A fé se faz devoção e habita no meio do povo
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“O livro é um mudo que fala, um surdo que responde, um cego que guia, um morto que vive.” Padre Antônio Vieira 3
A fé se faz devoção e habita no meio do povo Diocese de Lorena: 80 anos
Organização: Pe. Fabrício de Senne Beckmann Laurentino Gonçalves Dias Jr.
Ensaios:
Antônio Carlos Monteiro Chaves Bianca Gonçalves de Freitas Conceição Fenille Molinaro Elisa Sá Torquato Sales Pe. Fabrício de Senne Beckmann Francisco Sodero Toledo Júnia Botelho Rodolfo José Fenille Ferraz Textos:
Dom Benedito Beni dos Santos Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues Dom João Inácio Müller Laurentino Gonçalves Dias Jr. 4
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Ficha Técnica: Direção de Arte: Laurentino Gonçalves Dias Jr. Revisão: Francisco Máximo Ferreira Netto (Chico Máximo) Impressão: Editora Santuário (Aparecida/SP)
Dados Catalográficos
A fé se faz devoção e habita no meio do povo Diocese de Lorena: 80 anos
Lorena / SP Julho de 2017
Índice Dom João Inácio Müller 11 Francisco Sodero Toledo 17 Antônio Carlos Monteiro Chaves 35 Rodolfo José Fenille Ferraz 61 Conceição Fenille Molinaro 77 Júnia Botelho 103 Bianca Gonçalves de Freitas 117 Pe. Fabrício de Senne Beckmann 135 Elisa Sá Torquato Sales 149 Cartas dos Bispos Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues Dom Benedito Beni dos Santos
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Uma mensagem Laurentino Gonçalves Dias Jr.
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Créditos das imagens 173
Apresentação Dom João Inacio Mϋller Bispo Diocesano de Lorena
Com a graça de Deus, neste ano de 2017 a Diocese de Lorena celebra oitenta anos de
existência e de missão. São 80 anos de caminhada, como Igreja Particular. Esta data deve ser celebrada com gratidão, responsabilidade vocacional e compromisso apostólico. A Igreja nos ensina que “a diocese é uma porção do povo de Deus confiada ao pastoreio do Bispo com a cooperação do presbitério, de modo tal que, unindo-se ela a seu pastor e, pelo Evangelho e pela Eucaristia, reunida por ele no Espírito Santo, constitua uma Igreja particular, na qual está verdadeiramente presente e operante a Igreja de Cristo uma, santa, católica e apostólica” (CIC 369). Cada Igreja particular tem sua gênese, sua história, seu povo, suas características próprias e peculiares. Cada Diocese tem um modo único de acolher o Evangelho e de dar visibilidade ao Reino de Deus. E isso porque cada povo tem suas características culturais próprias. É sempre a mesma Igreja de Cristo, mas única e, de alguma forma, diferente de todas as outras Igrejas particulares. De fato, cada Diocese tem suas características e nuances únicas, tem o seu modo próprio de celebrar a fé, sua história, sua piedade e “crenças”, e o seu processo de formação como povo de Deus. Diria mais: cada Igreja particular tem um modo único de celebrar os mistérios da vida e da salvação. Isso é dado pela cultura e pelo patrimônio que compõem “uma porção do povo de Deus”. Para tornar inteligível o que busco dizer, antecipo pequeno trecho deste livro: “O Evangelho se encarna em comunidades vivas, comunidades negras, indígenas, camponesas, urbanas, em realidades autóctones, adquirindo cores, cheiros, expressões, rituais que possuem o jeito característico de cada povo”. Tocar nesta identidade, mesmo que fugaz, é intento deste livro comemorativo dos 80 anos de nossa Diocese de Lorena. Por isso, nomeei para esta delicada tarefa, ainda em 2015, uma Comissão composta pelas seguintes pessoas: Revdo. Padre Fabrício de Senne Beckmann, Monsenhor Luiz Carlos Corrêa Barboza, senhor Francisco Sodero Toledo e senhora Eliza Regina Gomes Torquato Salles. Lembrava, na ocasião, que “cada Diocese tem sua gênese, sua história, sua identidade e personalidade próprias. Quem é a Diocese de Lorena? Qual é seu Carisma? Qual é a identidade, o rosto, o coração de nossa Diocese? Qual é o ‘nosso próprio’, a vida e missão que identificam a Diocese de Lorena, erigida sob o patrocínio de Nossa Senhora da Piedade?”
Dizia, ainda: “Creio que essas questões precisam, mais e melhor, vir à luz. A identidade delineada de nossa Diocese trará consistência renovada para nossa caminhada, mostrará nossa virtude no seio da Igreja Católica, proclamará a graça e a missão confiadas a nós, filhos e filhas desta Igreja particular, a Diocese de Lorena”. Por fim, escrevia: “Convido, confio e nomeio vocês – Padre Fabrício, Monsenhor Luiz Carlos Barbosa, Professor Francisco Sodero e a senhora Eloísa Regina – para este ministério, seja: evidenciar a vida e a missão da Diocese de Lorena, o Carisma próprio”. Esses nosso irmãos entenderam servir-se da ajuda de várias outras pessoas, conhecedoras do povo desta Diocese. Surgiu, assim, este trabalho ingente, que ora podemos, com alegria e louvor, apresentar. É como que nosso espelho ou retrato. Busquemos nos olhar nele. Futuramente, poderemos aperfeiçoar ainda mais este mister. Agradeço a todos e a cada um que deu do seu melhor para este livro celebrativo. Deus abençoe vocês e todo o povo de nossa Diocese de Lorena.
Dom João Inacio Mϋller Bispo Diocesano de Lorena
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(...) Canto o que minha arma sente E o meu coração incerra As coisa de minha terra E a vida de minha gente. Aos poetas clássicos / Patativa do Assaré 15
A Diocese de Lorena A Histรณria
Francisco Sodero Toledo
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A Bula “Ad Chistianae Plebis Regimen” (Para o governo do povo cristão) promulga-
da pelo Papa Pio XI, em 31 de julho de 1937, determinava a criação de uma nova unidade territorial e eclesiástica na Igreja Católica no Brasil. Nascia a mais nova Diocese, a de Lorena, com divisão territorial desmembrada da Diocese de Taubaté, no Vale do Paraíba, que seria, a partir de então, entregue à administração eclesiástica dos bispos designados, dando origem ao novo bispado. A sua padroeira, objeto de culto e veneração centenária, é Nossa Senhora da Piedade. A nova divisão territorial da Igreja Católica passou a ter como sede a cidade de Lorena, historicamente berço da formação de extensa região, e a ela foram sendo incorporadas outras paróquias que hoje a compõem: Cunha, Campos Novos de Cunha, Canas, Cachoeira Paulista, Piquete, Embaú, Cruzeiro, Pinheiros, Lavrinhas, Queluz, Silveiras, Areias, São José do Barreiro, Arapeí e Bananal. Ao todo, abrange uma área de mais de 5 mil quilômetros quadrados que se estende das divisas do município de Guaratinguetá às divisas com os Estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro. Atualmente pertence à sub-região da Arquidiocese de Aparecida e conta com trinta paróquias, quatro Santuários e tem como Bispo D. João Inácio Müller.
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Origens A criação foi justificada pela intenção da Igreja Católica de melhor atender as comunidades de fiéis e tonar mais fácil e eficaz o governo do povo católico. Desta forma, buscava criar vínculos mais fortes com suas diversas paróquias por intermédio dos padres, pastores colocados mais próximos aos seus rebanhos, e trabalhar no sentido de garantir a unidade nas atividades litúrgicas e demais atividades religiosas. Há que se destacar na sua criação a figura de um personagem que representou todos os esforços dos leigos para que este sonho se concretizasse. Trata-se do lorenense Conde José Vicente de Azevedo (1859 - 1944). José Vicente de Azevedo formou-se pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, na capital paulista, em 1882, e logo entrou para a política sendo eleito deputado provincial por três legislaturas (1884 - 1889). Após a proclamação da República voltou à política em 1898 e foi eleito seis vezes para a Câmara do Congresso Legislativo de São Paulo e Senador do Congresso Legislativo do Estado de São Paulo, em que exerceu o mandato por cinco legislaturas. Ao longo de sua vida, quer residindo na capital paulista, quer em Lorena, foi católico convicto e praticante. Deixou sua marca em São Paulo, notadamente no bairro do Ipiranga, onde recebeu grandes homenagens, tendo seu nome figurado nas ruas e colégio da região; e em Lorena realizou obras importantes, sempre ligadas à prática da caridade cristã. José Vicente também ergueu ou adornou mais de 20 igrejas e capelas, dentre as quais a Basílica de Aparecida; compôs diversos cânticos religiosos, com destaque para o hino a Nossa Senhora Aparecida, de quem foi grande devoto; apoiou o movimento das Conferências Vicentinas, contribuindo nos seus últimos anos de vida para sustentar 22 delas. Tal foi a importância de sua atuação junto à Igreja Católica e sua benemerência, que recebeu a honra de ser nomeado Conde romano pelo Papa Pio XI, em 1 de julho de 1935. Na década de 30 usou de seu prestígio junto ao episcopado brasileiro para tornar Lorena a sede de uma nova diocese. Para assegurar suas intenções doou, em sua cidade natal, diversas propriedades pessoais que passaram a constituir patrimônio da Diocese, como o Palácio episcopal, a Cúria e o prédio para o Seminário menor, além de propriedades menores.
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A Diocese de Lorena
Caminhos, capelas e devoção mariana A Diocese de Lorena, como o restante da região do Vale do Paraíba do Sul, apresenta características históricas e culturais com fundamentos nos caminhos, nas capelas e na devoção mariana. O rio Paraíba do Sul serviu como via natural para entrada e deslocamento dos primeiros colonizadores que adentraram a região do Vale a partir da primeira metade do século XVII. Ele indicava o curso a ser seguido. Os caminhos que iam sendo abertos indicavam o percurso para os avanços e os momentos de paradas. As capelas que foram sendo erguidas significavam um sinal de união e de conquista, símbolo de um outro poder, o espiritual, indicando um ponto de chegada e de acolhida. Em um dos pontos do “Caminho dos Paulistas”, que depois das descobertas auríferas nas Minas Gerais passou a ser denominado Estrada Real – Caminho do Ouro, que partia da Vila de São Paulo e atravessava a região passando pelas vilas de Jacareí, Taubaté e Guaratinguetá, onde se encontrava com o Caminho Velho de Paraty que passava por Cunha, em direção nordeste, bem no local da travessia do rio Paraíba, na foz do rio Taboão, surgiu o porto de Guaypacaré. À margem dele e em frente ao rio, em terreno cedido junto às “roças de Bento Rodrigues Caldeira”, levantou-se, em 1705, uma nova capela: a de Nossa Senhora da Piedade. Outro caminho iria marcar a delimitação final do território atual da Diocese de Lorena, a Estrada Real: Caminho Novo da Piedade. Ele foi construído para ligar a Capitania de São Paulo à do Rio de Janeiro, por via terrestre, estendendo-se da Freguesia da Piedade, atual cidade de Lorena, à Fazenda Santa Cruz, dos padres jesuítas, próxima à cidade do Rio de Janeiro. As autoridades da capitania almejavam ter uma via terrestre para transportar o ouro produzido em Goiás e Mato Grosso, passando por São Paulo, para assim evitar os perigos do mar e dos piratas, bem como realizar o transporte, evitar os extravios do ouro e facilitar as comunicações entre as duas capitanias. A ordem para o início da construção é de 28 de fevereiro de 1725, mas o caminho só foi concluído em 1778. A partir de então teve início a ocupação de área até então inexplorada. Surgiram novos povoados, vilas e cidades com suas respectivas igrejas, e seus santos padroeiros. Compunham esse cenário, além da capela de N. S. da Piedade, as do Sr. Bom Jesus, em Cachoeira Paulista, N. S. da Conceição, em Silveiras, Sant’Ana, em Areias, São José, em São José do Barreiro, e Sr. Bom Jesus, em Bananal. Além destas, localizadas ao longo do trajeto do Caminho Novo da Piedade, existiam as que se erigiram no seu entorno, como a de S. João Batista, em Queluz, e a de Sant’Ana em Piraí. Com a sua inauguração teve início o desbravamento e o povoamento da região pe21
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los colonizadores, que hoje compõe a maior parte do território da Diocese de Lorena. O Caminho Novo serviu, no entanto, em muitas oportunidades, para o transporte do gado e inúmeras mercadorias enviadas para o abastecimento da cidade do Rio de Janeiro, mas sobretudo preencheu nova e importante função: a do transporte do café. A sua utilização permitiu que durante o século XIX a região se tornasse a pioneira na produção de café no país, o que trouxe riqueza, prosperidade e importância política manifestada na manutenção do Império e no Movimento Liberal de 1842, a cuja frente estava o clero de tendência liberal da região de Lorena. Nas últimas décadas do século, houve a decadência da lavoura cafeeira, originando “as cidades mortas” caracterizada nas obras do escritor Monteiro Lobato. Um novo caminho chegou anunciando a modernidade. Era o da estrada de ferro, inaugurada em 1877. A região ficou, a partir daí, subdividida entre as paróquias servidas por esse meio moderno e rápido de transporte e comunicação e as que ficaram à margem dos seus trilhos, e nascia a primeira cidade moderna deste território: a cidade de Cruzeiro. Se, por um lado, foram incontáveis os prejuízos por parte dos municípios não atendidos desde então pela ferrovia, por outro lado estimulou a manutenção dos valores tradicionais manifestados em suas festas religiosas e profanas. No século XX surgiram novos caminhos: os das estradas de rodagem. Inicialmente, a rodovia Washington Luiz, inaugurada no ano de 1928, e, posteriormente a Rodovia Presidente Dutra, no ano de 1950. É, portanto, com razão, que a sua sede, a cidade de Lorena, é conhecida como “entroncamento de caminhos”.
O território consagrado Como ponto de travessia para as Minas Gerais, o local onde se erguera a capela da Piedade tornou-se muito movimentado. Logo se tornou o primeiro centro de peregrinação religiosa da região valeparaibana. Seus moradores e os viajantes que por ali aportavam desenvolveram a devoção mariana. Esta ganhou tal importância que, em 1714, Frei Agostinho de Santa Maria, em sua famosa obra “Santuário Mariano”, apresentou um título referente à “Milagrosa Imagem de Nossa Senhora da Piedade”. Graças à constante presença e às orações de peregrinos, da grande devoção à santa manifestada nas festas da padroeira, em 1746, o Papa Bento XIV concedeu indulgência plenária e mercês especiais aos seus devotos. A indulgência, considerada pela Igreja como remissão diante de Deus da pena temporal devida pelos pecados já perdoados, foi plenária, ou seja, liberava o fiel totalmente da pena devida pelos pecados: “no dia de Nossa Senhora da Piedade há nesta freguesia indulgência plenária de todos os pecados que concedeu o Nosso Santo Papa Benedito décimo quarto, aos fiéis, 23
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que verdadeiramente contritos e confessados e refeitos com a Sagrada Comunhão, visitarem a Igreja aos quinze de agosto, desde as primeiras vésperas até o acaso do sol do dia seguinte, rogando devotamente a Deus pela paz e concórdia dos príncipes cristãos, extirpação das heresias e a exaltação da Santa Madre Igreja, cuja graça concedeu por dez anos e foi o breve aprovado pelo ordinário e publicado nesta Igreja aos vinte e nove dias dos Mez de Maio de mil setecentos e quarenta e seis anos.” (Livro Tombo de Lorena, n. 1, 1747, p. 20-1) No ano de 1797 as indulgências plenárias passaram a ser concedidas aos paroquianos por três vezes ao ano: nos dias da Festa da Padroeira, no Dia de todos os Santos e no dia do Espírito Santo.
O caminho, o altar e o sagrado O templo dedicado a N. S. da Piedade constituía, por assim dizer, numa abertura para o alto, para a comunicação com o mundo de Deus e dos Santos. Nele se destaca o altar como elemento central das orações e rituais. O altar se reveste de importância na história dos homens, portador que é de um significado especial: o de conduzir os pensamentos do homem a Deus. Um altar visível num lugar que se reveste do sagrado. Daí a importância que sempre foi dada à capela de N. S. da Piedade, suas transformações ao longo do tempo e os cuidados tomados na construção e reconstrução do espaço sagrado. A partir da capela, tomada como centro das realizações litúrgicas, o sagrado passa a se manifestar no seu interior e se estende quando o altar é transportado para além do templo, em espaço aberto para o alto, em comunicação com o mundo divino. A presença do Rio Paraíba à frente da capela, até o início do século XX, tendo ao fundo as formosas escarpas da Serra da Mantiqueira, permitiu formar o cenário propício para dar sentido e vigor às celebrações e à sagração do espaço. Nesse contexto, o símbolo que se reveste de maior importância é o da imagem da Padroeira. As experiências se dão em tempo sagrado. Tempo de oração, de penitência e de devoção que se expressam não só na Festa da Padroeira, mas em outros momentos santificados, como na procissão do “Senhor Morto”, na Sexta-feira da Paixão, na procissão de Corpus Christi, na festa do Divino Espírito Santo e em outras celebrações religiosas programadas pela Igreja local. Ao espaço percorrido pelas procissões é atribuída pelos devotos e participantes a significação plena de um espaço sagrado em oposição a todo o resto. O altar, parte indissociável da história dos moradores de Lorena, é transportado para fora do templo e forma o altar invisível: o “quadrilátero sagrado”. O “quadrilátero sagrado” se refere ao espaço consagrado pela população de Lorena ao longo de mais de três séculos. Tem como origem a realização da “Festa da Padroeira”, 24
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tradicionalmente no dia 15 de agosto, um repositório de expressões de fé, devoção, costumes e tradições atualizadas num conjunto de práticas concretas e visíveis que permitem o acesso ao sagrado. Tendo como ponto alto de manifestação religiosa a novena, as missas e a procissão que, ao passar pelas ruas e praças do centro da cidade, foi desenhando no inconsciente coletivo o “quadrilátero sagrado”. Fato tão significativo, que se tornou usual por parte dos moradores dos bairros, mesmo aos que residem nas ruas mais próximas da Catedral, dizerem ao sair de suas casas “vou à cidade!” A cidade corresponde exatamente ao espaço contido entre as ruas por onde passa a procissão de 15 de agosto. As virtudes da população simples de Lorena e de sua Diocese continuam se manifestando de forma significativa. Hoje, parte da Diocese compõe o Roteiro Turístico Religioso junto com o Santuário Nacional de Aparecida: Santuário de Frei Galvão, em Guaratinguetá, Santuário de São Benedito, em Lorena, Santuário do Pai da Misericórdia, junto à Canção Nova, e o Santuário de Santa Cabeça, no município de Cachoeira Paulista. Eles mantêm a tradição do território de fé e de devoção, centro de referência internacional, que se renova continuadamente ao receber milhares e milhares de peregrinos todos os meses.
