01.01 | Transtorno do narrador off A gente nunca sabe como é que certa coisa começou até que ela se converte em segunda pele — “e dela não se consegue escapar”
A
qui estou mais um dia... sob o olhar do cara da padaria.” De onde vem essa voz? “Peço dois dos mais clarinhos. O cara da padaria me olha bovino. Talvez esconda algo por trás das olheiras. Rancor? Raiva? Arrependimento? Culpa. Sim: culpa. Não dormiu bem. Aquele crime ainda deve pesar.” Crime? Que crime? “Sete e cinco sete e cinco vinte e dois quatro um oito meia meia. Não precisa da segunda via. Obrigado. É. Falo isso todo dia, algumas vezes. E se forem minhas últimas palavras?” Bom dia. De onde falam? “Um cigarro pós-café pra clarear as ideias. Ou pra desorganizar as ideias. Pra trazer ideias. Na pior das hipóteses, câncer. Pode ser uma boa. Câncer atrai narrativas. Pense em Breaking Bad. No primeiro romance de Nic Pizzolatto, Galveston. Câncer na literatura. Um bom mote pra uma novela de autoficção. Hum, um livro curto: não conto com longos deadlines. Tenho o título: Câncer no Trópico.” Chega. Onde desliga isso? “A gente nunca sabe como é que certa coisa começou até que ela se converte em segunda pele — e dela não se consegue escapar. Era nisso o que eu pensava enquanto descia a rua. Hum. Aquele homem me parecia peculiar.” Bom dia, seu Ronaldo. “Ah. É o Jura, o zelador do prédio. Bem que desconfiei.” “Narração off é um powerpoint de cineastas preguiçosos para espectadores vagabundos”, pensava, ouvindo os tolos motivos que fizeram o personagem de Joaquim Phoenix passar de filósofo medíocre e broxa a um Super-Homem nietzschiano (algo como se
a coluna do Pondé batesse asas da Folha). A técnica é uma das raras coisas que me irritam na ótima série Narcos, de José Padilha — afinal, é usada pelo gringo agente da DEA, e portanto é a voz do mocinho: a voz do dono. Doença infantil do cinema, admito a narração off em filmes dos irmãos Coen e do Scorsese, no Crepúsculo dos Deuses e poucos outros. “Prefiro que me mostrem do que me contem”, penso. A culpa é de Raymond Chandler e Dashiell Hammett, cujos narradores na primeira pessoa contaminaram os roteiristas de Hollywood — que, pra dar unidade a seus confusos roteiros de filme policial, criaram o narrador off. Assim fica tudo bem mastigadinho pro espectador. São raros os usos de narrador off criativo — como o genial Inherent Vice, de Paul Thomas Anderson, que usa uma narradora off (“bom, mas ai o texto é do Thomas Pynchon”, lembro) e um filme argentino engraçadinho, O Crítico (o protagonista é tão mala que seu narrador off só pensa em francês). Hollywood domesticou os espectadores com o narrador off. E pouco a pouco o narrador off está domesticando nossos cérebros. Em breve pensaremos como os protagonistas de um filme noir. Falaremos sozinhos nossa própria história — porque se não a contarmos, não acreditaremos nela. Um passo à frente dos zumbis oligofrênicos que falam sozinhos em seus smartphones. “Como se fosse um pensamento logo antes de pensar”, penso. Doutora, tem off pro narrador off ?
