Jornal dos Arquitectos

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ISSN-0870-1504

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Jornal Arquitectos /// Publicação Trimestral da Ordem dos Arquitectos /// Portugal /// 223 /// Abril – Junho 2006 /// € 10,00

JA223


Editorial

A ESCASSEZ como condição é o tema do JA 223. Afecta, nas suas várias vertentes, o mundo de hoje e adivinha-se que a inacção face ao problema no contexto português se poderá prolongar no tempo e tornar-se estrutural. Mas a arquitectura não poderá adiar, por muito mais tempo, colocar o tema no centro da sua acção. A escassez comporta uma vasta riqueza temática, que implica os recursos, o espaço, o tempo, ou mesmo a produção e a construção de arquitectura. É exactamente por estes tópicos que os textos que publicamos se movem criticamente. João Rodeia e Jorge Carvalho conduzem-nos pela questão da ética face à necessidade de refundar a relação entre homem e paisagem, entre cultura e natureza, condição necessária à própria sobrevivência da espécie humana. Cameron Sinclair (fundador da Architecture for Humanity) e Maria Moita descrevem as respectivas experiências no que diz respeito à produção de arquitectura em condições limite, onde a necessidade de equipamentos e de habitação obriga a trabalhar com recursos materiais e humanos mínimos, em cenários de catástrofe e de guerra. Cláudia Taborda, Jorge Figueira e Bruno Baldaia e Miguel Veríssimo (editores do Vírus) elegem casos de estudo para estabelecerem ligações entre o tema, a paisagem e a cidade. Óscar Faria clarifica o cepticismo empenhado da “arte povera” face à hegemonia da tecnologia e do capitalismo e que conduziu a um modo de escassez na procura e “favorecimento de trocas entre polaridades energéticas contrastantes”. Jean Philippe Vassal defende uma estratégia de escassez material de modo a privilegiar o espaço como valor arquitectónico e social, e sobretudo a arquitectura como acção política. Os projectos publicados constituem-se como respostas sobre um modo de fazer acontecer arquitectura a partir do ponto de vista de formas múltiplas de escassez. São programas que implicam a dimensão do culto religioso, do espaço doméstico e do trabalho. Pedro Reis projectou uma igreja para uma comunidade timorense implicando os recursos humanos e materiais disponíveis. Rui Mendes e Simon Conder tratam o problema da habitação unifamiliar com extrema contenção de recursos formais e materiais. O colectivo Plano b e Solano Benitez & Alberto Marinoni produziram espaços de trabalho, apoios agrícolas e uma fábrica, respectivamente, a partir da sustentabilidade como suporte da acção da arquitectura sobre o território. José Adrião + Ricardo Carvalho


ESCASSEZ


Crítica

JOÃO BELO RODEIA

Le temps du monde fini commence! Em 1945, Paul Valéry anunciava uma nova era de finitude: «le temps du monde fini commence», dizia então. É improvável, porém, que imaginasse quanta a evidência e actualidade das suas palavras nos dias de hoje, pois não só a finitude adquiriu importância crescente nos últimos 60 anos, como contaminou, em definitivo, a aventura humana. Falar desta finitude é falar de Escassez. E mais do que a qualidade do que há em pouca quantidade, a Escassez precisa-se como reconhecimento do que tende à rarefacção, do que tende a não existir mais. Com este quadro, apresentamse, de seguida, três tentativas sumárias de reflexão, ponderando o enquadramento da Escassez no nosso tempo, a eventual influência no ofício do arquitecto e alguns dos desafios colocados à própria Arquitectura. 1. Ao contrário do que poderia pensar-se a partir do anterior enunciado, a questão da Escassez não é de hoje. Desde sempre acompanhou a aventura humana, condicionando-a em distintos momentos e estimulando-a noutros. Porém, as novas dimensões e estatuto da Escassez na contemporaneidade são diversas e desconhecidas de outrora. Obrigam, por isso, a uma outra visão da realidade – que é, também, uma outra visão de nós mesmos – e à eventual reconstrução de uma verdade ou verosimilidade da nossa existência, na exacta medida da caducidade geral dos conceitos que infra-estruturaram e determinaram as ideologias do progresso, em particular na primeira metade do século passado. Aliás, em rigor, não se trata de uma reconstrução, pois esta implica a reposição de algo anteriormente construído. Nem se trata, como é corrente dizer-se, de uma crise, pois esta remete para um passado que se admite repetível. Antes do mais, trata-se de verificar a Escassez como uma dupla finitude que vem alterando profundamente o modo como os homens co-habitam neste pequeno planeta. A primeira, a finitude do mundo, resulta da constatação de que detemos o poder de transformar como nunca antes, incluindo o poder de extermínio total da condição humana. Sabemo-lo, pelo menos, desde o trágico momento de Hiroxima. A segunda, a finitude da Terra, resulta da constatação de que os recursos disponíveis no planeta são limitados, muitos não-renováveis, e de que está em causa o próprio equilíbrio planetário que sustenta a vida tal como a conhecemos. Sabemo-lo desde a primeira crise petrolífera e perspectivamo-la na anunciada crise hidrológica, na bomba demográfica – a humanidade quadruplicou durante o século XX – e nas confirmadas alterações climáticas. Por isso, sem qualquer demagogia, é possível dizer-se que as ideologias do progresso estão hoje muito fragilizadas. A crença no «sempre mais» como valor eterno e absoluto, ainda omnipresente nos nossos dias, tem implicado um esforço de crescimento geométrico em extracção, produção e consumo que não é mais compatível com as perspectivas da Escassez contemporânea e vindoura. E, para além de obviamente condenado ao fracasso, este «sempre mais» vem aprofundando um caminho que poderá conduzir-nos à re-

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gressão, senão mesmo ao colapso civilizacional. Ao invés do que poderia parecer, este não é, de todo, um discurso pessimista sobre a realidade. A Escassez não implica uma tabula rasa ou o fim da evolução. Obriga-nos, no entanto, a equacionar o mundo e a terra como coisa una e finita, e a pensar o futuro enquanto tal. Obriga-nos, assim, a tomar decisões e, muito possivelmente, a mudar o rumo e o estilo de vida. Obriga-nos, também, ultrapassados o projecto moderno e a desconstrução pós-moderna, a novos conceitos colectivos e globais que infra-estruturem ideologias de sustentabilidade que – pela primeira vez desde há muito tempo – implicam conciliar, num só sistema, a Natureza e a Cultura. E obriga-nos, por fim, a saber implementar este projecto colectivo e global na diversidade regional e local, nas diferentes actividades humanas, entre a serena convivência com o planeta e a responsabilidade de salvaguardar a humanidade vindoura. A Escassez deixou de ser mera questão ou acidente de percurso e, tal como anunciado por Valéry, passou a premissa ou paradigma de uma nova era da aventura humana. 2. A influência deste novo paradigma no ofício de arquitecto é ainda incerto e menos evidente do que poderia parecer à primeira vista. Desde logo porque o arquitecto actua numa pequena parte do mundo e da terra, raramente o faz sozinho, pois, em geral, responde a solicitações de outrém e trabalha em equipa com outros profissionais, e não detém o verdadeiro poder de mudar, pois este está quase sempre nas mãos dos políticos e financeiros. E, no entanto, a Escassez vem gerando e apresenta hoje problemas que não podem mais ser ignorados pelo arquitecto e que, pela sua magnitude, permitem alimentar a sua capacidade e imaginação prospectivas e, até mesmo, recentrar a sua profissão. Mantenho, aliás, a convicção de que os arquitectos, antes mesmo do pensar e fazer arquitectura, devem procurar reflectir sobre a condição humana na sua dupla vertente: enquanto aventura do homem e enquanto natureza própria ao homem. E que esta reflexão permite conhecer melhor a mais profunda razão de ser do próprio ofício de arquitecto em, pelo menos, dois aspectos fundamentais. O primeiro, apesar de todas as limitações, decorre da plena consciência de que ser arquitecto implica a responsabilidade social de ajudar a construir o habitar do homem, de delimitar lugares onde vivam, de contaminar positiva e activamente um estado de coisas através do projecto. Decorre, também, do reconhecimento de que se Ser Humano significa colocar o presente ao serviço do devir, este ser em projecto, no arquitecto, submerge a totalidade da sua actividade. O segundo decorre da constatação de que o projecto – neste seu duplo sentido – está no âmago da actividade do arquitecto e, em larga medida, é legitimador da própria Arquitectura. Não envolve apenas um conjunto de croquis, planos e maquetas, nem implica a estrita obediência a uma solicitação ou a uma inédita conformação, nem mesmo evoca um vago desejo de fazer ou um fazer esgotado em desejo, por mais profissional que seja a solução. Antes, determina um


processo – de acção e omissão críticas – que responde a uma realidade concreta e que antecipa sempre uma realidade futura. Por isso, o arquitecto está destinado a actuar nas condições do seu tempo e a perspectivar o outro que virá, exigindo-se competência projectual, distância crítica e responsabilidade ética. Ora, vivemos num planeta em forçada depredação, em que mais de 80 por cento da humanidade vive em aglomerados urbanos e em que 1/6 da população mundial não tem casa, ou seja, mil milhões de pessoas. Não é difícil inferir que o ofício do arquitecto, senão mesmo a respectiva sobrevivência, passa por equacionar, de algum modo, esta condição global na sua actividade. Porém, dado que esta actividade está sempre confinada a escalas mais ou menos locais, é este o contexto que revela, em cada projecto, essa mesma condição. Dir-se-ia que a primeira estabelece o pano de fundo que limita e estimula o exercício e a responsabilidade social do ofício e que a segunda estabelece os panos de cena que concretizam esse exercício e essa responsabilidade em coisa construída. A influência da Escassez no ofício de arquitecto passa, desde logo, por pensá-lo na complexidade e diversidade do mundo, habilitando-o a actuar em qualquer situação, incluindo as que impõem condições severas, extremas e meios muito limitados ou rudimentares. Passa, também, por pensá-lo capaz de contaminar-se pelas melhores experiências locais no quadro global, com imaginação e perspicácia. E passa, sobretudo, pela capacidade crítica de saber escolher e decidir, ou seja, de saber estabelecer juízos de valor para cada decisão do próprio processo de projecto, tendo a finitude como fonte permanente de aferição e de estímulo. 3. Entre os desafios – também incertos na sua totalidade – que a Escassez coloca à Arquitectura, há um, pelo menos, que emerge evidente. A progressiva formulação de conceitos que infra-estruturam ideologias de sustentabilidade, unindo Natureza e Cultura, terá que encontrar resposta disciplinar, dado que a Arquitectura, pelo menos no mundo ocidental, formulou-se quase sempre por confronto ou substituição da Natureza. Há, por isso, um longo caminho de reflexão a percorrer quando, neste novo patamar, o valor de um bem arquitectónico surge agora idêntico ao valor de um bem natural e quando todos os bens terrestres – culturais e naturais – estão sujeitos à decisão criteriosa do que devemos preservar e do que podemos aceitar transformar ou até mesmo, em definitivo, perder. Com razoável probabilidade, muitas das respostas mais duradouras encontram-se no corpo, tradição e praxis disciplinares da Arquitectura. Bastará recordar, entre tantas possibilidades, que a génese da própria Arquitectura provém do habitar do homem na terra, que há uma longa tradição de arquitecturas populares que desde sempre lidaram com a escassez, que há uma forte tradição erudita que, pelo menos desde Goethe, procura a convergência da arquitectura com a natureza, e que o próprio território é, em maior ou menor grau, substância fundamental no processo do projecto arquitectónico. Ao invés, parecem resultar fragilizadas as respostas que, em face deste novo paradigma, restringem a Arquitectura, enquanto coisa construída, a um mero produto, a uma questão de linguagem ou a uma dimensão objectual, para além das que procuram analogias directas com a Escassez. Neste último caso, mais óbvio, situam-se tanto as que trilham o caminho da redenção e eficiência tecnológica e/ou ecológica,

Le temps du monde fini commence!

como as que forçam a Arquitectura a uma estética da escassez. Menos óbvio, porventura, é o primeiro caso, apesar de não ser difícil constatar que a redução da Arquitectura a um mero produto incorre no risco da excessiva mercantilização e submissão às regras do consumo, que a redução a uma questão de linguagem abre caminho à tirania da novidade imposta pelo mercado e a complexidades formais desnecessárias – nomeadamente pela efémera inspiração ou excessiva dependência da tecnologia digital – e que a redução a uma dimensão objectual abusa da autonomia da coisa construída e desvincula-a da prestação territorial. Outras respostas encontrar-se-ão, porventura, noutras áreas disciplinares, equacionando conceitos ligados à Escassez – da entropia à reversibilidade, da reciclagem ao «ready-made» – na própria praxis arquitectónica. Aliás, diga-se por fim, parte substancial da resposta disciplinar resultará de um somatório de pequenos passos, à medida que alguns dos projectos, informados pela finitude, forem estabelecendo juízos paradigmáticos sobre as respectivas acções, e à medida que algumas das sínteses construídas forem operando, testemunhando e abrindo novos caminhos neste mesmo âmbito. Ora, as acções do projecto incidem sempre sobre parâmetros que são parte substancial do problema específico em causa, tais como o território, o programa e a materialidade, procurando operá-los em sínteses precisas, em coisa construída e habitável. E estes parâmetros podem, também, constituir objecto de reflexão per si. Ou seja, o território tanto pode e deve ser equacionado num sentido mais lato, na procura simultânea de respostas à crescente urbanização do planeta e à diminuição dos recursos naturais, entre lógicas e modelos de conformação, interacção e optimização (em que as redes de domínio público, infra-estruturas e energia jogam papel relevante), como pode e deve, em sentido estrito, informar cada projecto a partir da respectiva totalidade circunscrita, continuando-se ou reinventando-se em durabilidade matricial na coisa a construir. E o programa tanto pode e deve ser equacionado num sentido lato de responder, como nos anos 50, 60 e 70 do século passado, à questão central da habitação para todos, agora entre a sustentabilidade e o exercício da diferença, como pode e deve, no sentido estrito de cada projecto, interrogar-se em si mesmo e/ou indagar, por exemplo, uma possível flexibilidade de utilização na invariabilidade de espaços criteriosamente conformados, duráveis para além de uma função específica. E poder-se-ia dizer o mesmo para a materialidade (sistema construtivo, materiais e detalhes/aplicações), seja no sentido lato da sustentabilidade em face dos bens e recursos disponíveis, seja no sentido estrito de cada projecto, decidindo, por exemplo, a eficiência optimizada do sistema construtivo, a regulação do consumo material, a resistência em termos de longevidade ou efemeridade, a compatibilização energética e ecológica ou, mais simplesmente, equacionando os bens e recursos de proximidade, locais ou regionais, com a oferta global. Num planeta cada vez mais pequeno, morada definitiva da aventura humana, a finitude abre novas oportunidades a uma Arquitectura com responsabilidade ética, relevância social e significado físico. Assim, com estas tentativas sumárias de reflexão em torno da Escassez, indiciam-se caminhos de um novo realismo que, como afirma Adrian Forty, estão muito pouco solicitados, provavelmente fora de moda e ainda longe de estarem percorridos. Porém, «le temps du monde fini commence» e a porta está aberta. ^

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Crítica

CAMERON SINCL AIR

«Espero que seja uma longa lista...» No dia 14 de Setembro de 2001 tocou o telefone do escritório da Architecture for Humanity. Devo explicar que o «telefone do escritório» era, na verdade, um telemóvel que usava enquanto trabalhava como arquitecto no «atelier» Gensler em Nova Iorque (a nossa «sede diurna» estava num canto do meu posto de trabalho). Trabalhava, então, no projecto de mudança de instalações da empresa Lehman Brothers, alguns dias depois dos ataques terroristas ao World Trade Center. Muitos tínhamos visto as torres cair e estávamos comprometidos a ajudar. A voz feminina disse-me que estava a telefonar em nome do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR/UNHCR). Informou-me que a Architecture for Humanity constava de uma lista de organizações, e que talvez eu fosse capaz de ajudar no programa de habitações para refugiados, se a América decidisse lançar um ataque contra células de terroristas no Afeganistão. Eu ri-me, nervoso, e respondi, «espero que seja uma longa lista». Por incrível que pareça, ela respondeu de forma curta e sóbria: «não». Apercebi-me nessa altura que pessoas fora do mundo da arquitectura se tinham interessado pela nossa ideia modesta. A Architecture for Humanity é uma organização humanitária fundada em 1999 por Kate Stohr, jornalista free-lance e produtora de documentários, e por mim próprio, com a finalidade de pensar a arquitectura e o design para comunidades que deles necessitam, em cenários de crise humanitária. Através de concursos, seminários, fóruns educativos, parcerias com organizações de ajuda humanitária tivemos como objectivo criar oportunidades de trabalho para arquitectos de todo o mundo. Mas na altura do ataque ao World Trade Center ainda não tínhamos construído um único edifício. Então, porque é que uma organização das Nações Unidas entraria em contacto connosco? Gostaríamos de pensar que foi porque já éramos uma voz a favor da arquitectura humanitária – uma referência numa arquitectura socialmente consciente. Mas a triste verdade é que, até 1999, quando a nossa pequena organização começou com uma mão cheia de outras pessoas, não havia nenhuma fonte de abrigos para situações de crise, e os grupos de ajuda humanitária lutavam por apoio. Os engenheiros tinham o RedR, uma organização com mais de 25 anos, que une a sua profissão às agências humanitárias da linha de frente, mas onde é que as agências e os grupos comunitários se podiam dirigir quando necessitavam de arquitectura? A Architecture for Humanity começou como resposta ao conflito no Kosovo. Eu trabalhava num pequeno «atelier» como um «macaco de CAD». O atelier desenvolvia lojas para a comercialização de produtos de moda. Depois de ter trabalhado em projectos em vinte países diferentes, dei comigo a desenhar suportes para batons para uma loja num país em que o salário semanal médio de um trabalhador era igual ao custo de um só batom. Isto clarificou o modo como a globalização estava a beneficiar a nossa profissão. Mas a verdadeira questão que deveríamos colocar era se tínhamos ou não obrigação de responder a algumas das preocupações sociais nos lugares para onde estávamos a trabalhar. Durante

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algumas discussões com os meus colegas, sobre o papel do arquitecto, constatei que era uma voz solitária. Percebi também que tinha que mudar de «atelier». Mudei-me para a Lauster & Radu Architects que revelou ter um ambiente incrível. Tinham interesses abrangentes e aceitaram alguns projectos socialmente conscientes. Pela primeira vez encontrei um mentor num dos sócios: Charles «Chuck» Lauster, que se preocupava tanto com a estética como com a ética. Foi mais ou menos nesta altura que, por acaso, vi um filme de Dan Reed, chamado «The Valley», que mostra a revolta étnica dos albaneses no Kosovo no Outono de 1998. Nas aldeias divididas por fronteiras étnicas, os sérvios e albaneses estavam a destruir sistematicamente os lares uns dos outros. Depois de algum tempo, os sérvios adoptaram a política de «terra queimada». Tornou-se óbvio que não eram apenas as famílias, mas também a história de um povo, que estavam a ser erradicadas. A comunidade internacional interveio pouco depois para acabar com o conflito. Mas enquanto as organizações de ajuda humanitária se concentravam na saída dos refugiados do país, um segundo desastre esperava os residentes do Kosovo no seu regresso. Com as casas e as infra-estruturas em ruínas, estas famílias deslocadas precisariam de imediato de residências. Quando sugeri agir, Chuck apoiou a ideia e envolveu-se. Comecei a investigar a temática dos refugiados. Como a sede das Nações Unidas fica em Nova Iorque, telefonei para lá. Para surpresa minha, fui convidado para um encontro com delegados do ACNUR. Quem teria pensado que seria assim tão fácil! Na reunião, ficámos surpreendidos com a reacção positiva dos delegados. No entanto, informaram-nos que o ACNUR apenas se preocupava com os refugiados localizados fora dos seus países e não com pessoas que estavam deslocadas internamente ou de regresso a casas destruídas. Sugeriram-nos que contactássemos organizações não-governamentais que já estavam a trabalhar na fronteira do Kosovo. Comecei a fazer telefonemas e acabei por falar com Heather Harding LaGarde da War Child USA. Ela deu-nos o contacto de trabalhadores de ajuda humanitária na zona e também de refugiados que viviam em alguns dos campos. Percebemos rapidamente do que necessitavam: não era de um abrigo temporário mas sim de algum tipo de estrutura provisória de médio prazo onde os kosovares de regresso pudessem habitar enquanto estivessem a reconstruir as suas casas. Estas conversas ajudaram-nos a perceber nitidamente quais eram as necessidades de quem se encontrava no terreno, e deu-nos a sensação de que essa ajuda estava fora do nosso alcance. Um telefonema com (ou a) Bob Ivy, o director da Architectural Record, acentuou esta sensação: era realmente possível que uma equipa de arquitectos (com base em Nova Iorque e com pouca experiência na questão dos refugiados) fizesse alguma diferença? Talvez uma equipa não conseguisse fazer diferença, pensei, mas o que aconteceria se centenas de arquitectos e designers se envolvessem? Decidimos lançar um concurso para habitações provisórias para os re-


Situação pré-existente – Sri Lanka, 2005

«Espero que seja uma longa lista...»

