Escritos Malditos de uma Realidade Insana - Fabio da Silva Barbosa

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ESCRITOS MALDITOS DE UMA REALIDADE INSANA Fabio da Silva Barbosa



ESCRITOS MALDITOS DE UMA REALIDADE INSANA Fabio da Silva Barbosa

1ª edição

São Bernardo do Campo Lamparina Luminosa 2013


B197 Barbosa, Fabio da Silva, 1975 Escritos malditos de uma realidade insana / Fabio da Silva Barbosa. 1 ed. São Bernardo do Campo : Lamparina Luminosa, 2013. 102 p. ISBN 978-85-64107-04-5 1. Conto brasileiro. I. Título. CDD 869.93015

Ficha catalográfica: Sandra Ap. de M. G. A. Moura CRB-8 5980

LAMPARINA LUMINOSA Coordenação editorial: Christian Piana +55 (11) 4127 0866 +55 (11) 9 8531 9222 k.piana@gmail.com www.lamparinaluminosa.com editoralivrepopularartesanal.blogspot.com

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ESCRITOS MALDITOS DE UMA REALIDADE INSANA Fabio da Silva Barbosa

1ª edição



PRÓLOGO:

Lá vem eles Lá vem ele Lá vem ele Carregando sua cruz Não é o abençoado Não é o senhor Jesus Lá vem ela Lá vem ela Resistindo em seu Calvário Não é a donzela da tv Não espera o galã otário Lá vem aquilo Lá vem aquilo Fustigado pela vida Não parece ser humano Não tem pele, só ferida


1701 Despertei inebriada pela manhã de prazer com Morgana. Morgana... Era assim que ela gostava de ser chamada. Minha machinha. Passei as mãos pelo seu corpo nu. Tomei banho e me arrumei. Tinha cliente marcado às cinco da tarde. Queria sair antes que ela acordasse. Se me visse indo, poderia estragar tudo com suas crises de ciúmes. Meus clientes deixavam Morgana louca. Mas ela se esquecia do mais importante: Eram apenas clientes. Depositei o dinheiro da cerveja em baixo do cinzeiro que transbordava de bingas e saí. Ao abrir a porta, o senhor que mora em frente abriu a janelinha. - Boa tarde, princesa! Coitado. Deve passar o dia esperando eu abrir a porta para olhar pela janelinha com aquela cara de tarado e me saudar com suas frases feitas. Balancei a cabeça com um sorriso cínico e prossegui. O elevador ainda estava com defeito. A proprietária devia abater isto no aluguel. Um dos argumentos usados para cobrar esse absurdo por mês, era o fato do prédio ter elevador. Ratos e baratas disputavam os cantos. O porteiro está sempre dormindo, bêbado. - Como é, Seu Oligário? Assim vai cair da cadeira. Ele abriu os olhos, assustado. - Oi, Dona Clarice... Bom dia... - Boa tarde! Respondi com o mesmo sorriso que havia usado para cumprimentar meu vizinho. Era uma forma de agradar. Sabia que eles gostavam quando usava esse artifício. Descendo os degraus que desembocavam na rua, ainda pude ouvir seu suspiro. - Gostosa !!! Deve ter voltado a cochilar logo que dobrei a esquina. Veio um táxi e fiz sinal. O motorista parou. Entrei séria. Disse o endereço acompanhado de um discreto sorriso. Cínico, como todos os outros. Desci no restaurante combinado. O cliente já estava me esperando na varanda, tomando sua Tequila com limão e petiscando algo que, daquela distância, pareciam azeitonas. Assim que cheguei me elogiou, como sempre. Esqueci de conferir se eram mesmo azeitonas no pratinho. Conversamos sobre banalidades. Ele era jovem, bonito e tinha dinheiro. Nunca entendi porque precisava dos meus serviços. Qualquer mulher poderia aprender a manusear os consolos de que tanto gostava, sem maiores sacrifícios. Pedi suco de laranja. Dentro de meia hora estávamos no motel. 8