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O Bispado Com a criação da Diocese de Lorena, o território e o conjunto de seus habitantes católicos passaram para a autoridade de um bispo. Ao longo dos 80 anos de sua existência contou com a presença e atuação de nove bispos que deixaram a marca de sua administração eclesiástica, contribuindo cada um no seu tempo e de seu modo particular com a organização e diretrizes seguras na continuidade da obra da Igreja, na orientação e condução do povo cristão. O primeiro bispo da Diocese de Lorena foi Dom Francisco Borja do Amaral (18981989). Paulista nascido em Campinas foi nomeado em 24 dezembro de 1940 pelo Papa Pio XI para o cargo, escolhendo como lema “Gloria Deo pax hominibus”. Sua sagração ocorreu no dia 16 de fevereiro de 1941, e logo após, no dia 23 de março do mesmo ano, tomou posse solenemente, com pompa e festa pelo acontecimento inédito na Catedral de Nossa Senhora da Piedade. Permaneceu à frente da diocese até o ano de 1944, quando foi transferido para a Diocese de Taubaté. Durante seu episcopado teve o trabalho de organizar a nova diocese, a cúria e o patrimônio deixado pelo Conde José Vicente de Azevedo. Cuidou de organizar as associações religiosas e promover as obras assistenciais. Sua ação mais abrangente se fez sentir com a fundação da Ação Católica e a promoção de um Congresso Eucarístico estimulando os fiéis à devoção eucarística. Dom Luiz Gonzaga Peluso (1907-1993), paulista de Bragança Paulista, foi nomeado como segundo bispo de Lorena pelo Papa Pio XII, no ano de 1946. Recebeu a ordenação episcopal no dia 16 de agosto do mesmo ano, adotando o lema “Ipse firmitas mea” (Ele é a minha firmeza). O seu bispado foi mais duradouro. Foi bispo de Lorena durante 13 anos, só deixando o cargo no ano de 1959 para se tornar o primeiro bispo de Cachoeiro do Itapemirim. À frente da Diocese de Lorena cuidou com atenção e dedicação de seu rebanho e construiu o atual edifício Dom Luiz Gonzaga Peluso. Para suceder a Dom Luiz Peluso foi nomeado pelo Papa João XXIII o terceiro bispo de Lorena: Dom José Melhado de Campos (1909 - 1996). Paulista de Limeira, recebeu a Sagração Episcopal na Catedral de Botucatu no dia 17 de julho de 1960, escolhendo o lema “Cum Matre Iesu”, “Com a Mãe de Jesus”. Sua posse em Lorena ocorreu no dia 18 de setembro de 1960, com chegada festiva na entrada da cidade, de onde seguiu em cortejo, com carro aberto, até a Igreja de São Benedito, até chegar à Catedral de Nossa Senhora da Piedade, onde ocorreu a solenidade da posse. Dom José Melhado de Campos era um homem muito culto, dedicado às letras. Em 27
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Lorena fundou em 1961 o jornal “Correio Diocesano”, no qual divulgava suas cartas pastorais que, posteriormente, transformou em uma coletânea chamada “Memórias da Diocese de Lorena (1988). Durante o seu bispado participou das três primeiras sessões do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). No dia 22 de fevereiro de 1965, nomeado pelo Papa Paulo VI para Bispo Coadjutor de Sorocaba, deixa, após cinco anos, a Diocese de Lorena. O seu sucessor, o quarto bispo da Diocese de Lorena, chegou trazendo as novidades surgidas com o Concílio Vaticano II. No ano de 1966 o Papa Paulo VI nomeou Dom Cândido Padim (1915- 2008) como bispo de Lorena. Paulista de São Carlos, antes de vir para Lorena foi um dos fundadores da Juventude Universitária Católica no Brasil. Participou do Concílio Vaticano II. Entre 1962 e 1965 foi bispo auxiliar de Dom Jaime Câmara, no Rio de Janeiro, onde foi assistente nacional da Ação Católica brasileira. No ano de 1966 foi nomeado bispo diocesano de Lorena, onde permaneceu por quatro anos, até ser nomeado bispo de Bauru. Durante esse período trabalhou no setor de Comunicação Social e de Educação da CNBB, participou da CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano), quando presidiu o Departamento de Educação. Em Lorena participou ativamente das atividades do projeto de reestruturação pela qual passava a Faculdade Salesiana, onde era professor e a todos “iluminava com seu saber”. Em Lorena, fundou, juntamente com alguns lorenenses, o “S.O.S”, entidade social que tem como objetivo auxiliar os mais necessitados. Em suas visitas pastorais pelas paróquias da Diocese surpreendia a todos pela simplicidade e por trazer acima da sua indumentária singela, em seu peito, apenas uma pequena cruz de madeira. Era o sinal de novos tempos para a Igreja. Para suceder a D. Padim, em 8 de novembro de 1971, o Papa Paulo VI nomeou Dom Antônio Afonso de Miranda (1920/...) como Bispo de Lorena. Mineiro de Cipotânea, passou a ser o quinto. bispo na ordem da sucessão e exerceu seu episcopado de 1972 até 1977, ano em que foi nomeado Coadjutor, com direito à sucessão, e Administrador Apostólico da Diocese da Campanha, MG. Em 1981 foi nomeado Bispo Diocesano de Taubaté. Atualmente, D. Antônio reside em Taubaté, como Bispo Emérito. Homem carismático e de visão, em 1976 solicitou ao Monsenhor Jonas Abib que fizesse trabalho com os jovens e realizasse um projeto de evangelização por meio da mídia. Desde então nasceu o carisma da nova comunidade católica que estenderia seu projeto pelas paróquias da Diocese de Lorena, pelo Brasil e pelo mundo. Em 2002 lançou um livro intitulado “Nossa Senhora da Piedade: Lorena de Minha Saudade”, uma coletânea de homilias proferidas na Catedral de Lorena, nas Festas da Padroeira, desde o ano em que deixou a Diocese de Lorena, em 1977, até o ano 2000, período 28
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em que era convidado para presidir um dia do solene novenário. Em 20 de julho de 1977 o Papa Paulo VI nomeou aquele que seria, na linha sucessória, o sexto bispo de Lorena: Dom João Hipólito de Morais. (1924 / 2008). Paulista, valeparaibano, nascido na cidade de Queluz, foi o primeiro bispo da Diocese nascido em seu território. Teve toda sua vida dedicada ao pastoreio dos cristãos. Ordenado presbítero em Lorena, em 1951, foi nomeado vigário da Paróquia de São Miguel Arcanjo, em Piquete. No ano seguinte, passou a ser Capelão da Escola Normal Patrocínio de São José, em Lorena, onde atuou como professor de 1953 a 1958. Em 1958 foi nomeado como Cura da Catedral de Lorena, ofício que desempenhou até o ano de 1977. O “Padre João”, sempre muito educado, dedicado, carismático, zeloso na administração da igreja e grande incentivador da Festa da Padroeira, angariou, como vigário, a simpatia, o respeito e a admiração dos fiéis cristãos, assim como de toda a comunidade lorenense. Recebeu vários títulos e honrarias, como o de Cônego e Monsenhor. Foi com muita alegria que os católicos da cidade de Lorena e de toda a Diocese receberam a notícia de sua nomeação como bispo de Lorena. A Ordenação Episcopal ocorreu no dia 27 de setembro 1977, na Catedral de Lorena, escolhendo o Lema “In manus Tuas” (Em tuas mãos). Como Bispo de Lorena, ordenou vários sacerdotes, diáconos permanentes, criou várias paróquias e preparou a Diocese para o grande Jubileu do Ano Santo de 2000. Em janeiro de 2001 o Papa João Paulo II aceitou sua renúncia como Bispo Diocesano, ofício que desempenhou durante 24 anos. Terminava o bispado com a mais longa duração na História da Diocese de Lorena. D. João faleceu a 7 de novembro de 2004. Após sua morte, expressiva homenagem lhe foi prestada pela comunidade Canção Nova, em Cachoeira Paulista, com a denominação do grandioso espaço para eventos com capacidade para 70 mil pessoas com o nome de “Centro de Evangelização Dom João Hipólito de Moraes”. Era um reconhecimento por todo o apoio que Dom João prestou àquela comunidade no início de sua formação. Para ocupar a vaga deixada por D. João foi nomeado, em 10 de janeiro de 2001, o sétimo bispo da diocese: Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues (1941/...). Mineiro de Bias Fortes, tomou posse em Lorena, em 11 de março de 2001, tendo permanecido como bispo até o ano de 2005, quando foi transferido para a Diocese de Sorocaba. Como Bispo de Lorena, promoveu a reforma do prédio da Cúria Diocesana, promoveu uma grande Assembleia Diocesana, com a participação de todas as paróquias da Diocese de Lorena, integrando sacerdotes, lideranças pastorais e leigos. Sucedeu a D. Eduardo, nomeado pelo Papa Bento XVI em 26 de abril de 2006, Dom Benedito Beni (1937/...) para ser o oitavo bispo diocesano de Lorena. Paulista, valeparaibano de Lagoinha, tomou posse solene no dia 18 de junho de 2006. Seu bispado esten29
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deu-se até o dia 25 de setembro de 2013, quando o Papa Francisco aceitou seu pedido de renúncia ao cargo de bispo da Diocese de Lorena, por limite de idade. Foi sempre presente e dedicado ao pastoreio de suas ovelhas. Graças à sua competência e prestígio no meio da Igreja Católica, durante seu episcopado foi membro da Comissão Episcopal Pastoral para a Doutrina da Fé da CNBB, entre os anos de 2007 a 2011. Foi eleito membro delegado pela CNBB e participou da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho e da Conferência de Aparecida, realizada em maio de 2007. Foi nomeado pelo Papa Bento XVI padre sinodal da II Assembleia Especial para a África do Sínodo dos Bispos, em Roma, em outubro de 2009, e também como padre sinodal para a XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, no Vaticano, em outubro de 2012. Entre suas importantes obras e realizações merece destaque a construção do novo Seminário Diocesano “Maria Mãe dos Sacerdotes”, a criação de novas paróquias na Diocese e a construção de Centro de Evangelização, um lugar especial reservado para a formação permanente de leigos, catequistas e líderes de diversas pastorais da Diocese de Lorena. Com a renúncia de D. Beni, o Papa Francisco nomeou, em 25 de setembro de 2013, como nono bispo de Lorena, Dom João Inácio Müller (1960/...). Gaúcho de Santa Clara do Sul, frade franciscano, D. João Inácio foi solenemente
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Os 80 anos da Diocese de Lorena A criação da Diocese de Lorena foi realizada com a clara intenção de melhor atender as comunidades distribuídas pelas diversas paróquias e aproximar fiéis, e, ao mesmo, tempo tornar mais próxima e eficiente a administração eclesiástica. A formação do vasto território eclesiástico administrado pelo bispo passou a reunir as paróquias que o compõem e dão sentido à ação evangelizadora. A Paróquia, entendida como o território cuja população está subordinada eclesiasticamente a um pároco, é o lugar de acolhida, orientação, ajuda espiritual e material, que tem na igreja local o ponto de encontro de seus moradores. O que se percebe é que graças à atuação do bispo, do clero e dos leigos engajados no processo de evangelização, seus objetivos têm sido atingidos, para a satisfação da Igreja e de seus seguidores. A organização diocesana tem sido capaz de garantir unidade dos trabalhos de suas paróquias, harmonia no seu rebanho e possibilitando pontos de encontro permanente para celebrações religiosas, aplicação dos sacramentos e orientações pastorais. As palavras dos leigos que dão continuidade a essa experiência do povo de Deus em seu território atestam os acertos na condução da sua administração e a satisfação com os resultados. Maria Bernadete da Silva Nascimento, leiga engajada no trabalho realizado na paróquia de Cristo Rei, na cidade de Lorena, pode representar o grande número de leigos cada vez mais presentes no trabalho das mais diferentes paróquias da Diocese de Lorena. A partir de sua vivência comunitária consegue expressar, com clareza e profundidade, parte significativa da situação atual. Perguntada sobre o que significava a Diocese, assim se expressou: “É a estrutura organizada da Igreja, que facilita a vida comunitária entre as paróquias entre si. É a experiência rica de se ter um pastor (Bispo) que cuida, que orienta, que direciona seu povo para viver sempre em comunhão e fazer acontecer o Reino de Deus onde esteja cada paróquia, cada comunidade. Temos uma Diocese muito bem organizada e administrada. Sou feliz por pertencer a ela”.
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Referências Fontes Primárias: - Arquivo do Instituto de Estudos Valeparaibanos – Núcleo de Pesquisa Regional do UNISAL-Lorena. - Arquivo da Cúria Diocesana de Lorena. (Livro de 6Tombo da Matriz de Lorena no. 1 e 2) Bibliográficas: - ANTONIL, A. J. Cultura e Opulência do Brasil. Salvador: Livraria Progresso Editora, 1955. - ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. - OTTO, R. O Sagrado. Lisboa: Edições 70, 1992. - PRUDENTE, H.; SANCHES, F.; SODERO TOLEDO, F. Estrada Real: O Caminho do Ouro. Aparecida: Editora Santuário, 2006. - SAINT HILAIRE, A. Segunda Viagem a São Paulo e Quadro Histórico da Província de São Paulo. Col. Biblioteca Histórica Paulista, Vol. VI, 2 ed. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1954. - SODERO TOLEDO, F. Estrada Real: Caminho Novo da Piedade. Campinas,S.P.: Ed. Alínea 2009., - SPIX; MARTIUS. Viagem pelo Brasil. Tomo I. 1817-1820. 2 ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, s/d. - ZALUAR, A. E. Peregrinação pela Província de São Paulo (1860-1861). São Paulo: 1954. Fonte webbliográfica http://diocesedelorena.com
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A evangelização na Igreja de Nossa Senhora da Piedade “O Evangelho não se identifica com nenhuma cultura, mas não pode existir senão inculturado. Toda cultura é capaz de receber e viver, em plenitude, as exigências do Evangelho”.
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Ide e proclamai o Evangelho “O Evangelho chegou às nossas terras em meio a um dramático e desigual encontro de povos e culturas. As ‘sementes do Verbo’ presentes nas culturas autóctones facilitaram a nossos irmãos indígenas encontrar no Evangelho respostas vitais às suas aspirações mais profundas: ‘Cristo era o Salvador que esperavam silenciosamente’”.
A difusão do Evangelho até os confins do universo nasce da própria natureza da Igreja fundada por Cristo. Ele a institui para continuar a missão que O trouxe à Terra. Ao regressar ao seio do Pai, após a ressurreição, determinou aos apóstolos e discípulos: “Ide por todo o mundo e proclamai o Evangelho a toda criatura”. O Brasil nasceu sob o símbolo da cruz. Quando a armada portuguesa estava para partir de Lisboa, em 8 de março de 1500, o bispo Diogo Ortiz benzeu a bandeira da Ordem de Cristo, instituição militar e religiosa que financiou a expansão marítima portuguesa. No sermão, o bispo de Ceuta salientava o grande zelo do rei Dom Manuel, presente à solenidade, como “dilatar a fé de Cristo”. A bordo da caravela de Pedro Álvares Cabral viajava frei Dom Henrique Soares de Coimbra e oito padres franciscanos. Como era costume da cultura portuguesa, suas expedições viajavam munidas do calendário litúrgico, para que cada acidente geográfico encontrado fosse batizado com nomes religiosos. Assim, esses acidentes passaram a ser chamados Monte Pascoal, Cabo de São Roque, Cabo de Santo Agostinho, Baía de Todos os Santos, Cabo de São Tomé, Ilha de São Vicente, Terra de Santa Cruz, Ilha de Vera Cruz etc. No dia 26 de abril, quatro dias após a chegada ao Brasil, Dom Henrique celebrou a primeira missa em território brasileiro, sendo que a segunda aconteceu em 1º de Maio, para se comemorar a paixão de Cristo. Essa comemoração foi precedida por uma procissão da qual participaram mais de mil portugueses e cerca de cento e cinquenta nativos. A conveniência missionária portuguesa incluía forte dose de religiosidade em “converter” para a fé católica os que não a conheciam. A existência de interesses políticos e econômicos legítimos, conforme a mentalidade da época, não excluía tratar-se de um empreendimento também religioso. A propagação da fé católica no mundo, que surgia com as novas descobertas, era seguramente um dos objetivos dessa viagem de Pedro Álvares Cabral. Um mundo novo surgia, também, como um grande desafio à evangelização. A carta de Pero Vaz de Caminha, datada de 1º de maio de 1500, sugeria ao rei de Portugal que 37
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devesse cuidar da salvação do indígena enviando um clérigo que procedesse ao batismo deles. Ele entusiasmou-se ao ver os índios carregarem a cruz numa procissão, imitando os portugueses durante o ofício religioso, como ajoelharem-se, levantarem as mãos para o alto etc. Segundo Caminha, o peixe já estava na rede, faltando apenas o batismo, e os índios se tornariam “cristãos”. Ele sugeria que os indígenas poderiam ser catequizados por quatro pessoas que ficariam aqui após a partida de retorno da expedição (dois degredados e dois desertores portugueses), enquanto não chegasse tal missionário. A história nos mostra que essas pessoas devem ter feito muito mais do que “catequizar” o povo indígena, pois trinta e cinco anos depois já havia uma pequena comunidade de mamelucos – mestiços de portugueses e índios. Em abundante documentação do século 16, constata-se a outorga dessas terras aos reis da Espanha e Portugal e a expressa obrigação de levar por toda parte a mensagem cristã. Não faltaram, também, as graves advertências dos papas contra abusos previsíveis. Os pontífices severamente tomaram posição contra a escravatura e em favor da proteção aos silvícolas. O direito do “Padroado Régio” e as turbulências por que passou a vida eclesial dificultaram a correção de falhas e de graves abusos. A imensa extensão territorial, com as distâncias daí decorrentes, geravam obstáculos à obrigação da lei. A ganância e outros frutos do pecado tornaram ainda mais difícil a tarefa dos missionários. Apesar desta constatação, houve um saldo altamente positivo. Quando em 2000 se comemoraram os quinhentos anos do descobrimento do Brasil, comemoraram-se, também, cinco séculos de evangelização de nossa pátria. Ao constatar a grandeza do país no seu quinto centenário do descobrimento, reconheceram-se, também, os graves problemas no decorrer desse longo período de nossa história. Entre outros crimes cometidos, os sofrimentos dos mais fracos, especialmente dos índios, negros e pobres. A obra dos homens traz a marca do pecado e, pelos que foram aqui cometidos pediu-se perdão ao Pai de todos nós. Elevou-se uma fervorosa ação de graças por todos: brancos, negros e índios, de crenças e etnias diversas que ajudaram a fazer crescer a nossa pátria que a todos acolhe.
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A catequização em terras paulistas Em 1532, Martim Afonso de Souza deu início ao povoamento oficial das terras brasileiras, tendo fundado São Vicente, no litoral paulista. Ele transpôs a Serra do Mar, em cujos cimos vivia um português misterioso. Era João Ramalho, homem velho e pai de muitos filhos, casado com Bartira, filha do chefe Tibiriça. A presença da estranha personagem no planalto do Piratininga é enigma que os historiadores não conseguiram decifrar. Os homens de Martim Afonso defrontaram-se com ampla planície e, nas proximidades do ribeirão Tamanduateí, que a pouca distância deságua no Tietê, encontraram os aldeamentos de Tibiriça e de Caiubi, seu irmão. Serviu de intérprete João Ramalho. Os graves rostos impregnados por muitas luas, as cabeças coroadas de penas multicores, as mãos apoiadas no arco, Tibiriçá e Caiubi atentamente escutavam. Rodeavam-nos os guerreiros Guaianazes, que, surpresos, contemplavam as faces brancas dos guerreiros que vieram do mar. Ouviram Martim Afonso e Pero Lopes. Ora na língua Tupi, ora no idioma da pátria distante, João Ramalho traduzia. Os capitães portugueses anunciavam aos filhos da selva um Deus desconhecido, um Deus que se fez homem para provar com os homens o gosto amargo da morte. E que, derramando o Seu sangue, uniu por Ele o sangue de todas as raças. Os velhos morubixabas respondiam – que sejam bem-vindos os mensageiros de tão bondoso Senhor nas tabas de Piratininga, na terra de Pindorama! E assim nasceu o povoado luso-tupi de Santo André da Borda do Campo. Na continuidade da obra expansionista dos monarcas lusitanos, Dom João III impulsionou a maravilhosa lavoura das almas. Os padres da Companhia de Jesus foram poderosos instrumentos de Cristo. Chegaram com o primeiro Governador Geral, Tomé de Souza, em 1549. Alguns anos depois, em 1553, os padres da Companhia de Jesus escalaram as escarpas ásperas da Serra do Mar atingindo os campos das hospitaleiras tribos do planalto e iniciaram um trabalho de evangelização. Na data comemorativa da conversão do Apóstolo dos Gentios, inaugura-se, em 25 de janeiro de 1554, o Colégio de São Paulo. O cruzamento das duas raças, já iniciado com João Ramalho, prosseguiu sob as bênçãos da Igreja, assentando os alicerces da família cristã no Novo Mundo. Não foi fácil para os jesuítas a fundação de São Paulo do Piratininga. Nos limites do planalto estava Santo André da Borda do Campo, a vila fundada por Martim Afonso de Souza. A rivalidade entre os dois núcleos logo se manifestou. Os padres da Companhia de Jesus haviam escolhido o local mais apropriado à segurança e ao progresso da futura Vila de São Paulo: o alto de uma colina. 41
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O Padre Manoel da Nóbrega, em carta de 1554, afirma: “Vai se fazendo uma formosa povoação”. Na verdade, o número de índios batizados era avultado. No Colégio, Anchieta trabalhava infatigavelmente ensinando e aprendendo, pois se tornava conhecedor proficiente da língua Tupi, para a qual traduzia o catecismo e as orações. Levava, assim, o Cristo às almas; e as almas, iluminadas pelo Evangelho, vinham para a lusitanidade e para a civilização. Anchieta era missionário de gênio. Em vez de destruir os costumes indígenas, aproveitava-se deles, tornando-os instrumentos de cristianização. Compreendia, desde logo, por exemplo, que a dança dos Tupis constituía uma forma de expressão de seus sentimentos. O padre José de Anchieta compunha em Tupi os versos de caráter religioso e cristão para as músicas e danças selvagens. Alguns anos mais tarde, em Piratininga, Fernão Cardim (“Tratados da Terra e da Gente do Brasil”) veria dançarem o cateretê nas festas de São Gonçalo, de Santa Cruz, do Espírito Santo, de São João e de Nossa Senhora da Conceição, acompanhando os movimentos coreográficos a música da selva e os versos em Tupi do poeta da Beata Virgine. E veria, mesmo, uma procissão “com uma dança de homens de espada e outra de meninos da escola; todos iam dizendo seus ditos às Santas Relíquias”. À hora do Angelus, quando a voz do sino ecoava lentamente no Planalto, os índios saudavam Nossa Senhora dizendo: O’ Virgem Maria Tupan ci etê, aba pe ara porá oicó endê iabê... O que significa: “Oh, Virgem Maria Mãe de Deus verdadeiro os homens deste mundo sentem-se tão contentes convosco... Anchieta, intuitivamente, inculturava1. José de Anchieta nos ensinou que o Evangelho, ao ser anunciado, deve ser inculturado, levando em conta a cultura das pessoas a que se destina. O chamado “Apóstolo do Brasil” é considerado modelo de evangelizador e missionário. Canonizado pelo Papa Francisco no dia 3 de abril de 2014. 1 Inculturação é uma palavra relativamente recente e, talvez, difícil; mas a verdade é que já se impõe no vocabulário teológico e refere-se a uma realidade bem comum e sempre vivida na história da Igreja: a relação da fé com a(s) cultura(s), num diálogo de enriquecimento recíproco – razão pela qual a Igreja, na sua missão ad gentes, há de receber das culturas tudo o que concorra para a edificação da vida cristã, mas tratará também de propor o Evangelho como fator purificador de toda e qualquer cultura. Estamos, assim, diante de uma “troca nos dois sentidos, do Evangelho relativamente à cultura e da cultura para o Evangelho” (P. Chanson, Inculturation, in Dictionnaire Oecuménique de Missiologie) 42
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Evangelho chega ao Vale do Paraíba
A presença da Igreja Católica no Vale do Paraíba confunde-se com a história político -econômica, social e cultural da região. O Vale do Paraíba sempre foi uma região de passagem, que teve suas terras devassadas em meados do século 16, quando paulistas da Vila de São Paulo do Piratininga iniciaram uma “guerra de conquistas”, adentrando os sertões do rio Paraíba e preando índios para trabalhar nas lavouras de São Vicente e de São Paulo. Durante o último quartel do quinhentismo, João Ramalho, Jerônimo Leitão e outros sertanistas organizaram diversas “entradas” em direção à região valeparaibana, submetendo e escravizando as populações indígenas das margens do Paraíba. Estimulados pela Câmara Municipal de São Paulo e atendendo aos interesses da Coroa Portuguesa, outras “entradas” começaram a percorrer as trilhas e os caminhos ao longo do Paraíba em busca de metais. Dentre as entradas mais famosas do final do século 16 e início do 17, destacam-se as de Brás Cubas, João Pereira de Souza Botafogo, André de Leão, Martim Corrêa de Sá e outras. A partir de 1620, a Condessa de Vimieiro, Mariana de Souza Guerra, herdeira da capitania de São Vicente, preocupada com as frequentes invasões e usurpações praticadas em suas terras, iniciou o povoamento oficial da região valeparaibana. Outorgou, então, terras de sesmarias a Jacques Felix e seus filhos na região compreendida entre Taubaté e Pindamonhangaba. Jacques Felix desbravou os “sertões de Taubaté” fundando a Vila de São Francisco das Chagas de Taubaté, em 1645, primeiro núcleo de povoamento da região valeparaibana. Taubaté tornou-se o centro irradiador de desbravamento e povoamento dos sertões valeparaibanos, cujas terras férteis, aguada e clima favoreceram e estimularam os sertanistas e povoadores a abrirem suas roças. Cultivam milho, feijão, mandioca, açúcar, trigo, arroz e algodão e iniciam a criação de gado vacum e de porcos. As últimas tribos indígenas foram reduzidas e seus membros escravizados pelos sertanistas e povoadores. Em 1646, Jacques Felix concedeu ao capitão Domingos Luiz Leme, morador na Vila de São Paulo, grande sesmaria no “Sertão de Guaratinguetá”, dando origem a uma povoação elevada à categoria de Vila, em 1651. Na sequência, outras povoações foram se sucedendo. Isolados em suas roças e sítios à beira dos caminhos que levavam aos portos do litoral ou às margens dos ribeirões que banhavam as sesmarias, os povoadores desenvolveram, nas primeiras décadas do povoamento, uma economia de subsistência cultivando uma parcela mínima das terras recebidas, obtendo o suficiente para o sustento da família. A mão de obra era indígena, escassa e sem grandes possibilidades de utilização mais racional. 44
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No último quartel do século 17, os taubateanos, atravessando o Paraíba na região de Guaypacaré e adentrando a Garganta do Embaú, atingiram o planalto mineiro em busca de ouro e outros metais. Em 1693, o taubateano Antônio Rodrigues Arzão, na região de Caetés, descobriu as primeiras lavras de ouro, dando início ao ciclo do ouro. Tinha com o ponto de irradiação a Vila de Taubaté, secundada pela Vila de Guaratinguetá. A notícia da descoberta de sucessivas minas de ouro atraiu para a região milhares de aventureiros, não apenas da capitania de São Paulo, como de outras. A região de Guaypacaré, até então fronteira do sertão por sua posição estratégica de entroncamento de caminhos entre São Paulo e Rio de Janeiro e as áreas de mineração, tornou-se parada forçada de aventureiros. Era o ponto onde se dava a travessia do Paraíba. Seu porto, cada vez mais movimentado, levou Manoel Branco, administrador geral das minas de São Paulo, a pedir pessoalmente ao rei Afonso VI, em meados do século 17, uma data de terras para explorar a travessia do rio Paraíba, em Guaypacaré. Apesar de ter seu pedido atendido, faleceu quando retornou a São Paulo, não usufruindo da graça real. Mais tarde, em 1702, Artur de Sá e Menezes, governador da capitania do Rio de Janeiro, concedeu a um morador da Vila de Santo Antônio de Guaratinguetá o contrato da passagem de Guaypacaré. João de Castilho Tinoco foi autorizado a cobrar dois vinténs por pessoa ou carga que cruzasse o rio. Entre os primeiros moradores da região de Guaypacaré estava Bento Rodrigues, um dos bandeirantes que descobriram ouro em território mineiro, o qual se instalou, com sua família – de mais de 100 pessoas – próximo à travessia do rio, provavelmente nos últimos anos do século 17. As roças de Bento Rodrigues, como eram chamadas, poderiam ser consideradas como o embrião de Lorena. Uma capela sob a invocação de Nossa Senhora da Piedade foi erigida junto ao porto fluvial, cujo patrimônio foi constituído pela doação de duzentos mil réis por Bento Rodrigues, João de Almeida Pedroso, Pedro da Costa Colaço e Domingos Machado Jacome. A capela, filial da matriz da Vila Santo Antônio de Guaratinguetá, foi levantada próximo ao porto para que também os viajantes pudessem orar antes de partir para a transposição da Mantiqueira, em direção à região das minas, ou, voltando de lá, preparar o espírito para a dura jornada rumo a São Paulo ou ao litoral. O porto do Guaypacaré era movimentado, face ao crescente número de forasteiros que ali arranchavam para encetar viagem às minas recém-descobertas. O arraial, por essa época, era habitado por mamelucos, índios e portugueses. A capela tornou-se o ponto central do lugarejo. Acolhia tanto brancos, como mestiços, índios e negros.
