Pontifícia Universidade Católica de MInas Gerais brincar na cidade: a perspectiva infantil como ferramenta de transformação urbana Departamento de Arquitetura e Urbanismo Estudos Preparatórios do Trabalho de Curso
brincar pela cidade:
a perspectiva infantil como ferramenta de transformação urbana
Laura Fernandes Tomaz 2
dezembro de 2023
brincar na cidade: a perspectiva infantil como ferramenta de transformação urbana
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais | Unidade Praça da Liberdade Departamento de Arquitetura e Urbanismo Estudos Preparatórios do Trabalho de Curso Laura Fernandes Tomaz Orientadora: Prof. Laura Castro Dezembro de 2023 2
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sumário
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brincar na cidade: a perspectiva infantil como ferramenta de transformação urbana O sonho é meu e eu sonho que Deve ter alamedas verdes A cidade dos meus amores E, quem dera, os moradores E o prefeito e os varredores Fossem somente crianças Deve ter alamedas verdes A cidade dos meus amores E, quem dera, os moradores E o prefeito e os varredores E os pintores e os vendedores As senhoras e os senhores E os guardas e os inspetores Fossem somente crianças Os Saltimbancos Chico Buarque
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palavras-chave Cidade; Infância; Criança; Planejamento urbano; Espaço público; Metodologias participativas.
resumo Este trabalho tem como proposta a elaboração de um plano urbano e de um projeto urbanístico de intervenção na região da Savassi, em Belo Horizonte, tendo como principal parâmetro para sua criação a perspectiva infantil e a autonomia das crianças nos processos de tomada de decisão. Objetiva-se, com isso, criar cidades mais lúdicas, mais democráticas e mais acessíveis não só às crianças, mas a toda a população, valorizando a vida, o brincar, o lazer e a sustentabilidade (Carvalho et al, Lanksy e Sawaya). A investigação se desenvolverá a partir da realização de uma atividade com crianças de 5 a 7 anos de uma escola de Belo Horizonte, para que expressem seus sentimentos, pensamentos e propostas nos temas da cidade. Essa atividade pedagógica servirá de base para a elaboração do plano urbano e do projeto urbanístico de intervenção e será combinada à visão técnica, a partir de uma análise socioespacial da área de estudo. Sendo assim, ao fim, a pesquisa deverá ser capaz de responder porque uma criança consegue decidir e opinar nas questões da cidade e, ainda, demonstrar a importância de trazer as crianças para o debate democrático. 5
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apresentação ao tema Este Trabalho de Curso deseja investigar as questões e relações entre infância e cidade a partir de uma perspectiva centrada na criança, em suas necessidades e desejos, desenvolvendo uma proposta de planejamento urbano participativo, colaborativo e democrático que incorpore o lúdico ao espaço público urbano e que, dessa forma, contemple as crianças, assim como demais os grupos que constituem a cidade.
problema As cidades do século XXI, de maneira geral, operam sob uma racionalidade fundamentalmente neoliberal (Freitas et al, 2020, p. 233) e individualista, centrada na figura do homem, branco, burguês, motorista, que opera na lógica da produção e do acúmulo de capital. Conforme apontado por Santos (1984, p. 105), o capitalismo encontrou nas cidades sua forma de sobrevivência, que, por sua vez, sintetizam, através de seus códigos e dispositivos, sua ordem econômica. Sendo assim, a cidade capitalista é funcionalista e, como nessa lógica, segrega, fragmenta e especializa tanto espaços quanto populações. Dessa forma, o espaço urbano exclui de seu planejamento, em maior ou menor grau, toda a população que não se enquadra em seu parâmetro essencial do homem adulto, branco e motorista. A criança, portanto, não sendo força produtiva e não se enquadrando nestes parâmetros, não é considerada no planejamento urbano. Além disso, a infância tem sido cada vez mais institucionalizada, ou seja: está restrita aos espaços da casa e da escola, sempre sob o olhar regulador do adulto. A criança, então, apesar de cidadã, com direito à liberdade de ir e vir e à participação na vida familiar, 6
comunitária e política (Brasil, 1990), não possui, de fato, o pleno direito de estar e de usufruir do espaço urbano com liberdade. Esse trabalho, portanto, tem como objetivo inverter a lógica capitalista de produção das cidades para trazer a perspectiva infantil ao centro da discussão do planejamento urbano para, assim, proporcionar cidades mais lúdicas, democráticas e acessíveis não só às crianças, mas a toda a população, valorizando a vida, o brincar, o lazer e a sustentabilidade. Ao fim, essa pesquisa deverá ser capaz de responder: As crianças são capazes de fazer parte dos processos de tomada de decisão? O quanto uma criança consegue decidir e opinar nas questões da cidade?
