SUBMARINO #05 - Contos Russos

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constelaçoes

Aconteceu de tudo em 2022. Ganhamos a Copa, pegamos covid no carnaval de fevereiro, pegamos covid no carnaval de julho, enterramos a rainha, nos curamos da covid, elegemos vários esquerdistas pela América Latina, descobrimos a cura para o câncer, as fake news e o vício em redes sociais, expulsamos um sociopata da presidência da República e proibimos o strogonoff. Pois é. Mais uma caricata amarga da liga dos supervilões fascistas, Vladimir Putin invadiu a Ucrânia só pra aumentar o cacife do seu gás natural. O presidente russo atraiu a ira do mundo todo para sua pátria, fazendo a Rússia perder dólares, charme, noção e até o MacDonald’s da Praça Vermelha. As repercussões foram as mais bizarras: de donos de bares estadunidenses a despejar nas calçadas todas as suas Stolichnayas (isso sim um crime) até universidades italianas a cancelar cursos de literatura russa, passando por um pitoresco restaurante brasileiro que baniu de seu cardápio nosso típico picadinho com cogumelos, arroz e batata palha, tudo banhado a molho branco. Aí foi demais. Urgia uma reação a este descalabro. Putin que se dane, mas as tradições russas, como a culinária tosca e a literatura fantástica, devem ser preservadas. Na posição de capitão do Submarino, o laboratório infinito de ficções breves, felizmente flutuando bem longe do Mar Negro, de pronto determinei aos tripulantes que usassem o máximo de exemplares das ficções russa e ucraniana como modelos para a criação de suas próprias narrativas curtas. De Clarice Lispector a Liudmila Petruchévskaia, passando por Gógol, Dostoiévski e Púchkin, passamos meses lendo só esses loucos que escrevem em cirílico, usando como tinta desespero, fúria e muito trigo. Inspirados em plots geniais e mágicos personagens, escanteamos a estupidez imperialista e mergulhamos no que eslavos e caucasianos têm de melhor: o fogo de contar histórias. Voltamos à tona com nossos próprios contos. Boa viagem. RB

Aleksandr Púchkin

Aleksandr Soljenítsin

Andrei Kurkov

Anton Tchékhov

Clarice Lispector Daniil Kharms

Dezsö Kosztolányi Fiódor Dostoiévski

Isaac Bábel

Ivan Gontcharov

Iuri Oliécha

Joseph Brodsky M. Aguéiev

Liudmila Petruchévskaia

Liudmila Ulitskaia

Marina Tsvetaeva

Nikolai Gógol

Nikolai Ognióv

Sigismund Krzyanowski

Svetlana Aleksiévitch

Serguei Dovlátov

Varlam Chalámov

Vladimir Nabokov

Vladímir Sorókin

Cuidado com o vao

Depois dos trinta, as pessoas acham complicado fazer novos amigos. Eu discordo. Pra mim, difícil mesmo é se desvencilhar das amizades antigas, aquelas que perderam o sentido há muito tempo. Você nem entende como deixou a pessoa chegar tão perto, grudando como herpes. Por onze anos, aturei Eunice agarrada aos meus calcanhares, se alimentando das minhas sobras, contaminando qualquer ambiente em que eu entrasse com ela de sombra. É isso, ponto final. Encontrei um rumo na vida e não vou mais levá-la de carona. Esta manhã, desatei os últimos nós que nos uniam como irmãs. Planejo me despedir com um “a gente se fala”. O metrô logo vai chegar à estação Sé. Desço e ela segue no trem até a Barra Funda. Adeus pra sempre.

Quase lá. Até já dei as costas. Nem olho sua cara no reflexo do vidro da porta quando ouço no cangote seu “mande notícias, Bárbara”. No curso de Publicidade, precisei aturá-la porque éramos colegas de classe e, desde o primeiro dia de aula, se apoderou da cadeira ao meu lado. Tínhamos muitas amigas em comum e vivíamos nos esbarrando nas festas. Pior foi quando Eunice começou a trabalhar na agência de um tio e resolveu me indicar pra outra vaga. Só aceitei porque era meu primeiro emprego. Queria ter recusado, não ficar em débito. Assim, quando a chata precisou de abrigo porque foi largada pelo noivo, não me sentiria pressionada a dividirmos um apartamento. É só por umas semanas, ela disse. Sei. Por três invernos, a gente conviveu no escritório e em casa, um inferno. Mas acabou. Tenho um novo emprego, em uma nova cidade, onde farei novos amigos. Só preciso sair desse metrô. Por que essa merda está andando tão devagar? Deu até vontade de soltar uma última verdade.

Vê se me esquece, Eunice. Você sempre foi uma mala sem alça.

Uma pena eu não ter esperado as portas se abrirem. Mas foram quatro anos refazendo os textos da incompetente nos trabalhos do curso. Mais duas temporadas levando a bêbada pra casa em segurança após as baladinhas. Outro par de anos engolindo seus chiliques como minha chefe. Por fim, em nosso apê, ouvia inúmeras lamúrias de desilusões amorosas, reclamações de picuinhas corporativas e confissões sobre carências familiares. Não tinha privacidade nem no meu quarto. O desabafo estava encaroçado na laringe. A sinceridade escapuliu da minha boca. Foda-se. Só sair do vagão sem olhar pra trás. Infelizmente, o metrô acaba de parar no meio do túnel.

Senhores passageiros, estamos aguardando a movimentação do trem à frente.

Ela ouviu o que acabo de dizer? Saiu meio no pigarro. Espero que os outros passageiros não tenham escutado. Aposto que, hoje de manhã, alguém pressionou o botão de soneca quando o alarme tocou. Saiu de casa na pressa e, mesmo assim, parou na padoca a caminho da estação e pediu um pão de queijo. Então, compensou o tempo perdido empurrando os outros usuários na catraca e descendo a escada rolante correndo. Ignorou o sinal de fechamento do trem, segurou as portas e, por causa do egoísmo de um estranho, preciso adiar a despedida da amiga pouco depois de cuspir na cara dela.

Quem segura as portas do trem atrasa a vida dos outros.

Concordo, senhor condutor, atrasa mesmo. Nem posso sumir de vista ao espinafrar uma ex-amiga na frente de todos. Vagão lotado. Há um minuto, todos estavam de conversinha, maior barulheira. Olha pra esse povo agora, ninguém respira. Posso vislumbrar um metroviário observando a cena pela câmera de segurança e achando que seu monitor travou. Eunice está atrás de mim ainda? Até sinto seu bafo na nuca.

Puxa, Bárbara, você era minha colega favorita na faculdade, sabia?

Droga, ela ouviu sim. E vai começar essa DR aqui, na frente dessa gente? O senhorzinho de bigode troca olhares cúmplices com a moça de piercing no nariz sentada ao seu lado. A senhorinha japonesa disfarça o incômodo, buscando nada dentro da bolsa. Tem um engravatado ali no canto que se escondeu atrás de um livro com a capa de ponta-cabeça.

Achei que éramos amigas. Lembra das baladinhas daquela época? Eu era fraca pra bebida, mas tomava todas tentando acompanhar seu ritmo. Porque eu te admirava muito, viu?

Impressão minha ou aquela gorda tá apontando a câmera do celular pra cá? Vou virar meme, já vi tudo. Tipo “senta aí, Cláudia”, “acabou, Jéssica”, “fale com a Márcia”. As pessoas vão espalhar algo como “até tu, Bárbara?”. Ferrou. Vou mudar de nome.

Até te chamei pra trabalhar comigo. Lembra, Bárbara? Foi seu primeiro emprego em uma agência de verdade, quando cansou de andar por aí com currículo na mão só levando porta na cara.

Tem alguém rindo ali atrás. Um monte de buchichos no ar. E por que todos me observam? Não sou eu dando escândalo no meio do trem. Eu tô quieta. Olhem pra maluca de voz esganiçada se lamuriando sozinha.

Bárbara, a gente dividiu a mesma casa por todos esses anos e eu nunca reclamei de você deixar a pia cheia de louça suja. Nem pedi para você gemer mais baixo quando transava com seu ex-namorado. Porra, todo dia eu raspava seu cocô da privada porque você, ah, você tem nojinho de encostar na escova do banheiro.

Estamos trabalhando para normalizar a circulação de trens o mais rápido possível.

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Bom saber, senhor condutor. Mas o estrago é irreversível. Eu poderia estar na linha azul, indo para o Paraíso, passando agora pela Liberdade, olha que roteiro lindo, bem longe de Eunice e sua nuvenzinha escura, seu derrotismo, sua autoindulgência, sua insistência em lembrar os outros de como a vida é vazia. Ia passar o fim de semana com meus pais e pegar a ponte aérea, deixando a outra no vácuo. Celular e redes sociais bloqueados, nunca mais nos veríamos, um sonho.

Se não gostava de mim, Bárbara, disfarçou muito bem todos esses anos, viu? Mas não tinha problema comigo quando te emprestava dinheiro pra cobrir o cartão de crédito. Nem quando me pedia pra enrolar o Rogério enquanto corneava o coitado com o irmão dele.

As pessoas nem disfarçam mais. Passaram dessa fase e já apontam direto pra mim. Logo, voltam à quarta série e destilam provocações. Canalhas, loucos pra verem duas moças saindo no tapa.

Não sabia o quanto você era falsa, Barbe. Nem tem coragem de olhar na minha cara, não é?

O trem se movimenta. Há um suspiro coletivo no vagão. Em menos de dez segundos, chegamos à plataforma. A porta demora outra encarnação para abrir.

A gente se fala, Eunice.

Segue em frente. Rápido. Não para, não para. Acabou. Nunca mais.

Elza sem adornos

04/07/2022

– Segunda-feira

Ontem, uma mulher desceu do ônibus sem me notar na calçada. Quando nos esbarramos, vi de perto seu cabelo azul. Estava oleoso, mas por impulso, senti vontade de tocar. Não deu tempo. Parecia agitada e seguiu sem pedir desculpas. Virou na esquina da rua escura e sumiu. Ela usava uma mochila em forma de macaco e os braços e pernas do bicho abraçavam seu tronco.

Hoje, acordei com vontade de ter cabelos azuis como os da mulher. Por conta disso, aproveitei a manhã pra procurar perucas na 25 de Março. É bom ainda ter dinheiro e tempo. Antes de sair, mandei mais currículos para as escolas e clínicas. Vamos ver se passo numa entrevista e consigo ficar no emprego. Enquanto espero, me viro como manicure.

As perucas estão na sacolinha embaixo da cama. Acabei comprando três: a azul, uma loira e uma de fios pretos naturais e curtos. Junto, trouxe uns óculos de sol, um boné, uns lenços grandes e uma mochila em forma de macaco, igualzinha à da mulher que desceu do ônibus. Gastei mais do que o previsto. A cada item que vestia, aumentava a vontade de me transformar. Quase trouxe uma lilás. Ia dar vida aos olhos. Só não comprei porque eram grandes pra minha cabeça miúda. A peruca de cabelos pretos é masculina.

05/07/2022

– Terça-feira

Logo cedo, tomei café sem leite, esquentei uma fatia de pão na frigideira e consultei os e-mails. Nenhuma resposta das escolas e das clínicas de qualquer coisa. Nada para professora, nada para recepcionista. Então me vesti de Amanda. A partir de hoje, quero seguir a ordem alfabética. Amanhã escolho se vou sair de Berta ou Berto. O que sei é que circular pelo centro da cidade de peruca azul é diferente de fazer o mesmo no Itaim. O centro é mais acolhedor e o Itaim tem uma gente que anda em levas e de repente desaparece.

Fiquei bem com os cabelos brilhantes na altura do maxilar, mas Amanda não passou nem na porta para a entrevista no Salão de Beleza do Shopping JK, também não passou como vendedora na Santa Efigênia. Acabei de decidir que amanhã vou de Berto e vou conseguir uma vaga na loja de games. Só tem homem por ali. Com a peruca de cabelos pretos, fico a cara do meu tio Vicente. Ele entendia de eletroeletrônicos, me trazia minigames do Paraguai e só me deixava jogar depois de sair da minha cama.

06/07/2022 – Quarta-feira

Caminhei daqui do Cambuci até o Brás. Saí às seis pra comer uma fatia de bolo com café de garrafa na estação

SUBMARINO CONTOS RUSSOS | 05 |

de trem. Não tinha mais pão, nem nada na geladeira. Joguei a peruca azul pela janela. Não deu sorte. De novo, nenhuma resposta das escolas e de todas as clínicas. No caminho, deixei o número do meu Zap em três pet shops. Disse que sou boa pra passear cachorro. Não saí com a peruca preta porque não posso lembrar do tio Vicente. Saí de boné, apertei meus peitos com um lenço grande, vesti uma jaqueta e do Brás fui de novo para a Santa Efigênia.

O dono da loja de games disse que ia me mandar mensagem. Quer saber? Duvido. Já nem quero mais o emprego. Vou vender coisas por minha conta em cima de tapetinhos. Nas ruas tem gente fazendo isso, mas dizem que tem gente que contrata. Vou tentar sozinha como aquele homem que toca tambor quase em frente ao prédio da prefeitura. Se eu soubesse tocar algum instrumento... Posso enganar como o velho da gaita em frente ao Shopping na Paulista. As pessoas colocam dinheiro no chapéu por pena do sopro fraco e da baba. Amanhã vou de Cristina.

Perdi toda a vontade de ser Cristina ou qualquer nome com C. Nem de homem, nem de mulher. Acabei saindo de Elza, como escolheram meus pais. Não é que pulei a letra D, é que ordem alfabética é coisa pra gente organizada. Quase fiquei em casa remoendo a Elza dos meus documentos, mas ela é a melhor pessoa pra sair invisível. No dia em que vi a mulher dos cabelos azuis, estava de Elza e por isso ela não me viu ou não me viu porque só queria sumir na esquina escura onde virou. Ela e o seu macaco-mochila. Um dia vou virar aquela mesma esquina e ver se a encontro. Ela estava voltando para casa como eu naquela noite. Um dia não, acho que vou amanhã e vou com a mochila.

Nenhuma resposta de nenhum emprego. O moço da loja de games não me mandou mensagem. Sabia. Não pegam gente de trinta. A loja de fios e lâmpadas combina mais comigo, mas ali também só tem homens e isso me dá preguiça.

Fui de novo ao centro. Fui de Elza sem adornos e senti saudades da peruca azul. Sorte de quem achou na rua. Não tenho a mesma felicidade, o máximo que encontro são sapatos sem par. Nas lojas da Barão de Duprat, comprei lupas douradas, grampeadores, cortadores de unhas e cadeados para vender na calçada. Está tudo aí embaixo da cama. Minha ideia é ficar ao lado do moço que toca tambor. A mão dele deve sangrar. Sou tímida pra fazer barulho do jeito que ele faz. Amanhã decido. Se eu desistir das vendas, jogo tudo pela janela, como joguei a peruca, ou levo pra doar na igreja. Acho melhor doar na igreja. Decidido. Não vou vender nada nos tapetinhos e amanhã vou mesmo procurar a mulher com quem cruzei na rua. Ainda não usei a minha mochila nova.

08/07/2022

– Sexta-feira

Fui três vezes à rua onde vi a mulher desaparecer no escuro. Tão perto de minha casa e mal conhecia. É acanhada e estreita, tem postes de iluminação, mas as lâmpadas no domingo em que a vi estavam queimadas. Nem chega a ser uma rua, é uma travessa que dá numa praça rodeada por casas de muros altos. Tão deserta de dia que me deu medo de voltar depois. O lugar tem árvores grandes e desfolhadas. Numa das

bordas, atrás de um arbusto de manacá, vi marcas pretas de carvão. Alguém fez uma fogueira e largou um cobertor sobre os galhos. Parecia uma barraca.

Quando voltei à tarde, o deserto da manhã estava ainda pior como costumam ser os desertos à tarde. Estava quente, a marca da fogueira tinha desaparecido. Tudo ainda mais silencioso. Só ouvi o pio longo de um pássaro e eu me agarrei à minha mochila de macaco. Pensei que ali poderiam viver macacos, mas não iam conviver em paz com os donos das casas sem vida.

Voltei à noite. A vontade de ver a mulher foi maior que o medo e só segui adiante porque a prefeitura tinha consertado os postes. Na praça, as luzes eram fracas, como devem ser as lâmpadas para não prejudicar as árvores. Senti um cheiro de queimado, vi a fumaça e me aproximei. A mulher estava agachada cutucando a fogueira com um galho. Assim que me notou, ergueu o corpo sem susto como se me conhecesse. O rosto, avermelhado pela luz do fogo, era tão branco como o meu, o azul dos cabelos brilhava como os fios sintéticos.

Precisei chegar mais perto para ter certeza de que ela usava a peruca que joguei pela janela. Ela ajeitou as pontas dos cabelos antes de voltar a se agachar, erguer a mochila do chão e me oferecer a mão do macaco em cumprimento. Quase fiz o mesmo, mas estendi minha própria mão ao bicho e prendi os olhos aos olhos dela. “Me chamo Elza. E você?” “Me chamo Elza”, a mulher respondeu.

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Guarda aí pra mim?

Américo Paim

– Velho, essa é das piores, na moral.

– Porra, Zoião, lá vem você...

– Tá vendo que isso nunca ia acontecer...

– Oxe, a cidade toda sabe.

– Sua versão, né?

– Meus primos aqui querem que eu conte.

Eram os gêmeos Jackson e Jockson, primos de Juca Mentira, o baixinho de pernas curtas. Só as roupas não eram iguais, porque o bigode fininho, a cara de boneco da Estrela e o cabelo castanho, tudo era idêntico. Queriam saber do caso do mochileiro pancada. Zoião era por causa dos “olhos pocados”, exoftalmia. A piada clássica: o pagamento da consulta no oftalmo era por metro quadrado. Ele nem ligava mais. Estavam todos na lanchonete de Zé Tripa, perto de dez da noite. Pediram mais cerveja e Juca contou sua história.

O povo só soube depois, mas a porra toda começou aqui mesmo, de onde o da parte do coisa-ruim saiu. Não se sabe como ele foi parar no meio do mato, onde Dionísio, o mochileiro, encontrou o cabra já batido as bota. No dia que Dió sair do hospital ele confirma e fala por que deixou tudo lá.

– Oxe, ainda tá internado?

– Até hoje. Num diz coisa com coisa.

– E que tudo é esse, home?

– O dinheiro, ué. Que era dele, mas era do cramulhão.

– Ave Maria...

– Juca, miséra, para de mentir.

– Zoião, cê me deixe. Querem ouvir ou não?

Nerivaldo era um pobre coitado que fazia bico aqui e ali. Cara moderno, feito a gente. Um dia, contrataram pra capinar uma roça lá pras banda da serra. Tava no ônibus, já perto, e teve a ideia de cortar caminho pelo mato que já conhecia. Desceu do busão e se embrenhou. Era início da tarde.

– Assim, do nada?

– Sim, foi coisa do destino.

– Entendi não.

– Repare.

Uns quinze minutos caminhando e sentiu o cheiro estranho. Seguiu atento e piorou. Era carniça. Ficou curioso porque não viu urubu. Alguma coisa lhe dizia pra ir atrás.

– Juca, essa tá foda.

– Zoião, eu tô lhe dizendo...

– Venha cá, você ia pra cima da fedentina?

– Deus é mais, eu não.

– Então. Tá na cara que é culhuda...

– É não. Foi desejo mermo. Prestenção.

Mais um pouco e deu de cara com o presunto já estragado, mais osso que carne, caído no chão da clareira. O esquisito de tudo foi não ter bicho roendo nem verme. Ouviu uns uivos de cachorro que deram arrepio e as porra. Já ia tirar o corpo de tanto medo. Aí eu pergunto: por que ele não foi embora?

– Sim, primo, por quê?

– Conta!

Ele viu um montinho estranho do lado do pobre. Cismou. Parecia terra mexida, tinha uma cor diferente. Aí ele enrolou a camisa por cima do nariz e foi conferir. Curioso que só a peste, olhou pra cá e pra lá, viu que num tinha viva alma por ali e cavucou na mão mermo. Logo achou.

