestida não servir? Vestido pode? O que se pode ao vestir? Todas essas questões estão se vestindo, despindo e revestindo na obra.
Golfada não se segura, 2018 performance vídeo, cor, som; loop 34’07”
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CORPA CAIRONI
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Golfada não se segura, 2018 performance vídeo, cor, som; loop 34’07”
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CORPA CAIRONI
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Golfada não se segura, 2018 performance vídeo, cor, som; loop 34’07”
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DAVID FELÍCIO & JORGE SILVESTRE
(91 - 107)
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DAVID FELÍCIO & JORGE SILVESTRE
David é educador, pesquisador e aventureiro visual residente em Fortaleza. Graduado em História pela UFC, vem desenvolvendo, junto de Jorge Silvestre, um trabalho intitulado “Arqueologia de luzes negras”, que investiga a presença afrodescendente no Ceará. Desenvolve pesquisas em torno da história e memória, explorando as interseções desses campos às práticas educativas e artísticas. Jorge é artista visual, arte-educador e diretor de fotografia. Pesquisa esmiuçando as noções de arquivo contidas na produção da história, memória e suas formas de controle. Atualmente, tem criado em parceria com David Felício, instalações, vídeos, fotografias e suas expansões. Participou de exposições coletivas como o “720 Salão de Abril” e “Poço 115”. Participou de mais de vinte produções cinematográficas, atuando enquanto diretor de fotografia e still. Foi arteeducador no Museu de Arte Contemporânea do Ceará e no Museu de Imagem e do Som do Ceará. Tem interesse por indisciplinas e viagens no tempo.
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A construção histórica do Ceará organiza estruturalmente uma marginalização da presença e da memória de afrocearences. Apesar de o Ceará ser projetado enquanto vanguardista no processo pelo fim da escravidão, nos indagamos “onde estão os negros cearenses?” Diante do apagamento programado na história da Terra da Luz, percebemos as representações pessoais como atos de invenção da própria memória, que constrói uma luta contra esse apagamento. As fotos são testemunhas autorais da existência e re-existência diversa, e nesse trabalho elas são ressignificadas para pensar uma outra história possível. A partir da apresentação de fotos de famílias negras cearenses, indexadas à reprodução de trechos de documentos do Instituto do Ceará – instituição que durante o século XX uniu intelectuais que pensaram oficialmente esse período –, a obra estabelece em um gesto simbólico um paralelo imaginado entre o discurso reproduzido desde então, que reinventa apagamentos estruturais sobre a afrocearencidade e sobre as possíveis formas de vida da cultura afro-brasileira no Ceará pós-abolição.
invisível:incolor, 2018 fotografias, impressas em transparência, de álbuns de famílias negras cearenses dispostas ao redor da reprodução de trecho da Revista do Instituto do Ceará - Tomo Especial 1984 - 1o. Centenário da Abolição dos Escravos no Ceará. dimensões variadas
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invisível:incolor, 2018 fotografias, impressas em transparência, de álbuns de famílias negras cearenses dispostas ao redor da reprodução de trecho da Revista do Instituto do Ceará - Tomo Especial 1984 - 1o. Centenário da Abolição dos Escravos no Ceará. dimensões variadas
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invisível:incolor, 2018 fotografias, impressas em transparência, de álbuns de famílias negras cearenses dispostas ao redor da reprodução de trecho da Revista do Instituto do Ceará - Tomo Especial 1984 - 1o. Centenário da Abolição dos Escravos no Ceará. dimensões variadas
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invisível:incolor, 2018 fotografias, impressas em transparência, de álbuns de famílias negras cearenses dispostas ao redor da reprodução de trecho da Revista do Instituto do Ceará - Tomo Especial 1984 - 1o. Centenário da Abolição dos Escravos no Ceará. dimensões variadas
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invisível:incolor, 2018 fotografias, impressas em transparência, de álbuns de famílias negras cearenses dispostas ao redor da reprodução de trecho da Revista do Instituto do Ceará - Tomo Especial 1984 - 1o. Centenário da Abolição dos Escravos no Ceará. dimensões variadas
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invisível:incolor, 2018 fotografias, impressas em transparência, de álbuns de famílias negras cearenses dispostas ao redor da reprodução de trecho da Revista do Instituto do Ceará - Tomo Especial 1984 - 1o. Centenário da Abolição dos Escravos no Ceará. dimensões variadas
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invisível:incolor, 2018 fotografias, impressas em transparência, de álbuns de famílias negras cearenses dispostas ao redor da reprodução de trecho da Revista do Instituto do Ceará - Tomo Especial 1984 - 1o. Centenário da Abolição dos Escravos no Ceará. dimensões variadas
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invisível:incolor, 2018 fotografias, impressas em transparência, de álbuns de famílias negras cearenses dispostas ao redor da reprodução de trecho da Revista do Instituto do Ceará - Tomo Especial 1984 - 1o. Centenário da Abolição dos Escravos no Ceará. dimensões variadas
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EDU MOREIRA
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EDU MOREIRA
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Sou formado em Audiovisual e estou me formando em Artes Visuais, pelo Instituto Federal do Ceará. Sou um artista e professor de modelagem 3D, com foco em modelagem procedural. Tenho desenvolvido pesquisas nas áreas de teoria da imagem, ensino de artes, vídeo, fotografia, curadoria, decolonialidade, arte e tecnologia e arte e vida. Coordenei o bloco carnavalesco Carnaval no Inferno.
“Grito” é um grito-rito. Não é uma linguagem, mas uma “forma de falar”, um “posicionamento”. Me inspiro nos trabalhos da artista aline furtado, que em 2018 levou uma obra para o Salão de Abril, classificando-a como grito-rito. Essa interseção entre experiência estética, pesquisa artística e política poética pretende transitar no âmbito da arte ritualística, body-art e também na arte contemporânea, para trabalhar o artivismo político cotidiano negro. Quando mergulho o meu corpo na experiência da ação de remover uma tatuagem, esfolo esse corpo em um ritual de cura, por meio da liberação da dor recalcada em meu corpo, dor que se acumula diariamente nos corpos racializados. Tento construir o ritual a partir da contemplação, fazendo a ferida em meu corpo vibrar nos corpos dos espectadores, uma ferida compartilhada.
Gritos, 2018 série de autorretratos modificados digitalmente instalados ao lado de uma tela que registrou e continuou a exibir a performance onde eu removia uma tatuagem da costela usando uma lixa, sal e limão dimensões variadas 4’39”
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Gritos, 2018 série de autorretratos modificados digitalmente instalados ao lado de uma tela que registrou e continuou a exibir a performance onde eu removia uma tatuagem da costela usando uma lixa, sal e limão dimensões variadas 4’39”
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Gritos, 2018 série de autorretratos modificados digitalmente instalados ao lado de uma tela que registrou e continuou a exibir a performance onde eu removia uma tatuagem da costela usando uma lixa, sal e limão dimensões variadas 4’39”
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Gritos, 2018 série de autorretratos modificados digitalmente instalados ao lado de uma tela que registrou e continuou a exibir a performance onde eu removia uma tatuagem da costela usando uma lixa, sal e limão dimensões variadas 4’39”
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GEORGIA VITRILIS
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GEORGIA VITRILIS
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Georgia Vitrilis é artista translinguagens, arte educadora e feiticeira. Pesquisa questões do/no invisível e é interessada pela construção de túneis, pontes, rituais, portais, campos de força e outras formas de estar num desterritório.
Suindara cantou três vezes sobre o teto de um mundo. E, na manhã seguinte, o mundo estava morto, com as vestes rasgadas. Suindara é rasga-mortalha, ela canta e anuncia o fim de um mundo que já não consegue engolir. Eu vi Suindara levantar voo, e ela carregava em suas garras a branquitude cisheteronormativa dilacerada. Algo está por acabar e, numa relação entre aparição e desaparição, entre mostrar e ocultar, estico-me até a sombra do visível e a deformo, para que aquilo que estava translúcido ganhe contornos. É antes de tudo sobre continuar viva e, nesse percurso, descobrir e inventar programas e mapas de criações para a prosperidade travesti. Prosperamos porque escapamos todos os dias, e se eu estou viva é porque também consegui escapar. Podem tentar apagar os nossos V E S T Í G I O S, mas é impossível matar o M O N S T R O.
Disfagia de Suindara, 2018 banana, voz, noiser, som, espaço 20'
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GEORGIA VITRILIS
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Disfagia de Suindara, 2018 banana, voz, noiser, som, espaço 20'
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Disfagia de Suindara, 2018 banana, voz, noiser, som, espaço 20'
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ISADORA RAVENA
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ISADORA RAVENA
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Isadora Ravena é travesti, professora, pesquisadora, crítica, curadora e artista. Doutoranda em Artes da Cena, pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC), mestra em Artes e licenciada em Teatro, pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisa travecametodologias de criação e recepção em arte contemporânea.
Descompostura. Alta performance, prática, eficiente, oferece fácil enxague, dissolução instantânea e mais facilidade para o dia a dia. EDTA é feita em um programa simples: jogar água com sabão sobre o piso. deslizar sobre o piso. É uma promessa de inundação. É uma lembrança de ser peixe antes de ser humana. Em EDTA é quase impossível ficar em pé, é quase impossível manter a posição ereta civilizatória de uma gravidade ordenada. O corpo busca outros eixos e encontra potência no fracasso. O fracasso é a queda que propõe movimento. Muitos disseram depois de EDTA que eram artistas quando crianças e nem sabiam, se referindo a uma brincadeira para lavar casa, que bom que descobriram que fazem arte. Obra com participação de Georgia Vitrilis.
