As Crônicas de Bane - Vol. 7 - A Queda do Hotel Dumort - Cassandra Clare

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Cassandra Clare e Maureen Johnson

A queda do Hotel Dumort

As Crônicas de Bane Tradução de Rita Sussekind 1ª edição

2014


CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

C541c

Clare, Cassandra, 1973As crônicas de Bane : a queda do Hotel Dumort [recurso eletrônico] / Cassandra Clare, Maureen Johnson; tradução Rita Sussekind. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Galera Record, 2014. recurso digital (As crônicas de Bane; 7) Tradução de: The fall of the hotel dumort Sequência de: Salvando Raphael Santiago Continua com: O que comprar para o Caçador de Sombras que já tem tudo (mas que você não está namorando oficialmente) Formato: ePub Requisitos do sistema: Adobe Digital Editions Modo de acesso: World Wide Web ISBN 978-85-01-06268-0 (recurso eletrônico) 1. Ficção americana. 2. Livros eletrônicos. I. Johnson, Maureen. II. Sussekind, Rita. III. Título. IV. Série.

14-14753

CDD: 813 CDU: 821.111(73)-3


A queda do Hotel Dumort

Julho 1977

— O que é que você faz? — perguntou a mulher. — Uma coisa aqui, outra ali — respondeu Magnus. — Trabalha com moda? Você parece ser do mundo da moda. — Não — disse ele. — Eu sou a moda. Foi um comentário um pouco afetado, mas pareceu encantar a companheira de voo. Na verdade, foi uma espécie de teste. Tudo parecia fasciná-la — as costas do assento à sua frente, as próprias unhas, o copo, o próprio cabelo, o cabelo de todos os outros, o saco de vômito... O avião só estava no ar havia uma hora, mas a moça sentada ao lado de Magnus já tinha levantado quatro vezes para usar o toalete. Em todas, ela voltara logo em seguida, esfregando furiosamente o nariz e visivelmente trêmula. Agora ela se inclinava sobre ele, os cabelos louros mergulhando na taça de champanhe de Magnus, e o pescoço exalando Eau de Guerlain. Um rastro desbotado de pó branco ainda marcava seu nariz. Ele poderia ter feito a viagem em segundos com um Portal, mas havia algo de agradável nas aeronaves. Eram charmosas, íntimas e lentas. Dava para conhecer pessoas. Magnus gostava de conhecer pessoas. — Mas sua roupa — disse ela. — O que é? Magnus olhou para o paletó xadrez preto e vermelho com uma camiseta rasgada por baixo. Era moda na cena punk de Londres, mas Nova York ainda não tinha chegado lá. — Eu trabalho como relações-públicas — informou a moça, aparentemente se esquecendo da própria pergunta. — Para discotecas e boates. As melhores boates. Aqui. Aqui.


Ela vasculhou sua bolsa imensa e parou por um instante ao encontrar os cigarros. Colocou um entre os lábios, acendeu e continuou procurando até retirar um pequeno portacartões com estampa de tartaruga. Abriu e pegou um cartão que dizia: ELECTRICA. — Apareça — falou, batendo no cartão com uma longa unha vermelha. — Apareça. Está inaugurando. Vai ser um arraso. Muuuuito melhor do que a Studio 54. Ah. Desculpe. Você aceita? Ela mostrou um pequeno frasco na palma da mão. — Não, obrigado. E, em seguida, estava se remexendo no assento outra vez, batendo com a bolsa no rosto de Magnus enquanto ia de novo ao banheiro. Os mundanos tinham voltado a se interessar muito pelas drogas. Eles tinham essas fases. No momento, era cocaína. Magnus não via a droga nessa quantidade desde a virada do século, quando a colocavam em tudo — tônicos, poções e até na Coca-Cola. Achava que era coisa do passado, mas ela estava de volta, com força total. Magnus nunca se interessou por drogas. Um bom vinho, com certeza, mas ficava longe de poções, pós e comprimidos. Não se deve usar entorpecentes e fazer mágica. Além disso, usuários são chatos. Irremediavelmente chatos. As drogas os deixam muito acelerados ou muito lentos, e eles basicamente só falam sobre isso. Depois param de usar — um processo doloroso — ou morrem. Não existe meio-termo. Como toda fase dos mundanos, esta também passaria. De preferência, em breve. Ele fechou os olhos e decidiu dormir durante a travessia do Atlântico. Londres já ficara para trás. Era hora de ir para casa.

Ao desembarcar no aeroporto JFK, Magnus obteve o primeiro lembrete de por que havia sumariamente deixado Nova York para trás havia dois verões. A cidade era quente demais no verão. Fazia quase quarenta graus, e o cheiro de combustível e fumaça de exaustor se misturava aos gases pantanosos deste canto da cidade. O cheiro, ele sabia, só iria piorar. Com um suspiro, entrou em uma fila de táxi. O veículo era tão confortável quanto qualquer caixa de metal ao sol, e o suor do motorista se misturava ao odor geral no ar. — Para onde, amigo? — perguntou, assimilando o traje de Magnus. — Esquina da Christopher com a Sexta Avenida. O motorista resmungou e ligou o taxímetro, em seguida partiu em direção ao tráfego. A fumaça do seu charuto voava direto para o rosto de Magnus. O feiticeiro levantou o dedo e a redirecionou para fora da janela. A estrada do JFK para Manhattan era estranha, abria caminho por bairros residenciais e trechos desertos, passando por cemitérios. Era uma tradição antiga manter os mortos fora da


cidade — mas não muito distantes. Londres, que Magnus acabara de visitar, era cercada por antigos cemitérios. E Pompeia, que visitara havia alguns meses, tinha uma avenida inteira de mortos, túmulos que iam até o muro da cidade. Passados os bairros e cemitérios, no fim da via expressa lotada, brilhando ao longe, lá estava Manhattan; os pináculos e cumes que eram acesos para a noite. Da morte à vida. Magnus não pretendia passar tanto tempo longe de Nova York. Ele só ia fazer uma rápida viagem a Monte Carlo... mas essas coisas acabam se prolongando. Uma semana em Monte Carlo se transforma em duas na Riviera, que viram um mês em Paris e dois meses na Toscana, e então você acaba em um barco para a Grécia, volta para Paris por uma temporada, depois passa um tempo em Roma, Londres... E às vezes, acidentalmente, acaba passando dois anos. Acontece. — De onde você é? — perguntou o motorista, encarando Magnus pelo retrovisor. — Ah, do mundo. Daqui, basicamente. — Você é daqui? Esteve fora? Tem cara de que esteve fora. — Por um tempo. — Soube dos assassinatos? — Faz tempo que não leio jornal — respondeu Magnus. — Um maluco qualquer. Se apresenta como Filho de Sam. Também o chamam de assassino calibre 44. Sai por aí atirando em casais em points de namoro. É um doente. Muito doente. A polícia não o captura. Não fazem nada. Doente. A cidade está cheia deles. Você não deveria ter voltado. Taxistas de Nova York: sempre tão agradáveis.

Magnus saltou na esquina arborizada da Sexta Avenida com a Christopher, no coração do West Village. Mesmo à noite o calor era sufocante. Ainda assim parecia incentivar uma atmosfera de festa na vizinhança. O Village era um lugar interessante antes de ele viajar. Ao que parecia, durante sua ausência as coisas tinham adquirido um novo grau de festividade. Homens fantasiados caminhavam pela rua. Os cafés estavam cheios. Havia uma atmosfera carnavalesca que Magnus instantaneamente considerou convidativa. O apartamento de Magnus ficava no terceiro andar de uma das casas de tijolos que ladeavam a rua. Ele entrou e pulou os degraus com passos leves, muito animado. A animação se foi ao chegar ao seu andar. A primeira coisa que notou, ao lado da porta, foi um cheiro forte e desagradável — algo podre, misturado ao que parecia ser um gambá e a outras coisas que Magnus não desejava identificar. Ele não morava em um apartamento fedorento. Seu apartamento cheirava a piso limpo, flores e incenso. Colocou a chave na fechadura, e, quando tentou abrir a porta, ela emperrou. Ele teve que empurrar com força para abrir. O motivo ficou imediatamente claro: havia caixas de garrafas de vinho vazias do outro lado. E,