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© Technocraft / Architecture for Humanity

Transitional housing competition – Concurso para habitações provisórias para o Kosovo, 1999 Proposta de Technocraft (Japão) – Finalista

fugiados. Tínhamos esperança que o concurso, que lançámos na Internet por causa do orçamento limitado (isto é, não tínhamos dinheiro), conseguisse angariar fundos para o trabalho da War Child. Avançámos com a investigação do problema e com a definição de critérios, muitas vezes com a ajuda e ideias de pessoas desconhecidas de diversas partes do globo, muitas delas alojadas em tendas de refugiados no Montenegro e na Albânia. Conseguimos também convencer Ray Gastil a acolher o concurso e uma exposição. Nessa altura, Ray era o director executivo do Van Alen Institute, organização sem fins lucrativos que se dedica a qualificar a arquitectura e o design na sociedade. O que aconteceu depois foi muito rápido. Um dia estávamos a falar sobre a crise de habitação anunciada no Kosovo; umas semanas depois estávamos sentados com Heather e com Bianca Jagger no Van Alen Institute, prontos para lançar um concurso internacional, à frente de uma sala cheia de jornalistas. Dois meses mais tarde estávamos sentados com todas as maquetas das propostas à nossa volta. Mais de 220 equipas de projecto oriundas de 30 países responderam. Os conceitos variavam entre o pragmático e o provocador. Propuseram estruturas feitas de todos os materiais possíveis, desde escombros até cânhamo insuflável. Infelizmente o concurso também provocou reacções ne-

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gativas. Recebemos uma série de ameaças de morte. Uma delas dizia que iríamos receber um pacote da Jugoslávia e que quem o abrisse iria perder alguns dos seus membros. O júri seleccionou 10 finalistas e 20 menções honrosas a serem destacadas na exposição. Depois de uma temporada no Van Alen Institute, a exposição viajou até Londres e Paris; três das propostas foram seleccionadas para a Bienal de Veneza. A organização do concurso, incluindo a exposição, custou-nos menos de 700 dólares. Mas através da inscrição, angariámos mais de 5000 dólares. O interesse que a exposição gerou e um apelo no jornal britânico The Guardian ajudou a angariar mais de 100 mil dólares. Estávamos animados pois tínhamos não só vários projectos viáveis, como também o financiamento. Este seria o nosso primeiro confronto com a realidade daquilo que é a ajuda humanitária internacional. Para conseguirmos passar o material através da alfândega, assegurar um local de construção, arranjar autorizações de trabalho e possibilitar outros aspectos do programa de habitação, precisávamos da autorização do governo do Kosovo. No entanto, o governo, que estava a pedir ajuda humanitária da comunidade internacional, queria 20 mil casas ou nenhuma. Tínhamos capacidade para construir apenas uma dúzia. A War Child negociou com as autoridades locais sem sucesso; o projecto chegou a um impasse. Não sendo possível construir


© Brendan Harnett, Michelle Myers / Architecture for Humanity

OUTREACH – Concurso para clínicas móveis para a África sub-Sahariana, 2002 Brendan Harnett e Michelle Myers (Troy, EUA) – 2º Prémio

as estruturas na Albânia e depois contrabandeá-las através da fronteira com um helicóptero, que foi uma das hipóteses que contemplámos por instantes, não havia maneira nenhuma de disponibilizar os abrigos para aqueles que precisavam. No fim, a War Child utilizou os fundos para ajuda imediata aos refugiados e, mais tarde, para reconstruir escolas e instalações médicas. Aprendemos muito durante o projecto. Percebemos que eu não era o único «macaco CAD» desiludido e que os arquitectos e designers queriam marcar a diferença. Também se tornou evidente que era tão essencial criar parcerias para implementar um projecto como era o apoio na linha da frente para negociar as adversidades administrativas com as autoridades. Era preciso mais do que uma ideia fantástica para construir alguma coisa. O mais importante que aprendemos foi que, se queríamos conseguir algo, não tínhamos apenas que angariar fundos, mas também que manter um certo controlo sobre eles. Isto não quer dizer que o concurso se tenha ficado pelas ideias. Muitos arquitectos que participaram continuaram os seus projectos por iniciativa própria e construíram protótipos. Deborah Gans e Matt Jelacic ganharam um prémio de 100 mil dólares da Fundação Johnnie Walker «Keep Walking» para desenvolver a sua proposta; um protótipo de Sean Godsell foi exibido no Cooper Hewitt National Design

«Espero que seja uma longa lista...» / Cameron Sinclair

Museum; Shigeru Ban, que desenhou casas de tubos de cartão para responder a um terramoto no Japão, utilizou uma versão melhorada no nosso concurso para responder a um terramoto na Turquia em 1999. Kate e eu casámos. E enquanto Tod Williams e Steven Holl viam as propostas do concurso do Kosovo, fomos à África do Sul. Mas depois de três dias, a nossa lua-de-mel acabou. A Kate começou uma reportagem sobre a violência contra mulheres na África do Sul, que na altura tinha a maior taxa de violações do mundo. Eu contactei uma série de organizações para me informar sobre a escassez de habitação no país. Nas semanas que se seguiram dividimo-nos entre povoações, hospitais, centros de intervenção para mulheres violadas e alguns projectos de habitação. Supúnhamos que o acesso à água limpa e à habitação adequada seria a mais alta prioridade dos residentes; mas, de facto, a sua preocupação maior era o sistema de saúde e a epidemia crescente de SIDA. Ainda não nos tínhamos apercebido, mas tínhamos encontrado o nosso projecto seguinte. Era evidente que ausência de um sistema de saúde mantinha estas comunidades na pobreza. Tivemos um momento de «eureka» – em vez de fazer os doentes andar 15 a 20 quilómetros para ver um médico, porque não trazer, em vez disso, o médico ao pé deles? Foi esta a ideia que inspirou a

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OUTREACH – Concurso para clínicas móveis para a África sub-Sahariana, 2002 Gaston Tolila e Nicholas Gilliland (Paris, França) – Founders Award

OUTREACH: «Concurso de Ideias para Centros de Saúde Móveis para o Combate contra o HIV/a SIDA na África Subsahariana» (2001-3). Só alguns anos mais tarde é que lançámos finalmente o concurso. Depois do fim agridoce da experiência no Kosovo, apercebemo-nos que, antes de nos dedicar a um novo projecto, era preciso estabelecer uma organização sem fins lucrativos. Entretanto li uma reportagem de Rodney Harber, um arquitecto na África do Sul que em 1996 escreveu o primeiro relatório sobre a SIDA, mostrando como a arquitectura pode ajudar. Isto reacendeu a nossa ideia do projecto OUTREACH e começámos a investigar a assistência médica móvel. No fim do ano 2001, desenvolvemos os critérios para criar um serviço médico digno e eficiente, incluindo a distribuição e manutenção, a aceitação pela comunidade e o baixo custo. Estávamos preparados para lançar o projecto quando o World Trade Center foi atacado. Quando telefonaram da ACNUR, senti-me dividido: embora não tivéssemos a capacidade de aceitar um projecto desta dimensão, era uma grande oportunidade de envolver arquitectos e designers numa iniciativa das Nações Unidas. Discutimos se deveríamos colocar o projecto africano em espera e concentrar a nossa atenção naquilo que parecia ser um objecto mais urgente. Foi um e-mail de um dos médicos do Quénia que nos fez decidir. Dizia: «Vocês acabaram de sofrer um terrível desastre, perder 3000 vidas num dia é verdadeiramente horrível. Naturalmente, a vossa atenção centrarse-á em levar os responsáveis pelo que aconteceu à justiça, e projectos como o nosso serão postos de lado, no entanto, é um facto que a África perde diariamente o dobro de vidas para a SIDA, e embora a perda não seja tão visível, a mágoa é igualmente grande». Era óbvio que devíamos deixar outros com mais experiência responder à chamada do ACNUR e manter-nos concentrados na África. Fizemos um apelo a arquitectos na zona que estivessem interessados em trabalhar com a ONU. Apesar de ser apenas um pequeno gesto, esta capacidade de poder disponibilizar uma rede de profissionais tornar-se-ia uma das mais importantes funções a desempenhar pela Architecture for Humanity.

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Na Primavera de 2002 lançámos oficialmente o concurso para a África. De novo, ficámos espantados com a resposta. Responderam 1.400 arquitectos e designers, profissionais de medicina e estudantes de mais de 50 países. O «escritório» da Architecture for Humanity era nesta altura o nosso apartamento de 37m2, e nós referimos o seu endereço na ficha de participação do concurso. Assim, no dia 1 de Novembro de 2002 todas as propostas, mais de 500, entraram-nos pela porta em três camiões dos correios deixando-nos pouco espaço para trabalhar ou viver. Ray Gastil e o Van Alen Institute socorreram-nos de novo, desta vez não só com espaço para armazenar as propostas, dirigir o júri e organizar uma exposição, mas também com a doação dos serviços do director de programação, Jonathan Cohen-Litant, que se revelou um prodígio de organização. Um júri internacional de arquitectos e médicos encontrouse para avaliar as propostas. Este processo foi rigoroso e minucioso, com discussões sobre os assuntos de mobilidade, armazenamento, segurança e envolvimento da comunidade. O júri não acreditou que camiões semi-reboque pudessem passar pelo terreno difícil da região, particularmente em condições meteorológicas adversas. Muitos dos membros do júri excluíram soluções que envolviam animais como meio de transporte, mas um grupo de membros oriundos da África salientou que as propostas que dependiam de um veículo poderiam requerer a manutenção e as peças sobresselentes poderiam ser difíceis de obter. Concluiu-se que o uso da tecnologia apropriada e uma variedade de meios de transporte – até burros – garantiam uma maior mobilidade e acesso. Reconhecendo a diversidade da região em termos de geografia e cultura, favoreceram-se as propostas que podiam ser contextualizadas em vez de serem «africanizadas». O júri escolheu oito projectos. A proposta de Jeff Alan Gard consistia numa aeronave equipada com uma clínica e motas. Um membro do júri seleccionou-a como uma afirmação política sobre a desigualdade de assistência médica no mundo, e referiu: «se a SIDA tivesse nos Estados Unidos a mesma taxa que tem em África, não teríamos preocupações de custo». Outros projectos englobaram temas semelhantes: A Africa Under Siege [África no Estado de Sítio] propôs uma abor-


© Gaston Tolila, Nicholas Gilliland / Architecture for Humanity

dagem militar no sentido de um «ataque preventivo», enquanto a proposta de Soren Barr e Chris French propunha a reconversão em clínicas de tanques e veículos militares das guerras civis de África. Um dos nossos favoritos foi a clínica de campo Kenaf Field Clinic, um projecto para uma clínica «faça você mesmo». No final de 2003, a exposição da OUTREACH tinha sido vista por mais de 40 mil pessoas, e parecia que os políticos finalmente levavam a sério a ameaça da SIDA em África. Em Maio de 2003, o Presidente Bush promulgou um Plano Global de Emergência de Auxílio contra a SIDA com um financiamento 15 mil milhões de dólares. Uma componente chave era a distribuição de centros de saúde numa rede que seria o suporte para clínicas e unidades móveis em zonas rurais. Segundo o plano, os empregados destas clínicas seriam enfermeiras a trabalhar rotativamente e curandeiros locais que obteriam uma formação em avaliação médica e na distribuição de medicamentos. Ficámos sem palavras, porque o texto que descrevia os critérios era (quase exactamente) igual àquilo que tínhamos publicado na Internet um ano antes. Muito daquilo que estávamos a reclamar tinha-se transformado em política. Na Primavera de 2004 tínhamos angariado doações suficientes para enviar quatro equipas à Somkhele na África do Sul, uma das zonas mais afectadas pelo vírus, para participar num workshop. Quando apresentámos a ideia a médicos partimos do princípio que os serviços de saúde móveis existiam há décadas. Mas verificámos que apenas alguns programas tinham sido implementados. Uma das lições mais duras que aprendemos com este projecto foi que, embora estas propostas sejam viáveis em termos de financiamento, em alguns casos custando menos oitenta por cento do que uma clínica permanente, não seria possível implementá-los sem o financiamento para os sustentar. E enquanto uma clínica custava 30 mil dólares para ser construída, precisaríamos quase de 1,5 milhões para a tornar operacional e para fornecer a medicina antiretroviral à comunidade. Passámos grande parte dos anos 2002 e 2003 a pedir subsídios. A certa altura éramos cinco pessoas a fazer pesquisas e a contactar centenas de fundações. Aprendemos que existiam poucos fundos dedicados à construção de insta-

«Espero que seja uma longa lista...» / Cameron Sinclair

lações de serviços de saúde, muito menos para serviços de saúde móveis e quase não havia fundos destinados à arquitectura. Num dos momentos mais difíceis recusaram-nos fundos que nem sequer tínhamos pedido. A partir daí concentrámos as nossas energias em estabelecer uma base de doadores, transformando a Architecture for Humanity numa estrutura de angariação de fundos. Seria fácil afirmar que o projecto falhou por causa da falta de fundos, mas não foi a única razão. Não tínhamos esclarecido suficientemente o papel do arquitecto – ou o empenho necessário – no processo. Muitos dos arquitectos não tinham tempo livre para se concentrarem nos projectos. Também nos deparámos com o obstáculo dos direitos de autor. Um dos finalistas, Mads Hansen, foi apanhado entre a vontade de uma empresa em licenciar a sua ideia e a sua própria vontade de implementar o projecto. Como também aconteceu com o empenho no Kosovo, alguns arquitectos e designers avançaram com o desenvolvimento de projectos. Depois do workshop africano, a equipa de Nicholas Gilliland e Gaston Tolila formou a LILA Design e construiu um protótipo da sua proposta para o Centre Pompidou em Paris e actualmente estão a trabalhar no projecto de um centro de saúde na Tanzânia. Pierre Bélanger, cujo projecto foi seleccionado para a exposição como uma das soluções mais pragmáticas, está a colaborar com Owens Wiwa, médico nigeriano, na remodelação do espaço de carga de um veículo comercial Mercedes-Benz Vario 814, para criar uma clínica médica autónoma e operacional. Esta está a ser actualmente utilizada na auto-estrada A3 no sudeste da Nigéria. E, finalmente, Geoff Piper, Jamie Fleming e Matthew Sullivan transformaram três motas em unidades médicas móveis para as zonas rurais no Quénia. Recebíamos cada vez mais pedidos de pessoas e grupos que queriam fazer trabalho voluntário para se envolverem nas suas próprias comunidades. As delegações da Architecture for Humanity começaram a surgir em todo o mundo no fim de 2003. Em 2004, centenas de pessoas encontravam-se uma vez por mês, em bares ou restaurantes, para discutirem formas de contribuir. Na cidade de Nova Iorque, base do maior grupo local, os arquitectos e designers trabalhavam

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© KHRAS Architects / Architecture for Humanity

OUTREACH – Concurso para clínicas móveis para a África Sub-Sahariana, 2002 KHRAS Architects (Virum, Dinamarca) – 1º Prémio

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voluntariamente na remodelação de um abrigo para mulheres e no The Point CDC, um centro comunitário no South Bronx. Muitas vezes só reparávamos nas actividades de um grupo quando um delegado local entrava em contacto connosco. Isto, normalmente, significava um telefonema do género «Olá, eu sou o representante da Architecture for Humanity de San Diego, e queremos iniciar um projecto de construção na fronteira entre os EUA e o México, está bem?». Tanto quanto sabemos, existem grupos activos nos Estados Unidos em cerca de 30 cidades. A nível internacional há grupos em Dublin, Génova, London e Sydney. A Architecture for Humanity tornou-se uma estrutura que cria oportunidades para os arquitectos oferecerem os seus serviços em situações de crise. Quando a cidade de Bam, no Irão, sofreu o terramoto a 26 de Dezembro de 2003, ajudámos a angariar fundos para a Relief International, organização não-governamental, com base nos EUA, para construir habitações anti-sísmicas utilizando estruturas de aço combinadas com blocos de lama de tradição local. No mesmo ano contactámos a Ferrara Design, os designers de «Abrigos para a Aldeia Global», com o governo de Granada. Daniel e Mia Ferrara tinham desenhado um abrigo desdobrável de cartão, que podia ser utilizado após situações de emergência. Em parceria com a empresa Weyenhaeuser produziram protótipos por apenas 370 dólares por unidade. Nessa altura a ilha de Granada foi devastada pelo furacão Ivan que destruíu 85 por cento das habitações e a quase totalidade do cultivo da noz moscada, uma das principais fontes de rendimento da ilha. Sem plano de ajuda imediata após o desastre e com a falta de atenção dos meios de comunicação, passaram meses até que começassem os esforços de recuperação. Quando, finalmente, começaram, o furacão Emily atingiu a ilha. Como resposta a este segundo desastre, e com a ajuda de

Laurinda Spear do atelier Arquitectonica e a voluntária Marisa Fort-Spear, a Architecture for Humanity estabeleceu o contacto entre Mia e Dan Ferrara e as autoridades de Granada e ajudou a financiar o processo. Juntos, enviámos 70 abrigos para a ilha para serem usados como habitações temporárias e clínicas rurais. Mais tarde, a organização sem fins lucrativos Kids with Cameras [«Crianças com Câmaras»] pediu a nossa ajuda para o desenvolvimento de um esquema inicial para uma escola para as crianças dos bares de prostituição em Calcutá na Índia. Trabalhámos com os estudantes da Universidade Estatal de Montana, onde eu estava a dar aulas. Os estudantes aperfeiçoaram as suas ideias para uma apresentação final à «Kids with Cameras» no final do semestre.Os projectos ajudaram a organização a consolidar os seus planos e a lançar uma campanha de angariação de fundos para construir a escola. A 26 de Dezembro de 2004, quando um terramoto da magnitude 9,3 no Oceano Índico lançou o tsunami mais mortífero da história, a Architecture for Humanity deixou de ser um pequeno grupo de arquitectos, transformando-se de um dia para outro numa organização orientada para o projecto. As ondas viajaram milhares de quilómetros, atingindo a costa de países tão distantes como a Indonésia, as Maldivas, o Sri Lanka e a Somália. O tsunami matou mais de 225 mil pessoas em 13 países e deixou mais de 4 milhões deslocadas. A província indonésia de Aceh e a costa do Sri Lanka, duas regiões empobrecidas por anos de conflito antes do desastre, foram fortemente atingidas. Este foi um momento importante, não apenas para a nossa organização, mas para todos os movimentos humanitários. A necessidade era imensa, e este foi um dos primeiros desastres onde a atenção não foi só centrada na ajuda humanitária imediata mas também na dimensão dos trabalhos de recons-

© Architecture for Humanity

Escolas Provisórias – Sri Lanka, 2005 Jason Andersen (Architecture for Humanity) com Alan Wright (Relief International) e Samir Shah (Architecture for Humanity)

«Espero que seja uma longa lista...» / Cameron Sinclair

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trução. Fizemos uma parceria com a Worldchanging.com para angariar fundos para levar os nossos serviços à zona. Esta seria a nossa maior iniciativa até à data, e a mais complexa. Nos dias a seguir ao tsunami encontrávamo-nos em Kirinda, pequena aldeia de pescadores na costa sudeste do Sri Lanka. Samir Shah, um designer que estava no país como bolseiro Fulbright e que em pouco tempo se tornou o nosso representante, chamou a nossa atenção para o projecto. Ele juntou-se às equipas de arquitectos locais para avaliar os danos em Kirinda, fortemente atingida pelas ondas. A equipa ofereceu depois os seus serviços ao governo. Durante os meses seguintes os arquitectos trabalharam com a comunidade para desenvolver um plano adequado, que integrasse os aspectos económicos e cívicos e estabelecesse também uma ligação com as comunidades deslocadas. A Architecture for Humanity comprometeu-se a ajudar a equipa na implementação dos edifícios públicos e comunitários exigidos no plano. Antes disso foi preciso efectuar um levantamento para demarcar aquilo que depois seria conhecido como a linha de 100 metros. Nas primeiras semanas depois do tsunami os governos dos países afectados começaram a demarcar zonas de nãoconstrução. Os regulamentos no Sri Lanka estabeleceram uma zona de protecção de 100 metros. Em alguns casos, os inspectores mediram a partir da linha de água, noutros casos a partir da praia, ou ainda a partir da marca em terra mais próxima. Em Kirinda, a linha era alterada semana após semana. O dia mais complicado foi quando um dos inspectores começou a colocar estacas. Em vez de medir a partir da linha de água, mediu a partir da estrada mais próxima, o que fez com que a linha se deslocasse até 300 metros para o interior em algumas zonas. Muito irritados, os populares começaram a tirar as estacas nas suas costas. Pode parecer cómico, mas de facto esta linha determinaria quais as casas

que iriam permanecer e quais as que iriam ser destruídas. Os arquitectos insistiram. Após quatro meses de trabalho para concluir o plano, os delegados do governo decidiram, numa grande assembleia da comunidade, que a linha teria que ser deslocada ainda mais para o interior, de modo a incluir todos os edifícios do lado costeiro da rua principal de Kirinda – mesmo que isto significasse que a linha estivesse 500 metros mais na terra do que o determinado pelo regulamento do próprio governo. Para a equipa, este foi o último golpe. Depois do seu plano ser aprovado três vezes, os arquitectos voltaram aos estiradores sem a garantia de que a linha permanecesse. Os membros da comunidade perderam a esperança no processo e a reconstrução parou. No fim de Outubro, 10 meses depois do tsunami, sem planos aprovados e os habitantes ainda a dormir em tendas, a linha foi deslocada novamente, desta vez, a 50 metros da linha de água, ou seja, 50 metros mais próximo do que o regulamento original do governo para a zona previa. O mais triste é que aquilo que aconteceu em Kirinda não é um caso isolado; os esforços de reconstrução foram caóticos e incapacitados pela burocracia. Os concursos para projectos, com a participação de centenas de grupos, implicaram atrasos, a necessidade de mais esforço e animosidades dentro da comunidade (só no Sri Lanka há, neste momento, mais de 1000 organizações não-governamentais a trabalhar em projectos relacionados com o tsunami). Vários decretos ministeriais do governo definiram os critérios mínimos e os compromissos de financiamento que as organizações de ajuda podiam fornecer para receber o apoio do governo na construção de habitações e escolas; muitas vezes estes regulamentos entravam em conflito directo e os critérios, constantemente alterados, resultaram em estagnação. Várias organizações receberam protocolos oficiais para o mesmo

© Architecture for Humanity

Escolas Provisórias – Sri Lanka, 2005 Jason Andersen (Architecture for Humanity) com Alan Wright (Relief International) e Samir Shah (Architecture for Humanity)

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projecto no mesmo sítio por diferentes órgãos do governo, complicando a situação e atrasando a construção ainda mais. Antes de Samir Shah regressar aos Estados Unidos, ajudou a lançar uma série de projectos, incluindo uma parceria com a Relief International num projecto para desenhar e construir escolas provisórias. O objectivo era desenhar uma estrutura economicamente eficiente que permitisse que os estudantes voltassem à escola durante os dois anos em que a própria escola estava a ser reconstruída. O projecto foi desenhado por Jason Andersen, estudante que era estagiário no nosso escritório. Com a instrução de Samir Shah e da «Relief International», inspirou-se na cultura local e incluíu sistemas para a recolha de água pluvial. Com um esquema simples e flexível, era possível que as equipas de construção, muitas delas incluindo os pais dos estudantes, adaptassem o projecto a materiais e métodos de construção diferentes. Com o financiamento da Architecture for Humanity, foram construídas 5 escolas na região de Ampara. A Architecture for Humanity está a financiar e a oferecer serviços para um número de projectos de reconstrução em Tamil Nadu, na Índia, zona também afectada violentamente pelo tsunami. Apoiámos igualmente iniciativas de reconstrução comunitárias dirigidas por estudantes, incluindo um esforço conjunto entre a Harvard Graduate School of Design e o SENSEable City Laboratory do MIT, bem como um projecto para construir uma cooperativa de mulheres perto de Auroville, na Índia, que foi a iniciativa de Travis Eby e Lauren Farquhar, dois estudantes da Universidade de Cincinnati. Quando os nossos projectos para o tsunami estavam bem encaminhados, um novo desastre ocorreu. Durante anos, os peritos tinham alertado para os perigos de um furacão da categoria 4 ou 5 que pudesse atingir directamente a cidade de Nova Orleães: «Embora protegido por diques desenhados para resistir aos ventos, Nova Orleães está rodeada por água, e em muitas zonas abaixo do nível do mar. As águas da cheia resultante de um furacão poderiam ficar retidas durante semanas no sistema de diques», avisou um relatório no jornal Times-Picayune em 2002. No dia 25 de Agosto de 2005, o furacão Katrina atingiu Nova Orleães com uma tempestade da categoria 4. Os ventos com uma velocidade de 235 km/h talharam um trilho de destruição ao longo da Costa do Golfo do México. Como previsto, a força da tempestade destruíu o sistema de diques e transformou a cidade numa bacia. As cheias submergiram 80 por cento da cidade, com água até 6 metros de altura em algumas zonas. O desastre excedeu a capacidade das autoridades a todos os níveis e complicou-se ainda mais quando, em menos de quatro semanas, o furacão Rita incidiu sobre o Texas. Em conjunto, estas tempestades serviram como forte indício para a necessidade de planear centros de emergência regionais. Os americanos viam horrorizados as reportagens televisivas com imagens de corpos a flutuar nas águas e milhares de pessoas desamparadas e em condições precárias a implorar por ajuda. As tempestades deslocaram mais de um milhão de pessoas que encontraram abrigo em casas provisórias (ou com amigos e familiares ou através dos cupões de arrendamento da FEMA [Agência Federal de Gestão de Emergências]) em mais de 48 estados. A diáspora complicou a recuperação da zona e foi um obstáculo para os residentes poderem ter opinião no processo de reconstrução. A FEMA propôs parques temporários de caravanas, cada um com capacidade de alojar, a curto prazo, entre 200 a 300 famílias. Em resposta, muitos arquitectos propuseram construir abrigos temporários que pudessem ser colocados perto das antigas residências das famílias para ajudar a acelerar a recuperação. Sendo muito ce-