Ethylenediaminetetraacetate (EDTA), 2018 corpo sobre água com sabão sobre o chão
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ISADORA RAVENA
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Ethylenediaminetetraacetate (EDTA), 2018 corpo sobre água com sabão sobre o chão
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ISADORA RAVENA
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Ethylenediaminetetraacetate (EDTA), 2018 corpo sobre água com sabão sobre o chão
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KALY GERONIMO
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KALY GERONIMO
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Kaly Geronimo usa seu corpo gordo como instrumento artístico no processo de invenção. Seus trabalhos estudam a corporeidade e questões que cercam as opressões cotidianas, fazendo críticas sobre os estigmas, a desvalorização e a discriminação estruturada de corpos gordos. A partir de um novo olhar sobre esse corpo marginal, sua produção sugere novas formas de sobrevivência.
Corpos como o meu precisam ser vistos. Corpos como o meu precisam ser representados, admirados, iluminados, amados, tocados. Um retrato fiel sobre a própria forma – a impressão da tinta no corpo, que vai para o papel, como modo de manifestar, da maneira mais fiel, tudo que ele representa. O incomodo de não ser retratado na história da arte, e fugir dos corpos idealizados pelas mentes e mãos masculinas. Esse corpo é tudo o que eu tenho. Este dispositivo inventivo da criação e seus desdobramentos têm como objetivo discutir sobre as opressões direcionadas à gordura no corpo da mulher e à desumanização desse corpo. Daqui se escuta o grito de um corpo e a experiência de dar voz a corpos grandes denunciando o desprezo às formas e a eterna tentativa de disciplinar corpos indisciplinados. A gordura, repulsiva imundície descartável, reconta a sua história, enfurece o incontrolável, aponta novos signos à infiltração volumosa, respeita a sua carne e ressurge. Desse modo, investigando formas de evidenciar o físico como uma estrutura viva cheia de potencialidades criativas, e tendo como pano de fundo a reverberante multiplicidade de vozes e sujeitos que passam pelas mesmas condições depreciativas, a obra sugere uma reflexão sobre a noção destrutiva de que corpos como esse são indignos de civilidade.
Esse corpo é tudo o que eu tenho, 2018 corpo e tinta acrílica sobre papel 29,7 x 42 cm (cada)
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KALY GERONIMO
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Esse corpo é tudo o que eu tenho, 2018 corpo e tinta acrílica sobre papel 29,7 x 42 cm (cada)
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LOUISE FELIX
(141 - 147)
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LOUISE FELIX
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Minha pesquisa artística é guiada por questões relacionadas ao corpo – autobiografia, autoficção e interação do corpo com o mundo – em múltiplas linguagens, como a fotografia, vídeo, desenho e performance. Mestre em Artist’s Film and Moving Image, na Goldsmiths (UK), pelo programa de bolsas da Chevening (2020-2021). Licenciada em Artes Visuais pelo IFCE (2019). Artista convidada da 10 edição da Residência Artística Bemme-quer-Mal-me-quer (2017; 2018). Participei de diversas exposições, como “London Degree Show” (2021), “Salão de Abril” (2017; 2018; 2019), “Cartografias de Si” (2018) etc.
Carreguei, por vinte anos, um corpo pesado demais para existir, ou, até mesmo, resistir. Um corpo pesado demais para caber em aviões, transportes coletivos, cinemas e teatros. Leitos de hospital, cadeiras de plástico e carteiras estudantis. Uniformes, vestimentas e trajes de banho. Sutiãs, calcinhas, cintas e até meia calça. Hoje, após a minha cirurgia bariátrica e com 70kg a menos, continuo carregando um corpo pesado demais para existir. Excessos de pele na barriga, vulva, braços e coxas. Deformidade nos seios, na coluna e nos joelhos. Estrias, flacidez e adiposidade. No encadeamento das produções que venho desenvolvendo ao longo de um ano, penso no meu trabalho como forma de sobrevivência. Sobrevivência, mas também, enfrentamento de si. Enfrentamento das minhas memórias, minhas vergonhas, minhas questões, meu desconforto. Dissecar, investigar, deformar e pressionar o dedo sobre a cicatriz. A primeira vez que ouvi o slogan “pessoal é político”, senti que essa era uma das expressões que melhor simplificava e integrava os processos individuais e sociais pelos quais passamos como sociedade. Quando iniciei minhas investigações, o meu objetivo inicial era transmitir o impacto das violências e a estigmatização das mulheres que não atendem aos ideais estéticos. Durante esse processo descobri que, mesmo que as minhas leituras indicassem um problema no sentido antropológico, a minha prática artística exigia de mim um envolvimento mais pessoal. Percebi que ao invés de fazer observações objetivas das situações dos outros, eu deveria usar a minha própria experiência incorporada com a obesidade, a minha cirurgia bariátrica e as deformidades ocasionadas pelo meu emagrecimento como objeto de pesquisa. Nesta instalação, os arquivos do meu corpo – guias médicas, orçamentos de cirurgias plásticas e autorretratos – experimentam e questionam as esferas políticas da intimidade, os espaços coletivos e sociais, o corpo como suporte, os processos em arte e os elementos da vida íntima como tentativas de se reinventar e reinventar o mundo.
Formas de esconder um corpo, 2018 instalação 170 x 200 cm
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LOUISE FELIX
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Formas de esconder um corpo, 2018 instalação 170 x 200 cm
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LOUISE FELIX
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Formas de esconder um corpo, 2018 instalação 170 x 200 cm
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LUCAS DILACERDA
(149 - 155)
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LUCAS DILACERDA
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Lucas Dilacerda é Curador e Crítico de Arte. É coordenador da CAV Curadoria em Artes Visuais; do LAC - Laboratório de Arte Contemporânea; e do LEFA - Laboratório de Estética e Filosofia da Arte. É sócio da ABCA - Associação Brasileira de Críticos de Arte. Graduação em Artes Visuais, pela UECE; e Mestrado em Artes, pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Graduado (Licenciatura e Bacharelado) em Filosofia, com distinção Summa Cum Laude, pela UFC; e Mestre em Filosofia, com ênfase em Estética e Filosofia da Arte, pela UFC. Realizou mais de 20 curadorias. Ministrou mais de 50 cursos e 150 apresentações em diversas instituições de arte do Brasil. Possui mais de 20 textos, críticas de arte e artigos publicados. É autor do livro “Pensamento alienígena: a fabulação de novos mundos possíveis”.
Materialização de uma ficção visionária da guerra cósmica entre a Natureza e o humano, na qual a humanidade é destruída do planeta e a Terra consegue novamente entrar em equilíbrio com o meio ambiente. A decomposição é o processo de transição da matéria morta para a matéria viva. A matéria orgânica é desorganizada e transmutada em alimento para outros seres vivos. A decomposição é a ponte do eterno ciclo da Natureza, a dança da vida com a morte. O corpo orgânico e organizado é atingido pelas forças inorgânicas e não-humanas que desorganizam a sua estrutura, decompondo o corpo e abrindo-o a novas composições, arrastando-o a novos mundos e terras incógnitas.
Terra, 2018 terra dimensões variadas
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LUCAS DILACERDA
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Terra, 2018 terra dimensões variadas
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LUCAS DILACERDA
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Terra, 2018 terra dimensões variadas
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MARÍLIA OLIVEIRA
(157 - 161)
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MARÍLIA OLIVEIRA
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Marília Oliveira é sapatão cearense de São Benedito, interessada principalmente em questões relativas à memória, autoescrita/ autoficção, imagem e palavra. Doutoranda em artes visuais pela UFBA e mestra em comunicação pela UFC, atualmente desenvolve pesquisas relativas às lesbianidades e seus arquivos íntimos, entendendo o amor sapatão como uma categoria estética e um jeito de existir no mundo. Tem quatro fotolivros publicados e participou de mostras e exposições coletivas no Brasil, na Espanha, na França e em Portugal.
“Caminhe como eu” é uma instalação interativa que disponibiliza mochilas cheias de pedras para que homens cis as coloquem sobre os ombros enquanto visitam as obras, dessa maneira, sentindo o peso extra carregado por todes que não são a norma. A obra é parte do trabalho “Remissão”, que cataloga os assédios sofridos por mim durante seis meses. Para cada assédio, guardo uma pedra. E então, na posse de 152 pedras, realizo uma série de ações que variam desde fotografar as pedras, empilhá-las sobre o meu corpo, quebrá-las em pedaços menores, construir com elas um jogo de xadrez e, por fim, espalhá-las na galeria e colocálas dentro de mochilas endereçadas a homens cis. Trata-se de uma estética da vingança, um modo de limitar o acesso dessas pessoas, que só podem visitar a exposição com a mochila nas costas. Ao mesmo tempo, é um modo de criar condições materiais para a devolução da violência que atravessa a existência de quem está nas bordas da normatividade. É sobretudo um jeito de dizer o que fazem conosco e de mostrar que, apesar do peso que nos empurra para o chão, nós somos capazes de seguir fabulando.