para grande surpresa de Magnus, a TV estava ligada. Quatro vampiros estavam largados no sofá e assistiam, distraídos, a desenhos animados. Ele soube imediatamente que eram vampiros. A ausência de cor na pele, a postura lânguida. Além disso, nem sequer se incomodaram em limpar o sangue dos cantos das bocas. Todos tinham gotas secas no rosto. Um disco rodopiava na vitrola. Havia chegado ao fim, e a agulha estava presa na faixa vazia final, sibilando suavemente em tom de desaprovação. Apenas uma das vampiras se virou para olhar para ele. — Quem é você? — perguntou ela. — Magnus Bane. Moro aqui. — Ah. Ela se voltou novamente para o desenho. Quando Magnus viajou, dois anos antes, deixou o apartamento aos cuidados de uma empregada, a Sra. Milligan. Ele mandou dinheiro para as contas e para a limpeza todos os meses. Era evidente que ela pagara as contas. A eletricidade continuava ligada. Mas ela não tinha limpado nada e provavelmente não convidara esses quatro vampiros para ficarem e destruírem a casa. Para todo canto que o feiticeiro olhava, havia traços de destruição e decadência. Uma das cadeiras da cozinha estava quebrada, os pedaços no chão. As outras sustentavam pilhas de revistas e jornais. Os cinzeiros transbordavam, e havia cinzeiros improvisados, vários rastros de cinzas e pratos cheios de guimbas de cigarro. As cortinas da sala estavam tortas e rasgadas. Tudo estava bagunçado, e algumas coisas simplesmente tinham desaparecido. Magnus possuía muitas obras de arte cativantes, as quais colecionou ao longo dos anos. Procurou uma das preferidas, uma peça de porcelana de Sèvres que ficava sobre a mesa na entrada. Claro, havia sumido. Assim como a mesa. — Não quero ser rude — falou, e lançou um olhar triste para uma pilha de lixo fedorento no canto de um de seus melhores tapetes persa —, mas posso perguntar por que estão na minha casa? E recebeu um olhar indiferente. — Nós moramos aqui — respondeu a menina, afinal, a enérgica que conseguia virar a cabeça. — Não — disse Magnus. — Acho que acabei de explicar que eu moro aqui. — Você não estava. Então moramos aqui. — Bem, eu voltei. Então, terão que se arranjar de outra forma. Não obteve resposta. — Permitam-me ser mais claro — disse o feiticeiro, colocando-se na frente da televisão. A luz azul estalou entre seus dedos. — Se estão aqui, talvez saibam quem eu sou. Talvez saibam do que sou capaz. Talvez queiram que eu chame alguém que possa ajudá-los? Ou talvez eu possa abrir um Portal e mandar vocês para a extremidade do Bronx? Ohio? Mongólia? Onde querem ficar?


Os vampiros no sofá não disseram nada por um ou dois minutos. Em seguida, conseguiram se entreolhar. Fez-se um grunhido, um segundo grunhido, e então se levantaram do sofá com enorme dificuldade. — Não se preocupe com seus pertences — disse Magnus. — Eu mando entregar. No Dumont? Os vampiros havia muito tinham tomado o velho e condenado Hotel Dumont. Era o endereço geral dos vampiros de Nova York. Magnus os olhou com atenção. Jamais vira vampiros como eles. Pareciam... doentes? Vampiros não adoecem. Ficam com fome, mas não doentes. E esses haviam comido. As evidências estavam estampadas em seus rostos. Além do mais, estavam um pouco trêmulos. Considerando o estado do lugar, Magnus não estava com humor para se preocupar com a saúde deles. — Vamos — falou um deles. E se arrastaram até a entrada para, em seguida, descer as escadas. Magnus fechou a porta com firmeza e com um gesto arrastou a pia seca de mármore para bloquear a porta por dentro. Afinal, era pesada demais para quebrar ou ser removida, mas estava cheia de roupas sujas e velhas que pareciam cobrir algo que ele instintivamente soube que jamais quereria ver. O cheiro era terrível. A primeira coisa que deveria mudar. Um estalo azul atingiu o ar, e o fedor foi substituído pelo leve aroma de jasmim noturno. Ele tirou o disco da vitrola. Os vampiros tinham deixado para trás uma pilha de discos. Magnus analisou e escolheu o álbum novo do Fleetwood Mac que todos estavam ouvindo. Gostava da banda. Havia um som levemente mágico na música. Magnus passou a mão pelo ar novamente, e o apartamento começou a se ajustar por conta própria. Em agradecimento, ele mandou o lixo e as várias pilhas nojentas para o Dumont. Tinha prometido enviar o que era deles, afinal. Apesar da mágica que ele aplicou no ar-condicionado na janela, apesar da limpeza, apesar de tudo que tinha feito, o apartamento ainda parecia sujo e desagradável. Magnus dormiu mal. Desistiu por volta de seis da manhã e partiu em busca de café e desjejum. Continuava no fuso horário londrino. Na rua, algumas pessoas ainda voltavam para casa depois da noite. Uma mulher saltitava com um pé de salto alto e o outro descalço. Magnus viu três pessoas cobertas de purpurina e suor, todas trajando enfeites de penas, saltarem de um táxi na esquina. Ele sentou a uma mesa no canto de uma lanchonete do outro lado da rua. Era o único lugar aberto. Estava surpreendentemente cheio. Mais uma vez, a maioria das pessoas parecia estar encerrando o dia, e não começando, e comiam panquecas para absorver o álcool do estômago. Magnus tinha comprado um jornal no caixa. O taxista não havia mentido. As notícias em Nova York eram muito ruins. Ele tinha deixado para trás uma cidade perturbada e retornado para uma destruída. A cidade estava falida. Metade dos prédios no Bronx havia


incendiado. O lixo se acumulava nas ruas, pois não existia verba para recolhê-lo. Furtos, assassinatos, assaltos... e sim, alguém que se autodenominava Filho de Sam, afirmando ser um agente de Satã, circulava com uma arma atirando em pessoas a esmo. — Achei que fosse você, Magnus — disse uma voz. — Por onde andou, cara? Um jovem sentou do outro lado da mesa. Vestia jeans, um colete de couro sem camisa e uma cruz de ouro no pescoço. Magnus sorriu e dobrou o jornal. — Greg! Gregory Jensen era um lobisomem muito bonito, com cabelos louros na altura do ombro. Louro não era o tom de cabelo preferido de Magnus, mas em Greg caía muito bem. Durante um tempo, Magnus nutriu uma breve paixonite por Greg, da qual eventualmente abriu mão ao conhecer a mulher dele, Consuela. O amor licantrope era intenso. Ninguém mexia com ele. — Falando sério — Greg puxou o cinzeiro da mesa e acendeu um cigarro —, as coisas andam péssimas ultimamente. E quero dizer péssimas. — Péssimas como? — Os vampiros, cara — Greg deu uma longa tragada. — Tem alguma coisa errada com eles. — Encontrei alguns vampiros no meu apartamento na noite em que cheguei — disse Magnus. — Não pareciam bem. Para começar, estavam nojentos. E com aspecto de doentes. — Eles estão doentes. Se alimentando como loucos. Está ficando ruim, cara. Está ficando ruim. Estou falando... Ele se inclinou e diminuiu a voz. — Os Caçadores de Sombras vão cair em cima de nós se os vampiros não se controlarem. No momento não tenho certeza se os Caçadores sabem o que está acontecendo. O índice de assassinatos na cidade anda tão alto que talvez eles não tenham percebido. Mas não vai demorar até que notem. Magnus se inclinou para trás no assento. — Camille normalmente mantém as coisas sob controle. Greg deu de ombros com veemência. — Só posso dizer que os vampiros começaram a aparecer nas boates e discotecas. Adoram esse tipo de coisa. Mas aí passaram a atacar pessoas o tempo todo. Nas boates, nas ruas. A polícia de Nova York acha que são assaltos atípicos, então até o momento está tudo quieto. Mas quando os Caçadores de Sombras descobrirem, vão vir para cima da gente. Estão doidos para atacar. Qualquer desculpa serve. — Os Acordos proíbem... — Os Acordos uma pinoia. Estou falando, não vai demorar até que comecem a ignorar os Acordos. E os vampiros estão transgredindo a tal ponto que tudo pode acontecer. Estou falando, as coisas estão péssimas.


Um prato de panquecas foi colocado diante de Magnus, e ele e Greg pararam de falar por um instante. Greg apagou o cigarro que mal havia fumado. — Tenho que ir — falou. — Eu estava patrulhando para ver se alguém foi atacado, e o vi pela janela. Quis cumprimentá-lo. É bom vê-lo de volta. Magnus colocou cinco dólares sobre a mesa e afastou as panquecas. — Vou com você. Quero ver pessoalmente.

A temperatura havia subido durante o pouco tempo que ele ficou na lanchonete. Isso aumentava a quantidade absurda de lixo que transbordava das lixeiras metálicas (cozinhando daquele jeito, o cheiro ruim apenas se intensificava), sacos se empilhavam nas calçadas. Lixo jogado diretamente na rua. Magnus evitou pisar sobre embalagens de hambúrgueres, latas e jornais.

