Costurar fendas de outros tempos | Laura Freitas

Page 1

costurar fendas de outros tempos LAURA

FREITAS

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD

F866c Freitas, Laura

Costurar fendas de outros tempos [recurso eletrônico] / Laura Freitas ; coordenado por Ana Pimenta. – Niteroi, RJ : Laura Freitas, 2023. 26 p. ; PDF ; 11 MB.

ISBN: 978-65-999619-0-8 (Ebook)

1. Artes. 2. Exposição de artes. I. Pimenta, Ana. II. Título. 2023-149

CDD 700 CDU 7 Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949

Índice para catálogo sistemático:

1. Artes 700

2. Artes 7

costurar fendas de outros tempos

LAURA FREITAS

curadoria FERNANDA PEQUENO abertura 13 out às 19h exposição 14 out a 20 nov 2022

GALERIA RESERVA CULTURAL Av. Visconde do Rio Branco, 88 0 - São Domingos, Niterói visitação todos os dias, das 12h às 22h

APOIO APOIO INSTITUCIONAL

Cotidianas, da série Costurar fendas de outros tempos, 2022 concreto e linha de algodão dimensões variáveis

laura freitas: a casa e o corpo

Suturar as feridas, curar a casa costurando as suas fendas. Esse é o mote desta exposição individual de Laura Freitas, apropriadamente intitulada “Costurar fendas de outros tempos”. Entre os anos de 2020 e 2021, durante a pandemia de Coronavírus, a artista iniciou o cerzimento das rachaduras de sua residência, em Niterói. Ao longo do isolamento social, Freitas retirou a camada de revestimento das paredes que estruturam a parte externa de sua morada e, ao tornar os ferimentos evidentes, os refez utilizando cimento, atadura, agulha e linha. Ela narra da seguinte forma o processo de produção da série que dá título à exposição: foi naquele dia que tudo começou, lembra? a gente aqui presa e isolada do resto do mundo - em casa. foi quando eu e ela nos olhamos, a parede ali na minha frente quase nua, seu manto já frágil, a ponto de romper. me deixei levar por seu olhar e a deixei completamente nua. bem de perto pude ver o percurso das faltas, dos vazios, frutos da vida e da violência que nos permeia. a parede da casa guarda memórias,

5

meus dedos percorrem preenchendo os buracos com tecido untado pela matéria de origem. num exercício de insistência, sigo costurando as fendas num desejo, mesmo que em vão, de não perecimento... 1

Encontrar rachaduras na superfície do ambiente doméstico suscitou na artista o desejo de reconstrução. Entretanto, o reparo proposto não foi estrutural ou pragmático. A sua reconstituição foi simbólica, num processo de rememoração e reelaboração. Ao costurar as fendas, Laura Freitas evidenciou as contusões, operando uma reparação de sua história subjetiva e familiar. Ao fazer isso, se relacionou com procedimentos previamente acionados na sua trajetória artística. Nas mostras anteriores, Freitas utilizou a costura e o crochê como vocabulários plásticos, explorando as possibilidades estruturantes e conectoras de linhas tanto em desenhos quanto em esculturas, instalações, vídeos e performances. Na presente exposição, a linha e a costura cruzam e remendam não só as paredes de sua moradia, mas as peças escultóricas de concreto. Intituladas Cotidianas , elas funcionam como fac-símiles das rachaduras evidentes in loco . Freitas abriu feridas para depois operá-las, transpondo, posteriormente, para a galeria – um espaço essencialmente público e de encontro com a alteridade – o processo de sutura de ferimentos íntimos. Principal trabalho da exibi -

6

Detalhes de Cotidianas, da série Costurar fendas de outros tempos, 2022 concreto e linha de algodão dimensões variáveis

ção, Cotidianas constitui-se de uma instalação de parede cuja montagem sugere nuvens densas, que flutuam pesadamente, ou mesmo lápides mortuárias. Ao mesmo tempo, repercute as janelas do entorno da casa da artista, bem como a relação estabelecida com as telas e os dispositivos: no decorrer do período pandêmico, celulares, computadores e tablets possibilitaram encontros e experiências incapazes de se darem extramuros.

A série que engloba a operação realizada em seu lar é composta por um vídeo, fotografias digitais e as placas de concreto referidas anteriormente. As fotografias ampliam a relação do corpo da artista com as fissuras das paredes da

7

área externa da casa, funcionando como recortes das frestas suturadas por Freitas. O trabalho site-specific , realizado em sua residência, estabelece relação com a paisagem e a linha do horizonte. Já as imagens fotográficas evidenciam os remendos empreendidos, denotando o processo, registrado também no vídeo que integra a exposição. Texturas e manchas, rachaduras e costuras criam desenhos que, por vezes, sugerem antropomorfismos e paisagens e, em outras, enfatizam grafismos, formas lineares e abstratas. Linhas, estrias e colunas indicam relevos e caminhos, bem como feridas abertas e cicatrizadas pelo tempo. Antes reclusas, agora afirmam-se e expandem-se, tanto em escala quanto em alcance, reverberando em outros corpos e casas, conectando vivências e memórias.