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A presença do elemento servil na Freguesia de Nossa Senhora da Piedade Ainda hoje, a região que abarca a Diocese de Lorena guarda lembranças vivas de sua grandeza no período colonial e no Império. Aí estão suas ruas com nomes de condes, barões, comendadores e outros titulados; as memórias e as histórias das famílias, cuidadosamente preservadas; sobrados e casarões, igrejas centenárias e, na zona rural, sedes de antigas fazendas. São marcos materiais e simbólicos transformados em monumentos que se lançam no tempo. Toda essa sociedade, da qual os lorenenses se orgulham, foi formada por mãos escravas. A pujança dessa sociedade foi construída com sangue, suor e lágrimas do elemento servil: primeiro, os índios; depois os negros. Os índios foram preados como bichos por todo o Vale do Paraíba e escravizados para trabalhar, nos primeiros tempos da colonização, nas lavouras de São Vicente, nas de São Paulo de Piratininga, ou levados aos milhares para os engenhos de cana-de-açúcar no Nordeste. Foi graças a eles, conhecidos como “negros da terra”, que os sertanistas puderam se embrenhar sertão a fora em busca de riquezas minerais. Usados como mulas, transportavam nas costas as tralhas dos bandeirantes paulistas, cruzando rios e transpondo serras. Ao longo do século 17, as atividades econômicas da região de São Paulo assentavam-se numa ampla e sólida base de escravos índios aprisionados nas frequentes expedições dos paulistas aos sertões. Aos poucos, a aquisição da mão de obra indígena através do apresamento tornou-se crescentemente difícil, pois as expedições passaram a enfrentar sertões pouco conhecidos, distâncias maiores e maior resistência indígena. O declínio na rentabilidade dessas expedições provocou uma séria crise na economia paulista. O território da Freguesia da Piedade era habitado pelos Puris. Rechaçados cada vez mais para lugares inóspitos, como os grotões das serras, foram, a partir da segunda metade do século 18, caçados implacavelmente pelos hepacareanos. Desejando o governo da capitania de São Paulo formar uma aldeia com os Puris para “civilizá-los, doutriná-los na fé cristã e vesti-los com os panos da honestidade”, expediu, em 2 de maio de 1771, instruções dirigidas ao Capitão de Ordenanças da Piedade: “... Façam vosmecês novas entradas, levando línguas e a índia velha fazendo-lhe todos os mimos, que puderem, para efeito de ela persuadir a todos os índios do seu povo, para que desçam e de todos haverem de formar uma, ou duas aldeias, com seu superior, ou pároco...”. Assim foram atraídos para convívio civilizado dos brancos numerosos indígenas, designados, eufemisticamente, como “administrados”, mas que, de fato, eram servos dos 46
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conquistadores. Arrancados do seu habitat, submetidos às estritas normas de trabalho e de conduta dos invasores, esses aborígenes, desajustados, não encontravam condições favoráveis para a sobrevivência. Perdiam o gosto pela vida, tornavam-se apáticos e, em grande parte, definhavam até que a morte os libertasse. Em janeiro de 1798, o governador da capitania de São Paulo, general Melo Castro e Mendonça, incumbiu Domingos Gonçalves Leal, capitão da Vila de Lorena, de conquistar os Puris, que se encontravam “em seis léguas de matas sobre duas de largo”, situadas entre o Paraíba e a Mantiqueira. Foram feitas várias entradas e foram aprisionados oitenta e seis índios para serem aldeados. Para catequizá-los, foi convidado o padre Francisco das Chagas Lima e, para diretor da aldeia, Januário Nunes da Silva. Foi dado a esta aldeia o nome de São João de Queluz. Foram demarcadas ruas e praças e levantada uma igreja. Construíram-se casas para o pároco e para os índios. A aldeia foi efetivamente fundada e os indígenas – os últimos do Vale do Paraíba – foram compelidos a nela residir, embora em menos de três décadas só existisse deles a lembrança. Era o fim melancólico do primitivo habitante das terras do Guaypacaré, que foram exterminados pelo ruinoso contato com os brancos civilizados. Com a falta de mão de obra indígena e a necessidade de escravos para a lavoura, à primeira vista, uma solução seria a substituição do índio por escravos africanos. Aos poucos, sua presença tornou-se frequente 47
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entre os mais abastados. Os cativos negros eram, então, claramente diferenciados dos índios, como “gentio da Guiné”, “peças de Angola” ou, mais frequentemente, “tapanhunos” – termo tupi designativo de escravo negro. A partir do último quartel do século 17 e, sobretudo, após 1700, é que escravos africanos começaram a transformar os tijupares em senzalas. No final dos setecentos, na Freguesia da Piedade, o negro passou a ocupar-se na plantação de cana e a trabalhar em engenhos. Eram caros e estavam restritos a poucos proprietários. Com a introdução da cultura do café na passagem do século 18 para o 19, a região se transformou. De maneira incipiente, a produção foi crescendo e provocou profunda transformação socioeconômica. Elevada à condição de Vila, em 1788, Lorena se beneficiou da expansão dessa lavoura atraindo novos moradores. Em poucos anos, a produção de café cresceu vertiginosamente, passando a ser a principal atividade na região. O meio urbano assumiu certa relevância como indicador da prosperidade econômica alcan-
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çada. As grandes fortunas acumuladas e os títulos nobiliárquicos também constituíram sinais do momento áureo vivido na região. Isso não encobriu o elevado grau de excludência dessa sociedade, na qual grande parte da população era cativa. A mão de obra escrava que plantou café por todo o Vale fez a fortuna de seus senhores e construiu um império – o do café. No entanto, tanto o escravo índio como o negro não aparecem na história oficial. Não existem seus nomes em praças ou monumentos. O contraste entre as memórias dos senhores e a dos escravizados é uma pálida sombra da situação de assimetria, desigualdade, exploração, violência, opressão e, sempre, de resistência que marcou as relações e os conflitos entre senhores e escravos ao longo de mais de três séculos. Rever nossa história, principalmente a dos excluídos, faz-se necessária para caminharmos em direção a uma sociedade justa e igualitária.
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Um catolicismo com marcada participação dos leigos A presença do mameluco permeia toda a história da constituição da capitania de São Vicente. Eles faziam a ponte entre a cultura dos índios e a dos brancos. Para os portugueses, eles eram os “línguas da terra”, intérpretes e guias para entrada na mata devido aos profundos conhecimentos sobre o sertão: a geografia, os moradores indígenas e os recursos naturais. Foram os mamelucos um dos primeiros a se fixar na margem esquerda do Paraíba, junto ao porto de Guaypacaré. Os indígenas, verdadeiros donos da terra, já haviam sido escravizados e os poucos remanescentes afastavam-se cada vez mais para regiões inóspitas. No entanto, os índios fazem parte da raiz da identidade piedadense, junto aos africanos trazidos escravizados para a lavoura de cana-de-açúcar e, mais tarde, para a de café. São esses os elementos constitutivos do homem valeparaibano. A mestiçagem predominou na freguesia da Piedade nos seus primeiros tempos. A semente do Evangelho chegou para todos e encontrou solo fértil. O trabalho contínuo e abnegado de religiosos e leigos ao longo de mais de três séculos concorreu para que ela germinasse e se espalhasse por todo o fundo do Vale, frutificando em inúmeras paróquias. Esses primeiros habitantes nutriam grande religiosidade. Religiosidade esta, herança portuguesa. Um traço cultural que sofreu ao longo dos anos foi a fusão de três elementos principais: a cultura portuguesa, a cultura indígena e a cultura africana. As relações religiosas entre o português, o indígena e o africano alimentavam a crença e a vivência própria desse povo, que estava afastado de ações políticas e distanciado da Igreja e de seus responsáveis oficiais. Sem a participação direta do clero, muitas vezes ausente da comunidade, o povo manifestava sua religiosidade por meio de danças, festas e mistura de tradições. Para a Igreja sempre houve um constrangimento com a falta do clero, o que não impediu o exercício da piedade popular em diferentes épocas, que se caracterizou pela cultura reinante e pela história concreta. Prova disso está em como, em cada época da História, a Igreja particular e, inclusive, grupos criaram verdadeiras expressões piedosas de cunho popular. Isso é sinal de enraizamento da fé no povo e sua encarnação do cotidiano. A história da Igreja, desde os seus primórdios, foi marcada por forte presença dos cristãos leigos. Constata-se a presença de um catolicismo popular, surgido no amplo quadro do catolicismo tradicional, mas dotado de certa autonomia quanto à dimensão devocional. Essa forma de vivência da fé católica colonial traz como interessante característica o fato de ser administrada “de modo especial pelos leigos, que trazem de Portugal seus santos e práticas devotas, dando continuidade a elas com a tradição familiar”. Nesse tipo de catolicismo, o povo católico leigo se organiza para expressar sua devoção, centrada, principalmente, no culto aos santos, nas procissões, romarias, promessa e ex-votos. As casas, as capelas e os san50
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tuários eram templos desse tipo de catolicismo que uma quadrinha popular assim descreve: “Muito santo, Pouco padre, Muita reza, Pouca missa”. Ao lado desses leigos das camadas populares e, às vezes mesmo confundidos e justapostos, estavam outros leigos do catolicismo tradicional, organizados em irmandaes e confrarias existentes desde o início da Freguesia. Entre elas, estavam as irmandades do Santíssimo Sacramento, a de São Miguel e Almas, a de Nossa Senhora do Rosário Mãe dos Pretos e a Confraria da Padroeira, Nossa Senhora da Piedade, à qual cabia a administração do patrimônio. Tão arraigada era entre os habitantes a devoção à Virgem da Piedade, que, em 1746, o Papa Benedito XIV concedeu à nova e modesta Igreja indulgência plenária e mercês especiais, como se encontra registrado no seu Livro do Tombo. Com o correr dos tempos, algumas dessas irmandades por motivos diversos desapareceram, como a de São Miguel e Almas e a de Nossa Senhora do Rosário Mãe dos Pretos, que se tranformou na irmandade de São Benedito. Somente a confraria de Nossa Senhora da Piedade, graças à devoção perene dos lorenenses, atravessou os séculos e chegou aos nossos dias. Eram as irmandades as responsáveis por organizar as festas de seus patronos. Essas festas eram orientadas para a promoção espiritual e o afervoramento dos fiéis. As festas da padroeira Nossa Senhora da Piedade eram as mais concorridas. Para ela vinham fiéis de lugares distantes. Também o eram as festas de São Benedito, Nossa Senhora do Rosário e do Divino. Contavam sempre com pregação, tríduos, novenas, missões, confissões, missa cantada, comunhão geral, hora de piedade com terço e procissão. Nelas, o aspecto lúdico estava completamente posto de lado. A festa era do espírito. Com o tempo, nessas festas foi ocorrendo a sobreposição do religioso pelo lúdico. O clero sempre buscou equilibrar o sagrado com o profano. A religiosidade popular é a primeira e fundamental forma de inculturação da fé, que se deve deixar orientar continuamente e se guiar pelas indicações da liturgia. As festas religiosas, desde os primeiros tempos, faziam parte da vida dos moradores. Celebravam e solenizavam com devoção à padroeira Nossa Senhora da Piedade. As festas religiosas sempre foram, para o povo, uma ruptura com o cotidiano laborioso e preocupado, a afirmação da sacralidade do tempo, a possibilidade do encontro pessoal e comunitário com Deus e os santos, uma antecipação gozosa do reino de Deus. As festas da padroeira foram sempre celebradas com grande fervor e entusiasmo. A religiosidade popular é considerada como inculturação ou enraizamento da religião na cultura local. A religião popular tem fundamento histórico católico, com forte referência indígena, com elementos como o messianismo e influências africanas, que acentuam, entre outros elementos, a festividade, a música e o culto aos antepassados. Característica 52
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importante da cultura popular se exterioriza, em grande parte, através das festas religiosas, ocasião para o pagamento de promessas e momentos de lazer, em que se desenvolvem laços de solidariedade entre os paroquianos. A festa religiosa ocorre em determinado momento do calendário da comunidade e se repete periodicamente. Constitui oportunidade para se expressar a capacidade de organização, a criatividade popular, a devoção, o lazer e para se constatar o sincretismo religioso. Nessas festas, a comunidade se revitaliza, se reúne, se encontra e se vê como um todo. O papa Bento XVI, durante a Conferência Geral do Episcopado Latino-americano, em Aparecida, afirma que a cultura, em sua compreensão mais extensa, representa o modo particular com que os homens e os povos cultivam sua relação com a natureza, com seus irmãos, consigo mesmos e com Deus, a fim de conseguir uma existência plenamente humana. Com o Santo Padre, damos graças pelo fato de que a Igreja, “ajudando os fiéis cristãos a viverem sua fé com alegria e coerência”, tem sido, ao longo de sua história neste continente, criadora e animadora de cultura. A fé em Deus tem animado a vida e a cultura dos povos durante mais de cinco séculos: essa realidade foi expressa na arte, na música, na literatura e, sobretudo, nas tradições religiosas e na idiossincrasia de seus gestos, unidos pela mesma história e mesmo credo.
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A devoção mariana A devoção mariana fortaleceu-se na região perante um mundo violento e sem leis dos primeiros anos de colonização. Assim, os moradores se voltavam para a Senhora da Piedade, mãe misericordiosa, vista como auxílio dos aflitos, aliada dos pobres. Núcleo de amor que a todos acolhe. Ela foi o ponto de partida para a evangelização. Nela se concentra a fé popular. Ela é o ponto de união entre o céu e a Terra. A devoção a Ela assumiu conotação libertadora de aliada dos oprimidos, de mãe dos órfãos. Todos os que iam à região das minas e delas voltavam buscavam, aos pés da Senhora da Piedade, misericórdia e proteção. A devoção, levada para a região do garimpo, fez com que se tornasse, também, padroeira de Minas Gerais. Pode-se escrever a história do Brasil descrevendo os diversos significados que a imagem de Nossa Senhora teve ao longo do tempo. A devoção a Maria marcava as épocas do ano e as horas do dia. Em todos os lugares sempre existia uma sua imagem. Até mesmo em navios negreiros estava presente uma imagem da Nossa Senhora do Rosário, ligada à ocupação da África pelos portugueses. Essa devoção, difundida especialmente no Congo, veio para o Brasil com os escravos africanos. São muitas as tradições de devoção mariana no Brasil. Na região do porto de Guaypacaré nasceu, cresceu, fortaleceu-se e espalhou-se a de Nossa Senhora da Piedade, secundada pela de Nossa Senhora do Rosário. A partir de 1717 surge a da Imaculada Conceição, que receberia o título de Aparecida. Encontrada milagrosamente nas águas do rio Paraíba, essa imagem tornou-se icônica. Respeitada e venerada, principalmente pelos mais pobres e oprimidos, índios e negros escravos que com ela se identificavam, Nossa Senhora Aparecida tem sua imagem morena, na cor da imensa maioria do povo. No final do século 19, com a chegada dos filhos de Dom Bosco a Lorena, veio, também, a devoção a Nossa Senhora Auxiliadora. Os salesianos, que desenvolveram grande trabalho de evangelização, espalharam amplamente essa devoção. A presença constante de Maria na cultura brasileira foi reconhecida pelo Papa João Paulo II quando visitou o Santuário de Aparecida, em 1980, e declarou que “o amor e a devoção a Maria são um dos traços característicos da religiosidade do povo brasileiro”. A devoção mariana faz parte da matriz cultural tradicional do catolicismo brasileiro como mensagem poderosa. Chegou ao Brasil com os colonizadores e tornou-se a grande missionária.
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Uma nova evangelização Às margens do Paraíba, junto ao porto do Guaypacaré, edificou-se, em 1705, uma capela sob a invocação de Nossa Senhora da Piedade. Teve início o processo de evangelização nas terras piedadenses. Essa capela tornou-se o centro polarizador dos anseios da população. Os primeiros colonizadores dessas terras, por essa época, tomaram contato com populações indígenas e, mais tarde, com negros escravizados vindos da África. A todos o Evangelho foi apresentado. Caldearam-se raças e culturas. Mantiveram a fé. O zelo missionário dos primeiros religiosos não foi pequeno. Foram muitos os padres que passaram pela igreja da Piedade cumprindo fielmente seu ofício. Era preciso levar o Evangelho a todas as criaturas. Na figura do padre Pedro Vaz Machado, que esteve à frente dessa Igreja desde o início, homenageamos a todos que o seguiram. Numa retrospectiva histórica, ao se avaliar os períodos de formação de nossa Igreja, constata-se que ao lado de muita coragem e virtude houve também graves injustiças que marcaram de lágrimas e sangue a história da colonização. Um exame de consciência dos mais de trezentos anos de história religiosa permite evidenciar a destruição de nações e culturas indígenas e o terrível comércio de africanos reduzidos à escravidão. Ao longo dos tempos, o anúncio da salvação em Jesus Cristo marcou nossa história. Hoje, mais do que nunca, a sociedade carece de nova evangelização. Os meios de comunicação são, para muitos, um dos principais instrumentos de informação e formação disponibilizados para esse serviço. Estão inseridos em nossa realidade de tal forma, que é imprescindível pensar numa sociedade em seus mais diversos segmentos sem o uso dos meios de comunicação. Ao longo da história, a Igreja Católica utilizou diferentes meios para o anúncio do Evangelho. Da tradição oral, presente nos primórdios da evangelização, aos avançados meios de comunicação atuais, a Igreja sempre cumpriu com sua missão de educação na fé. O uso da comunicação, especialmente a da TV, como instrumento de catequese, vem se consolidando nos últimos anos como forma de evangelizar capaz de chegar até aqueles que, por motivos diversos – doenças, dificuldades de transporte, violência etc – não frequentam mais a Igreja. Uma reflexão teológica sobre a comunicação nos mostra que a missão da Igreja só se realiza com a comunicação, ou seja, para cumprir sua missão evangelizadora a Igreja precisa comunicar aos homens tudo o que ela recebeu de Cristo. Nesse sentido, é possível afirmar que nenhum processo ou sistema comunicativo é indiferente ao cristão e à Igreja. Neste ano jubilar de 2017, em que se comemoram os trezentos anos do encontro da imagem de Nossa Senhora Aparecida, comemoram-se, também, os oitenta anos da Diocese de Lorena. Invoquemos a proteção da Mãe de Deus e Mãe da Igreja sobre toda a Diocese. De forma especial, invoquemos Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil, e Nossa Senhora da Piedade, padroeira da Diocese de Lorena. A Ela, pedimos bênçãos. Que a Virgem Maria nos ajude a manter viva a chama da fé, o amor e a concórdia entre todos! 57
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A evangelização na Igreja de N.S. da Piedade
Referências - MONTEIRO, John Manuel Negros da Terra São Paulo: Companhia das Letras, 1994. - REIS, Paulo Pereira dos Lorena nos séculos XVII e XVII São Paulo: Fundação Nacional do Tropeirismo, 1988. - REIS, Paulo Pereira dos O Indígena do Vale do Paraíba São Paulo: Coleção Paulística, Vol. XVI. - EVANGELISTA, José Geraldo Lorena no século XIX São Paulo: Coleção Paulística, Vol. VII. - PASIN, José Luiz Algumas notas para a história do Vale do Paraíba - Desbravamento e Povoamento São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia, Governo do Estado de São Paulo, 1977. - MATTOSO, Kátia M. Q. Ser escravo no Brasil São Paulo: Editora Vozes, 1994. - SALGADO, Plínio Como nasceram as cidades do Brasil São Paulo: Editora Voz do Oeste, 1978. - CATÃO, Olympio Almanak da Comarca de Lorena para 1875 Rio de Janeiro: Tipografia Cinco de Março - GARRAUX A. L. Almanak da Província de São Paulo para 1873 São Paulo - Documento de Aparecida – Texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do Caribe
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MĂstica Popular: Um caminho para Deus
Rodolfo Fenille Ferraz
Mística Popular: um caminho para Deus
Mística Popular: Um caminho para Deus
Com sua eleição para Papa em 2013, já em sua primeira aparição pública na sacada
da Basílica de São Pedro, Francisco chamou a atenção de toda a comunidade cristã ao se curvar e pedir que os fiéis presentes na Praça São Pedro abençoassem o novo Bispo de Roma, que os cardeais, seus irmãos, tinham ido buscar no fim do mundo. Esse gesto, que a muitos pareceu apenas um gesto de humildade – e que, de certa forma, não deixa de ser –, é muito mais teológico do que poderia parecer. É preciso entender esses dois momentos da primeira aparição pública do Papa Francisco em 13 de março de 2013. Primeiro, ele dizendo que os cardeais foram buscá-lo no fim do mundo. Depois, Francisco se curvando para ser abençoado pelo povo para o início da sua missão como Bispo de Roma antes de, já como Bispo, abençoar seu povo. O desenrolar do pontificado de Francisco nos vai fazendo entender cada vez melhor que ele não estava se referindo somente à Argentina, seu país de origem, como o lugar onde os cardeais foram buscá-lo para ser bispo em Roma. A Argentina está, sim, lá em baixo, quase no “fim do mundo”, mas essa frase de Francisco tem caráter pastoral e, sobretudo, existencial. Francisco foi-nos mostrando que bebeu da teologia nascida do Vaticano II, a teologia presente na Lumen Gentium, (documento da Igreja a respeito de si própria) e da teologia que se desenvolveu na América Latina a partir do Concílio, mais especialmente, ainda, da teologia que se desenvolveu na Argentina e se convencionou chamar Teologia do Povo. Já em 1979, Pe. Gustavo Gutierrez, um dos iniciadores da Teologia da Libertação, no seu livro “A força histórica dos pobres” faz menção à Teologia do Povo. Francisco estava nos dizendo que os cardeais foram buscar um bispo para Roma, que vinha da periferia, que vinha do fim do mundo, que não vinha dos grandes centros. Essa atitude, esse pensamento, tem marcado sua pastoral, seu pontificado. Na primeira visita que realizou a uma paróquia de Roma, sua diocese, foi a uma paróquia de periferia. Ao chegar, disse: “É da periferia que se enxerga melhor as coisas, não do centro”. Francisco só pode ser entendido, desde sua primeira aparição pública. a partir da ideia da periferia, do fim do mundo, da Teologia do Povo, da Teologia da Libertação, da teologia do Concílio Vaticano II. É nisso que o gesto de pedir a bênção ao povo vai além de um gesto de humildade. Nessa atitude está, na verdade, profundamente enraizada numa teologia que compreende, a partir do Vaticano II, que a Igreja é, antes e acima de tudo, o povo de Deus. Sabemos que o Concílio de Trento marcou gerações de cristãos católicos com sua pastoral e sua mentalidade apologética, com a motivação e o espírito da Contrarreforma. Em63
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bora as definições realizadas no Concílio de Trento devam ser absorvidas e respeitadas por se tratar de um Concílio da Igreja, que procurou definir com mais clareza a identidade católica frente à mudança que se operava no mundo com a Reforma Protestante, elas não podem ser parâmetro para a pastoral de hoje. O que tivemos a partir de Trento foi uma mentalidade e uma pastoral pouco abertas ao diálogo, à diversidade, à pluralidade. Em Trento nasceu uma Igreja que buscava reforçar sua identidade institucional frente à cisão promovida pelos reformadores. Naquelas circunstâncias, a Igreja sentiu necessidade de se definir mais institucional, canônica e juridicamente do que teologicamente. Isso fez com que gerações de católicos pensassem a Igreja de forma canônico-institucional, como uma sociedade perfeita e uma estrutura hierárquica. A grande contribuição do Concílio Vaticano II foi poder, depois de mais de 400 anos da Reforma Protestante, vivendo num mundo muito mais diverso e plural, abrir a Igreja ao diálogo. Dialogar foi a palavra-chave do Concílio convocado pelo Papa João XXIII. Dialogar com a sociedade, com o mundo, com as outras religiões. A Igreja pôde pensar a respeito de si mesma com menor rigidez, não sendo mais necessário acentuar tanto os aspectos formais. Nascia assim a Lumen Gentium, documento de grande importância, em que a Igreja reflete acerca de si mesma. No segundo capítulo desse belíssimo documento, os bispos afirmam uma verdade que havia sido esquecida por muitos séculos: o Concílio resgatou a importante concepção bíblica e patrística de que a Igreja não é a sua hierarquia, não é a sua dimensão institucional ou jurídica. Antes de tudo, ela é o povo de Deus. Povo que, por iniciativa de Deus, participa da comunhão das pessoas divinas, sendo no tempo e no espaço um sinal permanente de comunhão. A ideia de povo tem a marca do dinamismo de quem caminha. A compreensão da Igreja sobre si mesma não é mais estática, presa a uma ideia rígida e exclusivista de hierarquia. A Igreja se compreendeu como um povo em marcha na História, rumo à plenitude dos tempos. Com essa nova mentalidade, manifestada no Vaticano II, originou-se uma fecunda reflexão teológica mundo a fora. Essa movimentação tomou corpo na América Latina, especialmente com a realização, na Colômbia, em 1968, da Conferência de Medellin, que se mostrou uma tentativa de tradução do Concílio em terras latino-americanas. Os bispos de nosso continente, cientes de que a grande maioria dos padres conciliares havia sido de europeus, sentiram a necessidade de que nossos povos pudessem assimilar as novidades do Concílio, que fossem iluminados por suas luzes. Reunidos na Colômbia, com a presença do Papa Paulo VI, os pastores das comunidades pobres dos nossos países iniciaram os trabalhos para atualizar aqui as proposituras do Vaticano II. Falando de modo encantador aos trabalhadores rurais, aos camponeses que foram participar da missa, Paulo VI disse: “Vocês são o sacramento de Cristo para nós”. Assim o Papa dava o tom do que que viriam a se tornar as conclusões de Medellim. A Igreja, que é o povo de Deus na História, que se encontra presente nas comunidades da América Latina, tem, entre nós, um rosto pobre, trabalha65
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dor, marginalizado, perseguido. As palavras-chaves, portanto, para se viver como Igreja do Povo de Deus na América Latina deveriam ser justiça, paz, promoção humana, dignidade humana, libertação. Das conclusões de Medellin reconhecidas pelo Papa Paulo VI nasce uma teologia genuinamente latino-americana. Sobre essa teologia, o filósofo brasileiro Pe. Henrique de Lima Vaz, um jesuíta, afirmou que, pela primeira vez na América Latina se produzia teologia. Em suas palavras: “A teologia na América Latina estava deixando de ser reflexo e passava a ser fonte”. Não mais iríamos pura e simplesmente reproduzir conteúdo da teologia europeia como um mero reflexo da teologia que lá se fazia e produzia, como se a teologia e a Igreja se identificassem com a Europa e mais especificamente com Roma. Podíamos agora pensar, viver e elaborar uma teologia “fonte”, que nascia da própria realidade da Igreja presente nas comunidades da América Latina. Tudo isso porque, no Concílio Vaticano II, a Igreja teve clareza de que existiam as comunidades particulares, não somente a Igreja universal, mas as Igrejas particulares, e de que a Igreja de Cristo está toda ela presente em cada uma das Dioceses. Não falta nada da Igreja de Cristo às Igrejas locais. Somos Igreja; por isso podemos e devemos também ter uma teologia. A Lumen Gentium, pela primeira vez na História da Igreja, disse que o povo de Deus, por graça do Santo Espírito, possui o sensus fidelium (o sentido da fé). É a obra do Santo Espírito, é dar a cada um dos batizados e à reunião deles como Povo Santo de Deus, o dom do discernimento da fé e da produção teológica. Com o ConcíIio, podemos entender algo importantíssimo: teologia não é a função de uma parte pequena da Igreja. A teologia é uma produção de todo povo de Deus. Somos um povo teologal, porque dotado do Santo Espírito, que é Aquele que nos leva à verdade, conforme dizia Jesus no Evangelho de João. A teologia acadêmica feita pelos teólogos deve, no dizer claríssimo do Pe. Gustavo Gutiérrez ao falar do método da Teologia da Libertação, ser entendida como o ato segundo da produção teológica. A teologia não nasce do teólogo e da profissão acadêmica. A teologia nasce do povo de Deus que é um povo teologal, porque é um povo que possui um Santo Espírito, porque é um povo chamado por Deus, dotado por Ele do senso de fé. Em teologia, o ato primeiro é a vida, a vida do povo, das comunidades, e só depois os teólogos podem refletir, sistematizar e organizar o que nasce e é vivido pelo Povo de Deus em comunhão. Essa teologia claríssima, profunda e evangélica, nascida do Vaticano II, teve grande impacto na América Latina. Na Argentina, em especial, ela se desenvolveu como Teologia do Povo. O padre Lucio Gera, filho de imigrantes italianos como o Papa Francisco, foi um dos grandes pensadores da Teologia do Povo. Participou do Concílio Vaticano II, convidado pelo Bispo de Bueno Aires a acompanhá-lo. Depois foi assessor na conferência de 1968, em Medellin, e assessor na conferência de 1979, em Puebla. O Papa Francisco reconhece tanto a importância do Pe. Lucio Gera como um teólogo que desvelou essa dimensão teologal do 66
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povo, que fez questão, como bispo e cardeal de Bueno Aires, de trazer os restos mortais do Pe. Lucio Gera para enterrá-los na cripta da Catedral da capital Argentina. Naquele momento do Concílio e do pós-Concílio, o Pe. Lucio Gera influenciou a Igreja argentina e, dali, como um ramo da Teologia da Libertação, se produziu a Teologia do Povo. Obviamente que, como em toda teologia, a Teologia do Povo parte do depósito da fé da Igreja, da fé apostólica condensada no credo, do senso de fé do povo de Deus que atravessou gerações mantendo vivas as sementes do Evangelho. Como toda teologia, porém, é contextual, pois dialoga com a sua realidade, com vida. A teologia do Pe. Lucio Gera usava como referencial, além do depósito da fé da Igreja, uma análise antropológica, cultural e sociocultural, e partia dessas análises para entender melhor as inspirações teologais desse povo. Depois de Pe. Lúcio Gera, o grande teólogo, professor do Papa Francisco quando ainda aluno num colégio dos jesuítas, Pe. Juan Carlos Scannone, ainda vivo, levou à frente a reflexão da Teologia Argentina como uma grande contribuição para a Teologia da América Latina, que dava destaque aos aspectos da justiça, da libertação, da promoção humana. A Teologia do Povo ensinou a América Latina e toda a Igreja a perceber o povo como sujeito da sua própria evangelização. Esse conceito marca profundamente a perspectiva teológica e eclesial do Papa Francisco. Isso está fortemente presente em seu magistério como bispo de Roma. O Papa Francisco traduz essa ideia dizendo que o povo possui faro, que o povo de Deus sabe, pelo senso de fé, onde reconhecer a presença ou não de Deus na História, na vida, mas também na própria Igreja. Por conta disso, Francisco fez aquele gesto lindo de pedir ao povo que o abençoasse para o início do seu ministério como bispo de Roma. Quando ainda era bispo na Argentina, sempre fez questão de participar das devoções e expressões populares da fé, coisa que, durante muito tempo, se compreendia e se explicava como crendice ou folclore ou meramente expressão cultural, sem ter o peso que a teologia do Vaticano II, a Teologia da Libertação e a Teologia do Povo descobriram e reconheceram que possuem.