– Era o quê, home de deus?

– Cês vão na conversa de Juca, digo é nada...

– Vou falar é agora.

Não era caixa, nem baú. Era uma mochila. Como o caveirudo ali no chão não ia contar nada, ele abriu. Podia ser uma coisa que explicasse o infeliz ali deitado. Só que era dinheiro e muito, uns 700 pau. 700 mil! Sério. Ele nem pensou duas vezes: tava rico.

– E se o dinheiro fosse do home?

– Oxe, ia saber como?

– Então ele surrupiou?

– Achado não é roubado, né?

– Sorte retada.

– Foi bem assim não...

– Que foi, Zoião?

– Conte o resto, “perna curta”.

Ele tratou de se picar dali. Meteu a mochila nas costas e voltou pra estrada. Esperou passar um ônibus, mas um carro parou pra ele, sem nem ele pedir, óia só. Chega rupiei aqui. Ele nem deu tento. Queria era chegar logo na cidade pra ver o que ia fazer com a bolada. Era um casal, com seus sessenta anos, que tava só de passagem. Nem ia ficar em Pedra Velha.

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Ele foi pro banco de trás. O povo simpático, conversador e tal e coisa. Ele se acalmou. A grana ali na mochila quieta feito um sanduíche de mortadela. Até que complicou numa curva fechada.

– Aquela perto do Olho do Cabrito, Zoião.

– Ali é barril.

– O carro virou foi? Morreu tudo?

– Calma, foi não. Furaram foi os quatro pneu de uma vez.

– Oxe, que é isso? Encosto?

– Não, é mentira...

– Para, “olhudo”. Era armadilha, coisa de bandido.

O motorista tinha reduzido por causa da curva, então o carro não capotou. Aí, parou no acostamento. Saíram três de dentro do mato, gente conhecida da polícia. A gangue de Dengoso. Ele, Zé Ruim e Cegueta.

– Eita, só problema.

– Botaram o trabuco na cabeça do velho e arrastaram foi todo mundo.

– E aí?

– Roubaram celular, dinheiro, joia, tudo.

– E a mochila?

– Oxe, Nerivaldo quis dar de esperto e foi logo passando carteira, telefone...

– Então escapou.

– Nada. Zé Ruim desconfiou da mochila.

– Vixe...

Abriram e tava lá a dinheirama toda. Aí foi gritaria e tiro pra cima, mato adentro. Largaram os três pra trás. O velho abanando a mulher sentada no chão e o ex-rico Nerivaldo dando nome pra tudo que é lado. Os ladrões sortudos correram muito e pararam em um lugar perto de um riacho que nem sei o nome. Aí Dengoso, assim ele contou depois, resolveu conferir a quantia. Dividiu entre os três.

– Rapaz, se deram bem. Dinheiro fácil.

– É, mas deu ruim.

– Como assim?

É que Dengoso dividiu metade pra ele e a outra pros dois. Os caras não gostaram não, discutiram e tal e coisa. Teve até tapa. Sem acordo, passaram a noite ali, protegidos pela escuridão. Ficaram feito Zoião, olho arregalado o tempo todo, com medo de um deles levar o dinheiro. Já vinham sem dormir direito há tempo, aí o sono ganhou Dengoso e Zé Ruim. Cegueta, que enxergava muito bem com o olho que tinha, fingiu dormir primeiro. Quando os caras apagaram, pegou a grana e vazou mais pra dentro do mato. Já tava quase

dia. Eles acordaram e foram atrás do traidor. Não iam deixar de graça, né? Seguiram os rastros e chegaram a ele.

– Eita que deve ter sido bagaço.

– Foi mermo, Jackson.

– Eu sou Jockson. Pegaram de volta?

– Não. Ele tava morto.

– Cacetada...

Ou fugiu de bicho, que tem muito ali, ou então escorregou. O fato é que se lascou todo. Perto do Rio do Corvo, onde os parceiros encontraram, tava pendurado na pirambeira com um toco de galho atravessado na barriga. Coisa horrível.

– E os outros dois?

– Desceram a ribanceira, atrás da mochila. Num acharam foi nada.

– Oxe, evaporou?

– Veja bem, a mochila caiu quase que no colo de Tramela.

– Quem é esse?

– Trabalha na farmácia de Ondino. Tava lá pescando, como bem gostava.

– Virado pra lua esse...

– Mais ou menos. Não deu certo pra ele.

– Oxe, o que foi?

Ele tava na beira do rio. A mochila caiu lá do alto a menos de um metro dele. Quase mata. O susto foi grande, mas ele ficou bem alegrinho porque abriu e viu o que tava lá dentro.

– Também esse povo abre é tudo, viu?

– Oxe, não é o quê...

– E aí?

Olhou pra cima e não viu ninguém. Dali não dava pra ver o espetado. Pegou suas coisas e foi embora pra cidade de carro. Chegou em casa e escondeu a mochila na garagem. Tava excitado. Veio no carro pensando foi coisa. Contou que tava tão doido que ficou com vontade de uma brincadeirinha com dona Bernadete, a mulher dele. Entrou pela cozinha e em vez de fazer barulho, um pigarrinho e tal e coisa, inventou surpresa. Quando abriu a porta do quarto, ela já tava brincando, mas era com Rodrigo, o Pé de Mesa, aquele do armazém de Louro.

– Oxe, num foi com Sabora do mercado?

– Isso também teve, só que foi antes, Zoião.

– Dona Dete, hein? Quem foi naninha...

– Menino...

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– Véi, e aí? O que foi que deu?

– Se atracaram num trampo de faca que começou no quarto e acabou na cozinha.

– Vixe, que tragédia!

– Não, ninguém morreu, mas deu B.O. e hospital pros dois.

– Eita.

– E ele voltou pra mulher! Bem, isso é outra história...

Pois bem, vocês devem estar pensando: e a mochila? Olhe como o cão não descansa. Dona Dete foi com Tramela pro hospital. Ele nem tchum sobre o tal dinheiro, imagine se ia falar. Ninguém lembrou de Sá Menina, a empregada. Ela chegou no horário dela, viu a casa vazia, mas nem ligou. Cuidou da vida. Entrou na garagem, varreu tudo, limpou e recolheu os cestos de lixo pro caminhão apanhar na calçada.

– Não me diga que...

– Digo e vou mais. Reginaldo, lixeiro experiente, achou o saco pesado e fuçou.

– Ah, qualé...

– Tô lhe dizendo... Pegou a mochila e guardou dentro do caminhão, sem abrir.

– Óia, taí um cara estranho...

Quando acabou o turno já era início da noite. Ele conferiu no vestiário e quase caiu no chão de nervoso. Resolveu que ia decidir em casa. Saltou do ônibus. A uns trezentos metros de chegar, caiu duro. Infarto fulminante.

– Cê tá de sacanagem...

– Eu, não, a mochila, né, Jockson?

– É Jackson... E daí? Fala!

– Tinha um pessoal por perto que acudiu e naquela agonia de dar socorro e tal, a mochila sumiu.

– Porra, e agora?

– Tá por aí complicando a vida de alguém.

– Que história doida, Juca!

– É tudo verdade.

– Pois sim...

– Zoião, eu juro!

– Ô, Zé, depois dessa, traz mais uma rodada aí...

Zé Tripa, que ouviu a conversa toda, quase não conseguiu equilibrar as garrafas na bandeja, mas não deixou perceberem seu nervosismo. É que ele lembrou aflito do que ouviu ali mesmo, encostado no balcão, três meses atrás.

– Fala, Zé.

– E aí, Jocelmo?

– Me diga, pode guardar essa mochila pra mim? Depois eu busco.

– Pesada, hein. É o quê?

– Nada demais.

– E que cara é essa, véi?

– Rapaz, tô bege aqui. Tava de boa, perto de casa. Cê acredita que aquele lixeiro, Reginaldo, do nada caiu duro na rua, mortinho?

Pensou: faz tempo que ninguém mais fala de Jocelmo...

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Um dia depois do Rabecao

Na época em que minha mãe frequentava o Asilo São João como estagiária, era assim. Hoje, trinta e tantos anos depois, quando o frequento como enfermeira, continua igual: pela manhã, acordar velho, limpar bunda de velho, vestir velho e carregar velho para o refeitório. Nas mesas compridas, eles se alimentam ou são alimentados e ingerem seus remédios. Depois, são levados à varanda, onde ficam até o almoço. Algumas senhoras fazem tricô, alguns senhores jogam dominó. Há quem complete palavras cruzadas e quem apenas respire. Então, comem e engolem comprimidos uma segunda vez por volta do meio-dia e retornam ao mesmo lugar e às mesmas atividades.

Vez ou outra, vêm estudantes cumprir atividades voluntárias, necessárias para a conclusão do curso. Nesses dias, as senhoras soltam as agulhas e os senhores esquecem os jogos. Os jovens perguntam seus nomes e como estão, depois se interessam por suas histórias, ainda que muitos não tenham nenhuma. Os mais velhos e os mais comprometidos ficam sozinhos a maior parte do tempo. Futuros advogados e engenheiros, mesmo futuros médicos, não sabem o que fazer com alguém incapaz de interagir. Quando faz frio, se amontoam todos, velhos, cuidadores e voluntários, na sala de convivência até a hora do banho que precede o jantar.

Os universitários vão embora e os residentes, ao banheiro. Num espaço comprido de azulejo barato, são enfileirados uns ao lado dos outros, despidos, regados com uma mangueira para umedecer os corpos e para o sabonete, passado às pressas, fazer espuma sobre as peles enrugadas. Depois, a mangueira percorre a fileira de novo, jorrando água, e o banho acaba. Alguns precisam de ajuda, como sempre, e são molhados mais de perto, com mais atenção. Quando todos cheiram a limpeza, são secados e vestidos. Jantam por volta das seis da tarde, tomam os últimos remédios e ficam em frente à TV até a hora de dormir.

São sempre os mesmos, até que um amanheça duro ou não respire entre um movimento e outro de xadrez. Então, o IML é acionado, o velho é retirado e olhos opacos acompanham o movimento, gratos ou desgostosos por não pertencerem ao defunto enfiado no rabecão. Ontem foi um desses dias e hoje é um dos dias que seguem a eles. Hoje, outro velho toma a cama, o lugar na varanda, no refeitório, na sala de TV e no paredão do banheiro. Hoje, porque a enfermeirachefe está em casa com uma gripe forte, recebo outro velho e sua família, ou sozinho, deixado por uma ambulância ou serviço contratado. Hoje, apresento o lugar, apresento as pessoas ao velho e o velho às pessoas. O velho finge costume e eu volto aos meus afazeres.

Um homem desce do carro. Ele tem 35 anos, no mínimo, e anda até a traseira do veículo. No banco do carona, vejo uma cabeça branca olhando pela janela o outro lado do pátio. O motorista retira uma cadeira de rodas, duas malas e uma sacola de viagem e caminha em minha direção, uma mala em cada mão, a sacola atravessada nas costas.

– Oi, eu tô com meu pai ali. Disseram que era só trazer. Já resolvemos todo o resto.

– Posso buscar seu pai? Não é bom deixá-lo sozinho. Ele assente e eu vou recebê-lo.

Abro a porta e me deparo com um senhor de uns 75 anos. O olhar perdido atravessa minha cabeça, como se pudesse enxergar as árvores apesar de meu rosto ser bastante concreto e estar no meio do caminho entre ele e o que parece ver. Em seu rosto, o queixo marcado por um vinco no meio faz aquela parte se assemelhar a uma bundinha logo abaixo dos lábios. O mesmo vinco presente no filho e presente em mim. Colada à narina direita, uma verruga da cor da pele e que, por não ser marrom, harmoniza com o conjunto. O homem não é feio, é bonito, sempre foi. A barba feita não esconde onde os pelos nunca cresceram, o pedaço abaixo do septo. Falha que fazia o bigode se dividir em dois, mesmo quando os pelos cresciam por toda a cútis, cultivados por preguiça e não por estética. Os fios lisos ainda tomam o couro cabeludo, apesar das entradas sempre presentes.

Por um milissegundo ou algo mais que isso, me desequilibro, agachada sobre os calcanhares, e me apoio no chão de brita para não cair. A palma da mão esquerda arranha no contato com as pedrinhas. Em meu rosto, o olhar perdido atravessa sua cabeça, como se pudesse enxergar as malas sendo carregadas pelo homem que cruza a porta da casa, apesar do rosto dele ser bastante concreto e estar no meio do caminho entre mim e o que pareço ver. Por fim, consigo estabelecer contato. Pareço ser a única.

– Você não sabe quem eu sou? Ou não se lembra? Talvez não lembre quem é o cara com as malas ali na frente também, não é mesmo?

Nossos rostos próximos, lado a lado, enquanto o abraço de modo a retirá-lo do carro e sentá-lo na cadeira.

– Esse pensamento me preenche, você não lembrar de um filho que lembra de você. Você lembra da mãe dele? De quem você lembra, velho?

Minha voz é baixa e seca. Diante de seu corpo imóvel, eu o observo, nossos quatro olhos não piscam, minhas mãos ágeis arrumam seus pés nos suportes da cadeira de rodas, suas mãos descansam sobre as coxas.

– É físico o que sinto, sabe? Aqui, no estômago. Aponto.

– Como o pedaço de bolo gelado de coco me preenchia à mesa da cozinha naquela tarde dos meus 7 anos, você lembra? O mesmo bolo de todos os aniversários e fins de semana. O bolo pelo qual eu pedia de novo e de novo e de novo, sempre que o último acabava.

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Antonieta Campos

Ouço meu tom, mais alto do que deveria. Fico em pé, dou a volta na cadeira e a seguro com as duas mãos. Empurro-a pela área externa até a porta de entrada.

– Meu último pedaço de bolo gelado de coco foi aquele dia, velho maldito.

Encerro o monólogo antes de atravessarmos a porta, o velho segurando um pano amarelado do mesmo jeito que eu fazia com as fraldas de pano, meu cheirinho, quando pequena. O homem nos espera na sala, entre a TV e uma partida de gamão. Faço sinal para me acompanhar e seguimos até o dormitório a ser compartilhado. O espaço está vazio, eu aponto para o que será o leito do novo morador e indico um espaço no piso onde pode deixar as bagagens.

– Não precisa desfazer as malas, alguém faz isso. Aqui é a cama dele. Ele tem um colega de quarto.

Curvo o tronco em direção ao homem na cadeira.

– Seu Lázaro, vocês vão se dar bem, ele é silencioso como uma pedra.

Levanto os olhos para o filho e continuo falando:

– Vou mostrar o resto do espaço. A sala você já viu, mas tem o refeitório e o...

Ele me interrompe. Tem pressa. Todos têm. Vai se atrasar para o trabalho e, além do mais, a mãe conheceu o lugar. Está tudo certo, ele precisa ir. Assina os documentos no balcão de enfermagem, onde guardamos nossas coisas, preenchemos prontuários e descansamos quando dá. Eu o observo mover a caneta no papel. Seu nome termina em Filho, o que significa que se chama Ramón. Ramón Filho oficializa a entrada do pai, vira as costas e vai embora. Ficamos, eu e Ramón Pai, olhando-o partir.

– Dá tchau pro Ramonzinho. É assim que vocês o chamam? Vocês nunca mais vão se ver porque você vai morrer antes de ele pensar em sentir sua falta.

Digo isso entre os dentes, no ouvido do velho. Damos meia volta e nos dirigimos ao refeitório.

– Você ainda tem alergia a corante alimentar? Aqui se come muita gelatina... você vai gostar. Vamos lá pegar uma de frutas vermelhas pra você, é a minha favorita.

Ninguém negaria um agrado ao novo habitante, mas ele não parecia se importar com coisa alguma fora da própria cabeça, não dizia palavra, não se mexia, respirava com ruído e apertava nas mãos o pano velho ou sujo ou velho e sujo como ele. Aquela atitude me irritava no mais profundo da alma.

– Não foram poucas, as situações imaginadas para esse encontro... Mas em nenhuma, o que chegava era um inválido esquecido de como segurar a própria merda dentro do corpo. Você é uma vergonha.

Enquanto falo, penso no senhor elegante de minhas fantasias. Tal como foi até pouco mais do que os meus 38 anos de agora. A postura ereta e os braços fortes, aptos a carregar as próprias malas, também em número ímpar. Eu lembro porque ainda sei lembrar.

Quando chegamos ao refeitório, vejo uma badeja repleta de potinhos onde gelatinas de todas as cores estão acondicionadas. Chego perto do balcão e pego da vermelha e uma colher de plástico vagabundo, daqueles que quebram por qualquer coisa. Abro a sobremesa, finco o talher no meio e o retiro com uma boa quantidade do conteúdo.

– Você quer, velho?

Mostro a colher cheia com a massa molenga, um sorriso falso que me dói mais do que os músculos faciais.

– Quer? – repito mais alto.

Ele não se mexe. O olhar parado na pilastra que segura a construção à minha direita. Um fiapo de baba escorrendo pelo canto dos lábios. Na falta de ação, levo a colher à boca e saboreio a gelatina vermelha com gosto de cor.

– Seria muito fácil, velho, seria muito fácil e sem graça. Vou fazer o que é difícil pra mim porque eu sou melhor que você – aponto o dedo indicador na cara dele. – Vou fazer o que você fez e, assim, também o que você não fez: ter coragem. Ter coragem de fazer o que eu não faria se não fosse você aparecer aqui.

Deixo o pote em uma das mesas, apanho uma fatia de bolo de fubá e ponho no colo dele.

– Aqui o seu bolo, pra gente fazer direito, como tem que ser.

Viro a cadeira de rodas na direção da porta do refeitório e da recepção, no cômodo ao lado. Abaixo até a altura da orelha dele e cochicho como um segredo:

– Eu não vou te matar, velho. Você já tá morto há muito tempo.

Caminho com os ombros erguidos e o queixo reto. Atravesso a porta, paro no balcão, apanho minha bolsa e saio.

– Eu não volto hoje e não volto amanhã. Eu não volto mais. Avisa o administrativo, por favor.

| 11 | SUBMARINO CONTOS RUSSOS

Gillette

Eu estava sentada no chão, fumando um cigarro. Tinha acabado de chegar em casa, eram umas onze e trinta, peguei um cigarro e fui ver TV. Sentei no chão mesmo, como costumava fazer quando fumava, pois, além de não querer sujar o sofá com as cinzas, também evitava colocar fogo nele, logo, na casa, logo, no prédio. Apoiei o maço e o isqueiro na estante, aquela que você trouxe depois que ficou sem espaço no quarto por causa da escrivaninha nova.

Eu não sei como conseguia fumar com você no sofá, naquela época eu não percebia o perigo que era isso.

Agora, possibilidades como esta despertavam muitas preocupações. Porque, se o prédio realmente começasse a pegar fogo, eu teria que descer correndo pelas escadas estreitas do jeito que estava vestida. Hoje eu até que estava apresentável, tinha acabado de vir da rua e ainda usava a mesma roupa do trabalho e do happy hour. Era a camisa verde com aquela echarpe de bolinhas, que você dizia que me deixava corporate sem ser cafona. Mas, em outros dias, eu ficava em casa de camisola, com as pernas mal depiladas, de chinelo e com a unha do pé por fazer, sem banho e com o cabelo oleoso.

Você nunca chegou a me ver assim. Naquela época eu tinha mais tempo para me cuidar. Também eu trabalhava menos, e não ia aos happy hours da firma. Você me buscava umas sete e meia, e a gente comia naquela padaria que tinha no caminho, lembra? Você tomava uma Heineken e eu pedia uma Coca normal. Eu não sabia o risco que era me entupir de açúcar, hoje eu sei que até cegueira causa. E depois começamos a ir ao parque sábado de manhã. Se eu não tivesse parado já estaria fazendo os 5K, mas com a rotina e o frio ficou complicado. Devo retomar em breve, só deixa esquentar um pouco.