Era por volta das vinte e uma quando pedi que me deixasse na boate. Foi uma noite movimentada. Morgana apareceu perto da hora de fechar. O segurança criou problema por ter ordens de não deixa-la entrar. Na última vez, abriu um gringo a facadas e deu a maior merda. Conversei com ela, mas não adiantou. Deve ter bebido a tarde toda. Saiu me amaldiçoando e disse que quando voltasse conversaríamos. Suspirando, entrei. Ela sabia que ficaríamos na pior se arranjasse um desses empregos de salário mínimo. Atendi mais dois clientes e fui para o banho. Algumas meninas dormiam por lá, mas se não fosse para casa, ia ter problemas. O táxi que havia pedido já estava esperando. O motorista tentou puxar assunto, mas eu não estava para muito papo. Só pensava em Morgana e na chateação que iria ter quando chegasse em casa. Estava torcendo para que ela estivesse na rua. Pelo menos chegaria bêbada, no ponto certo para desabar na cama, ao invés de me alugar com suas crises de ciúmes. Às vezes, penso que seria melhor morar sozinha. Ou então, voltar para minha terra. A família ficaria feliz em me ver voltar. Agora não dava para isso. Tinha de juntar mais dinheiro. Estava pensando em comprar um carro. Mas carro era perigoso. O último que tive, Morgana estraçalhou contra o poste. Quase perdi aquela danada. Se pelo menos tivesse juízo naquela cabeça... Para que beber assim? Mas também, se não beber, fica pior. Ninguém aguenta. Ô coisinha braba que fui arrumar. Quando nos conhecemos, se vestia de cigana e botava cartas. Fui por indicação de uma amiga e realmente encontrei meu destino. A própria cartomante. Aqueles brincos enormes... Ficava linda com aqueles lenços. O nome havia tirado não sabia bem de onde. Disse que lembrava ter ouvido em algum lugar. Coisas daquela cabeça maluca. O porteiro estava dormindo. Passei em silêncio. Não estava para sorrisos cínicos. Abri a porta do apartamento. O vizinho da frente também estava dormindo àquela hora. Tomara que Morgana não resolva acordar todos os sonolentos com suas gritarias. A casa estava escura. Ouvi o barulho do chuveiro e fui para o quarto. Estava tudo revirado. Uma bagunça só. Deitei e fiquei esperando. Fechei os olhos para, no último caso, fingir que dormia. Ela não veio. Muito tempo se passou. Talvez mais de uma hora. Levantei devagar. O que estaria tramando? Às vezes me assustava com seu lado sombrio. Nunca sabia o que esperar. Bem devagar, fui até a porta do banheiro. Estava entreaberta. Empurrei com cautela. Qual loucura desta vez? - Morgana? 9


Ninguém respondia. Dei uma espiada. Não poderia ser. A silhueta que vi através das paredes plásticas do box registrava algo terrível. Disparei pelo cômodo, abrindo a porta que me separava do meu amor. O corpo estava caído. Sem vida. Parecia uma marionete esquecida por seu dono. A barriguinha, inchada pelo álcool, tapava parte de sua xota cabeluda. Abracei-a em prantos, sem saber o que fazer. Era o terror jamais sentido. A água nos molhava, enquanto pedia para que se levantasse. Só depois observei o sangue tingindo o chão do banheiro. Ainda não tinha me recuperado quando os policiais chegaram. Não saberia dizer quanto tempo passou, ou como souberam que precisávamos de ajuda. Agora estou aqui, tomando banho de Sol no pátio. Nunca saberei o que se passou em nosso apartamento. O número 1701 de um prédio, no centro da cidade. Fui a única suspeita. Seu Oligário não havia visto ninguém entrar ou sair do prédio. Os vizinhos disseram que brigávamos muito, por isso não estranharam aquela gritaria. Uma coisa é certa e só eu sei: Eu não estava lá.

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O Passeio Passei pelo Centro da Cidade e lá estava ela de novo. Dona Miséria, com sua cuia estendida e suas pernas feridas. Senhora Perdição passou por ali também. Seu corpo possuía a sensualidade que só o mau tem. Muitas tribos se encontravam por aquele pedaço: Os Alcoólatras, os Viciados, os Opressores... Vivendo a tranquilidade de sua guerra pacífica, que não espantava mais ninguém. Sou um dos que se sente à vontade no Centro da Cidade. Aquela multidão de caras sem rostos se acotovelando furiosamente, cheiro de óleo queimado, fumaça negra saindo dos canos de descarga e tomando o ar. Cheiro de futuro. É um clima confortavelmente conflitante. Prédios encardidos, sujeira se acumulando pelos cantos... É o Centro. É ali que se aglomera tudo que o homem conseguiu construir em toda sua existência. O ser humano deve ficar orgulhoso de ver o resultado do seu crescimento... De sua evolução... Não sou mais humano. Não sei mais o que é isso. Só me sinto à vontade no centro do caos. Sinto-me em casa. Agora, Dona Miséria está comendo macarrão azedo no lixo, com um monte de crianças chorando a sua volta. Maldita Dona Miséria. Boa tarde, Madame Luxúria. Que bom vê-la por aqui. Pera aí... Olha quem vem lá. Meu grande amigo Ócio. Vamos agora mesmo voltar algumas quadras. Acabei de dar um belo passeio por esse jardim do inferno. Quero te mostrar algumas flores novas.