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As expressões da fé do povo tomam formas culturais muito diversas, possuem aspectos antropológicos e sociais variados, mas também são sempre expressões teologais. É necessário, portanto, que os pastores da Igreja saibam reconhecer nas expressões de fé do povo a atuação do próprio Santo Espírito, que dota o povo do senso de fé. Francisco gosta de lembrar à Igreja que antes mesmo dos missionários chegarem, por exemplo – e isso é uma importante tradição da Igreja que ele retoma –, o Espírito de Deus já trabalhava no povo. O Papa gosta de se recordar da missão dos Jesuítas em terras orientais ao dizer que, quando o povo no Oriente ficou sem a presença ministerial dos padres por gerações, ainda assim soube transmitir e manter viva a fé. O povo continuou rezando, se reunindo, sepultando seus mortos com ritos religiosos, batizando suas crianças, casando seus noivos. Quando voltaram, os padres encontraram uma Igreja em plena atividade. É evidente que a Igreja como Povo de Deus continuou a existir mesmo quando ali não mais podia haver a presença do ministério ordenado. A Teologia do Povo nascida pós Vaticano II foi, de certa forma, incorporada no pontificado de Paulo VI, que escreveu, no dizer do Papa Francisco, o mais importante documento da Igreja do século XX que foi a exortação apostólica Evangelii Nuntiandi, de 8 de dezembro de 1975. Ali se pode observar semelhanças com a referida teologia Latino-Americana. O Papa Francisco, ao escrever a exortação apótolica Evangelii Gaudium, indicou que a entende como uma espécie de continuação da Evangelii Nuntiandi, de Paulo VI, cujo pontificado Francisco diz ter sido o maior do século XX e no qual ele se inspira. De fato, por meio do cardeal Eduardo Pironio, que havia sido bispo na Argentina e tomado contato com a teologia autóctone daquela terra, o Papa Paulo VI pode conhecer a Teologia do Povo. Esse cardeal havia pregado um retiro para a Cúria Romana. O testemunho do Cardeal Pironio foi um dos elementos que permitiu ao Papa incluir na Evangelii Nuntiandi uma maneira muito própria da América Latina de se pensar a evangelização. A evangelização, reconhece Paulo VI nesse documento magisterial, passa, em diversos lugares, pela religiosidade popular. A religiosidade popular foi, pela primeira vez e de forma clara, assumida no magistério universal da Igreja no documento Evangelii Nuntiandi por nítida influência do Cardeal Eduardo Pironio, valioso argentino que ousou levar em sua bagagem para Roma a Teologia argentina do Povo. Na América Latina, o próprio povo se evangeliza através dos seus cantos, novenas, terços, procissões, devoções, rezas. Durante muito tempo, todas essas expressões populares da fé foram vistas com certa suspeita. Não era raro se ouvir dizer, com ares de generosidade, que era preciso acompanhar e até purificar as devoções populares. Não é essa, porém, a mentalidade do documento Evangelii Nuntiandi. Não é essa a ideia do Documento de Aparecida, que foi redigido pelo Papa Francisco, à época Cardeal em Bueno Aires e que ficou responsável, juntamente com outros, por dar o corpo ao documento. 70
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Mística Popular: um caminho para Deus
No Documento de Aparecida, aquilo que começou a ser chamado de religiosidade popular foi chamado e reconhecido como mística popular. Na verdade, a devoção popular é uma verdadeira mística, um caminho genuíno de santificação, de evangelização e de comunhão com Deus e com a Igreja. Francisco diz que a devoção popular, a teologia que nasce do povo, pode corrigir o que considera um grande e permanente perigo para a igreja – o Clericalismo, ou seja, a redução da Igreja à sua função hierárquica, não superando a mentalidade que perdurou por gerações entre os católicos, de uma pastoral apologética e clerical vinda da Contrarreforma católica através do Concílio de Trento. Francisco diz que a teologia do povo corrige essa deficiência histórica em nossa mentalidade de ser Igreja. O clericalismo, porém, não faz parte só do clero, mas também do laicato. Francisco afirma que, se é ruim para a Igreja um padre com mentalidade clerical, ainda pior é quando um leigo tem mentalidade clerical. A teologia do povo nos coloca em sintonia de uma maneira muito peculiar – eu diria latino-americana – com a teologia do Vaticano II, que nada mais é do que um resgate da tradição bíblica e patrística de ver a Igreja como o Povo de Deus. Povo de Deus que, como Jesus, se encarna em realidades, tempos, espaços, culturas, etnias diversas. Povo de Deus não é uma categoria genérica, sem rosto, sem dinâmica própria, sem expressão concreta. Tal como em Jesus de Nazaré, o Evangelho se encarna em comunidades vivas, comunidades negras, indígenas, camponesas, urbanas, em realidades autóctones, adquirindo cores, cheiros, expressões, rituais que possuem o jeito característico de cada povo. O pontificado de Francisco tem resgatado a importância do respeito à cultura popular das diversas comunidades cristãs. Para ele, há um perigo gravíssimo: a dominação ideológica das consciências das pessoas individualmente e das comunidades – ao observar isso ele retoma a percepção de Paulo VI. Quando se intenta impor padrão, maneiras, mentalidades ou linguagens que violentem as expressões próprias de um povo, é como se impuséssemos uma Igreja que existisse em um único modelo cultural – o europeu, ou, entre os pentecostais, o norte americano. Nesse modo de pensar, além de negar que o evangelho possa se encarnar em qualquer cultura, há o perigo da manipulação das pessoas e das comunidades ao tentar impor à sua consciência outra maneira de ser e viver. Para Francisco, a preservação da mística, da religiosidade popular, como ensina a teologia da América Latina, é a preservação das riquezas e da diversidade da tradição cristã, bem como da vida e da identidade de cada comunidade. Francisco gosta de nos lembrar o Papa João Paulo II, que dizia que toda pessoa é filha e pai de sua cultura ao mesmo tempo. A cultura é algo vivo que nos chega, que nos é transmitido, na qual somos inseridos e com a qual contribuímos com nosso jeito, com a nossa realidade, com a nossa vida. Isso vale também para a produção teológica. A teologia nasce do povo e com faces diversas é transmitida e está sempre a ser gestada. Isso impede que os povos percam suas raízes, sua história, sua identidade. Assim se fizeram também os textos 73
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da Bíblia, que foram surgindo da vida e das histórias das pessoas, do povo de fé. Essa maneira de olhar a vida das comunidades populares como fonte de produção teológica resgata uma marca peculiar da teologia do Primeiro Testamento. Deus dizia permanentemente a seu povo que não era preciso copiar nem a religião, nem a cultura, nem o jeito de ser de outros povos. Isso seria idolatria, seria desejar trocar a maneira como Deus nos chamou e constituiu para ser povo por outra maneira que não aquela que lhes cabia. Francisco, portanto, chama-nos a olhar a realidade das Igrejas particulares e descobrir nelas suas histórias, suas tradições, sua cultura, suas linguagens, sua religiosidade, sua mística popular para preservar a fé, a identidade, a vida do povo de Deus que é a Igreja plena naquela porção particular do povo de Deus que é a Diocese. A Igreja de Lorena, do Vale do Paraíba, do Brasil, da América Latina, se reconhece naqueles dois gestos de Francisco no ato de sua primeira aparição pública. Somos também, como Francisco da Argentina, de uma igreja do fim do mundo se nos compararmos às Igrejas do norte, como as da Europa e dos Estados Unidos. Como afirma Francisco, porém, é da periferia que se vê melhor, e é preciso que, como povo, saibamos viver nossa maneira própria de ser Igreja, cultivando, resgatando e mantendo nossas tradições, reconhecendo o Evangelho que se faz presente como dom do Santo Espírito em um povo que sabe beber no seu próprio poço.
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O Valeparaibano: algumas notas
Conceição Fenille Molinaro
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O Valeparaibano: algumas notas
Sou Valeparaibano, Dos boiadeiros, dos tropeiros e dos carros de bois, Dos fundadores das mais antigas cidades mineiras, Do saci-pererê, do lobisomem, do boitatá, Da mula-sem-cabeça, do corpo seco. Das danças do jongo, cateretê, das congadas e moçambiques. Da música caipira e dos festivais populares e clássicos.
Benedicto Lourenço Barbosa1 Jornal O Lince. ano 2/ num.23/ nov. 2008
Os Índios “Não digo: eu descobri essa terra porquê meus olhos caíram sobre ela, portanto a possuo. Ela existe desde sempre, antes de mim”.
Davi Yanomami; pajé e líder do povo Yanomami Fonte: www.iande.art.br/textos/pensamentoindigena.htm
Mesmo antes do homem branco, esta terra já existia... Todos nós sabemos que, no Brasil, os seus primeiros habitantes foram os índios; portanto os “donos da terra”. No princípio, o Vale do Paraíba era, em sua grande parte, habitado pelos Puris, que, na língua tupi, significa “gente pequena” ou “povo miúdo” (Léxico Tupi-Português, Di Domenico, Hugo, pág. 846.) Este “povo miúdo” concentrava-se entre as Serras do Mar e da Mantiqueira. Muitos dos Puris que habitavam o Vale do Paraíba se agrupavam na região de Lorena e Garganta do Embaú. Eram, segundo alguns historiadores, indivíduos tranquilos e receptivos. O “homem branco” aportou no Brasil no ano de 1500. Eles logo tomaram posse da terra e dos índios. Sim, dos índios que, a todo custo, tentaram expulsar os brancos das suas terras. Mas que nada... Os portugueses estavam determinados a ocupar essa terra onde as “Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem.” Pero Vaz de Caminha, Carta ao Rei de Portugal, D. Manuel
Até 1530, a ocupação era incipiente. Pouca gente, muita terra, muitos desafios. Então, Dom João III, Rei de Portugal, enviou, em 1531, Martim Afonso de Souza para resolver a questão. Colonizar, defender e explorar a nova terra era necessário. Martim fundou a Vila de São Vicente, no litoral, e a Vila de Piratininga, no planalto. No litoral paulista, os portugueses iniciaram o plantio da cana-de-açúcar. Para “tocar” os engenhos, eles buscaram a mão-de-obra mais próxima e barata: os índios. Mas não só 79
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capturar e escravizar novos índios era o alvo dos portugueses; as riquezas minerais, muito cobiçadas, também estavam na mira dos desbravadores. As expedições de desbravamento ficaram conhecidas como entradas e bandeiras. O Vale do Paraíba foi uma das primeiras regiões a serem exploradas pelos portugueses. A travessia do Rio Paraíba, através do porto de Guaypacaré, e da passagem pela Garganta do Embaú, na Serra da Mantiqueira, foram caminhos utilizados por eles para se chegar ao sertão de Minas Gerais. A travessia do rio e a subida pelas serras eram uma verdadeira epopéia. Paraíba! A cobra grande do vale Rio dos Folguedos Da infância da minha vida Ele trouxe os bandeirantes Dos sertões de Taubaté Para ver terras mais lindas Nas bandas do Guaypacaré. Hugo Di Domenico2 Memórias de Lorena - Tomo II
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Os bandeirantes contribuíram para o surgimento de muitas cidades na região do Vale do Paraíba. E Guaypacaré foi uma delas. “Guaypacaré das eras coloniais. Surgida no roteiro das “bandeiras”. Que escalaram sertões e cordilheiras. A demandar as minas cataguases.”
Trecho do Hino a Lorena Letra: Francisco Ferreira Leite / Música: Pe. Fausto Santa Catarina
A cidade não tinha este nome. Para os índios era Guaypacaré, depois Hepacaré; em seguida, “Freguesia de Nossa Senhora da Piedade” e, por último, Lorena. Já no século dezoito se findava. O Conde de Sarzêdas percorria As terras que, em S. Paulo Governava. Pois quando aqui passou logo se via Que a beleza da terra o impressionava Tal o feliz semblante que trazia E o Conde de Sarzêdas logo ordena. Que esta terra se chame “Lorena”. A. P. Jacobina, Ode a Lorena, Memórias de Lorena, 1940
Em 14 de novembro de 1788 foi elevada a Vila com o nome de Lorena, por decreto do CapitãoGeneral, então Governador de São Paulo, Bernardo José de Lorena, mais tarde Conde de Sarzedas, razão por que foi dado à nova Vila o nome atual. Humberto Ballerini3, Fazendo Parte da História de Lorena.
A sombra é do majestoso templo centenário da Senhora da Piedade, Outrora ali, uma capelinha de sapé; Árvores, pássaros, flores, Aroma de mel, lembranças dos puris... Maria Luiza R. P. Baptista4 Memórias de Lorena - Tomo 4
A presença indígena ainda hoje é uma constante no Vale. Basta, no cotidiano, prestarmos atenção aos nossos modos, aos costumes e às nossas tradições. O legado permanece. Muito da sabedoria desses nossos antepassados foi preservada e ainda nos é transmitida oralmente. E, falando em oralidade... todos nós, brasileiros, acreditamos que falamos a língua portuguesa, não é mesmo? Bem... Nem todos. Existe no Brasil muitas comunidades que têm o seu próprio dialeto. O tupinólogo lorenense, Dr. Hugo Di Domenico, fez, há muito tempo, importante reflexão sobre a língua brasileira: 81
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“Eu sempre achei estranho que o brasileiro, muitas vezes, nasce numa cidade indígena, tem um nome indígena, há muitas ruas na sua cidade com nomes indígenas e não sabe absolutamente nada... Nunca teve nenhum ensinamento na escola a respeito da língua indígena, da verdadeira língua do Brasil – a língua brasílica, aquela que por mais de 200 anos foi a língua falada no nosso território e faz parte da cultura brasileira”. Hugo Di Domenico - médico, escritor e tupinólogo Trecho da entrevista para TV Unimed-Taubaté - 2010. Entrevistador: José Carlos dos Reis.
É isso mesmo... Convivemos diariamente com a “língua brasílica” e não sabemos quase nada da sua origem. Aí estão algumas delas: Cidades: Guaratinguetá, Pindamonhangaba, Taubaté, Paraibuna, Caçapava... Rios: Paraíba, Paraitinga, Tietê... Peixes: lambari, curimbatá, pacu, manjuba, tucunaré... Aves: maitaca, arara, sabiá, urubu, curió, sanhaço, jaburu... Frutas: abacaxi, jabuticaba, goiaba, caju, maracujá... Animais: tatu, capivara, jacaré, tamanduá, gambá... Alimentação: inhame, mandioca, amendoim, tapioca... Utensílios: balaio, peneira, cuia... E isto não é tudo! A cultura indígena também está presente nas nossas lendas e nos nossos mitos: Saci, Boitatá, Iara, Curupira e outros. • Nas ervas medicinais: pó de guaraná, óleo de copaíba, catuaba e muitos outros. • Na habitação: casa de pau-a-pique (desenvolvida a partir da oca dos indígenas). • Nos hábitos de higiene: Sim, é isto mesmo! Os portugueses não tinham o hábito de tomar banho todos os dias. Ao presenciarem os inúmeros banhos de rio dos índios, eles adotaram o costume e passaram a tomar banho com mais frequência. Também pudera, com o calorão que encontraram aqui... Os homens nus eram: “...tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode mais ser.” Pero Vaz de Caminha, Carta ao Rei de Portugal, D. Manuel
• Nos mistérios da vida e da morte: “Para nós, indígenas, existe uma relação próxima entre a vida e a morte; viver bem ajuda a morrer bem. Para nós é de grande importância nos sentirmos livres diante de Deus, livres para ir aonde quisermos e na hora em que quisermos. Assim, sentindo-nos livres, vivemos bem e morremos em paz”. Fonte: “O Transcendente” - Jornal Pedagógico para o Ensino religioso Maio/Junho/2007, pág.5
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Liberdade é o que todos nós buscamos desde sempre. Sentir-se livre... Ser livre... É um direito pelo qual muitos povos ainda lutam. “Os povos indígenas têm o direito de serem livres e iguais a todos os outros seres humanos em dignidade e direitos, e de serem livres de distinção ou discriminação adversa de qualquer tipo baseada em sua identidade indígena”. Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indígenas, Parte 1, Parágrafo 3
A presença indígena está por todo o Vale do Paraíba. Recentemente, no município de Canas-SP, foram encontrados objetos de cerâmica utilizados pelos índios tupi-guarani. Hoje, Canas é considerada a cidade com o maior acervo de cerâmica tupi-guarani do Estado de São Paulo. Falando em cerâmica, a Cidade de Cunha, há muito, foi reduto da cerâmica indígena e da cerâmica utilitária moldada pelas mãos das antigas “paneleiras”. Hoje, talentosos ceramistas, das mais variadas influências, dentre elas, a oriental, produzem uma arte cerâmica que atrai turistas de toda a parte. A cidade, com seus inúmeros ateliês, ficou conhecida como o maior núcleo de cerâmica artística da América do Sul. “No dia em que não houver lugar para o índio no mundo, não haverá lugar para ninguém”. Aílton Krenak; do povo Krenak, de Minas Gerais.