«Espero que seja uma longa lista...» / Cameron Sinclair

do para prever de que forma a reconstrução se vai realizar, a Architecture for Humanity está a trabalhar com centros comunitários locais para criar centros de recursos que dêem não só acesso à ajuda financeira mas também serviços de arquitectura. A nossa esperança é que estes centros serão lugares onde as famílias se encontram para restabelecer as suas vidas bem como uma comunidade mais sustentável. Apenas cinco semanas depois dos furacões Katrina e Rita, um terramoto catastrófico ocorreu na região de Caxemira e deixou o mundo novamente abalado. Cada um destes desastres tinha uma dimensão que excedeu as possibilidades de resposta das autoridades governamentais e das organizações não-governamentais. Com a sua ocorrência com tão poucos meses de diferença, o resultado foi um desastre dentro de outro desastre. Caxemira foi particularmente afectada pela falta de capacidade de reacção. Enquanto escrevemos este texto, mais de 87 mil pessoas morreram no terramoto, muitas delas crianças que estavam a frequentar as seis mil escolas que foram destruídas, e mais de dois milhões de pessoas foram deslocadas. O verdadeiro perigo ainda está por vir com a expectativa do Inverno brutal do Himalaya. Sem ajuda, dizem as autoridades, milhares podem morrer por falta de protecção e doença. Em poucas semanas, as agências de ajuda humanitária ficaram sem tendas, deixando 500 mil pessoas sem abrigo (uma das tristes ironias é que o Paquistão é um dos maiores produtores de tendas de emergência). Na «Architecture for Humanity», obtivemos graus diversos de êxitos e fracassos, e com cada projecto aprendemos muito e progredimos um pouco mais. No início, pensámos que a organização seria pequena e concentrada em projectos pequenos. Mais tarde, descobrimos que não existem projectos pequenos. E, embora tenhamos construído apenas uma dúzia de edifícios, conseguimos criar um fundamento sólido para um veículo de mudança na nossa actividade. No futuro, o nosso objectivo é a criação de uma rede «open-source». Vezes sem conta encontrámos uma ideia de construção que podia fazer uma grande diferença e que possivelmente ajudaria a aliviar muitas das crises habitacionais, se o seu desenvolvimento fosse permitido. Do mesmo modo que o arquitecto que investiu tempo e esforço consideráveis resiste naturalmente à entrega do seu projecto, temendo que alguém o possa «roubar» para fins lucrativos. Como resultado, estamos neste momento a trabalhar com a Creative Commons - uma organização sem fins lucrativos que oferece licenças de direitos de autor flexíveis para propriedade intelectual - para desenvolver um sistema de doação de serviços de arquitectura e design. Este sistema baseia-se numa licença que concede ao portador a protecção dos direitos de autor no mundo desenvolvido, enquanto lhe dá uma variedade de graus de controlo nos países em vias de desenvolvimento. Com a utilização desta licença, temos a esperança de estabelecer uma base de dados de projectos com «alguns direitos protegidos», incluindo os da documentação da construção, para que possa haver uma distribuição mais ampla de ideias inovadoras. Com o apoio aos projectos, a consulta de organizações não-governamentais e a conexão de profissionais com projectos nas áreas afectadas, estamos a criar oportunidades para os arquitectos se envolverem e levarem os seus serviços àqueles que mais precisam. Demonstrámos que para cada «arquitecto celebridade» existem centenas de outros em todo o mundo que trabalham tendo como ideal não apenas aquilo que estão a construir, mas o modo como o constroem. ^

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Crítica

MARIA MOITA

Trabalhar a escassez em Timor-Leste Depois do referendo de 1999 e da onda de destruição que se seguiu, Timor-Leste foi alvo da atenção do mundo e da ajuda humanitária, que chegou em catadupa pela mão de organizações internacionais e não-governamentais. A partir de 2000, uma grande percentagem dos fundos dos doadores internacionais foi destinada à construção de novas infra-estruturas e à reconstrução de edifícios fundamentais para o desenvolvimento e funcionamento do país. O restabelecimento da rede escolar, largamente afectada pela degradação e destruição de muitos edifícios, foi uma das prioridades dos projectos de reconstrução. É neste âmbito que o Banco Mundial e o Ministério da Educação, ainda sob a tutela da Untaet – United Nations Transitional Administration in East Timor –, desenvolvem o ESRP – Emergency School Readiness Project – e entre 2000 e 2002 cerca de 500 escolas foram recuperadas, ainda que superficialmente, para que as crianças pudessem voltar rapidamente ao ensino. Em 2002 numa fase posterior, de pós-emergência, foi criado o FSQP – Fundamental School Quality Project, que tinha como objectivo recuperar e implementar a qualidade do ensino, quer a nível dos conteúdos programáticos quer dos Escola destruída em Gleno, Ermera

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infra-estruturais. O prazo para o fim do projecto, inicialmente previsto para Maio de 2003, tem vindo a ser alargado e ainda hoje está em aberto. Após a avaliação da rede escolar, foi estabelecido um critério de distribuição geográfica equitativa das escolas a beneficiar de um projecto de construção e/ ou recuperação: uma escola primária por sub-distrito (65) e uma escola básica (ensino primário+ensino pré-secundário) por distrito (13+1). Ao todo, 79 escolas, seleccionadas entre as milhares existentes, foram o objecto de trabalho de uma equipa projectista. Por imposição da entidade financiadora o prazo de conclusão dos projectos era de 6 meses. Esta equipa foi criada no início de 2002 e era composta por arquitectos e engenheiros timorenses, coordenados por arquitectos portugueses* e engenheiros australianos. O critério de selecção das diferentes nacionalidades seguiu uma lógica de proximidade geográfica, cultural e histórica e em nome da pluralidade e supostas afinidades satisfizeram-se os diferentes «lobbies». Trabalhar em Timor-Leste significa um constante confronto com a escassez económica, técnica, material, política, social e científica.


Fazer arquitectura num país em vias de desenvolvimento não é, nem pode ser, pensado da mesma forma que em contextos de desenvolvimento concretizado. Aqui, é premente a necessidade de propor soluções capazes de dar resposta às carências locais de uma forma potenciadora das dinâmicas económicas e socais endógenas. As opções de projecto, tais como a escolha do local de implantação dos edifícios, dos materiais de construção, das equipas responsáveis pelas empreitadas e acompanhamento das obras, devem reflectir sempre uma avaliação criteriosa das necessidades e capacidades de todos aqueles que estão envolvidos directa ou indirectamente no processo de construção. Todas as decisões devem ser feitas com base numa análise sobre qual o impacto que o projecto terá na comunidade local e na percepção dos potenciais que estão aí latentes, para o bom andamento do projecto e desenvolvimento das comunidades. O mesmo problema se coloca em relação aos modelos arquitectónicos a adoptar. Em qualquer lado existem referências arquitectónicas, de raiz vernacular ou correspondentes a modelos importados, relativos à imagem de progresso e desenvolvimento, ou simplesmente modelos que já ganharam a dimensão de arquétipo, como é o caso das escolas na grande maioria dos países subdesenvolvidos. A análise e reformulação do arquétipo da escola de Timor-Leste foram, deste modo, o ponto de partida do projecto. O modelo existente, aparentemente desinteressante, era eficaz na resposta que dava, umas vezes mais feliz que outras, às condicionantes climatéricas, materiais e técnicas locais. Tratou-se de reinterpretar a escola indonésia e propor um novo tipo de escola para Timor-Leste. Este trabalho obrigou ao reposicionamento e reavaliação da nossa praxis arquitectónica e dos respectivos processos conceptuais. Trabalhar num contexto de escassez implica ter

a capacidade de olhar para os recursos e experiências disponíveis, e resistir à tentação de impor, consciente ou inconscientemente, as nossas próprias referências arquitectónicas. Esta é uma questão central quando trabalhamos, ou pensamos sobre, arquitectura em contextos de subdesenvolvimento. Hoje, na era da globalização, arquitectos e projectos circulam pelo mundo promovendo uma geração de modelos globais que se reproduzem indiferenciadamente em todos os continentes. A importação acrítica de modelos arquitectónicos é um problema que também pode acontecer no âmbito da cooperação para o desenvolvimento, onde por vezes e apesar da melhor das boas vontades, os técnicos não têm capacidade de se distanciarem das suas próprias referências e propõem modelos inadequados aos contextos em que estão a trabalhar, pondo em causa a sustentabilidade dos projectos. Sustentabilidade, aqui, é referente à capacidade do projecto recorrer a recursos materiais e técnicos locais e à autonomia que este deve adquirir depois da partida dos agentes externos responsáveis pela iniciativa. Enquanto portugueses e estrangeiros a trabalhar em Timor-Leste, enfrentámos este desafio socorrendo-nos da nossa sensibilidade, de origem ocidental e global, para avaliar e analisar as problemáticas específicas de cada lugar. Reflectindo a máxima «act global and think local» procurámos soluções, a partir dos poucos recursos com que nos confrontamos, que garantissem a melhor qualidade arquitectónica dos projectos. No FSQP as propostas deveriam incluir a implantação das escolas no terreno, o projecto dos edifícios das salas de aula, as estratégias a adoptar na reabilitação de cada edifício existente e respectivos projectos de execução. Como ponto de partida do projecto foi definido que os edifícios corresponderiam a protótipos e que o trabalho de

Interior de Escola Primária existente em Estado Aitura, Ermera

Trabalhar a escassez em Timor-Leste

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Escola destruída em Nitibe, Oe-Cusse

adaptação ao local seria, evidentemente, feito caso a caso. Esta solução foi adoptada por ser a mais eficaz em termos económicos na resposta ao número de escolas a construir num tão curto espaço de tempo. Segundo o programa, as Escolas Primárias (EP) deveriam ter um número mínimo de 6 salas de aula, uma sala de professores e um bloco sanitário. Foram assim criados dois edifícios-protótipo, com 3 salas de aula cada um e respectivas variantes em espelho. As Escolas Básicas (EB) são maiores, uma vez que se destinam ao ensino primário e pré-secundário. Os blocos de salas de aula, apesar de semelhantes, são ligeiramente maiores e são complementados por um edifício principal, onde se instalam os serviços administrativos, laboratórios, biblioteca e sala polivalente. A interligar o edifício principal e os 4 blocos de salas de aulas foi estabelecido que deveria existir um percurso coberto que permitiria que as crianças circulassem na escola protegidas do sol e da chuva. Seguiu-se um difícil trabalho de coordenação e ajuste das exigências da entidade financiadora, das premissas do programa inicial, das vontades dos técnicos timorenses e das propostas da equipa de arquitectos. Após a elaboração de várias versões dos projectos, e dos prazos serem largamente expandidos, chegou-se a uma solução supostamente final. No entanto, ainda hoje os projectos são alvo de alterações. A definição do sistema construtivo dos protótipos partiu, como atrás referido, da análise dos recursos técnicos e materiais endógenos. Foi assim proposto: fundação contínua em betão armado; lajes de pavimento de betão armado e pavimentos em betonilha; paredes em alvenaria resistente (bloco de betão) aparente e apenas pintado; asnas de madeira; cobertura em chapa de zinco ondulada; caixilharia de madeira e lâminas de vidro. Uma varanda na frente do edifício garantia a protecção solar do interior e promovia um espaço de recreio abrigado

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da intempérie. O edifício deveria assentar numa plataforma de pedra, com a altura mínima de 40cm, suficiente para o proteger das enxurradas e ideal para fazer de banco. Era também esta plataforma que permitiria fazer o ajuste do edifício ao terreno, pois poderia transformar-se em muro de suporte. A questão do transporte foi sempre considerada em todas as decisões de projecto. Há pontos do país que são inacessíveis de carro, alguns só são acessíveis a pé ou a cavalo. A opção pelas lâminas de vidro resulta desta problemática, pois transportar vidros de grandes dimensões naquelas estradas era impensável, e deste modo a substituição de um vidro partido seria muito mais fácil. Uma das premissas importantes de projecto era a possibilidade das crianças poderem fazer percursos secos dentro do perímetro da escola. Deste modo, salvaguardava-se o conforto dos utentes e a evitava-se o agravar da degradação dos edifícios. Uma grande plataforma de pedra marcava a entrada da escola e percursos de gravilha interligavam os blocos de salas de aulas. Nas EB esta questão estava assegurada pelo percurso coberto entre edifícios atrás descrito. O projecto das escolas seguia sempre o mesmo princípio, os edifícios deveriam relacionar-se com plataformas estáveis que permitissem aí fazer o recreio das crianças. Quando o terreno era de difícil topografia havia que recorrer a muros de suporte de pedra. A opção por este tipo de muros prendiase com duas razões: o material poderia ser recolhido na zona e a mão-de-obra poderia ser local, de modo a que as comunidades locais beneficiassem de emprego e de um salário, ainda que temporariamente. As estratégias de implantação de cada projecto eram definidas após a visita ao local e sobre a análise de todos os dados recolhidos por todas as especialidades. As viagens proporcionaram não só o conhecimento do lugar das escolas, mas também revelaram o país na sua diversidade


Escola Primรกria existente em Foholulik, Suai

Escola Primรกria existente em Fatumean, Suai

Nova Escola Bรกsica em Ainaro

Trabalhar a escassez em Timor-Leste / Maria Moita

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Nova Escola Primária em Foholulik, Suai

e ruralidade. Díli, na sua qualidade de capital, tem um carácter acentuadamente urbano e é onde se desenvolvem a grande parte das actividades administrativas e governativas do país. O resto do território, apesar de uma beleza esmagadora, caracteriza-se por um profundo subdesenvolvimento e é onde grande percentagem da população vive, com grandes carências. Num contexto onde as habitações são palhotas, construídas com materiais locais e técnicas tradicionais mas de grande precaridade, as escolas, resultantes do investimento do estado central, são na maioria dos casos o único edifício perene a que estas populações têm acesso. Assim, praticamente em todo o país a escola tem uma grande importância na comunidade e, muitas vezes excedendo a sua função original, alberga as actividades colectivas locais. As viagens, autênticas travessias do país, incluíam elementos de todas as equipas e implicavam uma logística de 4 ou 5 carros. A chegada às escolas destas comitivas tinha grande impacto nas populações que rapidamente vinham satisfazer a sua curiosidade. Centenas de miúdos saíam das 2 ou 3 salas de um edifício precário, onde os professores se esforçavam por recriar o ambiente de uma sala de aula. As lições de português estampadas nos quadros de ardósia eram alusivas ao esforço da introdução de uma língua no país que nem os próprios professores dominavam. No local, quando havia edifícios existentes, era feito um levantamento exaustivo do que era ou não recuperável. Nas várias escolas eram avaliadas as condições gerais dos edifícios e do terreno e o Engenheiro ‘civil’ australiano era o responsável por fazer o levantamento do tipo de solo e respectivos problemas de implantação. O regresso ao escritório em Díli implicava um novo desafio. Aqui tinha início a definição das estratégias para o projecto de cada escola e, como referido anteriormente, este trabalho era feito em conjunto com a equipa de engenheiros australianos. O choque cultural era evidente e não exclusivo aos timorenses. O trabalho com os engenheiros australianos caracterizou-se por fricções, tensões e finalmente cedências, pois também eles tinham convicções fortes em relação àquilo que deveriam ser as propostas e qual era o papel de

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cada um no projecto. Os australianos trabalham com «standards», tudo o que foge ao tipificável é para eles um problema de difícil resolução. Isto foi um problema porque apesar do trabalho se basear em protótipos, a escassez, material e técnica, obrigava a que muitas soluções propostas não correspondessem a padrões de construção. Finalmente, contrapondo este método com um mais flexível e criativo, foi possível chegar a projectos mais sustentáveis. Para além do trabalho específico de projecto, a equipa de arquitectos portugueses foi responsável pela formação e acompanhamento dos arquitectos e engenheiros timorenses, que apesar de licenciados, na sua maioria em faculdades indonésias, tinham pouca experiência profissional. A política laboral dos sucessivos ocupantes daquele território foi sempre a de não permitir a responsabilização e autonomia dos locais aos vários níveis da administração. Esta tarefa foi talvez a mais complexa, mas também a mais gratificante. Foi complicado formar quem não queria ser formado ou quem achava que não precisava de ser formado, ou pior, quem não reconhecesse legitimidade àquele que se dizia formador. Depois de uma série de ajustes de posturas e da conquista de respeito mútuo, chegou-se a desenvolver um trabalho de equipa. Finalmente, aquando da nossa partida de Timor-Leste, o objectivo final de deixar o FSQP auto-suficiente na produção de projectos de arquitectura foi concretizado com grande satisfação, Esta autonomia significou uma apropriação dos projectos pelos arquitectos timorenses. Hoje o resultado pode não corresponder àquilo que foi idealizado e não ser um exemplar de referência de arquitectura contemporânea. No entanto, acreditamos que continuam a ser bons projectos de arquitectura e que mais cor-de-rosa ou menos amarelo canário, são um caso de sucesso na implementação de desenvolvimento, quer nas equipas técnicas como nas comunidade locais que passaram a beneficiar de um equipamento capaz de satisfazer algumas das suas necessidades básicas. ^ FOTOGRAFIAS: ALMÉRIO SOARES, LUÍS MIGUEL FARELEIRA, MARIA MOITA E VASCO ALBUQUERQUE * ALEXANDRA SÁ TORRÃO, FRANCISCO VASSALO, LUIS MIGUEL FARELEIRA, MARIA MOITA, PEDRO REIS E VASCO ALBUQUERQUE.


Nova Escola Primária em Waibaba, Suai

Crianças à saída da escola

Trabalhar a escassez em Timor-Leste / Maria Moita

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Crítica

CL AÚDIA TABORDA

Paisagem e Escassez: espaço e experimentação A ideia de paisagem é uma construção cultural. A escassez dos seus componentes naturais primordiais, os quais constroem e definem as características da sua matriz ecológica, não é necessariamente uma condição negativa para a sua formulação, reconhecimento e identificação. A paisagem é uma produção espacial que integra uma ideia de natureza, a qual está associada a um projecto social, político e económico específico. As recentes e crescentes «ecologização» do pensamento sócio-político e discussão sobre a temática ambiental modificaram a experiência social dos espaços de paisagem e reorganizaram os tipos de representação do imaginário de natureza. As actuações políticas advogam a conservação como instrumento operativo e estruturante do ordenamento da paisagem, construindo novos argumentos sócio-espaciais, novas lógicas de territorialidade e definindo usos reciclados da natureza. A culpa é uma emoção que culturalmente se manifesta como denominador comum potencial para mediar as relações entre o Homem contemporâneo e o meio. A ideia de natureza encerra-se na sua existência ontológica e, paradoxalmente, exige uma imagem de natureza despojada da sua própria naturalidade. Não obstante ter sido iniciada por Rousseau no século XVIII a discussão sobre a ideia de que a cultura aliena o Homem da natureza, ainda hoje permanece uma tendência para a negação da condição da existência natural do Homem. Este facto assiste a fundação de quase toda a formação ideológica na qual se originam as chamadas «políticas ecológicas». A partir da dialéctica entre cultura e natureza formulam-se os conceitos «natural» e «artificial», e que são uma expressão cultural sobre o entendimento de natureza e de humanidade. O conceito «natural» convoca um estado de «pureza» resultante da dinâmica da própria natureza, dos processos naturais. Em oposição, «artificial» refere-se a transformação a partir de acção exterior à natureza, revelando uma naturalidade descontextualizada da natureza idealizada, e sendo a artificialidade uma condição originada em processos de humanização, os quais são uma inscrição cultural. Uma solução possível para criticamente confrontar esta dicotomia clássica é uma interpretação antropocêntrica da ideia de natureza e de cultura, em que ambas possam ser definidas como causa e efeito de processos sociais. Consequentemente, a paisagem poderá passar a ser reconhecida como um sistema sócio-espacial natural, contínuo e aberto, onde a dinâmica dos processos ecológicos e culturais transforma situações naturalizadas. A paisagem deixará então de ser entendida culturalmente como uma entidade/ocorrência extrínseca à natureza. Os projectos do Parque Candlestick [Candlestick Point Cultural Park, 1985-1990, 8 Ha], na Baía de S. Francisco, E.U.A., da autoria de George Hargreaves com Mark Mack e Douglas Hollis, e do Parque de Pedra Tosca [1998-2004, 250 Ha], da autoria de Cármen Pigem, Ramon Vilalta e Rafael Aranda – RCR, em Olot, Espanha, surgem como propostas de

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realidades de sustentabilidade em resposta a um dos mais pertinentes desafios que actualmente se coloca ao projecto de arquitectura de paisagem: a escassez de espaço apto para construção dos novos espaços abertos, comum e inclusivo no contexto de uma cultura que socialmente refuta e se alheia dos espaços de paisagem produzidos pela cultura do seu tempo civilizacional, e moralmente elege como referência da sua expressão topológica a designada «paisagem cultural». O Parque Candlestick poderá ser interpretado como um manifesto espacial e ideológico sobre políticas sociais e ecológicas na cultura contemporânea, em que os territórios abandonados são reconhecidos como uma oportunidade potencial para a construção de lugares inclusivos de utilização colectiva. Numa realidade antagónica, também a construção do Parque de Pedra Tosca remete para aquela ideia. Os processos operativos que construíram estes parques são distintos. No entanto, em ambos, o valor específico e intrínseco da realidade da paisagem é o que se propõe à experiência de habitar. No Parque Candlestick instalou-se uma nova ordem ecológica e implantou-se um sistema de espaços e percursos. No Parque de Pedra Tosca identificou-se a especificidade cultural e instalou-se um sistema de interpretação, coincidente com o de percursos. Em ambos, o espaço é intencionalmente marcado através da colocação de elementos construídos (muros, sinalética, chãos) e da realização de acções (cortes de vegetação), que subtilmente indexam à paisagem a sua nova condição. Na construção do Parque Candlestick o tempo ecológico e o tempo cultural são coincidentes. Este facto introduz na experiência da sua realidade uma estranheza que origina um confronto entre as expectativas do utilizador e os códigos culturais inscritos no espaço. Culturalmente, o utilizador alheia-se da factualidade que é a existência destes espaços e recusa a ideia de a vivência do seu quotidiano estar directamente associada à sua produção. No parque a realidade social e a realidade ecológica constroem-se mutuamente, e são resultado da apropriação do espaço de paisagem. É nesta aparente ambiguidade que se argumenta o projecto para o Parque Candlestick, como uma possível arquitectura de paisagem que consubstancia e difunde uma expressão cultural colectiva da ideia de paisagem e de natureza na contemporaneidade, sem se instituir como agenda ambientalista. O Parque de Pedra Tosca propõe a experiência de uma realidade onde fácil e simultaneamente o utilizador se pode reconhecer como produtor e espectador, porque o tempo cultural integra o tempo ecológico. Na configuração da experiência e apropriação do espaço do parque o utilizador tem a possibilidade de interpretar e apreender a paisagem como uma produção de ordem ecológica e social dinâmica, ainda que a identidade sociológica e as características biofísicas formem uma única realidade espacial. A especificidade geomorfológica e rural não foram interpretadas como uma categoria estética, a partir da qual se pudesse idealizar a paisagem ou a Natureza.