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Vovô – Nos tempos da democracia - Democracia? Por quê? Só por estarmos votando? Depois que eles ganham, nem se preocupam com o que nós queremos ou deixamos de querer. A única voz que tem força é a voz de quem tem dinheiro. A nossa voz... Hum... Eles estão pouco se fodendo para nossa opinião. Nossa participação é restrita a escolha de quem vai mandar. De quem vai nos currar durante o mandato. Se a única diferença do que vivemos agora para a época da ditadura é o voto, então devíamos chamar isso aqui de ditadura com voto. E olha que até isso é obrigatório. Dizem que é um direito, mas direito é algo que você faz se quiser. Não tem de haver pressão. Se não quiser exercer meu direito... E daí? O direito é meu. Uso ou não se eu quiser. - Fala baixo que a gente está na rua. - E daí? Na sua democracia não podemos falar o que pensamos? Que espécie de democracia é essa? - Vovô, o senhor nem parece que viveu a ditadura. Se estivéssemos naquele tempo, o senhor não chegaria até a esquina falando essas coisas. - A ditadura continua, mas agora o capital não precisa mais dos militares. Agora, eles têm novos métodos. Eles deixam velhos gritarem na rua, por exemplo. Assim parece que estamos tendo algum tipo de liberdade. Mas é muito fácil deixar um velho gritar na rua. Dizem que é louco e está tudo bem. Eu quero ver se juntarem 30 velhos na rua, com faixas, cartazes e o diabo. Todos gritando sobre a situação precária da terceira idade. E se essa manifestação subisse a rua e... - Calma, vovô. - Calma? Calma é os colarinhos. Estou farto de ter calma. Enojado de toda essa serenidade. Quero poder gritar enquanto botam na minha bunda. - Semana que vem iremos conversar com o doutor e o senhor poderá contar isso tudo a ele. - Aquele médico é um idiota. Se tranca no mundinho perfeito dele e não consegue entender nada do que tento explicar. Ele me entope de remédios. Aquele desgraçado deve estar de acordo com a indústria farmacêutica. É mais um a apertar o laço em volta do meu pescoço. Deve ganhar por fora para empurrar o máximo de remédios que puder para as pessoas. Assim, eles vendem o lixo dessa indústria e ainda conseguem nos controlar. - ... - O que foi? Tá me olhando com essa cara por quê? Você também não consegue entender, não é? Você também já está idiotizada, não é? 12


- Calma, vovô. Assim, falo para mamãe que não te trago mais para passear, heim. - Passear? Do que estamos falando? Você me traz para ficar vendo essas lojas... Coisa sem graça! O que está havendo com essa juventude? Será que isso tem a ver com o tipo de alimentação dos seus pais? As crianças estão nascendo com um presunto no lugar do cérebro. - Vovô... O senhor tem de entender que ninguém está mais nessa. Os tempos são outros. - Eu sei! Agora é o tempo da ignorância e da estupidez! - Vovô...

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O único que não estava com pressa Algumas pessoas passavam apressadas, dando meia olhada. Não olhavam muito tempo para não sentirem a obrigação de ajudar... fazer alguma coisa... O corpo estava estendido no chão. Será que estava vivo? Será que estava morto? Ninguém sabia. Mas também não tinham tempo para saber. Três dias depois, alguém reparou na repetição da cena... O mau cheiro no ar... Ligou do orelhão para não ter de esperar ambulância ou algo do gênero. Algumas horas depois, o corpo estava coberto. Lá pela noite, estava sendo removido.