Fonte: www.iande.art.br/textos/pensamentoindigena.htm
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Os Tropeiros “É na sela que o burro conhece quem monta.” Provérbio tropeiro. A ocupação das terras pelos portugueses estendeu-se do litoral para o interior. Muitas foram as dificuldades encontradas pelos desbravadores; uma delas, o transporte. A quantidade de pessoas, mercadorias e outros recursos necessários para as viagens aumentava cada vez mais. Os nativos, que, no princípio, faziam esse serviço não atendiam mais à demanda dos exploradores. A carga tornara-se valiosa demais: ouro e metais preciosos encontrados nas Minas Gerais. Levar as riquezas da colônia, extraídas no interior, até o litoral tornou-se uma missão complexa demandando novas estratégias. “Perto de 1693, as primeiras minas de ouro foram descobertas no estado de Minas Gerais. ...O ciclo do ouro estava em fase inicial e, com ele, o fenômeno do Tropeirismo, atividade que determinou o povoamento desde o extremo sul até o norte do Brasil”. Ocílio Ferraz 5, Viagens de Tropeiros entre Serras
Os tropeiros eram negociantes que percorriam trilhas e caminhos vendendo livremente as suas mercadorias. Faziam o comércio de mulas, alimentos, utensílios etc. Com o transporte de metais preciosos, eles, além das trilhas habituais, passaram a percorrer o Vale do Paraíba, Serra da Mantiqueira, transpondo a Serra do Mar até os portos de Paraty e Mambucaba. “As jornadas eram muito longas, tanto para quem ficava quanto para quem ia e tão perigosa e árdua, que era preciso ser devoto e principalmente agradecer por mais uma ida... por mais uma volta.” Ocílio Ferraz, Viagens de Tropeiros entre Serras
A exaustiva jornada era, por vezes, interrompida para o descanso da tropa. Homens e animais, a princípio, repousavam ao relento ou sob as copas das árvores. Com o tempo, eles foram organizando locais para melhor abrigar as tropas. Muitos desses pousos se transformaram em mercados, vilas e depois em cidades. Muitas delas nasceram a partir de ranchos tropeiros: Silveiras, Areias, Arapeí, São José do Barreiro, Queluz e Bananal são exemplos da rota por eles utilizada. Uma das mais importantes ficou conhecida como o “Caminho do Ouro”. Esse caminho utilizado pelos tropeiros para transportar o ouro de Minas Gerais atravessava a Serra da Bocaina passando pelas cidades de Areias e São José do Barreiro. Os tropeiros, durante dois séculos, não só transportaram cargas, mas também cultura e informações. Com estradas inexistentes e meios precários de comunicação, os tropeiros levavam e traziam notícias das cidades por onde passavam: política, atividades sociais, moda, música, cartas e até mesmo “fuxicos”. Os tropeiros, além de gerarem riquezas, influenciaram os hábitos e costumes do povo da região. 84
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Aí estão alguns que permanecem até os dias de hoje: Culinária: carnes salgadas, embutidos, torresmos, milho, inhame, mandioca, paçoca, feijão tropeiro, virado. Virado? Como assim? O virado de feijão ou virado à paulista é uma gostosura a ser desvendada. Dizem por aí que o feijão cozido e a farinha de milho, transportados nos farnéis pelos tropeiros, de tanto chacoalhar pelo caminho chegavam nos pousos revirados. O virado vem daí. Virado ou revirado só sei que acompanhado de uma costelinha, ovo e couve refogada “é bom pra burro”. Profissões: com as atividades desempenhadas pelos tropeiros, muitas profissões se desenvolveram e, desde então, vêm sendo transmitidas através de gerações, como as de funileiro, seleiro, cesteiro, ferreiro e outras... Expressões: “Cor de burro quando foge”, “Teimoso como uma mula”, “De pensar, morreu um burro” e outras. Provérbios: “Quando um burro fala, o outro abaixa a orelha”. “Quem não pode com mandingas, não carrega patuá.” Religião: percebemos a religiosidade dos tropeiros nos nomes bíblicos com que batizavam seus filhos: Pedro, José, Aparecida, Maria; e nas vilas que fundavam através do caminho: Santo Antônio do Pinhal, São José dos Campos, São Bento do Sapucaí e outras. Com o esgotamento das jazidas de metais preciosos e o desenvolvimento de uma nova cultura na região, os tropeiros passaram a transportar pelas Serras da Mantiqueira, do Mar e da Bocaina uma carga tão valiosa quanto os metais preciosos: Café - o ouro negro da terra. As tropas que já conheciam os caminhos para o litoral foram fundamentais para o escoamento dos grãos. “Surgiram os Barões do Café e com eles grandes transformações na sociedade. As casas residenciais saíram das fazendas para as cidades. Aprimorou-se a decoração – cópia da francesa; vieram os teatros, os saraus, as requintadas festas. Mudaram-se os costumes, refinou-se a educação”. Ocílio Ferraz , Viagens de Tropeiros entre Serras
O ciclo do café fez com que o tropeirismo atingisse o seu apogeu. Para se agilizar ainda mais o escoamento do café até o porto de Santos ferrovias foram abertas. Os tropeiros, ainda necessários, continuavam a transportar as cargas até os vagões dos trens. Porém, com a queda do café, a expansão das estradas, a chegada dos automóveis e demais melhorias na agricultura, a prática do tropeirismo entrou em declínio. Ainda hoje, encontramos tropas em várias comunidades rurais do estado. O bairro Campos Novos que fica na cidade de Cunha é um dos redutos tropeiros. Os cunhenses ainda preservam esta tradição. Lá “amarra-se o burro à vontade do dono”.
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E a cidade de Silveiras então? Nascida de um rancho tropeiro, é uma das mais significativas na história do tropeirismo. Desde 1981, o município realiza no dia 31 de agosto a “Festa do Tropeiro”com desfile de tropas, missa tropeira e almoço tropeiro. Nesse almoço, a comida boa é arrematada pelo “café tropeiro”. Ninguém “fica emburrado” depois de experimentar tantas gostosuras. O sucesso da festa impulsionou o turismo e favoreceu a criação, em 1983, da Rodovia dos Tropeiros, hoje Estrada dos Tropeiros. O Tropeirismo... “Uniu territórios; conduziu o gado; escoou a produção econômica. Criou a identidade brasileira – fruto da miscigenação das raças, culturas, crenças e tradições –, entre indígenas, africanos e europeus”. “O chão dos tropeiros é o chão de Deus”. Ocílio Ferraz , Viagens de Tropeiros entre Serras
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Os Negros “Aquele que aprende ensina.” Provérbio africano “Que bafafá é esse moleque?” No cotidiano, usamos tantas palavras de origem africana que nem nos damos conta: “Cochilou, o cachimbo cai”. E sem cochilar, vamos, em pequenas notas, contar um pouco da trajetória dessa gente trazida da África, como escrava, para trabalhar nas lavouras cafeeiras do Brasil. Isso, mesmo! Depois do pau-brasil, da cana-de-açúcar e do ouro, chegou o momento do café. Eis que, no início do século XVIII, ele foi introduzido no país. O bom clima, a boa terra e o fácil escoamento dos grãos garantiram o sucesso da cultura. O Vale do Paraíba tinha tudo isso. Muitas cidades valeparaibanas aderiram ao cultivo do exótico grão e se enriqueceram: Guaratinguetá, Bananal, Lorena e Pindamonhangaba são exemplos. A região viveu o apogeu. Grande parte da produção mundial do café saía do Vale do Paraíba. “Eta, cafezinho bom!” Foi necessário adequar as terras para a lavoura do nobre grão. Suntuosas fazendas cafeeiras foram fundadas. Casarões magníficos construídos, capelas, jardins... Tudo com luxo e requinte. Afinal, o ouro verde demandava uma estrutura mais sofisticada, bem diferente das rústicas instalações dos caboclos. Em Bananal, as fazendas Boa Vista e Resgate, entre outras, são exemplos da imponente arquitetura do período do café. Também exemplo de patrimônio rural é a Fazenda Pau d’Alho, em São José do Barreiro. Edificações que guardam a lembrança dos escravos e a riqueza dos barões do café. Hoje, estas fazendas atraem estudantes, historiadores e turistas de todo o país. “Neste fluir incessante – artéria de água da vida levo o sangue da raça na largueza das fazendas no gemido das senzalas no lamento das canções.” Olga de Sá6, Memórias de Lorena, Tomo II (trecho do poema Saga do Rio Paraíba)
A importante estada dos negros, oriundos das diversas regiões da África, mudou o cenário do Vale. Responsáveis pelo enriquecimento dos barões do café, eles marcaram presença na região com a forte herança da cultura africana. 88
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É banzo, sinhá! A saudade do negro escravo da sua terra, o banzo (tristeza), as reminiscências da sua religiosidade, os divertimentos eram traduzidos nas rezas, danças e cantos no terreiro, aos sábados e domingos. Nada de ficar “borocoxô” (entristecido), o “furdúncio” (festança) ia até altas horas. Originária dos rituais africanos, a popular capoeira era utilizada pelos escravos como defesa pessoal, como arma contra a opressão dos senhores. Com o passar do tempo, a mistura de luta, dança e música se transformou em esporte. Jogar capoeira é hoje um esporte praticado em todo o Brasil. As raízes africanas também se traduzem nas congadas e nos moçambiques. A congada reverencia os antepassados, as almas dos escravos, os reis e as rainhas do Congo. O moçambique, dança guerreira, assim como as congadas, louvam São Benedito e Nossa Senhora. Tanto uma, quanto outra mesclam cultos católicos com africanos. Na cidade de Lorena, o Moçambique de São Benedito, criado há mais de 30 anos, tem sua origem no Bairro Cidade Industrial. Portando instrumentos de percussão e bastões, os participantes se apresentam nas festas profanas e religiosas do município e região. O jongo, outra manifestação de origem africana, tem grande significado social e religioso. Um bom exemplo é o tradicional Jongo da Tamandaré, que é praticado há mais de cem anos pela comunidade do Tamandaré, bairro de Guaratinguetá. As apresentações costumam acontecer nas festividades de Santo Antônio, São João e São Pedro. Os usos e costumes dos negros ainda vivem na culinária, na música, nas crenças... Quem não gosta de pamonha? Monteiro Lobato, em entrevista concedida, em 1948, ao jornalista Murilo Antunes Filho para a Folha de São Paulo, disse: “Pamonha é uma das belas coisas que há no interior... Depois da içá, a melhor coisa do interior é a pamonha”. A pamonha de milho tem origem no prato africano acaçá. Além dela, outras gostosuras de origem africana são: vatapá, acarajé, mugunzá, caruru, quiabo, leite de coco, azeite de dendê e as picantes pimentas. Um prato curioso e apetitoso da culinária das senzalas é a vaca atolada. No tempo dos barões de café, as vacas eram muito caras. Quando eles, para consumo, matavam uma delas, as partes nobres iam para a cozinha dos senhores e as pernas eram entregues aos escravos, que as cozinhavam com mandioca. No tempero, muito ritmo. “Quem não gosta de samba bom sujeito não é É ruim da cabeça ou doente do pé...” Dorival Caymmy7 Música: “Samba da Minha Terra” 90
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Na música, o “samba” é um dos maiores legados do negro para a música brasileira. Dorival Caymmi, grande compositor baiano, se inspirou nos sambas de roda dançados pelos negros na Bahia, para criar a música “Samba da Minha Terra”. A partir de 1930, o samba se transformou em símbolo da identidade nacional. Nas crenças... Os negros trouxeram de cada canto da África religiões diferentes. Quando aqui chegaram, foram obrigados a seguir o catolicismo. Qual o quê? Donos de uma cultura vigorosa e rica, eles não deixaram de lado as suas crenças. A mistura de seus rituais com os da religião católica formou o que chamamos de sincretismo religioso. O Candomblé e a Umbanda são algumas das religiões africanas praticadas no Brasil. Como é lindo o canto de Iemanjá Faz até o pescador chorar Quem escuta a Mãe d’água cantar Vai com ela pro fundo do mar Mãe d’água rainha das ondas sereia do mar Mãe d’água rainha das ondas sereia do mar Como é lindo o canto de Iemanjá - canção de Umbanda. www.ouvirmusica.com.br/umbanda
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Os Imigrantes Merica, Merica, Merica Cossa saràlo ‘sta Merica? Canto popular dos Imigrantes - Angelo Giusti, 1875
“Far-la-mérica”. Uma Terra Nova se descortinava no outro lado do oceano. Na segunda metade do século XIX e início do século XX, imigrantes europeus de diversas nacionalidades desembarcaram no Brasil. Fugindo do desemprego provocado pelas guerras e estimulados pela política de imigração do governo brasileiro, muitos vieram em busca de trabalho e de uma vida melhor. No país, a abolição da escravatura provocava a falta de mão de obra na região cafeeira. O destino de grande parte dos imigrantes italianos foram as fazendas de café do Vale do Paraíba. “Então os transatlânticos trouxeram da Europa outras raças aventureiras. Entre elas uma alegre que pisou na terra paulista cantando e na terra brotou e se alastrou como aquela planta imigrante que há duzentos anos veio fundar a riqueza brasileira”. Brás, Bexiga e Barra Funda - Antônio de Alcântara Machado 8, Klick Editora
Uma parcela dos imigrantes fixou-se na capital. Os bairros Bom Retiro, Brás, Bexiga e Barra Funda nasceram com os italianos. Muitos, em vez de “lavorar” no campo, escolheram “lavorar” na indústria e no comércio. Tutti buona gente Eu sô puro Bahiano má mio pai e italiano é tutti buone, tutti buone, tutti buona gente qui tuto é misturado é tudo estrangerado mai tutti buone, tutto buone, tutti buona gente.
Tarantela, de Bruno Marnet9 Intérprete : Ivon Curi
A cultura italiana influenciou toda a boa gente paulista. Essa gente assimilou e repete, sem ao menos se dar conta, expressões, gestos e sotaque dos italianos. Um exemplo disso é o “ciao” (tchau) acompanhado de um gesto com as mãos. Gesto? Porca miséria! Sabemos que “falar com as mãos” é uma das características do italiano. Costume este que passou para nós, brasileiros. Assim como os índios e negros, os italianos também tiveram muita dificuldade com a língua portuguesa. Capiti? Non? Pois bem, da mistura do português com o italiano nasceu uma linguagem original que ficou conhecida como “dialeto macarrônico”. Oswald de Andrade, no “Pirralho”, tabloide humorístico e satírico criado em 1911 por ele, escreveu pela primeira vez o dialeto. Logo, ele deu vez ao jovem e talentoso escritor de 92
O Valeparaibano: algumas notas
Pindamonhangaba Alexandre Marcondes Machado. Com o pseudônimo de Juó Bananére, ele passou a assinar uma coluna no periódico. Descrito por Oswald como “O mestre da sátira no Brasil”, o valeparaibano parodiava e ironizava o linguajar dos italianos que moravam nos bairros Brás, Barra Funda, Bexiga e Bom Retiro, em São Paulo. Juó, que escrevia para vários jornais, inclusive “O Estado de São Paulo”, teve a sua original linguagem chamada de “macarrônica”. Monteiro Lobato e outros autores classificaram de “paulistaliano” o irreverente estilo do “giurlanista”. Macarrônico ou paulistaliano, o fértil universo de Bananére se traduz na sua obra “La Divina Increnca”. Dentre os divertidos poemas de Juó Bananére está a paródia da “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Migna terra tê parmeras, Che ganta inzima o sabiá. As aves che stó aqui, Tambe tuttos sabi gorjeá.
Juó Bananére - La Divina Increnca
Nem todos os imigrantes da Itália vieram para as lavouras de café. Muitos buscavam um pedaço de terra para adquirir e trabalhar. Percebendo que a imigração não só organizava a mão de obra necessária para o desenvolvimento agrícola como também contribuía para a cultura do país. O governo facilitou a aquisição de terras pelos imigrantes. Colônias foram criadas em diversas regiões do Vale do Paraíba. Dentre elas destacamos a de Canas, em Lorena; Quiririm, em Taubaté; Piaguí, em Guaratinguetá e Boa Vista, em Jacareí. Nestas colônias, várias lavouras foram cultivadas. Atualmente, o arroz é o produto principal cultivado por algumas delas. Alegres e comunicativos, os italianos, até os dias de hoje, mantêm vivas as suas tradições. Nas colônias do Vale do Paraíba, os italianos de maioria católica celebram com muita festa a imigração italiana e os santos de devoção trazidos da Itália. Danças, pratos típicos, música e religiosidade estão em todas as comemorações. Descendentes de italianos ou não, as famílias se reúnem em torno das festas e se encontram na fé. Quando si mangia la bela polenta, la bela polenta si mangia cosi, ...Bela polenta cosi. Música folclórica italiana Na culinária, nos deliciamos com a farta gastronomia que herdamos dos italianos. Polentas, broas, massas, linguiças, salames, queijos, vinhos e outras preciosidades como a mortadela. Um pãozinho com mortadela é delizioso! E a pizza, então? E o panetone? Mama mia! Nosso cardápio está repleto de sabores da Itália. 93
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E a influência da imigração italiana não para por aí. Ela está na música, no cinema e até na paixão pelo futebol. O Palestra Itália, fundado há mais de cem anos pelos operários italianos, virou “Parmera”, digo Palmeiras. Hoje, o time agrega torcedores de todas as raças e camadas sociais. É no entusiasmo da torcida, na agitação de bandeiras, nos gritos, choros e abraços exagerados que sentimos um pouco das nossas raízes italianas. Na música, João Rubinato, um filho de imigrantes italianos, sob o pseudônimo de Adoniran Barbosa, tornou-se o principal representante do samba paulista. Misturando o português macarrônico com o dialeto caipira, criou músicas irreverentes bem ao gosto dos italianos e paulistanos. O “Samba do Arnesto” é sucesso até os dias de hoje. O Arnesto nos convidô prum um samba, ele mora no Brás Nóis fumo e não encontremos ninguém Nóis vortemos cuma uma baita de uma reiva Da outra veiz nóis num vai mais Nóis num semos tatu! Adoniran Barbosa
Os Caipiras “Sou caipira, Pirapora, Nossa Senhora de Aparecida ilumina a mina escura e funda o trem da minha vida...” Renato Teixeira,10 Música: “Romaria”
“Cai-pyra”: tímido, envergonhado. Assim, alguns estudiosos definem a palavra indígena. Longe disso. O caipira, na literatura do escritor Monteiro Lobato, foi elevado a símbolo dos valores culturais brasileiros. Nada de timidez. Ele, aparentemente acomodado, é, na verdade, uma figura dinâmica que muito contribuiu para a formação da identidade nacional. Dizem os historiadores, que a mistura de portugueses com indígenas deu origem ao “caipira”. Dono de um dialeto próprio,“o dialeto caipira”, muitos ainda preservam o jeito de falar “dos antigos”, ou seja, uma mistura do português arcaico com o tupi. O que vem a ser este dialeto? Falar corretamente o português não é uma tarefa muito fácil. Os índios e os negros devem ter penado para aprender. São muitas peculiaridades... E a pronúncia então? Estudiosos dão conta que esse dialeto surgiu da dificuldade dos índios em pronunciar palavras com “r” e “l” e consoantes dobradas. Muié (mulher), rezá (rezar), cantá (cantar), fulô (flor) paia (palha) etc. são palavras que ouvimos até os dias de hoje, principalmente no interior. Os africanos também contribuíram para a sonoridade da língua. 94
O Valeparaibano: algumas notas
Alguns afirmam que esse modo de falar é errado... Nada disso! É o dialeto caipira. É o nosso jeito de “falá”. Muitos de nós ainda falam “tar e quar” os bisavós, avós, parentes e amigos valeparaibanos. “Palavra que não é do povo é palavra morta”. Ruth Guimarães11, Jornal O Lince, Ano 2, núm. 21, 2008.
Da tradicional cozinha caipira, saboreamos: leitão à pururuca, bolinho caipira, feijão tropeiro, farofa de linguiça, canjiquinha com costela de porco, afogado, virado à paulista, paçoca de amendoim, bolinho de mandioca, rabada, quentão, angu, farofa de içá e outras tantas gostosuras de se lamber os beiços. Falando em farofa de içá... Lobato era, assim como muitos caipiras, apreciador deste exótico petisco. “Nós, taubateanos, somos comedores de içás. Como é bom, Rangel!” Monteiro Lobato, A Barca de Gleyre, 1903
A Cultura Caipira É no cabo das enxadas, no gemido dos carros de boi, nas rezas, nas barganhas e nas coisas simples das roças que encontramos a tal “cultura caipira”. Andá com fé eu vou Que a fé não costuma faiá... Gilberto Gil12 - música: Andar com Fé.
A religiosidade está por toda parte. Na espontaneidade do catolicismo popular, em que personagens não determinados pela Igreja têm status de santos e são dignos de crença. Nos aflitos, que buscam curas nas rezas das benzedeiras. No altares, com imagens dos santos de devoção. Nos cruzeiros, à beira das estradas. Nas promessas, romarias e procissões. O sagrado reina na região. O Vale é a morada da Padroeira do Brasil! A aparição, no Rio Paraíba, da Nossa Senhora da Conceição Aparecida, é motivo de orgulho, fé e devoção do valeparaibano. Sua imagem na Basílica de Nossa Senhora Aparecida, na cidade de Aparecida, recebe, diariamente, uma multidão de fiéis. O primeiro Santo brasileiro nasceu no Vale! Em Guaratinguetá. O Santo “Frei Galvão” é bastante conhecido pelos seus poderes de cura. O caridoso Frei, frente ao sofrimento dos enfermos, criou pílulas de papel em cujo conteúdo escreveu um versículo do ofício de Nossa Senhora. Muitos milagres foram atribuídos à fé nas “Pílulas do Frei Galvão”. Hoje, os devotos do Santo podem assistir missas, fazer orações e retirar as milagrosas “pílulas” no Santuário Frei Galvão. 95
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A Canção Nova, uma comunidade católica que reúne fiéis de todo o Brasil, fica em Cachoeira Paulista. A Comunidade, que tem por missão a evangelização, atrai milhares de peregrinos que vêm em busca da palavra de Deus. Se Deus é brasileiro. O Vale do Paraíba é um pedacinho do céu. E as celebrações? Muitas delas, apoiadas nas devoções religiosas, acompanham o calendário agrícola. As festas juninas são um exemplo delas. Uma das mais importantes manifestações na região é a festa do Divino Espírito Santo. Em São Luiz do Paraitinga, a festa do Divino é um grande acontecimento. Ruas são enfeitadas. Procissões são acompanhadas por bandas de música. Habitantes são acordados pelo toque de alvorada. Grupos de folias de reis, jongos, congadas e moçambiques de toda a região se revezam nas apresentações pelas ruas da cidade. Na Festa do Divino, em São Luiz, nunca falta o tradicional “afogado”, comida caipira que é distribuída ao povo presente. A Festa acontece em grande parte das cidades e da zona rural do Vale do Paraíba. O Divino Espírito Santo Chegô aqui nesta morada Veio guiando a bandeira Na procura das estrada... Estrofe da canção popular “Divino Espírito Santo”.