O fato é que essa cena, eu descendo pelas escadas de camisola, com a perna peluda e encontrando todos os moradores do prédio, me assustava mais do que a possibilidade de um incêndio. E foi por isso que eu passei a sentar no chão. Para evitar sujar o sofá bege, evitar queimá-lo, queimar o apartamento, o prédio, para evitar ser vista pelos vizinhos em uma camisola surrada.

Então eu estava sentada no chão, com a roupa que vestia desde de manhã, fumando um cigarro e passando pelos canais. Na TV a cabo eram sete canais evangélicos, um da Igreja Católica, uns três de televendas, os infantis, os de notícias, o Animal Planet, o Discovery, o National Geographic e aqueles que passam séries e filmes que ninguém vê.

Enquanto eu fumava, sentada no chão, tinha o hábito de passar por todos eles, eram 137, eu tinha contado. Às vezes ia até o final e voltava, porque algo interessante poderia ter passado despercebido. Pois é, eu não assino mais a HBO, era você quem gostava de Game of Thrones, eu mesma nunca vi

graça nessas coisas de fantasia. Eu avisei desde o início que não iria assistir a uma série com oito temporadas e 73 episódios, só para ficar vendo lobos, dragões e peitos. Eu gastei quase 40 horas da minha vida nisso, e você nem teve a consideração de esperar a série terminar para ir embora.

Então eu estava lá pela metade dos canais, quando senti uma tontura leve. Imediatamente apaguei o cigarro no cinzeiro. Eu sempre soube que não deveria fumar. Uma hora ia me fazer mal. Parece que a hora tinha chegado.

Fui até a cozinha, voltei até a sala para ver se tinha mesmo apagado o cigarro, ou poderia colocar fogo na sala e no prédio e, você sabe, aquela complicação toda.

Coloquei água para ferver e fiquei bem de olho na chaleira, para evitar que o fogo subisse alto, ou que eu me distraísse e esquecesse o fogão ligado. Coei o chá e misturei com aquela colherinha roxa, de plástico, que guardei daquela sorveteria da Liberdade que a gente gostava porque tem potes e colheres bons. Nunca gostei de desperdício, mas joguei os copos de geleia fora depois que você me convenceu a comprar as taças coloridas, que eram de plástico, mas faziam vista, e que usávamos quando recebíamos os meus únicos três amigos para comer pizza.

Você sabe que não sou de sentir medo. Dirijo desde os 18 anos, ando no centro de São Paulo sozinha à noite, voo de avião, já subi um vulcão, mesmo sem ter preparo físico, naquela vez no Chile. Mas eu ainda não tinha visto uma colher perder, assim, a forma, amolecendo como se fosse derreter, e dançando dentro da xícara de chá de camomila. Pode parecer bobagem, eu sei, mas tenho certeza de que se você visse o que eu vi, uma colher roxa fora de controle, você entenderia que ela pode mesmo contaminar o chá com elementos tóxicos. Se o plástico é tão danoso ao meio ambiente, imagine o que ele pode fazer dentro da minha xícara de chá, dentro de mim.

Larguei o chá e a colher na cozinha, chequei o gás, o cigarro no cinzeiro, a sala. Deitei na cama e senti meu coração batendo forte, acelerado, será que tinha sido o cigarro, os drinks, o cigarro com os drinks, o chá com a colher? Se você estivesse aqui você me daria um Dramin. Eu nunca gostei de me automedicar, sempre gostei de resolver as coisas sozinha, mas se era você me dando então não era automedicação.

Fechei os olhos e não conseguia dormir, o coração disparado, também não conseguia levantar. Não consegui pensar em ninguém para quem eu pudesse pedir ajuda, será mesmo que não tenho mais nenhum amigo? Se eu morrer aqui quando será que vão me encontrar?

Eu não queria ter te mandado áudio, não queria ter te incomodado de madrugada. Eu sei que você acorda cedo e que está em uma fase cheia de projetos. Sei que isso não são horas, eu não queria ter te assustado. Desculpe falar tanto, desculpe pelo podcast, mas achei importante que você entendesse que era um risco real. Eu não falaria tanto se não tivesse motivo. Você sabe que não sou de pedir ajuda, eu nunca tive medo de nada, sempre soube desentupir ralo, trocar resistência, matar barata. Em outro momento eu desceria sozinha, encontraria uma farmácia, mediria a pressão, resolveria tudo isso. Mas será que você poderia, só hoje, vir aqui e esperar eu pegar no sono?

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Bel Guimaraes

Talvez a oracao errada

Creio em Deus Pai, todo-poderoso, criador do Céu e da Terra, que me abandonou na casa das máquinas, onde eu tenho as minhas coisas, tenho gaveta, tenho escova de dente, deixo tudo em ordem, e agora querem que eu saia, quando o prédio tá fechado eu durmo lá com os elevadores, o vigia da noite sabe, mas vai jurar que não, tem trinta anos que ele tá lá sentado na mesma cadeira, feito um palerma, ouvindo a rádio universitária, simpático com todo o mundo, eu antes vinha aqui só pra imaginar que tinha feito exatamente o que essa garota fez agora, antes de dormir na casa das máquinas, ninguém repara num moribundo que entra num centro comercial, eu subia escondido no parapeito da sacada do terceiro, perto da lavanderia, e ficava pensando se a queda seria o suficiente, porque o prédio não é assim tão alto, se eu me atirasse de cabeça, não tem nada mais deprimente que um suicídio frustrado, alguém que quis tirar a própria vida e que nem mesmo disso foi capaz, acabou numa cama, todo fodido, os dois joelhos em frangalhos e de certa forma ainda mais vivo que antes, dando trabalho pros parentes, mas comigo não, eu ia mesmo mesmo me atirar de cabeça, meu cabelo à escovinha, vou no barbeiro da rodoviária uma vez por mês, a primeira parte do meu corpo a atingir o pavimento, eu não ia correr o risco de não dar certo, de sobreviver, que nem parente pra me cuidar eu tenho, a julgar os vivos e os mortos, a vida passando lá embaixo, comecei a reparar nas copas das árvores, vistas de cima formam uma espécie de tapete, um mar de folhas verdes, a gente esquece que Maringá tem assim tantas árvores, os troncos ficam distantes uns dos outros na rua, os galhos crescem até que suas folhas encontrem a próxima árvore, estão todas ligadas, não seria isso também uma espécie de desespero, a gente passa na rua e ignora, estamos acostumados ao desespero das árvores, de cima eu via uma coisa só, um organismo, um oceano, mergulhar de cabeça na calçada com um baque seco, as pessoas iam me ver, alguém que elas cruzam na rua, aqui mesmo no Centro, a cidade não é tão grande, todo mundo me conhece, assim na terra como em Maringá, nessa hora eu escutei um miado, antes do meu crânio aberto, meu pescoço rompido, braços e pernas num ângulo impossível, um som que se destaca por sobre os barulhos indiscriminados da rua, um choro de animal curto e triste, vi uma gata gorda em cima de um papelão, alguém deixou a bichinha ali, soube que era fêmea porque tinha as tetas inchadas, a barrigona prestes a explodir de quantos filhotes, miava baixinho, seja feita a Vossa vontade, como se reclamasse do destino desgraçado de seus filhos, mesmo que não soubesse qual seria, ou então justamente por saber é que chorava, eu desci do parapeito, chamei a gata de Nininha, me deixou chegar perto, contei sete gatinhos, três nasceram mortos, nunca mais voltei pra

casa, comecei a dormir na casa das máquinas, vendia laranja no sinal, vendi bala, bala vende mais do que laranja, cuidava dos carros na frente do Aldo, roubei uma faca boa na loja de um e noventa e nove, briguei na rua muitas vezes, desci à mansão dos mortos, tudo que eu trazia era pra Nininha, nunca bebi na casa das máquinas, os filhotes sumiram logo, Nininha em algum outro telhado, eu não tinha mais pra onde ir, ninguém nunca me procurou, a garota se parecia comigo, sentada naquele mesmo parapeito do terceiro, sabia que pular não seria o suficiente porque eu avisei, o prédio não é muito alto, tem que pular de cabeça, na última hora quis rezar, não nos deixei cair em tentação, por respeito eu escondi a faca, rezei junto com ela, ainda que talvez a oração errada, quando criança eu via minha mãe rezando o tempo todo, o pão nosso de cada dia nos dai hoje, eu queria saber quem diabos era o Malaman, imaginava o Superman mas diferente, eu dormia com medo do Malaman, minha mãe pedia pão e pedia pra que nos livrássemos dele, nessa hora ela rezava com mais fé, apertava os olhinhos com força, hoje eu entendo o que ela dizia, acho que o Malaman sou eu, livrai-nos de mim, eu sou o Mal, amém, amém, amém.

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Lugares para sentir medo

1. Na praia

Irene está na praia. Acabou de sair do mar. Aproveita o corpo molhado para misturar o sal da água com o óleo do bronzeador. Seu filho, Pedrinho, está na beirada fazendo um castelo na areia. Irene olha para o lado. Vê andando três mulheres. Mulheres coloridas, saias vermelhas, blusas verdes, lenços amarelos contrastando com o bege da areia e o azul do céu. Ciganas. Ciganas, meu Deus. A pele de Irene não está mais quente do sol. Irene gela. Cubos de gelo passam sob sua epiderme, criando uma mulher de cera. Irene não gosta de adivinhações. Não gosta. Não admite sequer borra no café. Lembra quando brincou de escolher desenhos com sua prima e queria ver uma árvore, tudo que aparecia era uma boca. As ciganas seguem pela praia, refletindo no seu dourado, o sol. Passam na barraca de um, na de outro. Estão caminhando como gladiadoras no meio de uma guerra. O vento sopra areia em volta delas, criando uma atmosfera de filme de faroeste. Irene agarra Pedrinho. Solta Pedrinho. Agarra. Solta. Agarra. Segura a bolsa. Nunca vão ler minha mão. Não vão levar meus anéis. Irene nunca gostou de adivinhações. Irene sequer joga baralho. Tem certeza que se cortar as cartas em busca de um quatro de paus, sairá um enforcado. Com a bolsa, a canga, o menino nos braços, Irene corre para dentro do mar. Mamãe, olha a onda. Vou afogar. Não preocupa. Afogar no mar é sorte.

2. Na cidade

Cibele está dirigindo há mais ou menos meia hora. Bem mais de meia hora. Uns quarenta e cinco minutos, talvez, já que ouviu Suspicious Minds dez vezes seguidas. Segue reto quando dá de cara com um morro. Que estranho! Antes de sair de casa, consultou o Google, fez e refez o trajeto hum mil e duas vezes para não ter que passar em nenhum elevado. Cibele não sobe com carro em morros. Desde que errou o caminho uma vez e parou no alto de uma favela. O traficante só a deixou escapar porque seu sobrenome lembrava o da artista da novela e ele era grande fã da atriz. Cibele tenta ir em frente, mas seu pé não obedece. Mesmo no carro automático, seu pé pisa o freio, não acerta o acelerador. Cibele para o carro no meio da avenida. Motoristas irritados passam a seu lado fazendo gestos que, pode garantir, não fariam dentro de uma igreja ou mesmo na frente de suas mães. Ré não dá. Mão única. Se ainda fosse a atriz do traficante do morro; ela, sim, fez uma cena em que dava um cavalo de pau e saía de costas sem bater em ninguém. Cibele não é uma boa motorista. Ela desliga o carro e respira. Passa a mão no volante não uma, mas duas, três, quinze vezes.

Passa a mão no patuá preso no retrovisor. Aperta uma, duas, quinze vezes quinze vezes. Joga a cabeça para trás, pega a chave, desce do carro. Sobe a pé. O guincho que busque o carro. A culpa não é minha. É do Google Maps.

3. Em casa

Jorge pega as duas taças de vinho para levar à cozinha quando nota o celular em cima da mesinha ao lado do sofá. O celular não é dele. É de Helena. No primeiro movimento, larga as taças de volta e segura o objeto na mão como se fosse uma granada, de forma rápida e enérgica. Uma sorte. E se ela aparecer? Lembra do dia em que ela leu uma mensagem, deu uma risadinha de lado. O que foi? Bobagem. Mas o que foi? Nada. Nada? Uma amiga me enviou um emoji engraçadinho. Jorge sabia que não era uma amiga e não era um emoji engraçadinho. Quer ver? Ela entregou o celular a ele. A senha é sorte em números 76783. Jorge não segurou o celular. Sentiu seu coração palpitar como uma bomba d’água desregulada. Do mesmo modo que está palpitando agora. Naquele dia, ele não quis. Seria um ciumento ridículo. Sua última namorada o traiu com um ser desqualificado. Não podia começar um novo relacionamento em que toda a tontura, náusea, dor de cabeça viriam à tona. Na verdade, a culpa era da sua professora de português do oitavo ano. Se não tivesse sido obrigado a ler Dom Casmurro, não estava vendo Capitu dando sorrisinhos pra ele enquanto Helena lia uma mensagem qualquer. Bentinho até podia ser um corno, ele não era. O que eu faço? Estou com o celular dela na mão. Jorge sabe a senha. Mas se ela descobrir que eu mexi? Se descobrir que abri as mensagens, os números, os contatos, olhei tudo e olhei e procurei e não encontrei nada? Posso encontrar alguma coisa. Ou nada. Helena e seu sorrisinho. Helena jogando o cabelo pra lá e pra cá, balançando o corpo. Helena, a Capitu patricinha. Helena fingindo entregar o celular a ele enquanto segura o objeto com superbonder nos dedos. Jorge senta na beirada do sofá. O celular apita. Ele espia. Seu coração palpita um pouco mais, um tom acima, um outro movimento, um som triunfal. Com os dedos tremendo, não acerta a primeira tentativa. Tecla 76786. Sorte em números é a senha. Presta atenção! 76783. Tenta de novo. Uma carta de amor?! Pra ele.

4. No cartório

João aguarda do lado de fora do cartório. Depois de cinco anos, finalmente, vai se livrar dela. Cíntia está atrasada, como sempre. Um dos motivos que os levaram até ali. Um dos menores, na verdade. João lembra do conselho do seu amigo Felipe. Nada de ficar esperando por ela e procurando detalhes do que levou os dois a combinarem de assinar o divórcio. João se apega ao conselho do amigo. Tem medo de mudar de ideia. Medo que faz com que sua mão formigue. Sente calor. Ele segura uma caneta. Bic, daquelas normais, nem dourada é. Do mesmo jeito que segurava a caneta para anotar os pedidos no bar na primeira vez que a viu entrar correndo, fugindo da chuva, na rua Augusta. Cuidado com a engenharia reversa, cuidado! Concentra, João, concentra. Divórcio. Os gritos, os choros, o silêncio, a falta de assunto. O soco na parede.

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Nada de dar um passo para trás. Medo de lembrar daquele dia. Da chuva, do sorriso, da caneta caindo ao chão. João fecha os olhos. Suas mãos molhadas de suor. A caneta escorrega e cai. João abre os olhos e vê Cíntia correndo em direção ao cartório. Está chovendo. João corre em direção contrária. Não foi o medo que fez ele fugir. Nem a chuva. Foi andar para trás e ver. O amor.

5. No cemitério

A ladainha começa. Por que ela vai ser enterrada aqui? Janete quer saber. A amiga, agora morta, sempre lhe disse que iria repousar junto a sua mãe, em outro cemitério. Estava lotado. Não cabia mais nada, nem cinzas. Ora, só porque ficou por último, perdeu seu lugar? É a vida. Quem chega primeiro. Janete sai de fininho. Pé ante pé. Um pouquinho para trás, um outro pouquinho e dá no pátio. Seu coração bate em um pagodinho de bar. Respira para fora, soprando em cadência rápida. Janete desce até a administração do cemitério. Pode alguém perder seu lugar em cova?! É o fim! O rapaz da secretaria confirma que seu nome está anotado para ser enterrada junto a seu marido. Mas… eita, um mas, vai ter que dividir espaço com uma parente do morto. Que parenta? O mocinho dá explicações. Janete não aceita. Tem que tirar tudo de lá. Não dividiu o marido em vida, vai dividir o marido morto?! Continua soprando cada vez mais rápido. Qualquer coisa, a senhora pode ser colocada ao lado dele, tem uma vaga. Janete não aceita essa hipótese absurda.

Tem medo de dormir sozinha. Nunca em seus mais de oitenta anos de vida, jamais, ouviu?, jamais dormi sozinha. Janete enxerga tudo escuro, dá batidinhas nos olhos, respira, desmaia, morre. Sufocamento, diz o laudo. Medo, diz Janete.

Dias de poco

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Claudine Duarte

Gosto de olhar as montanhas. Se montanhas houvesse. Poderia olhar o mar, claro, se daqui a vista alcançasse o mar. Sobra o céu, alguém diria, mas não ousaria. Não. Ninguém que conhecesse a minha mesa de trabalho e a janela que se abre para um poço de ventilação. Um poço que despreza atributos. Aceita que lhe confiram uma cor. Cor de poço. Marrom-poço. Cinza-poço. Verde-poço. Depende da hora do dia. Meus dias? Dias de poço.

Minha poçaria começou no final dos anos setenta. Todo mundo garrou mania de fugir do país. Poço-brasil. Cada fuga, cada um. Cada fuga, cada bolso. Cada fuga, cada lugar. A minha deu pra pegar um navio em Santos e parar aqui em Beirute. Muitos quibes depois, consegui um emprego na Embaixada. Sala três por quatro, mesa que um dia foi branca na vitrine da loja, janela para o já dito poço. Poço-exílio. Sobre a mesa, paira uma luminária acinzentada que cospe um fio duplo onde sobrevive o interruptor. Às vezes, funciona. Com a luz, eu me vejo refletida no poço. Poço-eu.

O trabalho é simples. Dia após dia, receber as pessoas que perderam o passaporte, escutar a história de cada uma e emitir um documento. Uma ARB. Isso mesmo. Autorização de Retorno ao Brasil. Pra quem quer, pra quem pode, pra quem explica direito. Receber, escutar, emitir. Parece aula de conjugação de verbos. Solene, sob a luz intermitente da luminária, sem montanhas, sem mar, me vejo grande refletida na janela do poço. Arrisco um sorriso, sem abrir a boca, sem mostrar os dentes. Poço-poder.

As piores histórias são produzidas por adolescentes. Custa comprar uma bolsa que tenha um fecho? Custa andar com uma bolsa? Custa guardar o passaporte na bolsa? “Escutar” está no meu job-description, “acreditar”, não. Ligo o interruptor. Se funcionar, o adolescente ganha um ARB. Se não funcionar, peço uma declaração do gerente do hotel. Não tem hotel. Estava na casa de amigos. Declaração de dois amigos, então. Olho para minha imagem-poço. Ela me olha de volta. Ligo o triturador e vou colocando as declarações da semana. Uma após uma. Tirinhas aborrecidas recheando a lixeira. Fim-do-dia. Poço-enfado.

Hoje, até a hora do café, ninguém apareceu para perturbar minha tarde. Fora ser um emprego, fora pagarem em dólar, fora ninguém querer saber muito da minha vida, até que o café é bom. Vem de algum lugar no sul. Uma pequena fazenda israelense. Palestina-ocupada é como consta nos mapas. Cheira bem, mas pode ser contrabando. Numa embaixada? Sim. Não podia? Basta não perguntar. Beba seu café, receba seu salário, esqueça o que fizeram no seu país.

| 15 | SUBMARINO CONTOS RUSSOS

Tente dormir, tente esquecer, finja que é uma árvore. Não. Finja que é um poço. Batem na porta. Não sou um poço, abro a porta. Lá está “ele”. Olho pra janela e ela me confirma: é ele. Não me vejo. Sumi da janela. Talvez esteja no poço. Poço-memória.

Ele não me reconhece, parado à porta espera um convite pra entrar e sentar. Não o convido. Fecho um pouco a porta e o empurro levemente para o corredor. Estou na pausa do café. Ele pergunta se pode aguardar no corredor. É claro que sim, senhor. Coloquei ênfase no “senhor”. Nem assim. Ele se afastou com a cabeça baixa e ficou à direita da porta. “Ele” é um deles. Tem mania de ir pra direita. Fecho a porta e olho pro poço. Poço-revolta. Aguardo uma hora. A cada cinco minutos, a janela conhece uma cicatriz. Faca-quente, cigarro-aceso, abridor-de-cartas, soda-cáustica, fios-elétricos. Sessenta minutos completos. Eu na janela ilustrando um manual de tortura. Poço-dor.