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objeto e recorte espaço-temporal Para colocar em prática as intenções apresentadas acima, essa pesquisa terá como produto um plano urbano para o bairro da Savassi, em Belo Horizonte, e um projeto urbanístico para um trecho do bairro a ser definido durante o processo de investigação. O plano urbano a ser criado pretende ser um instrumento urbanístico que, em pequena escala e relacionado ao Plano Diretor Municipal, estabelece diretrizes e ferramentas para o desenvolvimento de uma lugar amigável às crianças, propício ao brincar, que valoriza o lúdico para todas as idades, que estimula o lazer e a vida em comunidade. O Plano Diretor do Município de Belo Horizonte (Lei Municipal 11.181/19), de acordo com o Estatuto das Cidades (Lei Federal 10.257/01), determina como princípio geral da política urbana: (...) IV - a gestão democrática, por meio dos instrumentos previstos nesta lei e de outros que venham a ser desenvolvidos; V - a democratização do uso do espaço público; (...)” (Belo Horizonte, 2019, p. 5).
Sendo assim, o plano urbano a ser criado pretende ter sua gestão democrática baseada na voz e nas decisões das crian-
ças: elas serão ouvidas e serão agentes da transformação, participando no processo desenvolvimento das diretrizes e, especialmente, no projeto urbanístico a ser criado, que contribuirá para o presente e para futuro do lugar em que vivem ou frequentam. A área escolhida para realização do plano é a Savassi, bairro da regional Centro-sul de Belo Horizonte, localizado dentro da Av. do Contorno, sendo parte do projeto original da cidade estabelecido por Aarão Reis. Entretanto, o entendimento da Savassi como bairro é recente: a área fazia parte do bairro Funcionários e, após se tornar uma centralidade comercial com o nome popular de Savassi, dado a partir de uma padaria da região, se tornou um bairro por si só. Segundo o Censo de 2010 (IBGE, 2010), a Savassi possui população de 11.772 habitantes, cerca de 0,49% da população total da cidade, que é 2.375.151 habitantes. Em relação ao Índice de Qualidade de Vida Urbana – IQVU, a regional Centro-sul é a que apresenta melhor indicador, com 0,764 (PBH, 2016). A Savassi, por si só, tem índice 0,805, enquanto unidades de planejamento como Mangabeiras e Serra, ainda na regional Centro-sul, possuem índice igual a 0,784 e 0,776 (PBH, 2016) Então, por que escolher um bairro com índices tão acima da média da cidade para pesquisa e intervenção? A escolha 7
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se deve por conta da minha proximidade pessoal com o Colégio Sagrado Coração de Jesus, localizado na Savassi, que permitirá encontros e atividades com as crianças estudantes do Colégio, que farão parte da metodologia participativa de criação do plano urbano e do projeto urbanístico. Sendo assim, tratando-se de um Trabalho de Curso a ser realizado em um período de seis meses, foi preciso direcionar a pesquisa a um grupo já constituído, que eu, como pesquisadora, já possuo proximidade para realizar a pesquisa em um curto período. Sendo assim, a escolha do bairro se deu pela área em comum a todos os estudantes do Colégio Sagrado de Jesus: a Savassi, bairro da escola, que frequentam diariamente e, por isso, podem opinar e decidir sobre ela.