Imagens superiores Parque Candlestick, BaĂ­a de S. Francisco, California, EUA

Imagens inferiores Parque de Pedra Tosca, Olot, Catalunha, Espanha

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ESPAÇO

Parque Candlestick

Parque de Pedra Tosca

SÍTIO

Periferia industrial da Baía de S. Francisco, California

Parque Natural da Zona Vulcânica de La Garrotxa, Catalunha

CONCEITO

Parque como espaço-suporte a mútiplas formas de uso e apropriação colectiva do espaço aberto, sem determinismos definidos pela formulação do programa ou inscrição de um «novo» estilo estético. O espaço de paisagem foi interpretado como um instrumento operativo de mudança social, tecnológica, ecológica e cultural no seio de hábitos e convenções

Parque como espaço-suporte a mútiplas formas de uso e apropriação colectiva do espaço aberto. A paisagem existente foi interpretada como uma oportunidade espacial para reconfigurar a expectativa social e política, criando e activando várias situações para exploração e vivência do espaço de paisagem, através da introdução de novos processos de aprendizagem e reconhecimento cultural, no seio de hábitos e convenções

SOLO

Contaminado, tóxico

Fértil

USO

Actividade industrial cessante

Agricultura, activa e sustentável

MATÉRIA-PRIMA

Terra, sementes de prados, betão e destroços/restos das demolições

A própria paisagem, pedra, aço corten

PROCESSO CONSTRUTIVO

Instalação e activação de novos processos ecológicos sobre superfície ampla e estéril, reactivação de processos ecológicos existentes (dinâmica da água).

Constante humanização do território (ou de «culturalização» da natureza), despedregoar do solo, construção de muros, abrigos e «morouços», delimitação das parcelas de terra fértil e arável sobre um solo coberto de pedras expelidas pela actividade vulcânica do Croscat.

Construção de um novo lugar.

Interpretação, reconhecimento e apresentação do lugar existente.

TEMPO

Natural, o que afecta a dinâmica dos processos ecológicos

Social, o que afecta as dinâmicas da ruralidade

ESTRUTURA / Espaço e Ecologia

Definida pelo projecto de arquitectura paisagista

Definida pelo projecto social

RESILIÊNCIA

Processo que limita a experiência de habitar e que explicita uma realidade lúdica

Processo que diferencia a especificidade geomorfológica da matriz agrária e que estrutura a realidade produtiva

O projecto propôs uma compactação funcional, para criar um espaço inclusivo de utilização colectiva onde, no espaço e no tempo, se oferecem múltiplas experiências de habitar, sem anular ou alterar as dinâmicas dos processos produtivos que constroem a realidade. A ideia de paisagem forma-se como signo e significação de uma realidade cultural sem subscrever códigos de índole naturalista ou melancólica. O projecto para o Parque Candlestick desenha uma estrutura espacial de suporte ao habitar num território onde, conjuntamente, escasseavam os componentes naturais primordiais (água, solo, vegetação) e tinha sido profundamente alterada a sua dinâmica ecológica. George Hargreaves, no processo de conceptualização do lugar, identificou o potencial do sítio na situação de escassez que o caracterizava e assimilou-a como referência topológica para criticamente inscrever no espaço o programa de um parque, transformando um território social e ideologicamente negligenciado numa realidade disponível para satisfazer expectativas sociais, colectivas e individuais, de ludicidade. O espaço do parque proposto por Hargreaves parece ter tido origem numa convicção influenciada pelos textos e trabalhos de Robert Smithson1, sobre a materialidade do sítio, [… the best sites for «earth art» are sites that have been disrupted by industry, reckless urbanization, or nature’s own devastation. 1973], e de F. Olmsted2, na integração e exploração do potencial das dinâmicas ecológicas, [… A park is a work (…) designed to produce certain effects upon the mind of men. There should be nothing in it, absolutely nothing (…) which does not represent study, design, a sagacious consideration and application of known laws of cause and effect with reference to that end. 1850], à qual corresponde a ideia de a paisagem construída pelo desenho de arquitectura paisagista se poder constituir sempre como espaço-manifesto ético.

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Num meio de escassez, a paisagem pôde gerar-se como identidade de uma realidade que se constitui como processo transformativo e memória do tempo e do lugar, através da instalação de uma diversidade e sucessão ecológica específicas, sem que o seu desenho tenha sido reduzido a meros gestos formais ou «tiques ecológicos». O espaço de paisagem construído sintetiza e integra criticamente estas ideias, servindo à data, e na actualidade, para questionar sobre o tipo e a estética instituídas numa sociedade de consumo, tradicionalista e naturalista. A estrutura espacial foi definida por dois percursos, construídos em betão, que se bifurcam a partir do espaço de recepção entrada. Estes percursos, simultaneamente definem o espaço-central do parque, uma extensa plataforma semeada e plantada com material vegetal autóctone, e limitam os canais, construídos em terra armada, através dos quais a água da Baía entra no espaço do parque, assegurando a continuidade dos processos de transformação associados à dinâmica da ecologia da água. Adjacente à superfície geometricamente definida como um paralelogramo, o chão materializou-se como um relevo suavemente ondulante, em resposta a uma solução técnicocientífica que é a de selar territórios contaminados para sobre eles se instalar e condicionar novos usos. Sobre estas superfícies, plana e ondulante, os escombros existentes foram utilizados ou reposicionados para marcarem e indiciarem os novos usos potenciais, e indexarem na especificidade ecológica do sítio uma utilidade. O uso e apropriação continuados do lugar reescreveram o sistema de percursos. A um sistema fixo e linear sobrepôs-se um sistema fluído e alterável, guiando sem determinismos a exploração e o habitar do parque. A transformação deste sítio, inicialmente escasso em re-


cursos, num lugar ecologicamente rico e socialmente activo foi escrita por um processo de desenho simples, que resumiu a materialização de espaço à sua essencialidade e funcionalidade. O Parque de Pedra Tosca construiu-se numa realidade antagónica. O sítio mostrava uma singular e densa riqueza ecológica e social. A ideia de escassez estará neste projecto apenas associada à expressão da sua concretização. A inventariação, a caracterização e o desenho foram os processos através dos quais foi possível identificar e marcar espaços-lugares, que pela sua especificidade e peculiaridade oferecem à experiência de habitar uma leitura integrada da complexidade da paisagem. A expressão visível das matrizes ecológica e social no Parque Candlestick e no Parque de Pedra Tosca em nada é comparável. No entanto, ambas resultam de processos de humanização e a transformação do seu espaço em parque recorreu aparentemente à mesma solução, a de simplesmente implantar uma estrutura de percursos, para orientação e suporte da experiência de habitar, colectiva e individual, e a de marcar espaços com referenciação topológica específica. Tal como no Parque Candlestick, no Parque de Pedra Tosca a experiência de lugar é impactante desde a entrada. Aquela origina-se neste espaço de recepção, fortemente marcado e construído, a partir do qual os percursos se distribuem associados a um sistema de interpretação da paisagem, sem que o seu entendimento esteja subordinado a uma trajectória ou a uma hierarquia de orientação do movimento. A peregrinação é o atributo de experimentação colectiva e individual, e as características dos percursos e dos espaços livres denunciam a materialização da intervenção que desenhou um novo programa social na paisagem do Parque Natural da Zona Vulcânica de La Garrotxa. Os processos de desenho, experimentação e construção associados à criação destes parques, apesar da sua especificidade2, operativamente parecem fundar-se numa ideologia análoga, a qual propõe uma nova ordem de identificação e recepção destes lugares como uma possibilidade para formar um ideário colectivo e cultural que continuadamente transforma a ideia de paisagem e de natureza, sem recorrer a construções miméticas. A sua arquitectura definiu uma nova ordem espacial, através de processos de codificação do

Paisagem e Escassez: espaço e experimentação / Claúdia Taborda

vocabulário vernacular e contemporâneo para inscrever na situação de paisagem a nova realidade. Uma realidade que se mostra e se propõe para fruir, sem ser desvirtuada ou dissimulada. Ela é a génese e o argumento da sua espacialidade, e não a réplica de um modelo culturalmente aceite, onde o complexo sistema de funcionamento social e ecológico da paisagem modela a experiência individual ou colectiva no espaço, sem se constituir como memória nostálgica. O parque não ilustra uma representação de paisagem. É espaço de paisagem. Simultaneamente uma ideia cultural e consequência de processos produtivos. A construção destes parques pode ser sugerida como uma referência capaz de ilustrar uma resposta ao apelo contemporâneo, e aparentemente contraditório, que é o de culturalmente sublinhar a veracidade dos processos de humanização subjacentes e produzir uma natureza que simultaneamente aparenta ser selvagem e familiar, próxima e distante, desenhada e espontânea, perigosa e confortante, prolixa e ordenada, viva e sem resíduos. O Parque de Pedra Tosca conceptualmente organizou-se como expressão de uma cultura naturalizada e o Parque Candlestick mostra-se como processo de natureza cultivada. Em ambos não é difícil perceber a produção de paisagem como espaço de representação cultural e como um manifesto social, económico e político, e ético, que em condições culturais específicas procurou reinscrever uma ideia de natureza no espaço disponível. Os sinais de cultura que marcam e caracterizam a sua naturalidade revelam uma interpretação da paisagem como sendo uma infra-estrutura, um processo e um fenómeno de ordem ecológica e cultural. O espaço de paisagem arquitecta-se a partir de uma utopia contemporânea de natureza com equivalente função ideológica. ^ FOTOGRAFIAS DE CLAÚDIA TABORDA

1 Smithson, Robert, The Collected Writings, University of California Press, Berkeley, 1998 2 Beveridge, Charles, Rocheleau, Paul, Frederick Law Olmsted – Designing the America Landscape, Rizzoli, New York, 1995 Referências Bibliográficas — Corner, James, Recovering Landscape. Essays in Contemporary Landscape Architecture, Princeton Architectural Press, New York, 1999 — Poullaouec-Gonidec, Philippe; Paquette Sylvian; Domon, Gérald, Les temps du Paysage, Les Presses de l’Université de Montréal, Montréal, 2003 — Marcel, Odile, Le défi du paysage, Champ Vallon, Seyssel, 2004

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Crítica

JORGE FIGUEIRA

Monumentalidade e Melancolia: a Bela Vista revisitada

1 Tomemos este lugar: Setúbal, «25 de Abril», Aldo Rossi. O conjunto habitacional da Bela Vista, projectado por José Charters Monteiro, expande a cidade para sudeste, entre o «núcleo histórico» e a área industrial da Mitrena. É um projecto de «habitação social» realizado no quadro do Fundo de Fomento da Habitação (FFH), entre 1974 e 1981, primeira fase do denominado «Plano Integrado de Setúbal». À escala do território, o conjunto da Bela Vista inscreve uma «malha urbana» resoluta: edifícios, praças e vias num «cheio» e «vazio» contrastado, quase primordial. Num olhar mais aproximado pode-se verificar, no entanto, que a edificação acompanha o declive suave do terreno, ganhando subtileza nos necessários acertos de cotas e desníveis que irrompem. Em vista área, trata-se de uma «retícula» de escala monumental que se destaca da cidade mais «miúda» ou conturbada. Cada «unidade» é resultado da adição simples de dois fogos com galeria1 dispostos à volta de um espaço quadrangular de 40 metros. Nos cantos que resultam desta operação surgem, sob um porticado e longo rasgo vertical, os corpos de escadas. Dir-se-ia tratar-se de um conjunto de «quarteirões», imprimindo o tradicional traçado da «rua-corredor». Na verdade, trata-se de uma efabulação sobre este tipo, mais projec-

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to do que mimetismo ou reposição historicista. No interior de cada uma destas «unidades» do tipo quarteirão, sucedem-se espaços mediadores entre a casa e a rua, do tipo praça. A ordem precisa que o conjunto imprime ao território não impede a existência de um tecido intrincado de espaços, galerias e acessos. Pelo contrário, a adição modular dos «quarteirões» permite o surgimento de diferenças e variações no interior do mais severo sistema compositivo. Como diz Daniel Vitale, a Bela Vista usa «poucos tipos», mas estabelece «relações complexas entre eles»2. 2 Ao modo rossiano, é no seio de um esquecimento do «novo» que este projecto tem origem. Esquecimento face àquilo que à época é «contemporâneo», mas também face à própria matriz «moderna» codificada na obsessão pelo «zeitgeist», na teoria do «funcionalismo», na exaltação do processo industrial. Este é um lugar do século XX em refluxo face ao «novo». Como escreve Rafael Moneo, «no trabalho de Rossi, há uma deliberada desistência da novidade»3. Este refluxo significa a adopção de uma temporalidade sustentada pelo que é permanente, por aquilo que se instala como memória comum,


por aquilo que nos instiga enquanto colectivo. A arquitectura deve referir-se a valores cívicos, aspirar à gravidade do monumento. A cidade, entendida como arquitectura, é a nossa maior conquista; o sítio onde ganha sedimento o quotidiano e a memória colectiva se refaz. Para repercutir esta visão, o projecto deve fundar-se nas «tipologias» que fizeram a cidade, de onde decorrerá a necessária invenção poética (ou arquitectónica, que é a mesma coisa). «Para aqueles que hoje estão convencidos da neces-

sidade de uma leitura da arquitectura fundada em princípios lógicos»4, como escreve Rossi em 1967, esta é uma das «proposições» centrais. Isto é, o recurso às «tipologias» como mecanismo de análise dos edifícios e matriz do projecto – «para os críticos mais modernos, um conceito fora de moda»5 – permite repercutir a memória da cidade, acrescentando-lhe novos estratos. Aquilo que dá origem ao conjunto da Bela Vista remete para um problema central das cidades industrializadas do

Aldo Rossi, esquissos do plano integrado de setúbal, 1975

século XX: a sua expansão com vista ao realojamento de operários, inicialmente a população prevista para esta área. Nesse caso, estaríamos perante uma «periferia clássica», se se pode dizer assim, o sítio de ninguém onde se instala a classe que é a força axial da «revolução». Na verdade, a Bela Vista virá a ser ocupada por várias camadas de populações carenciadas, num multi-culturalismo já mais próximo do «ethos» do século XXI do que do século XIX. 3 Escreve Daniel Vitale que na Bela Vista há um «aceno à grande tradição pombalina e à racionalidade das cidades de fundação»6. De facto, esta monumentalidade evoca um começo. Mas a Bela Vista aproxima-se mais do esplendor, e da inevitável crise, de um «projecto teórico» – fundar civilidade na periferia – do que da racionalidade típica de um projecto, digamos, moderno. Ou dito de outro modo, retomando Moneo: «Não é o arcaísmo de Rossi um testemunho do esquecimento (..) do real? A monumentalidade, em termos rossianos, é de facto útil para o entendimento da cidade antiga, mas a cidade moderna pode ajustar-se aos mesmos modelos?»7. Dir-se-ia que Rossi faz essencialmente uma arquitectura imaginária a partir de fragmentos do real filtrados e trans-

Monumentalidade e Melancolia: a Bela Vista revisitada

formados pela sua «autobiografia». Num contexto em que se falava da «morte da arquitectura», a obra de Rossi surge, escreve Moneo, como um gesto de «sobrevivência pela evasão»8; ou um escapismo; ou uma espécie de requiem. Será o lado oposto de uma arquitectura imaginária do tipo tecnológico (como os Archigram), mas detém igualmente uma enorme carga onírica, resultante daquilo a que ele próprio chama «racionalidade exaltada»9. O que distingue Rossi é a sua resistência ao «contemporâneo»: seja na encarnação Archigram (uma arquitectura automática), seja na via proposta por Venturi (uma arquitectura inclusivista), para retomar o texto de Moneo10. Na Bela Vista, o gesto fundador impresso no território – a monumentalidade e a sua rossiana melancolia – é capaz de recriar civilidade? Que sentido tem o recurso a uma memória colectiva – ou à sua tradução «tipológica» – se esta não ocorrer aos utentes? Não se trata «apenas» de uma troca do formalismo moderno – a tabula rasa, o «condensador social», os «cinco pontos» – por um outro formalismo igualmente «vanguardista», isto é, igualmente experimental, decorrente e realizado para um utente imaginário? Caminhando na Bela Vista somos perseguidos pela figuração do Cemitério de Modena (1971-1978) talvez o maior

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«poema» de Rossi: o cemitério como «a casa dos mortos»; ou a casa como o cemitério dos vivos. Na Bela Vista sucedem-se os vãos recortados repetidamente, as linhas horizontais marcadas longamente; os «corpos de escadas» como ruínas antecipadas. A passagem abrupta da «tipologia» para a arquitectura, sem mediação ou estilo, aproxima o edifício da imagem da ruína. Estamos perante uma casa ou uma casa abandonada? 4 No destempero radical deste lugar, também por afinidade cultural e linguística, gostaria ainda de evocar Pier Paolo Pasolini. Na obra de Pasolini (nomeadamente na cinematográfica, especialmente em «Accattone», de 1961), estamos perante um tempo longo que surge brutalmente inscrito em personagens suburbanas e desenraizadas. Pasolini cria uma cumplicidade heterodoxa entre o sagrado e o profano; entre o simbólico e o prosaico. «Olhei para dentro da alma de um subproletário que vivia na periferia de Roma e reconheci nessa alma todos os antigos males (e a antiga, inocente bondade da vida pura)»11, escreve Pasolini. Como se nas margens, por eloquência dessa geografia particular, as qualidades humanas surgissem exasperadas, contraídas, agigantadas. O subúrbio é em Pasolini um lugar tomado de uma religiosidade extrema, como se o desenraizamento suscitasse um apuro da «alma». Figurando os mais deserdados num quadro simbólico, Pasolini desenha uma contiguidade entre o catolicismo e o marxismo. Os «inadaptados» e os «marginais» surgem enquadrados por motivos que evocam Giotto, Piero della Francesca, Mantegna ou Caravaggio12. Se em Pasolini, o tempo longo é do domínio do simbólico e do religioso, Rossi refere-o a um «racionalismo exaltado, emocional e metafórico»13 que encontra em Boullée, sobre quem se detém demoradamente. Dir-se-ia que é também num quadro anterior à industrialização, no momento da precipitação da «razão» pelo efeito das «luzes», que Rossi encontra inscrita a «racionalidade exaltada» que procura. A criação de um «sistema lógico de arquitectura»14, que Rossi acomete a

Aldo Rossi, projecto para o plano integrado de setúbal, 1975

Boullée, é um exemplo instrumental para a defesa que faz da «autonomia disciplinar da arquitectura». Isto é, a arquitectura como «ofício», «sempre se apresentou com um corpo disciplinar bem definido, prático e teórico, constituído de problemas compositivos, tipológicos, distributivos, do estudo da cidade, etc.»15. Denunciando aquilo que Rossi chama «as novas fábulas da arquitectura como questão interdisciplinar»16.... 5 Como fui sugerindo ao longo do texto, o conjunto habitacional da Bela Vista ecoa ainda hoje esse discurso e essa prática, inscrevendo-se sem dificuldade no poema rossiano. A Bela Vista pode ser extrapolada para o interior de um sonho: as «praças» como pátios conventuais; o «depósito de água» como «torre do relógio»; a perspectiva alongada de edifícios em repetição, como «racionalidade exaltada», entrando dentro do imaginário surrealista; um certo silêncio. Levantar, como em Pasolini, o «mito» no subúrbio. Os operários que não chegaram a habitar a Bela Vista são também eles figuras míticas; isto é, de alguma forma estão inscritos no desenho deste bairro, na sua presunção circunspecta e melancólica enquanto arquétipo repetido e vibrado sobre as colinas. Na Bela Vista coexistem hoje várias «diásporas». Falamse, segundo José Charters Monteiro, 47 línguas. Das várias associações destaca-se a ligada à Força Aérea, até porque tem um avião militar suspenso num dos pátios. Há ainda um edifício longo e rectilíneo, que não chegou a ser construído. Mas este existe garantidamente na esfera da «arquitectura». O «Bacalhau», como ficou conhecido popularmente, é um edifício desenhado por Rossi e por um grupo de outros arquitectos de várias nacionalidades17. Implantar-se-ia ao longo de uma via paralela à costa como edifício-muro franqueado por três pórticos, programa misto, perfil redesenhado da cidade, monumento feito de paredes, janelas e portas. É também face à ausência deste edifício no horizonte que a Bela Vista se visita. A história da arquitectura está muito perto deste lugar – no que foi construído, e naquilo que permanece suspenso ou prometido nos desenhos. Dir-se-á que nada do que foi dito é essencial para resolver o drama quotidiano da Bela Vista; que tudo o que foi dito escapa à vida dos seus habitantes. De facto, há na Bela Vista muito que escapa à arquitectura. Sobre isso pouco saberei dizer; mas para a arquitectura – no que isso inclui e desencanta –, a Bela Vista é um dos sítios mais angustiantes e vibrantes do nosso país no início deste século. ^ 01 Segundo a proposta tipo de Conceição Redol e José Cadim, estudo realizado no âmbito do Fundo de Fomento da Habitação (FFH). 02 Daniel Vitale. «Fundo de Fomento: Setúbal, Città Nuova«. Domus 655, Milano: Novembre 1984, p. 7. 03 Rafael Moneo. «Aldo Rossi: The Idea of Architecture and the Modena Cemitery« (1976). Oppositions Reader. New York: Princeton Architectural Press, 1998, p. 124. 04 Aldo Rossi. Introduzione a Boullèe. Scritti scelti sull’architettura e la città. 2ª edição, Torino: CittàStudiEdizioni, 1978 (1975), p. 346. 05 Rafael Moneo. Op.cit., p. 109. 06 Daniel Vitale. Op. cit., p.7 07 Rafael Moneo. Op. cit., p.125. 08 Rafael Moneo. Op. cit., p.124. 09 Aldo Rossi. Op. cit., p. 348. 10 Cf. Rafael Moneo. Op.cit., p.123. 11 Pier Paolo Pasolini. Accattone (The Scrounger) 1961. Pier Paolo Pasolini. A Future Life. Associazione «Fondo Pier Paolo Pasolini», 1989, p. 20. 12 Cf. Enzo Siciliano. «From Literature to Cinema«. Pier Paolo Pasolini. A Future Life. Op.cit., p. 6 13 Aldo Rossi. Op. cit. p. 351. 14 Aldo Rossi. Op. cit. p. 346. 15 Aldo Rossi. Op. cit. p. 351. 16 Aldo Rossi. Idem. 17 Participaram no projecto do «Bacalhau», além de Aldo Rossi, Arduino Cantafora, Fabio Reinhart, Gianni Braghieri, José Charters Monteiro, José Sousa Martins, Max Bosshard.