Abro a porta, ele ainda está lá. Não falo nada. Indico a cadeira, ele entra. Comece. Ele conta a história. Foi roubado na Praça do Relógio. Que horas marcava o relógio? Ele não sabe. Que horas marcava o relógio? Repito um pouco mais veemente. Ele mastiga os lábios debaixo dos bigodes brancos. Não olhou pra cima, acha. Que horas marcava o relógio? Grito e bato a mão na mesa. Ele afrouxa a gravata e afasta a cadeira. Achou que não era importante olhar para o relógio da praça. Acrescenta que ficou perdido quando lhe roubaram a pasta. Pasta? O que tinha na pasta? Não importa, ele diz. Como não importa? Se não importa, por que está aqui? Pelo passaporte, quase sussurra. Finjo anotar tudo. Inspiro, expiro. Olho pra janela. Poço-vingança.

Eu poderia emitir agora mesmo um ARB, digo bem pausadamente enquanto dou três voltas na chave da porta da minha sala. Pequenos domínios. Tire o paletó, desgraçado! Puxo o fio da luminária e amarro as mãos dele. Aprendi a fazer nós. Esse aqui é o de amarrar porcos, seu torturador imundo. Ele fica paralisado. Arranco os seus sapatos e suas meias. Jogo um por um pelo vidro basculante acima da janela. O poço não devolve nenhum baque. Fico à espreita, trocando olhares com o ser vingativo espelhado na janela. Atrás de mim, a figura com a gravata metida na boca. Teria sido assim. A luminária reclamando o fio soltaria uns cliques elétricos. Minha mão segura o interruptor e o aperta num código morse nauseabundo. Poço-pesadelo.

Eu poderia emitir agora mesmo um ARB, mas o senhor não proveu as informações necessárias. Sugiro que encontre duas ou três testemunhas do roubo e as traga aqui para corroborar a sua história. É imprescindível que, pelo menos, uma delas more nas imediações da Praça do Relógio e, nem preciso falar, todas precisarão dizer exatamente o que as motivou estar no local ao mesmo tempo que o senhor. Quanto à pasta, aceite o conselho, seria de bom-tom informar à nossa embaixada, item por item o que estava lá dentro, da forma mais detalhada possível, para que o seu projeto de retorno à Pátria seja consumado. Ele fecha o colarinho, ajeita o nó da gravata, agradece a minha “profunda” boa vontade, se levanta e sai. Poço-ironia.

Um bom caldo

Sua avó Cotinha costumava dizer que uma canja pelando era o melhor remédio para um resfriado. E o de Inês estava brabo. Já passava de uma semana com os olhos inchados, o nariz escorrendo até na hora de comer – o que fazia só para manter o corpo em pé, pois não sentia o gosto de nada. Pior ainda era quando estava deitada. Sem conseguir respirar na horizontal, começou a dormir sentada na poltrona ao lado da cama. E, mesmo assim, nem sempre conseguia destravar as narinas nessa posição. Isso sem falar nos espirros, que vinham em grupos de cinco por vez.

Já não sabia o que dizer na escola. Parecia desculpa esfarrapada, mas se sentia aliviada de saber que todos a tinham como uma diretora exemplar naquela cidadezinha sem perspectivas e com apenas um colégio. Era amada pelos colegas de trabalho e pelos alunos que, quando mandados à sala da diretora por mau comportamento, saíam de lá aos risos e com balinhas no bolso.

Quem sabe essa fosse a solução. Chupar uma bala de hortelã ou de gengibre para abrir as vias aéreas. Vó Cotinha também usava essa tática. Pena que nem a sopa nem as balas a salvaram...

Mesmo assim, chupou dez bolotas – e nada de se sentir melhor. A glicemia, no entanto, já estava nos picos. Teria que fazer a canja, por mais trabalho que desse. E talvez nem desse tanto trabalho assim. A receita da vó era simples. Um peito da galinha completinho, com osso e pele mesmo, batata, arroz, cenoura, louro, cravo, sal e cebola para temperar. As medidas não sabia de cabeça. Mas nunca seguia mesmo. Ia pelo olho e paladar. Misturando tudo e provando de pouco em pouco.

Juntou forças para levantar da poltrona, colocou mais uma blusa por cima da que vestia e saiu para o quintal em direção ao galinheiro. O lugar estava sujo que só. A sorte era que seu nariz continuava ignorante ao que se passava. As titicas estavam espalhadas por todo canto. Havia penas forrando os bebedouros secos, enquanto algumas coreografavam um espetáculo no ar.

As meninas receberam Inês eufóricas. Mas não eram saudades. As bichinhas estavam abatidas, há dias sem comer, e chegaram a bicar os próprios ovos em busca de alimento. Vários estavam quebrados e vazios.

Escolheu a menos esquálida e a mais velha, com uma crista carnuda (embora não fosse comer essa parte), o peito proeminente, prometendo sustância, com asas de um marrom terroso salpicado de manchas pretas e olhos mansos, como

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quem espera um cafuné. Era a Margô. Conhecia as galinhas pelo nome e suas características. Mesmo já tendo sido alertada pela avó quando era mais nova para não dar nomes à comida, Inês não resistia.

Também não sofria quando precisava esquartejar e depenar Berenices, Carlotas, Joanas e Lindalvas. Desta vez, Margô tinha sido a sorteada. Tirou um lenço do bolso, limpou o nariz e com o mesmo pano fez um ninho jeitoso para acomodar a galinha em seus braços, como quem carrega um bebê ou um gato. Fez carinho e viu os olhos da franguinha se fecharem de prazer. Aproveitou que estava ali e abasteceu os potes das sortudas sobreviventes. Depois fechou o galinheiro aos espirros.

Deixou Margô no quintal amarrada pelos pés e foi para a tulha em busca do facão velho de guerra. Quando voltou, a galinha já estava estatelada no chão. Tentou colocá-la de pé e nada. O corpinho mole, mole, brochadinha. Achava injusto matar a bicha assim inconsciente, sem que ela soubesse o que iria acontecer. Dona Cotinha sempre dizia que precisamos ser transparentes com os animais. Sacudiu a ave e nada. Estava morta.

Teria sido envenenada? Sofrido um ataque cardíaco? Ou, quem sabe, estaria também gripada. Gripe aviária? A palavra fez os pelos do braço de Inês eriçarem. Tirou o amarrilho dos pés de Margô e a levou para dentro de casa, enrolada no lenço sujo do seu ranho. Ficou com medo de depenar e comer o animal sem saber do que tinha morrido. Vai que ela acabava do mesmo jeito depois de sorver a canja. E de um simples resfriado passasse desta para uma melhor...

Colocou a galinha desfalecida em cima de uma cadeira na cozinha e foi ao banheiro assoar o nariz novamente. Aproveitou para lavar o rosto. Os olhos estavam vermelhos e ainda mais irritados por conta da penugem de Margô. Voltou à sala e resolveu descansar um pouco. O vai e vem da casa para o galinheiro, do galinheiro para a tulha, da tulha para o quintal e do quintal para casa tinha cansado seu corpo, que já estava enfraquecido pelo resfriado. Pensou em sair de novo em busca de uma nova vítima, mas apenas se afundou ainda mais na poltrona.

Puxou o cobertor que estava ao lado e resolveu que o melhor era dormir. Depois decidiria o que fazer com o corpo de Margô. Talvez enterrar a galinha. O sono foi enxotado pela expressão gripe aviária, que ainda ciscava na sua cabeça. Lembrou do surto que matou galinheiros inteiros de conhecidos na cidade vizinha. Na mesma época, sua avó pegou aquele resfriado que não teve cura nem com canja...

Chocou uma ideia na cabeça: e se a vó tivesse morrido de gripe aviária? A velhinha tinha partido justamente na época do surto. E se todas as suas galinhas estivessem contaminadas e ela vivesse agora um repeteco da história familiar? O desespero começou a tomar conta. Precisava se desfazer urgentemente de todas as galinhas antes que a possível doença se alastrasse.

Inês juntou todas as forças que ainda lhe restavam para voltar ao galinheiro com o facão. O nariz parecia pingar ainda mais e os calafrios aumentavam quando pensava que poderia estar infectada. Abriu a portinhola fuzilando as meninas com

os olhos inchados e o local, em poucos minutos, virou um matadouro. Deixou o facão de lado e fez os trabalhos com as mãos, quebrando, com delicadeza, o pescoço de Emília, Bibi, Amarelinha, Lilica, Tete e Magricela. Não deu tempo de ouvir um pio, de dor e de desespero. Nem os pintinhos escaparam, amassados com palmadas secas.

Quando terminou a missão, começou a sentir o cheiro da morte, misturado com o das titicas, o das penas molhadas e o da ração. Percebeu que o nariz tinha destrancado e parado de gotejar. Viu isso como um bom presságio. Voltou cambaleando para casa, doida para tomar um banho e se empoleirar na cama. Finalmente iria dormir deitada.

Tomou um susto ao abrir a porta e perceber que o corpo de Margô não estava mais em cima da cadeira da cozinha. Encontrou a danada acomodada no cobertor em cima do sofá. Os olhinhos abertos e piscando, como que pedindo carinho e desculpas. Desistiu de sujar novamente as mãos.

Foi em direção à cozinha, enquanto Margô a seguia com o pescocinho incólume de um lado para o outro, espreitando seus passos. Abriu o armário e tirou de lá um pacotinho. Esquentou água no fogo e jogou o conteúdo do saquinho dentro da panela. Voltou para a sala com um prato de Maggi e umas torradas. Tirou a galinha do seu lugar, mas permitiu que ela voltasse e se aninhasse em seu colo. Ligou a televisão e começou a bicar o pão enquanto a sopa amornava.

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Azul e vermelho

Saíamos de manhã de bicicleta para a praia com nosso pai. Até lá, era preciso atravessar uma rua de asfalto de mão dupla. As rodinhas das bicicletas vermelha e azul tinham sido tiradas há pouco tempo. Ainda não tínhamos habilidade suficiente para conduzi-las no asfalto. Eu, sobretudo. Você já ensaiava, na bicicleta, o talento que manifestaria em pouco tempo para o futebol.

A praia, quase deserta, tinha poucas referências para nós. Estendia-se numa longa enseada de areia dura de mais ou menos três quilômetros e meio por onde transitávamos. Entre a vila, o pequeno centro da cidade numa extremidade, e a colônia de férias do Sesc na outra. A extensão da praia prosseguia nessa direção por muitos quilômetros, entre o oceano e a Serra do Mar, frequentemente encoberta por nuvens e neblina. Na vila, a praia acabava numa curva formando o canal de Bertioga, entre o forte de São João e a montanha coberta pela vegetação. No meio dela, um caminho estreito que levava à prainha ou às ruínas do forte colonial de São Felipe, na beira do oceano. Esse era um passeio para o dia inteiro que começava na travessia do canal entre Bertioga e o Guarujá. Nos armávamos de sanduíches, facas e galochas para os perigos da mata: uma cobra d’água, muriçocas e pernilongos.

Chovia muito, na nossa infância. Na verdade, o clima variava rapidamente entre o dia ensolarado e azul para o nublado e chuvoso no fim da tarde. O quintal alagava e ficava cheio de pererecas, que foram sumindo ao longo dos anos. Passávamos de um lado para o outro carregando mantimentos para os churrascos de fim de semana entre a cozinha e a churrasqueira. Desde que começamos a ir sozinhos para Bertioga, você passou a ser o responsável pelo churrasco, signo da adultice recém-adquirida.

A gente tinha pranchas de isopor para pegar jacaré, ondas pequenas que quebravam perto da praia. Você ficava com a pele irritada por causa do contato com o isopor. A prancha se desfazia aos poucos, deixando bolinhas de isopor pelo caminho. Quando rachava ao meio, ainda servia como boia.

Nas proximidades da praia havia poucas construções, uma casa ou outra distante, perdida no meio da paisagem verde-escuro acinzentada. A rua sem calçamento começava, ou terminava, a uma distância grande da praia, para nossa dimensão de crianças de sete e oito anos. Mas era próxima o suficiente para ver o mar, tão logo se atravessava a rua João Ramalho, a menos de cinquenta metros de casa.

No dia em que nos perdemos, tivemos que nos arriscar no asfalto. Fomos em fila indiana pelo estreito acostamento da pista de mão dupla, sem faixa de pedestre ou farol. Até avistar nosso pai, também de bicicleta, que levantou a mão sinalizando sua presença ao nos ver. Não lembro do que falamos. Ao contrário de mim, você silenciava. Principalmente quando a situação era grave.

Talvez venha daí o receio de me perder. Fico apreensiva nas Marginais. Sabe-se lá aonde podem me levar e quantas voltas e retornos para encontrar o caminho de volta.

Nesse dia, em Berti, encontramos o caminho de volta.

Nunca mais nos perdemos na praia. A cidade cresceu e nós também. A rua da nossa casa foi asfaltada com o aumento de construções: casas, comércios, pequenos hotéis. Não tivemos mais festas juninas no meio da rua com a vizinhança.

Quantas vezes percorremos o caminho de casa até a vila andando na beira do mar. Juntos ou acompanhados, conversando ou silenciosos. Você sempre ficava no lado da rua quando andávamos pela cidade, deixando para mim o canto mais protegido da calçada. Foi assim até o final, quando você passou a caminhar muito devagar. Eu tentei trocar de lugar na calçada, mas você me punha de volta. Era eu, então, que silenciava.

Entre as curvas da estrada de Santos e o Jabaquara, caminhos abertos muitos séculos antes de nós. Onde alguém pode ter também enterrado tesouros bem fundo na terra arenosa, cuidando para que a água não os levasse. Um pedaço de osso achado entre a vegetação, uma corda, um bilhete, um pente. Vestígios de outras civilizações. Resta alguma coisa dessa vegetação que guarda nossos segredinhos enterrados. Sempre que passo por lá a caminho do mar, penso que nosso tesouro ainda pode estar ali. Lembro quando o enterramos numa tarde, certificando-nos que não havia ninguém perto. Terminada a tarefa, voltamos em silêncio para casa.

Quando você morreu, alguém me disse que você encontrou o caminho de volta. Não disse nada, tentei sorrir. E lembrei que nosso segredo ainda está ali.

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Adeus ao chefe dos infernos

São quase três da tarde quando os dois amigos começam a descer a Augusta no sentido do centro da cidade. As calçadas estão bem mais vazias do que costumam ficar durante as madrugadas, o que facilita a conversa. A atenção para evitar as chances de ser atropelado por algum pedestre bêbado é substituída pela necessidade de desviar dos camelôs e suas banquinhas em que DVDs de filmes do Godard e da Marcia Imperator compartilham o espaço.

Os dois formam um típico par saído de um escritório de banco na Paulista – daqueles bancos tradicionais, que não se mudam para a Faria Lima por medo de serem confundidos com uma startup descolada. Eles usam terno e gravata – o mais gordo até afrouxa um pouco o nó para lidar com o sol forte, mas o mais magro segue como um noivo a caminho do altar. Enquanto caminham, discutem o que levou o chefe a, em um começo de tarde de terça-feira, mandar os dois embora, sem mais nem menos.

– Só vou te dizer uma coisa e não volto mais no assunto, porque falar disso já deu no saco – diz o mais alto, que é também o mais gordo, combinação que somada à cara fechada e à altura em que fala o faz parecer um urso feroz, enquanto o amigo, magrelo, baixinho, bochechudo e com os olhos saltados, mais parece um esquilo desnutrido. – Certeza que alguém foi fazer a nossa caveira pro maldito. Se não fosse isso, por que ele ia querer se livrar da gente do nada, sem nenhum feedback antes? Eu achava que tava mandando bem.

– Ontem mesmo eu esbarrei com ele saindo com uma cara de desgosto da sala da diretoria. Pode ter sido uma ordem de cima. Não sei se ainda não me caiu a ficha, mas acho bem difícil que ele tenha resolvido isso da própria cabeça. Ele gostava da gente… quer dizer… de mim pelo menos ele gostava. Eu via nos olhos dele.

– Nos olhos! E desde quando os olhos de chefe filho da puta querem dizer alguma coisa, meu bom? Isso aí é tudo psicopata! Mandou a gente embora porque tava entediado. Queria uma aventura numa tarde de terça. Dormiu de calça jeans e quis pagar de bonzão pra cima da gente.

– Você falou que não ia mais comentar o assunto. Que tal, então, a gente tomar uma cerveja e falar de outra coisa?

– Juro que se encontro o babaca pela rua, meto a mão

na cara dele sem dó. Já tinha vontade de fazer isso quando ele mandava em mim. Agora que eu não devo mais satisfação, é que eu meto mesmo!

– Quer escolher o bar ou eu posso escolher?

– Sabe o que ia me fazer dar uma boa relaxada? Se a gente sentasse agora numa mesa de bar e tocasse a musiquinha do plantão e dessem a notícia de uma explosão no prédio daquela merda de banco. Ia grudar a cara na TV pra ver se encontrava algum pedacinho daquele filho do cão.

– Escolhe o bar, então. Escolhe algum lugar que tenha uma TV bem grande, pra você assistir ao jornal e ficar aí sonhando com tudo indo pelos ares.

– Quer saber? Foda-se a TV, foda-se o banco, foda-se o filho da puta do nosso che… ex-chefe e foda-se quem caguetou a gente pra ele. Será que tem algum inferninho aberto a essa hora? Não é da TV que eu preciso, não. É de música ruim, ambiente brega e cerveja quente.

Continuam a descida pela Augusta. Em tempos normais, o mais alto parece um sujeito bem-humorado. É um contador de piadas nato e faz qualquer história ficar hilária. Mas ser pego de surpresa com a demissão – ainda mais às vésperas de se casar – acabou com qualquer chance de bom humor. O baixinho é do tipo que sempre procura ver o lado bom de tudo e, por mais que também não entenda o que fez para ser posto na rua, achou melhor encarar a situação depois.

Foi por isso que resolveu não resistir à proposta de ir a um inferninho qualquer, mesmo detestando baladas –sobretudo as de gosto duvidoso. Para a sorte dele, o horário joga a favor e as boates ainda estão fechadas. Acabam, então, optando por um boteco pé-sujo onde podem encontrar uma combinação ideal entre cerveja a uma temperatura aceitável, porções gordurosas o suficiente para acalmar a alma e a impossibilidade de que os outros frequentadores do local conheçam o antigo chefe ou qualquer outro funcionário do banco.

– O chifrudo ainda vai ter o que merece, sabia? Fica montando a banca de todo-poderoso, mas logo, logo é ele quem vai estar na rua em busca de emprego. Só torço pra que seja num momento em que ele esteja precisando muito da grana, igual eu estou agora – nem bem se sentaram e o que parece um urso reiniciou a sequência de reclamações.

– Não é para tanto, vai? Esse tipo de coisa acontece e, com o tempo que a gente estava no banco, a rescisão não vai ser das piores. E ainda tem o Fundo de Garantia, que sempre ajuda, né?

– Esqueceu que eu saquei essa merda para comprar o apê? É por isso que eu tô te falando: se eu descubro quem foi o coisa-ruim que queimou a gente, eu sou capaz de acabar com a vida do sujeito.

O garçom chega com a cerveja e dois copos. Por trás dele, os amigos notam a entrada de uma figura que não combina com aquele bar. Parece um pastor evangélico: camisa branca fechada até o último botão, um terno que, apesar de bem cortado, parece ter sido feito para outra pessoa e um

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sapato Democrata já bastante surrado. Embaixo do braço, um livro grosso. Uma boa olhada revela que não é uma Bíblia, mas um tratado sobre direito trabalhista. Fácil concluir que não é pastor, mas advogado (ou talvez as duas coisas). O bar está quase vazio, mas o sujeito escolhe a mesa ao lado dos dois para se sentar.