a escolha do tema O meu interesse pelas questões da cidade, do planejamento urbano e do direito à cidade vem desde antes do início da minha trajetória no urbanismo: foi por meu encanto por esses temas que decidi iniciar o curso de Arquitetura e Urbanismo em 2019 e, até hoje, permaneço encantada por essa área, que possibilita mudar a qualidade de vida, a mobilidade, o lazer, a saúde e a segurança de toda uma população. Já no que se refere aos temas da infância, o interesse é ainda mais pessoal, vem da minha criação: ter uma mãe pedagoga me ensinou sobre a importância de se valorizar a infância e sobre o quão fascinantes são as crianças e sua forma de ver o mundo. Ao transformar a infância de uma criança, transformamos também o mundo.
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objetivos, pesquisa, relevância e método O objetivo geral desse trabalho, portanto, é legitimar o olhar, os pensamentos e as escolhas infantis para cidade, valorizando o olhar outro, que não é produtivo na perspectiva capitalista e, dessa forma, utilizando-se se metodologias participativas com crianças, desenvolver um plano urbano e um projeto urbanístico que reconheça a importância do lúdico, do lazer, da convivência e da criança para a transformação urbana. De forma específica, objetiva-se:
1 Estimular a participação infantil nas decisões relacionadas ao urbano, ao trazer para o centro do debate a necessidade e a capacidade das crianças em opinar e participar do debate sobre as questões da cidade, entendendo suas escolhas como válidas, assim como de qualquer outro grupo inserido na cidade;
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Criar cidades lúdicas e Inverter a racionalidade cabrincantes, promovendo o pitalista de produção das direito à cidade, ao lazer, cidades, ao considerar a ao brincar, ao tempo livre, criança e sua voz no plaà saúde e à segurança à nejamento urbano, contratoda a população, de qual- pondo a lógica produtivista quer idade, gênero ou clas- e funcionalista ao criar esse, propiciando encontros e paços não especializados, a vida em comunidade; que podem ser apropriados de diferentes maneiras por diferentes públicos.
Trazer o potencial educativo e incorporar o lúdico nas cidades é romper a hegemonia das atividades produtivas sobre todas as outras que nos fazem humanos e nos permitem existir e reproduzir, rompendo também com a centralidade do transporte motorizado individual, o chamado carrocentrismo, imposto às nossas cidades (Carvalho et al, 2022, p. 88).
Dessa forma, fica clara a relevância do trabalho para o campo da Arquitetura e Urbanismo, ao contribuir para a discussão dos temas da infância e cidade e métodos participativos, especialmente em Belo Horizonte, ampliando as possibilidades de produção do planejamento urbano e de políticas públicas para a cidade para que, no futuro, possa-
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-se ter espaços públicos de maior qualidade para toda a população. Quanto ao processo e método de desenvolvimento da pesquisa, esse se dará, primeiramente, por meio da construção de um embasamento teórico a partir da leitura de textos tanto da área da Arquitetura e Urbanismo quanto da Pedagogia, para que, a fundamentado neles e auxiliado por profissionais da área, possam ser realizadas diferentes atividades com crianças. Essas práticas terão caráter lúdico e deverão acontecer dentro do Colégio Sagrado Coração de Jesus, com alunos da escola entre 5 e 7 anos que poderão expor suas percepções sobre o espaço urbano no entorno do Colégio, além de seus desejos, vontades e escolhas para a cidade. Concomitantemente, será realizada uma análise socioespacial do bairro, que levará em conta parâmetros como caminhabilidade, quantidade de praças, espaços públicos e terrenos livres, presença de escolas e as diferentes interseções e interações entre tais parâmetros. A análise socioespacial permitirá ter uma visão técnica sobre o espaço onde as crianças convivem para, a partir dos encontros com elas, possa ser realizada uma síntese entre as questões apontadas pelas crianças e os aspectos técnicos urbanísticos. Essa mediação deverá ser realizada com cuidado e atenção de forma a permitir a criação de diretrizes que, de fato, levam em conta a perspectiva infantil, sem deixar de serem factíveis. Por fim, após a criação do plano urbano para a área, será realizado um
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projeto urbanístico para uma região (a ser definida conforme o andamento da pesquisa), podendo ser uma praça, uma via ou outra área pública. A pesquisa, portanto, terá dois produtos: o plano urbano, com diretrizes e indicações de políticas públicas na escala do recorte escolhido dentro do bairro escolhido, e o projeto urbanístico, que aplica espacialmente as diretrizes do plano, utilizando-se da participação das crianças também na escala de projeto.
