laura freitas: a casa e o corpo
Suturar as feridas, curar a casa costurando as suas fendas. Esse é o mote desta exposição individual de Laura Freitas, apropriadamente intitulada “Costurar fendas de outros tempos”. Entre os anos de 2020 e 2021, durante a pandemia de Coronavírus, a artista iniciou o cerzimento das rachaduras de sua residência, em Niterói. Ao longo do isolamento social, Freitas retirou a camada de revestimento das paredes que estruturam a parte externa de sua morada e, ao tornar os ferimentos evidentes, os refez utilizando cimento, atadura, agulha e linha. Ela narra da seguinte forma o processo de produção da série que dá título à exposição: foi naquele dia que tudo começou, lembra? a gente aqui presa e isolada do resto do mundo - em casa. foi quando eu e ela nos olhamos, a parede ali na minha frente quase nua, seu manto já frágil, a ponto de romper. me deixei levar por seu olhar e a deixei completamente nua. bem de perto pude ver o percurso das faltas, dos vazios, frutos da vida e da violência que nos permeia. a parede da casa guarda memórias,
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meus dedos percorrem preenchendo os buracos com tecido untado pela matéria de origem. num exercício de insistência, sigo costurando as fendas num desejo, mesmo que em vão, de não perecimento... 1
Encontrar rachaduras na superfície do ambiente doméstico suscitou na artista o desejo de reconstrução. Entretanto, o reparo proposto não foi estrutural ou pragmático. A sua reconstituição foi simbólica, num processo de rememoração e reelaboração. Ao costurar as fendas, Laura Freitas evidenciou as contusões, operando uma reparação de sua história subjetiva e familiar. Ao fazer isso, se relacionou com procedimentos previamente acionados na sua trajetória artística. Nas mostras anteriores, Freitas utilizou a costura e o crochê como vocabulários plásticos, explorando as possibilidades estruturantes e conectoras de linhas tanto em desenhos quanto em esculturas, instalações, vídeos e performances. Na presente exposição, a linha e a costura cruzam e remendam não só as paredes de sua moradia, mas as peças escultóricas de concreto. Intituladas Cotidianas , elas funcionam como fac-símiles das rachaduras evidentes in loco . Freitas abriu feridas para depois operá-las, transpondo, posteriormente, para a galeria – um espaço essencialmente público e de encontro com a alteridade – o processo de sutura de ferimentos íntimos. Principal trabalho da exibi -
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Detalhes de Cotidianas, da série Costurar fendas de outros tempos, 2022 concreto e linha de algodão dimensões variáveis
ção, Cotidianas constitui-se de uma instalação de parede cuja montagem sugere nuvens densas, que flutuam pesadamente, ou mesmo lápides mortuárias. Ao mesmo tempo, repercute as janelas do entorno da casa da artista, bem como a relação estabelecida com as telas e os dispositivos: no decorrer do período pandêmico, celulares, computadores e tablets possibilitaram encontros e experiências incapazes de se darem extramuros.
A série que engloba a operação realizada em seu lar é composta por um vídeo, fotografias digitais e as placas de concreto referidas anteriormente. As fotografias ampliam a relação do corpo da artista com as fissuras das paredes da
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área externa da casa, funcionando como recortes das frestas suturadas por Freitas. O trabalho site-specific , realizado em sua residência, estabelece relação com a paisagem e a linha do horizonte. Já as imagens fotográficas evidenciam os remendos empreendidos, denotando o processo, registrado também no vídeo que integra a exposição. Texturas e manchas, rachaduras e costuras criam desenhos que, por vezes, sugerem antropomorfismos e paisagens e, em outras, enfatizam grafismos, formas lineares e abstratas. Linhas, estrias e colunas indicam relevos e caminhos, bem como feridas abertas e cicatrizadas pelo tempo. Antes reclusas, agora afirmam-se e expandem-se, tanto em escala quanto em alcance, reverberando em outros corpos e casas, conectando vivências e memórias.
Acima, à direita, Sem título, da série Costurar fendas de outros tempos, 2020-2022 vídeo, 12’57’’
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Nas teorias da paisagem, as alianças necessárias entre interior e exterior, definidas pelos pontos de vista de sujeitos sobre o mundo 2 , são enfatizadas: “um ambiente não é suscetível a se tornar uma paisagem, senão a partir do momento em que é percebido por um sujeito.” 3 Durante a quarentena, entretanto, a casa converteu-se em paisagem, possibilidade única de horizonte. “O horizonte delimita a paisagem, mas este limite é móvel, aberto ao apelo de alhures.” 4 Ao longo do isolamento social, contudo, as distâncias percorridas foram reduzidas, impactando drasticamente o modo como nos relacionamos com a casa e o mundo exterior.
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As cesuras das paredes, primeiramente evidenciadas em rombos, foram depois reconstituídas por Freitas. Relacionam-se, assim, com os Desenhos/Objetos que Anna Maria Maiolino produziu na década de 1970. Nestes últimos, os rasgos no suporte e as linhas de costura constituem o trabalho: o sentido gráfico é conseguido pela sutura no papel rasgado por Maiolino, estabelecendo relações figura e fundo que sugerem mapas, localizações, paisagens, formações geológicas ou buracos negros.