— Duas áreas básicas de patrulha — relatou Greg, acendendo mais um cigarro. — Aqui e na parte oeste do centro. Passamos rua por rua. Estou encarregado daqui para a esquerda. Há muitas boates próximas ao rio, na parte sudoeste da cidade, o Meatpacking District. — Está quente. — Este calor, cara. Acho que pode ser o calor que os está enlouquecendo. Atinge a todos. Greg tirou o colete. Certamente havia coisas piores do que dar uma volta com um belo homem descamisado em uma manhã de verão. Agora que o momento era mais civilizado, as pessoas se assumiam. Havia casais gays caminhando de mãos dadas pelas ruas, abertamente, durante o dia. Isso era relativamente novo. Mesmo com a cidade em ruínas, algo de bom estava acontecendo. — Lincoln já falou com Camille? — perguntou Magnus. Max Lincoln era o líder dos lobisomens. Todos o chamavam pelo sobrenome, o que combinava bem com sua aparência alta, magra e barbuda; e porque, assim como o outro Lincoln, o mais famoso, ele era um líder reconhecidamente calmo e decidido. — Eles não se falam — explicou Greg. — Não mais. Camille vem aqui para as boates e só. Você sabe como ela é. Magnus sabia muito bem. Camille sempre fora um pouco distante, pelo menos com estranhos e meros conhecidos. Tinha ares de realeza. Mas a Camille entre quatro paredes era uma fera completamente diferente. — E Raphael Santiago? — perguntou Magnus. — Ele se foi. — Se foi?


— Dizem por aí que foi mandado embora. Uma fada me contou. Alegam ter ouvido alguns vampiros conversando enquanto caminhavam pelo Central Park. Ele provavelmente ficou sabendo o que estava acontecendo e deve ter discutido com Camille. Agora simplesmente se foi. Isso não era nada bom. Caminharam pelo Village, passando por lojas e cafés, em direção ao Meatpacking District com suas ruas de paralelepípedos e armazéns desativados. Muitos deles agora eram clubes noturnos. Havia uma sensação de desolação durante as manhãs — apenas os restos de festas abandonadas e o rio passando embaixo. Até o rio parecia ofendido com o calor. Vasculharam tudo — os becos, o lixo. Procuraram embaixo de caminhões e caminhonetes. — Nada — disse Greg, enquanto espiavam e cutucavam a última pilha de lixo no último beco. — Pelo visto foi uma noite quieta. Hora de voltar. Está tarde. Isso exigiu uma rápida caminhada no calor que só aumentava. Greg não tinha condições de pagar um táxi e se recusou a permitir que Magnus o fizesse, então Magnus, a contragosto, juntou-se a ele na corrida até a Canal Street. O covil dos licantropes ficava escondido em Chinatown, atrás da fachada de um restaurante que só vendia comida para viagem. Uma licantrope se encontrava atrás do balcão, sob o cardápio e as fotos de vários pratos chineses. Ela examinou Magnus com o olhar e, quando Greg acenou com a cabeça, permitiu que passassem por uma cortina de contas que daria na parte de trás. Não havia cozinha depois da parede dos fundos. Em vez disso, encontrava-se uma porta que desembocava em um ambiente mais amplo — a antiga delegacia de polícia (as celas eram bastante úteis na lua cheia). Magnus seguiu Greg pelo corredor mal iluminado até a sala principal da delegacia, que já estava cheia. O bando tinha se reunido, e Lincoln estava no centro, ouvindo um relatório e assentindo solenemente. Ao avistar Magnus, levantou a mão, cumprimentando-o. — Muito bem — disse Lincoln. — Parece que estão todos aqui. E temos um convidado. Muitos de vocês conhecem Magnus Bane. Ele é um feiticeiro, como podem ver, e amigo deste bando. A informação foi imediatamente aceita, e houve gestos de cabeça e cumprimentos por todo lado. Magnus se apoiou em um armário de arquivo no fundo para assistir à reunião. — Greg — disse Lincoln —, você foi o último a chegar. Alguma notícia? — Nada. Minha área estava limpa. — Ótimo. Mas, infelizmente, houve um incidente. Elliot? Quer explicar? Outro lobisomem deu um passo à frente. — Encontramos um corpo — contou. — No centro, próximo ao Le Jardin. Definitivamente um ataque de vampiro. Nítidas marcas no pescoço. Cortamos a garganta para esconder os sinais de perfuração dos caninos. Houve um resmungo generalizado no recinto.


— Isso vai manter as palavras “assassino vampiro” fora dos jornais por um tempo — afirmou Lincoln. — Mas é evidente que as coisas pioraram, e agora alguém morreu. Magnus escutou diversas observações em voz baixa sobre vampiros, e outras em voz mais alta. Todas continham xingamentos pesados. — Muito bem. — Lincoln levantou a mão e calou os ruídos gerais de consternação. — Magnus, o que acha disso? — Não sei — respondeu o feiticeiro. — Acabei de voltar de viagem. — Já viu algo assim? Ataques a esmo em massa? Todas as cabeças se viraram para ele, que se ajeitou contra o armário. Não estava pronto para fazer uma apresentação sobre vampiros a essa hora da manhã. — Já vi maus comportamentos — falou. — Depende muito. Estive em lugares onde não havia polícia nem Caçadores de Sombras por perto, então às vezes a coisa foge do controle. Mas nunca vi nada como isso, aqui ou em qualquer outra área desenvolvida. Principalmente próximo a um Instituto. — Temos que dar um jeito nisso — gritou alguém. Muitas vozes ecoaram pelo recinto, em concordância. — Vamos conversar lá fora — disse Lincoln a Magnus. Apontou com a cabeça para a porta, e os licantropes abriram caminho para Magnus passar. Lincoln e Magnus compraram um café queimado na padaria da esquina e sentaram na calçada em frente a uma clínica de acupuntura. — Há algo de errado com eles — falou Lincoln. — Seja o que for, aconteceu de maneira rápida e violenta. Se estamos diante de vampiros doentes que andam causando esse tipo de derramamento de sangue... uma hora precisaremos agir, Magnus. Não podemos permitir que continue assim. Não podemos permitir assassinatos e correr o risco de atrair os Caçadores de Sombras. Não podemos ter problemas como esse começando novamente. Vai acabar mal para todo mundo. Magnus examinou a rachadura no degrau debaixo. — Já entraram em contato com a Praetor Lupus? — perguntou. — Claro. Mas não conseguimos identificar o responsável pela situação. Não parece trabalho de um novo vampiro descontrolado. Estamos falando de ataques múltiplos em diversas regiões. Nossa única sorte é que todas as vítimas estavam sob a influência de várias substâncias, então não conseguem articular o que houve com elas. Se uma delas falar em vampiro, a polícia vai achar que é por causa das drogas. Mas no fim a história vai tomar forma. Vai ser um prato cheio para a imprensa, os Caçadores de Sombras vão ficar sabendo, e a coisa vai evoluir muito rapidamente. Lincoln tinha razão. Se continuasse assim, os lobisomens teriam todo o direito de agir. E haveria derramamento de sangue. — Você conhece Camille — observou Lincoln. — Poderia falar com ela.


— Eu conheci Camille. A essa altura você provavelmente a conhece melhor do que eu. — Não sei como conversar com ela. Camille é uma pessoa com quem é muito difícil se comunicar. Já teria tentado se soubesse como. E nossa relação não é exatamente igual à que vocês dois mantinham. — Nós não nos damos muito bem — respondeu Magnus. — Não nos falamos há décadas. — Mas todo mundo sabe que vocês dois foram... — Isso foi há muito tempo. Há cem anos, Lincoln. — Para vocês esse tempo sequer importa? — O que você quer que eu fale para ela? É um pouco difícil aparecer depois desse tempo todo e pedir: “Pare de atacar pessoas. E a propósito, como tem passado desde a virada do século?” — Se algo estiver errado, talvez você possa ajudá-los. Se só estiverem se alimentando em excesso, então precisam saber que estamos preparados para agir. E, se você se importa com ela, e eu acredito que sim, ela merece este aviso. Seria bom para todos nós. Ele colocou a mão no ombro de Magnus. — Por favor — disse Lincoln. — Ainda dá para consertar isso. Pois se continuar, todos vamos sofrer.