atividade/ workshop com as crianças
propostas
plano urbano
- definição de eixos norteadores; - diagnóstico da área; - definição de objetivos; - definição de zonas de ação; - criação de propostas.
projeto urbanístico
- alteração de calçadas e do leito carroçável; - desenho de mobiliário urbano; - replantio de espécies arbóreas e vegetação.
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estado da arte No que diz respeito às bases teóricas para o desenvolvimento da pesquisa, serão utilizados materiais dos campos do Urbanismo e da Pedagogia para auxiliar tanto nas questões de projeto e planejamento urbano quanto nos temas de abordagens pedagógicas, história da infância e metodologias participativas. Todos os trabalhos escolhidos foram produzidos no Brasil entre 2006 e 2022 e tratam, portanto, de questões muito próximas ao contexto a ser pesquisado neste trabalho. Primeiramente, para um entendimento geral das questões da infância na cidade, especialmente na América Latina e no Brasil, será utilizado o material do curso de extensão “A criança e a cidade: participação infantil na construção de políticas públicas”, produzido pelo Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Infância e Educação Infantil – NEPEI, com o apoio do grupo Territórios Educação Integral e Cidadania – TEIA, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais – FaE/ UFMG, em 2022. Nele, estão indicados diversos projetos e trabalhos relacionados à participação infantil na cidade e ao direito à cidadania infantil, entre outros que poderão servir de exemplo ou de estudo de caso para pesquisa. Além disso, o material fomenta reflexões sobre as relações entre a produção do espaço urbano e as crianças, esclarece o histórico dos direitos
da criança e do adolescente no Brasil, discute as formas de linguagem da criança e consolida a ideia de cidade como espaço educador fundamental para o desenvolvimento infantil. Entretanto, faz-se também necessário um referencial que aplica as reflexões sobre infância e cidade em um produto prático. Essa base será trazida pelo Trabalho Final de Graduação de Camila Sawaia na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU/ USP: “Plano Urbano do Brincar: por uma cidade brincante”, de 2021. Nesse TFG, dividido em duas partes, a autora propõe, primeiramente, uma discussão teórica sobre a criança, a cidade e o brincar, além de justificar a necessidade de se pensar uma cidade brincante, conceito esse que complementa e aprofunda as discussões trazidas pelo “A criança e a cidade: participação infantil na construção de políticas públicas”. Além disso, em uma segunda parte, a autora elabora um plano urbano para a região da Brasilândia, trabalho similar ao que proponho com essa pesquisa, que utiliza de diversos parâmetros para a realização de uma análise socioambiental do espaço centrada nas questões da infância, que servirão como base para o trabalho a ser realizado nesse Trabalho de Curso. 11
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Por fim, senti necessidade de um trabalho que aplicasse os conceitos e problemáticas estudadas de forma ainda mais especializada e, por isso, proponho como última base teórica Dissertação de Mestrado de Samy Lansky para a Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais - FaE/ UFMG: “Praça Jerimum: cultura infantil no espaço público”. A pesquisa realizada pelo arquiteto analisa “as apropriações de espaços públicos pelo sujeito contemporâneo, este definido com base no duplo recorte, geracional e social: a infância das camadas populares brasileiras” (Lansky, 2006, p. 5) e culmina em um projeto urbanístico para a Praça Jerimum, na periferia de Belo Horizonte, elaborado através da metodologia participativa com as crianças. Sendo assim, essa dissertação trará maior direcionamento no que diz respeito às metodologias participativas com crianças, especialmente na realização de projeto urbanístico, além de esclarecer questões relacionadas às formas de diálogo entre crianças e adultos, assim como o papel do arquiteto nesse processo. Esses temas contribuirão para a realização das atividades pedagógicas previstas na pesquisa que proponho.