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JosĂŠ Charters Monteiro, conjunto habitacional da Bela Vista, SetĂşbal, 1974/1981

Monumentalidade e Melancolia: a Bela Vista revisitada / Jorge Figueira

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Crítica

ÓSCAR FARIA

Usura energúmena: «arte povera» e capitalismo A primeira exposição de «arte povera» aconteceu na Galeria La Bertesca (Génova, 1967), meses antes dos acontecimentos relacionados com o Maio 68, símbolo das utopias revolucionárias estudantis, filosóficas e políticas. O movimento italiano tinha como antecessores três artistas – Alberto Burri, Lucio Fontana e Piero Manzoni –, um cineasta, Pier Paolo Pasolini, e um contexto no qual pontuavam as lutas da esquerda extraparlamentar, que tinha uma grande base de apoio no meio operário. A «arte povera» foi um movimento não só artístico, mas também político. Uma guerrilha, segundo a analogia do seu principal teórico, o crítico de arte Germano Celant; um combate levado a cabo quer contra a tecnologia e o puritanismo vislumbrados na produção da escultura minimal, quer em oposição à sociedade do consumo. A intenção de criar objectos ou situações artísticas a partir de materiais naturais, quotidianos, «pobres», que, por vezes, eram relacionados como possuidores de atributos relacionados com o favorecimento de trocas entre polaridades energéticas contrastantes1. No manifesto «Arte Povera, Appunti per una Guerriglia»2, Celant promove uma «arte pobre relacionada com o presente, a contingência, dos acontecimentos anti-históricos.» À rejeição do racionalismo, e da dimensão estetizante a este associada, os artistas do movimento opunham a exaltação não só do «carácter empírico e não especulativo da investigação», mas também «o dado real, a presença física de um objecto, o comportamento de um sujeito»3. Trinta anos depois, o mesmo Celant escreve em texto publicado no catálogo da exposição «Circa 1968», que inaugurou o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto: «O ano de 68 transformou-se numa irrealidade, ligeira e absurda, exactamente porque se apresenta como impossível de ser contada no plano da experiência». E acrescenta: «Na realidade, naquela época todas as diferenças entraram em crise, incluindo a possibilidade de declarar o ano de 68 um momento histórico diverso.»4 O crítico italiano defende ainda que por esses anos, entre finais dos anos 60 e início da década de 70, «as linguagens e a comunicação emanciparam-se do projecto unívoco e, literalmente, explodiram em fragmentos multidireccionais, que conduziram à desconstrução de todas as artes, e até mesmo de todos os sistemas de definição do familiar e do político, do individual e do sexual, quase como se a finalidade da existência criativa e intelectual, cultural e social, fosse a busca de uma equivalência, na qual as entidades se reflectissem indiferentemente umas nas outras.»5 Um outro crítico, o alemão Benjamin H. D. Buchloh, apesar de considerar equivocadas as leituras realizadas pelos protagonistas da «arte povera» acerca do minimalismo norte-americano, nomeadamente acerca da ênfase colocada na tecnologia enquanto orientação principal do movimento, conclui terem os artistas italianos entendido melhor a dialéctica do iluminismo que os seus colegas do outro lado do

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Atlântico: «Ao contrário destes, os italianos não sofreram das delusões do processo tecnológico unilateral; mais importante, eles aplicaram-se continuamente na definição de práticas artísticas que gerassem a consciência do sujeito acerca do lugar e identidade como um cruzamento contraditório de recuos e avanços, de memórias e prospecções.»6 É, portanto, contra o excesso que se posiciona arte povera, fazendo desse confronto um dos seus modos de afirmação no contexto da época. À sociedade do espectáculo, ao capitalismo, à guerra, à tecnologia, os artistas do grupo opunham iglus (Mario Merz), objectos menos (Oggetti in meno, Michelangelo Pistoletto), esculturas «para purificar as palavras» (Gilberto Zorio), cavalos numa galeria (Jannis Kounellis). Tratavam-se sobretudo de meios para activar a percepção do espectador, a memória, o instinto e o inconsciente deste, num diálogo constante com a arquitectura, os arquétipos, a natureza. Um dos trabalhos que mais se destacam desse período onde se dá uma mudança de paradigma na história da arte do século XX, «circa» 1968, é «Ódio» (1969), de Zorio, que consiste literalmente na inscrição desta palavra, a golpes de machado, numa parede: «A ligação íntima entre a natureza de fenómenos dinâmicos e o imaginário encontra-se nas «figuras» e nas «tensões» de Gilberto Zorio», nota Celant 7. E continua: «Escrever «ódio» a golpes de machado, gravar a mesma palavra na pele por pressão de um peso, ou construir uma estrela com a ajuda de cinco dardos, mostra a vontade de realizar uma osmose entre termos distintos, tais como a visão e a passagem de energia»8. O próprio artista sublinha que, na sua obra, a energia não é uma noção abstracta ou puramente física; ela reenvia para uma dimensão humana, antropológica, intrínseca à história. Daí, a utilização da palavra «ódio», semanticamente carregada de «estratos psíquicos», ou do «punho cerrado», que no plano iconográfico, segundo Zorio, «regurgita de significações»9. É também por esses anos, mais exactamente em 1972, que surge «O Anti-Édipo», livro seminal de Gilles Deleuze e Félix Guattari, que ostenta como sub-título «capitalismo e esquizofrenia»10. No âmbito do debate que se sucedeu à publicação dessa obra, Jean François Lyotard escreveu o texto «Capitalismo Energúmeno». Aí lê-se: «É o capitalismo que, destruindo com as suas torrentes de dinheiro e trabalho as regiões mais interditas, a arte, a ciência, as profissões e as festas, as políticas e os desportos, as imagens e as palavras, o ar, a água, a neve e o sol, as revoluções bolcheviques, castristas, maoístas, é o capitalismo que percorrendo essas regiões faz aparecer como figuras libidinais os dispositivos codificados que regiam anteriormente a economia, no mesmo instante que as faz cair em desuso».11 No mesmo ensaio, o filósofo francês recorda que para Deleuze e Guattari o despotismo gera terror e o capitalismo engendra cinismo. Adiante, ao falar da pintura, aponta: «O que faz o seu valor é a sua permutabilidade, portanto a sua situa-


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Gilberto Zorio, «Ódio», 1969

Usura energúmena: «arte povera» e capitalismo

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ção no lugar pictural que é o mercado da pintura»12. E prossegue: «Fora disto é absolutamente impossível determinar um valor intrínseco do objecto pintura moderno»13. E, ainda mais à frente, em conclusão, J. F. Lyotard fala de um deslocamento, de um transporte da força que o «Anti-Édipo» representa no discurso: «No dispositivo libidinal que avança, não é ter razão, isto é, colocar-se no museu [um dos lugares, tal como o teatro e a escola, onde se instala tudo o que não é esquecimento, aquilo que é esquecido], que é importante, mas sim poder rir e dançar».14 «Mai 68 n’a Pas Eu Lieu» é o título de um pequeno texto de Deleuze e Guattari, no qual estes afirmam, a propósito das consequências daquele «acontecimento puro», da (in)capacidade da sociedade francesa em assimilá-lo: «Cada vez o possível foi fechado»15. E num outro momento partilhado, «Capitalism: A Very Special Delirium», é Deleuze que sublinha: «Capital, ou dinheiro, atingiu tal nível de insanidade que a psiquiatria apenas tem um equivalente clínico: o estado terminal»16. O filósofo detecta mesmo na organização do poder – e não na ideologia nem nas distinções ou oposições económico-ideológicas – a origem desse delírio, porque ela é a maneira através da qual a «libido investe o económico, persegue o económico e alimenta as formas políticas de repressão»17. Os autores de «Mille Plateaux» dizem ainda, com veemência: «Não há ideologia, é uma ilusão»18. Quase quatro décadas após as primeiras exposições de «arte povera», esta entrou no regime do esquecimento, os seus movimentos iniciais fecharam-se em si ou foram fechados pelos próprios, com a sua participação no sistema que contestavam ou propunham reformar. Os objectos produzidos são coleccionados, revistos em várias exposições, documentados em inúmeros livros e catálogos, as próprias leiloeiras vendem a preços astronómicos as obras daquele período – em Fevereiro de 2005, em leilão da Christie’s, o iglu «object cache-toi» (1968-1977), de Mario Merz, foi vendido por 1 148 400€, cerca de 200 mil contos, a quantia que o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, tem para fazer aquisições durante um ano. Entre 1963 e 1965, o italiano Luciano Berio compôs a obra Laborintus 2, uma encomenda da O.R.T.F. para ser estreada durante a evocação do sétimo centenário do nascimento de Dante. A peça, segundo o compositor, tinha como principal referência formal o conceito de catálogo, sendo este tomado na acepção medieval – veja-se o exemplo das ‘Etimologias’ de Isidoro de Sevilha, também citadas em Laborintus 2, obra na qual Berio relaciona sobretudo «os temas dantescos da memória e da usura, quer dizer, a redução de todas as coisas a uma unidade de valor.»19 É essa mesma usura que Ezra Pound, também recitado em Laborintus 2, denuncia no célebre Canto XLV, na qual, uma vez mais, o poeta anticapitalista norte-americano, dá curso «à infinita deambulação da logopéia, «a dança do intelecto entre as palavras» (…).» Nos versos desse texto, o escritor evoca a tradição da pintura para provar que as produções artísticas revertiam para benefício da comunidade «quando ainda se não faziam sentir os resultados negativos da usura – para Ezra Pound, antes da Reforma, pois, desde então, a usura teria, inclusive, deixado de estar vedada pela Igreja Católica.»20

Usura energúmena: «arte povera» e capitalismo / Óscar Faria

«(…) com usura homem algum vê Gonzaga seus herdeiros e concubinas pintura alguma é feita para ficar nem pra com ela conviver só é feita a fim de vender e vender depressa (…)»21 Em 1969, Zorio, a golpes de machado, abriu brechas numa parede; cortes que, no fim dos violentos gestos, formavam a palavra ódio. Uma arte povera – um termo com reminiscências quer religiosas (franciscanismo, budismo, sufismo), quer da consciência de classe (o proletariado) – nascia desse modo, com «apontamentos para uma guerrilha», de Celant; a pergunta leninista «que fazer?», recuperada por Merz; torsões, de Giovanni Anselmo; uma cunha de ferro pregada numa árvore, «Escreve, Lê, Recorda», de Giuseppe Penone (autor de uma obra com a qual a do português Alberto Carneiro pode ser colocada em profícuo diálogo); «o mundo reflectido», de Pistoletto, etc. Quase quatro décadas depois, independentemente dos desejos de cada artista, o movimento então iniciado em Itália surge recuperado pelos mecanismos relacionados com a indústria cultural. No budismo zen, durante um período de meditação sentada (zazen), quando um monge começa a ficar fatigado, tenso, desconcentrado, recebe, nos ombros ou nas costas, um golpe desferido com um pau (kyosaku) por um outro participante no sesshin (retiro): não se trata aqui de punir um aluno, mas antes de o estimular, na tentativa de nele revelar as forças latentes. «No zen dizem: Se alguma coisa é enfadonha após dois minutos, tenta-a durante quatro. Se ainda for enfadonha, tenta-a durante oito, dezasseis, trinta e dois, por aí fora. Eventualmente, acaba-se por descobrir que não é de todo enfadonha mas muito interessante»22 No leitor de cd’s, em loop, a música dos Optrum – Yoichiro Shin (bateria) e Atsuhiro Ito (optron máquina visual/sonora fabricada em casa). ^ 01 in «groupes mouvements tendances de l’art contemporain depuis 1945» (École Nationale supérieure des Beaux-Arts, Paris, 2003). 02 Celant, Germano. «Arte Povera, Appunti per una Guerriglia» (in Flash Art, Roma, nº5). 03 Celant, Germano. «Arte Povera» (in catálogo da exposição «Arte Povera E Im Spazio», Galeria La Bertasca, Génova, Setembro, 1967). 04 Celant, Germano. «1968: em direcção a uma diversidade global» (in catálogo da exposição «Circa 1968», Museu de Arte Contemporânea de Serralves, Porto, 1999). 05 idem 06 Buchloh, Benjamin H. D. «1967b The Italian Critic Germano Celant mounts the first Arte Povera Exhibition», in «art since 1900» (Thames & Hudson, Londres, 2004). 07 Celant, Germano. «Une Histoire de L’ Art Contemporain en Italie. De la Réduction à l’ Excès» (in Art Press, Paris, nº37, 1980). 08 idem 09 De Sanna, Jole. «Gilberto Zorio, an Interview » (in Dota, Milão, nº3, 1972). 10 Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. «L’Anti-Œdipe» (Éditions de Minuit, Paris, 1972) 11 Lyotard, Jean-François. «Capitalismo Energúmeno» (in, «Capitalismo e Esquizofrenia – dossier Anti-Édipo (Assírio & Alvim, Lisboa, 1976) 12 idem 13 ibidem 14 ibidem 15 Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. «Mai 68 n’a Pas Eu Lieu» (in «Deux Régimes de Fous», Éditions de Minuit, Paris, 2003) 17 Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. «Capitalism: A Very Special Delirium» (in «Hatred of Capitalism – A Semiotext(e) Reader», organizado por Chris Kraus e Sylvère Lotringer, Semiotext(e), Los Angeles, 2001) 18 idem 19 Berio, Luciano. (in «Laborintus 2», cd, Harmonia Mundi, Paris, 2000) 20 Amaral, António Botelho de. «Ezra Pound – Escrita Inovadora em The Cantos» (Edições Cosmos, Lisboa, 1988). 21 Pound, Ezra. «Os Cantos», tradução de José Lino Grünewald (Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2002, 2ª edição). 22 Cage, John. «Silence: Lectures and Writings» (Wesleyan University Press, 1961).

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Farmácia homeopática

Claudia Amandi / Abrigos de Memória / 2003 / desenho digital

Crítica

JORGE CARVALHO

1 Na última década, as farmácias das ruas das nossas avós foram todas remodeladas e apresentam agora um estilo actual. Mas é no serviço prestado que temos um barómetro de uma transformação cultural que poderá ter maior alcance. Todos conhecemos alguém que conta esta história. Passou meses em médicos, tratou-se longamente com doses de fármacos e começou a ficar desiludido com os resultados. Ouviu recomendar o homeopata, o acupuncturista ou o massagista oriental (não é que seja «tudo a mesma coisa»), decidiu tentar e começou a sentir pelo menos alívio dos sintomas. Confia nele porque invoca uma abordagem científica, apesar de diferente da abordagem mais técnica do médico ortodoxo. Foi através dele que ouviu falar pela primeira vez de utilizar as substâncias artificiais para favorecer subtilmente o funcionamento dos sistemas naturais, em vez de esperar que as substâncias artificiais os substituam. Para quem tinha passado a sua vida a ver televisão, onde já tinha visto documentários sobre a vida selvagem e sobre o corpo humano, este conceito pareceu aceitável. A tecnologia e a sociedade da informação deixam também este tipo de marcas. A história repete-se tanto que, hoje em dia, a maior parte das farmácias oferece produtos homeopáticos e herbanários. E não só, podemos também comprar aromaterapia e outros produtos «naturais» que aparentemente facultem saúde e bem-estar ao nosso corpo. Na vida

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suburbana, entre vias rápidas e condomínios fechados, é através dos artefactos que re-descobrimos a natureza. 2 Uma re-descoberta da natureza também foi feita, passo a passo, pelos arquitectos. Em 1973, quando a Opep decidiu cortar o fornecimento de petróleo ao Ocidente, a escassez de recursos energéticos levou os arquitectos a experimentar projectar com a energia do sol e com o clima. Para muitos, esta foi a porta de entrada no conhecimento dos processos naturais. Desde aí, quantos edifícios bioclimáticos se têm construído! Quantas casas energeticamente eficientes! Mas a cultura arquitectónica pouco mudou. A cidade modernista, seja racionalista seja organicista, já incluía a natureza. Esta última representava-se então intocada e por razões higienistas ou sentimentais existia consenso quanto à sua utilidade para o homem. Já passado o pico de escassez de recursos, os meios de comunicação mostraram o buraco do ozono como um alarme sobre a acção do homem no ambiente, chegando ao ponto de fazer sentir o clima como uma ameaça. O conhecimento generalizado das consequências das nossas acções no ambiente ajudou a criar a expectativa, difusa, de uma aproximação à natureza para além do sol e do clima. Por razões morais, comerciais ou consumistas, esta sensibilidade tem crescido nos diversos in-


tervenientes do processo de produção do ambiente construído. Actualmente, a natureza inspira muitas linguagens arquitectónicas, metáforas e imagens, todas elas válidas, mas também depressa consumidas e substituídas: organismos artificiais, hibridismos, topografias artificiais e formas biomórficas. A construção em madeira aparece intensamente nas revistas europeias de arquitectura. Sem darmos por isso, os vernizes que utilizamos são aquosos, por imposição legal. E até apareceram serviços ligados à arquitectura e ambiente, como a certificação do Breeam, que é um sucesso no Reino Unido e do qual se esperam «franchisings» no resto da Europa. Ideias de projectar com a natureza pairam no ar, por entre inúmeras contradições, indefinições e fragmentos. 3 A nossa percepção da natureza é dominada, desde meados do século XIX, pela ciência. Nessa época, a ciência provocou fortes abalos filosóficos e cosmológicos com provas do passado animal do homem e da história da evolução. Era difícil admitir que o homem tivesse a sua origem num pré-hominídeo cujo sucesso como espécie se devia ao seu comportamento selvagem. Desde então, a ciência que tem causado mais fortes repercussões é a Ecologia. Define-se como uma ciência interdisciplinar da natureza, estudando como os fenómenos se organizam num sistema. É pela Ecologia que compreendemos que o homem faz parte dos processos físicos e biológicos da natureza, que a sua própria história está inserida neles e que no seu conjunto estes processos formam um sistema evolutivo de instável equilíbrio. O homem e a restante natureza são parceiros para a sobrevivência e evolução. Desde o início da civilização que a natureza escapa ao entendimento do homem. Durante milénios, o homem associou a consciência da sua singularidade a uma ambição de domínio total sobre a restante natureza, ao ponto de o transformar num objectivo e numa moral. A ecologia, enquanto ciência, não estabelece uma ética. No entanto, ao mostrar o homem como parte dos ecossistemas, ela permitiu questionar a legitimidade da moral antropocêntrica e originou uma ética baseada no valor do ambiente como entidade unitária. Em vez de conservarmos o ambiente pelo seu valor instrumental para o bem-estar dos seres humanos, passamos a intervir no ambiente de forma intencional para o tornar mais adequado, para adequá-lo melhor ao homem e aos demais seres vivos.

sempenho foi investigado e as relações entre arquitectura e ambiente foram definidas como a utilização de recursos e a produção de resíduos ao longo de todo o ciclo de vida do edifício. Mas na prática a consideração exaustiva de todas estas relações põe dificuldades frustrantes ao arquitecto, porque ele não controla todo o processo de decisão: o processo depende de sistemas a montante da arquitectura e é interdisciplinar; e o projecto, tradicionalmente, é visto como respeitante somente à fase de construção. Por isso, para muitos, a aura de heroísmo que este compromisso com a ética confere tem sido suficiente para legitimar uma moratória da investigação expressiva ou cultural. O que se pode ler nestas arquitecturas é uma matriz cultural não assumida: na verdade, o ambiente a que tendem a dar importância é o ambiente natural, e só raramente o que envolve o domínio do construído. Pressupõe-se assim uma dicotomia entre uma natureza intocada e os artefactos. Mas a natureza intocada não existe. O homem, um dos factores dos ecossistemas, nunca deixa de agir neles com a sua singularidade: a cultura. E as ideias que o homem tem da natureza, incluindo a que a ciência formou, são também construções culturais que estão sempre presentes. Mesmo no lugar hipotético onde só exista o homem e os seus artefactos, e onde projectamos exclusivamente mais artefactos, projectamos sempre com a natureza.