Magnus tinha muitos ex-companheiros. Espalhavam-se pela história. A maioria era apenas uma lembrança, havia muito morta. Outros agora eram muito velhos. Etta, um de seus últimos amores, estava em um asilo e não o reconhecia mais. Tornou-se doloroso visitá-la. Camille Belcourt era diferente. Havia entrado na vida de Magnus sob a luz de um poste a gás, com aparência régia. Fora em Londres, e o mundo era diferente. O romance dos dois aconteceu na névoa. Aconteceu em carruagens que saltavam em ruas de paralelepípedo, em sofás de seda cor de ameixa. Eles se amaram em tempos de criaturas mecânicas, antes das guerras mundanas. Naquela época parecia haver mais tempo, tempo para ocupar, tempo para gastar. E eles preencheram esse tempo. E o gastaram. A separação foi conturbada. Quando se ama alguém com aquela intensidade e não se é correspondido, é impossível se separar bem. Camille tinha chegado a Nova York no fim dos anos 1920, durante a quebra da bolsa e a crise geral. Era dona de um grande senso dramático, e de um bom faro para lugares em crise que necessitavam de uma guia. Em pouquíssimo tempo, tornou-se líder dos vampiros. Tinha um apartamento no famoso prédio Eldorado no Upper West Side. Magnus sabia onde ela estava, e ela sabia onde Magnus estava. Mas nenhum dos dois procurou o outro. Cruzaramse, puramente por acidente, em diversas boates e eventos ao longo dos anos. Trocaram apenas rápidos acenos de cabeça. Aquela relação havia terminado. Era uma cerca elétrica


que não podia ser tocada. A única tentação da vida que Magnus sabia que deveria deixar de lado. No entanto, cá estava ele, de volta a Nova York havia apenas 24 horas e entrando no Eldorado, um dos grandes prédios de art déco de Nova York. Ficava do lado oeste do Central Park e tinha vista para o lago. Era famoso por suas duas torres idênticas que se estendiam como chifres. O Eldorado era lar do dinheiro antigo, das celebridades, das pessoas que simplesmente tinham. O porteiro uniformizado era treinado para não notar o vestuário de ninguém, contanto que tivessem ido ao prédio por um motivo legítimo. Para esta ocasião, Magnus decidiu abrir mão de seu novo look. Não haveria nenhum punk ali — nenhum vinil, nenhuma meia arrastão. Hoje vestia um terno Halston, preto, com grandes lapelas de cetim, que o fez passar no teste e receber um aceno de cabeça e um sorriso contido. Camille morava no 28º andar da torre norte, um trajeto de elevador com painéis de carvalho e grades de bronze para um dos apartamentos mais caros de Manhattan. As torres garantiam andares pequenos e íntimos. Alguns tinham apenas um ou dois moradores. Neste caso, eram dois. Camille morava no 28C. Magnus pôde ouvir música escapando por debaixo da porta. Havia um cheiro forte de fumaça e resquícios do perfume de quem quer que tivesse acabado de passar por ali. Embora houvesse atividade no interior do apartamento, demoraram cerca de três minutos para abrir a porta. Ele ficou surpreso ao perceber que reconheceu aquela pessoa imediatamente. Era um rosto de muito tempo atrás. Na época, a mulher tinha cabelos pretos e curtos e usava um vestido de melindrosa. Naquela ocasião fora jovem, e apesar de ter conservado a juventude (vampiros não envelhecem de fato), parecia mais vivida. Agora tinha cabelos pintados de louro com cachos longos e pesados. Usava um vestido justo dourado, acima do joelho, e tinha um cigarro pendurado na lateral da boca. — Ora, ora, ora. É o feiticeiro preferido de todos! Não o vejo desde que tinha aquele bar clandestino. Faz muito tempo. — Faz — concordou Magnus. — Daisy? — Dolly. — Ela abriu mais a porta. — Vejam quem é, pessoal! O recinto estava cheio de vampiros, todos muito bem vestidos. Magnus tinha que reconhecer. Os homens trajavam ternos brancos, muito populares nesta temporada. As mulheres usavam vestidos fantásticos de noite, a maioria dourado ou branco. A mistura de laquê, fumaça de cigarro, incenso, colônias e perfumes o deixou sem fôlego por um instante. Além dos aromas fortes, havia uma tensão no ar que não tinha um alicerce real. Magnus conhecia bem os vampiros, mas este grupo estava inquieto, se entreolhando. Se mexendo. Esperando alguma coisa. Não foi convidado a entrar. — Camille está? — perguntou finalmente. Dolly inclinou o quadril contra a porta.


— O que o traz aqui esta noite, Magnus? — Acabei de voltar de um longo período de férias. Achei que deveria fazer uma visita. — Achou? Ao fundo, alguém diminuiu o volume da vitrola até que ela se tornasse quase inaudível. — Alguém vá falar com Camille — ordenou Dolly, sem olhar para trás. Permaneceu onde estava, bloqueando a passagem com seu pequeno corpo. Fechou um pouco a porta para reduzir o espaço que tinha que preencher e continuou sorrindo para Magnus de um jeito um pouco ameaçador. — Só um minuto — falou. Lá dentro alguém se moveu para o corredor. — O que é isso? — perguntou ela, tirando algo do bolso de Magnus. — Electrica? Nunca ouvi falar nessa boate. — É nova. Dizem que é melhor que a Studio 54. Nunca fui a nenhuma, então não sei. Me deram as entradas. Magnus havia colocado os ingressos no bolso ao sair de casa. Afinal, tinha se dado ao trabalho de se arrumar. Se esta visita acabasse tão mal quanto ele imaginava, seria interessante ter para onde ir depois. Dolly formou um leque com as entradas e balançou-as singelamente na frente do rosto. — Fique com elas — disse Magnus. Estava claro que Dolly já tinha ficado com elas e não as devolveria, então pareceu educado oficializar. O vampiro surgiu do corredor e falou com alguns dos outros que se encontravam no sofá e pela sala. Em seguida, outro vampiro veio até a entrada. Dolly foi para trás da porta por um instante, fechando-a um pouco mais. Magnus escutou um murmúrio. Em seguida, a porta foi novamente aberta, o bastante para permitir que ele entrasse. — É sua noite de sorte — disse ela. — Por aqui. O tapete branco que ia de uma parede à outra era tão desgrenhado e espesso que Dolly cambaleava no salto ao percorrê-lo. O tapete estava cheio de manchas — bebidas entornadas, cinzas e poças de algo que ele supôs se tratar de sangue. Os sofás e as cadeiras brancas apresentavam condições semelhantes. As muitas plantas imensas e as palmeiras em vasos estavam secas e murchas. Muitos quadros nas paredes estavam tortos. Havia garrafas e copos vazios com restos de vinho seco por toda parte. O mesmo tipo de bagunça que Magnus encontrou no próprio apartamento. Ainda mais perturbador foi o silêncio de todos os vampiros que o observavam ser conduzido pelo corredor por Dolly. E então havia o sofá cheio de humanos imóveis — subjugados, sem dúvida, todos entorpecidos e jogados, bocas abertas, ferimentos e hematomas nos pescoços, braços e mãos, todos muito feios. A mesa de vidro diante deles


tinha uma camada fina de pó branco e algumas lâminas. O único ruído vinha da música baixa e do ronco abafado de trovão lá fora. — Por aqui — indicou Dolly, puxando Magnus pela manga. O corredor estava escuro, e havia roupas e sapatos espalhados pelo chão. Ruídos abafados vinham de três portas pelo corredor. Dolly foi até o final, onde havia portas duplas. Bateu uma vez e abriu. — Pode entrar — falou ela, ainda com aquele sorriso estranho. Em um contraste estupendo com a brancura da sala, este quarto era o lado escuro do apartamento. O tapete era preto, como um mar noturno. As paredes eram cobertas por um papel prateado escuro. Todos os abajures tinham xales e cobertas prateadas ou douradas por cima. As mesas eram todas espelhadas e refletiam o cenário várias vezes. E no centro de tudo havia uma enorme cama preta com lençóis negros e uma pesada coberta dourada. Em cima dela estava Camille, trajando um quimono de seda em tom pêssego. E 100 anos pareceram desaparecer. Magnus se viu incapaz de falar por um instante. Era como se estivesse em Londres outra vez, todo o século XX amassado e descartado. Mas então o presente voltou subitamente quando Camille começou a se arrastar na direção dele, escorregando nos lençóis de cetim. — Magnus! Magnus! Magnus! Venha! Aqui! Sente-se! Os longos cabelos louro-prateados estavam soltos, parecendo selvagens. Ela afagou a ponta da cama. Esta não era a recepção que ele esperava. Não era a Camille da qual se lembrava, ou sequer a que tinha visto ocasionalmente. Ao se preparar para passar por cima do que julgava ser uma pilha de roupas, notou que havia um humano no chão, com o rosto voltado para baixo. Ele se inclinou e segurou gentilmente a massa de cabelos negros e longos para virar a face do ser para cima. Era uma mulher, ainda dotada de um pouco de calor e uma fraca pulsação no pescoço. — Esta é Sarah — explicou Camille, deitando e esticando a cabeça pela beirada para olhá-la. — Você tem se alimentado dela — afirmou Magnus. — É uma doadora voluntária? — Ah, ela adora. Agora, Magnus... Você está lindo, por sinal. É um Halston?... Estávamos de saída. E você vem conosco. Ela deslizou para fora da cama e, aos tropeços, foi até um closet enorme. Magnus ouviu o barulho de cabides sendo puxados e examinou mais uma vez a garota no chão. Tinha punções por todo o pescoço — e agora esboçava um sorriso para ele, puxando o próprio cabelo, oferecendo-lhe uma mordida. — Não sou vampiro — esclareceu, apoiando gentilmente a cabeça da moça no chão outra vez. — E você deveria sair daqui. Quer ajuda? Ela emitiu um ruído, algo entre um riso e um suspiro.