Caminhe como eu, 2018 mochilas e pedras dimensões variadas
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MARÍLIA OLIVEIRA
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Caminhe como eu, 2018 mochilas e pedras dimensões variadas
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NOÁ BONOBA
(163 - 171)
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NOÁ BONOBA
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Noá Bonoba é travesti, atriz, roteirista, cineasta, artista visual, preparadora de elenco, dramaturga, doutoranda pelo PPGCOM-UFC, professora formada pelo curso de Licenciatura em Teatro do Instituto Federal do Ceará, escritora, pesquisadora, mestra em artes pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Ceará e formada pela V Turma da Escola de Audiovisual da Vila das Artes.
Encontros induzidos por forças externas. Mundo em ruínas. Aqui, quem vos fala, não é mais o humano. É o que restou dele. Em “Terra ausente”, experimento a radicalização do elemento performativo. Nessa obra, investigo uma metodologia de conversa com os performers para a construção de um roteiro de filme sobre uma mulher possuída pela terra, com a missão de encontrar corpos em transe em um mundo pós-apocalítico. O filme é a busca por uma sucessão de imagens se contrapondo ao modelo linear de criação de narrativa. É a subversão do corpo terráqueo: uma mulher que cava a terra com o cotovelo, sem mostrar o rosto; uma outra que é encontrada soterrada e solta um grito vindo da terra; uma mulher que caminha em uma paisagem natural em busca de sua ancestralidade perdida; um corpo de uma performatividade drag queen, que dança o ritual de uma comunicação extraterrestre em uma rádio abandonada; a mesma mulher que havia sido abduzida no curta-metragem “O mundo sem nós” retorna com o vestido rasgado e, através de códigos corporais inventados, expressa a solidão de uma humanidade perdida e o desejo por uma urgente intervenção alienígena na pele terrestre. Em “Terra ausente”, nos interessa mais o que essas imagens apresentam de performatividade e menos o que a história dessas imagens conta.
Direção e roteiro: Noá Bonoba Elenco: Honório Félix, Juliana Tavares, Loreta Dialla e Nataly Rocha Assistência de direção: Breno de Lacerda Direção de fotografia: Toni Benvenutti Som e música: Henrique Gomes Direção de arte e figurino: Devon Zoal Montagem e produção executiva: Victor Costa Lopes Identidade visual e produção: Yule Bernardo
Terra ausente, 2018 vídeo, cor, som; loop 13'55"
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NOÁ BONOBA
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Terra ausente, 2018 vídeo, cor, som; loop 13'55"
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NOÁ BONOBA
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Terra ausente, 2018 vídeo, cor, som; loop 13'55"
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NOÁ Arara BONOBA
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Terra ausente03 , 2018 Composição , 2015 vídeo, cor, som; loop Instalação 13'55" 120 x 60 cm
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PEAUG
(173 - 177)
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PEAUG
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Peaug desenvolve os pensamentos “como que chega perto” e “acredita em si mesma, bixa!”, para construir conhecimento sobre as sensações de solidão e de motivação.
Esta instalação é um apanhado de objetos que Peaug tirou de seu quarto, onde ficou durante muito tempo afastado de suas atividades, inclusive da produção artística, enquanto enfrentava a depressão. Esses objetos representam sua luta contra a depressão e a sua história com o vírus HIV, cujo diagnóstico foi recebido em 2018.
Acredita em si mesma, bixa!, 2018 instalação 200 x 200 cm
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PEAUG
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Acredita em si mesma, bixa!, 2018 instalação 200 x 200 cm
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rnld NOGUEIRA
(179 - 185)
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rnld NOGUEIRA
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Artista visual com formação em Comunicação Social pela Universidade Federal do Ceará e estudante no curso de Teoria Crítica e História da Arte na Universidade de Brasília. Participou de exposições, como “Ant_Corpo” (FortalezaCE, 2018), “20 Refluxo: Festival Experimental de Artes” (Goiânia-GO, 2019) e “Gira Circuito Itinerante de Performance” (São Paulo-SP, 2019). Investiga relações entre gênero, raça e espiritualidade, por meio de processos poéticos de várias linguagens, com o foco na experimentação da autoimagem.
No dia em que viram em mim um pênis, me quiseram macho, me quiseram o homem que nunca cheguei a ser e que nunca serei. No dia em que vi em mim esse pênis, não o odiei, nem odiei o corpo que o possui. Fiquei antes pensando como eu poderia possuir algo sem ser o alguém que me impuseram. Nesses mesmos dias, imagino que não me odiei, mas também não me vi em plenitude. O desconforto é um falo, e isso não é só em mim. Até os dias de agora questiono como me apropriar desse corpo para ser eu. Esse “eu” é homem? Esta obra é um processo de criação explorado entre 2017 e 2019, que experimenta a autorretratação por mídias variadas. Nessa versão, disposta ao chão, entre a parede e uma cadeira simples, há uma foto de uma pessoa com pênis sentada em um vaso sanitário. Para ver a imagem mais detidamente, é necessário sentar-se. Com auxílio de um fone de ouvido pendurado na cadeira, também é possível ouvir um áudio com o som de urina caindo em um mictório de metal.
eu não sei o que eu vejo, eu não sei o que eu quero ver no 01, 2018 desconforto-investigação dimensões variadas
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rnld NOGUEIRA
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eu não sei o que eu vejo, eu não sei o que eu quero ver no 01, 2018 desconforto-investigação dimensões variadas
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rnld NOGUEIRA
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eu não sei o que eu vejo, eu não sei o que eu quero ver no 01, 2018 desconforto-investigação dimensões variadas
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RODRIGO LOPES
(187 - 193)
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RODRIGO LOPES
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Rodrigo Lopes é artista, arte/educador e designer. Álbuns de família, fotografias e outros fragmentos de tempo estão no coração do seu trabalho. Coordena o LAC - Laboratório de Arte Contemporânea. Doutorando em Arte e Educação (UNESP), mestrado em Arte e Educação (UNESP / bolsa CAPES-DS) e graduação em Comunicação Social Publicidade e Propaganda (UFC). Em sua pesquisa, dedica-se a investigar os aspectos materiais e ficcionais dos álbuns e desarticular os efeitos da colonialidade em arquivos familares. Desde 2018, realiza projetos com arte e educação em instituições como MAC Dragão, Museu Murillo La Greca, CCSP, Sesc Avenida Paulista, IAC - Insituto de Arte Contemporânea, EAV Parque Lage, Fundação Bienal e Pinacoteca do Ceará. Tem experiência no desenvolvimento de design para exposições, catálogos, materiais educativos, além do acompanhamento de pesquisas e processos de criação em arte e educação. É autor do livro “Para nunca esquecer” (2019).
Em Ancestral, me dedico a bordar uma imagem durante toda a exposição, utilizando a técnica do ponto corrente para desenhar através de camadas de papel descartado. A ausência de rosto, a incompletude da forma e a figura de um corpo de contornos negros abraçando a si mesmo sugerem algo em vias de aparecer, de nascer - como uma semente, um sonho ou uma lembrança. A obra integra o projeto Para nunca esquecer (2018-2020) que nasce do desejo de lembrar das minhas origens a partir dos álbuns de família. Através de práticas com bordado, performance e oficinas realizadas de forma colaborativa, a pesquisa investiga as qualidades material e ficcional desse arquivo.
Ancestral, 2018 performance / bordado sobre papel 100 x 200 cm
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RODRIGO LOPES
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Ancestral, 2018 performance / bordado sobre papel 100 x 200 cm
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RODRIGO LOPES
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Ancestral, 2018 performance / bordado sobre papel 100 x 200 cm
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TERRORISTAS DEL AMOR
(195 - 199)
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TERRORISTAS DEL AMOR
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Terroristas del Amor é um coletivo formado em 2018 pelas cearenses Dhiovana Barroso e Marissa Noana. As artistas mobilizam diversas linguagens artísticas, desencadeando um processo educativo e elucidativo sobre as suas experiências e afetividades. Suas obras são, em grande maioria, autobiográficas e falam sobre suas relações com a cidade, trazendo a predominância de técnicas manuais e têxteis.
“Duas de nós” fala sobre afeto entre dois corpos da diáspora, remontando um lugar seguro. Como parte da comunidade LGBTQIA+, e sendo um casal preto e nordestino constantemente marginalizado, as artistas apresentam estratégias de vida e pensamentos contrários à normatividade. Este é um trabalho político que, perpassando por diversas perspectivas da vida, vai contra todo o movimento genocida contemporâneo. Como diz bell hooks, no texto “Vivendo de amor”, o coletivo entende a importância de falar sobre afeto, sobre como o amor cura e como suas ações reverberam estímulos e força, para enxergar um futuro além da sobrevivência.
Duas de nós, 2018 colagem digital, bordado e ilustração 59,4 x 84,1 cm
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TERRORISTAS DEL AMOR
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Duas de nós, 2018 colagem digital, bordado e ilustração 59,4 x 84,1 cm
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QUEM PODE FALAR?
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QUEM PODE FALAR?