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Mais um dia de campanha Severino levantou cedo. Depois de tanto tempo desempregado, conseguiu um quebra galho para comprar o leite das crianças. O primo do amigo que conhece o candidato X arrumou para ele ficar carregando uma placa com a foto do candidato pela cidade. Chegou na hora marcada e pegou a placa. O dia passava enjoado. A esquina, onde devia ficar, não era das melhores. Nenhuma marquise ou proteção. Apenas o Sol na cabeça e aquela placa a lhe olhar. Era uma cara diferente da sua. Uma cara bem tratada, com todos os dentes na boca. Parecia outro bicho. Até a camisa era bonita. Dava para ver só a gola e o botão de cima. Do que será que ele ria? Severino deu a volta na placa. - Tá rindo di quê? É di mim? A cara continuava olhando. Sorriso matreiro, cabelo delicadamente esculpido. - Tá rindo di quê? Mi respondi! Sô sujeito homi! Mi respeita! Severino percebeu que aquele olhar, aparentemente amigo, escondia certo ar de superioridade. Coçou a cara magra e barbuda, olhando a pele lisa. O filho da puta não tinha marca ou cicatriz. Como ele fazia para deixar o rosto tão lisinho? E se a carranca era assim, imagina a mão. - Você nunca pegô nim cabo di inxada, né vagabundo? Nunca levô sova di vara nas perna quando criança! Nunca levô sova di polícia depois di homi. O pé deve sê a merma merda. Tudo fininho. Nunca andou discalço em rua di chão, pulando vala pra chegar em casa. E lumbriga? Nunca deve tê tido também. Se teve, nunca contô pra ninguém, né? Tinha alguma coisa naquele sorriso que estava irritando Severino. Ele não parava de rodear a placa. - Para di ri, filho duma égua! Para di ri! Não percebeu as pessoas que paravam para apreciar a cena, nem os motoristas que passavam de vagar, olhando. Tirou a faca que levou para descascar laranja durante a descida do morro. - Vô ensiná a não caçoá dum homi. Severino avançou com toda raiva que tinha daquele monstro caçoador, que ficava rindo não só dele, mas de todos que acordavam cedo e não tinham hora para dormir. De todos que mais trabalhavam e menos tinham direitos. - Toma!!! Gritava descendo a faca, chutando, socando e espatifando tudo. - Calma... 15


Gritou um pedestre tentando segurar Severino. - Mi solta. Babou Severino passando a faca na mão do pedestre. - O filho da puta me cortou. Ele me cortou! - Chama a polícia.... - Polícia... - Ele deve estar bêbado... - Ele tá é drogado... Severino girava, olhando para aquele mar de gente à sua volta. Ele estava bêbado, mas era bêbado de raiva. Não era de álcool, não. - Ninguém incosta ni mim!!! Ninguém incosta ni mim!!! Um cara grandão, que estava atrás dele, pulou em suas costas, conseguindo controlar a fera. Os demais aproveitaram e partiram para cima. - Pega! - Bate! - Mata! - O que tá acontecendo aí? Que merda é essa? O policial chegou empurrando todo mundo. Quando alcançou Severino, viu apenas o corpo no chão, a faca na barriga e os dedos mexendo bem devagar. Um leve sorriso despontava no rosto de Severino. Ao menos ensinara uma boa lição ao safado. Podia ir em paz.