— Qual deles? — perguntou Camille ao sair do closet aos tropeços, segurando dois vestidos pretos de baile, praticamente idênticos. — A garota está fraca — disse ele. — Camille, você tirou muito sangue dela. Ela precisa ir para um hospital. — Ela está bem. Deixe-a em paz. Agora me ajude a escolher um vestido. Tudo no diálogo estava errado. Não era assim que o reencontro deles deveria ter sido. Era para ser recatado, com muitas pausas estranhas e momentos ambíguos. Em vez disso, Camille agia como se tivesse visto Magnus ontem. Como se fossem simplesmente amigos. Foi o suficiente para que ele fosse direto ao ponto. — Estou aqui por causa de um problema, Camille. Seus vampiros andam matando pessoas e largando corpos pela rua. Estão se alimentando em excesso. — Ah, Magnus. — Camille balançou a cabeça. — Posso estar no comando, mas não os controlo. É preciso conceder a eles certo grau de liberdade. — Isso inclui matar mundanos e abandonar os corpos na calçada? Camille não estava mais ouvindo. Tinha colocado os vestidos na cama e no momento se ocupava com uma pilha de brincos. Enquanto isso, Sarah tentava engatinhar na direção de Camille. Sem olhar para ela, a vampira colocou um espelho cheio de pó branco no chão. Sarah foi diretamente para ele e começou a cheirar. Então Magnus entendeu. Embora as drogas mundanas não tivessem muito efeito em integrantes do Submundo, não havia como saber o que poderia acontecer quando a substância passava pelo sistema circulatório humano e, em seguida, era ingerida com o sangue. Tudo fez sentido. A desordem. O comportamento estranho. O excesso de alimentação nas boates. O fato de que todos pareciam doentes, com personalidades transformadas. Ele já tinha visto isso milhares de vezes entre os mundanos. Camille agora o encarava, o olhar fixo. — Saia conosco hoje, Magnus — entoou. — Você é um homem que sabe se divertir. Sou uma mulher que oferece diversão. Saia conosco. — Camille, você tem que parar. Tem que saber o quanto isso é perigoso. — Não vai me matar, Magnus. Isso é impossível. E você não entende como é a sensação. — A droga não pode matá-la, mas outras coisas podem. Sabe que existem pessoas que não podem permitir que vocês fiquem matando mundanos. Se continuar assim... Alguém vai tomar uma atitude. — Que tentem — respondeu ela. — Posso acabar com dez Caçadores de Sombras depois que ingerir um pouco disso. — Pode não ser... Camille se abaixou antes que Magnus pudesse concluir e enterrou a cara no pescoço de Sarah. A garota se debateu uma vez e resmungou, depois se calou e ficou imóvel. Ele escutou


o barulho nauseante da vampira bebendo e sugando. Camille levantou a cabeça, com sangue em volta da boca, escorrendo pelo queixo. — Você vem ou não? — perguntou. — Adoraria levá-lo à Studio 54. Você nunca teve uma noite como as nossas. Magnus teve que fazer um esforço para continuar olhando para ela naquele estado. — Deixe-me ajudá-la. Em algumas horas, alguns dias... posso tirar isso do seu corpo. Camille passou as costas da mão sobre a boca, espalhando sangue pela bochecha. — Se não vem conosco, então fique fora do nosso caminho. Considere este um aviso educado, Magnus. Dolly! Dolly já estava na porta. — Acho que já terminou — falou ela. Magnus observou Camille enterrar os dentes em Sarah outra vez. — Sim — disse ele. — Acho que sim.

Do lado de fora, chovia forte. O porteiro segurou um guarda-chuva sobre a cabeça de Magnus e chamou um táxi. A incongruência da civilidade lá de baixo e o que ele viu lá em cima era... Algo em que ele não queria pensar. Magnus entrou no táxi, informou o endereço de destino e fechou os olhos. A chuva batia forte no veículo. Parecia que o agredia diretamente no cérebro. Magnus não se surpreendeu ao encontrar Lincoln na entrada de sua casa. Cansado, fez sinal para que ele entrasse. — E então? — perguntou Lincoln. — Não é nada bom — respondeu Magnus, e tirou o paletó molhado. — São as drogas. Eles estão se alimentando do sangue de pessoas drogadas. Deve estar aumentando a necessidade e diminuindo o controle. — Você tem razão — afirmou Lincoln. — Isso não é nada bom. Achei que talvez tivesse alguma coisa a ver com drogas, mas imaginei que fossem imunes a coisas como vício. Magnus serviu uma taça de vinho a cada um, e eles se sentaram e escutaram a chuva por um momento. — Você pode ajudá-la? — perguntou Lincoln. — Se ela permitir. Mas não se pode curar um viciado que não quer cura. — Não — concordou Lincoln. — Eu mesmo já vi isso na nossa espécie. Mas você entende... não podemos permitir que esse comportamento continue assim. — Sei que não. Lincoln terminou o vinho e pousou gentilmente a taça.


— Sinto muito, Magnus. De verdade. Mas, se acontecer de novo, terá que deixar conosco. Magnus assentiu. Lincoln apertou seu ombro e em seguida se retirou.

Nos dias seguintes, Magnus permaneceu quieto. O tempo estava brutal, variando entre calor e tempestades. Tentou se esquecer da cena no apartamento de Camille, e a melhor maneira de fazê-lo era se ocupar. Havia dois anos não acompanhava direito o próprio trabalho. Tinha clientes para os quais ligar. Feitiços a serem estudados e traduções a serem feitas. Livros a serem lidos. O apartamento precisava ser redecorado. Havia novos restaurantes, novos bares e novas pessoas... Cada vez que parava, lembrava-se de Camille no tapete, a menina enfraquecida em seus braços, o espelho cheio de drogas, o rosto de Camille cheio de sangue. A confusão. O mau cheiro. O horror. Os olhares vazios. Quando se perde alguém para o vício — e Magnus já perdera muitos —, perdia-se algo muito precioso. Você os via sucumbir. Esperava até chegarem ao fundo do poço. Era uma espera terrível. Ele não queria nada com isso. O que acontecia agora não era problema dele. Não tinha dúvida alguma de que Lincoln e os lobisomens cuidariam do assunto, e quanto menos soubesse, melhor. Isso o mantinha acordado à noite. Isso e os trovões. Dormir sozinho era um inferno, então resolveu não fazê-lo. Acordou ainda assim. Era a noite de 13 de julho — o treze da sorte. O barulho da tempestade lá fora estava incrivelmente alto, mais alto do que o ruído do ar-condicionado, mais alto do que o rádio. Magnus concluía uma tradução e estava prestes a sair para jantar quando as luzes piscaram. O rádio falhou. Em seguida, tudo brilhou consideravelmente quando a eletricidade percorreu os fios. Então... Desligados. Ar-condicionado, luzes, rádio, tudo. Magnus mexeu as mãos com indiferença e acendeu uma vela sobre a escrivaninha. Falta de luz não era uma ocorrência incomum. Levou um instante até perceber que as coisas tinham ficado muito quietas e muito escuras de fato, e havia vozes gritando lá fora. Foi até a janela e a abriu. Tudo estava escuro. As luzes da rua. Todos os prédios. Tudo, exceto os faróis dos carros. Ele pegou a vela e desceu cuidadosamente os dois lances de escada até a rua, onde se juntou ao grupo de pessoas agitadas. A chuva havia parado — só o que se ouvia era o som de trovões distantes ao fundo. Nova York... estava apagada. Tudo apagado. Não havia linha do horizonte. Não havia brilho no Empire State. Estava muito, muito escuro. E gritavam uma palavra de janela em janela, de rua a carro a portaria...