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Como questionar a capacidade de escuta de estruturas de poder (como a universidade) que disputam a noção de conhecimento? Educativo-instalativo é uma obra site-especific desenvolvida pelo artista e arte/educador Rodrigo Lopes. A partir do estudo do texto Quem pode falar? da artista, psicóloga e escritora Grada Kilomba - que inspira o título - foram produzidos seis bordados em tecidos de algodão de forma colaborativa. Emoldurados em bastidores de madeira, cinco retratos mostram o rosto de pessoas negras e indígenas, desobedientes de gênero e dissidentes sexuais que foram lembradas durante as sessões de estudo. Os bordados dispostos sobre uma mesa de madeira fazem referência a (da esquerda para a direita) Cacique Pequena (liderança da etnia Jenipapo-Kanindé, no Ceará); Matheusa Passareli (estudante de artes visuais da UERJ) e Marielle Franco (socióloga e vereadora), ambas assassinadas em 2018; Jota Mombaça (artista e escritora) e Indianarae Siqueira (ativista e fundadore da CasaNem, casa de acolhimento para pessoas LGBTQIA+ no Rio de Janeiro). Os envelopes pretos guardam cartas com trechos de falas das pessoas retratadas. A estrutura composta pelo microfone e a caixa de som é um convite a reverberar essas palavras no espaço expositivo.
Quem pode falar?, 2018 educativo-instalativo (microfone, caixa de som, mesa e cadeira de madeira, bordados, envelopes e impressos de papel) 100 x 300 x 100 cm
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QUEM PODE FALAR?
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Quem pode falar?, 2018 educativo-instalativo (microfone, caixa de som, mesa e cadeira de madeira, bordados, envelopes e impressos de papel) 100 x 300 x 100 cm
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Quem pode falar?, 2018 educativo-instalativo (microfone, caixa de som, mesa e cadeira de madeira, bordados, envelopes e impressos de papel) 100 x 300 x 100 cm
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QUEM PODE FALAR?
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Quem pode falar?, 2018 educativo-instalativo (microfone, caixa de som, mesa e cadeira de madeira, bordados, envelopes e impressos de papel) 100 x 300 x 100 cm
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Quem pode falar?, 2018 educativo-instalativo (microfone, caixa de som, mesa e cadeira de madeira, bordados, envelopes e impressos de papel) 100 x 300 x 100 cm
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Quem pode falar?, 2018 educativo-instalativo (microfone, caixa de som, mesa e cadeira de madeira, bordados, envelopes e impressos de papel) 100 x 300 x 100 cm
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QUEM PODE FALAR? CACIQUE PEQUENA
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“Nós somos a própria natureza.” * “Ser índio é coisa maravilhosa. O índio ele vem da própria natureza. Ele não é inventado. Ele é nascido e criado. O índio é a pessoa que respeita a tradição, a convivência, a sua vida naquele lugar junto uns aos outros. O índio ele respeita a natureza. Não vive devastando a natureza. Se ele puder cada vez mais preservar, é melhor. Esse é o índio de verdade. Ele nasce e se cria na natureza, pegando o gosto e o cheiro da natureza todo dia, pisando na mãe-terra sem ter nojo. O índio é tudo na minha vida e tudo que existe na natureza é o índio. E nós não podemos negar isso, porque senão estamos negando a nós próprios.” * “Porque foi através deles que eu saí feito uma formiguinha arrastando as coisas pra dentro do lugar. Enquanto eu existir, enquanto o Pai Tupã não me levar, eu sempre tô aqui sendo essa guerreira por eles.”
“No dia 6 de março, eu recebi a missão de ser cacique. No dia 12, eu botei o pé no mundo com a cara e a coragem. E sem dinheiro. Era um encontro para aprovar o Estatuto do Índio, que até hoje ainda não foi aprovado. Eu saí, fui numa caravana de índio. Antes, paramos em Minas Gerais. Lá, eu fui discriminada pelos homens do Sul e do Norte. Eles disseram que mulher só servia para cama e pé de fogão. Quando eles terminaram de dizer, eu pedi a fala e disse que não era como eles pensavam. Mulher tinha vindo ao mundo para se igualar a eles. Só não pode é passar, mas igualar ombro a ombro a mulher pode. A mulher tem talento. É mais forte do que o homem. A mulher é uma pessoa viva, porque dá fruto. Eu disse que eles não podiam dizer aquilo comigo porque todos eles tinham saído de uma mulher.”
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QUEM Arara PODE FALAR? INDIANARAE SIQUEIRA
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“Meu Peito, Minha Bandeira, Meu Direito.” * “A nossa luta contra a transfobia não se resume a um único dia de visibilidade, mas é uma luta árdua e diária em que as poucas conquistas são muito comemoradas. Mas queremos mais: queremos o reconhecimento das nossas identidades de gênero, queremos inclusão social, queremos direito à educação, queremos ter chances no mercado de trabalho.”
Composição 03, 2015 Instalação 120 x 60 cm
“Segundo grau incompleto, falando quatro idiomas e Doutora Mestrada na vida. [...] Acho que as pessoas aprendem que nem tudo o que precisamos saber é ensinado nas escolas, e sim, podemos aprender com as vivências de pessoas sobre as quais nada é ensinado, como as pessoas trans, por exemplo.” * “As travestis são invisíveis porque as travestis transitam em lugares que a sociedade diz para as moças de boa família, para rapazes de boa família, que eles não devem transitar, que são as ruas, as esquinas na madrugada, que são os pontos de prostituição, e onde elas são acolhidas assim que são expulsas de casa.”
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QUEM Arara PODE FALAR? JOTA MOMBAÇA
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“Escrevo agora para os brancos – para os homens brancos assim como para todas as gentes brancas – cuja brancura é menos uma cor, e mais um modo de perceber a si e organizar a vida, uma inscrição particularmente privilegiada na história do poder e uma forma de presença no mundo: nós vamos nos infiltrar em seus sonhos e perturbar seu equilíbrio.” * “Muitas diferenças nos atravessam, nós temos gêneros diversos, sexualidades diversas, inclusive racialidades diversas.” * “Mesmo não podendo ser todo, podemos ainda ser imensidão, nos articular e ocupar espaços, e atravessar esse mundo construído de cabo a rabo contra a gente.”
Composição 03, 2015 Instalação 120 x 60 cm
“O apocalipse deste mundo parece ser, a esta altura, a única demanda política razoável. Contudo é preciso separá-la da ansiedade quanto à possibilidade de prever o que há de sucedê-lo. É certo que, se há um mundo por vir, ele está em disputa agora, no entanto é preciso resistir ao desejo controlador de projetar, desde a ruína deste, aquilo que pode vir a ser o mundo que vem. Isso não significa abdicar da responsabilidade de imaginar e conjurar forças que habitem essa disputa e sejam capazes de cruzar o apocalipse rumo à terra incógnita do futuro, pelo contrário: resistir ao desejo projetivo é uma aposta na possibilidade de escapar à captura de nossa imaginação visionária pelas forças reativas do mundo contra o qual lutamos. Recusar-se a oferecer alternativas não é, portanto, uma recusa à imaginação, mas um gesto na luta para fazer da imaginação não uma via para o recentramento do homem e reestruturação do poder universalizador, mas uma força descolonial, que libere o mundo porvir das armadilhas do mundo por acabar.”
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QUEM Arara PODE FALAR? MATHEUSA PASSARELLI
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“Arte resiste, resistir para poder existir.” * “Corpo estranho.” * “Nada tem que definir a gente.”
Composição 03, 2015 Instalação 120 x 60 cm
“Que as pessoas parem de querer controlar o corpo da outra, controlar a vontade da outra, parar de imprimir no outro as suas vontades.”
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QUEM PODE FALAR? MARIELLE FRANCO
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“Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?” * “O mandato de uma mulher negra, favelada, periférica, precisa estar pautado junto aos movimentos sociais, junto à sociedade civil organizada, junto a quem está fazendo para nos fortalecer naquele lugar onde a gente objetivamente não se reconhece, não se encontra, não se vê.” * “As mulheres negras, por exemplo, quando passam na rua, ainda ouvem homens que têm a ousadia de falar do quadril largo, das nádegas grandes, do corpo, como se a gente estivesse no período de escravidão. Não estamos, querido! Nós estamos no processo democrático! Vai ter que aturar mulher negra, trans, lésbica, ocupando a diversidade dos espaços.”
“Esse lugar que, sim, é marcado por uma violência de todos os lados e nós estamos expostos a opressão por muitas das vezes, diz que a gente não compactua com isso, que a gente não tem que normalizar o entrar na favela e ter que acender as luzes ou sair da favela e ter que ouvir de agente de segurança que ainda não matou ninguém. A gente vai entrar, vai sair, vai fazer política, vai resistir.”
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Des -colonizar o olhar OLHAR
DESCOLONIZAR
O
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TEXTOS CRÍTICOS
[...] este ar de mortos que nós temos, como poderá fabricar recordação? A cada desaparecimento enfraquece a memória dos nomes, como se todas estas vidas fossem assuntos devidamente ordenados. Kossi Efoui, “La Polka”, 1998, p. 64. A intuição, ela e não apenas o espanto, ocorre no Diverso. Ela tocou o inextricável. Ela permite que dele jorrem fontes de água em nossas savanas transtornadas. Édouard Glissant, “O Pensamento do Tremor, La cohée du lamentin”, 2014, p. 225.
Olhar pode ser um ato “natural” para alguns. Inicialmente, esbarramos em uma questão central: a naturalização esmagadora e enclausuradora do olhar. A quem é autorizado direcionar o nervo óptico em sua capacidade de quase 180 graus para frente? Estes dificilmente tremem ou desviam ao olhar. Aliás, nas palavras de Achille Mbembe (2014, p. 193), “ver não é a mesma coisa que olhar. Podemos olhar sem ver. E não é certo que aquilo que vemos seja efectivamente aquilo que é”. Narciso olhava para si mesmo, contemplava a própria beleza, acreditavase o ideal, a verdade, a referência, o enquadramento do real e do Universal.