A Música Caipira Fiz uma casinha branca lá no pé da serra pra nóis dois morar Fica perto da barranca do rio Paraná O lugar é uma beleza eu tenho certeza você vai gostar Fiz uma capela bem do lado da janela pra nós dois rezar Elpídio dos Santos13, Música: “Lá no Pé da Serra”
A música caipira ou música de raiz é uma herança dos nossos colonizadores. No Vale do Paraíba ela está sempre presente nas festas das roças, nas festividades religiosas, nos mercados, nos bairros, nos rádios e na televisão. Na cidade de Lorena, um grupo de violeiros preserva a tradição da moda de viola reunindo-se, quinzenalmente, no Mercado Municipal da cidade. Um espetáculo lindo de ver e ouvir... Elpídio dos Santos, de São Luiz do Paraitinga, falecido em 1970, é um dos grandes representantes da nossa música caipira. O cineasta Amácio Mazzaropi se identificou com as letras e músicas do Elpídio. Ficaram amigos. As trilhas sonoras de 25 dos filmes de Mazzaropi são do compositor luizense. 96
O Valeparaibano: algumas notas
“Ai, ai, ai, Mas como é lindo o despertar do meu sertão, Ai, ai, ai, Bênção Nhá Mãe, Bênção Nhô Pai, Bom dia irmão!” “Elpídio dos Santos, Música: “Despertar do Sertão” (primeira música brasileira tocada na Rádio BBC de Londres)
A Literatura Caipira Em 1914, o escritor taubateano Monteiro Lobato, num artigo intitulado “Velha Praga”, publicado no jornal O Estado de São Paulo, e em outro artigo, intitulado “Urupês”, criou o personagem Jeca Tatu. Em “Velha Praga”, ele critica o caboclo do Vale do Paraíba por sua indolência, ignorância e pelo danoso hábito de “tacar” fogo nas matas. “A nossa montanha é vítima de um parasita, um “piolho da terra”... “...Este funesto parasita da terra é o caboclo...” Monteiro Lobato, Urupês, Editora Brasiliense, 1959
Porém, em contato mais próximo com o povo rural, o autor percebeu que o comportamento e a ignorância do caboclo estavam na falta de tudo: saúde, educação, saneamento, higiene etc. No artigo “Problema Vital”, Lobato redime o Jeca que, de “piolho da terra” passa a herói nacional. Em carta para o amigo Godofredo Rangel, ele escreve: “Virei casaca, Estou convencido de que o Jeca Tatu é a única coisa que presta neste país.” Monteiro Lobato, A Barca de Gleyre, Editora Brasiliense, 1968
E o Jeca, figura nascida no Vale do Paraíba, vai inspirar artistas plásticos, compositores, literatos e cineastas. Em 1959, Amácio Mazzaropi com o filme “Jeca Tatu” imortalizou a figura do caipira. Muitos autores, principalmente valeparaibanos, se identificaram com a cultura caipira e voltaram os seus olhares para o universo rural. O “caipirismo” tem sido muito bem representado na literatura por autores considerados “regionalistas”. “O escritor regionalista tem que ser uma pessoa do povo, que vive o que o povo vive, e que tenha burilado sua linguagem a ponto de ser capaz de transmitir com fidelidade e apuro linguístico a maneira de pensar e de viver do homem do povo. Eu sou caipira.” Ruth Guimarães - Cachoeira Paulista Revista Ângulo 135 out/dez-2013, p.107
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Sob frondentes árvores Dos altaneiros montes, Dos longes horizontes A contemplar os véus; Ao som suave e bando Da lira sertaneja, Minha alma sobe, adeja As amplidões dos céus.
Sérvulo Gonçalves14 - Lorena Memórias de Lorena, Vol.IV, tomo 2
Tirem-me a paz que consola e os bens com os quais me iludo. mas por Deus deixem a viola, meu pão, meu amor, meu tudo! Pedro Uzzo15 - Paraibuna. site: Falando de Trova, José Ouverney
O chêro que vancê tem Me enlôquece e faiz pená – Tu tem chêro de rolinha No tempo de se aninhá.
Cesídio Ambrogi16 - Taubaté Trovas Sertanejas - Jornal “O Libertário”, 1925
Homens filhos do sol (índios) homens filhos do mar (os lusos) homens filhos da noite (os pretos) aqui vieram sofrer, aqui vieram sonhar. Cassiano Ricardo17 - São José dos Campos.
Obra: Borrões de Verde Amarelo, 1925.
E assim muitos outros importantes representantes da literatura valeparaibana...
O Valeparaibano: algumas notas
Em 1959, Monteiro Lobato já vislumbrava um futuro grandioso para o Vale do Paraíba. Na sua obra “Idéias do Jeca Tatu” publicou um original artigo:
O Vale do Paraíba - diamante a lapidar “O Vale do Paraíba possui em grau dos mais elevados tudo quanto gera a prosperidade de uma zona: clima dos melhores, ausência de endemias, terras aráveis, abundantíssima água para irrigação, sistema de transporte precário mas já criado, população civilizada capaz de iniciativas, culturas aclimadas e comprovadas – e ainda a sua situação estratégica entre os dois maiores centros consumidores do Brasil. Com todos estes elementos naturais e sociais, a sua transformação num Languedoc, num vale do Nilo, numa Califórnia, não é sonho de fumador de ópio – sim de quem faz uso da lógica das coisas e da lógica humana. ... Um diamante só se transforma em brilhante depois de lapidado. O Vale do Paraíba só pede lapidação.” Monteiro Lobato, Idéias do Jeca Tatu, São Paulo, Globo, 2008
Lobato, se estivesse vivo, se surpreenderia com a “lapidação” do Vale. Com a transformação do diamante em brilhante. No Vale do Paraíba, a cultura se expressa na diversidade cultural, nas tradições históricas, na musicalidade e outras manifestações variadas. Aqui, índios, africanos, portugueses, italianos e povos das mais diversas nacionalidades são agentes legítimos da nossa identidade. Deste delicioso caldeirão temperado com lutas e glórias saiu um prato único: o valeparaibano!
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Referências: Ballerini, Humberto. Fazendo parte da História de Lorena. www.humbertoballerini.com.br. Lobato, Monteiro. Idéias do Jeca Tatu - Editora Globo, 2008. Lobato, Monteiro A Barca de Gleyre - Editora Brasiliense, 1968. Ângulo, Revista - Cadernos Culturais do Centro Cultural Teresa D’Ávila, 2008. Ambrogi, Cesídio - Sonetilhos em Sarabandas, Edição 1957. Machado, Alcântara - Brás, Bexiga e Barra Funda - Klick Editora; Coleção Ler é Aprender Jornal O Estado de São Paulo, 1977. O Lince, Jornal, Ano II, nov/2008. O Lince, Jornal, Ano 9, jul-ago/2015. Jornal Nheengatu-Mirim, Ano III; set-out/1998, n. 19. Lorena, Memórias de, Tomo II, vol. IV. O Libertário, Jornal, ano 1925. Santuário, Jornal, jan/2015. Ferraz, Ocílio, “São Paulo Caminhos da Colonização Viagens de Tropeiros entre Serras”. Barbosa, Alexandre Marcos Lourenço - Grandes escritores do Vale do Paraíba - Editora O Lince,2012. Amaral, Amadeu, “O dialeto caipira”, Portal domínio público: www.dominiopublico.gov.br. www.portaldecunha.com.br www.vagalume.com.br www.saofreigalvao.com www.cancaonova.com. Notas: 1- Benedicto Lourenço Barbosa: natural de Aparecida. Mestre em Ciências. Escritor, poeta. Autor do livro “Nossas Origens - 300 anos de História de Aparecida-SP”. Fundador do Jornal “O Lince” 2- Hugo Di Domenico: natural de Lorena. Médico, professor, folclorista, escritor, poeta e tupinólogo. Foi membro do Instituto de Estudos Valeparaibanos, Academia Taubateana de Letras e Academia de Letras de Lorena. É autor dos livros: “Fitonímia e Zoonímia Indígenas de Taubaté”, “A Medicina e o Folclore”, “Caminhos da Alma” e “Léxico Tupi-Português”. 3- Humberto Ballerini: lorenense, trabalhou na UNESCO. Foi vereador e vice-prefeito de Lorena. Assessor do Diretor do INPE. 4- Maria Luiza P. Baptista: natural de Lorena. Pedagoga, professora, colunista, poeta, escritora. É membro do Instituto de Estudos Valeparaibanos e Academia de Letras de Lorena. Autora do livro: “Chuva Doce”. 5- Ocílio Ferraz: natural de Silveiras. Foi escritor, culinarista, sociólogo. Presidente da Fundação Nacional do Tropeirismo. Autor das obras “A Culinária Tradicional do Vale do Paraíba”, “Voltando às Origens”, “Maria Paulina”, “Saga Tropeira” e “São Paulo - Caminhos da Colonização - Viagens de Tropeiros”. 6- Olga de Sá: natural de Iepê-SP. Escritora com graduação em Letras Clássicas pelo Instituto Sedes Sapentiae; Filosofia pela PUC-SP; Biblioteconomia pela FAINC e Scienze Religiose - Istituto Internaz. Autora dos livros: “A Escritura de Clarice Lispector”, “A Travessia do Oposto”, “Arte e Cultura no Vale do Paraíba”, entre outras obras. 7- Dorival Caymmi: natural de Salvador. Cantor e compositor brasileiro. Dentre suas composições de sucesso estão: “Samba da Minha Terra”, “Marina”, “Saudade Itapoã” e outras. 8- Antônio de Alcântara Machado: natural de São Paulo-SP. Escritor, jornalista, político, jurista. Uma das suas principais obras foi: “Brás, Bexiga e Barra Funda”, uma coletânea de contos. 100
O Valeparaibano: algumas notas
9- Bruno Marnet: cantor e compositor de origem italiana. Teve suas músicas gravadas por grandes cantores brasileiros, entre eles: Ivon Curi. Seu nome verdadeiro era Lorenzo Giannetto. 10- Renato Teixeira: natural de Santos. Cantor e compositor, passou 14 anos de sua infância em Ubatuba-SP e viveu até os 24 anos em Taubaté-SP. É compositor de músicas de excepcional valor, dentre elas “Romaria”. 11- Gilberto Gil: natural de Salvador. Cantor, compositor e instrumentista. Artista conhecido internacionalmente foi, nos anos 60, um dos criadores do Movimento Tropicalista. 12- Ruth Guimarães: natural de Cachoeira Paulista. Professora, jornalista, cronista, romancista, tradutora. Foi membro da Academia Paulista de Letras e do Instituto de Estudos Valeparaibanos. Autora de consagradas obras, dentre elas: “Água Funda”, “Mulheres Célebres”, “Lendas e Fábulas do Brasil”, etc. 13- Elpídio dos Santos: natural de São Luís do Paraitinga. Compositor, maestro, violonista, professor de canto coral. 14- Sérvulo Gonçalves: natural de Lorena. Nasceu em 1856. Jornalista, escritor, poeta, autor dos livros: “Cantos da Montanha”, “Flores do Sertão” e “Tiririca”. Faleceu em 1923. 15- Pedro Uzzo: natural de Paraibuna. Romancista, poeta, cronista, jornalista, dentista. Autor das obras: Penca de Aratacas, romance regionalista. Suinãs - poesias. 16 - Cesídio Ambrogi: natural de Natividade da Serra. Viveu quase toda a sua vida em Taubaté. Foi construtor, professor, redator, jornalista, poeta. É autor das obras: “Janíadas”, “As Moreninhas”, “Sonetilhos em Sarabandas” e “Poemas Vermelhos”. O livro “Poemas Vermelhos” foi prefaciado por Monteiro Lobato, de quem foi grande amigo. 17 - Cassiano Ricardo: natural de São José dos Campos, foi poeta, jornalista, ensaísta e um dos líderes do Movimento Modernista de 1922. Pertenceu à Academia Paulista de Letras e à Academia Brasileira de Letras. Obras: “Dentro da Noite”, “O Evangelho de Pan”, “Borrões de Verde Amarelo”, “Canções de Minha Ternura”, entre outras. Uma das suas obras mais significativas é “Martim Cererê”.
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O povo do Vale do Paraíba canta e dança desde sempre. O jongo, a congada, o ma-
racatu, a capoeira, a folia de Reis, marchinhas de carnaval, grupos de serestas. As manifestações ainda existem, vivas em várias cidades que gostam de fazer festa: a do tropeiro em Silveiras, a festa em homenagem ao padroeiro da cidade de Guaratinguetá, Santo Antônio, a do pinhão, porque o pinhão existe e ponto, em Cunha. O povo fazendo sua história, resistindo ao progresso da tecnologia que dá passos de gigante e pisa em cima das tradições seculares. Mas “um objeto é cultural na medida em que pode durar; sua durabilidade é o contrário mesmo da funcionalidade, que é a qualidade que faz com que ele novamente desapareça do mundo do fenomênico ao ser usado e consumido. O grande usuário e consumidor de objetos é a própria vida, a vida do individuo e a vida da sociedade como todo. A vida é indiferente à qualidade de um objeto enquanto tal; ela insiste em que toda coisas deve ser funcional, satisfazer algumas necessidades. A cultura é ameaçada quando todos os objetos e coisas seculares, produzidos pelo presente ou pelo passado, são tratados como meras funções para o processo vital da sociedade, como se aí estivessem somente para satisfazer a algumas necessidades, e nessa funcionalização é praticamente indiferente saber se as necessidades em questão são de ordem superior ou inferior”1 (ARENDT, 1972, p.260-261). Não se encontram mais os grupos fazendo suas apresentações nas ruas, tão facilmente como foi até o final dos anos 1980. Eles têm seus lugares para ensaio, como o Moçambique de São Benedito, em Lorena, que ganhou sede própria. As apresentações são agendadas. Ainda se ouvem grupos cantando nas romarias, nas novenas e nas procissões, datas específicas. É possível comprar o artesanato das figureiras; elas têm endereço, ficam na Rua da Imaculada. O progresso está isolando as manifestações dos seus próprios moradores, empurrando, dizendo onde devem ficar. Não importa, porque gente é bicho que precisa definir o que significam as coisas. Precisam “codificar, organizar e regular sua conduta, uns em relação aos outros”, porque são esses “sistemas ou códigos de significado” que “dão sentido às nossas ações”2 As atividades artísticas passavam de uma geração para outra, retratos da nossa nacionalidade, somos todos “valeparaibanos”. No entanto, muitos monumentos arquitetônicos expressivos foram tombados e estão literalmente tombando. Muitas instituições querem reunir as pessoas em clubes, centros culturais, grupos cívicos, entidades dedicadas à pesquisa histórica, folclórica e literária, e resgatar a cultura e a tradição. O que se vai resgatar, quando o que resta são somente ruínas? 1 ARENDT, Hannah. A crise na cultura: sua importância social e política. In: Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2000. p. 248-281. 2 (Hall 2011, p. 1). 105
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O que se vai ensinar, quando o aluno não quer aprender? Quando não entende e não valoriza sua própria cultura? A convivência entre diferentes nem sempre é fácil. E quando existe a diferença de faixa etária, em que os grupos de gerações diferentes geralmente possuem valores e interesses muito distintos, os conflitos são inevitáveis. O jovem, às vezes, quer desafiar os limites de instituições tradicionais, se levantar contra uma situação estabelecida. Eles se adaptam mais facilmente às mudanças, e neste ano de 2017, principalmente às mudanças tecnológicas. E esse jovem que vive a caipirice (no bom sentido) de seus pais, as crenças, a fé, o amor à tradição, não quer a mesma coisa. Precisa se camuflar e ser igual a todos os outros jovens. Sempre foi mais ou menos assim. Há quarenta anos, o filho da intelectual folclorista escritora não se sentia à vontade em mostrar as antiguidades do museu que ela administrava para os seus colegas do colegial. Não aceita ainda, quarenta anos depois, que a mulher moderna acreditasse em pragas e em orações. A tradição não se casa com a modernidade em tempos de ciências da computação. Estamos vivendo um momento em que é preciso mostrar, mais do que ser. Mais importante até do que ter. Eu viajo, eu compro, eu tenho cultura, eu estou junto das celebridades, eu como bem, eu estou em forma. No mundo da McDonaldização3 tudo tem o mesmo padrão. Se isso é verdade, se sou feliz, se minha vida muda com isso, pouco importa. Eu preciso mostrar que minha verdade é a melhor. E minha verdade não pode ser como filha de benzedeira. Como benzedeira, preciso ser muito mais. A maior violonista caipira brasileira se chamava Helena Meirelles: analfabeta, autodidata, benzedeira, parteira, lavadeira, apaixonada pelo pantanal e sabia ouvir o mundo: “quando escuto um burro urrar ou um toque de berrante, dá vontade de voar no vento e cair no meio da boiaderama”. Em 1993 foi eleita pela revista americana Guitar Player (com voto de Eric Clapton) como uma das 100 melhores instrumentistas do mundo por sua atuação com diversos cordofones, em especial viola e violão. Se fizermos uma pesquisa neste ano de 2017, a população brasileira irá nomear Mara e Maraísa (ou algo no gênero, desculpem minha desinformação musical) ou Xitãozinho e Xororó como os maiores nomes da cultura popular e “sertaneja” do Brasil. As pessoas leem O Crepúsculo, Lua Nova, Harry Potter, sabem os nomes dos autores e dos personagens. Heróis tupiniquins não fazem tanto sucesso quanto gostaríamos. O que é brasileiro “não presta”, filme brasileiro “Deus me livre!”, e, no entanto, quantos heróis valeparaibanos deveríamos homenagear... José Luiz Pasin fez uma pequena lista só no Vale do Paraíba, de escritores, poetas, cientistas, entre eles4 , Monteiro Lobato, Waldomiro Silveira, Plínio Salgado, Cassia3 McDonaldização é a forma como tudo é dominado atualmente pelo modo fast-food de ser. E esta em versão cultural é a ideia de como tudo está homogeneizado no que diz respeito à cultura. 4 A FORMAÇÃO HISTÓRICA E CULTURAL DO VALE DO PARAÍBA José Luiz Pasin http://docslide.com.br/documents/a-formacao-historica-e-cultural-do-vale-do-paraiba.html 106
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no Ricardo, Almeida Nogueira, Barão Homem de Mello, Malba Tahan, Brito Broca, Aroldo de Azevedo, Alves Motta Sobrinho, Francisco de Assis Barbosa, Ruth Guimarães, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Eugênia Sereno, César Salgado, Maria de Lourdes Borges Ribeiro, José Geraldo Nogueira Moutinho. Cientistas como Oswaldo Cruz, Emílio Ribas, Miguel Pereira. Médicos como Euryclides de Jesus Zerbini, José Cembranelli, Carlos da Silva Lacaz. Artistas plásticos: Quissak Júnior, Ismênia Faro, Antônio Valentim de Oliveira Lino, Justino, Herculano Cortez, Tom Maia, Paulo Pires do Rio, Gilberto Gomes. Artistas populares, santeiros, ceramistas: Chico Santeiro, Teixeira Machado, Dito Pituba, Eugenia, Maria Froes, Benedito e Maria Gomes, as irmãs Edith, Luíza e Cândida Santos, Teresa Migoto Justen, Maria Benedita Vieira (Mudinha), e tantos outros anônimos que fizeram e fazem a delícia dos olhos com seus presépios, bichos, pavões. Os escultores Boanerges e Demétrio. Pela primeira vez na história da humanidade o homem tem tudo, está tudo pronto. Ele não precisa esfregar suas roupas, nem lavar sua louça, nem andar, nem cozinhar, nem fazer visitas domiciliares. Tudo vem até ele ou ele se transporta facilmente para onde precisa ir. Todos, com pouco dinheiro ou quase sem, tem celulares, aparelhos de televisão, e os empregados domésticos têm empregados domésticos. Nosso planeta brasileiro do século XXI tem contrastes surpreendentes e perturbadores.
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O homem tem tudo e, no entanto, precisa acreditar. Precisa rezar. Ele reza para que chova e para que não chova, para, consequentemente, obter uma boa colheita. Reza pela saúde de seu gado, pela saúde de sua família, para que um parente sumido volte, reza pra Deus trazer e pra Deus levar. Reza, porque é o que sabe fazer. É o que pode fazer. Deus é o único que pode dar alívio ao que quer que seja. Quando o Brasil era maior do que é hoje, resultado da distância, da falta de transporte, Deus era o único que estava em todos os lugares. Mesmo o padre, seu representante na Terra, vinha uma ou duas vezes por ano a alguns lugares, por ocasião de uma visita pastoral ou de uma campanha missionária. Isoladas do “mundo”, as pessoas formavam seus próprios doutores, seus professores, seus responsáveis religiosos, e mesmo suas Igrejas. Assim, para as doenças (conhecidas e desconhecidas) e para os partos, chamava-se a benzedeira. Não era uma feiticeira que praticaria uma magia secreta e ilícita. É uma profissão, um dom que a pessoa tem, que o Espírito Santo coloca na gente,vou lá no fulano que cura, não é eu que curo, eu peço para Deus abençoá o remédio, a oração que a gente faz, que Deus faça o possível de melhorá, eu graças a Deus fui sempre atendida. (H.J.R.. Benzedeira e Costureira de Machucadura, Faxinal dos Seixas). A benzedeira tem, claro, seus segredos: as palavras e os gestos sagrados evocados durante uma sessão de cura, a manipulação das ervas medicinais que compõem a garrafada. Mas sua atividade não tem nada de estranho nem de ilícito aos olhos das pessoas. As benzedeiras são mulheres católicas apostólicas e romanas, e se distinguem das outras pelo dom da cura que ela recebeu da benzedeira precedente, normalmente uma mulher de sua família. O Brasil diminuiu, as cidades têm escolas, médicos, postos de saúde, hospitais. E benzedeiras. Porque ainda tem fome, miséria, parcos recursos. Mas o homem ainda tem fé. Fé em homens e mulheres (80% de mulheres) curadores, com sabença ancestral, usando chás de ervas, banhos e benzimentos, rezas e cantos para minimizar os males dos que os procuram. Essa gente conhece as folhas, as cascas, os cipós, as luas para isso e mais aquilo, e, principalmente, as rezas que orientam sua fé na cura. E numa salinha qualquer, num quarto de uma casa quase sempre bem humilde, dona Fulana ou Beltrana, antes de começar a atender, prepara a sala. Acende uma vela e reza um pai-nosso, uma ave-maria, uma salve-rainha e um credo, as mesmas orações feitas com cada pessoa atendida. Em suas orações pede proteção e que o mal seja afastado. Para ela, a fé é o melhor remédio e a oração tem poder. Porque aquele que tem fé se sente bem e se tem fé e faz o que precisa fazer, muda. Sai da sala diferente. E ambos ficam em paz. 109
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“Os seres humanos são seres interpretativos, instituidores de sentido. A ação social é significativa tanto para aqueles que a praticam quanto para os que a observam: não em si mesma mas em razão dos muitos e variados sistemas de significado que os seres humanos utilizam para definir o que significam as coisas [...]. Eles nos permitem interpretar significativamente as ações alheias. Tomados em seu conjunto, eles constituem nossas culturas. Contribuem para assegurar que toda ação social é cultural, que todas as práticas sociais expressam ou comunicam um significado e, neste sentido, são práticas de significação”. A tecnologia vai na contramão dos cientistas céticos e ajuda a propagar as mezinhas, as simpatias, o auxílio das ervas, os benefícios dos gestos, das preces e das palavras de conforto dos doutores do povo, como na postagem Mãos que curam, Palavras que saram e dizem o quanto são importantes na cultura popular, pois mostram, por exemplo, nas palavras de Ricardo Câmara: Terço e folhas nas mãos, oração na ponta da língua e muita fé em Deus. As benzedeiras e benzedores que surgiram no Brasil com a chegada dos jesuítas, no século XVI, são figuras presentes na cultura popular até os dias de hoje. A benzeção, como várias outras práticas religiosas e médicas populares, aflorou-se com intensidade no período Colonial Brasileiro e os fatores que propiciaram o desenvolvimento da prática da benzeção, com certeza, remetem à precariedade da vida material, destacada pela raridade de médicos, de cirurgiões, de produtos farmacêuticos, e ao sincretismo dos povos em geral, que também contribuíram, e muito, para que a prática da benzeção se propagasse ainda mais. As informações na internet precisam sempre ser um pouco questionadas, mas não deixam de trazer alguns esclarecimentos positivos. Quanto a essa questão do surgimento de benzedeiras somente no século XVI, talvez pensemos nas benzedeiras como aquelas que recebem uma graça dos céus e que passam de certa forma pela teologia. Mas os indígenas da terra brasilis tinham os seus curandeiros e se tratavam com as ervas que existiam no espaço que conheciam. Os africanos, escravos, também tinham suas mandingas. A ciência e os deuses sempre se enfrentaram. Três mil anos antes de Cristo, os médicos egípcios receitavam beber, três vezes ao dia, a mistura de gordura de crocodilo, sêmen e fezes dissolvidas em urina, para resolver a dor de cabeça. A ciência não pode explicar muitas coisas. A prece não explica, só eleva sua voz aos céus: “tudo o que você pedir em suas preces, creia você, já obteve, pois tudo lhe será acordado” (Evangelho Segundo São Marcos). Não somente as benzedeiras, mas aqueles que por elas procuram, acreditam no poder imenso da prece: “Pedi e vos será concedido; buscai, e encontrareis; batei, e a porta será aberta para vós. Pois todo o que pede recebe; o que busca encontra; e a quem bate, se lhe abrirá” (Evangelho Segundo São Lucas).