5 É na cidade que o arquitecto mais intervém no meio ambiente. É aí que os homens se concentram, no mundo actual, e é esse o lugar mais intenso da sua cultura. E é precisamente como construção cultural que a arquitectura actua com os seus próprios meios, com mais autonomia, e tem maior capacidade de semear transformações. A natureza tem sido representada através do corpo, do clima, da terra, da água e dos restantes seres vivos. Mas está também presente no sonho, na provocação, na socialização, na transformação e desenvolvimento permanentes que fazem parte da cultura do homem. A ecologia não determina os temas da vida em sociedade. Re-enquadra-os, não com uma série de renúncias, mas com transformações dos conceitos da escassez, do conforto, da escala de tempo, da utilidade dos artefactos, do valor das imagens, da adequação da tecnologia ou da mobilidade. Será precisamente na articulação com estes conceitos que projectar com a natureza é mais complexo, mas será também mais radical e seminal. Esta é também intervenção intencional, nem que sejam indirecta, no ambiente, 4 para o tornar mais adequado. O essencial da arquitectura não se define unicamente com Não há uma linguagem que corresponda a esta intenção, a ética, porque a arquitectura gravita mais em torno de misté- todas são possíveis. As possibilidades actuais estão em experios do que de certezas reconfortantes. Mas a ética enquadra rimentar sem preconceitos o património histórico e comum o campo de referências, considerações e relações que utiliza- de tipos, sistemas, formas, etc. que está disponível para ser mos para projectar. As relações sociais, a cidade, os diferenutilizado, tanto como experimentar novas possibilidades de tes tipos de conhecimento, a tecnologia, a memória, o humor, actuação, sem nostalgia, nem resistência à mudança, nem ou seja, todas as referências da cultura do homem sempre fo- culto do novo, nem futurologia. ram valorizadas moralmente na arquitectura, como actualA arquitectura não define em exclusivo a cultura - ela mumente também o são a escassez de recursos, os restantes da de maneira difusa e fragmentada -, mas propõe sentidos seres vivos, os fluxos de energia na natureza, o corpo ou o cli- globais que mais nenhuma forma de conhecimento ou expresma. O campo tornou-se mais vasto, abriram-se mais possibili- são pode propor. Aquilo que é próprio do campo da arquitectudades expressivas. Mas ninguém na arquitectura sintetizou ra é criar através do espaço cultura provocadora, estimulanna sua obra a complexidade desta abrangência como por te, entusiasmante, inspiradora, e ética. ^ exemplo Joseph Beuys fez nas artes plásticas. Este texto apoiou-se na leitura de outros Na arquitectura, a percepção apocalíptica do estado do — McHARG, Ian L. – Proyectar con la naturaleza. Barcelona: ed. Gustavo Gili, 2000 Luis-Fernández – Fire and memory: on architecture and energy. ambiente levou Buckminster Fuller a conceptualizar as ques- — GALIANO, Cambridge, Massachussets: ed. MIT Press, 2000 — THAKARA, John – In the bubble: designing in a complex world. Cambridge, tões do desempenho ambiental. Desde então, o tema do deMassachussets: ed. MIT Press, 2005

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LACATON & VASSAL

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JEAN PHILIPPE VASSAL CONVERSA COM JOSÉ ADRIÃO E RICARDO CARVALHO, PARIS, 24 MARÇO 2006. Num texto escrito por Richard Rogers e Renzo Piano sobre o Centro Georges Pompidou, os autores referiram que no projecto desenvolvido para Les Halles nos anos 70 houve uma clara estratégia de provocação em relação ao ambiente burguês do bairro. Gostaríamos de saber se da vossa parte existe também uma estratégia de provocação? Penso que o Centro Georges Pompidou é um dos edifícios mais brilhantes que temos em Paris desde há muito tempo, e é estranho que os autores tenham pensado que houve um posicionamento de provocação quando pensaram o edifício. Para mim, o edifício foi, e é, muito mais que isso. Pode ser que eles quisessem ter criado tensão, e isso pareceme interessante, mas não é a mesma coisa que provocação. Por exemplo, ao fazermos o projecto de remodelação do Palais Tokyo, num dos sítios mais burgueses de Paris, esta questão da tensão foi-nos colocada. Mas nunca a pensámos como provocação. Penso que se pode fazer arquitectura de modo simples, com delicadeza e generosidade e mesmo assim fazer coisas radicais, que provoquem tensões. Para mim, a arquitectura tem de ser generosa e cuidar das pessoas. Tem de ser amável? Sim, tem de ser amável. No entanto, o projecto para o Palais Tokyo pode ser entendido como tendo algo de provocatório, quer em relação à intervenção nos espaços interiores, quer na proposta que fizeram para o exterior, em torno do edifício, com espaços de hortas para serem cultivados pelos habitantes da vizinhança. Normalmente são coisas que não ligam, hortas e edifícios institucionais. As hortas não são um projecto de arquitectura. Realmente foi possível fazê-lo, mas foi um projecto desenvolvido por um artista que já construiu inúmeros projectos de hortas noutras cidades de França. Nós estivemos envolvidos no processo, porque pensámos que era uma abordagem interessante, mas não é projecto nosso. Mas a estratégia é semelhante à vossa. Em relação a estes jardins podemos utilizar a mesma palavra, eles são amáveis. Talvez o que tenha acontecido é que as pessoas que vivem na vizinhança vão ao edifício e são recebidas cordialmente. No início havia no restaurante mesas comunitárias, largas e compridas. Isto permitia que os embaixadores das inúmeras embaixadas que existem à volta comessem em conjunto com os directores do museu, com os artistas, com as crianças e com as pessoas que vivem no bairro. A ideia foi tentar que alguma coisa aí acontecesse. Parece-me que o Centro George Pompidou funciona desta forma. A provocação pela provocação não me parece boa ideia. Esta provocação pode ser interessante na relação com o cliente, mas não em relação às pessoas que vão usar o edifício. Parece-me interessante a ideia de batalha ou conflito com o cliente, de modo a conseguir mudar a sua maneira de pensar ou as ideias preconcebidas que existem acerca das coisas, em relação a um museu ou a um projecto de habitação social. E muitas vezes conseguimos mudar a sua atitude. O Palais Tokyo está situado numa envolvente relativamente fria. O interior é um espaço enorme e funciona quase como uma ilha, um mundo diferente do contexto onde está inserido, mas que ao mesmo tempo não está completamente fechado. Tem um ambiente que é diferente, que se produz através das relações que se estabelecem com o exterior, porque se vê o céu, o sol. Tem hoje mais entradas de luz do que tinha antes da nossa intervenção. Tentámos quebrar a monumentalidade do edifício com pequenas coisas, criando a possibilidade de fazer ligações sem utilizar degraus, tornando deste modo o edifício mais amigável.

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© Lacaton & Vassal

Proposta de ambiente para o Palais Tokyo, Paris

Isto tem a ver com o meu interesse por estufas. Estufas de pequena e grande escala, como aquelas onde existem flores tropicais. Penso que em Lisboa existe uma muito bonita, não a conheço. Gosto desses ambientes porque nos sentimos noutro mundo devido à membrana muito fina que o envolve, no interior o clima muda suavemente e tudo parece muito frágil. No Palais Tokyo trabalharam com um sistema aberto, ao contrário de outros posicionamentos que procuram definir totalmente os espaços e a sua utilização deixando pouca margem para interagir de modo livre, espontâneo, com o edifício, relegando o visitante para um papel de mero espectador. Essa foi uma das discussões que tivemos com os directores do museu. Hoje pede-se muitas vezes aos arquitectos para desenharem museus ou espaços de exposição à imagem do «white cube». Para mim era impossível imaginar o Palais Tokyo puro e branco. A nossa decisão foi a de não ligarmos de todo às paredes. Começámos a projectar como se não houvesse paredes. Deixámos de pensar nelas. Como não tínhamos grande orçamento para obras, elas tornaram-se secundárias e deixaram de ser um problema. Depois disso começámos a considerar as paredes brancas de novo, mas no início elas não existiam e para mim essa foi a abordagem mais natural que podíamos ter em relação àquele espaço.

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© Lacaton & Vassal

Proposta de ambiente para o Palais Tokyo, Paris

© José Adrião

Jean Philippe Vassal, Paris, 24 Março 2006

Lacaton & Vassal

A vossa abordagem tem muito mais de estratégia do que desenho. Fica a sensação que vocês não desenham muito. Desenhamos, o que não queremos é que o desenho apareça. Para nós não é o principal, apesar de saber que o trabalho do arquitecto implica saber desenhar - mas não queremos mostrá-lo. Podemos falar sobre o desenho, mas não é importante no nosso processo de trabalho. Para nós o importante não é o facto de utilizarmos madeira, ferro, ou tijolos, ou vidro; isto são para nós coisas banais. Os verdadeiros tijolos para nós são as situações. Podemos fazer coisas diferentes, combinar, mudar, transformar. Essa é a materialidade com que queremos trabalhar. Nos vossos projectos pensam mais na questão de «o que fazer?» do que «como fazer?». «O que fazer?» e «porquê?». (risos) Quando começamos a trabalhar torna-se um pouco difícil esta questão do «como?». Mas cada vez mais temos uma espécie de confiança de que tudo é possível, e se pensarmos de forma assertiva descobrimos sempre a solução para o problema. Portanto, como temos a confiança em relação ao resultado, não nos temos de preocupar com o «como». Olhamos à volta para o «atelier» e não se vêem maquetas. Não as usam como processo de trabalho? Muito raramente. Fazemos maquetas mas só quando o projecto está terminado. Ou porque o cliente a quer, ou para alguma exposição. Não utilizamos maquetas para a concepção dos projectos. E isso, a meu ver, é muito importante. O arquitecto tem de trabalhar com escalas enormes nos projectos: edifícios, casas, planos de urbanização, cidades. E como o arquitecto não consegue sentir esta dimensão tem de produzir maquetas ou desenhos à escala. Fico apreensivo com esta questão da redução da realidade. Sinto um grande perigo com o facto de um edifício poder ser um cubo de açúcar, que se começa a rodar e a mexer de um lado para o outro indiscriminadamente. Imaginem as pessoas no interior a serem abanadas em todas as direcções só porque o arquitecto tem o cubo de açúcar na mão. É uma simplificação impressionante da realidade. Por isso não costumamos utilizar maquetas e isso é uma lição aprendida com um arquitecto com que trabalhei, Jacques Hondelatte. Ele dizia que o projecto é muito mais preciso na cabeça do que nos desenhos ou nas maquetas. A melhor situação do projecto dá-se quando ele está na cabeça ou então quando está acabado. Porque na cabeça está ao mesmo tempo muito preciso mas também pode mudar: está num momento em que a

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Palais Tokyo, Paris, 2000/2001, antes e depois da intervenção

flexibilidade ainda é possível. Quando comecei a trabalhar com ele, ele dizia: «se desenhares uma linha tens de estar totalmente seguro do que vais desenhar, senão não desenhes». Actualmente estamos interessados em trabalhar com fotografia, com muitas fotografias. Quando se tira uma fotografia está-se no sítio e sente-se o ambiente, está-se dentro. Depois podemos trabalhar a fotografia, ampliá-la, duplicá-la, combiná-la com outras. Podemos combinar uma fotografia de um restaurante tailandês com outra de um terraço e experimentar para ver o que dá. É neste tipo de situações que gostamos de trabalhar. Não são imagens virtuais, mas imagens reais que se podem combinar e misturar de forma diferente. Penso que todos os lugares que nos impressionaram no mundo são memórias que se tornam nos materiais com que queremos trabalhar nos projectos. Na entrevista que deram à revista «2G», no número monográfico sobre o vosso trabalho, afirmaram: «a nossa ideia é fazer muito com pouco». Conceptualmente este posicionamento está muito próximo de Mies van der Rohe. Existe até uma fotografia do interior da casa Tugendhat num dos artigos. No entanto, a vossa obra parece estar muito distante da de Mies. Quer comentar? É difícil comparar. Quando estávamos na Universidade a obra de Mies interessavanos muito. Na primeira casa que fizemos, a casa Latapie, de 1993, o orçamento era muito baixo. O primeiro projecto que fizemos não foi aprovado pelo cliente porque era muito caro, por isso fizemos um segundo, trabalhámos muito na concepção e falámos com diversas empresas de construção para pedir orçamentos. O orçamento limite dos clientes era de 400 mil francos. O resultado das consultas às empresas foi de 450 mil francos. Para o cliente era importantíssimo que o preço final ficasse pelo dinheiro disponível. Tínhamos, portanto, de reduzir o custo e ser pragmáticos e eficientes na resolução do problema. Depois de revermos os materiais e os detalhes, que já eram muito simples, continuava a ser impossível baixar o preço. Fomos então falar com o engenheiro de uma empresa de construções metálicas e perguntámos se havia alguma forma de baixar o preço da estrutura de aço. E ele disse: «A primeira vez que vocês me consultaram, pediram-me uns detalhes parecidos com os de Mies e eu desenhei uma solução estrutural desse tipo. Mas podemos alterar a estrutura, usar perfis mais simples e ligeiros e optimizar a solução ao nível do custo». Na primeira solução tínhamos 13 toneladas de aço, na segunda tínhamos 8 toneladas. Na altura o ferro custava em França 10 francos por Kg. Isso fazia com que poupássemos exactamente 50 mil francos que era o objectivo definido pelo cliente. Esta questão tornou-se importante, porque o facto de estarmos impressionados pela obra de Mies van der Rohe fazia com que o cliente tivesse de pagar mais 50 mil francos. Para o cliente não era necessário e mesmo para nós também o deixou de ser quando vimos o resultado. Então a partir deste momento, com estas coisas na cabeça, começamos a pensar: «Qual é a necessidade? Quais são as prioridades?» E aí começamos a distanciar-nos de Mies, ou da reprodução dos seus detalhes. Pensamos que isso hoje já não faz sentido.

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Casa Latapie, Floriac, 1993, vista do jardim

Geralmente é necessário falar com o cliente de forma clara e explicar-lhe quais são as possibilidades. «Se usarmos tijolos, podemos fazer isto, se usarmos policarbonato ou painéis de alumínio podemos fazer aquilo». «Com isto nós conseguimos 20m2, com aquilo conseguimos 50m2». «Se gostar de tijolos, tudo bem, mas talvez prefira pelo mesmo preço ter 50m2 em vez de 20m2». A nossa relação com o cliente é sempre muito próxima. E é mais fácil quando fazemos uma moradia ou uma casa. Para nós a questão dos materiais é secundária, precisamos é de optar de uma forma eficiente, perante cada situação, pelos materiais necessários para fazer aquilo que queremos, para produzir o máximo. Se precisamos de um elemento rico dentro do edifício, pensamos como podemos ter este elemento rico não em todos os materiais mas apenas numa parte específica da obra. Foi nestas condições que fizemos o Café do Architekturzentrum em Viena. A única coisa que fizemos foi o revestimento em azulejo que foi fabricado em Istambul por um desenhador turco. A ideia era produzir um elemento completamente extraordinário neste sítio de Viena. Foi uma provocação? Talvez. (risos) Precisamente nessa altura na Áustria havia um partido de direita que estava a ganhar protagonismo, principalmente o seu líder, Haider. Muitas pessoas não estavam confortáveis e começaram a reagir. Além disso em Viena existe uma comunidade turca importante, e historicamente sempre houve algo por resolver na relação da Áustria com a Turquia, visto que os turcos estiveram às portas de Viena no século XVIII, com as conquistas do Império Otomano. Todas estas questões tornaram possível este projecto, não tanto para provocar – porque na verdade explicámos as coisas de um modo gentil – mas para fazer com que a comunidade turca participasse também na vida cultural do museu e da cidade. Trabalham sempre numa relação estreita entre ética e estética. Penso que não se podem separar. Estou interessado nesta questão, o que é a estética hoje? Se podemos ler um significado numa determinada acção, ou se o projecto se torna legível porque lhe damos um significado, estamos a produzir um resultado estético. Acho que se fazemos uma coisa boa e bem feita, então ela é bela. Quando o vosso trabalho começou a ser publicado, foi uma lufada de ar fresco no panorama da arquitectura que se produzia no momento, e, além disso, mostrava arquitectos politicamente empenhados. O vosso trabalho além de sedutor revelava-se também ideológico? Estou interessado no tema e tenho um posicionamento político. Penso que um arquitecto faz necessariamente política quando trabalha. Actualmente existe uma grande discussão sobre as áreas suburbanas de Paris. Existe uma espécie de responsabilização dos arquitectos e dos urbanistas em relação ao falhanço destas imensas áreas suburbanas, e que em parte foram estes os causadores do grande mal-estar e dos conflitos violentos que assolaram Paris nos últimos tempos. O que resulta na conclusão que a melhor decisão é a demolição dos edifícios.

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Café no Architekturzentrum, Viena, 2001

Desenvolvemos um estudo de modo a provar que era estúpido demolir os edifícios por várias razões. A primeira porque era um esbanjar de dinheiro. Depois porque existe falta de habitação social em França, estamos com o défice de um milhão de casas, e só em Paris temos a falta de 350 mil. Então parece absurdo que a primeira coisa que se pense é na demolição destas casas, que são um bem precioso. A nossa proposta foi a de manter os edifícios. Demonstrámos que em termos económicos era muito vantajoso, já que com a metade do dinheiro podíamos fazer duas vezes mais edifícios e ao mesmo tempo optimizávamos as condições dos edifícios existentes, pela sua transformação. A vossa proposta de transformação incide mais sobre os edifícios, sobre o espaço público envolvente, ou sobre ambos? Insistimos principalmente na questão dos edifícios. A maior parte dos arquitectos ou urbanistas pensa que o espaço público é o grande problema, mas nós pensamos que todos os projectos têm de começar no interior dos edifícios. Não podemos fazer um projecto até aos blocos e parar aí. Isso foi feito nos anos 80 em Paris. Colocaram-se isolamentos térmicos nas fachadas, mudaram-se as janelas, fizeram-se jardins e ficaram por aí. O que verificámos é que em muitos casos os edifícios que sofreram os «melhoramentos» estão em muito piores condições do que os que não foram mexidos. Nós fizemos este estudo que interessou algumas instituições camarárias e depois ganhámos um concurso importante em Paris para uma torre de habitação social. Esta torre já existe e está habitada. A proposta foi de a manter e transformá-la. Para nós foi importante abandonarmos os modelos habituais de percepção: de ver os edifícios de longe e desde aí achar que são horríveis, asquerosos e maus. A única maneira de proceder é ir lá, entrar nos edifícios e considerar cada casa de banho, cada sala, cada quarto e cozinha e ver se são suficientemente grandes e se existe conforto. Depois, pensar quais são as possibilidades de criar uma nova varanda que tenha

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uma relação directa com a sala. Na varanda espaçosa deverá caber uma mesa e cadeiras onde as pessoas se possam sentar a apanhar sol. A ideia é contrariar a densidade. Dentro dos edifícios cada família torna-se cliente. É necessário ir a cada piso e perceber quais são as necessidades quer individuais quer comunitárias. Ou se são necessários serviços de lavandaria, de «hammams», de salas de reunião, de espaços de escritório. Depois, ir para o bloco seguinte e continuar o processo. É, portanto, fazer o trabalho a partir do existente, de modo bastante delicado, mesmo com pessoas a viver aí, tentar incomodá-los o mínimo possível e pensar que a solução vai sempre ser encontrada. Tal como aconteceu no projecto que fizemos para uma moradia no sul de França, podemos ir para uma situação em que existem árvores e dunas, mantendo tudo como está. Ser simultaneamente delicado e preciso. Pode-se fazer exactamente o mesmo nos subúrbios, com as pessoas e as famílias. Fala então em perceber bem e respeitar o contexto em que se está a trabalhar? Sim, e de trabalhar com ele. O que se estava a propor era demolir os blocos, quando muitas vezes o que acontece é que num bloco vive uma família que está a criar alguns problemas, e por causa dessa família as outras 99 que vivem lá há 20 anos e que criaram raízes e laços de vizinhança têm de sair e ser realojadas. O que quero dizer é que é necessário ser optimista. É muito mais importante ver as coisas positivas que existem do que as negativas. Encontrar soluções para resolver os pontos negativos e manter as coisas boas que existem e reforçá-las. Vocês têm uma atitude quase nómada. Chegam, intervêm e deixam construções algo efémeras, que podem ou não resistir com o tempo. Não sei se concordo, mesmo se acho interessante a questão de não deixar marcas. De facto, não estamos muito preocupados na questão da obra, da obra do arquitecto. Para mim o que é importante é o que se faz ou fez durante a vida, e o modo como se trabalhou, muito mais do que considerar um projecto em particular como uma obra ou se esta dura ou não para a eternidade. Foi determinante a experiência que tive ao viver cinco anos em África e talvez seja essa a relação com o tema da escassez. Penso que actualmente existe escassez em todo o mundo e não só em Africa, apesar de aí existir um problema mais profundo e complexo. Em África, apesar de haver uma situação de escassez, as questões do dia-a-dia são resolvidas com inteligência. Quando não existem materiais disponíveis ou dinheiro, o que se torna importante para sobreviver é a inteligência. Torna-se necessário construir com aquilo que se tem à mão. Se houver um painel de alumínio, usa-se. Se houver tijolos feitos com lama ou um painel solar encontrado num sítio qualquer, usa-se. Não existe a questão de utilização de materiais «à-priori». As construções são simples, imediatas, leves, fáceis e além disso têm uma espécie de poesia. Penso que a situação dos países europeus, apesar de não se poder comparar com a que existe em Africa, vive também um momento de escassez. Não existe dinheiro suficiente para construir escolas, hospitais, etc. Por isso o que é interessante é procurar o modo mais inteligente de actuar num contexto dentro do espírito que referi. Fala de escassez, de estratégia, mas também pensa em beleza? Ou será esta uma palavra sobre a qual existe algum preconceito? De todo. Mas talvez nos interesse mais aquele tipo de beleza que encontramos em África. Aí existem coisas belíssimas, feitas de modo instintivo. Existe uma arquitectura feita como se fosse uma espécie de dança, como se fossem pessoas a dançar. Coisas delicadas feitas com uns poucos ramos de árvores, com bocados de tecido. Em minutos constroem um abrigo que produz sombra suficiente e onde é possível ficar. Esta elegância não tem a ver só com as construções mas também com o modo como se faz. Em África o nomadismo é muito interessante. As casas não são as quatro paredes onde as pessoas vivem, mas tudo o que está em redor. A casa é o deserto. As condições são difíceis e duras. O que faz com que as pessoas sejam inventivas.

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Existente

da página 58 à 62 Imagens retiradas de «+ Plus» estudo realizado para o Ministério da Cultura e da Comunicação, Direcção da Arquitectura e Património, Agosto 2004, por Fréderic Drout, Anne Lacaton & Jean Philippe Vassal. Propostas de transformações de edifícios de habitação colectiva.