Acima, à direita, Sem título, da série Costurar fendas de outros tempos, 2020-2022 vídeo, 12’57’’

8

Nas teorias da paisagem, as alianças necessárias entre interior e exterior, definidas pelos pontos de vista de sujeitos sobre o mundo 2 , são enfatizadas: “um ambiente não é suscetível a se tornar uma paisagem, senão a partir do momento em que é percebido por um sujeito.” 3 Durante a quarentena, entretanto, a casa converteu-se em paisagem, possibilidade única de horizonte. “O horizonte delimita a paisagem, mas este limite é móvel, aberto ao apelo de alhures.” 4 Ao longo do isolamento social, contudo, as distâncias percorridas foram reduzidas, impactando drasticamente o modo como nos relacionamos com a casa e o mundo exterior.

9

As cesuras das paredes, primeiramente evidenciadas em rombos, foram depois reconstituídas por Freitas. Relacionam-se, assim, com os Desenhos/Objetos que Anna Maria Maiolino produziu na década de 1970. Nestes últimos, os rasgos no suporte e as linhas de costura constituem o trabalho: o sentido gráfico é conseguido pela sutura no papel rasgado por Maiolino, estabelecendo relações figura e fundo que sugerem mapas, localizações, paisagens, formações geológicas ou buracos negros.

10

Em A casa é o corpo , de 1968, Lygia Clark encarou o corpo como uma arquitetura, numa metáfora da concepção e do nascimento. A estrutura geométrica de 8 metros de comprimento faz o espectador experimentar penetração, ovulação, germinação e expulsão. Neste espaço matricial, é possível vivenciar a interioridade do corpo feminino, desde a geração da vida até o nascimento. Desse modo, Clark pensou as relações entre o dentro e o fora do corpo, conforme enuncia em texto: “Construo um labirinto cujo nome é ‘A casa é o corpo’ tendo no seu interior todas as passagens assinaladas, desde a penetração até a expulsão.” 5

Encarando a parede como pele, por sua vez, Freitas enfrentou a casa como um corpo repleto de histórias, memórias, vazios e reentrâncias, evidenciando buracos e faltas, que foram preenchidos com ataduras e cimento. Tal como as bandagens nos machucados, esses procedimentos reparam lesões, curando ferimentos profundos. Como uma restauradora que, antes de intervir, precisou expor o que estava escondido, disfarçado ou recalcado, a artista ressaltou traumas que marcaram a epiderme da casa como metáfora dos corpos de seus habitantes.

Se o isolamento social durante a pandemia levou à introspecção, o procedimento privado que Laura Freitas disparou no ambiente doméstico é agora compartilhado na arena pública do espaço expositivo. Dualidades em torno

11

de feridas e suas suturas, rachaduras e preenchimentos, construção, deterioração e reconstrução são articuladas na série Costurar fendas de outros tempos, que ela expõe na Galeria Reserva Cultural. Ao notabilizar marcas que apareceram durante a descamação das paredes, atuou no processo de cura desses machucados, favorecendo a formação de cicatrizes. Como sinais do tempo, elas atualizam reminiscências, elaborando lembranças.

A artista e psicanalista israelense Bracha Ettinger aborda em seus textos o espaço-fronteiriço matricial, investigando a matriz-útero, responsável pela gestação, de modo a transcender sua apreensão biológica ou reprodutiva, encarando-a enquanto símbolo. Ao compreender a casa enquanto corpo, tal como Lygia Clark propôs em sua obra de 1968, Laura Freitas enlaçou a sua subjetividade com a da própria casa e a de seus habitantes – movimento que é ampliado na exposição através do confronto com alteridades. Nas palavras de Ettinger:

Em um encontro matricial, a subjetividade privada do indivíduo é momentaneamente ilimitada. A psique momentaneamente se derrete, e os fios psíquicos são entrelaçados com os fios que emanam de objetos, imagens e outros assuntos. Num encontro matricial com uma imagem, uma transformação ocorre. 6

Sem título, da série Costurar fendas de outros tempos, 2021 fotografia, 53,3 x 80 cm

12

Ainda segundo Ettinger, no encontro matricial com a obra de arte, as evocações, recordações e associações de memórias, fantasias, afetos, experiências vividas e projeções, podem se dar em direções distintas, a partir de experiências culturais, sociais, históricas, psíquicas e corporais. Se o momento de ver pode intervir como uma sutura ou conjunção7, aqui tornamo-nos cúmplices da costura empreendida por Laura Freitas. Nestas propostas da artista, o espectador é convocado a compartilhar possibilidades de reelaboração. Afinal de contas, “a esfera matricial oferece outras possibilidades para o olhar”8, sendo a ligação de fronteira transformacional. Basta que nos coloquemos disponíveis para isso.