01.02 | Mal do airbag emocional Estou envolvido por tantos airbags que me sinto um boneco do Michelin — as adiposidades do mundo pop me comovem. E eu curto
V
ocê se dirige rumo ao impacto com o inevitável a 100 km/h. O impacto com o inevitável irá propor ossos quebrados, hemorragia interna, dilaceração de órgãos, eventual dissolução do estar no mundo. O impacto com o inevitável converterá seu corpo numa maçaroca. Mas o impacto com o inevitável pode ser evitável mediante o uso de airbags: sua exocarcaça — seu carro, ou qualquer outra coisa — pode estar disforme; seu estar no mundo, ainda que cambaleante, permanece. Você levanta, sacode o airbag e dá a volta por cima. E volta a acelerar: pois tudo pode ser evitável. Não, eu não vejo o corpo do menino emborcado na praia. Não, eu não ouço o pedido de esmola do craqueiro. Não, eu não leio as notícias hoje oh boy. Não, eu não vejo o vizinho no elevador. Não, eu não lembro dos sonhos nem dos pesadelos. Não, eu nunca encarei a face do pai morto. Não, eu falo com o motorista apenas o indispensável. Não, eu jamais me despedirei do amor que virou gelatina. Não, eu não deixei aberta a porta do filho desaparecido. Não, eu sequer espio o meu extrato bancário. Não, eu me tenho agachado para fora da possibilidade do soco. Não, eu não abraço o abismo. Não, eu não estou sentindo nada. Não é comigo. Nada é comigo. Nada é convosco. Arnon Grunberg te diz: “Sou um produto da civilização, sou o que acontece quando se deixa a civilização tomar conta do animal”. Julian Barnes te diz: “Se eu me matar, vou matar de novo a minha esposa morta, pois matarei todas suas lembranças que agora moram em mim”. Arnaldo Antunes
te diz: “Alguém me dê um coração, que esse já não bate nem apanha”. Chuck Palahniuk te diz: “A maioria dos caras está no clube da luta por causa de algo que têm medo demais para enfrentar”. Louis CK te diz: “Lá embaixo da sua pele tem aquele vazio... sabe? A vida é terrivelmente triste. Então quando você sente isso, sabe o que você faz? Você pega o celular”. Estou envolvido por tantos airbags que me sinto um boneco do Michelin — gigantesca pantufa é a realidade que me pisa. As adiposidades do mundo pop me comovem e eu curto, curto, curto pra que nada incurtível apareça na frente. Nada pode me atingir, estou aquém do bem e do mal. Tenho uma memória de peixe: deslizo de prazer a outro, sem fruir ambos, nem me ferir com nenhum, sequer lembrar da possibilidade do sangue, da ferida, do susto. Meu airbag não deixa. Daqui da minha bolha, daqui do meu lugar comum, daqui do meu pôr do sol, da foto do meu prato, do meu gato, do meu cachorro, dos meus pés levitando sobre a paisagem, da zona de conforto, eu espio a zona de confronto — e desvio o olhar. Muhammad Ali sabia que era mais fraco do que George Foreman, então durante sete assaltos se agarrou às cordas, atraindo seu oponente, e absorveu os golpes do homem mais forte do mundo — os golpes migravam das fibras de seus músculos para as fibras das cordas do ringue, e as cordas vibravam a linda música da violência, que canta: aparar um golpe é um golpe em si. No oitavo round, Foreman estava cansado e Ali não hesitou em derrubá-lo com um único soco.
01.03 | Pressentimento de abdução Chegou a hora de assumir. Eu sou um ET
N
avegando nas ondas da rede mundial de computadores eu topei com um interessante questionário elaborado por ufólogos. Seu objetivo é determinar se a pessoa foi abduzida por seres extraterrestres — ou se é, ela própria, um ET (mas já esqueceu). O quiz — não consegui descobrir quem foi que o escreveu — tem 58 perguntas e se encerra com dois enigmas: respondeu afirmativamente a mais de 15% dessas perguntas? Respondeu positivamente mais de 20% mas não consegue se lembrar sobre abdução ou encontro com ETs? Então... Bem: 15% de 58 dá 8,7; 20% dá 11,6 questões. Aí vão meus 15 sins. Tire suas conclusões. Te