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Bom dia Acordei com a cama se mexendo e sentindo algo estranho entre minhas pernas. Novamente dormi bêbada. Olhei discretamente a mão que apertava meu peito. Não dava para tirar grandes conclusões apenas pelas mãos. Ainda mais no escuro. De qualquer forma, não parecia mão conhecida. Foi aí que o idiota começou a beijar meu pescoço. Estava com uma puta dor de cabeça e achei melhor fechar os olhos para o infeliz não saber que estava acordada. Senti algo estranho nas minhas costas. Parecia um grande par de peitos. Olhei melhor para a mão e, mesmo naquela escuridão, pude perceber que estava com as unhas pintadas. Comecei a virar lentamente e me deparei com uma linda mulher. Fui virando até ficar de frente para ela. Senti seu pau saindo de minha boceta. Era um pau enorme. Olhei bem para aquele rosto (assim que desviei o olhar do cacete) e ela me beijou com calor. Depois de nos apertar e esfregar durante um tempo, olhei no fundo de seus olhos e perguntei: - Mas... Quem é você? Ela me largou e se levantou de um salto. Pude ver seu corpo por inteiro. Era o corpo feminino mais belo que já vi e nele se balançava um pau maravilhoso. - Como assim?... Você não lembra? Não sabe quem sou? Levantei a parte superior do meu corpo e tentei segurar o membro que parecia me olhar. Ela se afastou, se cobrindo com uma toalha que estava jogada por ali. Parecia uma donzela envergonhada. Fui me arrastando até a borda da cama e sentei. - Calma... Me desculpa... Mas o que aconteceu ontem? Álcool? Drogas? - Não acredito nisso. Cachorra!!! Vadia!!! – Gritava, enquanto se arrumava. - Por favor... Me entenda... Ela acabou de se arrumar, já saindo pela porta. Os seios siliconados ainda estavam a mostra quando saiu rosnando. Caí de costas na cama e fiquei olhando para o teto. - Quem será aquela criatura? ... Apalpei uma carteira que estava abandonada no canto da cama. Era uma carteira feminina. Dentro havia alguns papéis com números telefônicos anotados, algumas notas e um documento de identidade. Na foto, um homem de bigodes estava a me olhar. No meio daquela expressão máscula, pude reconhecer aquele rosto feminino que acabara de ir embora. Carlos Cleber Carmindo era o nome dela. Pela data de nascimento tinha 43, como eu. Abri os braços deixando a carteira e o documento se desprenderem de minhas mãos. Sempre gostei das minhas mãos. Acho que são perfeitas. Voltei a fitar o teto. Não fazia a menor idéia de onde era aquele teto. 17


O Aumento Nos chuveiros da fábrica, Tarciso e Genival se banhavam no final do expediente. - E aí, Tarciso? Vamos tomar uma? - Hoje não. Tenho um compromisso importante. - Quando compromisso foi motivo para não beber? - Mas hoje é sério. - Motivo de doença? - Não. - Então é papo de mulher. - Também não - sorriu Tarciso, enquanto se enxugava. - Depois te conto. Agora não dá. Tarciso se arrumou apressado e seguiu rumo às escadas. Ao subir os degraus, seus passos começaram a ficar lentos e vacilantes. A cabeça girava tentando formular frases e gestos. Passou a semana remoendo se deveria ou não tomar aquela atitude. Enfim decidiu. Daquele dia não passaria. Terceiro andar. Passou a mão pela testa suada. Lembrou que deveria ter pego o elevador. Já avistava a mesa da secretária, que, com ar entediado, falava ao telefone. Começou a fazer promessas a todos os santos e orixás que lhe vinham a cabeça. De pé, Tarciso aguardou por quinze minutos até ser percebido. Contrariada, a secretária disse que teria de desligar. Voltou-se para ele e perguntou se desejava alguma coisa. - Por favor, gostaria de falar com o senhor Gervázio. - Qual seu nome? - Tarciso. Sou funcionário. - Vou ver se ele pode atender - discou o ramal. Passado algum tempo, anunciou: -Senhor Gervázio, tem um funcionário de nome Tarciso querendo falar com o senhor. - E então? Posso entrar? - Ele pediu que o senhor aguarde um pouquinho. Pode sentar. - Indicou, com a caneta, as cadeiras de espera. Exatos cinquenta minutos passaram. Tarciso já achava melhor deixar aquilo tudo de lado. A úlcera começava a doer e a cabeça girava mais que pião. A secretária juntou alguns papéis que estavam sobre sua mesa. Bateu na porta da sala ao lado. Senhor Gervásio, com a habilidade que só a prática dá, fechou a página erótica que minuciosamente analisava na tela do computador. Ela entrou. Lembrou do funcionário que aguardava do lado de fora. 18