Fernanda Pequeno, agosto de 2022

1 Texto publicado no website da artista. Disponível em: https://laurafreitas.art/costurar-fendas-de-outros-tempos-2020-2021. Acesso em 16/08/2022, às 12:20h.

2 Ver, entre outros: COLLOT, Michel. Poética e Filosofia da paisagem. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2013, p. 103.

3 COLLOT, 2013, op. cit., p. 19.

4 COLLOT, 2013, op. cit., p. 34.

5 Texto datilografado da artista, sem título e sem data, disponível no website da Associação Mundo de Lygia Clark: https://portal.lygiaclark.org.br/acervo/6828/dado-nao-disponivel. Acesso em 22/08/2022 às 11:07h.

6 ETTINGER, Bracha L. “Fascinance and the Girl-to-m/Other Matrixial Feminine Difference”. In POLLOCK, Griselda (ed.). Psychoanalysis and the Image: Transdisciplinary Perspectives. Malden, Oxford e Carlton: Blackwell, 2006, p. 62.

7 ETTINGER, 2006, op. cit., p. 61.

8 ETTINGER, 2006, op. cit., p. 61.

9 ETTINGER, 2006, op. cit., p. 61.

13
14
15
processo

é necessário separar o cimento afetado pela umidade do cimento ainda seco. a absorção de água ocorre por todo o corpo. gosto de observar os vestígios deixados pela matéria nos instrumentos que agiram sobre ela. a contaminação é inevitável. a pele do concreto nem sempre é dura. ser cirúrgica, às vezes, é saber lidar com sua plasticidade. hoje, revisitando meus cadernos, pensei o quanto é importante fazer um diário de nossas ideias e processos. nunca havia imaginado que algo como a restauração das paredes da minha casa chegaria a uma galeria… agora posso compartilhar com vocês o esboço das primeiras inquietações.

16

03 de agosto de 2020 – ainda nas experimentações: a linha de algodão, a mesma que uso nos meus crochês, substitui o barbante (gosto mais). com a receita ainda em teste, escolhi uma pequena parte da parede pra ver o resultado.

08 de agosto de 2020 – a parede nua e o encontro com as fissuras. estruturas abaladas?

10 de setembro de 2020 – há quase dois anos minhas manhãs eram preenchidas por rituais diários. preparar a massa: três medidas de cimento, meia de cola e uma de água. sob camadas de memória. um gesto sobre o tempo – de concreto.

17
2022
Laura Freitas,

oficinas e visitas

19
20
21
22
23

Curadoria

Fernanda Pequeno

Coordenação e produção Ana Pimenta Apoio institucional EIXO Arte Reserva Cultural de Niterói Coordenação Galeria Reserva Cultural Vilmar Madruga Identidade visual Luana Aguiar Cenografia Marcos Duarte Iluminação Julio Katona Montagem Fábio Carneiro Martins Monitoras Luana Mota Mylena Godinho

Tratamento e impressão de fotografias Thiago Barros Molduras Enquadre Sinalização Ginga Design Gráfica J.Sholna Copiadora Icaraí Revisão de texto Bruna Freitas Intérprete de libras Iathsa Oliveira Registro fotográfico e vídeo Lua Wagner Assessoria de imprensa Midiarte Comunicação Beatriz Caillaux Transporte Control Tour

Escolas participantes visitas guiadas Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho E.M. Paulo Freire Agradecimentos Joaquim Sobral Bruna e Manuela Freitas Vilmar Madruga Sara Figueiredo Célia e Bruna do Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho Felipe, Ana Paula, Leslie e Estael da E.M. Paulo Freire

Este projeto contou com incentivo da Prefeitura Municipal de Niterói e da Secretaria Municipal das Culturas (SMC), por meio da Chamada Pública de Fomentão 2021.

24

Sem título, da série Costurar fendas de outros tempos, 2021 fotografia, 53,3 x 80 cm

Laura Freitas vive e trabalha em Niterói. Graduada em Educação Artística com formação em arteterapia e piano, também fez cursos na EAV Parque Lage. Entre a ação e a construção de objetos, alinha temas que envolvem os lugares do feminino, da sexualidade e do espaço íntimo, formando, assim, a trama de sua produção artística. Suas recentes exposições individuais são “Falo por um FIO”, na Galeria Cândido Portinari da UERJ e “Quando nascer (ou morrer) não é uma escolha”, no Espaço Cultural Correios Niterói (2019), ambas com curadoria de Fernanda Pequeno. Participou das exposições coletivas “Por enquanto: os primeiros quarenta anos” (2022), na Galeria de Arte UFF, “Minúsculas” (2020), no Centro de Artes Calouste Gulbenkian, “Mostra EAV” (2020), na Escola de Artes Visuais do Parque Lage e “Ainda fazemos as coisas em grupo” (2019), no Centro Municipal de Artes Hélio Oiticica.

25
26

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.