Os amigos retomam a conversa:

– Eu nem sei como vou chegar em casa e contar pra patroa que tô na rua. Já tô vendo o drama. Ela vai querer cancelar o casamento e o escambau.

– Não conta para ela nos primeiros dias. Vai que você consegue um emprego novo até lá. Chega com a boa notícia, em vez da tragédia.

– Claro! Vou chegar e falar: amoreco, você não sabe da boa nova. Recebi uma proposta e vou sair do banco para virar entregador do iFood.

O esquilo desnutrido espera alguns segundos para saber se pode rir ou se o outro falou aquilo a sério. Não quer desagradar ao amigo em um momento tão delicado. O vizinho de mesa não tem o mesmo comprometimento e não segura a gargalhada. Assim que se controla, olha para os dois e fala:

– Acho que ela vai entender que entregar hambúrguer é melhor que enfrentar os humores instáveis do Sérgio, não?

Os amigos trocam olhares arregalados. O pastoradvogado conhece o ex-chefe? Pior, sabe que eles trabalhavam no banco? O mais magro até olha para o próprio peito e para o do amigo, para ver se esqueceram de retirar os crachás, mas não vê nenhum indício que possa servir de identificação.

– Desculpem-me por me intrometer, mas é que a piada foi muito boa. Ainda mais para quem conhece bem o Sérgio.

– E de onde o senhor conhece ele?

– Ah… Sérgio é um amigo de longa data. Há muitos anos apareceu em meu escritório pedindo ajuda para uma questão que enfrentava. Queria algumas orientações para crescer na empresa. Mostrei o caminho das pedras, sugeri que fizesse algumas coisinhas e passados poucos dias ele foi promovido como se fosse mágica. A partir daí, ele nunca mais deu um passo sem me consultar.

– Faz sentido… – mesmo sem entender nada, o altão acredita que, se avançar na conversa, pode encontrar algo útil para seu plano de vingança. – Mas como é que você sabia que a gente trabalhava com esse maldito, hein?

– Uma vez, numa de nossas reuniões, ele me mostrou uma foto dos senhores. Não posso contar o motivo, por razões de sigilo profissional, claro. Espero que os senhores entendam.

O urso está tão envolvido com a chance de ter mais informações que deixa o absurdo daquilo passar. O baixinho fica se perguntando qual o sentido do chefe mostrar uma foto dos dois para alguém? Será que tinha a ver com a demissão? Ou será que os planos de Sérgio eram maiores? Começa a temer que aquele sujeito não seja nem pastor nem advogado, mas um sequestrador ou assassino de aluguel.

– Mas olhem pelo lado bom. Agora não tenho mais conflito de interesses para ajudar os senhores.

– Ajudar? Como?

– Depende. Como os senhores querem ser ajudados?

– Um trampo novo era um bom começo, viu?

– Sinto admitir que aí foge um pouco da minha alçada. Acho que o sujeito lá de cima consegue abrir melhor esses caminhos, mas posso buscar formas de apoiar o intento. Se tiverem um emprego em vista, mas cuja vaga já esteja ocupada, posso ser bem útil, por exemplo. Que tal?

– O senhor é coach? É isso?

– É um jeito de ver as coisas. De qualquer forma, tenho um grande apreço por essa honrada profissão.

O magrelo começa a pensar que, seja lá o que aquele homem fizer, ele deve ser bom. Pelo que se contava à boca miúda no banco, ninguém acreditava no futuro da carreira de Sérgio quando ele começou a trabalhar, mas em um determinado momento tudo se encaixou com perfeição. Claro que muita gente maldava a história. Diziam que ele só tinha conquistado o novo cargo porque um gerente ficou muito doente de uma hora para outra e todos os possíveis candidatos para a posição não puderam assumir por um motivo ou outro. Pode até ter tido algum fator de sorte mesmo, mas pelo jeito Sérgio buscou o apoio de bons profissionais para se desenvolver na carreira. Uma ajuda que tinha tudo para ser útil para os dois novos desempregados da praça.

– Posso deixar um cartão com os senhores? Imagino que vão mesmo querer contar com os meus serviços.

Colocou um cartão para cada um dos dois sobre a mesa. Eles baixaram o rosto para pegar o papel e antes que voltassem a olhar para o homem e pudessem perguntar, afinal, quais eram os serviços que ele prestava, o pastor-coachadvogado já tinha desaparecido. No cartão se lia apenas:

Lucio Fernandez

Especialista em Questões de Trabalho, Família e Amor Travessa dos Detalhes, 666

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Oracao de Natal

Era a maior árvore de Natal que um dia vi na minha vida. O maior pé-direito também. Laços vermelhos e dourados se misturavam às bolas de mesma cor. No topo, uma imagem angelical segurando duas velas, uma em cada mão, velas essas cujas chamas piscavam no ritmo de jingle bells, enquanto a mesma música saía do pisca-pisca de cor amarela. Dois metros e meio de árvore, mais uns trinta centímetros de anjo e nem assim chegava perto do pé-direito. Na base, presentes se amontoavam à medida que os convidados chegavam.

De frente para a árvore, conseguia prever a classe social pelas sacolas das lojas que embrulhavam os regalos da noite, somadas ao figurino que levavam. Roupa de red carpet para tapete de sisal sintético. Na lareira, as clássicas meias penduradas com os nomes dos moradores da casa e papais noéis de todos os tipos se multiplicavam pelos quatro cantos do imóvel.

Cada família que chegava trazia consigo um prato de comida, uma sobremesa e várias sacolas, que se amontoavam umas às outras. A mesa de jantar de 12 lugares ia sendo posta, ora com peru, ora com chester, bacalhau, lombo, frangão, fricassê, dois pratos vegetarianos, dentre eles a clássica torta de cebola de minha mãe, outros três veganos, arroz, batatas, saladas de folhas e frutas, e o churrasco acontecia na área gourmet.

E feijão. Meu avô não come sem feijão.

No aparador de madeira de demolição colocado ao lado direito da mesa, ficavam as sobremesas, pudim, mousse de chocolate, torta de limão, de banana, o brigadeirão da tia Lelé – que já não é mais ela que faz porque nós a enterramos no Natal do ano passado –, mousse de maracujá, bolo de sorvete, creme brulée, cheesecake, brigadeiro de colher. Comida para cinco vezes a quantidade de convidados. As bebidas eram servidas no bar na varanda.

A equipe de coquetelaria fazia drinks, um sommelier explicava sobre os vinhos que harmonizavam com o que você estava comendo e garçons circulavam com as entradas. Isso sempre me azedou. Mas não aquela azia que te faz recorrer ao sal de frutas eno quando se chega em casa, ou ao chá de boldo com eparema.

A azia da alma.

No caminho de casa até ali passamos por praças com famílias inteiras em situação de rua. Apenas em três semáforos

não nos pediram dinheiro por estarem com fome. Dissemos não ter nada, com o porta-malas lotado de comida e presentes. O Natal fica vazio quando a gente olha assim. Um olhar anestesiado para a realidade. Aliás, nessa família tem gente em coma que anda, fala e ainda vota em filho da puta.

E você ri, maquiada, sentada na poltrona de linho da sala de estar, cumprimentando todos que evitou ver ao longo do ano. Pra quê? Os religiosos dizem que é para celebrar o nascimento de Jesus, aquele mesmo que ensinou sobre amar as prostitutas e perdoar os criminosos. O que disse que o amor está acima de todas as coisas, não o Brasil. E essas mesmas pessoas que frequentam semanalmente a igreja, ou a maçonaria, são os parentes que detesto ou evito: a galera em coma.

No Natal a gente cumprimenta, dá dois beijinhos (cariocas, né), um abraço, “quanto tempo” e o famoso carinho na parte externa do braço. Se tivesse uma faca enfiava na boca do estômago de cada um. A azia te impede de engolir certas coisas. Tem vezes que só de ver a comida sentimos enjoo, ânsia de vômito, náuseas. A dor é tão aguda que o desejo é ficar em posição fetal, sem se mexer. E assim eu me sentia. A cada parente que chegava, a cada sorriso falso, mais pontadas na boca do estômago. Ao escutar uma palavra ou outra sobre Deus, a vontade era de enfiar o criador goela abaixo.

Não era o aniversário de Jesus que a gente celebrava, mas o de Judas.

Dava para salvar meia dúzia. Numa festa com 50 pessoas, seis eram humanas. As outras se fantasiavam de bons. Se acham bons, talvez até melhores que os outros. Cada um com seu podre, com sua mentira por baixo do lookinho comprado especialmente para a data. A maioria de vermelho, não porque a estrela brilha no peito. Sorte tem você se na sua casa não é assim.

Dos clichês do dia 24 de dezembro, minha família não escapa de nenhum. A agitação pré-amigo oculto me irrita. São meses de insinuação “quem tirou quem”, papelzinho que vai de um lugar pra outro na bolsa de uma tia que precisou olhar cada um para saber se haveria alguma possibilidade de alguém ficar com o próprio nome. Quando criança, torcia por tirar o meu. Pelo menos ganharia algo que tivesse a ver comigo. Foram mais de 15 anos de presentes que nunca usei. Desisti de participar. Aproveito para ver o circo de fora. Às vezes, de fora até do Estado – tá aí a memória do meu melhor Natal.

Longe deles, no meio do mato, no menu strogonoff com batatas assadas na lareira e salada de orgânicos. Queijos e vinhos. Só. Depois do “eu tirei uma pessoa com dois olhos, dois ouvidos e blá-blá-blá…” vem o momento da oração. E puta que pariu, esse ano a oração era minha. “Revezamento, pois estamos numa democracia.” Você riu. Pode rir, é cômico mesmo. Viu quem está falando de democracia, né?!? Família reunida em roda, mãos dadas, olhos fechados. Convido todos a pensarem no criador, no universo, a se conectarem com a energia do amor universal, a refletirem sobre a própria vida. Carinhosamente, retiro do bolso a oração que preparei para aquele momento:

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“Pai nosso, que estás nos céus! Santificados sejam os tios Daniel e Ari, que traíram suas mulheres um com o outro. Venham a nós as traições da prima Vera com o açougueiro. Seja feita a vontade da Carla de dar para o marido da Carina, sua irmã, assim na cama como no motel. O pão nosso de cada dia dê para as famílias que estão na rua. Perdoa ninguém não, porque é tudo filho da puta. E deixa todo mundo cair em si. Livra-me do mal de conviver com esses idiotas. Ave, tia Maria, cheia de graça para o cunhado, o senhor João é corno. Bendita sois vós entre as mulheres fofoqueiras, e bendito é o fruto do vosso ventre, filho de outro, não do João. Santa Maria, mãe do Afonso, rogai por Pedro, namorado dele, não amigo. Agora e na hora da nossa trepada no swing.”

Amém.

Ralo

Joao Hélio de Moraes

Dia Um

Do nada, meus olhos se fecham e um arrepio me percorre corpo num espasmo. Há algum tempo venho tendo essa sensação cada vez que penso em sexo. Como minha cabeça é ocupada por libidinagens o tempo todo, isso significa que a toda hora, esteja onde estiver, experimento um arrepio nervoso que me distrai do que estou fazendo.

Deixe explicar melhor para não confundir quem vier a ler estas linhas no futuro: não é a reminiscência do sexo que causa esse tipo de tempestade neurológica; é a lembrança do sexo recente. Desde quando aquilo que preenchia cada fibra do meu corpo e mente deixou de ser fonte de prazer para provocar vergonha? Não sei responder.

Atendo o interfone e autorizo o porteiro a receber o que encomendei. Minutos depois, Paulo, o faxineiro do condomínio, toca a campainha da entrada de serviço e vai embora. Espero a porta do elevador se fechar, espio o hall vazio e recolho os pacotes que ele depositou no chão. Como combinamos, antes de encerrar seu turno, o funcionário voltará para recolher os vinte reais que deixarei num envelope sob o saco de lixo.

Dia Dois

Aos cinco anos, eu brincava de esconder no quintal com meu irmão menor e duas primas, de oito e nove. Em vez de vigiar o lugar de pique, só tinha olhos para o que revelavam as saias curtas delas. Acho que nenhuma das duas se dava conta do meu interesse antecipado. Uma morreu solteira e a outra passa seus últimos dias encerrada em um convento.

Hoje não é dia de entrega. Conto os cadernos e as canetas novamente. O estoque é grande, mas as canetas vão acabar antes.

Dia Três

Meus pais recebiam um casal de compadres semana sim, semana não, para rodadas de buraco. Era meu dia de ver as pernas da tia Ercília. Dependendo da posição em que ela se sentasse, eu espiava por baixo da porta do banheiro ou pela fresta da cortina da sala. Ela não parava quieta, tinha um tique que fazia com que suas coxas grossas sacudissem sem parar. No ponto de sombra em que se encontravam, uma nesga de tecido reluzia com o movimento. Acho que era cetim.

Sou o único morador do prédio a ter o privilégio de receber encomendas na porta do apartamento. Os demais precisam descer para apanhar seus pacotes com o porteiro. A luz se apaga no hall, apanho a sopa e o sorvete e tranco a porta.

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Dia Quatro

Quanto tempo uma pessoa pode viver sem sexo? A vida toda, se for um padre ou eunuco. E uma pessoa normal?

Espremo os olhos com o arrepio que me vem. Minha mente tinha divagado para a noite em que saí com a Virna. Trabalhamos na mesma escola mais de vinte anos. Nunca tínhamos trocado mais que duas palavras, ela não me atraía como mulher. Não que fosse feia, bem ao contrário. Tinha dentes branquíssimos e sacudia os cabelos loiros ao caminhar. Vestia-se de um jeito elegante, escondendo as pernas que descobri depois serem firmes e longas. Era casada. Uma tarde, esperávamos a chuva passar junto ao portão de saída. Ela disse que ia até o café da esquina; fui também não sei bem por quê. Ato contínuo a pousar a colherzinha no pires, contou que adorava sexo.

Viemos para minha casa. Tiramos a roupa antes do primeiro beijo. Dei início a minha rotina: a cinco centímetros de sua barriga, movi minha cabeça para frente e para trás ouvindo uma espécie de ronco quando minhas orelhas se alinhavam às coxas infinitas que formavam um vale sobre o púbis cor de argila. Deitada de costas, as pernas apoiadas no assento do sofá, ela falou que não gostava de oral. A partir daquele momento, só toquei seu corpo nos pontos estritamente necessários para trepar. Ela não mexeu um músculo durante a meia hora que levou. Levantei e fui ao banheiro. Ela tinha ido embora quando saí. Na escola, continuamos a trocar bons-dias como se nunca.

Cada caneta dura dois cadernos e meio.

Li um romance em que um personagem registra confissões para o filho de quem havia se separado por alguma razão. O único bloco de papel que ele tinha acaba, e o sujeito começa a escrever a lápis no espaço entre as linhas, depois nas entrelinhas, até que as palavras se espremem tanto que cada página vira um grande borrão ilegível. Não terei esse problema; guardei muitos cadernos em branco. Só não sei o que vou fazer com eles no final. Não escrevo para ninguém em particular, nem teria para quem. Escrevo para mim mesmo. Quem sabe eu não ponha fogo em tudo quando terminar.

Dia

Bebo água. Dizem que beber água faz bem. Tomo meio copo por dia.

Não gosto de álcool. Até bebia uma lata de cerveja ou um copo de vinho, mais para acompanhar os outros. Como na passagem do ano de 1959. O ônibus para Ubatuba parou por causa de uma barreira provocada pela chuva. Faltava pouco para a meia-noite e o tráfego seguia devagar na estradinha recém-pavimentada com pedriscos e um pouco de betume. De repente, a fila de carros parou de vez. Fazia muito calor lá dentro. Vi as luzes de um posto de gasolina pela janela embaçada. Pedi para o motorista abrir a porta e voltei com duas garrafas de vinho da única marca que havia. Passei por meu assento e segui até o fim do corredor, onde me acomodei

entre três moreninhas que faziam a maior algazarra no banco que tomava todo o fundo. Bebemos, nos beijamos, babamos o vinho uns nos outros.

Foi o melhor réveillon da minha vida. Saltei prometendo encontrá-las na tarde seguinte em certo quiosque de determinada praia. Nunca apareci por lá.

Dia Sete

Penso no tempo em que acampava. Do que mais me lembro é limpar os pentelhos que ficavam no chão de plástico.

Edi me convidou para acampar na praia. Fui porque não tinha nenhum programa melhor. A nissei era uma amiga de faculdade sem atrativo nenhum: pequena, magra, sem curvas. Usava óculos e cultivava, sem dar conta disso, um discreto buço sobre o lábio superior. Montei a barraca minúscula dela em Toque-Toque Pequeno. Na primeira noite, Edi roçou o pé no meu, como quem se vira durante o sono. Também fingindo que dormia, manobrei até tomar posição atrás dela. Se era para transar, eu precisava de um prêmio, e ainda evitava encarar aquele esboço de bigode. Ela soltou um longo suspiro, afastou a bunda seca da minha mão e se enfiou no saco de dormir. Passamos o resto do fim de semana sem encostar um no outro.

Despejo a sopa e o sorvete na pia. Levo para fora o saco de lixo com as embalagens vazias.

Dia Oito

Fui professor por quase trinta anos. A escola é um lugar muito bom para encontrar mulheres. Conheci várias alunas precoces para a idade, professoras no fogo da juventude, uma auxiliar de ensino que fazia escândalo ao transar, uma auxiliar de limpeza crente, outra espírita, uma diretora sisuda e safada. Apresentei umas coisinhas para umas, apontei caminhos para outras. Nenhuma delas me ensinou nada.

Sei que uma pessoa que passou dos setenta deve beber cerca de três litros de água por dia. E quem tem mais de oitenta?

Escrevo recostado na cama. Os cadernos empilhados à minha esquerda são aqueles que já preenchi; os novos ficam do lado direito. Preciso pedir mais canetas.

Para pensar em sexo sem sentir o engulho preciso revirar a memória antiga. Lembro a vez em que tive um orgasmo sozinho sem me tocar. Foi numa tarde durante a semana. Eu estava de folga, ou coisa assim, à beira da piscina do clube. Comecei a pensar em mulheres, em partes de mulheres, na visão, no gosto e no cheiro delas. Me concentrei a ponto de sentir que flutuava, como se estivesse bêbado ou drogado. Foi uma libertação.

Dia Nove

Namorei Madá, fui noivo de Dália. Tudo foi bom durante um tempo, depois azedou. Fim das duas histórias.

Tomo um susto quando passo em frente ao espelho do banheiro. Aquele rosto encovado, o olhar sem brilho, as mãos de veias azuis sou eu?

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SUBMARINO CONTOS RUSSOS

Quanto tempo alguém aguenta ficar sem sexo? E sem comer?

Dia Onze

Chegou a caixa de esferográficas que encomendei. Paulo deixou no chão ao lado dos sacos de papel habituais. Acho que agora meus dois estoques estão equilibrados. Também percebo que ando escrevendo mais devagar. É certo que vai sobrar material.

Num caderno novo, registro meu encontro com Robby. Robéria era de João Pessoa, onde dava aulas de lambada, e estava no Recife para o carnaval. Pediu para cheirar meu lenço embebido em lança-perfume. Eu não podia levá-la para onde eu tinha estacionado minha mochila. Havia tanta gente no apartamento alugado que fazíamos rodízio nos colchonetes e redes; uns dormiam de tarde, outros de manhã. Ela estava hospedada numa pensão com duas amigas. Meu dinheiro contado deu para pagar um quarto por uma noite. Ela disse que queria tomar banho primeiro. Pelo vidro fosco, observei a mancha de seu corpo sob o chuveiro, a cor de caramelo queimado interrompida pelas marcas claras do biquíni. Estranhei a parte de baixo: a sombra não era escura como devia ser. Ela saiu enrolada na toalha e não resisti de curioso. Dei um puxão que revelou seu púbis. Os pelos naturais haviam sido substituídos por outros, amarelos, gravados por algum tatuador inábil. “Mas por quê?”, questionei. “Cansei de ficar tingindo”, me devolveu com um sorriso dentuço. Eu disse que ia buscar cerveja na vendinha do lado. Vesti a bermuda, bati a porta e fui embora.