- Que funcionário? Vem cá, dona Marisa. Senta aqui. - Mais quarenta minutos se passaram. Tarciso já se levantava quando ela voltou. - Pode entrar. Agora não tinha mais jeito. - Com licença. - Pode entrar. Sente-se. Em que posso ajudá-lo? - Meu nome é Tarciso e já trabalho quinze anos na sua fábrica. Nunca faltei um dia sequer. Mesmo quando doente. Nem atrasado cheguei. - Hum... - Se o senhor verificar minha ficha, poderá ver que não há nada que me desabone. Então gostaria de pedir... - Hum... - Gostaria de pedir um aumento. - Aumento? - Sim... Afinal, são quinze anos... A família cresceu... O senhor sabe como é... - Claro. Entendo. Tarciso quase saltou da cadeira. - Entende mesmo? Então, quer dizer que... Senhor Gervázio o olhou de forma penetrante. Parecia ler sua alma. Pegou o telefone e pediu que a secretária levasse a pasta com os documentos de Tarciso. - O senhor deseja uma bebida? - Não, obrigado. - Cigarros? - Parei de fumar. - Sábia decisão, senhor Narciso. Folgo em saber que temos alguém com tanta perspicácia como o senhor trabalhando aqui. - Tarciso. - Tarciso, claro, Tarciso – estudou o rosto do funcionário por algum tempo. – Sabe de uma coisa, senhor Narciso... Uma coisa que me incomoda é a visão errada que as pessoas têm de mim. Às vezes percebo que alguns funcionários me veem como uma pessoa fria e sem coração. - Que absurdo. A conversa continuou descontraída, circulando por assuntos leves, até dona Marisa cortar a sala com a esperada pasta na mão. O chefe agradeceu com cerimônia. Ela se retirou. Ele passou os olhos pelos documentos. Fechou a pasta e a jogou sobre a mesa. 19


- Realmente sua visita foi providencial. Tarciso estava completamente aliviado. Deveria ter tomado a mais tempo aquela decisão. - Eu realmente estava querendo falar-lhe – continuou o chefe, tomando nesse ponto um ar grave que deixou o funcionário confuso. – Nossa fábrica está passando por um momento difícil e estamos pensando em fazer alguns cortes. - Cortes? - Infelizmente. E teremos de começar por funcionários como o senhor, que estão muito além de nossas posses no momento. - Mas... não pode ser... - Lamentamos muito. - Mas... se conversarmos com calma... podemos... - Não nos sentiríamos à vontade pagando tão mal a alguém tão capacitado. Com certeza isso não será problema para alguém como o senhor. Qualquer empresa ficaria satisfeita em recebê-lo em seu quadro de funcionários. - Não é tão fácil... Emprego está difícil... E... - Não para o senhor. Tenho certeza. - Por favor, senhor... Sejamos razoáveis... Esqueçamos essa história de aumento. - Mas não é só o caso do aumento. Seu salário é inviável. - Conversando... com certeza chegaremos a um acordo. - A fábrica só pode pagar a metade que o senhor recebe. - A metade? - Sabia que o senhor não iria aprovar. Acho inclusive bem compreensivo. Não tomarei mais seu tempo. - Tudo bem. Tudo bem. Eu aceito. - Tem certeza? - Claro. - Então faça o favor de se retirar. Ainda tenho muito que fazer. - Muito obrigado e desculpe o incômodo. O senhor é realmente um bom homem. Tem um ótimo coração. Ao ver Tarciso fechar a porta, o garboso senhor Gervázio girou a cadeira, pondo-se de frente para o computador, onde iria voltar a analisar alguns corpos nus enquanto Tarciso descia as escadas orgulhoso. Queria chegar em casa e contar a mulher como heroicamente defendeu seu emprego.