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estudo de caso
Plan del juego en el espacio público de Barcelona con horizonte 2030 Em fevereiro de 2019 a Prefeitura de Barcelona, na Espanha, aprovou e publicou o Plan del juego en el espacio público de Barcelona con horizonte 2030. O plano urbano foi direcionado para tornar a cidade mais brincável e brincante (do espanhol, jugable y jugada - tradução da autora) para crianças, adolescentes, adultos e idosos. A elaboração do plano foi coordenada desde 2018 pelo Institut Infància i Adolescència, entidade financiada pela Prefeitura do município com o objetivo de criar propostas e transformações para uma cidade melhor para crianças e adolescentes. Antes do Instituto, Barcelona nunca havia tido uma política efetiva para promover a brincadeira no espaço público que fosse de fato transformadora. O plano foi desenvolvido concomitantemente a algumas iniciativas do município para elaborar propostas voltadas para a infância e para a adolescência na cidade. É o caso, por exemplo, da Barcelona da mucho juego, de 2018. Essa medida de governo foi a primeira estratégia e o ponto de partida da elaboração do Plan de Juego. O processo de elaboração do plano de Barcelona se deu de forma transversal e participativa, sendo uma iniciativa conjunta de duas áreas da Prefeitura: a de Ecologia, Planejamento Urbano e Mobilidade e a
de Direitos Sociais. Além dessas, também tiveram participação as áreas de Direitos dos Cidadãos e de Participação e Transparência. Durante o processo, foram ouvidos profissionais do município, entidades sociais e cidadãos - entre eles crianças, jovens e adultos - envolvendo mais de 400 pessoas entre março e dezembro de 2018. Tal metodologia participativa foi estruturada em três esferas: a política, a técnica e a cidadã, que se reuniam em sessões de trabalho exploratórias e de avaliação. Na esfera política, discutiram comissões voltadas para os direitos sociais, sustentabilidade, educação, saúde, planejamento urbano e esportes. Já na esfera técnica, foram agrupados os servidores municipais de diferentes institutos. No âmbito cidadão foram ouvidas tanto entidades sociais e empresas quanto cidadãos individuais. Nessa esfera, os processos foram mais diversificados, tendo sido conduzidas sessões exploratórias iniciais, onde foram identificados os fatores-chave para a construção do horizonte 2030, e sessões de estruturação desse horizonte desejado em 2030. Além disso, foi também realizada uma sessão de trabalho com a participação de quarenta crianças de 10 a 12 anos, além de outras 200 de 10 a 14 anos. 13
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Dessa forma, foram estabelecidas quatro grandes razões para a criação do Plan de Juegos, que embasam todo a proposta:
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Porque as crianças têm o direito à brincadeira e ao lazer em uma cidade amiga da infância;
Porque em torno da brincadeira se geram encontros e se enriquece a vida comunitária, no âmbito uma cidade inclusiva e acessível;
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Porque a brincadeira e a atividade física melhoram o bem-estar e a saúde física e mental de todos no âmbito uma cidade saudável;
Porque ambientes lúdicos de qualidade ajudam a tornar o espaço público mais natural, mais pacífico e seguro.