Proposta de piscina no 3º piso

Quando não se tem nada é necessário arranjar outras maneiras de produzir. Se queremos arranjar um carro, podemos tirar uma peça do relógio; se queremos arranjar uma cama tiramos uma peça do carro. As pessoas são mais livres e flexíveis do que nos países europeus. Estas coisas são muito importantes, porque as sinto necessárias. A beleza é necessária. Não se pode só fazer habitação social pensando unicamente no mínimo para viver, a partir de regulamentos, normas. É necessário produzir conforto, prazer e luxo na habitação social, e para todas as pessoas. Senão as coisas não duram porque acabam por ser demolidas. Agora apercebemo-nos que é possível transformar, mas se não tivermos a beleza, a elegância, a poesia no projecto, este não terá futuro. É necessário encontrar uma possibilidade de liberdade para as pessoas. Imaginar que elas podem mudar os espaços que desenhamos. Disse em certa ocasião que o espaço é luxo. Em muitas situações, sim, mas não sistematicamente. Vivi em África numa casa construída sobre uma duna e realmente era um luxo. Mas pode-se também viver em Paris num pequeníssimo apartamento com uma vista soberba e ser também um luxo. O que acontece muitas vezes nos casos da habitação social é que não se está na maior parte das vezes em lugares com interesse. Estamos longe da cidade, longe dos equipamentos e dos serviços e o que resta é ficar no apartamento porque não há nada

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Proposta de Hamman no 2º Piso

Proposta de espaço comunitário no piso térreo

à volta. Assim, a intervenção passa por dar mais possibilidades, para que os apartamentos se tornem mais confortáveis. Propor uma espécie de vida fácil. O Palais Tokyo é uma intervenção desse tipo. A Praça Léon Aucoc, em Bordéus, também. Aí a Câmara Municipal pediu-nos para fazer um «embelezamento» do sítio. Fomos lá, conversámos com as pessoas, e no final olhámos para a praça, para as fachadas dos edifícios, para as árvores, para os bancos, reparámos na luz e voltámos à Câmara e dissemos que estava tudo muito bem e que o projecto consistia em não fazer nada. Nada? Bem, eles insistiram que deveria haver projecto e, de facto, havia o projecto muito claro de não fazer nada. Depois propusemos três intervenções: limpar a praça, resolver o problema de doença que as árvores tinham e, por último, a questão das circulações pedonais, porque havia cruzamentos perigosos que necessitavam de ser resolvidos. Estes foram os elementos do projecto. Dissemos que não queríamos mudar os candeeiros, nem os bancos, nem os pavimentos. Quando fui ao Porto ao seminário da Protótipo em 2001, lembro-me que fui passear ao longo do rio em direcção à foz, e fiquei impressionado com a enorme área de pavimento em pedra. Lajes de pedra ao longo de uma faixa com seis ou sete quilómetros, por vezes com 15 metros de largura outras com 2 metros de largura. No centro do Porto

Lacaton & Vassal

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Existente

Proposta

há pavimentos muito bonitos com estas lajes, mas qual é o interesse de fazer ali a mesma coisa? É para gastar dinheiro? Imagino também os trabalhadores a cortar os blocos de pedra e depois outros a fazer o assentamento das lajes. Não percebo como ainda é possível fazer isso! Estão interessados no tema da reciclagem? Sim, penso que o tema da sustentabilidade é uma oportunidade para os arquitectos. É possível fazer projectos em que o aquecimento esteja resolvido de modo simples. Gostamos de sistemas passivos em vez dos sistemas activos, como por exemplo os painéis solares. Gostamos muito de utilizar os sistemas das estufas. No universo da agricultura estes sistemas são utilizados de forma precisa, simples e leve e trabalham com a energia solar. Qual é a importância do programa? É a questão do «o quê» e «porquê»? Na praça de Bordéus foi claramente o «porquê». Pensámos bastante no programa e no custo. Mas na verdade quando se começa um trabalho este já está bloqueado devido a questões políticas, ao programa, aos orçamentos, etc. De qualquer forma, é importante ter um posicionamento crítico e tentar questionar o programa. Muitas vezes é interessante observar como os clientes têm no início uma vontade de fazer algo de novo mas no final o que querem são soluções convencionais. (risos) É muito importante manter o cliente nos seus desafios iniciais.

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Existente Trignac (Pays de la Loire)

Proposta

O vosso posicionamento sobre a disciplina da arquitectura tem a ver com as experiências pessoais, com as viagens e com a maneira de entenderem o mundo. Parece que rejeitam o facto de a arquitectura conter uma resposta universal, ou de um movimento. Eu penso que a profissão de arquitecto vive neste momento um período de crise. É recente a questão de qual pode ser a atitude de um arquitecto que trabalha em democracia. Temos toda a história de um passado em que o arquitecto trabalhou em diferentes sistemas políticos. Para os artistas é mais fácil trabalhar com esta mudança, mas em arquitectura é difícil e parece que ainda estamos a trabalhar como no passado. E de facto o paradigma do cliente mudou: já não é o príncipe nem o cardeal. O projecto não tem de lidar com uma representação de poder, o projecto tem de deixar de ser monumento. O Estilo Internacional era uma proposta global generosa para as pessoas, apesar de não ter resolvido de forma eficaz e precisa a questão do contexto. Para mim foi uma forma de trabalhar bastante interessante, generosa, simples, não monumental. Estou realmente interessado neste período e interessado em saber de que modo é que isso nos pode dar pistas para uma resposta de transformação actual. O que é que podemos fazer quando praticamente 90 por cento das edificações de que necessitamos já estão construídas? Já não há espaço, nem uma folha em branco. Quando

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Existente

Proposta

Proposta


© José Adrião

Atelier Lacaton & Vassal, Paris, 24 Março 2006

Lacaton & Vassal

chegamos existe sempre alguma coisa que já está construída, por isso o nosso papel é sempre transformar, misturar e adicionar. Gosto da ideia de que trabalhamos numa espécie de novo território que é feito pela acumulação de todos os projectos e edifícios. Penso que o trabalho do arquitecto neste regime de democracia será o programa habitação, é certamente um dos mais interessantes, muito mais do que museus ou equipamentos desse tipo. Por exemplo no projecto de habitação social para Mulhouse, desde o princípio pensámos que apesar de não haver nenhuma preexistência, a solução seria trabalhar sobre a tipologia de loft. Loft é uma coisa que normalmente já existe e que é transformada. Fizemos o projecto como se fosse uma fábrica com o sistema estrutural e a pele concluídos, onde o nosso trabalho consistiria apenas a subdivisão dos espaços, de modo a resultarem grandes e generosos. Como é que acha que o vosso trabalho se vai desenvolver no futuro próximo? Tenho a sensação de que é possível construir tudo aquilo que se quer. Os problemas construtivos não são um problema porque se encontra sempre a solução. Realmente sentimos que as abordagens utópicas que se fizeram, por exemplo, nos anos 60 e 70, com os Archigram ou os Superstudio são agora possíveis de realizar. Mas a utopia interessa-vos? Não estou interessado na utopia, mas no facto de que actualmente a utopia é possível. É uma questão de optimismo. Estou realmente confiante que podemos agora encontrar uma solução para qualquer problema. Isto é uma grande oportunidade para os arquitectos. A situação actual é complicada mas podemos olhar para ela de modo positivo. Quando estávamos a preparar a entrevista, veio-nos à cabeça uma frase que nos parece ter a ver com o vosso trabalho: «Quando a atitude se torna forma» (título de uma exposição de arte inaugurada em Londres no final da década de 60: «When Attitude Becames Form»). Bem, nunca desenhamos fachadas. Lembro-me que em Bordéus havia no meio do campo uma refinaria. Esta refinaria foi desenhada exactamente para aquilo que servia. E o resultado do edifício no contexto é impressionante. É uma atitude muito simples que numa determinada situação produz um resultado, neste caso brilhante. Quando era novo, trabalhei em escritórios de arquitectura onde ficávamos durante 15 dias a desenhar a fachadas. Agora nunca desenhamos fachadas, só quando é necessário. Desenhamos plantas e cortes mas a fachada é exactamente o resultado do ambiente que queremos e precisamos no interior. E isso é o que disseram, «quando a atitude se torna forma». E se não gostarem do resultado? Até agora nunca aconteceu. (risos) Na verdade estamos confiantes nesta metodologia. A arquitectura pode ser uma coisa leve, suave, gentil, precisa. De modo a tomar conta do que existe. De algum modo isso tem a ver com as orquídeas, que tenho ali na minha sala e de que gosto muito. As orquídeas são plantas epífitas, não necessitam de solo, as raízes são aéreas por isso podem ser nómadas. São ao mesmo tempo masculinas e femininas, por isso têm uma reprodução facilitada. São simultaneamente resistentes e frágeis. São como os vossos projectos, resistentes e frágeis. Os vossos primeiros trabalhos têm algo de nómada. Parece que não tem fundações! Isso é interessante! Uns clientes, que viviam em Paris mas que se iam mudar para os EUA, viram a casa Latapie e escreveram-nos uma carta a dizer que tinham gostado imenso e queriam uma casa assim que se pudesse transportar nas suas deslocações pelo mundo. A nossa resposta foi que achávamos que era melhor fazer uma em cada sítio para onde eles fossem! ^

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Qual a origem do VÍRUS? Como se transmite? Onde se instala? O Vírus é um caderno de 16 páginas que se insinua entre as páginas do JA e o contamina. O Vírus aborda o tema central do número onde é inserido e é da exclusiva e integral responsabilidade dos seus autores, que têm total autonomia editorial. A selecção das equipas responsáveis pelos próximos Vírus far-se-á mediante a apresentação de propostas* a enviar para: jornalarquitectos@ordemdosarquitectos.pt Próximos temas: JA225 – INFRAESTRUTURA (recepção de propostas de candidatura até 30 de Junho de 2006) JA226 – LEGAL (recepção de propostas de candidatura até 30 de Setembro de 2006) * Apresentação de síntese da proposta (1 página A4) para o conteúdo integral do caderno de 16 páginas, acompanhada dos CV’s dos proponentes.


Paulo Pascoal

Dossier


Porto de Lisboa

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Porto de Lisboa /Estação de Marvila

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Braรงo de Prata

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Av. Infante D. Henrique, Xabregas

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Matinha

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Beco dos Toucinheiros

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Rua da Margem

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Projecto

PEDRO REIS

Igreja em Quelicai, Timor Leste Depois de seis longas horas de viagem a partir de Díli, a capital de Timor Leste, chegamos à aldeia de Quelicai, a mais de 2000 m de altitude, no sopé do monte sagrado de Matabien. Trata-se de um lugar mítico para a história de Timor Leste, onde se organizou a última base da resistência à ocupação indonésia e um santuário católico de culto e peregrinação. É uma longa viagem para percorrer uma distância que, por auto-estrada, demoraria pouco mais do que meia hora, sendo que aqui, durante a época das chuvas, a estrada é frequentemente interrompida por um desabamento de terras ou simplesmente desaparece. Na década de 60 a comunidade local construiu uma igreja sobre um imponente aterro artificial, rodeado por uma intensa vegetação tropical, dominando sobre a aldeia e toda a paisagem que se estende até ao mar. O edifício, construído sobre uma fundação frágil, resistiu a custo aos frequentes tremores de terra e, em poucos anos, entrou em processo de ruína. O projecto para a nova igreja é um exercício sobre os limites. Sobre a forma como os limites impostos por um contexto condicionam a exploração e a definição de um programa, de um espaço ou de uma forma.

© Pedro Reis

Como construir um edifício com poucos meios – melhor, os meios mínimos – e as dificuldades logísticas e técnicas próprias de uma pequena comunidade de um país pobre que acabou de ser destruído? A abordagem ao projecto para a nova igreja começou pela definição de uma estratégia. Uma estratégia que começa por compreender as limitações impostas pela escassez. A igreja terá que ser construída pela comunidade e, por essa razão, foi proposto um sistema construtivo que não exija uma mão-de-obra especializada. As dificuldades logísticas e de acesso impõem a utilização de um sistema que permita incorporar o máximo de materiais disponíveis na área e transformáveis no local. Ou seja, um sistema que responda a todas estas limitações e que garanta a durabilidade da construção, independentemente do rigor construtivo ou de uma execução primorosa. O princípio construtivo, frequentemente utilizado em Timor, é baseado num sistema de blocos de cimento armado que pode ser fabricado no local e totalmente executado pela comunidade. O lugar já estava definido. Com alterações no aterro que levou a igreja original à ruina, a nova igreja retoma o seu lugar, no limite entre a aldeia e a montanha. O programa é equacionado a partir das funções essenciais do espaço religioso e de apoio litúrgico; a capela baptismal; a torre sineira, a sacristia e arrecadação definem os quatro espaços encerrados como âncoras do edifício que marcam os seus limites. Entre eles cobre-se o espaço de celebração, aberto, com total transparência para o exterior. Ao fundo, no altar-mor, onde existia na antiga igreja uma pintura naife da montanha, há agora, no projecto da nova igreja, a própria montanha. A celebração é feita em comunhão com a paisagem tropical e com a montanha sagrada. O que à partida aparentava ser um exercício de enorme contenção, pode ser um campo de enorme liberdade. ^ PEDRO REIS

Quelicai

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Designação do projecto Igreja em Timor Leste Localização Quelicai, Timor Leste Data Projecto 2002 Arquitectura Pedro Reis Colaboradores Isabel Silvestre, Rosária Rocha Martins Especialidades Estruturas Ara – Alves Rodrigues & Associado Lda Cliente Paróquia de Quelicai


© Pedro Reis © Pedro Reis

Maqueta

Igreja em Quelicai, Timor Leste

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Alçado Nascente

Corte longitudinal

Planta

Corte transversal

1 – Sacristia 2 – Altar 3 – Depósito 4 – Capela Baptismal 5 – Entrada 6 – Torre Sineira

Corte

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Maqueta (interior)

Igreja em Quelicai, Timor Leste / Pedro Reis

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Casa em Santa Vitória, Beja © José Pedro Tomaz

Projecto

RUI MENDES

Banho

Santa Vitória é uma aldeia no baixo Alentejo cuja estrutura urbana se reconhece intacta ao longo dos anos. Nas áreas limitadas pelas ruas existem casas e lugares privados, espécie de matéria de altura regular [um piso], relacionada com o espaço público através de pequenas portas e janelas. O projecto de Rui Mendes interpreta a condição introspectiva do lote, mantendo a casa pré-existente e a sua relação frontal, propondo uma nova apropriação de todo o logradouro. Constrói uma série de espaços interiores e exteriores, que se distinguem entre si apenas pela presença ou ausência de cobertura, e revela uma ocupação programática que se vai sucessivamente revestindo de intimidade. Esta opção, dependente da cumplicidade entre projectista e dono de obra, assenta num sentido essencial e poético, onde um conjunto de lugares últimos de habitar radicaliza a relação entre o homem e o mundo.

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Mas não se esgota no conceito de ligação entre os espaços a postura extrema de Rui Mendes, acentuada pela arte como integra os equipamentos sanitários ou pela dimensão vertical que dispensa a cada filtro envidraçado. Para alem da reconstrução da casa original [onde a manutenção do sistema construtivo não surpreende] são determinantes os muros laterais construídos em blocos de cimento, capazes de a um só gesto conferir unidade plástica aos diferentes espaços da casa, e integrar os elementos estruturais e infraestruturas técnicas necessárias. No interior, dá-se conta da presença dos tectos, armados em betão em forma de U invertido, trinchados com uma velatura de cal, cor e textura reconhecida noutros espaços e noutras casas. A verdade matérica que acompanha todo o projecto e a utilização restrita e sensível dos elementos arquitectónicos acusa uma aproximação de sucesso à essência da prática da arquitectura, bem longe de experiências «minimalistas» tantas vezes ancoradas num esforço e sofisticação tecnológica, ocultas por detrás de um ambiente cenográfico, certamente estranho ao tacto. A desertificação e abandono das aldeias do interior, assentes numa «monocultura» há muito tempo improdutiva, tem neste exemplo um sinal de contrariedade, espécie de deslocalização pontual no sentido cidade-campo, contaminação cultural espectável, verdadeiro sentido da contemporaneidade. ^ RICARDO BAK GORDON

Designação do projecto Casa em Santa Vitória Localização Santa Vitória, Beja Data Projecto Desde 2001 até 2002 Data Construção Desde 2002 até 2003 Arquitectura Rui Mendes Especialidades Estruturas Fernando Rodrigues Instalações Francisco Hermenegildo Construtor Francisco Hermenegildo Cliente Elisabete Gomes


© José Pedro Tomaz

© José Pedro Tomaz

Quarto, banho

Sala

Casa em Santa Vitória, Beja

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Implantação

Corte longitudinal

1

2

Planta 1 – Entrada 2 – Sala 3 – Pátio 4 – Sala/cozinha 5 – Quarto/banho

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3

4

3

5

3


© José Pedro Tomaz

© José Pedro Tomaz

Pátio

Sala

Casa em Santa Vitória, Beja / Rui Mendes

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Black Rubber Beach House, Kent © Chris Gascoigne

Projecto

SIMON CONDER

Este projecto demonstra que uma escolha cuidada de materiais de baixo custo, combinada com o uso inovador de novos produtos pode criar arquitectura doméstica de qualidade. Demonstra ainda que é possível projectar um edifício num contexto de ‘arquitectura informal’ que caracteriza a praia de Dungeness, onde simultaneamente revitaliza esta tradição e se fixa o singular espírito do lugar. Embora este projecto tenha começado como uma reconversão, quando ficou concluído 75% era efectivamente construção nova. Isto resulta de se ter constatado, quando se retirou a cobertura e revestimentos originais, que a estrutura de madeira por detrás deles era virtualmente inexistente; sendo um mistério como é que a casa não tinha ainda sido varrida pelas tempestades invernais. A praia de Dungeness, no Kent, é o exemplo clássico de ausência de planeamento e as casas que povoam a praia resultaram de improvisos e adições. Este projecto desenvolve essa tradição respondendo ao dramatismo e aridez da paisagem.

O edifício original – que resulta de sucessivas alterações e extensões desde que foi construído como uma casa de pescador nos anos 30 – foi «despido» até à sua estrutura de madeira, estendido para Sul e Este para captar as extraordinárias vistas, e revestido interior e exteriormente com contraplacado. As paredes exteriores e a cobertura foram revestidas em borracha negra, uma versão tecnicamente mais sofisticada do revestimento com camadas de feltro e alcatrão existentes em muitos edifícios locais. A casa-de-banho, projecta-se sobre a praia, proporcionando visões dramáticas do mar. No interior a prioridade foi a maximização das áreas sociais, tendo a casa apenas um pequeno quarto. Os convidados podem ficar alojados numa carava Airstream de 1954, estacionada ao lado da casa, e cujo prateado do alumínio faz um gritante contraste com a borracha negra. O projecto é o primeiro a usar EPDM (ethylene propylene diene monomer) para impermeabilizar integralmente o edifício. As principais vantagens do material são as seguintes: — resistência à água mas permeabilidade — ao vapor — tolerância a temperaturas entre — -50°C e +130°C — variações (dilatação/contracção) — de mais de 400% sem perda das suas — caracteristicas — resistência ao ozono e às radiações UV — ser incombustível — ser um produto natural Uma das características da praia é o vento constante em relação ao qual o revestimento de borracha negra garante um interior termicamente eficiente. No Verão as janelas das paredes opostas da casa abrem-se para permitir a ventilação que dissipa o calor que possa resultar do revestimento de borracha. No Inverno, quando as janelas estão fechadas, a borracha negra funciona como um acumulador de calor, o que reduz significativamente o uso de sistemas complementares de aquecimento. ^ SIMON CONDER

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Designação do projecto Black Rubber Beach House Localização Kent, Inglaterra Data Projecto Desde 2001 até 2002 Data Construção 2003 Arquitectura Simon Conder Associates Equipa Simon Conder e Chris Neve Especialidades Estruturas KLC Consulting Engineers Construtor Charlier Construction Ltd EPDM Sub Contractor: AAC Waterproofing Ltd Área de Construção 92.0m2


Axonometria

Planta

01 – Estrado 02 – Sala de Jantar / cozinha 03 – Sala de Estar 04 – Sala / Snug 05 – Fogão a lenha 06 – Arrumação 07 – Quarto 08 – Quarto de Banho 09 – Banho 10 – Passagem envidraçada 11 – Iluminação sob o pavimento 12 – Barraca / Entrada 13 – Rua 14 – Poste 15 – Caravana Airstream

Black Rubber Beach House, Kent

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© Chris Gascoigne

© Chris Gascoigne


Š Chris Gascoigne

Black Rubber Beach House, Kent / Simon Conder


Projecto

RICARDO E. S. / PL ANO B

Armazéns agrícolas, Alcochete Quando visitamos as Hortas Sociais de Alcochete e os armazéns agrícolas de apoio, a primeira impressão que retemos é a de estarmos perante uma obra feita de forma(s) simples. Conhecendo os pressupostos teóricos e as circunstâncias anteriores à realização deste projecto, ficamos logo seduzidos pela aparente simplicidade da obra e pelo seu potencial alcance social. O projecto da Hortas Sociais foi realizado com baixos custos, recorrendo aos materiais endógenos e à mão-de-obra e meios de produção locais. Nada mais simples de arquitectar - clareza formal, natural sentido de composição e expressão verdadeira dos materiais e processos construtivos. Os 9 armazéns, equidistantes entre si, são rigorosamente iguais e têm uma forma paralelipipédica de secção rectangular, com um desenvolvimento longitudinal relativamente à estrada nacional e acessos. A cobertura solta-se do corpo para efeitos de ventilação natural e está desenhada em forma de «v», de modo a colher as águas pluviais para um tanque de rega dos campos de cultivo vizinhos. Os processos de construção são aditivos, onde se lê claramente cada parte da composição arquitectónica – a base, o corpo e a cobertura. Os materiais de construção são: betão ciclópico, blocos de cimento celular e brita de pedra nas fundações e pavimentos; madeira de pinho não tratado na estrutura e portadas; fardos de palha, corda, tela plástica, rede de galinheiro galvanizada, rebocos de cal com areias e agregados pozolânicos nas paredes; chapa galvanizada na cobertura; ferragens e parafusos de ferro galvanizado; e óleo queimado proveniente de máquinas agrícolas na protecção das madeiras. Foi preciso cerca de um mês e cinco operários não especializados, incluindo os autores – Arq. Ricardo Espírito Santo pela autoria do plano geral das Horta Sociais e o Plano B pelo projecto dos armazéns - , para construir o primeiro módulo. Os restantes 8 módulos foram depois executados num só mês.