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Notívago Desbravando a madrugada, seguia pela rua deserta. As mãos nos bolsos tentavam fugir do frio cortante. As pernas bêbadas me faziam rir. Passou um ônibus com uma galera zoando na janela. Acho que me chamaram de bolo de merda ou algo do gênero. Logo após, passou um triciclo majestoso. Seu ronco foi sumindo nas minhas costas até voltar a ficar sozinho na agradável companhia do mundo, do universo noturno. A chuva começou a cair fina. Olhei para o alto e avistei A Santa. Estava quase chegando. Ouvi um barulho de ônibus vindo atrás de mim. O barulho sumiu e o ônibus não passou. Não havia ruas para ele entrar. Seria um ônibus fantasma? Ouvi um barulho de moto vindo da mesma direção. Desta vez, era mesmo uma moto. Passou em disparada. Cruzei com um grupo no ponto de ônibus. Pelas caras desanimadas, já deviam estar ali por muito tempo e não acreditavam que o transporte viria antes do amanhecer. Consegui mais um bom pedaço sem avistar ninguém. Só aquele silêncio aconchegante, cortado pelo zumbido do vento. Agora, já vislumbrava as torres da igreja. Faltava menos ainda. Mas a caminhada estava gostosa. Não tinha pressa de chegar ao meu destino. Uma mulher surgiu correndo e quase me atropelou. Deve ter saído da esquina. Olhei para dentro da rua (de onde acreditava que ela tinha saído) e vi um casal ao longe. Olhei para trás. Ela ia a passos rápidos. Mais passos pela solidão noturna daquela madrugada fria. Conhecia muito bem aquele trajeto. Já o tinha percorrido diversas vezes. A chuva começou a apertar, o vento soprou mais forte, raios e trovões pelo céu e meus passos continuavam desapressados e bêbados. Um carro encostou-se ao meio fio bem na minha frente. Percebi que estava caminhando pela calçada. Não me lembrava de ter saído do meio da rua (meu local preferido para essas caminhadas). Achei o carro sinistro. Percebi uma música muito animada emanando de seu interior. Não era nada de mais. Ninguém que estivesse planejando fazer maldade contra um notívago estaria ouvindo aquele tipo de música. Comecei a ter impressão que era um cara com uma mulher dentro do carro. Quando passei por ele, avistei apenas o motorista, que parecia me olhar fixamente. Ao terminar de passar, o carro acelerou ao máximo e foi na direção de onde eu vinha. Fiquei cismado por um tempo, mas decidi que não era importante. Não iria deixar que um carro sinistro com seu motorista problemático estragasse minha caminhada perfeita. Depois de mais alguns passos, avistei uma rapaziada coletando lixo e atravessei a rua em frente a igreja. Segui pela escura lateral. Quando avistei minha janela e reparei na luz acesa, pude constatar que ela ainda estava acordada. Que bom. 21


Se correr... Se ficar... - E aí, muleque? - Fala, Jorginho... - Fala Jorginho é o caralho... Ô filho da puta... - Que isso, Jorginho? - Que isso é o caralho! Tirou as fraudas ontem e já qué dá volta na boca? Por isso que o pessoal diz que a vida do crime não tem espaço pra aposentadoria. Porque tem uns comédia igual a você. - Pera aí, Jorginho... Vamos conversar... - Você acha que mandei a rapaziada te trazer até aqui pra conversá? Seu tempo de conversa já passou. - Mas... A gente é irmão, porra. O mesmo sangue. Lembra quando o pai morreu? Ele tinha pedido para você tomar conta de mim... - Que se foda! Aquele filho da puta... – Jorginho andou de um lado para outro. Parou na frente do irmão e olhou bem nos olhos dele. – Você tem até a noite pra levantar esse dinheiro. - Mas... - E nada de vendê pó malhado na minha área. Se assaltá aqui na favela, tá ligado que não vai passá bem na minha mão. - Mas... - Se tentá fugi, é melhó rezá pra nunca mais te encontrá. - Mas... - Agora vai! Vai, antes que me arrependa e te passe agora. Anda, muleque! Rala! Juca desceu as vielas apressado. Tinha de levantar o dinheiro. Passou na casa de Ortaleistro. - Fala, Orta. Tô precisando de ajuda. - O pessoal tava te procurando aí. - Já encontrei. Olha só... Tô precisando levantar uma grana até a noite. - Tá fazendo merda, né? - Fiz umas burrices aí... Acabei devendo dinheiro... - Não me envolve nos problemas com seu irmão. - Não tem problema. Fica frio. Só preciso do 38 emprestado. - Olha lá. Não vai me trazer problema. ...................................................................................................................... 22


- Entra! - Sou de menor. Você não pode me colocar junto... - Cala boca. Isso a gente vê depois. Juca entrou com um empurrão. Os presos se levantaram e cercaram o menino. Ele se virou, procurando o policial que efetuou a prisão, mas este já tinha trancado a porta e sumido. - E aí? - Tentei roubar a lotérica e me fudi. - É de menor mermo? - Sô. - Meio cumprido. - Eu sei. Uma merda isso. - Pera aí... Conheço esse moleque. É o irmão do Jorginho. - Aaaaaaaaaaaaaa éééeéé... Quer dizer que você é o irmão daquele vacilão? Juca engoliu em seco. Viu algo brilhando passar pelas mãos dos detentos. Sentiu um pano envolver seu pescoço. Quando tentou se mexer, foi rapidamente imobilizado. Um pedaço pontiagudo de metal entrou em sua barriga. O sangue escorreu. Juca caiu sem vida. No morro, Jorginho esperava por seu irmão. - Deixa aquele porra aparecer aqui só para ver um negócio. ffffffffffffffffffuuuuuuuuuuuuuuuuuunnnnnnnnnnnnnnnnggga