vejo em Marte. Já teve algum episódio de tempo perdido? Sim, desde que resolvi virar jornalista. Já se sentiu paralisado na cama? Sim, no exato momento em que escrevo este texto. Teve recordações de voar muito nítido ou muitos sonhos que envolvem vôo? Afirma Freud que sonhos com voos significam desejo sexual. Como vivo sonhando que estou fazendo sexo, então, sim, só pode ser um sinal de que voei ou voo ou fui voado. Tem um sentido forte de ter uma missão ou tarefa importante a executar, sem saber de onde vem essa compulsão? Toda vez que olho meu extrato bancário, mas misteriosamente a sensação some tão logo torro dinheiro com alguma coisa. Aconteceram eventos especiais e estranhos no decorrer de sua vida? Nasci. Acordou em outro lugar onde você foi dormir, ou em posição diferente? Sim, na rua, e contra a minha vontade. Já acordou no meio da noite com a impressão de ter gente em seu quarto? Favor ler resposta anterior. Já sentiu sensação de estar sendo levado contra sua vontade? Favor ler resposta anterior. Já ouviu alguma voz em sua cabeça talvez instruindo ou guiando? Favor ler a crônica “Transtorno de Narrador Off ”. Foi compelido a andar para uma área afastada
ou desconhecida? Passei um tempo na Ilha de Páscoa, mas ninguém tem nada a ver com isso. Já sentiu a impressão de estar sendo observado, especialmente à noite? Sim, talvez porque meus vizinhos ainda não se acostumaram ao meu hábito de ficar em casa nu. Já despertou com uma sensação estranha em seus genitais que não foi explicada? Favor ler resposta anterior. Já teve a sensação de que você pode ficar louco? “Só as pessoas medíocres aspiram à normalidade” (Jung). Enfrentou problemas de se sentir só no mundo? “Vivemos juntos, atuamos uns sobre os outros e reagimos uns aos outros; mas sempre, e em todas as circunstâncias, estamos sós. (...) Nos braços um do outro, os amantes tentam desesperadamente fundir seus êxtases isolados num único arroubo de autotranscendências; mas em vão. Todo espírito encarnado está, por sua própria natureza, condenado a sofrer e gozar na solidão. Sensações, sentimentos, ideias, fantasias, todos eles são particulares e incomunicáveis (exceto por símbolos). Podemos juntar informações sobre nossas experiências, mas não podemos juntar as experiências em si. A mente não está em lugar nenhum a não ser nela mesma. (...) Como poderemos visitar os mundos onde Blake, Swedenborg ou Bach viviam? Parece praticamente certo que jamais saberei como é ser Falstaff ou Joe Louis. Porém, modificando meu estado ordinário de consciência, usando hipnose, meditação, ingestão de medicinas, eu poderia modificar meu estado ordinário de consciência a ponto de conhecer desde dentro a consciência de visionários, médiuns e místicos.” (Huxley, As Portas da Percepção)
01.04 | Feminismo fofoleto Ele já foi de Frida Kahlo numa festa à fantasia. Não funcionou
F
ê sifu. Foi ferido por um vírus do zeitgeist e perdeu o lugar de fala porém mantém o falo no lugar, como se fora um recuerdo da época em que era machista. Esquizo, bipolar, esquerdomachucado, Fê fica na dúvida sobre se abre a porta do carro e estende a mão à dama que sai, se dá uma sacada naqueles joelhos que escapam sob o vestido preto ou se deixa a amiga meter o salto 10 na lama retida no meio-fio, afinal sister é sister, ela é mulher, que se vire. Fê é tão polêmico quanto Ray Conniff, por isso se orgulha quando uma amiga ou namorada paga o rango dele; troféu ao contrário, já que vive duro. Fê já se pegou chorando enquanto aplaudia o pôr-do-sol de olho na asa-delta da morena do Leblon. Fê já se pegou chorando com propagandas governistas pró-feminismo. Fê já se pegou chorando só porque se pegou chorando, que lindo, um dia eu chego no Chico César. Fê quer ser a mulher de César: compartilha todos os relatos de assédio no Twitter ao mesmo tempo em que envia DMs líricas e enviesadas e