Quanto tempo alguém ainda pode viver depois que o sexo acaba?

Parei de tomar água.

Madá já morreu. Não tenho notícia de Dália; também deve ter morrido.

O cheiro da sopa me enjoa enquanto derramo o conteúdo do pote na pia da cozinha. O sorvete escorre pelo ralo deixando um rastro viscoso.

Outro arrepio vem com a memória dos fracassos em sequência. O gozo potente que me elevava às nuvens, ainda que por um momento, cessou de uma hora para outra. Em vez do cume, a planície. Do vigor ao torpor sem escalas. Fui a médicos, fiz tratamentos, experimentei estimulantes de todos os tipos e preços.

Até que desisti. Me sinto vazio.

O interfone toca. Não me mexo. Dez minutos depois, toca de novo. Na terceira vez, levo o fone ao ouvido sem falar. O síndico, cujo nome esqueci, solta

um pigarro e pergunta se está tudo bem. “Não poderia estar melhor”, respondo, e acrescento: “No limiar de novas descobertas”. Ele finge compreender e responde “Que bom”. Não bisbilhota mais.

Dia Doze

Quando escurece, penso que escrevi pouco ao longo do dia. Esqueci de apanhar os sacos de papel no hall externo. Levanto de madrugada para fazer isso.

Dia Treze

Minhas primas vieram de visita. Assim que saíram, recebi tia Ercília, que me trouxe um baralho de presente.

Volto a escrever de forma acelerada. Só hoje esgoto dois cadernos.

Dia Dezenove

Tenho a impressão de ter cruzado com a loira Virna no corredor em algum momento durante a tarde. Com as roupas manchadas de vinho, as três meninas do ônibus de Ubatuba me acenaram do sofá da sala. Esperei acordado até ver Edi, a japonesa de bigodes, e a forrozeira Robby passarem de mãos dadas a caminho do banheiro.

Dia Vinte

Madá e Dália me aparecem em sonho. Estão muito magras. Madá tem o rosto coberto por um véu. Dália me faz abrir a mão e deposita nela um passarinho. Pelo contato, percebo que o corpo frágil ainda conserva algum calor.

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Dia Dez

Debaixo da terra, acima do céu

Diante de certas portas, um homem pode fazer muito pouco. Mesmo o ditador é obrigado a procurar uma cadeira enquanto o monitor não mostra a sequência de letras que lhe interessa. A senha, entregue por um funcionário do aeroporto, permitiria que ele adentrasse uma outra sala, contígua àquela em que acabara de entrar. A vida comum devia ser uma sucessão de filas, de senhas, de pessoas entrando em portas, pessoas que não eram ele. O ditador não gostava da vida comum que era forçado a levar naqueles minutos antes de partir para o exílio. Já tinha passado pelo saguão do aeroporto, ajeitando os óculos escuros e o chapéu, andando em linha reta entre as cordas, como um rato. E no fim, quando era a sua vez de passar pelo detector de metais, um funcionário lhe entregara um papel e apontara uma porta à direita. Deve ser a sala VIP, pensou. Mas a porta era pesada, não era uma porta de sala VIP, ficava difícil até passar com sua mochila de turista. Uma sala branquíssima, com cadeiras e luzes brancas, com paredes e uma outra porta branca, que guardava talvez a porta do avião. Devia ser só mais uma porta, mais uma catraca antes de embarcar. Achava estranho, mas o ditador não frequentava saguões de aeroportos há tanto tempo que o procedimento podia muito bem ter mudado. Podia ter dado uma ordem que já tinha se esquecido.

Não seria um exagero dizer que era a segunda fila em que o ditador entrava nas últimas dezenas de anos. Toda a sua vida adulta havia sido um desmando. Já era a segunda vez nos últimos cinco minutos que ele não tinha escolha. Na verdade, a terceira em algumas horas. Na noite passada, lhe disseram que não havia mais tempo. Os rebeldes tinham tomado a cidade e o general mais poderoso o havia traído. Na praça da capital, queimaram sua estátua e degolaram sua mulher e alguns agregados. Tomaram o palácio, seus quadros (a maioria retratos feitos por alunos do curso de Belas-Artes com seu nome), sua coleção de carros antigos, seus animais silvestres, incluindo o último tigre-de-bengala do continente. Enfim, todo o protocolo. Sua sorte era ter um último criado leal, cujo ato derradeiro havia sido lhe informar que estavam tomando tudo.

– Vão para um caralho. Meu tigre, não.

– Meu senhor, é preciso fugir.

– Vá para um caralho você também. Obrigado.

E desceu pelo túnel construído sob a banheira de hidromassagem, que terminava no banheiro do aeroporto, mais especificamente em uma cabine para sempre em manutenção. O pessoal da Inteligência era muito bom.

Ele abaixava os óculos com cuidado, revelando apenas uma fresta do rosto, para olhar a senha e depois o monitor. Por serem só letras, não dava para saber se faltava muito para sua vez. As pessoas que entravam pela porta prometida com certeza tinham esperado muito menos que ele. Essa certeza se devia à paranoia inerente ao poder do ditador, porque mais cedo ou mais tarde os ditadores caem, traídos, como acontecia com ele, agora relegado a uma sala de espera, sem poder fugir do país que havia arruinado como um ditador tinha o direito de fazer. Como cochichavam as pessoas em volta dele, aquilo era revoltante. E ele estava, de fato, revoltado, embora a revolta não caísse bem para um ditador. O que o impedia de levantar e passar pela porta? Ninguém tinha o direito de lhe dar permissão. Havia um disfarce para ser sustentado, mas a raiva percorria sua corrente sanguínea. Acabou por gritar: – Para um caralho! Empalem todos! Empalem todos num grande caralhão.

Mas ninguém pareceu se incomodar com a gritaria do ditador. Os que esperavam continuaram esperando; os que se levantavam, escolhidos pelo monitor, desapareciam pela porta. De certa forma, o ditador estava aliviado. O destempero podia levá-lo à prisão, à tortura, à morte. Era melhor a melancolia do desprezo do que a glória do sangue. Essa conclusão lhe deu força para esperar, e ele quase adormeceu, o chapéu engolindo a cara e fundando a treva dentro dos seus olhos.

E foi quando o chapéu ameaçava cair, deslizando até pousar no ombro, revelando a cabeça calva do ditador, revelando sua notória testa oleosa, que as letras exibidas no monitor corresponderam às que ele segurava nos dedos. O susto da fuga do chapéu o tirara do sono, e com alegria o ditador caminhou até a porta, encarando seus desiguais como um último ato de guerra.

– Putos empalados! Ainda volto para pegar meu tigre.

E então, com alguma dificuldade – pois aquela porta era, também, mais pesada que o normal –, o ditador deixou a sala de espera.

Ao contrário da sala anterior, aquela não tinha qualquer iluminação. Tudo o que o ditador conseguia enxergar era a escuridão. Os óculos escuros tinham se tornado inúteis, o chapéu tinha se tornado inútil, pois ao contrário do ditador o escuro era democrático, ele não reconhecia um palmo à frente do nariz e ninguém podia reconhecê-lo. Mas também não podia se locomover. Quem garante que não caminharia direto para um fosso?

Uns metros à frente, aos poucos, um facho de luz se distinguia no alto, como vazado do teto. Ele deu alguns passos cautelosos, percebendo o piso de metal abaixo dos pés; e notou, à medida que caminhava, mais pés em volta dos seus fazendo o mesmo trajeto, embora evitasse olhar para os lados, porque algum daqueles empalados talvez o reconhecesse mesmo naquele breu.

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SUBMARINO CONTOS RUSSOS

Não precisaram caminhar muito até o fim da sala. Do alto, num teto impossível de enxergar, descia um pêndulo com uma pequena chama dentro, como um lampião. Em volta da chama, as pessoas giravam numa fila circular até uma portinhola de ferro instalada na parede. Quando chegava a vez, a pessoa estacionava de frente para a portinhola, que se abria e fechava rápido, num movimento de guilhotina, cuspindo uma folha de papel nas mãos de quem esperava. A pessoa recolhia a folha e caminhava em frente, desaparecendo na escuridão. O ditador já não sabia o que pensar.

Desta vez a fila andou rápido. O ditador parou na frente da parede e esperou a folha cair nas suas mãos. Era uma palavra só na página inteira, com uma fonte grande, escrita na vertical: DESPACHO.

Muitas coisas passaram pela cabeça do ditador: seus detratores o esperavam munidos de punhais; seus detratores o esperavam munidos de tochas e gasolina; seus detratores o esperavam com seu tigre esquartejado, cujo destino também seria o seu; mas não houve tempo para se fixar em nenhuma dessas possibilidades. Seus companheiros de escuridão voltaram a caminhar perto dele, e agora o ditador já torcia para que não se afastassem. Ele andou mais alguns metros sobre o piso de metal, até que o resto do bando pareceu parar, formando mais uma fila. Mesmo a contragosto, ele estendeu o braço e tocou no companheiro à frente, só para ter certeza de que não estava sozinho.

– Arrombado do caralho. Obrigado.

Apoiado num balcão, sob uma luz fraca mas suficiente para destacar-lhe a cara pálida, um funcionário recolhia as folhas e permitia a passagem das pessoas. Na vez do ditador, ele, que até então permanecia com a cabeça baixa, fitou a testa oleosa do ditador, que devia incomodá-lo com todo aquele brilho. O ditador não gostou daquela insolência; no entanto, a verdade era que estava com medo. Então deixou passar. O funcionário pegou sua folha e apontou à sua direita, onde um corredor se estendia até uma porta de correr.

A próxima sala não era realmente uma sala; também era escura, mas menos escura; havia uma lâmpada suspensa no teto, piscando, como se fosse apagar a qualquer momento; e era como se, muito devagar, ela começasse a se mover.

O ditador riu – pois não sabia mais o que fazer –quando percebeu que não havia mais a porta por onde tinha entrado. A sala pegou velocidade, e então ele se sentou num dos bancos. O ditador continuava a rir, e lágrimas desciam pelo rosto oleoso: sim, estava num vagão de trem. Estava finalmente indo para o exílio, fugindo de todo o mal.

Nas plataformas, à direita e à esquerda do trem, pessoas se amontoavam para ver o ditador passar – ainda que seus trajes civis e seu estado mental não fizessem justiça à sua condição de autoridade, ainda que o veículo oficial não fosse um carro conversível nem um blindado. Ele acenava para a multidão, abotoando a camisa florida até a gola, evitando olhar nos olhos dos maltrapilhos embolados lá fora, quase caindo nos trilhos. Pensando bem, não pareciam maltrapilhos, e sim cadáveres.

Mas é estranho como uma coisa boa é sempre sucedida por uma ruim. Ou: uma coisa boa é também sempre ruim. Cansado, o ditador apoiou sua mochila de turista no banco, como um travesseiro, e se deitou para cochilar. Quando um cheiro curioso começou a tomar o vagão. Cheiro de comida. Percebeu que estava com fome, afinal aquela jornada já devia durar horas. Decidiu se levantar e caminhar na direção do cheiro, que vinha do escuro profundo dos vagões à frente.

E caiu, caiu seguidamente. Mas só uns degraus. Porque o ditador se percebeu numa escada rolante. Ficou de pé, já não estava acreditando ou deixando de acreditar em nada. Ele olhava para os lados e não via nada além do breu, aquela escada rolante devia descer até o inferno ou até um buraco negro. O cheiro, no entanto, persistia, cada vez mais forte.

E foi esse cheiro, talvez, que dissipou a escuridão. Agora o ditador podia ver o destino da escada rolante: um jardim extenso, com flores e plantas de espécies desconhecidas pelo ditador, uma fonte no centro e muitos pombos sobre a grama e em volta dela, catando minhocas e tomando banho nas águas do chafariz. O ditador se emocionou: era a casa de sua infância.

– Pesado. Pesado pra caralho. Era o caso de empalar quem fez isso.

Do outro lado do jardim, próxima à churrasqueira de tijolos, uma figura há muito não vista pelo ditador mexia num fogão. Enquanto manipulava as panelas, a mulher balançava as nádegas numa dança melíflua, muito sutil. A mulher estava envolta em fumaça, mas o ditador conhecia aquela bundinha, e, mais do que isso, conhecia o cheiro que saía do forno.

– Mãe, mãezinha, sagrada mãezinha. A carne assada da mãezinha.

Os dois se abraçaram, e o ditador apertou com força o corpo da mãe contra o seu. A mãe pareceu gostar do abraço. Cuidadosa, desabotoou a camisa do filho até a barriga e acariciou seu peito pelado. Depois murmurou no seu ouvido.

– Debaixo da terra e acima do céu, tudo é permitido.

Ela se afastou do ditador, que permanecia de braços abertos e com um sorriso malicioso. A mãe abriu o forno e retirou um tabuleiro de vidro, apoiando-o na bancada. O ditador então se sentou à mesa, erguendo os talheres. Mas não era, apesar do cheiro forte, a carne assada que o ditador esperava.

– Não quer comer, meu filho? – ela perguntou, apontando para as medalhas esturricadas dentro do tabuleiro. Para ser justo, embora estivessem bem queimadas, era possível distinguir as medalhas de ouro das de prata. As de bronze, não.

Como o ditador não se mexia, como sua expressão de incredulidade não atendia às expectativas da mãe, que passara o dia inteiro cozinhando, ela se adiantou e tratou de servi-lo. Mas não o serviu no prato: calçou a luva, tirou uma medalha de ouro (ou de bronze) do tabuleiro e a apertou contra o peito nu do filho, que berrou.

– Puta empalada! Que caralho?

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Ofendida, a mãe do ditador saltou da cadeira e correu para dentro da casa, choramingando. O ditador olhou para a marca no peito e lembrou da infância, quando brincava com os filhos dos criados com tampinhas de garrafa, esquentandoas na brasa e pressionando nas costas deles. De fato, a marca era similar.

Antes que pudesse ir atrás da mãe, o ditador percebeu um movimento na escada rolante. A multidão que o acompanhava nas estações do trem agora descia para o jardim. Abotoando a camisa, o ditador deu a volta no chafariz, chutando os pombos que estavam no caminho, e apertou a vista para todos os cantos, tentando achar uma saída. Mas os muros da sua casa eram muito altos, já que o pai do ditador também fora um ditador. Os maltrapilhos, porém, pareciam se contentar com o jantar que ainda esperava nas panelas. O caminho para entrar na casa e abraçar sua mãe parecia livre – aquilo era o exílio de verdade. É claro que, como dissemos antes, a maldade sempre sucede a bondade. Quando a mãe do ditador apareceu na porta da casa, talvez convidando-o a entrar, talvez apenas para assistir às consequências do jantar, os primeiros pombos já haviam pousado nos seus ombros, enquanto os outros se ocupavam das pernas, do peito marcado, dos olhos abertos.

Igual isso só mesmo o Bahia comprar Messi

A primeira coisa que eu fiz foi mudar de nome. Não sei por que essa foi a primeira coisa, mas foi. Acordei no mesmo horário de sempre, cinco e meia da manhã. Olhei pro lado direito da cama, ainda deitado, tirei o cabelo que tava caído por cima do rosto de Nete, minha mulher há 22 anos. Ela se mexeu, eu tirei minha mão pra não acordar ela. Não foi pra deixar ela dormir mais, foi pra não acordar ela. É diferente, e foi por isso: não queria que Nete acordasse, não queria falar com ela naquela manhã. Levantei da cama bem devagar, fiz um pouco de alongamento como faço todo dia, fui no banheiro lavar o rosto e dar aquela mijada. Naquele dia deixei os pingos no vaso, deixei os pingos no chão do banheiro, não limpei como faço todo dia, e ri imaginando a reação de Nete quando sentasse e sentisse o molhado nas coxas. Logo no começo de nosso casamento entendi que se eu quisesse continuar com Nete ia ter que limpar os pingos do meu mijo, naquele dia não limpei.

Costumo correr 10 km toda manhã, mas naquele dia resolvi não correr. Não queria encontrar com Nete acordada na cozinha de camisola, fazendo café pra ela e pros meninos (temos dois filhos adolescentes, Marco e Maurício, 16 e 18 anos), e me olhando incrédula porque eu não limpei o vaso e o chão, e reclamando porque eu não limpei o vaso e o chão. Não fui correr. Passei um café, botei uma fatia de pão no forno, tirei o queijo da geladeira. A porta custou a fechar e eu pensei: 22 anos abrindo e fechando essa geladeira, essa mesma geladeira. A borracha da porta tá velha, não fecha direito, precisa trocar. Tirei a fatia de pão do forno, me servi de café preto e fui pra varanda. Naquele dia resolvi tomar o café na varanda. Acho que não são muitos motivos que levam uma pessoa a mudar de nome. Nem sei por que eu resolvi mudar o meu, mas resolvi. Terminei meu café, lavei a xícara, sai.

Peguei o 879P-10, o primeiro que passou. Eu nunca pegava o 879P-10 porque ele não serve para mim, mas eu saí de casa muito cedo e o cartório só abria às 9 horas. Eu ainda tinha 3 horas, já que não ia ao trabalho naquela manhã, assim como não tinha ido ontem, nem anteontem e nem na semana passada. Nete não sabia, ninguém sabia. Não pedi as contas, simplesmente deixei de ir. Não foi uma decisão, aconteceu que eu deixei de ir ao trabalho, deixei de sair de casa, pegar o 719H, saltar 23 pontos e uma hora e meia depois e passar o dia todo em pé na porta do Palácio Tangará dizendo bom dia, sim senhor, sim senhora, boa tarde, abrindo porta de Jaguar,

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SUBMARINO CONTOS RUSSOS

BMW, Lamborghini. Por isso digo que a primeira coisa que fiz foi mudar meu nome. Porque essa foi uma decisão que tomei: mudei meu nome.

Me chamo Leonel, me chamava Antônio. Gosto mais de Antônio do que de Leonel, mas um nome nunca é só um nome e Antônio morreu no dia que eu vi o resultado do sorteio no celular. Eu tava em casa de noite, já tinha tomado meu banho e jantado com Nete e os meninos. Eles tavam no quarto fazendo não sei o que, Nete tava na cozinha lavando a louça, arrumando as coisas pro dia seguinte, eu tava no sofá da sala assistindo o jogo do Bahia, quando lembrei que eu tinha jogado (nunca jogava, não acreditava em sorte) e fui checar os números.

– Puta que pariu, caralho, caralho, puta que pariu!!!!! Não consigo respirar, tô sufocado, puta que pariu, caralho, não acredito, porra, não é...

– Antônio, que foi? Tonho, que aconteceu?

Era Nete. Veio correndo da cozinha assustada, coitada. Chegou na sala com a mão cheia de espuma de sabão, pingando água no chão. Quando eu vi Nete na sala, não sei o que me deu, joguei meu celular dentro do aquário, senti que ia desmaiar, não conseguia respirar direito. Ela percebeu meu sufoco, tadinha.

Olhava o celular no aquário, olhava para mim, correu para me acudir perguntando o que tinha acontecido. Os meninos saíram do quarto.

– Pai, o que aconteceu? Pai?

– Foi gol, foi gol?

– Antônio, Tonho, o que foi? O que foi? Abre a camisa, deita aqui. Marco, vai pegar água...

– Messi, Messi, Messi.

– …pra seu pai. O que tem Messi, Tonho, o que foi?

– O Bahia comprou Messi, Nete. Foi o que me veio na cabeça na hora.

– Oxe, pai, tá doido? Bahia comprou Messi?

– Aqui a água. O que foi que teve, pai?

– Tá dizendo que o Bahia comprou Messi.

– Eita, Antônio, que porcaria de Messi! Você me dá um susto desse!!! E jogou o celular no aquário. Que foi isso, Antônio?