RÔMULO SILVA
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Conforme Grada Kilomba (2019), narcisista é essa sociedade branca que inventa identidades-Outras para esconder a sua fragilidade-identidade. Porque nada veem além da autoimagem, essas pessoas pouco contemplam para além da brancaimagem-branca refletida nas relações, nas instituições, no conhecimento, no olhar. Uma selfie permanentemente atualizada, retroalimentada pelas teleobjetivas, angulares, macro, olho de peixe, olho por olho, dente por dente. Por isso, pouco veem e pouco sabem. A cegueira-inumerável que invisibiliza, e em seu reverso permanente fixa e emoldura o Outro, é um dos cancros coloniais mais dormentes e espetacularizados deste mundo que nos foi dado a conhecer. O desejo de enclausuramento vem acompanhado pelas diferentes justificativas que transitam entre o “mostrar a realidade” e torná-la “visível”. É, sem dúvidas, uma tentação-heroica tornar o Outro existente, congelando-o nessa selfie. Nesse diagrama do Sujeito-Transparente, bem entendido, é ao silêncio que se é reduzida, forçosamente, a “coisa”: a força que silencia é a mesma que invisibiliza. Nas palavras de Frantz Fanon (2008, p. 90), “é o racista que cria o inferiorizado”, jamais o contrário! Pois, a experiência vivida do Negro será sobretudo dada pelo olhar do Branco. O corpo-Outro é “coisificado”, portanto, objeto de observação. Paradoxalmente, ao ver o corpo Negro, este se torna invisível.
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TEXTOS CRÍTICOS
A “descolonização” do olhar começa de dentro para fora [declodir os quadros, as cercas, os muros, os conclaves ontoepistemológicos do Mundo-Branco]. Sair da condição de objeto ou “coisa” observada, olhar nos olhos do Outro sem tremer são atos de resistência e cura. Isso demanda um duplo movimento: inventar estruturas não somente de fala, mas, sobretudo, reimaginar uma Relação à Escuta, isto é, não somente de visibilidade, mas de invenção ao longo, “dar-com”. Inventar uma Relação à Escuta é criar possibilidades nos dias de destruição. A invenção se diferencia da criação ao passo que ela acrescenta ao criado, de certa forma, uma espécie de futuro no agora-do-presente. Inventar estruturas, nesse sentido, é romper com a manutenção dos quadros emoldurados desta selfie-branquíssima. Interrogar o olhar branquíssimo do Outro, “mas também olhar para trás, e para nós mesmos, nomeando o que vemos”, conforme nos lembra bell hooks (1992, p. 116). Significa lutar pelo direito de olhar. E por “direito de olhar” não me refiro ao desejo de “compreender”, mas, pelo contrário, fazendo ecoar as palavras de Édouard Glissant (que nos lembra que há no verbo “compreender” um movimento de “agarrar com as mãos”), o direito de olhar a que me refiro é aquele que habita o pensamento da extensão de raízes a
RÔMULO SILVA
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outras raízes, ao invés de trazer para si tudo que está a sua volta, movido pelo desejo de filiação. Em suas palavras, o desejo de filiação trata-se daquele “gesto de encerramento, quando não de apropriação” (2011, p. 181). À contrapelo de um “olhar-decolonial”, somos a favor de um olhar opositivo, pois a luta anticolonial é uma luta antiescravagista, contrária a toda lógica do Escravo, do Cativeiro e da Plantação. O olhar não existe sem a escuta, e viceversa. Aliás, ambos os sentidos e a intuição remetem para infinitos modos de tocar, para o Direito à Opacidade e, portanto, para a própria vida que produz vida.
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TEXTOS CRÍTICOS
Rômulo Silva nasceu em 1987. Poeta, professor, curador e pesquisador. É integrante do Laboratório de Arte Contemporânea (LAC/UFC), pesquisador no Laboratório de Estudos da Conflitualidade e Violência (COVIO/UECE), e também pesquisador do Grupo de Pesquisa Pragmacult - Pragmática Cultural, Linguagem e Interdisciplinaridade, vinculado ao Programa de Pós-graduação em Linguística Aplicada (POSLA/UECE). Tem interesses nas áreas da Sociologia Imaginativa; Fabulação Crítica; Mediação de Leituras; Bibliotecas-Livres e Encontros-saraus, além do Pensamento Negro Radical. Mestre e doutorando pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia (PPGS/UECE). Desde 2016 participa dos movimentos de saraus e das bibliotecas de iniciativa popular de Fortaleza, além de ter contribuído em algumas antologias de poesia e em livros fotopoéticos. Possui publicações nos temas do poder e das resistências contemporâneas, além de ministrar cursos desde 2020 em diferentes autoras/es críticas ao Mundo Moderno.
RÔMULO SILVA
EFOUI, Kossi. La Polka. Seuil: Paris, 1998. FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. GLISSANT, Édouard. Poética da relação. Portugal: Sextante Editora, 2011. GLISSANT, Édouard. O pensamento do tremor: la cohée du lamentin. Tradução de Enilce Albergaria Rocha e Lucy Magalhães. Juiz de Fora: Gallimard, 2014. hooks, bell. Black looks: race and representation. Boston: South End Press, 1992, p. 115-131. KILOMBA, Grada. Grada Kilomba: desobediências poéticas. Curadoria Jochen Volz e Valéria Piccoli; ensaio Djamila Ribeiro. São Paulo: Pinacoteca de São Paulo, 2019. MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. Antígona: Lisboa, 2014.
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Arte e antropologia em passagem ANTROPOLOGIA
EM
ARTE
E
PASSAGEM
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HÉRCULES LIMA
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TEXTOS CRÍTICOS
Certa vez, ouvi de um professor que o artista é aquele que aproxima fios desencapados, produz correntes elétricas, conecta forças distintas de domínios e campos diferentes, e acompanha seu desenrolar. Conectar esses espaços e seres é marca da disciplina antropológica. A história da Antropologia é marcada pela relação das pessoas com outras espécies animais e com coisas que consideramos “objetos” ou “mercadorias”. O livro Primitive Culture, de E. Tylor, e sua acepção clássica de “animismo”, ou o clássico Ensaio sobre a Dádiva, de M. Mauss, e a animação de objetos ocupando a posição de “pessoas” são fundamentais neste quesito. Hoje, antes de exportar nossa partição ontológica (natureza/cultura) para diferentes contextos etnográficos, buscamos perceber a multiplicidade de vida possível nos encontros entre o mundo e seus habitantes.
HÉRCULES LIMA
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O modo como a dualidade natureza/ cultura repercutiu nas práticas humanas no Ocidente teve e tem impactos. Enquanto Ocidente, somos ofuscados pela luz do “Homem” (uso a humanidade genérica no masculino de propósito), e estamos crentes de um singularismo existencial profundo, seja pelas vias da Religião, da Cultura, da Mente, do Capitalismo etc. Tomamos as relações com outros seres vivos e não vivos pela via do “controle”, “dominação” e “exploração de recursos”, se não, pela via oposta da “salvação”, “preservação” e “proteção”, presentes em muitos lemas de movimentos ambientais Nova Era, por exemplo. Uma “Natureza” inerte que responde à agência da “Humanidade”, seja para o bem ou para o mal. Assim, o que parece estar em jogo em obras de diferentes artistas é explorar esse interstício, esse choque, a abertura e a criação proporcionados pelas dobras entre domínios, espécies e seres. Nesse sentido, a antropologia e a arte têm muito a trocar.
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TEXTOS CRÍTICOS
Hércules Lima é designer, estilista e pesquisador. Bacharel em Design-Moda pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Membro do Grupo de Estudos em Pesquisas Étnicas da UFC (GEPE-UFC) e do Grupo de Pesquisa em História da Arte e Cultura de Moda (UFRGS).
HÉRCULES LIMA
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Os limites da representatividade negra nos bancos de imagens BANCOS
DE
OS
NOS
LIMITES
DA
REPRESENTATIVIDADE
IMAGENS
NEGRA
(239 - 247)
KAUANY DUARTE
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TEXTOS CRÍTICOS
Pode-se perceber que existe uma certa dificuldade em encontrar imagens na internet, que possam ser usadas em peças publicitárias, de pessoas negras (pretas e pardas). Historicamente, a população não branca enfrenta um cenário de desigualdades, subalternização e violências diversas. Dentre as formas de silenciamento e inferiorização identificadas se encontra a depreciação da imagem do negro, como mais um dos reflexos do racismo estrutural e da colonialidade no Brasil (ALMEIDA, 2019; QUIJANO, 2010).