aparentemente sem intenção nenhuma que não seja um chai latte, mas de madrugada soltou uma mensagem com um nude ereto. Fê já se ouviu dizendo “por favor, a sua vez”, quando deitou-se de costas na cama esperando a gata vir por cima. Fê posta clipes do filme Frozen analisados por Zizek, a nova da Adele e trechos dos livros de Pat Smith e Kim Gordon. Fê faz yoga e já experimentou tomar anticoncepcionais uma vez só pra ver qual era. Fluffy stuff, Fê ficou um tempo se batendo pelo uso do termo feminista e achou mais correto se apresentar como feministo para não assumir o protagonismo em causa alheia, no entanto em seguida entrou numa onda de abolir os artigos ligados a gênero e hoje em sua tagline
está feministx. Fê se pergunta se o feminismo não seria um novo cristianismo, entrou no cheque especial por conta das reparações históricas e se chicoteia sozinho no banheiro. Fê acha que pega mal começar um papo no Tinder com uma garota por isso não sabe o que fazer com aquele monte de match mudo. Uma vez a namorada do Fê o fez parar o carro e descendo o zíper disse “sou tua” ao que ele respondeu prontamente “não baby você é de você e de ninguém mais, seu corpo suas regras”. Fê vibra quando descobre que uma amiga chifrou um amigo e vibra ainda mais quando descobre que o amigo é ele. Fê vive se desculpando: quando soltou um “meu amor”, pressentiu sentimento de posse e ganhou um mind fuck. Fê deu de presente para uma ex um cinto-pinto mas quando terminaram ele roubou o mimo de volta, “quero me lembrar de você”. E tome sofrência. Experimentalista convicto, Fê surrupiou o batom de uma amiga e colocou um tomate dentro da cueca para saber como é naqueles dias. Fê indigna-se com a última do Cunha mas quem faz sua cama é a tia Justina, que vem dar um tapa na sua casa toda semana. Fê usa a expressão “ditadura do patriarcado” pra tudo, desde pra justificar sua pança proeminente até ofender os deputados do Congresso. Fê curte tomar uns tapas na bunda, só que uma vez soltou bem grosso “bate que nem homem, porra” aí achou que estava roubando o protagonismo da namorada e broxou. Fê já foi de Frida Kahlo numa festa à fantasia só que não caiu bem: foi catado por uma cover de RuPaul no banheiro e o lápis das sobrancelhas escorreu para as costeletas. Pra desconstruir o mito das princesas, a fantasia secreta de Fê é tomar um boa-noite-cinderela de uma caminhoneira no velho Ferro’s Bar, que lembraria um pouco sua progenitora, a
dona Fernandona. Enquanto isso não rola, Fê aplica o truque no Facebook. Mas Fê se sentiu mal depois que uma garota o elogiou por ter sentido tesão na bunda da Simone de Beauvoir. Fê compartilha a última da Garota Siririca contudo deixa escondido um Click do Manara dentro do criado-mudo. Fiscal de like alheio, Fê dedura às amigas os falsos feministas, conta histórias que começam “antigamente, quando eu era bem machista”, e cultiva man’s boobs: “Estou me desconstruindo, companheira. Tamo junto”. Fê compartilha cenas de partos mas desmaia quando vê sangue. Fê dá um toque nas amigas sobre as cartas abertas aos homens da sua tagline sobre os direitos da mulher que escreveu na rede social pra ficar feliz se leva um joinha. Fê teve sensações contraditórias ao ver a Ronda caída no chão depois da traulitada que levou no último UFC. Chapou, chorou, gostou, se culpou. Fê nunca sabe se deixa a tampa da privada abaixada ou se a levanta afinal de contas não estaria com isso sugerindo que a mulher não sabe abaixá-la sozinha? Se presentear com um livro ou vestido estará dando um recado à amada idolatrada salve salve para ela ler mais ou impondo um padrão estético? Qual corrente do feminismo está pegando, qual a atitude certa a tomar, está sendo feminista o suficiente, qual a feminista da vez a citar, por que essas mulheres mudam de ideia o tempo todo? Fê sofre, se culpa, se nega, se transtorna. Não é fácil ser o Fê.