— Blecaute! As farras começaram quase instantaneamente. Quem deu início foi a sorveteria da esquina, que passou a vender qualquer coisa por dez centavos, e, em seguida, a distribuir sorvete gratuitamente para qualquer um que aparecesse com uma vasilha ou um copo. Em seguida, os bares começaram a oferecer drinques em copos de papel para transeuntes. Todos foram para as ruas. As pessoas colocaram rádios de pilha nas janelas, e começou uma mistura de música e notícias. A falta de luz foi resultado de um raio. Toda a cidade de Nova York estava apagada. Levaria horas — dias? — para que o serviço fosse restabelecido. Magnus voltou ao apartamento, pegou uma garrafa de champanhe da geladeira, voltou para a varanda da frente para beber e dividiu com algumas pessoas que passavam. Estava quente demais para ficar dentro de casa, e lá fora estava interessante demais para que ele perdesse. As pessoas começaram a dançar pelas calçadas, e ele se juntou a elas por um tempo. Aceitou um martíni de um jovem simpático com um belo sorriso. Em seguida, houve um sibilo. As pessoas se reuniram em torno de um dos rádios que estava transmitindo notícias. Magnus e seu novo amigo, que se chamava David, se juntaram ao grupo. ... incêndios pelas cinco regiões. Mais de cem incêndios foram relatados na última hora. E temos diversas informações sobre saques. Há troca de tiros. Por favor, se você está na rua esta noite, tenha muito cuidado. Apesar de toda a polícia ter sido convocada, não há oficiais suficientes para... Outro rádio a alguns metros, em uma estação diferente, ofereceu um relato semelhante. ... centenas de lojas foram invadidas. Há relatos de destruições completas em algumas áreas. Recomenda-se fortemente que se fique em casa. Se não conseguir voltar para casa, procure abrigo em... No curto silêncio, Magnus pôde ouvir sirenes ao longe. O Village era uma comunidade fechada, então estava em festa. Mas era evidente que o mesmo não valia para o resto da cidade. — Magnus! Magnus se virou e viu Greg passando em meio ao grupo. Ele afastou o feiticeiro da multidão e o levou a um espaço tranquilo entre dois carros estacionados. — Achei que fosse você — falou. — Está tudo acontecendo. Eles enlouqueceram. O blecaute... Os vampiros estão surtando em uma boate. Não consigo nem explicar. É na Décima Avenida, descendo um quarteirão. Não tem táxi nesse breu. Você precisa correr. Agora que Magnus estava tentando se deslocar, percebeu a total loucura das ruas. Como não havia sinais de trânsito, pessoas comuns tentavam ordenar o tráfego. Os carros ou não saíam do lugar ou andando rápido demais. Alguns se encontravam estacionados de frente, para que seus faróis iluminassem lojas e restaurantes. Todos estavam nas ruas — todo o


Village havia saído dos prédios, e não havia espaço em lugar nenhum. Magnus e Greg tiveram que costurar entre as pessoas, entre os carros, tropeçando no escuro. As multidões foram diminuindo um pouco à medida que se aproximavam do rio. A boate ficava em um dos velhos armazéns da região. A fachada industrial de tijolos tinha sido pintada de prateado, e lia-se a palavra “ELECTRICA” junto a um raio por cima das antigas portas de serviço. Havia dois lobisomens perto delas, segurando lanternas, e Lincoln aguardava ao lado. Estava concentrado em uma conversa com Consuela, a segunda na ordem de comando. Ao avistarem Magnus, Consuela chegou para o lado, para uma van que aguardava ali perto, e Lincoln se aproximou. — Era isso que temíamos — disse Lincoln. — Esperamos tempo demais. Os lobisomens que guardavam a entrada abriram caminho, e Lincoln escancarou as portas. Dentro da boate estava inteiramente escuro, exceto pelo brilho das lanternas dos licantropes. Havia um cheiro forte de bebida derramada misturada a algo desagradavelmente picante e intenso. Magnus ergueu as mãos. As luzes de néon ao redor do recinto chiaram e brilharam. As luzes do alto — fluorescentes e desagradáveis — foram acesas. E o globo da discoteca ganhou vida, girando e refletindo mil pontos de luz colorida pelo salão. A pista de dança, formada por grandes quadrados plásticos coloridos, também foi iluminada por baixo. O que só aumentava o horror da cena. Havia quatro corpos: três mulheres e um homem. Todos pareciam ter corrido para vários pontos de saída. A pele deles tinha um tom de cinza, toda coberta por ferimentos roxoesverdeados e dezenas de marcas, fortemente iluminadas pelas luzes de cor vermelha, amarela e azul que irradiavam por baixo deles. Havia muito pouco sangue. Apenas algumas pequenas poças aqui e ali, quantidade muito menor do que o esperado. Uma das mulheres mortas, Magnus notou, tinha longos cabelos louros, familiares. Na última vez em que a vira, ela estava no avião, oferecendo-lhe convites... Magnus teve que virar o rosto rapidamente. — Foram todas esvaziadas — disse Lincoln. — A boate ainda nem havia sido aberta para a noite. Estavam com problemas no som mesmo antes da falta de luz, então os únicos presentes eram empregados. Dois ali... Ele apontou para a plataforma elevada do DJ com pilhas de mesas de som e amplificadores. Alguns lobisomens estavam ali, examinando a cena. — Dois atrás do bar — continuou. — Outro correu e se escondeu no banheiro, mas a porta estava arrombada. E esses quatro. Nove ao todo. Magnus se sentou em uma das cadeiras próximas e apoiou a cabeça nas mãos por um instante para se recompor. Não importa por quanto tempo você vivesse, jamais se acostumaria a ver coisas terríveis. Lincoln lhe concedeu um instante.


— Isto é culpa minha. Quando fui ver Camille uma delas pegou as entradas no meu paletó. Lincoln puxou uma cadeira e se sentou ao lado de Magnus. — Não significa que é culpa sua. Pedi que falasse com Camille. Se ela veio aqui por sua causa... isso não faz de nenhum de nós culpado, Magnus. Mas agora você pode ver que não dá para continuar. — O que pretende fazer? — perguntou Magnus. — Há incêndios esta noite. Por toda a cidade. Vamos usar esta oportunidade. Vamos queimar este lugar. Acho que pouparia as famílias das vítimas se elas pensarem que seus amados morreram em um incêndio, e não... Apontou para a terrível cena atrás deles. — Tem razão — respondeu Magnus. — Ver uma pessoa amada nesse estado não pode resultar em nada de bom. — Não. E a polícia testemunhar isso também não resultaria em nada de bom. Deixaria a cidade totalmente em pânico, e os Caçadores de Sombras seriam forçados a vir aqui. Vamos manter isso em silêncio. Cuidaremos de tudo. — E os vampiros? — Vamos capturá-los e trancá-los aqui durante o incêndio. Temos permissão da Praetor Lupus. Todo o clã deve ser tratado como infectado, mas tentaremos ter bom senso. A primeira a ser procurada, no entanto, é Camille. Magnus expirou lentamente. — Magnus — começou Lincoln —, o que mais podemos fazer? Ela é a líder do clã. Precisamos acabar com isso agora. — Me dê uma hora — respondeu Magnus. — Uma hora. Se eu conseguir tirá-los da rua em uma hora... — Já tem um grupo se dirigindo ao apartamento de Camille. Outro vai ao Hotel Dumont. — Há quanto tempo saíram? — Mais ou menos meia hora. — Então vou agora. — Magnus se levantou. — Tenho que tentar fazer alguma coisa. — Magnus — chamou Lincoln —, se você atrapalhar, o bando vai removê-lo da situação. Compreende isso? Magnus fez que sim com a cabeça. — Eu vou quando acabarmos aqui — disse Lincoln. — Vou até o Dumont. É lá mesmo que eles vão parar.


Um Portal foi necessário. Considerando a situação nas ruas, havia muitas chances de os lobisomens ainda não terem chegado ao apartamento de Camille — se é que ela estava lá. Ele só precisaria chegar até ela. Mas, antes mesmo de começar a desenhar os símbolos, ouviu uma voz no escuro. — Você está aqui. Magnus se virou e levantou a mão para iluminar o beco. Camille caminhava em sua direção, sem firmeza. Usava um vestido preto e longo — na verdade, tratava-se de um vestido que havia se tornado escuro em função da quantidade incrível de sangue nele. Ainda estava molhado e pesado, grudado às pernas, enquanto ela avançava. — Magnus... Sua voz soou espessa. Manchas de sangue cobriam o rosto de Camille, os braços, os cabelos louros. Ela apoiou uma das mãos na parede para se segurar conforme se aproximava em uma série de passos pesados, como os de uma criança aprendendo a andar. Magnus se aproximou lentamente. Assim que chegou perto o bastante, Camille abriu mão do esforço de se levantar e caiu para a frente. Ele a pegou a meio caminho do chão. — Eu sabia que viria — disse ela. — O que você fez, Camille? — Eu estava procurando você... Dolly disse que estaria... que estaria aqui. Magnus a abaixou lentamente no chão. — Camille... você sabe o que aconteceu? Sabe o que fez? O cheiro que ela exalava era nauseante. Magnus respirou fundo pelo nariz para se acalmar. Os olhos de Camille estavam revirando. Ele a sacudiu. — Você precisa me ouvir. Tente se manter acordada. Precisa invocá-los. — Não sei onde estão... Estão por todos os lados. Está tão escuro. É nossa noite, Magnus. Para meus pequenos. Para nós. — Você deve ter terra de cemitério — falou Magnus. Diante disso Camille balançou levemente a cabeça. — Muito bem. Pegaremos a terra. Você vai utilizá-la para invocá-los. Onde está? — Na câmara mortuária. — E onde está a câmara? — Cemitério... Green-Wood. Brooklyn... Magnus se levantou e começou a desenhar símbolos. Quando concluiu, e o Portal começou a abrir, pegou Camille do chão e a segurou com força. — Pense nela agora — disse ele. — Visualize-a com clareza na sua mente. A câmara mortuária. Considerando o estado de Camille, era um pedido arriscado. Segurando-a bem perto, sentindo o sangue do vestido sujar sua camisa, Magnus atravessou.