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Com as motivações bem estabelecidas, foram definidas três camadas e sete critérios para uma Barcelona mais jogável, que orientam o desenvolvimento do Plan de Juegos e suas formas de monitoramento e avaliação. Primeiramente, reconhece-se os benefícios coletivos e transversais da brincadeira, não só a crianças, mas a toda a população, especialmente por seu potencial de melhorar a vida comunitária urbana. Em seguida, estabelecem-se três camadas de infraestrutura lúdica, que auxiliam na avaliação do espaço brincável ao definir espaços do mais ao menos especializado para o brincar. A primeira camada é composta pelas áreas especificamente pensadas para a brincadeira, como parques infantis e pátios escolares, a segunda é chamada de “espaços lúdicos” e “entornos escolares”, onde se estendem
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os acontecimentos da primeira camada. Por fim, a terceira camada é definida como “cidade brincante” (do catalão, ciutat jugable - tradução da autora), que são o restante dos espaços urbanos e naturais, onde a brincadeira acontece de forma espontânea. Além das camadas e com base nas observações do Comitê da Organização Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, foram elaborados sete critérios de qualidade dos espaços para a brincadeira. São eles: 1. Múltiplas propostas de jogos criativos e desafiadores que contribuem para o desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes; 2. Espaço físico diversificado, estimulante, conectado e acessível; 3. Espaços lúdicos inclusivos para dife-
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rentes idades, gêneros, origens e capacidades. Contato com a natureza, com o verde, que permite brincar com água e areia; Brincadeira compartilhada, intergeracional e colaborativa; Local de encontro e convivência comunitária; Ecossistemas lúdicos e ambientes seguros e brincáveis.
Tendo como base as três camadas e sete critérios, foi realizado um diagnóstico das oportunidades de brincadeira na cidade de Barcelona, que analisou a “infraestrutura brincante” e os usos do espaço público para brincadeira. Foi avaliada a distribuição dos espaços de brincadeira, sua densidade em relação ao número de crianças por bairro, a quantidade e os tipos de propostas dentro deles. Além disso, foi diagnosticado o nível de inclusão geracional do lugar, assim como sua proximidade a áreas verdes e à água, a condição de proporcionar encontros dentro da vida comunitária e presença de equipamentos esportivos. Outro ponto analisado foram os pátios escolares: quantos parques infantis existem dentro de instituições de educação
pública, a distribuição deles, quantos estão ao ar livre e sua qualidade. Como parte do diagnóstico, também foi pesquisada a satisfação das crianças com os lugares de brincadeira, além de suas formas de apropriação dos espaços não programados, o tempo semanal destinado à brincadeira e suas preferências recreativas. Também foram analisados os hábitos de atividade física entre jovens e adultos, os hábitos familiares em relação ao lazer e as relações de gênero no exercício da atividade física, do lazer e da brincadeira. Em seguida, foi dado início à estruturação do horizonte de 2030, de seus marcos mensuráveis de qualidade e das propostas em si. Os horizontes 2030 são seis visões para uma cidade mais jogável, que orientam as metas, os eixos e os objetivos gerais para execução do plano. São eles: 1. Uma cidade onde as crianças desfrutam do direito de brincar e de passar o tempo e onde todos recuperam o gosto por brincar em espaços públicos; 2. Uma cidade que promove a saúde, o desenvolvimento integral e o bem-estar através de brincadeiras e atividades físicas ao ar livre; 3. Uma cidade que oferece e inte15