KAUANY DUARTE
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O racismo e a colonialidade, que interferem diretamente na vida das pessoas, mostra-se presente também na questão da representatividade negra na mídia brasileira. Dentro do contexto dos bancos de imagens se materializa também através do uso homogeneizado de imagens de pessoas brancas em peças a serem veiculadas e na falta da presença de imagens que representem a população negra, que no caso do Brasil representa mais da metade populacional. Evidencia-se assim a importância de compreender estes dois conceitos tão implicados na estrutura das relações raciais na mídia, na publicidade e nos bancos de imagens. As imagens são parte importante na composição de mensagens, sejam elas advindas de bancos ou de fontes autorais, pois desempenham uma importante função no processo de construção de sentido. O uso massivo e repetitivo dessas imagens pela publicidade, através do acesso aos bancos de imagens, em diferentes contextos aplicados a variadas marcas, “chama a atenção por comprometer de modo muito contundente a efetividade (ou não) da narrativa na qual está inserida” (RODRIGUES; SILVA, 2019, p. 4). Neste panorama, refletir sobre o lugar das práticas, processos decisórios e limites do uso do banco de imagens por comunicadores se torna relevante para entender o impacto do racismo estrutural e
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TEXTOS CRÍTICOS
da colonialidade à representatividade negra nas imagens dessas plataformas. Nesse sentido, se há representação distorcida de determinados indivíduos na publicidade, os bancos de imagens são também parte importante desse processo. Pois, suas fotografias e ilustrações não abastecem somente o mercado publicitário, mas são uma parcela significativa das imagens que compõem a comunicação midiática em geral, conteúdos digitais como blogs e sites, e até mesmo mensagens institucionais, jornalísticas e governamentais. (CARRERA, 2020, p. 139) Sendo assim, reconhecendo as dinâmicas de composição destes bancos – que envolvem o abastecimento do repositório por, muitas vezes, fotógrafos autônomos - e seu caráter de mecanismo de busca, surgem questionamentos relevantes para o contexto dos estudos da comunicação contemporânea e dos desafios da representação midiática, isto é, de forma geral: quais imagens são disponibilizadas por estes bancos na busca por determinadas palavras-chave? Do ponto de vista da questão racial, observa-se a variedade predominante de imagens de pessoas brancas, pouca diversidade étnica e uma representatividade negra bem limitada. Das 789 imagens obtidas nas quatro primeiras páginas de resultados das quatro palavras chave analisadas, apenas 136 imagens
KAUANY DUARTE
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conferiam a presença de pessoas negras, o que configura uma porcentagem de representatividade negra imagética de 17,84% no banco de imagens Freepik. Pessoas brancas ocuparam 82,16% dessas imagens analisadas, totalizando 653 imagens. É importante deixar claro que tampouco se pode afirmar com total exatidão qual a quantidade exata de imagens capazes de representar a população negra dentro da plataforma Freepik, entretanto esta análise visa colaborar para entendimento do funcionamento desta plataforma. Os resultados encontrados se dão a partir da ordem de exibição padrão, por “popularidade” informada pelo site, e embora não tenhamos acesso aos detalhes do funcionamento desse algoritmo, podemos observar um pouco como o mesmo funciona. Desta forma pode-se perceber que o mesmo tem uma tendência em priorizar resultados de imagens com pessoas brancas, dificultando o acesso às imagens com pessoas negras. Do ponto de vista da direção de arte, pode-se perceber que algumas das imagens com a presença de pessoas negras apresentavam notável esforço em um certo “clareamento” dessas imagens. Nestes casos, pode-se notar que parâmetros como exposição, brilho e temperatura, chegavam a distorcer até mesmo a cor da pele dos modelos negros.
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TEXTOS CRÍTICOS
É preciso também destacar que foi observado durante a análise um certo capricho com relação às imagens com pessoas brancas, como um cenário mais interessante, fotografias com diferentes ângulos, diferentes modelos e etc. Ou seja, a plataforma parece se dedicar mais para este tipo de conteúdo, deixando um pouco a desejar nas produções de imagens com pessoas negras. O racismo na mídia e na publicidade brasileira são reflexos da nossa sociedade essencialmente racista, marcada por muitas desigualdades sociais e por um histórico de marginalização das pessoas negras desde de suas bases constitutivas. Entretanto, a existência de um racismo estrutural não exime a sociedade, nas suas instâncias particulares, da problemática em resolvê-lo, e muito menos deve-se excluir o capitalismo deste debate como sistema que nasce, no Brasil, das relações fortemente escravistas vivenciadas por 350 anos 87 nessas terras. As instituições, por sua vez, ocupam posições de poder e relevância perante a sociedade e, assim sendo, é mais do que lógica a responsabilidade e responsabilização desses espaços nas resoluções dos problemas raciais, visto que tanto reproduziram e reproduzem o racismo e a colonialidade em suas práticas de funcionabilidade. Agir de forma também institucional contra estes mecanismos que tanto violentam a população não branca
KAUANY DUARTE
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deste país, parte majoritária desta nação, é fundamental na reversão do quadro de violência racial e de gênero, seja ela simbólica ou física. Logo, resta também aos setores midiáticos e a publicidade a tomada de responsabilidade, todavia que as mesmas se configuram em potentes ferramentas de influência na construção de identidades, subjetividades, na criação de estereótipos e logo, na própria reprodução do racismo. Considera-se a partir da abordagem antirracista neste texto, que na nossa sociedade não basta não ser racista, é preciso ser antirracista, sempre que necessário, e o necessário nesse caso é quase sempre.
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TEXTOS CRÍTICOS
Kauany Duarte é artista multiplataforma, designer visual, diretora de arte, UX/UI designer, web designer, desenvolvedora no code/low code, diretora de criação, designer editorial, editora audiovisual que também já trabalhou como comunicadora, fotógrafa e pesquisadora. Graduada em Comunicação Social - Publicidade e Propaganda, pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Foi bolsista pesquisadora do LAC Laboratório de Arte Contemporânea, do PET - Programa de Educação Tutorial e presidente da Rastro Agência Júnior de Publicidade e Propaganda da UFC. Selecionada pelo programa de bolsas acadêmicas Santander Mundi para realizar mobilidade internacional na Universidad de Granada na Espanha. Atualmente, trabalha como UX/UI designer e desenvolve pesquisas sobre design decolonial, antirracismo, representatividade de corpos negros em bancos de imagens e experiência de usuários com foco na acessibilidade e na equidade em design de produtos digitais.
KAUANY DUARTE
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O fim do mundo como conhecemos COMO
CONHECEMOS
O
MUNDO
DO
FIM
(249 - 263)
LUCAS DILACERDA
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TEXTOS CRÍTICOS
Soterramento A exposição Soterramento (2018) investiga o esgotamento dos modos de existência majoritários e a falência do mundo como conhecemos. A partir de exercícios de descolonização da imaginação, libertando-a das agarras e armadilhas dos poderes instituídos e fazendo fugir a vida e a potência de criação aprisionadas, os artistas imaginam o impossível em uma guerra de imaginações, onde surge uma criação ética e estética que propõe o apocalipse como projeto político: a morte deste mundo como conhecemos para a criação de um novo mundo por vir. O apocalipse deste mundo parece ser, a esta altura, a única demanda política razoável. Contudo é preciso separá-la da ansiedade quanto à possibilidade de prever o que há de sucedê-lo. É certo que, se há um mundo por vir, ele está em disputa agora, no entanto é preciso resistir ao desejo controlador de projetar, desde a ruína deste, aquilo que pode vir a ser o mundo que vem. Isso não significa abdicar da responsabilidade de imaginar e conjurar forças que habitem essa disputa e sejam capazes de cruzar o apocalipse rumo à terra incógnita do futuro, pelo contrário: resistir ao desejo projetivo é uma aposta na possibilidade de escapar à captura de nossa imaginação visionária pelas forças reativas do mundo contra o qual lutamos. Recusar-se a oferecer alternativas não é, portanto, uma recusa à imaginação, mas um gesto na luta para fazer da imaginação não uma via para o recentramento do homem e a reestruturação do poder universalizador, mas uma força descolonial que libere o mundo por vir das armadilhas do mundo por acabar (MOMBAÇA, 2021, pp. 82-83).