Havia árvores ali. Árvores e um pouco de brilho da lua cortando o céu nublado da noite. Nenhuma pessoa, nenhuma voz. Apenas o zumbido distante do trânsito. E centenas de placas brancas emergindo do chão. Magnus e Camille estavam diante de um mausoléu que era um elefante branco. Era a parte da frente de um templo pequeno, construído bem na lateral de uma pequena colina. Magnus olhou para baixo e viu que Camille tinha encontrado forças para abraçá-lo com os braços esguios. Ela tremia um pouco. — Camille? Ele inclinou a cabeça dela para cima. Ela estava chorando. Camille não chorava. Mesmo nestas circunstâncias, Magnus se comoveu. Ainda queria consolá-la, queria dar um tempo em tudo para garantir que as coisas ficariam bem. Mas só conseguiu perguntar: — Você tem a chave? Ela balançou negativamente a cabeça. Não tivera muita chance de pegar. Magnus colocou a mão na tranca que protegia as amplas portas de metal, fechou os olhos e se concentrou até sentir o clique sob os dedos. A câmara mortuária tinha mais ou menos 1 metro quadrado e era feita de concreto. As paredes eram cobertas com prateleiras de madeira, do chão ao teto. E as prateleiras estavam preenchidas por pequenos frascos de vidro que continham terra. Eles variavam um pouco — alguns eram verdes e grossos, outros amarelos e de vidro soprado, com bolhas visíveis. Havia frascos mais finos, garrafas extremamente pequenas e algumas garrafinhas marrons. Os frascos mais antigos eram tampados com rolhas. Alguns tinham tampas de vidro. Os mais novos tinham tampas de rosca. A idade também era perceptível pelas camadas de poeira, lodo e pela quantidade de teias de aranha entre eles. No fundo, não daria para levantar algumas das garrafas das prateleiras, de tão espesso que era o resíduo acumulado em volta. Havia aqui uma história do vampirismo de Nova York que provavelmente teria interessado a muitos e que era digna de ser estudada... Magnus esticou as mãos, e, com uma grande explosão de luz, todos os frascos explodiram de uma vez. Houve uma grande lufada de terra e pó vítreo. — Para onde vão? — perguntou para Camille. — Para o Dumont. — Claro — disse Magnus. — Eles e todo mundo. Nós vamos para lá, e você vai dizer o que eu mandar. Precisamos corrigir isso, Camille. Você tem que tentar. Entendeu? Ela fez que sim com a cabeça uma vez.

Dessa vez Magnus estava no controle do Portal. Eles emergiram na rua 116, no meio do que parecia um motim em grande escala. Havia incêndios no local. Os ecos de gritos e vidro quebrando iam de uma ponta à outra da rua. Ninguém sequer notou que subitamente


Magnus e Camille estavam no meio da confusão. Estava escuro demais e louco demais. O calor era muito pior nesta área, e Magnus sentia o corpo todo pingando de suor. Havia duas vans estacionadas bem na frente do Dumont, e um inconfundível grupo de lobisomens já estava reunido. Brandiam tacos de beisebol e correntes. Isso era tudo que se via. Sem dúvida, havia contêineres de água benta. Além de muitas chamas ao redor. Magnus puxou Camille para o abrigo da sombra de um Cadillac estacionado, cujas janelas foram estilhaçadas. Ele esticou o braço e abriu a porta. — Entre — falou para Camille. — E fique abaixada. Estão atrás de você. Deixe que eu vá e fale com eles. Mesmo enquanto Magnus contornava o carro, Camille encontrou forças para se arrastar pelo banco da frente cheio de cacos e caiu pela porta do motorista. Quando Magnus tentou colocá-la novamente para dentro, ela o afastou. — Saia do meu caminho, Magnus. É a mim que eles querem. — Eles vão matá-la, Camille. Mas ela já havia sido vista. Os licantropes atravessaram a rua, com os tacos prontos. Camille levantou a mão. Vários vampiros tinham acabado de chegar ao hotel. Vários outros já haviam lutado, e muitos se encontravam deitados, imóveis, na calçada. Mais alguns estavam sendo contidos. — Entrem no hotel — ordenou ela. — Camille... vão nos queimar — disse um deles. — Olhe para eles. Olhe para o que está acontecendo. Camille olhou para Magnus, e ele entendeu. Ela estava deixando a situação nas mãos dele. — Entrem — repetiu. — Isso não é um pedido. Um por um, ao longo das horas seguintes, todos os vampiros de Nova York — independentemente da condição em que se encontravam — apareceram nos degraus do Dumont. Camille, apoiada nas portas para se escorar, ordenou que entrassem. Eles passaram pela falange de licantropes com tacos e correntes, parecendo atentos. Era quase manhã quando os últimos grupos apareceram. Lincoln chegou no mesmo instante. — Estão faltando alguns — observou Camille, quando ele saltou do carro. — Estão mortos — respondeu Lincoln. — E deve agradecer a Magnus por não ter sido mais. Camille balançou a cabeça uma vez, em seguida entrou no hotel e fechou as portas. — E agora? — perguntou Lincoln. — Não é possível curá-los sem consentimento, mas é possível secá-los. Ficam trancados aí até estarem limpos — respondeu Magnus. — E se não der certo?


Magnus olhou para a fachada destruída do Dumont. Alguém, ele notou, tinha mudado o n para r. Dumort. Hotel dos mortos. — Vamos ver o que acontece — falou Magnus.

Por três dias, Magnus manteve as barreiras de bloqueio no Dumont. Passava lá diversas vezes ao dia. Licantropes patrulhavam o perímetro o tempo todo, certificando-se de que ninguém saísse. No terceiro dia, logo após o pôr do sol, o feiticeiro liberou o bloqueio na porta da frente e entrou; em seguida, fechou-o novamente. Era evidente que havia um princípio de organização no hotel. Os vampiros não afetados pela droga lotavam o lobby, as bancadas e os degraus. A maioria estava dormindo. Os licantropes agora permitiam que eles se levantassem e saíssem. Com Lincoln e seus ajudantes ao lado, Magnus refez os passos que dera quase cinquenta anos antes, para o salão de festas do Dumont. Mais uma vez as portas estavam trancadas — agora com uma corrente. — Peguem os cortadores na van — disse Lincoln. Um cheiro terrível vinha lá de dentro. Por favor, Magnus pensou. Esteja vazio. Claro que o salão não estaria vazio. Foi um simples desejo de que os eventos dos últimos três dias não tivessem transcorrido. Pois, no fim, nada é pior do que testemunhar a queda de quem se ama. Por alguma razão, era pior do que perder um amor. Fazia tudo parecer questionável. Tornava o passado amargo e confuso. O lobisomem voltou com os cortadores. A corrente foi cortada e caiu no chão com um estalo seco. Alguns dos vampiros não afetados ficaram para trás, reunidos às costas dos licantropes, para assistir. Magnus abriu a porta. O chão branco de mármore estilhaçara-se. Realmente tinha sido ali, havia cinquenta anos, que Aldous abrira o Portal para o Vazio? Os vampiros se espalhavam por todas as partes do salão, talvez trinta ao todo. Estavam doentes, e todos em profundo estado de sofrimento. O cheiro por si só bastava para fazer qualquer um engasgar. E os licantropes protegeram os rostos com as mãos para bloquear o odor. Os vampiros não se mexeram, nem cumprimentaram. Apenas alguns levantaram os rostos para ver o que se passava. Magnus passou por cima deles, observando cada um. Encontrou Dolly perto do centro, imóvel. Localizou Camille esparramada por trás de uma das longas cortinas penduradas no fundo do salão. Como os outros, ela se encontrava cercada por algumas poças de sangue regurgitado. Estava com os olhos abertos.