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A Igreja sempre respeitou certas benzedeiras, porque as íntegras são certamente um braço da Igreja; sabe-se que o Espírito Santo confere o carisma da cura a quem quer fazer o bem e que Ele é dado a pessoas às vezes muito simples, que o exercem com humildade e com vistas à salvação das almas e à cura dos corpos. As benzedeiras, quando autênticas, encaminham docilmente as pessoas que se fazem benzer – sempre em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo – para uma vida de autêntica devoção e recepção dos sacramentos da Igreja. O Clero bem formado sempre as respeitou, mas ao mesmo tempo vigia para que nessa prática nada se introduza de contrário ao dogma e às normas da Igreja. Não podemos nos esquecer de que dar a bênção em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo não é exclusivo dos sacerdotes: pai e mãe abençoam seus filhos dizendo “Deus te abençoe”. Na sociedade patriarcal o chefe de qualquer instituição abençoava seus funcionários.
Tradição As pessoas não pedem mais a bênção a seus pais, porque não creem, porque têm vergonha; por vários outros motivos, as empresas não são mais abençoadas. Isso é ruim? É preciso resgatar? Nem todos da empresa têm a mesma religião, apesar de acreditarem em um só Deus. Não se deve impor a fé, nem a crença; não se deve querer que todos se encaixem nas mesmas pré-configurações. O mundo é tecnológico, as pessoas ainda são sentimentos, emoção, irracionalidade muitas vezes, fanatismo, superficialismo, superstição. O mundo não é mais nem menos cristão, continua mundo. Existem mais pessoas; portanto, mais problemas; as pessoas vivem mais, com uma infraestrutura precária; portanto, mais problemas. Segundo o dicionário, a palavra benzer vem de fazer a cruz. E é com esse símbolo que a maioria dos benzimentos têm início. Na cultura popular, corpo e espírito não se separam, tampouco desliga-se o homem do planeta Terra. Para todos os males que atingem o corpo e a alma do homem sempre há uma reza para curar. É por isso que, apesar do tempo e dos avanços da medicina, a tradição dos benzedores ainda persiste na nossa moderna sociedade capitalista, porque atua diretamente nos males do espírito que se refletem no corpo. Assim, mesmo quando se recorre à medicina, muitas são as pessoas que acreditam no poder da reza, da oração, da imposição da mão sobre a cabeça, de palavras que acalmam. Assim, existem sempre aqueles que procuram nas benzeções ou benzeduras uma cura para a sua doença ou um alívio para a sua dor1. 1 http://www.jcnet.com.br/Bairros/2016/08/benzedeiras-de-mao-cheia-e-uma-tradicao-em-bairros-antigos.html
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Tradição Prece Paz As benzedeiras não estudam teologia; aliás, algumas não sabem ler nem escrever. Mas invocam as três pessoas da Santíssima Trindade. São consideradas como pessoas escolhidas: “de graça recebeis, de graça dais”. Algumas recebem os dons nem sabem como. Acreditam que é sua missão de vida. O benzimento se aprende dentro de uma tradição na qual quem sabe e foi preparado ensina quem precisa, independente de crença ou religião. As benzedeiras passam seus gestos, orações, benzimentos, conhecimentos de ervas para suas filhas: quem sabe e foi preparado ensina quem precisa, quem quer, quem aceita, quem tem fé, independentemente de crença ou religião. Não escrevem, não registram de forma alguma. É um registro oral, e não se perde. Não é preciso resgatar, nem cuidar, nem preservar, nem manter, nem nada. Porque tradição, cultura, folclore são assim: nascem, vivem e morrem. Porque tudo nasce, vive e morre; e não é diferente com as tradições. Elas existem enquanto forem funcionais, enquanto forem necessárias, enquanto tiverem utilidade. E desaparecem sem mais. O homem sempre terá necessidade de cura para sua alma. A cura que o psicólogo, o psiquiatra, os médicos do corpo não conseguem achar, porque não é algo que a ciência ainda tenha capacidade de explicar – se é que um dia terá. A fé é o alimento da alma. Clemência, ó Pai, para os que não a conhecem!
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O sagrado e o profano nas Folias de Reis
Fé e Religiosidade Popular Carlos Rodrigues Brandão fala que a melhor maneira de se compreender a cultura popular é estudar a religião, um excelente instrumento para entender esse povo que tem na fé uma das mais fortes marcas de sua identidade e alteridade. Ali ela aparece viva e multiforme e, mais do que em outros setores de produção de modos sociais da vida e dos seus símbolos, ela existe em franco estado de luta acesa, ora por sobrevivência, ora por autonomia, em seus enfrentamentos profanos e sagrados, entre o domínio erudito dos dominantes e o domínio popular dos subalternos. (BRANDÃO, 1980, p.15) Religião, para Junito de Souza Brandão, pode ser definida como o conjunto de atitudes e atos pelos quais o homem se prende, se liga ao divino ou manifesta sua dependência em relação a seres invisíveis tidos como sobrenaturais. Ele explica, tendo como base a definição de religião que “o profano é o tempo da vida e o sagrado, o tempo da eternidade”. Ele cita o teólogo Barruel de Lagenest, que fala da dicotomia entre o profano e o sagrado e sua relação com a compreensão da vida. Se considerarmos a experiência sensível como o elemento mais importante da atitude religiosa, a percepção do sagrado (...) será valor determinante da vida profunda de um individuo ou de um grupo (...) Esse sentimento se transforma em um instrumento de compreensão, pois torna aquele que vive capaz de descobrir, como que por intuição, o eterno no transitório, o infinito no finito, o absoluto através do relativo. O sagrado é, assim, o sentimento religioso que aflora (BRANDÃO, p. 40). Para Mircea Eliade, o homem das sociedades arcaicas tem a tendência de viver o mais possível no sagrado e muito perto dos objetos consagrados. O sagrado e o profano constituem suas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo de sua história. Para ele, o homem das sociedades tradicionais é um homo religiosus (1956, p. 23). Roberto DaMatta afirma que é clara essa forma de comunicação familiar, íntima, direta e pessoal entre homens e deuses no caso brasileiro. Assim, em vez de opor a religião popular à religião oficial ou erudita, será melhor entender que suas relações são complementares (...). A oficial contém tudo que pode legalizar, atuando a partir de fora, mas a popular contém todas as formas que lidam com as emoções em estado vivo, atuando por dentro (...). As duas são modos legítimos de se chegar a Deus” (DAMATTA, 1984, p. 109) 119
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O pesquisador Luiz Beltrão propõe o entendimento das manifestações folclóricas como “a linguagem do povo, a expressão de seu pensar e do seu sentir, tantas e tantas vezes discordante e mesmo oposta ao pensar e ao sentir das classes oficiais dominantes” (BELTRÃO, 2004, p. 71). E, tradicionalmente, a busca da compreensão dos processos de expressão das classes populares acontece com um olhar elitizado, de cima para baixo, que distingue como sagrado tudo que é ligado à religião oficial ou elitizada, e que chama de profanos, os diversos momentos de expressão da fé popular. Geralmente a Igreja é vista, estudada e separada como espaço sagrado: local de orações, de celebrações, do encontro do homem com o divino. E tudo que está fora dela ou à margem dela é assinalado como profano: as danças, as músicas, o divertimento, o comércio. Partindo desta visão, surge a proposta de analisar a religiosidade do homem simples, rural, do povo a partir de sua origem, mais ligada ao sentimento e a vivência da fé, diferenciando-se da separação, que divide a religiosidade entre os enfoques oficial e o popular.
Região de tradição O Vale do Paraíba é uma região desenvolvida sob a marca de forte religiosidade. As festas da região que, em sua grande maioria, celebram e expressam essa religiosidade e a fé da população são marcadas pelo caráter religioso e profano. Ao lado dos momentos litúrgicos e oficiais da igreja, a fé é demonstrada em manifestações populares, como danças, ritos, cantos, queima de fogos, cavalaria, comidas e diversão. Esses momentos são ricos de uma religiosidade própria, celebrando sua ligação com os santos de forma lúdica e alegre. Na festa, o ser humano celebra sempre suas relações com a divindade. Nem a presença dos valores profanos tolda a limpidez dos valores sacrais que presidem a festa. O que importa é o que há nela de religiosidade, de religação em ter os seres de comunhão, em suma. E é justamente nesta parte profana da festa que aparece a fé do povo, a verdadeira alma popular, a maneira de sentir, agir, orar, pensar, ter lazer e demonstrar sua arte e criatividade. (MOURÃO, 1987 apud MAIA, 1989, p. 19) As festas representam para o povo a esperança, a participação e a garantia da proteção especial de Deus, dos santos e da Virgem Maria. É o que reforça o historiador: Ao lado do caráter religioso e festivo, elas constituem a expressão viva da capacidade da comunidade em idealizar e realizar seus projetos e perseguir utopias. Servem como instrumento de interação social, de compreensão de si mesmo, da manifestação da diversidade, de afirmação da identidade, englobando e permitindo a todos que se reconheçam como parte de um único povo, de um só passado, de uma história comum. (TOLEDO, 2002) 120
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Outra pesquisadora da região do Vale do Paraíba, a antropóloga Elisa Torquato Salles, explica que a efervescência das comemorações, como força do coletivo e a necessidade de se reconhecer enquanto parte de uma nação, fez do Vale uma região de muitas festas, e, ao mesmo tempo, por elas se reconhece como uma região peculiar. Puro exercício de sociabilidade, legítima forma de concretizar e traduzir a ideia que fazemos de nós mesmos, em encenações públicas que tão bem este Vale faz há quase quatro séculos! [...]. Por elas revitalizamos nossas tradições, exercitamos nossa memória coletiva, pois nos ajudam a revitalizar nossos símbolos, incorporar o conceito de cultura e ainda a melhor dimensionar nossa própria identidade, como um dos indicadores de uma sociedade regional valeparaibana. (SALLES, 2003) A Folia de Reis é uma dessas festas que reúnem todo esse caráter de comunhão, participação e celebração. Muniz Sodré e Raquel Paiva destacam o caráter simbólico da festa, “antropologicamente entendida como transformação cerimonial de antigos ritos agrários, destinados a celebrar instantes significativos da vida cotidiana, como a época da colheita, a chegada da primavera, o solstício de verão etc” (2002, p. 107). Eles lembram que a origem latina da palavra festa (festum, dies festus, dies festivalis, feriae) tem conotações religiosas, uma vez que provinha das designações de datas consagradas à celebração dos deuses, como ressalta: Para ele, o valor simbólico da festa decorre dessa dinâmica que demarca e ajuda a construir a memória da cidade, que possibilita a reconstrução de identidades ameaçadas e que realimenta as energias coletivas voltadas para a preservação da singularidade grupal. A festa constitui o valor originário de uma forma social que “é fundadora de uma potência de produção de socialidade, em que não deixa de se fazer sempre presente na movimentação participativa, ainda que de modo latente, uma certa violência” (SODRÉ e PAIVA, 2002, p. 108, grifo do autor). A festa também expressa uma forma de coesão do grupo, de reforçar laços de solidariedade. “A festa cria uma complexa teia de relações e interesses, cujo cerne está localizado no interior da sociedade civil, desencadeando processos de celebração que a nutre e fortalece” (MARQUES DE MELO, 2001, p. 110). Este sentido tem forte presença na Folia de Reis, pelas trocas, visitas, orações oferecidas e recebidas ao longo da peregrinação. DaMatta afirma que as festas geralmente comemoram ou celebram alguma coisa que realmente parece ter acontecido. E é isso o que a Folia de Reis vai fazer: reviver, recontar, rememorar o nascimento de Cristo e o trajeto dos Reis Magos ao seu encontro. E, nesse trajeto, reelaborando e reforçando os laços entre a comunidade.
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A Folia de Reis Vinte e cinco de dezembro meia-noite deu sinal nasceu o Menino Deus na noite de Natal (verso de Folia de Reis)
Folia de Reis, Bandeira de Reis, Terno de Reis, Companhia de Reis. Estes são alguns dos nomes usados para designar a festa que faz a representação da peregrinação dos Reis Magos orientados pela estrela-guia, ao encontro de Jesus recém-nascido. Durante a peregrinação, que se inicia nas vésperas de Natal, os cantadores recolhem doações até o dia 6 de janeiro, dia de Santos Reis, data em que é celebrada a festa final, que representa o encontro dos Reis Magos com o Menino Deus. A festa é realizada com as doações. O pesquisador Alceu Maynard Araújo classifica a Folia de Reis como uma celebração do solstício de verão, que tem como principal festa o Natal. Ele explica que as festas do nascimento de Jesus são comemoradas desde o início da religião cristã e que foram reguladas no ano 138 pelo papa São Telésforo, sem uma data fixa: às vezes aconteciam em janeiro, outras, em abril. Foi o papa Júlio I que, em 376, fixou a data de 25 de dezembro para o nascimento de Jesus. Para Luís da Câmara Cascudo, a folia, originária de Portugal, é uma espécie de confraria, meio sagrada, meio profana. No Brasil, é caracterizada por um grupo precatório que pede esmolas para a festa do Divino Espírito Santo ou para a festa dos Santos Reis Magos (CASCUDO, 1954, p. 635-636). Em Portugal, a Folia de Reis tinha como finalidade o divertimento do povo. “Durante suas andanças, esses grupos batiam às portas das casas onde eram abertas as salgadeiras ou depósitos de mantimentos, pois nessa época na Europa é frio” (MAIA, 1989, p. 120). Foi ao chegar ao Brasil que ela adquiriu esse sentimento mais religioso. Peregrina, das vésperas de Natal até o dia 6 de janeiro ou mesmo até 2 de fevereiro, essas folias têm versos próprios para pedir, agradecer e retirar-se, dando as despedidas. As folias do divino andam sempre de dia e “as Folias de Reis andam, à noite, no mister idêntico de esmolar para a festa dos Reis Magos” (CASCUDO, 1954, p. 636).
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Carlos Rodrigues Brandão ressalta que a Folia de Reis é uma rememoração. Ela lembra com palavras e cantos, mas também com gestos de partilha e de bênção, aquilo que ‘há muito tempo aconteceu’, quando os Santos Reis do Oriente partiram em busca de um menino anunciado em silêncio por uma estrela, anunciado entre cantos de louvor pelos anjos de Deus. Ela lembra ‘aquilo’ e por isso mesmo é uma de nossas mais completas e mais bonitas festas de lembrança cristã. (BRANDÃO, prefácio da edição de PESSOA, 1993, p. 5-6) Na Antologia do Folclore Brasileiro, o texto do pesquisador Melo Morais Filho (18441919), companheiro de Silvio Romero, descreve as folias de reis e a Festa da Chegada ou Chegança, já destacando a importância que a festa tem para a população. Há dias no ano em que o povo precisa fazer-se criança. Contrariar esta lei é torná -lo triste, desgraçado. Essa bem-aventurança popular, esse esquecimento momentâneo das lutas pela vida, só a religião largamente proporciona [...] Em qualquer dos estados, a crença tem para o povo estrelas que o iluminam, horizontes que se abrem em alas. (MORAIS apud CASCUDO, 1943, p. 186-187) Brandão explica que, a Folia é “uma prática que traduz, com os símbolos do sagrado popular, aspectos tão importantes do modo de vida camponês, marcados essencialmente por trocas solidárias de bens, serviços e significados” (1982, p. 64). São práticas que reforçam laços de familiaridade, amizade, vizinhança, afiliação e cumplicidade (1982, p. 163). Brandão ressalta que, por muitos anos, a Igreja institucionalizada viu “com reservas ou franca hostilidade estes grupos concorrentes de trabalho religioso ritual” (1982, p. 66). Ele explica que a separação entre o domínio eclesiástico erudito e o domínio popular é tão grande, neste caso, que todo o ciclo natalino que abrange a Folia de Reis dispensa, sem qualquer dificuldade, a presença de padres. E, na maior parte do país, as folias realizam sua peregrinação e festa “longe dos olhos da Igreja” (BRANDÂO, op. cit.). Recentemente, alguns setores da Igreja, após o Concílio Vaticano II, têm buscado a reaproximação com os setores mais populares.
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O ritual e os símbolos da Folia de Reis
“Ô di casa meu sinhô, acordai si estais durminu arrecebei a vigita alegri na chegada du sinhô Mininu” (ARAÚJO, 1964, 145)
A data e a forma da festa têm variado, mas seu sentido não. Segundo a tradição, a folia deveria sair a partir dos dias 24 e 25 de dezembro e se estender até 6 de janeiro. Eventualmente, ia até 2 de fevereiro. Mas em função da mudança do tempo da vida atual e dos compromissos diferentes de sua origem agrária, as peregrinações começam antes, geralmente nos finais de semana, a partir de meados de novembro e se estendem até 6 de janeiro ou depois. Nunca ultrapassando 2 de fevereiro. Outra mudança foi o fato de que as folias só saíam à noite e hoje também saem de dia. Com violões, cavaquinho, pandeiro, pistão, entre outros instrumentos, os foliões cantam à porta das casas, despertando os moradores e recebendo esmolas, servindo-se de café ou de pequena refeição. O chefe do grupo é o alferes ou mestre da folia. No dia 6 de janeiro, realizam a Festa de Reis, para celebrar a chegada dos Reis Magos ao seu destino: o encontro com o menino Jesus. Os festeiros ajudam, contribuem, arrumam o local. Ser festeiro é uma honra e também pode ser resultado de uma promessa. Costumam ser pessoas devotas dos Santos Reis que fazem promessas ou são os próprios foliões e lideranças do grupo Originalmente, a Folia de Reis só saia à noite para simular a peregrinação dos Reis Magos, que eram guiados pela estrela-guia. “Foram eles que cantaram as louvações no nascimento de Jesus, daí ter ficado essa obrigação de cantar a Folia de Reis por ocasião do Natal. Os foliões têm que imitar em tudo os Reis Magos” (ARAÚJO, 1964, p. 171). Os reis magos são três e Araújo destaca que muitos de seus entrevistados afirmam que os três magos simbolizam as três raças que deram origem ao povo brasileiro: a branca (o português), a cabocla (o índio) e a negra (o africano): [Os Reis Magos] Eram doutos e da classe sacerdotal, astrólogos. Nas esculturas populares são facilmente reconhecidos. Muitos caipiras dizem que os Reis Magos são: Rei Branco, Caboclo e Congo. Outros há que nos contam seus nomes e descrevem como reconhecê-los. Melchior ou Melquior é o Rei Branco. É ancião, usa barbas brancas e longas. A sua oferta foi ouro, que simboliza que Jesus é Rei. Gaspar é o Rei Caboclo, jovem, imberbe e corado. Sua oferta foi mirra, que significa que Jesus é Homem. Baltasar é o Rei Congo, barba espessa. Sua oferta foi incenso, que significa Jesus é Deus. (ARAÚJO, 1964, p. 170) 127
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O ritual de entrada, pedidos, retribuição pode variar de região para região, como entre os estados. Mas sua estrutura é basicamente a mesma em todos os lugares. Os foliões chegam à porta da casa cantando. Quando entram na casa, os foliões pedem licença para a cantoria começar em frente ao presépio, e a bandeira que abençoa e livra a todos de más influências é passada para as mãos dos anfitriões. “É de praxe abrir-lhes a porta e acolhê-los hospitaleiramente, dando-lhes não só o óbulo como lhes oferecendo café, bolos ou bebidas” (MAIA, 1989, p. 121). Uma das funções da Folia é angariar donativos para a festa da chegada dos Santos Reis ou Reisado celebrada no dia 6 de janeiro. Quem pode colabora. Quem não pode, é convidado para a festa, da mesma forma. As doações podem ser em espécie, como frangos, leitoas, garrotes, ovos, bebidas, ou em dinheiro. O valor material dos bens recebidos é pequeno quando comparado com seu alto poder simbólico: A participação na folia está ligada a vários fatores: promessa, gosto, tradição de família ou até “herança” (a pedido de parente que era folião e morreu). Quem não participa, mas conhece o ritual, tem profundo respeito pelas folias e recebê-las em sua casa ou encontrá-las pelo caminho é um momento de alegria e fé. “Por várias vezes encontramos folias pelas estradas do Vale do Paraíba e pudemos observar o respeito que os passantes têm por elas. Alguns beijam as fitas ou a própria bandeira, dão esmolas e até rezam” (MAIA, 1989, p. 122).
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Silveiras As Folias e Festas de Reis de Silveiras mantêm ainda grande tradição rural. Silveiras, uma das cidades que compõem o grupo das Cidades Mortas de Monteiro Lobato, é conhecida pela intensa atividade tropeira desenvolvida até o início do século, com sua economia baseada na pecuária leiteira. Acessando a Via Dutra, pela Rodovia dos Tropeiros, Silveiras fica mais para o interior do Vale do Paraíba e preserva o caráter extraordinário da festa, já que grande parte da comunidade se mobiliza para o evento. Devido ao seu caráter popular e espontâneo, a festa é preparada pelo povo, para o povo. Com relação aos seus componentes: os que passam fazem as cantorias; as famílias que fazem questão de receber a visita e as bênçãos dos foliões; os homens e mulheres que preparam as roupas, arrumam e enfeitam o local da festa; os que passam a noite preparando, em fogões a lenha improvisados, a comida que vai ser servida; bem como os que preparam os frangos assados que serão leiloados em benefício da festa. A comida é a tradicional das festas na região: a vaca atolada, com arroz, torresmo e farofa. No dia da festa, todos se conhecem, sabem o que significa aquele momento, reverenciam e valorizam as tradições dos Santos Reis. A Festa da Chegada dos Reis é aberta à toda a comunidade, independente de quem ajudou ou não, e sem cobrança de taxa alguma. Em Silveiras, a comida da festa ainda é preparada pela comunidade em fogões a lenha improvisados, que consomem tempo e energia. A festa é fruto e resultado do trabalho da comunidade, o que acrescenta valor de partilha ao ritual. Entre os principais elementos simbólicos da Folia de Reis estão sua música, os versos cantados e sua estrutura interna, bem como a presença das bandeiras e dos palhaços, sendo estes dois últimos são elementos opcionais, mas encontrados na maioria das folias valeparaibanas. A presença dos palhaços não diminui o caráter sagrado da festa. Geralmente, são associados ao rei Herodes e aos seus soldados. Por isso, não entram nas casas e locais onde há imagens de santos, presépios ou cruzes. Nem cantam, nem tocam instrumentos, e têm uma dança especial. Executam saltos, acrobacias, piruetas e acompanham o ritmo acelerado da música. São a diversão das crianças mais velhas e o terror das menores. A bandeira tem papel de destaque na folia. É um símbolo de respeito, carregada pelo alferes ou bandeireiro, que em muitos casos é quem recebe o donativo. É executada geralmente em tecido brilhante, tipo cetim, sendo bastante enfeitada. Em todas há pregada ou pintada a cena do presépio, além de flores em papel ou plástico.
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A festa No dia marcado para a festa, a chegada da Folia de Reis ao local obedece a um ritual bem definido. Antes de entrar no espaço preparado para a celebração, a folia deve passar por três arcos de bambu, enfeitados com bandeirinhas e flores. Segundo alguns foliões, cada arco representa um dos reis. Para outros, os arcos são as portas de Belém que levam até o presépio. Só podem ser ultrapassadas pelos convidados depois que a folia tiver passado por eles. “Sob o primeiro arco foram cantados 8 versos. No segundo arco, 10 versos e no terceiro, 12 versos, todos eles alusivos à chegada dos Reis a Belém e à viagem de nossa senhora fugindo de Herodes” (MAIA, 1989, p. 127). Na festa de Silveiras, é um momento de grande emoção para os cantadores, que parecem envolvidos em um transe. Muitos contam que nem se lembram depois do que cantaram. Dizem também que o segundo arco é o mais importante, mas não dizem por que, afirmando que protegem um segredo. No interior do recinto, a folia ainda pode cantar para o presépio. Geralmente, são cantados 25 versos que narram a história do nascimento de Jesus desde a anunciação. Os festeiros passam a coroa para os novos festeiros e dá-se início à festa, com distribuição de bebidas e comidas.