Ao contrário do que se espera, dentro dos pequenos armazéns agrícolas não cheira a palha. Contas feitas, a palha é responsável por 83% da massa total de construção e contribui para a eco-sustentabilidade do projecto. No entanto, os autores deste projecto deliberadamente optaram por não evidenciar o processo construtivo das paredes autoportantes de fardos de palha, impossibilitando uma colagem directa aos movimentos de arquitectura eco-sustentável. Ainda assim é manifesto que este projecto se baseia nos principais paradigmas da sustentabilidade – reduzir, reciclar e reabilitar. Se observarmos melhor, os armazéns são construídos com materiais naturais com ciclo de vida bio-sustentável (biodegradáveis); incorporam um mínimo de materiais transformados – materiais com níveis elevados de energia no processo de fabrico e de transporte até à obra –; e evitam o recurso a tecnologias de construção com elevados consumos energéticos baseadas nas estruturas de betão e aço ou nas alvenarias cerâmicas ou betão. A obra emprega os materiais de modo preciso e sensual, que nos lembra o Homem Construtor que desde o começo da civilização construiu com os materiais disponíveis na natureza, sugerindo também por essa via um modus operandi sustentável. Os princípios orientadores do atelier Plano B encontram eco na cultura arquitectónica contemporânea, como seja: nos exemplos proveniente da produção dos designers irmãos Campana do Brasil; nos exemplos da Auburn University Rural Studio , Alabama, Estados Unidos (in Matéria,, n.º 42 Setembro/Dezembro 2003); na poética dos materiais das obras de Kengo Kuma ou na experimentação formal e construtiva das obras do Shigeru Ban, do Japão; ou, ainda, nas produções mais próximas, como no caso do Projecto 9/10 Stock, Londres, de Sarah Wigglesworth. (in Pasajes, n.º 41, Novembro 2002) ou de Ash Sakula Architects, no projecto de Casas de Baixo Custo em Silvertown, Londres, Inglaterra (in a+t – nueva materialidade, n.º 24, Outono 2004). Aguardamos, com expectativa e curiosidade, a conclusão do projecto das Hortas Sociais de Alcochete, recordando que a escassez de uma produção arquitectónica de qualidade dificulta a realização de projectos inovadores no contexto português. ^ JOÃO B. SANTA RITA

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Designação do projecto Apoios Agrícolas das Salinas do Samouco Localização Alcochete - Portugal Data Projecto 2004 Data Construção 2005 Arquitectura Projecto Geral Ricardo Espírito Santo Projecto Execução Plano b arquitectura Eduardo carvalho Francisco Freire Luís Gama Promotor Fundação das Salinas do Samouco Coordenadores Construção Carlos Silva Carlos Crisanto João Marques Área de construção 9 x 24,10 m2 (apoios)


© Ricardo Espírito Santo

© Ricardo Espírito Santo

Vista noroeste

Apoios agrícolas


Axonometria

Alçado

Corte

Planta

1 – cobertura-chapa metálica perfilada 2 – estrutura cobertura-madeira de pinho 3 – remate lintel-madeira de pinho 4 – lintel-madeira de pinho 5 – paredes-fardos de palha 6 – remate embasamento-madeira de pinho

07 – embasamento-madeira de pinho 08 – fundações-sapatas em blocos de betão 09 – portão-madeira de pinho 10 – aro portão-madeira de pinho 11 – estrutura de reboco-rede de galinheiro 12 – reboco-cal aérea e areia 13 – tanque de recolha de águas pluviais

Alçado sudoeste

Implantação 1 – estrada nacional 2 – portão de entrada 3 – tanque principal 4 – aerodinamo 5 – compostagem

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© Sandra Pereira

© Plano B

Construção – paredes

© Plano B

© Sandra Pereira

Construção – embasamento

Construção – estrutura da cobertura

© Plano B

© Plano B

Vista Sudoeste

Portão – vista sudoeste

Armazéns agrícolas, Alcochete / Ricardo E. S. / Plano B

Trabalhadores

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Projecto

SOL ANO BENÍTEZ & ALBERTO MARINONI

Vista acesso ao terraço

© Gabinete de Arquitectura

Sede da Unilever, Paraguai

O projecto resulta de um concurso para a renovação, ampliação e reconversão de uma fábrica abandonada, para instalação da sede da Unilever, em Villa Elisa, no Paraguai. O princípio foi responder a necessidades, inventar possibilidades e recursos, descobri-los. Os escritórios são ampliados utilizando os tectos metálicos que servem de isolamento resistente à humidade das lajes de betão. As lajes expostas são revestidas com placas de

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asfalto e alumínio como cobertura e com telhas cerâmicas que aumentam a sua eficiência e que protegem as suas superfícies não transitáveis possibilitando um terraço. Foram construídas duas fachadas «brise soleil» com painéis de tijolos instalados com a lógica construtiva duma ponte. Dois pátios abertos para o interior do espaço, revestidos a vidros sem caixilharia. A partir das demolições do existente formam-se aterros cobertos com solo e relvado que direccionam o acesso. Um lago completa a paisagem que é convertida num reservatório de água contra incêndios. O jardim proposto para o exterior não foi até hoje construído. ^

Designação do projecto Oficinas Centrais da Unilever no Paraguai Localização Villa Elisa, Paraguai Data Projecto 2000 Data Construção 2001 Arquitectura Gabinete de Arquitectura, Solano Benítez e Alberto Marinoni arquitecto colaborador asociado, José Luis Ayala Colaboradores Silvia Ortiz, Silvio Vázquez, Sergio Flores, Oliver Ortiz, Adriana Sbetlier, Giovanna Pederzani, Gabriela Abente, Raul Vera, Marina Tomboli, Maria José Vargas Peña, Miguel Duarte, Margarita Ruiz Díaz, Zahorí Ayala, Gonzalo Sevillano, Fernando Burgos Especialidades Estruturas Federico Taboada Luis Caló Cliente Unilever, Paraguai Área de construção 4.314 m2 (área bruta) Área do terreno 6 ha


Š Gabinete de Arquitectura

Š Gabinete de Arquitectura

Pormenor de fachada

Acesso em corredor na sala comum


© Gabinete de Arquitectura

© Gabinete de Arquitectura

Vista geral

Pátio interior


Fachada

01 – sala de trabalho comum 02 – zona de entrada / estar da administração 03 – gabinetes administrativos 04 – sala de reuniões 05 – cozinha 06 – despensa / arrumos 07 – sala de refeições 08 – jardim interior 09 – recepção / controlo 10 – acesso ao terraço

Corte longitudinal

Oficinas Centrais da Unilever, Paraguai / Solano Benítez & Alberto Marinoni

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Biografias

1 Bruno Baldaia nasceu em Coimbra em 1971 e formou-se em arquitectura pela FAUP em 1997. Bolseiro Erasmus na ETSAM em Madrid no ano lectivo de 96/97. Exerce arquitectura como profissional liberal no Porto desde 1998 tendo, nos anos de 2003 e 2004 desempenhado funções na área de gestão urbanística na Gaiurb EM. Foi bolseiro do Instituto do Livro e das Bibliotecas em 1998 no âmbito do programa de bolsas de criação literária na área de ficção resultando o livro «5 videos». Tem publicados textos de crítica nas áreas de arquitectura e artes plásticas em diversas publicações (Uparte, Expresso, :ilhas, JÁ, arq./a, Laura) tendo sido destacado ex-aequo na 2ª Edição do Prémio JA/ Domingos da Silva Teixeira, S.A. em 2003. 2 Cameron Sinclair é co-fundador e director executivo da organização Architecture for Humanity. Estudou arquitectura na University of Westminster e na Bartlett School of Architecture em Londres, tendo desde então desenvolvido interesse pelos projectos de carácter social, cultural e humanitário. Depois de concluído os estudos mudou-se para Nova Iorque onde trabalhou como arquitecto. Tem dado conferências em diversos países, e participado em conferências sobre desenvolvimento sustentável e reconstrução pós-catástrofe. É professor convidado University School of Architecture em Bozeman, e no College of Architecture and Landscape Architecture na Universidade do Minnesota. Recebeu o prémio ASID Design for Humanity Award e o Lewis Mumford Award for Peace. Em 2004 foi escolhido pela revista Fortune como um dos Aspen Seven - sete pessoas que contribuem para melhorar o Mundo. Em 2006 foi um dos três vencedores do TED Prize, que distingue pessoas que tenham um tido, em quaquer campo, «um impacto positivo no planeta». 3 Claudia Taborda, arquitecta paisagista, nasceu em Lisboa e estudou nas universidades de Évora, York e Harvard. Em 1993 inicia a prática profissional em contexto interdisciplinar. Tem colaborado em projectos de âmbito académico e cultural com instituições europeias públicas e privadas, participado em conferências e publicado textos críticos sobre paisagem. O seu projecto de investigação tem-se centrado sobre a produção de paisagem e a contemporaneidade. Actualmente, é doutoranda na European Graduate School (EGS), Suíça. 4 O Gabinete de Arquitectura é composto por Alberto Marinoni, Gloria Cabral, Lorena Silvero e Solano Benítez. Trata-se de uma sociedade profissional dedicada à investigação e construção, formada em 1986, e que passou a dedicar-se também à construção a partir de 1991. Foram distinguidos com o Prémio Nacional de Arquitectura 1989/1999 atribuído pelo Colegio de Arquitectos do Paraguai e finalistas do II Prémio Mies van der Rohe. Foram representantes do Paraguai na Bienal de Veneza, na Bienal de S. Paulo e na Bienal Ibero Americana. 5 João Belo Rodeia (Leiria 1961) licenciou-se em Arquitectura (FAUTL 1984), diplomou-se em Estudos Avançados de Projecto (UPC 2001) e exerceu docência na FAUTL e na FAAUL (1985/2003). Foi Presidente do IPPAR (2003/2005) e é Presidente do Conselho Nacional de Delegados da OA (2002/2007). Exerce actualmente consultadoria em Arquitectura e Património Arquitectónico. Jurado em Concursos e Prémios, comissariou várias Exposições de Arquitectura e programou o Ano Nacional da Arquitectura 2004. Foi convidado de honra na XXIª Conferência Latino-Americana de Escolas e Faculdades de Arquitectura (2005) e será o delegado português na V Bienal Iberoamericana de Arquitectura e Urbanismo (2006). É autor de inúmeros escritos publicados em livros, catálogos, jornais e revistas especializadas, incluindo os números 20 (Arquitectura Portuguesa) e 28 (Aires Mateus) da revista 2G. Tem sido conferencista convidado em Portugal, Espanha, Suiça, Brasil, México e Equador. Vive e trabalha em Lisboa. 6 Jorge Carvalho licenciou-se em Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura do Porto em 1990. Colaborou com David Chipperfield, e Álvaro Siza. Em 1991 fundou aNC arquitectos, no Porto, com Teresa Novais. aNC tem desenvolvido projectos nas áreas de recuperação, passando pela arquitectura, até à escala urbana. aNC foi também o atelier-contacto na obra da «Casa da Música» (projecto de Rem Koolhaas – O.M.A). Actualmente, aNC está a projectar e construir seis Centros de Apoio e Manutenção para as concessionárias das Auto-Estradas do Norte do País. Lecciona a disciplina de Projecto (5º ano) na Faculdade de Arquitectura e Artes da Universidade Lusíada, no Porto. 7 Jorge Figueira é licenciado em Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, 1992. É Assistente do Departamento de Arquitectura da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra. É coordenador editorial do serviço de edições do Departamento de Arquitectura da FCTUC desde 1996. Prepara actualmente Tese de Doutoramento na área de História e Teoria da Arquitectura. É colaborador do jornal «Público», na área de crítica de arquitectura, desde 2002. Tem textos publicados em diversas publicações periódicas, livros e catálogos. Publicou os seguintes livros: «Escola do Porto: Um Mapa Crítico», eIdIarq, DAFCTUC, Coimbra, 2002; «SMS:SOS. A Nova Visualidade de Coimbra» (Concepção e coordenação), Coimbra 2003/Edições ASA, 2003; «Agora que está tudo a mudar - Arquitectura em Portugal», Caleidoscópio, 2005. 8 Maria Moita nasceu em Lisboa em 1971. Licenciada pela FAUP em 1996, foi colaboradora de Paula Santos, Vítor Figueiredo, José Adrião e Pedro Pacheco e Álvaro Siza. Entre 2002 e 2003 foi coordenadora dos projectos de arquitectura das Escolas Básicas do FSQP em Timor-Leste. Frequenta actualmente o Mestrado em Desenvolvimento, Desafios Mundiais e Diversidades Locais no ISCTE.

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9 Miguel Veríssimo nasceu na Guiné em 1965 e formou-se em Arquitectura pela FAUTL em 94. Aprendiz e aluno de João Luís Carrilho da Graça e colaborador de Manuel Vicente, foi ainda aluno de Enric Miralles na ETSAB em 93/94. Entrou em contacto 94 com as temáticas da «Sustentabilidade e Eficiência Energética através do Prof. J. Owen Lewis (UCD). Em 1999 cria a empresa Armadilha Solar - arquitectura, no âmbito da NET – Novas Empresas e Tecnologias. A Armadilha Solar, integra actualmente um consórcio com o Departamento de Civil e Física das Construções da Universidade do Minho e Tec-Minho, desenvolvendo sistemas inovadores ligados à Eco-Eficiencia 10 Óscar Faria (Porto, 1966). Jornalista e crítico de arte do jornal Público desde 1992. publicou textos, em revistas e catálogos, sobre Álvaro Lapa, José Pedro Croft, Artur Barrio, Rui Serra, Paulo Mendes e Paulo Nozolino. Editor do livro «1999serralves2004». autor do documentário «Helena Almeida: a segunda casa» (2005). Editor do bloco de artes plásticas integrado no programa Magazine da rtp2 em 2004 e 2005. 11 Paulo Pascoal nasceu em Lisboa em 1969. Tem formação em Antropologia (FSCH-UNL) e Fotografia, tendo concluído o Curso Avançado de Fotografia do Ar.Co em 1998, onde obteve uma bolsa Kodak. No mesmo ano também frequentou um semestre na School of Visual Arts em Nova Iorque (bolsa FLAD), tendo-se seguido, em 1999, um estágio de seis meses no serviço de fotografia do CERN em Genebra, Suíça. Venceu em 1997 a V Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira. Expõe desde 1997, sendo representado pela galeria Baginski. 12 Pedro Reis (1967) é licenciado em Arquitectura pela Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto (1994). Estudou na South Bank University de Londres (1992) e realizou o estágio profissional com Fernando Távora. Colaborou com Eduardo Souto de Moura (1994-98) e Toshiko Mori em Nova York (1998-2000). Em 2000 coordenou a equipa técnica da Missão das Nações Unidas em Timor Leste (UNTAET) responsável pela reconstrução dos edificios públicos e pelo projecto de requalificação escolar. Em 2002 estabeleceu a base profissional em Lisboa e iniciou a actividade académica como docente de arquitectura na Universidade Moderna de Lisboa. 13 Plano B arquitectura é composto por Eduardo Carvalho (1974), licenciado pela FAUP em 1998; Francisco Freire (1975), licenciado pela FAUTL em 2000 e Luís Gama (1974), licenciado pela FAUTL em 2000. Sócios-fundadores (2003) do Centro da Terra, associação para o estudo, documentação e difusão da construção em terra (www.centrodaterra.org). Registado em 2002, o Plano B arquitectura desenvolve projectos e protótipos de edifícios utilizando materiais naturais em simbiose com materiais industriais. (www.planob.com). 14 Ricardo Espírito Santo nasceu em Lisboa em 1965. Licenciado em arquitectura pela Universidade Lusíada de Lisboa na variante de Planeamento Urbano e Regional. Desde 1994 é funcionário do Instituto da Conservação da Natureza, com funções na vertente da Gestão Territorial em várias Áreas Protegidas. Tem desenvolvido trabalho na temática das Acessibilidades ao Espaço Natural, sendo coordenador de um programa de acessibilidades para a Rede Nacional de Áreas Protegidas. Arquitecto em regime liberal desde 1994 colabora regularmente com o Museu Municipal de Benavente na concepção de espaços expositivos. 15 Rui Mendes (Lisboa 1973) Arquitecto pela Universidade Lusíada Lisboa (1996). Inicia actividade com o arquitecto Mateus Lorena (Lisboa 1997).Divide actualmente a actividade de arquitectura em atelier próprio com o comissariado de exposições («Arquitectos Da Geração Moderna» OA) e a participação em projectos de investigação (IAPXX-OA). 16 Simon Conder é arquitecto pela Architectural Association, Mestre em Design pelo Royal College of Art. Foi docente convidado na Bartlett School of Architecture. Em 1984 formou a Simon Conder Associates, com escritórios em Suffolk e Londres, e composto por uma pequena equipa de arquitectos e designers. Esta experiência multidisciplinar é aplicada sistematicamente a todos os projectos, para desenvolver soluções criativas, dentro de grandes restrições orçamentais e temporais. Igualmente permanentes têm sido as preocupações com as questões da eficiência energética e da sustentabilidade. 17 Anne LACATON (Saint Pardoux, 1995) é arquitecta pela École d’Architecture de Bordeaux (1980) e diplomada em urbanismo pela universidade de Bordéus. É professora convidada na École d’Architecture de Lausanne. Jean Philippe VASSAL (Casablanca, 1954) é arquitecto pela École d’Architecture de Bordeaux (1980), tendo trabalhado como arquitecto e ubanista na Nigéria (198085). Leccionou na École d’Architecture de Bordeaux, e é professor na École d’Architecture de Versailles e professor convidado na Universidade de Düsseldorf. LACATON & VASSAL foi finalista do Prémio Mies Van der Rohe pelo projecto do Palais de Tokio (2003) e fez parte da shorlist para o mesmo prémio com o projecto para a Faculté des Arts & Sciences Humaines de Grenoble (1996). Vencedores do Grand Prix National d’Architecture Jeune Talent (1999) e dos Lauréats des Albums de la Jeune Architecture (1991)


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Direito de Resposta

Ao Abrigo da lei nº 2/ 99, de 13 de Janeiro, publicamos o seguinte Direito de Resposta, relativo ao artigo «Programa[ção]. Entre sistema de valores e sistema de códigos» da autoria do Arquitecto João Rocha, publicado no Jornal Arquitectos nº 222, Janeiro – Março 2006.

Exmos. Senhores Arquitecto Ricardo Carvalho Arquitecto José Adrião Directores do Jornal dos Arquitectos Edifício dos Banhos de São Paulo Travessa do Carvalho, 21-23 1249-003 Lisboa Lisboa, 2 de Maio de 2006 Exmos. Senhores Directores, De acordo com os Artigos 24º, 25º e 26º do Capítulo V, Secção I, da Lei de Imprensa, aprovada pela Lei nº 2/99, de 13 de Janeiro, alterada pela Lei nº 18/2003, de 11 de Junho, permitam-me solicitar a publicação integral da presente carta de Direito de Resposta, em relação ao artigo publicado pelo Arq. João Rocha, «Programa[ção]. Entre sistema de valores e sistema de códigos», no número 222 do Jornal dos Arquitectos, Janeiro-Março 2006. No referido artigo, o Arq. João Rocha comete violação de Direitos de Propriedade Intelectual e outras incorrecções, que se enumeram: 1) Apropria-se e reclama autoria de uma imagem que representa resultados de investigação de ponta, a qual não lhe pertence e da qual não é autor; 2) Descreve incorrectamente um software que não lhe pertence e que não conhece, desvalorizando o seu valor científico; 3) Refere, enquanto seu primeiro autor, uma publicação que não existe. No sentido de esclarecer as incorrecções do referido artigo, deverá ser publicado o seguinte texto: 1. SOFTWARE GENE_ARCH O software descrito na página 30 e figura 8 foi desenvolvido pela Arquitecta Luísa Caldas, no âmbito do seu Doutoramento no MIT. Constitui uma investigação inovadora a nível mundial, permitindo gerar soluções de arquitectura energeticamente eficientes e com elevada sustentabilidade. O trabalho de aplicação desse software a um edifício da FAUP, de Álvaro Siza, enquanto estudo de caso, faz parte integrante desse doutoramento. 2. ÂMBITO DE PARTICIPAÇÂO DO ARQ. JOÃO ROCHA O Arq. João Rocha participou no estudo de caso da FAUP através de obtenção de cópias de desenhos, realização de fotografias do edifício, e elaboração de modelos 3D para visualização de resultados. Embora a referida colaboração carecesse de contribuição científica, foi dado ao Arq. João Rocha o lugar de último autor em dois artigos científicos (refs. 5 e 6 do seu artigo). 3. APROPRIAÇÂO INDEVIDA DE AUTORIA DE IMAGEM CIENTÍFICA A apropriação indevida da autoria da figura 8 (referida como “Imagem: João Rocha”) representa uma violação de Direitos de Propriedade Intelectual, uma vez que: a) A imagem não é de sua autoria. Foi desenhada pela Arquitecta Luísa Caldas, enquanto única pessoa capaz de extrair dos resultados do seu software a informação necessária à sua elaboração. b) A imagem foi anteriormente publicada no paper: Caldas, L., Norford, L., Rocha, J.,2003: An Evolutionary Model for Sustainable Design, Management of Environmental Quality: An International Journal, Volume 14 (3), 383-397. Para proceder à sua re-publicação, o Arq. João Rocha teria de pedir autorização aos dois primeiros autores (sendo o segundo autor o orientador de tese de Doutoramento da Arq. Luísa Caldas), o que não fez. c) A legenda da imagem contém várias incorrecções: 1 – Afirma que as diferentes versões dos alçados são baseadas em critérios de comportamento térmico do edifício, o que está incorrecto, uma vez que o software conjuga a térmica com a iluminação natural. 2 – Enumera incorrectamente o conjunto de soluções apresentadas.

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4. INCORRECÇÔES NA DESCRIÇÂO DO SOFTWARE a) A afirmação “O projecto da FAUP (...) serviu de base para a concepção de um sistema computacional que permitisse gerar novos desenhos para a última torre (...)” é falsa. O software existia antes de ser iniciado este estudo, com todas as capacidades nele utilizadas, estando publicados os resultados. b) Numa tentativa de descrever o software, o autor afirma: “utilizam-se algoritmos genéticos como motor de geração formal, mas associado à utilização de «constraints» para avaliação do nível da «performance» energética do edifício. A ligação entre estes dois sistemas (feita através da utilização do software DOE-2) (...)” . Esta descrição é incorrecta e incompreensível, demonstrando desconhecimento técnico do software, e diminuindo a sua qualidade científica. c) A afirmação “Partindo (...) das intenções teóricas de Álvaro Siza” é incorrecta. Apenas o Arquitecto Siza pode afirmar quais as suas intenções teóricas. Em anteriores publicações, a formulação utilizada para este ponto foi: “This set of constraints are proposed as being able to control the generation of solutions within certain architectural intentions that we relate to Siza’s design.” 5. REFERÊNCIA FALSA No seu artigo, o Arq. João Rocha cita como primeira referência um artigo científico, do qual seria primeiro autor, que não existe, nem foi submetido para publicação, ao contrário do que afirma (João Rocha et al. The City of Marrakech and the development of an urban grammar. How to apply generative design systems in an Islamic architectural context). A investigação a que este suposto artigo alude decorre no âmbito de um projecto da FCT do qual a Professora Luísa Caldas é responsável e que implica a utilização do mesmo software. 6. CONCLUSÃO O Arq. João Rocha não escreveu uma linha de código para o software em causa e nunca o utilizou. Ao atribuir-se a autoria de resultados deste software, que são parte integrante do doutoramento de outrem, demonstra uma postura academicamente incorrecta e pouco digna da confiança nele depositada, aproveitando-se da situação de co-autoria que lhe foi, em retrospectiva, erradamente oferecida. Considera-se que os factos expostos exigem a publicação de uma Carta de Reparação pelo autor do referido artigo. Com os melhores cumprimentos, Luisa Gama Caldas

Sobre o mesmo assunto recebemos do Arquitecto João Rocha a seguinte carta:

Aos editores do JA No meu texto publicado na ultima edição do JA 222 «Programa[ção]. Entre sistema de valores e sistema de códigos» não referi que o trabalho referente ao sistema generativo aplicado a FAUP faz parte da tese de Doutoramento da arquitecta Luísa Caldas. Tese elaborada no MIT. Fica aqui esta rectificação. De igual modo a legenda referente a esse trabalho deve ser: Imagem gráfica: Luísa Caldas e João Rocha. A legenda da imagem de Marrakech, deve ser: titulo o mesmo, autores: João Rocha, José Duarte e Luísa Caldas.(....). Projecto POCTI/AUR. A submeter para publicação (e não, submetido para publicação como por lapso vos enviei). Devido á qualidade do trabalho desenvolvido pela Luísa Caldas , gostaria pessoalmente de pedir aos editores do JA, que caso julguem oportuno, de a convidarem a submeter para publicação o seu trabalho sobre sistemas generativos. As minhas desculpas por qualquer inconveniente causado, e aproveito para apresentar os meus melhores cumprimentos, João Rocha


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