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gra mais e melhores oportunidades brincadeira em todos os lugares; 4. Uma cidade com ambientes verdes, naturais, seguros e tranquilos que permitem que pessoas brinquem nas ruas; 5. Uma cidade que estimula o brincar inclusivo, levando em conta a diversidade de idades, de gêneros, de origens e de capacidades funcionais; 6. Uma cidade que enriquece a vida comunitária e a convivência de pessoas e usos no jogo. Conjuntamente com a definição do horizonte 2030, foram elaborados 10 grandes marcos urbanos, para que seja possível visualizar e objetivar a concretização do horizonte, reafirmando o compromisso com a mudança e comunicando de maneira ainda mais clara onde se deseja chegar: 1º marco: Duplicar o número de áreas de lazer com uma diversidade de atividades lúdicas; 2º marco: Garantir padrões mínimos de área e de facilidade de brincar nos espaços de brincadeira; 3º marco: Aumentar as possibilidades de brincadeiras com água e areia em espaços recreativos e nas áreas de lazer; 4º marco: Dobrar os espaços recreativos que provocam desafios e o gerenciamento de riscos em adolescentes e jovens; 5º marco: Aumentar as oportunidades de brincadeiras compartilhadas no espaço urbano como um todo; 6º marco: Aumentar a acessibilidade e as oportunidades de brincadeiras inclusivas; 7º marco: Tornar as áreas de lazer mais habitáveis com sanitários, me16
sas, fontes e regiões sombreadas; 8º marco: Dobrar o número de parques infantis adaptados para brincadeiras diversificadas e educativas em um ambiente com mais natureza; 9º marco: 100 entornos escolares como locais de encontro com micro intervenções nas entradas das escolas; 10º marco: Aumentar a atividade recreativa e física entre crianças e adolescentes e reduzir a disparidade de gênero. Em concordância com os marcos e o horizonte 2030 foi organizada a parte operacional do plano, que está estruturada em 3 eixos estratégicos, que agrupam um total de 14 objetivos e 63 ações. Dessas, 10 são chamadas de “projetos norteadores” (em catalão, projectes tractos) que tem interesse e foco especial porque representam de maneira mais forte as mudanças que o plano propõe. Além disso, esses projetos têm curto prazo de implementação (dois anos) e, por isso, têm potencial para impulsionar as outras ações. Plan de juegos en el espacio público 3 eixos estratégicos 14 objetivos
63 ações 10 projetos norteadores
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Eixo 1: Mais e melhores espaços para a brincadeira no espaço urbano - Infraestrutura recreativa em uma cidade brincável; Eixo 2: Estímulo à realização de atividades recreativas e físicas na rua e ao ar livre - Usos brincantes em uma cidade brincante; Eixo 3: Promoção de uma mudança de paradigma - A brincadeira acontece na cidade. É necessário, ainda, elaborar as formas de governança, de execução, de monitoramento e de avaliação do Plano. Por se tratar de um trabalho transversal, foi pensada uma estrutura de gestão municipal baseada em quatro pontos: governança política, grupo coordenador e condutor (constituído pelas áreas de modelo urbano, espaços verdes, saúde e educação), comissão transversal de implementação e acompanhamento do Plan de Juegos e grupos de trabalho dos projetos-norteadores. Por fim, foram estabelecidas formas de monitoramento e avaliação, além do cronograma de execução das 63 ações e 10 projetos norteadores.
to o plano a ser desenvolvido aqui trata de uma área de muito menor tamanho e não permite a formação de uma equipe interdisciplinar e transversal. Por isso, acredito que a maior contribuição do exemplo de Barcelona é a sua estruturação, com a indicação de horizontes, critérios, marcos, eixos, ações e projetos-norteadores. Ainda, a forma de se pensar o diagnóstico da área é de grande valia para a pesquisa, ao criar novos parâmetros de qualidade para investigação dos espaços de brincadeira e lazer da cidade.