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Descolonização da imaginação A imaginação é a faculdade essencial para qualquer criação artística. Antes de qualquer obra de arte existir, ela precisa antes ser imaginada pelo artista. A imaginação é a capacidade de produzir imagens a partir da memória. Pois a memória é a matéria prima da imaginação. E essas memórias podem ser memórias desta vida ou memórias de vidas passadas, de ancestralidades humanas (de parentes familiares) e também de ancestralidades não-humanas (de parentes cósmicos). Ancestralidade não-humana Os gregos antigos possuíam duas palavras para se referir à memória: Mnèmai e Anamnèseis. Mnèmai é a memória que construímos nesta vida. Anamnèseis é a memória que herdamos de vidas passadas. Essas memórias ancestrais poderiam ser humanas e não-humanas; poderiam ser memórias de nossos parentes familiares ou memórias de nossos ancestrais animais, vegetais, minerais, encantados, cósmicos etc. – ou seja, ancestrais não humanos. Por meio da arte, conseguimos nos reconectar com a nossa ancestralidade da Natureza, isto é, conseguimos nos reconectar com as plantas, árvores, florestas, rios, mares, dunas, desertos, sertões etc. Ancestralidade animal. Ancestralidade vegetal. Ancestralidade mineral. Ancestralidade desértica. Ancestralidade
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florestal. Ancestralidade vulcânica. Ancestralidade marítima. Ancestralidade estrelar. Por meio da arte, conseguimos ver – de diferentes visões, ângulos, cores e perspectivas, que por vezes podem ser distorcidas e até mesmo abstratas – uma paisagem não-humana da Natureza, antes da colonização do Homem, da Humanidade e do projeto humanista que separou a cultura da Natureza. Assim, por meio da arte, conseguimos romper com esses dualismos e nos conectar com as nossas memórias ancestrais da Natureza a partir da intuição de paisagens não-humanas. Poética da imaginação Assim, a poética da imaginação – isto é, o ato de produzir imagens – tem uma relação direta com a memória. Essas imagens, produzidas pela imaginação, podem ser visuais, sonoras, olfativas, gustativas, táteis, sensitivas e políticas. Por isso, a imaginação é a nossa capacidade de imaginar a realidade para além de suas condições dadas e previamente estabelecidas para, a partir disso, imaginar novos modos de existência e fabular novos mundos possíveis. Crise da imaginação Entretanto, atualmente, vivemos uma crise da imaginação, em que essa capacidade é cada vez mais
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despotencializada, atrofiada e bloqueada, quando não sequestrada, aprisionada e colonizada pelos poderes políticos do mundo colonial e neoliberal. Nesse sentido, uma das questões centrais da exposição Soterramento (2018) é investigar: como descolonizar a imaginação e libertar a sua potência revolucionária? Nessa batalha, a arte não é apenas uma aliada, mas uma arma de enfrentamento a essa guerra que se instaura. Por isso, a exposição busca retomar uma discussão em torno da potência da imaginação na arte, a fim de investigar estratégias de combate aos modos coloniais e neoliberais de imaginar, pensar, sentir e criar, tais como: o escuro, o silêncio, a solidão, o esquecimento, a memória, a morte e a vida. Meteoros e fungos A exposição Soterramento (2018) se divide em duas salas: 1) A morte do mundo; e 2) Como viver? Na sala 1, os artistas-meteoros colidem neste mundo, destruindo a má consciência, o ressentimento e as paixões tristes; Na sala 2, os artistas-fungos brotam da morte deste mundo para gestar novos modos de existência, grávidos de possibilidades de vida, fazem da arte não um substantivo, nem um adjetivo, mas sim um verbo: como viver?
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Artistas-meteoros e artistas-fungos O texto curatorial foi impresso em papéis amassados e jogados em uma lata de lixo localizada na entrada da exposição, onde o público poderia retirálo, desamassá-lo e lê-lo. A exposição teve como artistas Arara, Arthur Siebra, Corpa Caironi, David Felício, Edu Moreira, Georgia Vitrilis, Isadora Ravena, Jorge Silvestre, Kaly Geronimo, Louise Felix, Marília Oilveira, Noá Bonoba, Peaug, rnld Nogueira, Rodrigo Lopes e Terroristas del Amor. Mundo O Mundo é um grande refletor de luz que nos cega com sua a luminosidade. É preciso mais do que nunca fechar os olhos para as luzes cegantes do Mundo e aprender a abrir os olhos para o escuro invisível da Terra. Sonhar de olhos abertos é saber driblar as luzes do Mundo para captar o escuro da Terra incógnita por vir. Colonialismo da luz Estamos vivendo um colonialismo da luz. Iluminismo, modernidade e colonialidade. A face oculta e a face revelada. A luz da razão se propagou até a nós. A luz do fogo de Zeus. A luz do céu de Deus. A luz da razão do Homem. A luz da tela do Smartphone. Estamos cercados pelas luzes do Mundo que nos cegam de tanto ver.
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Armadilha da visibilidade Se a luz nos captura com a armadilha da visibilidade, como não ser visível? Se a sombra nos mata com o cemitério da invisibilidade, como não ser invisível? Como não habitar a luz e ao mesmo tempo não habitar a sombra? Como não ser visível e ao mesmo tempo não ser invisível? Como habitar uma penumbra entre a luz e a sombra? Como dançar na fronteira entre o visível e o invisível? Penumbra É na penumbra que a arte gesta novos mundos, que engravida novas possibilidades de vida. É na penumbra que a arte dança entre a luz e a sombra, entre o claro e o escuro, entre o visível e o invisível, entre a transparência e a opacidade, entre a memória e o esquecimento, entre a ordem e o caos. É na penumbra que a imaginação ganha a sua potência política, no escuro iluminado pelos lampejos da vida. É na penumbra que dormimos, relaxamos, desaceleremos e sonhamos. Útero do mundo Diante da hiper-iluminação do Mundo, habitar a penumbra se torna um gesto político e de resistência. É na penumbra que a arte gesta um novo corpo. Porque a arte é o útero do mundo. Ela é a embriologia do nascimento de um corpo
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vivo. A arte é o mundo grávido de si mesmo. Ela carrega e nutre esse corpo para sobreviver ao fim do mundo. Tumor da Terra O tumor da Terra começou quando alguém disse: “eu”. A Terra estava grávida de gêmeos, e quando nasceu o “eu” também nasceu o “outro”. O “outro” que não é o “eu”. O “outro” que não é o herdeiro da Terra. O “outro” que pode ser colonizado. O “eu” cometeu um matricídio, e a Terra foi expropriada. A primeira pessoa é sempre um resto do “eu”. Me forço todos os dias para imaginar um mundo em que não exista essa palavra. Imagine comigo: como seria o Mundo sem a palavra “eu”? Nesse mundo, seria possível o individualismo? Seria possível a colonização do “outro”? Existiria o “outro”? Quero lembrar como era antes de ter aprendido a palavra “eu”. Quero inventar uma linguagem sem a primeira pessoa, com verbos impessoais e pronomes indefinidos. Quero abortar a ideia do “eu” e engravidar novos mundos, porque o “eu” é o tumor da Terra. E quando aprendermos a nos chamar de “nós”, aprenderemos a falar em quarta pessoa, quinta, infinita pessoa do singular e plural. A morte do “eu”. O renascimento da Terra.
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Como cortar o mundo com delicadeza? As serpentes não têm pálpebras. As serpentes não piscam os olhos. Os olhos das serpentes são cobertos por uma fina escama. Uma delicada escama. Arrancamos os nossos olhos para enxergar o escuro invisível da Terra. Estouramos os nossos ouvidos para ouvir a onda silenciosa do mar. Rasgamos a nossa pele para sentir a carne pulsante do corpo. Mordermos a nossa língua para provar o gosto ácido da vida. Eu me corto e o corte me corta. Me corta e me transmuta. Os nossos olhos ficam vermelhos. Os nossos tímpanos ouvem zumbidos. A nossa respiração para. A nossa boca seca. A nossa pele transpira. Eu me derreto a ponto de não sobrar mais um “eu”. Já não é mais possível conjugar nenhum verbo porque já não existem mais sujeitos. Todos os problemas iniciam quando nos ensinam a falar “eu”. O tumor da Terra começou quando a primeira pessoa disse: “eu”. E para que eu corte o “eu” e seja eu cortada é preciso saber: “Como cortar o mundo com delicadeza?” (RAVENA; DILACERDA, 2020). Poética alienígena No livro A dívida impagável (2019), a filósofa Denise Ferreira da Silva afirma que o mundo moderno e colonial, conceituado por ela de “Mundo Ordenado”, é sustentado
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por três pilares ontoepistemológicos: 1) a separabilidade, 2) a determinabilidade, e 3) a sequencialidade. Para o desmoronamento do Mundo Ordenado, Denise acredita na potência da poética negra feminista, em especial na literatura de ficção visionária, e a sua potência de fabular personagens que subvertam os três pilares ontoepistemológicos. A poética alienígena da arte aponta para a imagem do Mundo Implicado, isto é, um Mundo não-Ordenado pelos três pilares ontoepistemológicos – a separabilidade, a determinabilidade e a sequencialidade –, mas sim um novo mundo que mergulha na transubstancialidade, na transversalidade e na atravessabilidade, isto é, um Mundo Implicado onde “tudo que existe é uma expressão singular de cada um e de todos os outros existentes atuais-virtuais do universo, ou seja, como Corpus Infinitum” (FERREIRA da SILVA, 2019, p. 46). Respiração Na biologia, a respiração é o processo de troca de energia do ser vivo com o ambiente. Nessa troca, o ar é convertido em energia vital que alimenta todas as nossas células. Sem essa troca, sem a respiração, não haveria a produção de energia. E sem energia, não poderíamos nos mover. A energia é convertida em movimento e ação. Se a Terra respira, ela é um ser vivo? E se ela respira, ela está convertendo o ar em
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energia? E se a energia é convertida em movimento, qual será o movimento que a Terra está tramando? Quanto de energia a Terra precisa acumular para criar um terremoto? E um furacão? E uma tsunami? E uma erupção de um vulcão? O que virá com a grande respiração da Terra? Isso me parece curioso porque atualmente vivemos uma crise do ar. No mundo, milhões de pessoas morrem atualmente por falta de ar, por um misterioso problema em suas vias respiratórias que estão as impossibilitando de produzir a sua energia para viver. Será que a Terra está tomando o nosso ar? Ou fomos nós que roubamos o ar da Terra? Seria uma reintegração de posse de uma dívida impagável? Escatologia alienígena No início, tudo era Natureza. Os seres como as plantas, os animais e os minerais viviam em harmonia no planeta. Entretanto, em algum momento da história, o homem se autoproclamou superior à Natureza e a tudo que existia nela. Esse momento pode ser chamado de “Gênesis” – o nascimento do mundo. O mundo não é o planeta Terra, mas sim o planeta dos homens. Vivemos em um mundo machista, racista e LGBTfóbico. É nesse sentido que Jota Mombaça profetizou o apocalipse como o fim do mundo que conhecemos, ou seja, o fim do planeta dos homens, o fim do mundo capitalista, colonial e neoliberal
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que expropria e destrói o planeta Terra, a Natureza. É contra esse mundo que a arte tem a potência de investigar os sintomas do apocalipse, tais como o ocre, os fungos e as trombetas como potências de destruição e recriação do Mundo e da linguagem visual. Por isso, chamo de “escatologia alienígena” essa poética que investiga os sintomas do apocalipse. Escatologia porque é a área da filosofia que estuda o fim do mundo e do ser humano. Alienígena porque é um modo de vida fora do mundo como conhecemos.