01. 05 | Síndrome do ressentimento hipster Aquele sentimento de explorador reencontrando um espécime raro, aquela velha e boa sensação do corpo a corpo com o autêntico
D
os males do nosso tempo, o Sagrado Círculo do Pop é uma doença tão incontornável quanto a gravidade ou a horrenda estátua do Borba Gato em Santo Amaro (SP). A síndrome manifesta-se por uma ardorosa adoração pelo autêntico. Você fica imprensado entre o desejo de ser único e o sentimento de ser parte do Todo. Está preso entre a novidade e o tempo perdido. É certamente uma síndrome esquizofrênica. Os primeiros sintomas são percebidos quando uma coisa qualquer começa a ser cultuada por um círculo de iniciados. Digamos... chinelos roxos fosforecentes. Você vê um par de chinelos roxos fosforecentes numa lojinha fedida que funciona perto do Minhocão: acha incríveis, mas fica meio envergonhado de usar, e acaba não comprando. Algo se instalou dentro de você, no entanto, em relação àqueles chinelos roxos fosforecentes: o sentimento de presenciar algo inato, incriado, especial, singular — o autêntico. Mas você o deixou passar. Curiosamente, percebe, tempos depois, que aquela sua vizinha silenciosa usa o par de chinelos roxos fosforecentes. Logo seu namorado músico também está usando, e até mesmo o traficante, quando vai entregar o orégano cambojano ao casal, também. Você jura que leu um artigo num site de Portland ou Londres sobre um bizarro rito praticado por homens barbudos de bicicleta, óculos rachados, ecobags velhas e chinelos roxos fosforecentes — usados — , mas deve ter sido um sonho.
Depois de alguns meses de boca-aboca, os chinelos roxos fosforecentes saem do estágio Cult e pisam o perigoso território do Hype. Agora o pessoal do seu trabalho, aquele povo mais moderno, prafrentex, descolado (já inventaram um sinônimo novo pra esses pobres adjetivos?), e até os jovens do seu prédio e vizinhos usam chinelos roxos fosforecentes. Pululam materinhas em sites, blogs, posts em redes sociais: “Meus chinelos roxos fosforecentes eu trouxe de Samarcanda, na minha última viagem à Ásia”, “Não saio de casa sem meus chinelos roxos fosforecentes feitos de couro de lhama”, “Sou sustentável, então meus chinelos roxos fosforecentes foram reciclados de sacolas de limão compradas na feirinha do Glicério”. Algum jornalista antenado (hum?) captou a tendência e decretou: os chinelos roxos fosforecentes são a nova pochete. A indústria dos chinelos roxos fosforecentes paga espaços na mídia, paga formadores de opinião (oi?), presenteia atores e atrizes com chinelos roxos fosforecentes do balacobaco (sic). É tempo dos chinelos roxos fosforecentes pular do degrau Hype e passar para o mundo de Andy Warhol: o Pop. Sua mãe e seu pai estão usando chinelos roxos fosforecentes, seu chefe vai trabalhar de chinelos roxos fosforecentes. Já há concursos como A Garota do Chinelo Roxo Fosforecente. Uma famosa marca de chinelos roxos fosforecentes patrocina um festival de música. No cinema ouve-se o diálogo: “No seu chinelo roxo fosforecente ou no meu?”
Meses se passam e tempos depois você nota o porteiro de seu prédio usando chinelos roxos fosforecentes. A moça que faz faxina em sua casa veio usando dois chinelos roxos fosforecentes de duas marcas diferentes. A polícia federal apreendeu um carregamento de orégano cambojano escondido em uma carga de chinelos roxos fosforecentes que zanzavam da China para a África. Você balança a cabeça, desconsolado: decididamente os chinelos roxos fosforecentes desceram do patamar do Pop para o estágio do Brega, ou, se preferir manter a nomenclatura gringa, do Kitsch. Cantores populares usam chinelos roxos fosforecentes; naquele pornô amador que a vizinha silenciosa postou, seu marido músico espanca seu popô com um chinelo roxo fosforecente; Romero Britto pintou (hein?) um quadro do Cristo Redentor usando chinelos roxos fosforecentes que foi comprado por Paulo Coelho para presentear Madonna. Os chinelos roxos fosforecentes estão a ponto de dominar o universo... quando, naquela mágica lojinha perto do Minhocão, você vê umas botas de sete-léguas de couro de girafa. A notícia se espalha. Logo as ações das fábricas de chinelos roxos fosforecentes despencam. Toneladas de chinelos roxos fosforecentes são destinadas à reciclagem. “Nunca usei”, esquiva-se a misteriosa vizinha à pergunta do traficante de orégano cambojano. Os chinelos roxos fosforecentes foram andar no ostracismo.