conclusão O Plan de Juegos de Barcelona oferece um grande exemplo de como o planejamento de uma cidade pode ser estruturado em torno da promoção da brincadeira, do encontro ao ar livre, dos espaços verdes e da saúde, sendo pensado através de uma perspectiva infantil e indo além para promover o bem-estar a todas as idades. No entanto, ao colocar em perspectiva as contribuições do plano de Barcelona para esta pesquisa, é preciso se atentar às escalas: o Plan de Juegos foi desenvolvido para toda uma cidade, envolvendo uma equipe de mais de 400 pessoas, enquan17
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área de estudo
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definição da área
análise técnica
Definido o bairro de estudo, era necessário definir um recorte, mais restrito, da área onde será planejada a intervenção. O ponto de partida da investigação foram as escolas, públicas e privadas, que se encontram no bairro da Savassi e atendem a infância. Atualmente, há seis escolas nessa categoria, sendo quatro delas da rede privada de ensino e duas da rede pública, administradas pelo Estado de Minas Gerais. Além de mapear as escolas existentes, é necessário entender como as crianças se relacionam com o espaço ao redor do lugar em que estudam. Essa relação escola-cidade foi estabelecida, em um primeiro momento, a partir das distâncias alcançadas a pé a partir de cada instituição. Para isso, foi desenhado um raio de 300 metros (cerca de três quarteirões da região central de Belo Horizonte) a partir de cada escola. Essas zonas e, principalmente, suas interseções foram o parâmetro principal para definição da área de estudo. Além disso, se somam à decisão a localização dos eixos viários principais (Av. Afonso Pena, Av. do Contorno, Av. Brasil, Av. Cristóvão Colombo e Av. Getúlio Vargas) e das praças da região.
Os parâmetros legais que agem sobre a área de estudo e intervenção estão ligados principalmente ao Plano Diretor de Belo Horizonte, a Lei 11.181/19. O zoneamento que inflige quase toda a região central do município é a Ocupação Preferencial 3 OP-3, que estabelece coeficiente de aproveitamento básico 1, máximo 5 e mínimo 0,5, permitindo uma ocupação moderada da área, que já é bastante consolidada. Além disso, todas as vias são arteriais e de caráter misto, ou seja: permitem atividades comerciais, além das residenciais e conectam áreas dentro da região central. Além disso, parte da área de estudo está compreendida na Área de Diretrizes Especiais (ADE) da Avenida do Contorno, dentro de três setores: Residencial Central, Savassi e Rua da Bahia Viva. Segundo o artigo 216 do Plano Diretor, essa ADE tem como finalidade reforçar a identidade da área central, incluída no plano de Aarão Reis, reconhecendo seu valor simbólico e cultural. Por conta disso, recaem sobre a região alguns parâmetros específicos, como afastamento frontal como prolongamento de passeio, necessidade permeabilidade visual dos gradis das edificações e flexibilização da altura na divisa. Além disso, dentro de cada setor são ressaltados certos aspectos da região: no setor Residencial Central
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é controlada a instalação de usos não residenciais, no setor Savassi é incentivado o potencial econômico e cultural e no setor Rua da Bahia Viva são reforçadas medidas que ressaltam a importância histórico-cultural da via. Por fim, cabe ressaltar que, se tratando de área central original do plano de Aarão Reis para Belo Horizonte, a região em estudo possui bastante valor histórico-cultural não apenas em seu traçado, mas também em suas edificações. São diversos os imóveis tombados pelo Patrimônio Histórico do Município, além de tantos outros que estão em fase documental. No que se refere aos imóveis tombados, ressalta-se a presença de duas, das seis escolas da região: o Colégio Sagrado Coração de Jesus e a Escola Estadual Barão do Rio Branco.
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cronograma de pesquisa
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referências
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Desenhos cedidos pela professora Nayara Godinho, realizados pelos alunos do Colégio Sagrado Coração de Jesus.
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brincar na cidade: a perspectiva infantil como ferramenta de transformação urbana
Pontifícia Universidade Católica de MInas Gerais Departamento de Arquitetura e Urbanismo Estudos Preparatórios do Trabalho de Curso
Laura Fernandes Tomaz dezembro de 2023
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