A coisa foi longe e isso me rendeu uma dor de cabeça danada. Nete ficou pê da vida, achou que eu tava tendo um caso. Tirou meu celular da água, com cuidado pra não machucar o betta, e tacou no pote de arroz pra secar. Não secou. Nete tinha dois bettas, em dois aquários que ficavam um de frente pro outro, do lado do sofá. Não posso confiar em uma mulher que tem dois bettas de estimação, peixe brabo e traidor. Nunca contei a ela, nem nunca contei pros meninos.

Saí de casa naquele dia para mudar meu nome sem nunca ter falado que eu ganhei, eu ganhei, eu. Nunca jogava, nunca. Não acreditava em sorte. Tava ali um dia, vi que tinha acumulado a megassena, decidi jogar: o dia, o mês e o ano do meu nascimento, o dia e o mês que eu cheguei em São Paulo vindo da Bahia, e minha idade. Joguei seis números e ganhei, só eu ganhei, tudo, sozinho. Igual isso só mesmo o Bahia comprar Messi.

Antônio saiu de casa naquele dia e nunca voltou. Leonel nunca chegou a conhecer Nete, Marco e Maurício. Saí do cartório, peguei um táxi e fui direto pro banco. Fiz uma aplicação pra Nete, metade do prêmio, fiz uma aplicação pra Marco, uma pra Maurício. Botei dinheiro na conta de minha mãe, meu pai, meus dois irmãos. Deixei todo mundo arrumado e fui para o Palácio Tangará, suíte máster, uma semana. Não saí para nada. Fiquei ali tomando café, almoçando e jantando, fazendo massagem, tomando banho na banheira de hidromassagem, fazendo sauna, aula de Pilates e contas. Messi tinha 30 anos, certeza ia jogar até os 40 ou perto disso. Uns dez anos, uns cinquenta a sessenta jogos por ano, passagem, hospedagem, ingresso, comida. Vai dar.

O próximo jogo de Messi foi daquele sábado a oito, em Barcelona. Comprei passagem, reservei hotel, comprei ingresso para ver o jogo, fechei minhas contas no Palácio Tangará e fui. Naquele dia Messi não fez gol.

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Sereia em apuros

– Wellcome, mr. Michael Smith – o oficial de imigração do porto de Santos saúda o homem de negócios, na manhã brumosa da primavera de 1950.

O navio de Smith partiu de Nova York. Cruzou o Atlântico em direção à Inglaterra, desceu para Portugal, de lá para as Ilhas Canárias, depois o Brasil. O longo cruzeiro serviu para despistar o MI5, o serviço secreto inglês, que monitora pelo mundo os espiões internacionais.

Smith, alto e corpulento, queixo quadrado, mãos pequenas, atravessa a alfândega portuária. Um prédio antigo, de colunas altas e chão encardido. Ele caminha como o goleiro Barbosa na final da Copa no Maracanã: por fora, confiança; por dentro, os nervos em frangalhos.

O viajante alcança a rua movimentada, contrata um chofer de praça para levá-lo ao centro de Santos. O Chevrolet escuro é um búfalo de lata, que rumina a estrada do porto, uma senhora caprichosa com curvas e cicatrizes. O recémchegado afunda no banco de couro, enquanto contempla a paisagem esverdeada.

Michael Smith é a cobertura usada por Igor Dolgoruki, agente secreto russo, designado para uma missão de alto nível fora da União Soviética. Igor é um sobrevivente dos labirintos do Kremlin, tem uma missão em terras brasileiras: assassinar trotskistas infiltrados na esquerda brasileira, começando pelo porto vermelho de Santos.

O passaporte foi fabricado nos porões do serviço secreto soviético, a NKVD. Na folha de identificação tem o nome de Michael Smith, empresário inglês que atua em comércio exterior. Uma cobertura que permite a ele se movimentar sem levantar suspeitas em diversos países.

Na despedida na URSS, o Coronel-General da NKVD o advertiu:

– Camarada Igor, o seu disfarce é de um inglês em viagem de negócios pelo Brasil. Os detalhes da sua missão estão no envelope. Quando voltar para casa será de novo Igor Dolgoruki.

– Como no treinamento, Coronel General.

– Não se esqueça: o bom agente é o que está vivo. Não crie vínculos, não deixe rastros. Ninguém deve saber quem é você, especialmente as mulheres. Um agente não pode ter ligações amorosas.

– Sim, Coronel-General.

– No cinto você tem um cabo de aço, a maneira mais eficiente de eliminar testemunhas e pessoas inconvenientes.

Os camaradas confiam no sucesso do sicário nos trópicos.

Igor, agora Michael Smith, hospeda-se no Grande Hotel Santos. Durante o dia percorre as ruas da cidade, memoriza caminhos, aprende rotas de fugas. Cada dia, um roteiro diferente. Frequenta uma livraria comunista, compra livros e jornais da esquerda brasileira. Nas noites é habitué de uma espelunca, onde as meninas já o conhecem:

– Smith, eu quero trepar com você – fala a pernambucana assanhada.

– Eu, os seus dólares – completa a ruiva saliente.

– Vamos fazer um baião de três, como vocês dizem… hahaha – completa Smith, soltando vodca pelos cabelos.

Parte do tempo é espião; no restante, um estroina que gasta dinheiro dos soviéticos no puteiro. Isso não o preocupa:

– Eu estou me familiarizando com os costumes locais. Como dizem os brasileiros: conhecendo as primas – raciocina em voz alta, enquanto espalha loção Lancaster pelo corpo –, qualquer coisa, eu reponho – murmura sem muita convicção.

De tanto em tanto, por canais secretos, envia informações para a NKVD:

– Operação em progresso. Preciso de mais recursos financeiros.

Ao cair da noite, numa espelunca do lado do Teatro Santos, na mesa com boêmios, conhece Lucy, uma atriz com olhos de lince, prováveis vinte e cinco anos. De imediato, o casal estabelece uma conexão. Na madrugada tomam um carro em direção ao litoral sul, onde se hospedam na suíte imperial do Grande Hotel Praia Grande Inn.

Janeiro escoa no calendário.

Durante o dia, o casal frequenta as areias do famoso balneário, à noite trepam como sardinhas no cio. De vez em quando bagunçam o coreto:

– Pela múmia de Lenin… dedo no cu, não… – grita Smith em russo –, não sou invertido!

Lucy acredita que o estrangeiro misterioso é o homem da sua vida. Quando ingressou na carreira artística, sua mãe fez o alerta.

– Atriz é como mulher da vida, não crê no amor. Nunca se envolva – a moça não leva a sério o conselho, insiste no lance.

Michael Smith já fala o português, está apaixonado pela brasileira. Com os fundos da missão que o trouxe ao Brasil a presenteou com joias, um Ford Mercury conversível, roupas e sapatos caros.

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SUBMARINO CONTOS RUSSOS

Para ele, o ninho de abutres trotskistas pode esperar. Afinal, não parece ser tão grave a dissidência política, raciocina o mercenário.

Smith se acostumou ao sol tropical, o tom da pele amorenou-se como um tronco de jacarandá. Acredita ser um mulato da Bahia, até se diz primo distante de Dorival Caymmi. Lucy se esqueceu dos palcos. Vive no mundo da paixão. A ilusão amorosa a leva a um desatino:

– Michael Smith, se você me ama, se case comigo. Sou uma atriz conhecida, não posso viver em pecado. Se você não se casar, vai tocar punheta.

Smith ergue a sobrancelha, responde:

–  Eu não frequento a igreja, amor.

–  Então, vamos num terreiro. Lá acertam tudo.

Sem argumentos, Smith cede aos caprichos de Lucy. Ao cair da noite, após outra sessão de sexo selvagem, eles se dirigem à mata que orna a pérola do Atlântico Sul.

O terreiro é uma clareira no meio da floresta, que se alcança por uma trilha, remanescente do quilombo do Jabaquara, rota de fuga dos antigos escravos, que, se não fosse assim, teriam sido exterminados pelos brancos. Um descampado, com três malocas de pau a pique, o fundo iluminado por tochas de madeira. Ao centro, uma roda, comandada por uma senhora negra de cabelos brancos.

Ao lado esquerdo, tambores africanos; ao direito, sacerdotes do culto dançam ao compasso do batuque.

Um homem em transe, túnica e turbante branco, acena para o casal:

– Filha, você está diante de uma trapaça do destino… Cuidado…

Ele encara Michael Smith.

Aves alçam voo da copa das árvores, bugios gritam em desespero, animais rasteiros correm para suas tocas. Raios e trovões encobrem o som dos tambores. Uma ventania sopra do mar para a mata. A tempestade surge no céu, lançando uma torrente de água com toda força. O sacerdote treme, os seus olhos estão tomados de terror. No rosto explodem bolhas vermelhas de sangue. O médium contorce o corpo, dá cambalhotas para trás. A senhora de cabelos brancos estende a mão em direção à saída, grita:

– Vão embora daqui… Menina, andorinha que voa com morcego acorda de cabeça para baixo…

O casal sai em disparada em direção à praia.

O dia amanhece.

Os dois caminham de mãos dadas. Estão desolados com os acontecimentos da noite anterior. Smith, sentindo náuseas, quebra o silêncio:

– Lucy, quero contar algo sobre mim…

–  Deixa eu falar primeiro, querido.

– Sim, claro.

–  Eu vou revelar um pouco da minha vida.

– Fale…

– Minha mãe veio fugida da Rússia após a Revolução de 1917. Já ouviu a respeito? Deixou tudo para trás, inclusive um filho pequeno… fruto de um caso com um príncipe da corte que morava no apartamento ao lado do Czar, no Kremlin.

– Sim, amor – as palavras de Lucy explodem como um soco no fígado de Smith.

– No Brasil foi trabalhar como puta na zona… anos depois eu nasci. Nem sei quem é o meu pai… o meio-irmão da Rússia, que eu nunca conheci, se chama Igor Dolgoruki…

– Igor Dolgoruki? – pergunta incrédulo, sentindo o chão abrir aos seus pés.

– Sim, Igor Dolgoruki... E de você, amor, o que há para contar?

A revelação é um cruzado no queixo de Smith. Nocauteado, respira fundo e recua o tronco: – Nada em especial… Vamos dar um mergulho?

O espião encara o sol no leste, que teima em se anunciar… Uma onda quebra suave nos joelhos. A dor da angústia o envolve, como que atingido por obuses lançados pela temível Katiucha. Eles estão de mãos dadas, a água salgada atinge o dorso. O espião recorda as palavras do general da NKVD:

– No cinto você tem um cabo de aço, a maneira mais eficiente de eliminar testemunhas e pessoas inconvenientes.

Lucy está de costas para Igor. Ele solta o cinto e discretamente puxa o cabo de aço. Enrola nas mãos e sussurra aos ouvidos dela:

– Vamos para o hotel trepar?

E joga no mar o cabo assassino.

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Erre duro

Eram assim as faxinas das quartas-feiras. Das de olhar cada frestinha. Isso desde o tempo em que Laura morava com a mãe no Cariri. Além dos truques do varre, aspira, passa pano, ela obedece até hoje ao não se gasta sábado com Bombril. A mãe dizia: acorde às 4h se precisar, lave até dar vontade de lamber o chão, mas no meio da semana. Sábado é pra cerveja, cabelo e unha. Laura de avental, rabo de cavalo embaraçado e cara inchada de sono, como guardava a imagem da mãe, cutucou tudo que é buraquinho nos armários, nas prateleiras, nos tacos de madeira de qualquer apartamento onde morou até hoje. O atual, tão micro, tão diferente do sobrado da infância, até lhe ajudava na redução de tempo da tarefa, mas era como se, com os minutos sobrando, ela ficasse em dívida com dona Quitéria. Daí que quanto menor a área, maior a exigência.

Nessa de enfiar palito em brecha, de olhar de perto, nessa de casa e de rua, de calor e de luz clara de sol, era cada grito que davam ela e a mãe. A casa ficava limpa e santa. Nossa senhora, Virgem Maria, meu Deus do céu, Jesus. Porque quem mexe em buraco, às vezes não quer, mas destampa, né? E arrancavam rato, barata, besouro, aranha, tudo espetado pela testa. No apê recém-construído, chegava a dar uma frustraçãozinha. O máximo que se puxava de uma fresta era um pedacinho de gesso, um resto de obra. Por isso a curiosidade, o empenho dela agora, deitada embaixo do móvel da TV, com a lanterna do celular acesa, na briga pra entender essa rebarba de papel, bem na quina do rodapé.

Passava das 8h, horário em que já deveria estar no ônibus, e ela lá, na pinça de sobrancelha, puxando com o maior cuidado do mundo. Precisou de um pouquinho mais de um centímetro pra identificar. Era dinheiro. Dinheiro gringo. Ligou pra Gabriel, chefe de turno na gráfica, e já foi metendo uma tosse no meio do alô, e um mais ou menos, pro tá tudo bem? que veio de lá. Ganhou o dia fora, porque tosses e espirros são perigosos pra turma do acabamento e, depois, eles já estavam há 33 dias sem acidentes.

Ela conhecia tanto Gabriel que conseguiu ver, de casa, ele dando um gole no café garapa, fazendo que não com a cabeça e digitando o ramal de Mário – único que consegue dobrar o turno da guilhotina sem mudar o placar. Conhecia também a rotina dos vizinhos, de quem chega a adivinhar a escolha da roupa só pelo movimento do outro lado da parede. E, pensando agora, talvez dê pra dizer que a vida de Laura é chata, talvez por isso mesmo o melindre com a faxina, talvez ainda lamber o chão e acompanhar qualquer passo do povo, feito quem assiste a uma novela, seja a maior ousadia a que se permite desde que deixou o Cariri.

Pois bem, ela sabia que a essa hora, os vizinhos já tinham saído pra trabalhar, de jeans, camisa de botão, sapato e cinturão trançado de couro caramelo, cretininhos que só eles. Sabia que acordavam especialmente barulhentos na quarta, que o menor tinha tomado banho cantando Criolo, e que o outro prefere o som um pouquinho mais baixo. Grite não, amor. Vai incomodar o prédio inteiro. De maneira que dava pra quebrar um teco de nada, destampar um dedo de gesso, sem chamar atenção de ninguém, só pra entender o porquê daquele achado. E, quem sabe, se a nota tivesse companhia, diferente de Laura, ela não teria razão pra achar a cerveja do sábado um pouquinho menos amarga.

Crédito

Laura não tinha marreta, martelo, nem de carne, ou nada que servisse pra quebrar parede. Mas desde quando gesso é parede?, pensou meio feliz, já que conseguiria seguir com a tarefa a que se propôs com o que quer que fosse. Pra um segundo depois pensar meio triste: era só gesso mesmo que dividia a vida dela da dos vizinhos? Uma camada tão fina e frágil, não é?

Na cabeça, e só na cabeça, já que seguia escorada no móvel, passou a revisar cada item de cada gaveta dos 30m 2 do apartamento buscando ferramenta. Não eram muitas gavetas, nem muitos itens. Saiu fugida do último endereço e trouxe somente o que teve tempo de colocar no jipe de Mário. Foi a partir da experiência dolorosa que passou a considerá-lo um amigo. Sentiu uma pontada de culpa por fazer, justo ele, dobrar o turno por uma besteira dessas. O dinheiro não vai a lugar nenhum de hoje pra amanhã.

Levantou já com o telefone na mão e, antes mesmo de desligar a lanterna, apertou o nome de Gabriel. Disse, sem se preocupar com a incoerência da mensagem, que, do nada, estava melhor, que não precisava ligar pra ninguém não, chego em meia horinha. E saiu de casa sem saber muito como. Só se deu conta do avental no segundo ponto de ônibus. Espantada com a falta de sentido da cena – ela de chinelo, calça de moletom e flanela no ombro, sem banho, sem óculos, sem maquiagem e com o crachá da gráfica pendurado no pescoço – apertou o botão e desceu na mesma avenida em que morava.

Era também frágil a camada que separava a Laura de hoje cedo – que tinha planos, ordem para realizar cada um deles, que tinha o controle da própria vida, da dos vizinhos e da do chefe – dessa que se arrepiou quando encostou um pedacinho do pé na calçada da Cardel, molhada sabe-se lá do quê. Antes de seguir descendo a rua, centralizou o corpo nas Havaianas de faxina e retomou, um pouco pelo menos, a direção dos próximos passos. Vai voltar pra casa, tomar um banho de cinco minutos e chegar apresentável na gráfica. Melhor atrasar mais uma hora do que apavorar Gabriel. Ela precisa do trabalho e ele confia em pouca gente para operar a guilhotina.

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Mesmo que o salário e a vida real tivessem voltado a ser guias, o pedacinho de dinheiro entre o apartamento 81, o dela, e o 82, o dos vizinhos, deu ordem para que Laura descesse mais uma quadra e entrasse na Preçolândia da Cunha Gago atrás de um martelo. Chegaria na gráfica em uma hora e dez. Mas amanhã almoça em casa. Nem que sobrem vinte minutos entre ir e voltar, ela já vai quebrar parede como se deve. Não tem erro. O da Tramontina é R$24,79, senhora. Fez as contas, dava perto de cinco dólares. Vou levar. Débito ou crédito?

Processo

Laura saiu da loja pronunciando com estranheza as palavras que sobraram. Subiu quatro quadras no mantra: crédito, Tramontina, Preçolândia. Anos de fono e ainda sofria com os erres duros. Combinou consigo que, para o banho, daria play em qualquer vídeo do dr. Drauzio, só pra ouvir os erados, coretos, iresponsáveis que ele solta com tanta naturalidade. Dr. Drauzio, o Rivotril de Laura.

Já na entrada do prédio, cruzou o porteiro e a notícia. Fala, Laura. Tá sabendo da conversa do 82? Vão reformar. Quando? Parece que começa amanhã. Mas é o quê? De primeiro foi o mofo na parede da sala, capaz de estragar a tua. Mas a galera tá com grana, parece que vão trocar piso e tudo. Ainda bem que tu passa o dia fora.

Ela subiu sem segurar o elevador pra moça que chegava com o carrinho de pet. Foi um alívio, um espaço pra vazar crítica à cena que sempre lhe deixava de herança o Rock da Cachorra do Eduardo Dusek. Do átrio até o oitavo: primeiro, galera, grana, trocar, primeiro, galera, grana, trocar. Pois se a galera já tava cheia da grana e sempre primeiro, sempre antes dela, tava na hora de trocar. Aquele tesouro lá – também vazando pela parede – já tinha dona. E a dona era Laura.

Começou pelo cantinho em direção à lateral, numa força que sequer imaginou ter no braço. Cada pancada deixava mais clara a arquitetura. O buraco não fazia 81 e 82 encontrarem, era um vão de no máximo dez centímetros. E, embora essa palavra seja feia, não há nada que se aproxime mais do que dizer que o vão parecia socado de dinheiro. Ela seguiu, mesmo que o telefone gritasse a dúvida de Gabriel: vem ou não vem? Mário também insistiu, conhecia a amiga. Já a tinha visto faltar ao trabalho, mas uma única vez, aquela da carona, e não foi bonito de ver não. Aos toques do celular somavam-se agora o latido de Amora do 91 e o interfone. Era meio-dia, horário proibido para grandes barulhos.

Ela criou faixas paralelas na cabeça, e com a autoridade que tinha nos acabamentos da gráfica, não perdeu um milímetro do alinhamento. Saiu quebrando da porta, no extremo esquerdo da sala, até a janela, no lado oposto. Deitada, sentada, acocorada e de pé. Sentiu como se tivesse tomado banho de dinheiro, e só sentiu mesmo, tinha nota nenhuma não. Para um lado e pro outro e de novo e de novo. Isso sem parar um único segundo. O braço cansado de Laura não desobedecia à ordem de seguir batendo, mas

já batia meio descoordenado. Ouviu o toque da campainha? Ouviu os gritos do zelador? De um Mário que baixou na Cardeal no meio do expediente? O alvoroço dos vizinhos? O barulho das sirenes lá fora? Ouviu. Mas a pressa, minha gente, se não é surda, também não é besta. Abro não. É meu, ela gritava. Meu.