— Quero andar — disse ela. — Ajude-me, Magnus. Ajude-me a andar um pouco. Preciso parecer forte. Havia firmeza em sua voz, apesar de ela estar fraca demais para se levantar sozinha. Magnus se curvou e a levantou; em seguida, a apoiou enquanto ela caminhava, com toda a dignidade possível, sobre os corpos caídos do seu clã. Ele fechou novamente as portas ao saírem. — Para cima — disse ela. — Vire. Preciso andar. Lá em cima. Ele pôde sentir o esforço que ela fazia ao subir cada degrau. Em certos momentos ele praticamente a carregou. — Você se lembra? — perguntou ela. — Do velho Aldous abrindo o Portal aqui... você se lembra? Tive que alertá-lo sobre o que ele estava fazendo. — Lembro. — Até os mundanos entenderam que tinham que ficar longe deste lugar e deixá-lo apodrecer. Detesto o fato de que alguns dos meus pequenos vivam em lugares podres. Mas é escuro. É seguro. Era muito difícil conversar e andar, então ela se calou novamente e se encostou no peito de Magnus. Quando chegaram ao último andar, apoiaram-se no corrimão e olharam para baixo, para os destroços do lobby. — Para nós nunca acabou de fato, não é? — perguntou. — Nunca tive outro... não como você. Pode dizer o mesmo, Magnus? — Camille... — Sei que não podemos voltar. Eu sei. Só me diga que não houve ninguém como eu. Na verdade, houve muitos. E, se por um lado Camille estava em um nível só dela, por outro, houve muito amor — pelo menos, por parte de Magnus. No entanto, havia cem anos de dor naquela pergunta, e o feiticeiro ficou imaginando se talvez ele não tivesse sido tão sozinho em seu sentimento. — Não — respondeu. — Nunca houve ninguém como você. Ela pareceu ganhar um pouco de força com isso. — Nunca era para ter acontecido — falou. — Tinha uma boate no centro onde alguns dos mundanos gostavam de ser mordidos. Eles tinham drogas no organismo. Essas substâncias são bem poderosas. Simplesmente calharam. Recebi de cortesia um drinque com sangue infectado. Eu não sabia o que estava bebendo, só conhecia o efeito que produzia. Não sabia que éramos suscetíveis a vícios. Nós não sabíamos. Magnus olhou para a marca queimada no teto. Antigas feridas. Nada nunca passava de fato. — Eu vou... Eu vou dar a ordem — disse ela. — O que aconteceu aqui jamais se repetirá. Você tem a minha palavra. — Não é para mim que você tem que dizer.


— Diga a Praetor — respondeu ela. — Diga aos Caçadores de Sombras, se precisar. Não voltará a acontecer. Abro mão da minha vida antes de permitir que se repita. — Provavelmente é melhor que fale com Lincoln. — Então falarei com ele. O manto da dignidade havia voltado a seus ombros. Apesar de tudo que tinha acontecido, ela ainda era Camille Belcourt. — É melhor você ir agora — sugeriu a vampira. — Isso não é mais para você. Magnus hesitou por um instante. Alguma coisa — alguma parte dele queria ficar. Mas o feiticeiro se flagrou descendo as escadas. — Magnus — chamou Camille. Ele se virou. — Obrigada por mentir para mim. Você sempre foi gentil. Eu nunca fui. Foi por isso que não durou, não foi? Sem responder, Magnus se virou e continuou descendo as escadas. Raphael Santiago passou por ele na subida. — Sinto muito — disse Raphael. — Por onde andou? — Quando vi o que andava acontecendo, tentei contê-los. Camille tentou me fazer beber um pouco do sangue. Queria que todos do seu círculo interno participassem. Ela estava doente. Já vi coisas desse tipo e sabia como acabaria. Então fui embora. Voltei quando um frasco da terra do meu túmulo se rompeu. — Não o vi entrar no hotel — falou Magnus. — Entrei por uma janela quebrada no porão. Achei melhor ficar escondido por um tempo. Tenho cuidado dos doentes. Tem sido bastante desagradável, mas... Ele levantou o olhar, por cima do ombro de Magnus, na direção de Camille. — Preciso ir agora. Temos muito a fazer por aqui. Vá, Magnus. Não há nada para você aqui. Raphael sempre conseguia interpretar Magnus bem demais.

Magnus tomou a decisão no táxi, a caminho de casa. Uma vez em seu apartamento, se preparou sem hesitar, reunindo tudo de que precisaria. Teria que ser muito específico. Anotaria tudo. Então ligou para Catarina. Tomou um pouco de vinho enquanto esperava sua chegada. Catarina talvez fosse a amiga mais próxima e verdadeira de Magnus, exceto por Ragnor (e essa relação vivia em contínua evolução). Catarina foi a única que recebeu cartas e telefonemas durante a viagem de dois anos de Magnus. Contudo, ele não dissera a ela que já havia voltado para casa.


— Sério? — perguntou ela, quando ele abriu a porta. — Dois anos, então você volta e nem me telefona durante duas semanas? E aí é “venha, preciso de você”? Nem sequer me contou que estava em casa, Magnus. — Estou em casa — disse ele, e deu o que considerava seu sorriso mais irresistível. Exigiu-lhe um pouco de esforço, mas com sorte pareceu sincero. — Nem tente fazer essa cara para mim. Não sou uma de suas conquistas, Magnus. Sou sua amiga. Vamos comer pizza, e não fazer brincadeiras imorais. — Brincadeiras imorais? Mas eu... — Não. — Ela ergueu o dedo em sinal de alerta. — Estou falando sério. Quase não vim. Mas você soou tão patético ao telefone que tive que vir. Magnus examinou a camiseta de arco-íris e o macacão vermelho. Ambos se destacavam imensamente contra a pele azul. O contraste feriu os olhos do feiticeiro. Ele decidiu não comentar a roupa. O macacão vermelho era muito popular. Só que a maioria das pessoas não tinha pele azul. A maioria das pessoas não vivia o arco-íris. — Por que está me olhando desse jeito? Sério, Magnus... — Deixe-me explicar — falou. — Depois pode gritar comigo se quiser. Então explicou. E ela ouviu. Catarina era enfermeira e boa ouvinte. — Feitiços de memória — disse ela, balançando a cabeça. — Não são muito a minha área. Sou curandeira. Você é que lida com este tipo de coisa. Se eu fizer errado... — Não vai. — Pode dar errado. — Confio em você. Tome. Ele entregou a Catarina um pedaço de papel dobrado. Nele havia uma lista de todas as vezes que tinha visto Camille em Nova York. Todas as vezes em todo o século XX. Essas eram as coisas que deveriam desaparecer. — Sabe, existe um motivo pelo qual temos recordações — falou ela baixinho. — Isso é muito mais fácil quando sua vida tem data de validade. — Pode ser importante para nós. — Eu a amei — disse ele. — Não posso guardar o que vi. — Magnus... — Ou você faz ou terei que fazer em mim mesmo. Catarina suspirou e assentiu. Examinou o papel por vários instantes e, em seguida, segurou gentilmente as têmporas de Magnus. — Você se lembra de que tem sorte em ter a mim, certo? — perguntou ela. — Sempre.

Cinco minutos depois Magnus ficou confuso ao ver Catarina ao seu lado no sofá.


— Catarina? O quê... — Você estava dormindo — falou ela. — E deixou a porta aberta. Eu entrei. Tem que mantê-la trancada. Esta cidade é uma loucura. Você pode ser um feiticeiro, mas isso não quer dizer que é impossível roubarem seu aparelho de som. — Normalmente tranco — respondeu Magnus, esfregando os olhos. — Nem percebi que estava dormindo. Como você soube que eu... — Você me ligou avisando que estava em casa e queria sair para comer uma pizza. — Liguei? Que horas são? — Hora de pizza — respondeu ela. — Eu liguei? — Uh-huh. — Ela se levantou e ofereceu a mão para ajudá-lo a ficar de pé. — E você voltou há duas semanas e só hoje me ligou, então está bem encrencado. Soou arrependido ao telefone, mas não foi o suficiente. Terá que me fazer mais cortesias. — Eu sei. Desculpe. Estava... Magnus se esforçou para encontrar as palavras. O que tinha feito nas últimas duas semanas? Trabalhado. Telefonado para os clientes. Dançado com estranhos atraentes. E mais alguma coisa, mas não conseguia se lembrar. Não tinha importância. — Pizza — repetiu ela, puxando-o para cima. — Pizza. Claro. Parece bom. — Ei — disse ela, enquanto ele trancava a porta. — Teve alguma notícia de Camille recentemente? — Camille? Não a vejo há pelo menos... oitenta anos? Algo assim? Por que está perguntando sobre Camille? — Por nada — respondeu. — O nome dela me veio à mente. A propósito, você é quem vai pagar a conta.


As crônicas de Bane – A queda do Hotel dumort

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