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Lucas Dilacerda é Curador e Crítico de Arte. É coordenador da CAV - Curadoria em Artes Visuais; do LAC - Laboratório de Arte Contemporânea; e do LEFA - Laboratório de Estética e Filosofia da Arte. É sócio da ABCA - Associação Brasileira de Críticos de Arte. Graduação em Artes Visuais, pela UECE; e Mestrado em Artes, pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Graduado (Licenciatura e Bacharelado) em Filosofia, com distinção Summa Cum Laude, pela UFC; e Mestre em Filosofia, com ênfase em Estética e Filosofia da Arte, pela UFC. Realizou mais de 20 curadorias. Ministrou mais de 50 cursos e 150 apresentações em diversas instituições de arte do Brasil. Possui mais de 20 textos, críticas de arte e artigos publicados. É autor do livro “Pensamento alienígena: a fabulação de novos mundos possíveis”.
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FERREIRA da SILVA, Denise. A dívida impagável. São Paulo: Oficina de Imaginação Política e Living Commons, 2019. MOMBAÇA, Jota. Não vão nos matar agora. Rio de Janeiro: Cobogó, 2021. RAVENA, Isadora; DILACERDA, Lucas. Como cortar o mundo com delizadeza?. Wrong Wrong, Lisboa, 05 dez. 2020.
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LISTA DE OBRAS Arara Boa Viagem, CE, 1992 Não-lugar [Non-place], 2015 plástico, vidro e tecidos [plastic, glass and fabrics] 120 x 60 x 60 cm Arthur Siebra Crato, CE, 1997 Sem título [Untitled], 2015 acrílica sobre papel [acrylic on paper] 21 x 29,5 cm Cores para quem não as ver [Colors for those who can’t see], 2017 acrílica sobre papel [acrylic on paper] 40 x 40 cm Diante da graça [Before the grace], 2017 acrílica sobre papel [acrylic on paper] 28 x 31 cm Insanidade [Insanity], 2017 acrílica sobre tela [acrylic on canvas] 30 x 20 cm O que me deixaste [What you left me], 2017 acrílica sobre papel [acrylic on paper] 42 x 29 cm Sob a percepção da finitude [Under the perception of finitude], 2018 acrílica sobre tela [acrylic on canvas] 50 x 50 cm Deixa-me ser [Let me be], 2018 acrílica sobre papel [acrylic on paper] 42 x 29 cm
Corpa Caironi Maracanaú, CE, 1996 Golfada não se segura [Gush can’t hold itself], 2018 performance e vídeo, cor, som [video, color, sound]; loop 34’07” David Felício & Jorge Silvestre Fortaleza, CE, 1996 Fortaleza, CE, 1998 invisível:incolor [invisible:colorless], 2018 fotografias impressas em transparência, de álbuns de famílias negras cearenses dispostas ao redor da reprodução de trecho da Revista do Instituto do Ceará - Tomo Especial 1984 - 1o. Centenário da Abolição dos Escravos no Ceará [snapshots printed on transparency, of albums of black families from Ceará arranged around the reproduction of an excerpt from the Revista do Instituto do Ceará Special Volume 1984 - 1st. Centenary of the Abolition of Slaves in Ceará] dimensões variadas [variable dimensions] Edu Moreira Fortaleza, CE, 1996 Gritos [Screams], 2018 série de autorretratos modificados digitalmente instalados ao lado de uma tela que registrou e continuou a exibir a performance onde eu removia uma tatuagem da costela usando uma lixa, sal e limão [series of digitally modified self-portraits installed next to a screen that recorded and continued to display the performance of me removing a rib tattoo using sandpaper, salt and lemon] dimensões variadas [variable dimensions] 4’39”
Georgia Vitrilis São Luís, MA, 1993 Disfagia de Suindara [Barn owl dysphagia], 2018 bananas, microfone, noiser e caixa de som [bananas, microphone, noiser and speaker] 20' Isadora Ravena Uuruburetama, CE, 1997 Ethylenediaminetetraacetate (EDTA), 2018 corpo sobre água com sabão sobre o chão [body in soapy water on the floor] Kaly Geronimo Ibiporã, PR, 1995 Esse corpo é tudo o que eu tenho [This body is all I have], 2018 corpo e acrílica sobre papel [body and acrylic on paper] 29,7 x 42 cm cada [each] Louise Felix Fortaleza, CE, 1991 Formas de esconder um corpo [Ways to hide a body], 2018 instalação [installation] 170 x 200 cm Lucas Dilacerda Fortaleza, CE, 1995 Terra [Earth], 2018 terra [earth] dimensões variadas [variable dimensions] Marília Oliveira São Benedito, CE, 1984 Caminhe como eu [Walk like me], 2018 mochilas e pedras [backpacks and stones] dimensões variadas [variable dimensions] Noá Bonoba Fortaleza, CE, 1991 Terra ausente [Absent land], 2018 vídeo, cor, som [video, color, sound]; loop 13'55"
Peaug Fortaleza, CE, 1992 Acredita em si mesma, bixa! [Believe in yourself, bixa!], 2018 instalação [installation] 200 x 200 cm rnld Nogueira Fortaleza, CE, 1994 eu não sei o que eu vejo, eu não sei o que eu quero ver no 01 [I don’t know what I see, I don’t know what I want to see no 01], 2018 desconforto-investigação [discomfort-research] 29,7 x 40 cm (fotografia) [photography] Rodrigo Lopes Fortaleza, CE, 1995 Ancestral, 2018 performance / bordado sobre papel [performance / embroidery on paper] 100 x 200 cm Quem pode falar? [Who can speak?], 2018 educativo-instalativo (microfone, caixa de som, mesa e cadeira de madeira, bordados, envelopes e impressos em papel) [educative instalation (microphone, speaker, wooden table and chair, embroidery on fabric, envelopes and printed on paper)] 100 x 300 x 100 cm Terroristas del Amor (Dhiovana Barroso e Marissa Noana) Fortaleza, CE, 1993 Fortaleza, CE, 1997 Duas de nós [Two of us], 2018 colagem digital, bordado e ilustração [digital collage, embroidery and illustration] 59,4 x 84,1 cm
FICHA TÉCNICA
SOTERRAMENTO EXPOSIÇÃO
CATÁLOGO
CURADORIA [Curator] Lucas Dilacerda
ORGANIZAÇÃO E EDIÇÃO [ORGANIZATION AND EDITING] Lucas Dilacerda
EXPOGRAFIA [Exhibition Design] Anna Luisa Costa PROGRAMA EDUCATIVO [Educational Program] Rodrigo Lopes
PROJETO GRÁFICO [GRAPHIC DESIGN] Rodrigo Lopes PRODUÇÃO [PRODUCTION] Laris Moraes
PRODUÇÃO ARTÍSTICA [Artistic Production] Edu Moreira
TRATAMENTO FOTOGRÁFICO [PHOTO TREATMENT] Hércules Lima
PRODUÇÃO TÉCNICA [Technical Production] Matheus Rodrigues
TEXTOS CRÍTICOS [CRITICAL TEXTS] Anna Luisa Costa Hércules Lima Kaciano Gadelha Kauany Duarte Lucas Dilacerda Rodrigo Lopes Rômulo Silva
COMUNICAÇÃO VISUAL [Visual Communication] Rodrigo Lopes FOTOGRAFIA [Photography] Iury Ponte Rennó Silva Wellber Teixeira COLABORAÇÃO [Collaboration] LAC - Laboratório de Arte Contemporânea PETCom - Programa de Ensino Tutorial dos cursos de Comunicação Social (UFC) AGRADECIMENTOS [Acknowledments] Carolina Soares Chico Cavalcante Douglas Silva Gustavo Pinheiro Kaciano Gadelha Mel Andrade Nataly Rocha Tobias Gaede Tutunho
REVISÃO [PROOFREADING] Wes Viana
REALIZAÇÃO
APOIO CULTURAL
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Soterramento [livro eletrônico] / curadoria Lucas Dilacerda. -- 1. ed. -- Fortaleza, CE : Ed. dos Autores, 2022. PDF. ISBN 978-65-00-59716-5 1. Arte contemporânea 2. Arte - História 3. Artes - Exposições - Catálogos I. Dilacerda, Lucas. 22-140711 Índices para catálogo sistemático: 1. Artes : Catálogos de exposições 700.74 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
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ARARA ARTHUR SIEBRA CORPA CAIRONI DAVID FELÍCIO & JORGE SILVESTRE EDU MOREIRA GEORGIA VITRILIS ISADORA RAVENA KALY GERONIMO LOUISE FELIX LUCAS DILACERDA MARÍLIA OLIVEIRA NOÁ BONOBA PEAUG rnld NOGUEIRA RODRIGO LOPES TERRORISTAS DEL AMOR