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Em A casa é o corpo , de 1968, Lygia Clark encarou o corpo como uma arquitetura, numa metáfora da concepção e do nascimento. A estrutura geométrica de 8 metros de comprimento faz o espectador experimentar penetração, ovulação, germinação e expulsão. Neste espaço matricial, é possível vivenciar a interioridade do corpo feminino, desde a geração da vida até o nascimento. Desse modo, Clark pensou as relações entre o dentro e o fora do corpo, conforme enuncia em texto: “Construo um labirinto cujo nome é ‘A casa é o corpo’ tendo no seu interior todas as passagens assinaladas, desde a penetração até a expulsão.” 5
Encarando a parede como pele, por sua vez, Freitas enfrentou a casa como um corpo repleto de histórias, memórias, vazios e reentrâncias, evidenciando buracos e faltas, que foram preenchidos com ataduras e cimento. Tal como as bandagens nos machucados, esses procedimentos reparam lesões, curando ferimentos profundos. Como uma restauradora que, antes de intervir, precisou expor o que estava escondido, disfarçado ou recalcado, a artista ressaltou traumas que marcaram a epiderme da casa como metáfora dos corpos de seus habitantes.
Se o isolamento social durante a pandemia levou à introspecção, o procedimento privado que Laura Freitas disparou no ambiente doméstico é agora compartilhado na arena pública do espaço expositivo. Dualidades em torno
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de feridas e suas suturas, rachaduras e preenchimentos, construção, deterioração e reconstrução são articuladas na série Costurar fendas de outros tempos, que ela expõe na Galeria Reserva Cultural. Ao notabilizar marcas que apareceram durante a descamação das paredes, atuou no processo de cura desses machucados, favorecendo a formação de cicatrizes. Como sinais do tempo, elas atualizam reminiscências, elaborando lembranças.
A artista e psicanalista israelense Bracha Ettinger aborda em seus textos o espaço-fronteiriço matricial, investigando a matriz-útero, responsável pela gestação, de modo a transcender sua apreensão biológica ou reprodutiva, encarando-a enquanto símbolo. Ao compreender a casa enquanto corpo, tal como Lygia Clark propôs em sua obra de 1968, Laura Freitas enlaçou a sua subjetividade com a da própria casa e a de seus habitantes – movimento que é ampliado na exposição através do confronto com alteridades. Nas palavras de Ettinger:
Em um encontro matricial, a subjetividade privada do indivíduo é momentaneamente ilimitada. A psique momentaneamente se derrete, e os fios psíquicos são entrelaçados com os fios que emanam de objetos, imagens e outros assuntos. Num encontro matricial com uma imagem, uma transformação ocorre. 6
Sem título, da série Costurar fendas de outros tempos, 2021 fotografia, 53,3 x 80 cm
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Ainda segundo Ettinger, no encontro matricial com a obra de arte, as evocações, recordações e associações de memórias, fantasias, afetos, experiências vividas e projeções, podem se dar em direções distintas, a partir de experiências culturais, sociais, históricas, psíquicas e corporais. Se o momento de ver pode intervir como uma sutura ou conjunção7, aqui tornamo-nos cúmplices da costura empreendida por Laura Freitas. Nestas propostas da artista, o espectador é convocado a compartilhar possibilidades de reelaboração. Afinal de contas, “a esfera matricial oferece outras possibilidades para o olhar”8, sendo a ligação de fronteira transformacional. Basta que nos coloquemos disponíveis para isso.
Fernanda Pequeno, agosto de 2022
1 Texto publicado no website da artista. Disponível em: https://laurafreitas.art/costurar-fendas-de-outros-tempos-2020-2021. Acesso em 16/08/2022, às 12:20h.
2 Ver, entre outros: COLLOT, Michel. Poética e Filosofia da paisagem. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2013, p. 103.
3 COLLOT, 2013, op. cit., p. 19.
4 COLLOT, 2013, op. cit., p. 34.
5 Texto datilografado da artista, sem título e sem data, disponível no website da Associação Mundo de Lygia Clark: https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/6828/dado-nao-disponivel. Acesso em 22/08/2022 às 11:07h.
6 ETTINGER, Bracha L. “Fascinance and the Girl-to-m/Other Matrixial Feminine Difference”. In POLLOCK, Griselda (ed.). Psychoanalysis and the Image: Transdisciplinary Perspectives. Malden, Oxford e Carlton: Blackwell, 2006, p. 62.
7 ETTINGER, 2006, op. cit., p. 61.
8 ETTINGER, 2006, op. cit., p. 61.
9 ETTINGER, 2006, op. cit., p. 61.
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processo
é necessário separar o cimento afetado pela umidade do cimento ainda seco. a absorção de água ocorre por todo o corpo. gosto de observar os vestígios deixados pela matéria nos instrumentos que agiram sobre ela. a contaminação é inevitável. a pele do concreto nem sempre é dura. ser cirúrgica, às vezes, é saber lidar com sua plasticidade. hoje, revisitando meus cadernos, pensei o quanto é importante fazer um diário de nossas ideias e processos. nunca havia imaginado que algo como a restauração das paredes da minha casa chegaria a uma galeria… agora posso compartilhar com vocês o esboço das primeiras inquietações.
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03 de agosto de 2020 – ainda nas experimentações: a linha de algodão, a mesma que uso nos meus crochês, substitui o barbante (gosto mais). com a receita ainda em teste, escolhi uma pequena parte da parede pra ver o resultado.
08 de agosto de 2020 – a parede nua e o encontro com as fissuras. estruturas abaladas?
10 de setembro de 2020 – há quase dois anos minhas manhãs eram preenchidas por rituais diários. preparar a massa: três medidas de cimento, meia de cola e uma de água. sob camadas de memória. um gesto sobre o tempo – de concreto.
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Laura Freitas,