Já em pé, gesso caindo pra tudo que é canto, marreta da polícia arrombando a porta na mesma velocidade em que martelo quebrava a parede, perdeu a mão. E, na volta de uma ida, danou o Tramontina na testa. Com a força do mundo inteiro. Traumatismo craniano. Trinta e três dias de coma profundo. Dizem que pode até ser que volte. Mas Gabriel já abriu processo seletivo. Horível.

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Ingredientes

“Corre!” Soce desceu a escada de portaló devagar, como se desconsiderasse a ordem de seu pai 20 anos antes, quando ainda se chamava Walfrido. A doca era a mesma em que procurou refúgio naquele velho classe Liberty, batizado Cartago, que batia de porto em porto entregando e procurando carga, indo pra onde o mandassem ir. O capitão teve pena daquele moleque ossudo, assustado, de 14 anos que aparentavam 10. Arrumaria alguma coisa pra ele fazer no navio. Vaga sempre tinha, em todo porto sumiam uns dois ou três, mas achava reposição.

Foi acolhido pelo cozinheiro, um chinês que tinha apreço especial por garotinhos. Virou seu ajudante e protegido. Já sabia cozinhar, ajudava a mãe no Agreste e tinha bom manejo com a faca. No barco, aprendeu também a deixá-la sempre na cintura, pra se proteger de seu protetor. Foram dois anos precisando dela, até que foi a vez de o cozinheiro sumir. O capitão, um angolano forte de quase dois metros, que carregava sempre um Colt 44 na cintura, avisou que a cozinha era com ele dali em diante, que era fácil achar marinheiro, mas alguém pra cuidar da boia não.

Aceitou quieto, como quieto era em tudo. Nessa altura, já tinha descoberto sua facilidade pra aprender línguas. Era letrado no dialeto do navio – uma mistura de inglês com espanhol falada pela maioria filipina, alguns iemenitas, poucos indianos, e outras nacionalidades menos constantes que apareciam e sumiam a cada atracação. Não era muito de conversar, mais ouvia que falava, sem contar sua história, vivia recluso na cabine ou sozinho no convés. Se distraía escrevendo em seus cadernos as receitas e tirando fotos da tripulação com a Polaroid que comprou em uma das paradas. Pra lembrar dos que sumiam, pra ver se voltavam, mesmo sabendo que não. Sem saber pronunciar seu nome, foi batizado na primeira refeição que preparou pra tripulação: Soce. A marujada ficou em êxtase com o molho daquela carne, com um toque doce, bem diferente do que o chinês lhes obrigava a comer. A aprovação veio em grunhidos de boca cheia e olhares de aprovação. Jurou pros iemenitas que não era carne de porco, mas não abria o preparo, mais um de seus mistérios. Todos os dias, esperavam o que Soce tinha a oferecer. Fosse peixe, carne, frango ou qualquer outra coisa, o molho era sempre o destaque.

Com o posto de cozinheiro, recebeu a incumbência do abastecimento do navio. Desembarcar e ir muito além do porto era risco grande pra quem não tinha nenhum documento. Um indiano, dos poucos próximos a ele, resolveu o problema em Kerala. Arrumou um passaporte em troca de algumas garrafas de Johnny Walker. Assim Soce Narabhēāji, seu novo nome, saía em busca de alimentos. Barco pobre, verba pouca, mal dava pro álcool. Tinha que se virar comprando sobras de restaurantes: legumes, verduras, sobras de animais na beirada da putrefação, pra completar o arroz que era a base da dieta.

Se tornou um mestre na conservação, fez do freezer a peça mais importante do navio. A aproveitar tudo, ele aprendeu menino. A mãe não deixava sobrar nada dos restos que o Coronel largava pros trabalhadores. Do porco, cada lasca de víscera, cada coalho de sangue era cozido. O sarapatel era sua especialidade. Até o filho do Coronel vinha comer escondido em sua casa.

A carga foi rareando, as distâncias aumentaram, o tempo no mar cresceu, o dinheiro ficou mais minguado. Tinha que comprar mais quantidade com menos, arrumar o que pudesse de graça, estocar tudo o que coubesse no freezer. Mais marujos saíam e não voltavam, poucos substitutos. Essa foi a rotina dos anos seguintes, com o Cartago no bate e volta entre portos pequenos da Ásia e da África. Nada de grandes cidades. O sabor de sua comida é que salvava o ânimo da tripulação. Seguiu lendo, batendo fotos dos tripulantes, cozinhando e registrando as receitas, seu maior prazer.

Entre as cargas contratadas pro barco, surgiu uma de Maputo pra Recife. Tantos anos sem passar pelo Brasil, talvez fosse hora de ficar. Já era homem, bem diferente daquele menino atarracado. Soce, não mais Walfrido. Ninguém lembraria dele. Conseguiu emprego de auxiliar de cozinha em um restaurante famoso de comida sertaneja, em frente ao mar. A maior parte de sua vida foi com aquela visão, não estava disposto a abrir mão do infinito.

Mais de dois anos se passaram, havia se tornado chef. Nova rotina, velhos hábitos. Isolado, ninguém sabia onde morava, como era sua casa, o que fazia quando não estava no trabalho. Mantinha a conversa pouca. Observava os clientes de dentro da cozinha, do canto do passa-prato, escondido. Prestava atenção em todos, nos seus detalhes, nas suas preferências, gravava as fisionomias.

Sua memória eidética eliminou qualquer surpresa quando o maître veio lhe falar de um cliente antigo, dos bons, que havia muito tempo não aparecia e que era doido por sarapatel. Se limitou a responder “eu sei”. O anfitrião não parava de falar, contou que o homem sozinho na mesa se chamava Robério, que ele se acabou, que perdeu o filho criança havia mais ou menos um ano, que o menino vinha sempre com ele no restaurante junto com o avô, o Coronel Robério. Dessa vez, Soce não falou “eu sei”. Olhou pra mesa junto à janela, pro rosto carcomido na tristeza, uns 20 anos mais velho, que Walfrido não nunca esqueceu.

Avisou que ia preparar um sarapatel especial só pra ele, que não era esse que estava na panela não, seria um fresquinho. Pediu pra alertá-lo que descongelar os miúdos ia demorar um pouco, mas que valia a pena esperar. Robério pareceu ter gostado da espera, ficou alternando entre o copo de cerveja e o de cachaça. Mais de duas horas de cozimento e o prato estava em sua mesa; não pareceu se importar. Comeu se deliciando e até soltando alguns sorrisos. Raspou tudo da cumbuca e chamou o maître, que voltou com o rosto da vitória dizendo que o cliente tinha adorado, que o sarapatel estava melhor ainda com o novo chef e que queria conhecer o especialista daquela maravilha, o tal do Soce.

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Frio, Walfrido se empertigou e foi em direção à mesa. Saudou-o sem a reverência de senhor. O cliente estranhou a intimidade e o português fluente. Parecia mesmo um indiano com o cabelo preto liso e a tez queimada, mas não sabia ainda que era um caboclo com a pele curtida no sol do mundo. Se rasgou em elogios ao sarapatel e comentou que foi a primeira coisa que lhe trouxera alegria depois de muito tempo.

– Fico feliz, Robério. Posso me sentar? – continuou, sem cerimônia.

O cliente abanou a cabeça que sim. O chef puxou a cadeira e, ao ser perguntado como falava português tão bem, revelou que era pernambucano, de Garanhuns, que tinha 34 anos e que já havia 20 anos estava fora de lá. O homem, refestelado de seu prato predileto, surpreendeu-se. Tinham a mesma idade, como não se conheciam? Perguntou seu nome.

– Walfrido.

– Walfrido de quê?

– Walfrido Antoninho.

Robério, sobrestado, buscava lá atrás um rosto no nome e tentava destravar os dentes. Walfrido ouviu de novo “corre!”, viu o fogo saindo da boca da carabina. Passou pelos mesmos três dias em disparada, pelo mato, com fome, com sede, até bater no Recife. Viu de novo o porto, os navios, a procura por trabalho neles, a fuga pro mar, pro mundo. O sumiço.

Robério meneou algumas vezes o pescoço, o rosto molhado e vermelho. Contou que o pai tinha morrido há poucos meses, de sofrimento, contou que seu filho de 10 anos havia desaparecido, que sua mulher não saía mais de casa.

– Eu sei.

Walfrido teve que sair de casa, sem pressentimento, sem aviso, sem explicação. Nunca mais viu o pai, a mãe, os irmãos. Dor e dor se encararam.

– Senti o gosto do sarapatel de sua mãe agora, me fez feliz.

– Me faz triste.

– Não é um sarapatel comum, é meio doce.

– A dor é doce.

Walfrido levantou-se, foi pra cozinha e colocou suas coisas na bolsa. Antes de guardar o caderno, olhou as receitas, cada uma com a fotografia de algum marinheiro colada. Abriu na página do sarapatel e se fixou na foto de Roberinho. Seguiu na direção do porto.

Velho do Saco

Zeca Cantinho era na verdade o senhor josé carlos de alguma coisa. Na infância foi muito levado e o avô lhe gritava: “Vem cá, ao cantinho. Ou te comportas ou chamo o Velho do Saco.”

O medo que o nome lhe causava o fez tão obediente a ponto de chegar da escola e já se colocar no encontro de duas paredes do armazém do avô. Virou funcionário público exemplar, constituiu família, foi aposentado compulsoriamente e enterrou a esposa. Seus filhos cresceram bem comportados, conseguiram a nacionalidade do bisavô e foram morar em Portugal. Mandavam fotos das crianças, vinhos e sapatos de couro de bico fino todo Natal. Num dia de Finados ele se barbeou, calçou os sapatos e foi visitar o túmulo da esposa. Antes de chegar à saída do cemitério, um menino levemente familiar o encontrou e o seguiu até sua casa.

Enxotou o perseguidor, trancou a porta e tomou banho. Quando voltou para a sala de roupão, encontrou o garoto espremido entre o sofá e a cristaleira, de pé e de costas para ele. Chamou a polícia, o juizado de menores e os bombeiros, mas o pestinha sumia sempre que tocavam a campainha. E depois voltava ao cantinho, e chorava:

“Tenho frio. As paredes estão muito frias.”

O senhor josé carlos de alguma coisa se despiu e ofereceu o roupão, que não foi aceito. Passou a sair todos os dias para brechós e voltar com casaquinhos e toucas de lã, e nada do menino querer vestir. Foi ficando abatido, reumático, começou a mancar de uma perna e a não cortar os cabelos nem fazer a barba. Resolveu dar um basta naquela loucura, manquitolou até o canto da sala e gritou:

“Mas qual é o inferno que você quer vestir, pelo amor de deus?”

A voz do menino ecoou da quina das paredes:

“Um saco de lona bem grosso, daqueles de carregar castanhas, que tem no armazém do meu avô.”

Ele foi a um atacadão, voltou com o saco e o mostrou para o menino, que de repente foi tomado de uma energia de mosca-varejeira, saiu correndo pela porta e zuniu:

“Ninguém pega o Zeca, seu cara de meleca.”

Foi alcançá-lo numa rua de casas pobres onde se ouviam mães gritando com suas malcriadas crias. O menino se misturou entre várias crianças, e só então o senhor josé

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carlos de alguma coisa percebeu que suas roupas eram muito diferentes da roupa das outras crianças e muito parecidas com a roupa de sua própria infância. Enfurecido com a malcriação, perseguiu uma nuvem de meninos, puxou pelo pé o que parecia ser o seu e saiu andando com o saco nas costas. Chegou em casa, deu uma bicuda de bico fino no saco para cessar os gritos, e dormiu.

E no sonho o menino apareceu para ele e disse: “Ainda estou com frio. Me coloque no forno”.

Ele se levantou, abriu o saco, enfiou o corpinho com roupas diferentes das de sua infância no forno, apertou o acendedor elétrico, e dormiu.

E no sonho o menino apareceu para ele e disse: “Ainda estou com frio. Me coloque na sua barriga”.

Ele se levantou, abriu o forno, fatiou e devorou tudo sem vontade, feito os jilós de sua infância, e dormiu. Acordou no dia seguinte de bom humor, com urgência de se barbear. No caminho para o banheiro, viu o menino de pé, de costas pra ele, espremido entre o sofá e a cristaleira. O menino disse: “Tenho frio. As paredes estão muito frias.”

Então o Velho pegou o saco vazio e saiu manquitolando pela rua.

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Tripulaçao

Antonieta Campos nasceu há 31 anos em Campo Grande/MS e já passou por Curitiba e Portugal. Hoje, e até se cansar mais uma vez das mesmas paisagens, habita um apartamento quinquagenário em São Paulo. Por um acúmulo de acidentes de percurso, se formou em Psicologia e fez mestrado na área. No fim, jogou tudo pro alto (ou mais ou menos isso). Hoje, trabalha como editora e revisora de textos. Também se dedica à própria escrita literária, com a qual ocupa o posto de colossal desconhecida.

Alex Xavier, paulista, é um jornalista refugiado na ficção. Autor do livro de contos O Teatro da Rotina (2018, Patuá), participou das coletâneas Não Pretendia Criar Discórdia (2017, Giostri), Eros Ex Machina (2018, Alink), Era de Aquária (2019, Oito e Meio), Ruínas (2020, Patuá) e Isolamento (2020, Caos e Letras). Integrante do coletivo Discórdia, produz zines para feiras de publicações independentes, ministra oficinas de escrita criativa e colaborou com revistas literárias como Gueto, Subversa, Vacatussa, Intempestiva e Torquato.

Alice Zocchio nasceu em São José dos Campos-SP em 1961. Mora em São Paulo. Estudou Jornalismo e abandonou o diploma. Estudou Letras e virou professora de adolescentes por mais de trinta anos. Tem dois filhos. Escreve contos, crônicas e poesia.

Américo Paim, 58, soteropolitano, engenheiro mecânico, amante de música, futebol, cinema, literatura, cultura e artes em geral. Gosta de um bom papo, estar em boa companhia e com crianças. Compositor, tocador de violão e baixo, escreve textos desde sempre, sobre qualquer assunto. É autor de O Livro das Copas: A Paixão em Números e Curiosidades (1998) e Manual das Copas do Mundo (2018).

Bel Guimaraes tem 41 anos, é paulistana, leitora, aprendiz de dançarina, jornalista por formação e relações públicas por vocação. Pós-graduada em Ciência Política pela FESPSP, publicou o artigo Lobby e Status Quo, que fala sobre a influência do capital na política brasileira.

Bruno Vicentini, 33, vive em Maringá (PR). Integrou a coletânea 15 Formas Breves – Contos de Jovens Autores Paranaenses. Seu primeiro livro, Ciranda da Catarina e Outros Contos (Ed. Urutau), foi editado no inverno de 2022 - quando o livro saiu, já era primavera.

Carolina Schettini publicou os romances Re(a)mar, O Quarto Coração e No Primeiro Banco do Lado Esquerdo do Balcão, os livros infantis No Céu e No Mar e Bem, e textos em diversas coletâneas. Conversa com os leitores no Instagram @voandovou.com.br e adora viajar – na Rússia, em 2005, aprendeu duas palavras: spasiba e piva.

Claudine Duarte, arquiteta, dramaturga, escritora e ativista na formação de leitores, adaptou Dostoiévski e Sándor Márai para o teatro e dirigiu os espetáculos Uma Criatura Dócil (2016) e O Legado de Eszter (2019). Integra o Coletivo Editorial Maria Cobogó, pelo qual publicou os livros Desencontos (2018) e Sete Pequenos Tumultos (2020). Foi finalista do Prêmio Jabuti pelo projeto Calangos Leitores (2018).

Dani Rosolen, 30, é paulistana. Escreveu Incabível (Patuá), livro de poemas sobre transtornos alimentares, e o infantil Morte e Vida Leopoldina (Gataria). É integrante do Coletivo Discórdia, no qual publica zines.

Flavia Albergaria Raveli, 50, é psicanalista e professora, mestra em história social (USP). e doutora em psicologia experimental com a tese Indícios do Traumático no romance De Amor e Trevas.

Gabriel Ferreira, paulistano, tem 34 anos e é formado em jornalismo. Trabalhou na grande, na média e na pequena imprensa e, em 2014, migrou para o mundo da comunicação corporativa e do marketing. Em 2021, com o nascimento do primeiro filho, resolveu se dedicar à ficção.

Iasmine Pereira, 35, jornalista, é psicanalista e palestrante. Atua como criadora de conteúdo sobre psicanálise, saúde mental nas empresas, relacionamentos saudáveis e emoções humanas nas redes sociais. Passou por empresas de óleo e gás, construção civil, agências de publicidade e produtoras. Organiza e produz eventos acadêmicos, corporativos e documentários: www.iasminepereira.com.

Joao Hélio de Moraes tem formação em jornalismo e letras. Atuou como assessor de imprensa e editou publicações corporativas. Atualmente, produz textos e faz revisão de livros, além de aplicar treinamentos sobre técnicas de redação e atualização gramatical. Nasceu em São Paulo, onde vive com a mulher, a filha e o cachorro; aos 66, pratica corrida e escreve para chegar a outro lugar.

Leandro Reis, 32, natural de Vitória, é jornalista e mestre em estudos literários. Atuou como repórter de cultura no jornal A Gazeta e como colaborador no jornal Rascunho, escrevendo resenhas e ensaios. Coeditor da revista Graciano, publicação dedicada à literatura do Espírito Santo, mestrou-se pesquisando a obra de William S. Burroughs.

Maria Fernanda Tourinho Peres nasceu em Salvador em 1970 mas vive em SP com dois filhos e três gatos. Médica formada pela UFBA, foi pesquisadora do Núcleo de Estudos da Violência e é professora de epidemiologia na Faculdade de Medicina (USP). Em 2022 publicou pela Editora Patuá o seu primeiro livro de contos, O Balanço das Coisas Paradas.

Martim de Almeida Sampaio, 60, paulistano, é advogado e diretor da Câmara Brasileira do Livro (CBL).

Roberta D,Albuquerque, 45, é psicanalista, pisciana e pernambucana. Vive em São Paulo há mais de vinte anos, sem perder a ternura e o sotaque.

Roberto M. Socorro tem 57 anos, nasceu no Rio de Janeiro, se naturalizou baiano e vive em SP. Trabalha com tecnologia da informação, azeitando a engrenagem das ficções. Apaixonado por livros, gatos, Bahia e Vasco. Leitor ávido e escritor ocasional; um chato.

Yan Rego nasceu no Rio de Janeiro em 1993 e mora em Salvador. É professor de sociologia. Frequentou saraus e slams na zona sul de São Paulo e integrou a coletânea de poemas Favela em Ação – Slam Capão (2020).

O capitao

Ronaldo

criativa

V.I.S.H.N.U. (Companhia das Letras) e Sandiliche (Cosac Naify), o volume de contos Céu de Lúcifer (Azougue), o livro de poesia Metafísica Prática (Oito e Meio), e organizou a antologia de ficções Essa História Está Diferente (Cia das Letras), entre outros livros. Participou por 7 anos das oficinas de Gílson Rampazzo e Áurea Rampazzo. Seus cursos passaram pela rede Sesc, pelas plataformas A Capivara Cultural e BoraSaber, e espaços como Casa do Saber, Casa das Rosas, Biblioteca São Paulo, Centro Cultural B_arco, Escrevedeira, Espaço Cult, Instituto Tomie Ohtake, Instituto Vera Cruz, Istituto Europeo di Design, MAM/SP, Tapera Taperá e Universidade do Livro.

Site: ronaldobressane.com.

Bressane, 52, paulistano, escritor, jornalista e mestre em estudos literários, é professor de escrita desde 2007 e editor da revista Morel (IpsisPUB). Publicou os romances Escalpo (Reformatório) e Mnemomáquina (Demônio Negro), os romances gráficos

SUBMARINO / #05

Ediçao Ronaldo Bressane arte Eduardo Kerges Revisao João Hélio de Moraes Realizaçao La Tosca

Dezembro de 2022

Textos compostos com as fontes Liquido Fluid [Alessandro Commoti], Adobe Garamond Pro [Claude Garamond e Robert Granjon / Adobe] e Konstruktor [Ivan Filipov / neogrey creative]

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