Anos se passam, você passa pela lojinha, que já não tem mais botas de seteléguas de couro de girafa — estas adornam agora os pés da presidenta da ocasião, da diva em questão, do craque da rodada, do galã do momento. Mas a vitrine da lojinha mágica ostenta, meio escondido sob um acordeon lituano e um ferrorama norteamericano do século 19, um par de chinelos roxos fosforecentes. Você sente aquele velho formigamento, aquele sentimento — na verdade, um ressentimento — de explorador reencontrando um espécime raro, aquela velha e boa sensação do corpo a corpo com o autêntico, e não tem dúvida: compra o par de chinelos. E anda não entre, mas acima dos mortais. Orgulhoso, reinaugurou o Círculo do Pop, de volta ao estágio Cult. Mas que, agora, tem um novo nome: Vintage.
01.06 | Mal da má notícia Quem é que sabe a hora certa de dizer a coisa errada?
N
a época, cheguei a pensar que ela sofresse do mesmo mal daquele famoso garçom do Alberto Moravia. O garçom detesta os fregueses e imagina coisas horríveis; seus pensamentos são incontroláveis. “Eu dizia, solícito: ‘Queijo, senhora?’; e pensava, ao contrário, ‘Você tem bigodinho, minha filha... pode descolorir mas dá pra ver assim mesmo”. A maior parte das vezes, porém, passavam pela minha cabeça ameaças, injúrias, palavrões, insultos: ‘Cretino, tonto, morto de fome, que a sua língua fique seca’. Era mais forte do que eu, ferviam continuamente na minha cabeça, como feijões na caçarola. Se eu perguntava ‘O senhor conhece nossa especialidade?’, completava, dentro de mim: ‘Comida ruim e conta salgada’.” Um dia o garçom não se conteve e, ao olhar um cliente tosco, pronto, falou: “Que cara de caipira!” (é “O pensador”, de Contos Romanos — aliás, está na hora de uma editora recolocar em circulação o grande Moravia). Foi lendo o novo romance de Lourenço Mutarelli, O Grifo de Abdera, que desgraçadamente me recordei não só do garçom de Moravia como de certa dama antiga, que conheci na cidade de X... Ela talvez sofresse do mal do personagem Oliver Mulato, que do nada solta frases em portuñol selbaje: “Mi culo es del tamaño de un cenicero y mi coño es del tamaño de una cesta de picnic. La boca torcida envuelve mi polla curvada hacia la izquierda. Ven a comer mi cagadero, querida, pero comelo duro”... E por aí afora. Como detesto a a indústria farmacêutica e, por tabela, a indústria psiquiátrica, psicanalítica e psicológica (acho que já ficou claro nessa série), prefiro não diagnosticar este mal
— como Mutarelli faz com Oliver — por síndrome de Tourette. Prefiro me apoiar na literatura e na arte pra tentar entender as pessoas (vai ver é por isso que só me fodo). Entretanto, penso hoje que talvez a dama antiga padecesse doutro mal. Algo aparentado àquele personagem do Adão Iturrusgarai, o Homem-Legenda, que surge de repente para, tipo o retorno do recalque freudiano, mandar a real. “Que achou do filme?”, pergunta a moça. “Profundo”, diz o namorado, quando chega o Homem-Legenda: “É chato e eu não entendi lhufas”. A propensão da dama antiga a ser sincerona era específica: uma tendência em lançar a nuvem preta que coalhasse o mínimo céu azul. A ideia de que não se merece um momento incrível: algo deve ser estragado para ser vivido ou lembrado; tão logo se alegre, necessário imediatamente criar uma sombra. Espírito de porco, de autosabotagem, desconcertante falta de senso de noção. Como na cena de Henry & June em que, após uma bela foda, Anaïs Nin vira pra Henry Miller: “Gosto de transar com você porque seu pau não é tão grande quanto o do meu marido”. Se o autor de Trópico de Câncer não estivesse em modo flácido, depois dessa floparia irremediavelmente. Nem o feministo mais fofoleto resiste a uma comparação com outrem, se na horizontal. De onde viria a compulsão da dama antiga em cagar no bolo de aniversário? Lembro de outra vez, após um filminho romântico, em que me contou de modo cândido já ter saído com um cara com meu nome. Ou, depois de uma noite
maravilhosa, no café da manhã relatar que tinha traído um ex com um amigo. Ou, depois de outra noite maravilhosa, sugerir que o traído na verdade fosse eu. Naquela época eu vivia sob o domínio de um passado que constantemente se movia. Too much information is always bad information. A verdade é que ninguém está preparado para a verdade. Uma verdade súbita solapa toda uma fantasia laboriosamente construída... e o que será mais real... uma fantasia perfeita... ou a verdade suja que surge à tona... como o mar de lama em Minas Gerais afogando de vez o Sonho Brasileiro? “Se você não tivesse me dito nada, se tivesse continuado a me enganar...”, lamentase Muriel, o protagonista de Assim Começa o Mal, de Javier Marías, dirigindo-se à mulher. “Quando se leva a cabo um engano, deve-se sustentá-lo até o fim. Que sentido existe em tirar do engano um dia, contar de repente a verdade? Isso é pior ainda, porque desmente todo o ocorrido, ou o invalida, você tem que voltar a contar o vivido, ou negá-lo. E no entanto não viveu outra coisa: viveu o que viveu. E o que você faz então com isso? Apagar o que viveu, cancelar em retrospecto o que sentiu e acreditou? E onde você põe isso, o que ocorreu e o que não ocorreu?” (Moravia, Mutarelli, Iturrusgarai, Nin, Marías: este talvez seja um mal mediterrâneo.) “Não vou mentir mais. Ninguém ficou feliz com minhas mentiras. Agora vão saber da verdade. Você acha que fulano vai gostar mais do que escrevi sobre ele que o que lhe dizia ou lhe dava a entender com minhas evasivas? Acredita que beltrano prefere saber
o que penso dele ao que lhe disse? Nunca soube dizer a ninguém ‘não te amo’. O erro que cometi foi querer abarcar demasiado. Não podia alimentar cinco fogos. Tinha que desatender a algum, e por isso me odiaram. Sobrevalorizei minhas forças. Quando dizia uma mentira era uma mensagem vital, uma mentira que dava vida” (Diários de Anaïs Nin, 5 de agosto de 1933). Uma vez estávamos falando bobagens nos balanços de um parquinho. Perto, o rio corria tranquilo; o sol poente murmurava dourado nos seixos. Distraída nas crianças deslizando escorrega abaixo ou trepatrepando ou se metendo em túneis, ela soltou: “Ano passado fiz um aborto”. Na época eu já achava inquestionável — como hoje — o direito ao aborto. No entanto, ver a dama antiga contar assim sorrindo, assim leve, como o vento que soprava fresco vindo do rio, como as crianças que faziam travessuras, me gelou. As crianças escorregando ou trepa-trepando ou se metendo em túneis subitamente se tornaram esqueletos, almas penadas, zumbis fervendo como feijões na caçarola. Seu próprio rosto, lindamente ingênuo na luz que caía vermelha, virou uma caveira. E esta crônica, que era pra ser engraçada, saiu triste. Sorry, acho que também sofro do Mal da Má Notícia. Quem é que sabe a hora certa de dizer a coisa errada?