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(...) o livro inteiro estĂĄ disponĂ­vel no site www.lamparinaluminosa.com


(...) o livro inteiro estĂĄ disponĂ­vel no site www.lamparinaluminosa.com



EPÍLOGO:

Insônia Insônia Lágrimas de sangue que escorrem enquanto me apunhalam sem compaixão. Sou apenas mais um inseto vivendo a morte a cada momento enquanto degusto meu inseticida. Por que tudo tem de ser assim? Por que o homem, maldade e covardia, se nega a crer em todo o bem que ainda possa existir? Será que pode? Disso eu não sei. Acumulo apenas desilusão. Os ponteiros passam agrupando muita angustia em meu ser, como células malignas. Quando penso que passei por tudo, as pessoas me atiram seus restos. Tento ser um abençoado. Tendo dividir todo o bem. Minha recompensa é o escárnio. Me atiram garrafas e absurdos. Escorpiões, aranhas venenosas, cobras aladas e dragões. Estou perdido, com tanto frio. Sinto sua presença e calafrios.


São tantas portas... Todas trancadas. Não sei mais o que sentir. Não tenho respostas. Não tenho perguntas. Só o vazio a me preencher como um cálice sedento e empoeirado. Sinto a vida seguir e partir. Só nos restam justificativas vazias em um mundo bizarro que insiste em viver



SOBRE O AUTOR:

Fabio da Silva Barbosa Jornalista e escritor, dedica sua vida ao trabalho de registrar nossa barbárie social, além de produzir e se expressar através de formatos pouco convencionais, bailando entre o consciente e o inconsciente, unindo a realidade brutal do nosso tempo a delírios e viagens rumo a novas possibilidades. Idealizou e realizou diversos projetos, como o Comunidade Editoria (junto do sempre irmão Luiz Henrique) e o Impresso das Comunidades (com o companheiro de infância Alexandre Mendes). Entrou para o mundo dos fanzines no final de 89 e até hoje produz esses veículos de forma independente. Com Winter Bastos e Alexandre Mendes, Fabio lançou o livro Um ano de Berro – 365 dias de fúria, pela Editora Independente, de Brasília. Participou do livro Cumplicidade das letras (coletânea reunindo o trabalho de diversos poetas). Foi convidado pelo amigo Victor Durão a participar do programa de rádio Hora Macabra, onde ficou certo tempo fazendo parte da equipe. Além dos blogs onde divulgava o material que saia em seus jornais impressos, ele ainda criou dois outros para dar vazão a suas experiências e criações. Ambos, o Inverso&aocontrario e o Reboco Caído, sumiram da internet, mas conseguiram manter seus leitores com acesso a atualizações diárias durante seus anos de existência. Organizou alguns materiais em dois PDFs que foram lançados de forma gratuita na internet (A Saga do Jornalismo Livre e Quem somos nós?). Atuou em parceria com o artista e militante Eduardo Marinho em experiências como o fanzine Pençá e a iniciativa Vídeo-Garagem. É Assessor de Imprensa da Amarle (Associação de Moradores e Amigos da Rua Laurindo e Entorno) e vem participando do Grupo de Estudos e Oficina Roda Vivia, que pretende iniciar suas atividades no interior de presídios. Contribui para vários veículos impressos e via internet.



Lamparina Luminosa é um projeto que integra as atividades da Associação de Promoção Humana e Resgate da Cidadania +55 (11) 4127 0866 +55 (11) 4334 1142 www.padreleo.org.br



ESCRITOS MALDITOS DE UMA REALIDADE INSANA busca registrar de forma direta, sem deixar de viajar por caminhos poéticos e até delirantes, o cotidiano de uma sociedade injusta, desigual e opressiva, onde a realidade muitas vezes se dilui no inusitado de uma neurose social compulsiva. Nestas páginas, os marginalizados passam em desfiles solitários e fantasmagóricos, transbordando por todo lado, mostrando que são, na verdade, partes de um todo, partes da grande maioria. A margem toma seu lugar no centro e a escuridão se torna a luz necessária para apreciarmos pontos evitados por muitos.


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