01.07 | Compulsão ao amor pop-up O e-mail era falso, o nick não dava pistas, a alma-gêmea sumiu na neblina: não era amor, era um avatar
V
ocê nunca confiou em mim nem nunca confiará, escreveu Michel a Dilma. Acusem o vice de golpismo, mimimi, satanismo; só não o acusem de ghosting. (Mau) poeta, Michel sabe que o contrário do amor não é o ódio: é a indiferença. Cansou de ser ignorado mas não jogou o jogo da carametade; em vez de fechar a janela e desativar o bate-papo, terminou a relação postando uma carta aberta na timeline da República. “Esperei horas na estação. Pensei que María ia aparecer; esperava essa possibilidade com a amarga satisfação sentida quando, em criança, a gente se esconde em alguma parte, ao acreditar-se vítima de uma injustiça, esperando a chegada de uma pessoa maior que nos venha buscar. María não veio. Quando o trem chegou e olhei o caminho pela última vez, com a esperança de que aparecesse no último momento, e não a vi chegar, senti uma infinita tristeza. Fiquei a olhar pela janela enquanto o trem corria. Passamos perto de um rancho; uma mulher olhava o trem. Ocorreu-me um estúpido pensamento: ‘Vejo esta mulher pela primeira e última vez. Não voltarei a vê-la’. Não podia deixar de pensar que havia existido um instante para mim e que ele nunca mais voltaria a existir; era como se já estivesse morto. Tudo me parecia fugaz, transitório, inútil, impreciso”, escreveu Ernesto Sábato em O túnel. No romance de 1948, um pintor, siderado por uma mulher que nunca lhe diz sim ou não, e que só lhe dá perdidos, se torna um assassino. Estão lá o machismo, o sentimento de posse, a narcísica obsessão por um ser elevado a um ilusório pedestal, mas está também um dos mais cruéis males do amor: o ghosting.
Agora que a fronteira entre real e virtual se dissipou e a “vida real” virou uma timeline em que o mês dura uma hora, o ghosting é a etiqueta corrente para dar ou levar um pé na bunda. É batata: em algum momento, alguém que se importava com você (assim você acreditava) irá desaparecer sem explicação. Nem sms, nem e-mail, nem tchuns ao emoji carinhoso da madruga. Ghosting foi eleita uma das palavras de 2015 pelo dicionário Collins; pesquisas citam que 50% deram ou levaram; há relatos tenebrosos de ghosting e depressão. Findo, o amor segue suspenso na neblina como as imagens fantasmagóricas de Ana Markovic. Os hispânicos têm um maravilhoso verbo correlato ao ghosting: ningunear — desprezar alguém a ponto de ignorá-lo completamente. “O ninguneo é uma operação que consiste em fazer de Alguém, Nenhum”, explica Octavio Paz n’O labirinto da solidão. Funciona assim: Mientras yo te stalkeo/ tú me ninguneas. Nada mais deprimente que crer ter algo profundo com alguém que sumiu e ver a luzinha verde do ser amado na coluna dos contatos online: afinal, está morto ou vivo? O amor líquido datou; agora vive-se e morrese de amor gasoso, ninguneado com um clique. O amor pop-up, a janela incômoda que, mal piscou na página, você vai lá e pluft — tão mais prático que aturar as lágrimas da despedida e lavar a roupa suja do luto... E cuidado: todo aquele que fantasmou será fantasmado. E numa velocidade cada vez maior. Próximo! “Tive as conversas mais envolventes da vida com uma mina que conheci no MSN”, me contou um amigo, “e depois que o MSN morreu, nunca mais achei ela. O email era falso, o nick não dava pista... Minha alma-
gêmea sumiu na neblina; não era amor, era um avatar”, lamentava. “Ela partiu e nunca mais voltou... se eu soubesse onde ela foi, iria atrás”, geme Tim Maia na vitrola. O síndico e o vice sabem: a única arma pra ningunear fantasmas é cantá-los. A alternativa é, como o triste pintor de Sábato, ficar na estação à espera, tendo, mesmo à visão de um novo amor, a ansiosa certeza de que tudo é fugaz, transitório, inútil, impreciso — e de que toda vez será a última.
Textos Ronaldo Bressane Projeto gráfico / diagramação / capa Eduardo Kerges Ilustrações Eduardo Kerges Mal do airbag emocional Pressentimento de abdução Mal da má notícia Eva Uviedo Feminismo fofoleto Zé Maia Súndrome do narrador off Síndrome do ressentimento hipster Compulsão ao amor pop-up Papel OffSet 90 gr/m2. Tiragem de 50 unidades númeradas e assinadas.
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