Considerações Finais A Festa de Folia de Reis, assim como diversos elementos da cultura popular e suas manifestações folclóricas do Vale do Paraíba, vem sofrendo modificações em virtude da migração do homem do campo para a cidade e da invasão de elementos urbanos nas regiões rurais. Os personagens do nosso olhar estão inseridos num mundo em transformação, de cujas mudanças eles querem participar e, por outro lado, não têm como evitar. Os processos de religiosidade popular estudados revelam que os grupos articulam “o sagrado e o profano” sem estabelecer uma dicotomia. A missa e a dança, a procissão e a cantoria, integram o universo sagrado do homem religioso, complementando-se, sem oposição, fazendo parte fundante cultura popular e auxiliando no fortalecimento das comunidades. 132
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Referências Bibliográficas ARAÚJO, Alceu Maynard. Folclore Nacional: Festas, bailados, mitos e lendas. São Paulo: Melhoramentos, 1964. v. I. BELTRÃO, L. Folkcomunicação: Teoria e Método. São Bernardo do Campo, UMESP, 2004. BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1980. BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega - vol I. Petrópolis, Vozes, 1986. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. (A-I). Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1954. DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? São Paulo, Editora Ave Maria, 1984. ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. Lisboa, Livros do Brasil, 1956 MAIA, Thereza; MAIA, Tom. Vale do Paraíba, festas populares: história e folclore. Taubaté: Cered; Centro Educacional Objetivo, 1989. (Cadernos Culturais do Vale do Paraíba). MARQUES DE MELO, José; Kunsch, Waldemar Luiz. (Orgs.). As festas populares como processos comunicacionais: roteiro para o seu inventário, no Brasil, no limiar do século XXI. In: Anuário Unesco/Umesp de Comunicação Regional n. 5. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo/ Cátedra Unesco/ Umesp de Comunicação para o Desenvolvimento Regional, 2001. SALLES, Elisa Regina G. Torquato. O sentido das festas. 2003. Disponível em: <http://www.resenet.com.br/ asfestas.htm>. Acesso em: 25 fev. 2016. SODRÉ, Muniz; PAIVA, Raquel. O império do grotesco. Rio de Janeiro: Mauad, 2002. TOLEDO, Francisco Sodero. Nossas festas. Vale do Paraíba, 2002. Disponível em: <http://www.valedoparaiba.com/terragente/artigos/art0052000.html>.
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“O Divino Espírito Santo é um grande folião, amigo de muito vinho, muita carne
e muito pão”. Assim cantam em quatro vozes os foliões do Divino na Serra da Bocaina. A tradição religiosa popular tem muito a nos ensinar, é uma verdadeira mística, um caminho espiritual enviesado pela poesia, pelo encantamento. Tem a virtude e o potencial de nos conduzir à experiência de Deus que vivenciaram os grandes místicos como São João da Cruz. Ambas as tradições falam de Deus a partir da beleza e da experiência afetiva. Vestindo roupas floridas e tremulando coloridas fitas ao vento, continuam a cantar, “Vem chegando o Divino, trazendo paz e bênção, a coroa e a bandeira, o canto do folião”. E ainda: “No festejo do Divino, tem fartura e pão de graça; sendo rico, sendo pobre, sede e fome não se passa”. Um verdadeiro privilégio é poder aprender a fé cantada e dançada nos versos do povo. A teologia e os catecismos possuem grande importância na tradição cristã, mas falam de Deus de modo racional e preciso, as coisas da fé podem se tornar teoremas matemáticos, sem espaço para a beleza, para a jocosidade, para a harmonia das vozes caipiras, para as fitas e as flores do chitão, para o gosto do vinho, da carne e do pão. Na experiência da fé popular Deus é diferente, é um folião. Precisamos frequentar a escola da religiosidade popular, resgatar os benzimentos, deixar que as rezadeiras levem suas ervas para o padre abençoar, junto com as folhas de palmeiras no Domingo de Ramos. Elas irão fazer bem às crianças com quebranto, irão defumá-las com o alecrim bento e as ramas de manjericão. Dona Filizina, antiga benzedeira da cidade de Cunha, ensinou-me, quando lá morei, uma reza para menino assustado: “Sai desse menino o que há de agourento; como o alecrim é bento, eu te defumo em louvor do Santíssimo Sacramento!” Nessas manifestações populares habita a harmonia entre povos e etnias diferentes. Há algo de cristão, indígena e negro nas rezas, benzimentos, danças e festejos, coisa bonita de se ver. Certa vez, após a missa, fiquei na calçada da Matriz a conversar com uma famosa rezadeira. Ela me pedia alguns aconselhamentos. Percebi que havia um senhor olhando de longe, esperando a conversa terminar para se aproximar. Estava com uma roupinha de criança nas mãos. Como a prosa se alongava, pensei em chamá-lo. Achei que me pediria para abençoar a roupa da criancinha, pois as pessoas sempre pedem isso ao padre. Quando o chamei, ele me disse: “Licença seu padre”, e dirigiu-se à benzedeira: “A menina não dorme nem come... Trouxe essa peça de roupa para a senhora benzer e tirar a ruindade que puseram nela”. Dias depois encontrei-me com aquele homem e perguntei de sua menina. Respondeu-me que estava curada. Acho isso fantástico. Para o povo não importa muito a ordem hierárquica e institucional, mas a desordem carismática. O Divino Espírito Santo dá seus dons a quem Ele deseja. O vento sopra onde Ele quer. Isso é muito bonito! Nós, pastores da Igreja, não somos donos de Deus. Essa intuição popular precisa se fazer mais presente entre nós. Deus deve ser mais livre dentro das igrejas. 137
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O cristianismo se compõe de três grandes vertentes: a Semita, que são as tradições populares, as histórias de família que foram transmitidas por séculos na oralidade até que fossem anotadas dando origem à Bíblia; a tradição grega, do pensamento filosófico racional: as primeiras comunidades se desenvolveram no mundo da cultura grega. Naquele universo, a teologia cristã tornou-se metódica e racional. Por último, a tradição jurídica dos romanos, que tornou o cristianismo normativo e institucional. Valorizar a cultura religiosa popular, pouco racional e quase liberta da normatividade, pode ajudar o cristianismo a reencontrar suas raízes mais profundas, as narrativas, a poesia, a beleza das festividades, o gosto do pão, da carne e do vinho como gosto de Deus. Essas são as origens semitas que acabaram sendo suprimidas ao longo do tempo pela teologia racional, nos moldes da filosofia grega, e pela institucionalização das comunidades cristãs, que foram se romanizando pelos séculos e se engessando nos princípios do Direito Romano. No ritmo dos foliões aprendemos que o Divino não se importa muito com tanta teologia, tantas leis e cânones. Ele é um grande folião, quer dançar com roupas de chitão florido, gosta dos sabores da vida, é amigo de muito vinho, muita carne e muito pão. No Vale do Paraíba há forte inculturação da fé. A festa de Pentecostes, por exemplo, foi rebatizada, recriada. Em inúmeras comunidades espalhadas pelas grotas e morrarias, nossa gente caipira ainda hoje se reúne para as concorridas festas do Divino Espírito Santo. Nomeados, os festeiros se empenham no esmolar de prendas, levam a bandeira do Divino de casa em casa arrecadando donativos para os festejos. Os mais generosos doam bezerros, gado miúdo, leitoas. Há esmolas mais modestas, como frangos, patos, garrafões de vinho. Tudo é destinado ao almoço que é partilhado no dia da festa. Essa tradição é narrada e transmitida de pai para filho. Ouvi um velho homem contar aos meninos e às meninas que o escutavam com certo espanto que, certa vez, chegou por aquelas paragens um rapaz vindo de Minas Gerais. Arrendou um terreno e fez grande plantio de feijão. Jurou ao Divino que, se colhesse com fartura, daria metade para os festeiros cozinharem para o povo. Teve uma produção extraordinária. Pensou, então: metade é muito feijão para o Divino. E deu apenas um bocado, por desencargo de consciência. Tomou o restante e transportou em tropa para vender na cidade vizinha. Os jacás estavam abarrotados do bom feijão. Quando chegou ao destino, não encontrou quem se interessasse em pagar, mesmo pequena quantia, pelos cargueiros do produto. O feijão ficou todo manchado, com aparência de podridão. As manchas tinham o formato da pomba do Divino. O que pôde fazer foi retornar e doar tudo aos pobres, para que fizessem proveito. Alguns, não tendo outra semente, plantaram aquele feijão, de modo que, até hoje, nos distantes sertões da Bocaina, se colhe o feijão no qual se pode ver com clareza a figura do Divino Espírito Santo. Quanto ao avarento rapaz, voltou para os seus e dele nunca mais se teve notícia. Dizia o velho, com alguns grãos desse famoso feijão na palma da mão: “Não se desfaz trato com o Divino”. 138
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Também ouvi dizerem que uma mulher muito pobre recebeu visita de festeiros. Chamou seus filhos e seu esposo adoecido e fizeram reza diante da bandeira. Envergonhada, ofereceu sua prenda – só tinha um ovo de galinha a doar. O festeiro recebeu o donativo, subiu em sua montaria e partiu com a bandeira em punho. Ao virar a curva, a ponto de não mais ser visto, com receio de que o ovo se quebrasse em seu bolso, tomou-o nas mãos e, meio titubeante, lançou a prenda às margens de um lago. Depois de caminhar por mais de hora, olhando para a coroa da bandeira, deu falta da pombinha que adornava o mastro. Concluiu: o ovo! Voltou, compungido, ao lago, vasculhou suas margens e encontrou a casca do ovo. Não estava estourada, mas quebrada com jeito, como se dela houvesse nascido um pintinho. No mesmo instante, ao olhar para a coroa da bandeira, pôde ver novamente a pombinha a adornar o mastro. O contador dessa história concluiu solenemente: “O Divino nunca rejeita as esmolas dos pobres”. Disse-me Maria do Prado, uma senhora a quem ofereci uma carona ao vir de uma missa na zona rural, “Padre, o velho que mora nessa fazenda fez um desaforo para os festeiros do Divino. O pouso foi em sua casa, a folia cantou até se esgotar, ele mandou matar um porco doente e serviu aos devotos. Os foliões comeram e foram embora obrando. No outro dia a porcada toda começou a morrer, não ficou um só leitão vivo. A morte ceifou também o gado miúdo e fez estrago no galinheiro, e só parou de agir quando ele ofereceu um garrote criado, de valia, para a festa do Divino. “Com o Divino não se brinca!” concluiu ela. Por meio de infindas narrativas conservadas na memória oral de nosso povo valeparaibano as tradições vão sendo transmitidas e se mantendo vivas, como planta teimosa que luta por manter suas raízes fincadas em solo que se tornou árido. Com essas tradições conservam-se também os ensinamentos do cristianismo ditos em outra linguagem – a caipira –, nascida e criada nos terreiros onde as galinhas e seus pintos, os patos, os porcos e demais animais dividem o espaço com as pessoas. Ainda vive, nos sertões do Vale do Paraíba, uma espiritualidade genuína, popular, sem a qual estaríamos desprovidos de nossas mais profundas raízes. Nossos ambientes urbanos carecem dessa espiritualidade autóctone e profundamente cristã.
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Existem também figuras emblemáticas espalhadas por todo o nosso chão. Essas pessoas conservam no próprio viver verdadeiros acervos de nossa cultura religiosa popular local. Próximo à divisa entre Cunha e Silveiras vive Sebastião Costa; esse é seu nome de batismo, mas todos o conhecem por Bastião Matarazzo. Ele não gosta desse apelido. Dizem que, certa vez, ouviu o nome da ilustre família ítalo-paulista em seu radinho de pilhas e o lançou ao chão... Fica enfurecido quando ouve alguém chamá-lo assim. Bastião nasceu, foi criado, envelheceu e provavelmente morrerá na Serra dos Macacos. Quase todas as mulheres daquele vilarejo são suas madrinhas. Em dez anos que permaneci em Silveiras, o consagrei a Nossa Senhora do Patrocínio umas vinte vezes, a cada consagração, uma madrinha diferente. Talvez somente as evangélicas do bairro ainda não tenham ocupado essa função. Bastião é muito devoto. Visita todas as casas do vilarejo com um surrado estandarte da padroeira do bairro, faz sua reza e benze os visitados. Depois de passar por todas as residências, vai pedir a bênção do padre para reiniciar a missão. É meio abobado e fala com certa dificuldade, mas não deixa de participar dos festejos religiosos com seu pandeiro. É uma personalidade marcante entres os foliões do Divino Espírito Santo, dos Santos Reis e de Nossa Senhora do Patrocínio. Embora seja tão religioso, vivêssemos nós no século XVIII, provavelmente seria alguém denunciado à terrível Inquisição que por aqui agiu e a muitos perseguiu naquele tempo. Tem comportamento heterodoxo: não pode ficar sabendo que alguma moça tenha ficado grávida. Quando recebe uma notícia desta, vai logo atrás de sua encomenda, um pouco de leite materno. Tem verdadeira fissura pelo alimento. Chega a chorar como criança por conta do desejo de beber ao menos um copo do tal leite. Certa vez perguntou a um rapaz recém-casado por quem tinha muito apreço, se ele não lhe permitiria mamar em sua jovem esposa, próxima de se tornar parturiente. O rapaz riu e perguntou se ele mamaria com respeito. Ele se ajoelhou e respondeu que sim, pelos Divinos Santos Reis, pelos quais sempre nutriu grande devoção. A devoção aos Santos Reis é uma unanimidade entre os sertanejos “Ai, numa noite de Natal oi rá rá... Ai, uma estrela “esplandeceu” oi rá rá... Ai, justamente foi a hora, oi rá rá... Ai, que o Rei da Glória nasceu, oi rá rá... Ai, cantou o galo anunciando, oi rá rá... Ai, a vaca também berrou, oi rá rá... Ai, respondeu o carneirinho, oi rá rá... Ai, Cristo nasceu em Belém, oi rá rá...” Passavam outro dia pela estrada empoeirada os foliões de Santos Reis a cantar. Nos versos da folia podemos ouvir, cantarolado pelo povo da roça, o Anúncio do Nascimento do Messias. No Evangelho, segundo os foliões, toda a criação reage à encarnação do Verbo Divino. No céu a Estrela representa os astros, aqui os animaizinhos representam todos os viventes. Toda a Criação está em festa, Deus se fez criatura. O mundo tornou-se o templo sagrado de Deus, ele não habita mais longe de nós, num lugar inatingível, está na gruta de Belém, tem mãe e pai, repousa em palhas, numa manje140
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doura, está em paz junto aos animaizinhos, como viveram nossos primeiros pais no paraíso. “Glória a Deus nos mais altos dos Céus, paz na terra aos homens de boa vontade” ouviram os pastores dos anjos que surgiram diante deles. Ali, na estrebaria, há uma nova cosmologia, uma nova ordem para o universo. Deus está na criação, o que antes era profano torna-se sagrado, a terra torna-se, por um momento, mais importante que o Céu, a pequenez mais eloquente que a grandeza, a fragilidade mais atraente que o poder. “Ai, pra visitar o Deus menino, oi rá rá... Ai, os Magos do Oriente, oi rá rá... Ai, com amor e muita fé, oi rá rá... Ai, cada um com seu presente, oi rá rá...” Seguiam a cantar, os foliões. Em Belém os povos se encontram, todos querem ver o menino. É encantador que Deus tenha se feito tão próximo de nós. Ele nos mostrou que é possível se aproximar, superar as distâncias, encontrar e se deixar encontrar. Deus veio até nós, os Magos foram até Ele. A gruta é um lugar de encontro, de superação das barreiras que dividem. “Ai, o clarão da Estrela Guia, oi rá rá... Ai, que foi a divina luz, oi rá rá... Ai, que guiou os três Reis Magos, oi rá rá... Ai, ao presépio de Jesus, oi rá rá...” A estrela é a graça de Deus que brilha no interior de cada um de nós, que nos leva ao presépio, ao encontro de Jesus, Maria e José; ao encontro com animaizinhos, com os rudes pastores, com os Magos estrangeiros e pagãos, ao encontro com os anjos celestiais. A Estrela Guia nos conduz à generosa abertura ao outro, ao congraçamento com a família humana, à fraternidade com os outros seres viventes, ao encontro do Divino presente na Criação. “Ai, Deus lhe pague pela oferta, oi rá rá... Ai, vais ver com alegria, oi rá rá... Ai, os divinos Santos Reis, oi rá rá... Ai, São José e a Virgem Maria, oi rá rá... Ai, Hão de ser nossa Guia, oi rá rá... Assim as folias dos Santos Reis vão levando adiante a tradição de cantar em versos caipiras a encarnação de Deus. Elas não deixam os roçados sem o anúncio do Santo Evangelho.
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Nos pequenos povoados e distantes bairros rurais o mundo ainda se vê cercado por perigos, a desgraça nos ronda dia e noite, há um encanto nisso. Crenças que já sumiram no meio urbano lá sobrevivem com vigor. “O cachorro está cavando no quintal, quem será que há de se ir?” dizia dona Tina. Durante a noite quem mal agourava era a temida coruja, dela cristão nenhum consegue escapar. Sapo, besouro, gavião a piar, uivo de cão, galo cantando fora de hora são maus presságios. Perguntei a um senhor que contava esses fatos se isso não era superstição; ele me disse que não era de forma alguma. Explicou-me: Quando Deus fez o mundo, não deu entendimento só para a humanidade, deu um saber para cada ser. Há também graças e desgraças atribuídas aos santos. Ainda podemos ouvir testemunhos sobre essas coisas em muitas comunidades. Acho isso fantástico. Numa ocasião ouvi dizer que pelas bandas da Bocaina, uma moça muito bonita havia conseguido um noivo rico e já estava de casamento marcado. Ela se recusou a dançar em homenagem a São Gonçalo, em seu festejo. No dia seguinte, foi ver seu noivo: estava acometido de forte flatulência e soltava gases tão malcheirosos, que não sobrou outra opção ao rapaz senão deixá-la. Sua desventura durou exatamente um ano. Quando chegou novamente o dia de São Gonçalo ela se ofereceu para dançar em honra do santo: sua desgraça foi superada, mas seu noivo já havia se casado com outra. Disseram que ela se tornou devota do santo e até hoje costuma cozinhar em suas festas. Nunca se casou, mas se tornou uma boa cristã e dedicou sua vida à prática da caridade aos pobres. São Benedito também é muito milagroso. Dona Teresinha da Mariazinha, “tomadora de conta” da capela do Santo nestas bandas, por mais de quarenta anos, me contou que há algum tempo atearam fogo ao pasto de São Benedito. Ela com poucos companheiros foram tentar apagar o incêndio, parecia impossível. Aproximou-se um fazendeiro acompanhado de cinco empregados: vendo a sua labuta contra o fogo, fez pouco caso e disse: Vou fazer um aceiro em minha fazenda para que esse fogo não chegue até lá. Ela fez uma prece ao Santo Negro, pediu a ele que guardasse sua capela; na mesma hora o vento virou e soprou forte para o outro lado. O fogo queimou da cerca para fora e não entrou na terra do santo; rapidamente atingiu as terras do fazendeiro e, segundo ela, queimou o quanto quis por lá. Ela sempre repete: “Não façam pouco caso de São Benedito!” Visitando um senhor muito idoso, acho que beirava os cem anos, ouvi um relato de que nunca me esqueci. Era um preto velho, dizia que seus avós haviam penado no tempo da escravidão. Ele mandou-me esperar, entrou em um quartinho de sua pobre casinha e veio de lá com um saquinho de pano, bem amarradinho. Disse que era de uma herança muito valiosa que pertencera aos seus avós. Mostrou-me uma moeda de vinte réis, do tempo do Império, datada de 1868. Segundo me relatou, certa vez subiram em seu telhado a fim de furtarem seu tesouro. A moeda estava guardada dentro de uma mala de couro. Os ladrões foram abrindo as telhas para invadir o casebre. O velho preto havia sido congueiro de São 144
A espiritualidade popular é um caminho seguro a Deus
Benedito e só parara de dançar por conta de um reumatismo que o acometera. Ele estava de olhos fechados, a rezar diante da imagenzinha do Santo negro. De repente, começou a ouvir as batidas da congada e os cantos foram se tornando cada vez mais audíveis. Quando olhou, o santo havia descido do oratório e dançava os pontos da Congada sobre a mala de couro. Ao se deparar com esse milagre, o ladrão desistiu do furto e partiu sem nada levar. Passados alguns meses, chegados os festejos de São Benedito, grande foi a surpresa do velho homem ao reconhecer o assaltante dançando entre os demais membros da congada. São Benedito havia protegido sua casa e convertido o rapaz que tentara roubar a moeda de 20 réis. Manter viva essa memória é manter viva a fé, os medos, as alegrias, as crenças e as descrenças; as raízes que nos mantêm em pé, que nos identificam como gente da Bocaina, do Vale do Paraíba, da Mantiqueira. Tenho procurado fazer minha parte: quando pia uma coruja, não hesito em dizer: “Quem será o próximo?” Quando cantam as cigarras, falo: “Hoje não passa sem chuva.” No dia de São Lourenço, não deixo de recordar que é dia de plantar abóboras. Frequentemente peço à minha cozinheira que deixe um pouco de casca de alho no tempero socado, assim o Saci não cospe no pilão. Guardo as folhas de palmeiras bentas no Domingo de Ramos sobre a porta de minha casa. Faço gosto em acreditar nessas coisas em que ninguém mais acredita, de contar o que o que ninguém mais conta. Assim me sinto vale-paraibano, gente da Mantiqueira, povo da Bocaina. Sinto-me radicado nessas terras abençoadas e entregues à proteção de Nossa Senhora da Piedade. Que Ela sempre interceda por toda a boa gente que trabalha, constrói e leva adiante nossas comunidades católicas, nossa querida Diocese de Lorena que celebra seus 80 anos de fundação.
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Pe. Fabrício de Senne Beckmann
Em Piquete, minha terra natal, Francisco Máximo Ferreira Netto retratou em “Nhá
Dita”, crônica publicada em seu livro “Crônicas de Cidadezinha”, lançado em 2005, a rica tradição popular encontrada entre o povo católico da região. Vale a pena o registro, em homenagem à Nhá Dita e ao amigo Chico Máximo:
Nhá Dita Nhá Dita morava numa casinha-de-pau-a-pique, na antiga estrada do Itabaquara, em Piquete. Por ela passava gente humilde, muitos vindos da zona rural: tropeiros, pedidores de esmola, andarilhos, vendedores de frangos e frutas. Havia um senhor que até cana caiana vendia, e na sua linguagem estropiada dizia “cana calhana”, o que era motivo de risos e piadas. Quase todos que passavam paravam na casa da preta velha para um copo d’água ou um dedinho de prosa. Nhá Dita vivia numa pobreza limpa e silenciosa, a casinha cercada de plantas e flores simples – dálias, beijos, capitães-da-sala, samambaias, espadas-de-são-jorge, sempre viçosas, além de ervas medicinais as mais variadas, que faziam do seu quintal uma farmácia viva. Havia uma cerca de bambu entrelaçada de um chuchuzeiro e um pé de batata-doce, sempre floridos. Junto à casa, um córrego de águas limpas e, além, os campos do meu avô Horácio Pereira Leite. Lembro-me do marulho das águas, dos mugidos das vacas e do canto escandaloso de uma seriema lá no alto do morro. Diziam que quando a seriema cantava era porque tinha visto cobra coleando nas encostas. A preta velha e sua filha Maria Antônia eram lavadeiras conceituadas. Pela manhã e à tarde debruçavam-se sobre o córrego e punham-se a lavar roupas. Eram muitas as trouxas, gordas, repolhudas, que elas sabiam equilibrar sobre as cabeças. Eram tão caprichosas, que amassavam folhas verdes de marianeira e as esfregavam nas peças brancas, no coradouro, para que ficassem bem alvas. Quem passasse pelas redondezas poderia contemplar os varais cheios de roupas que mãe e filha iriam passar com ferro-a-brasa, cuidadosamente, para evitar chamuscados de faíscas. Imagino quantas trouxas deveriam lavar e passar em troca de algumas moedas. Providentes, o quintal sempre lhes oferecia alguma coisa para a mesa. Nhá Dita andava sempre descalça, as saias longas, à vista os calcanhares grossos e rachados. Por vezes, interrompia a lavagem das roupas e, sentada nas pedras, os pés espalmados, preparava o pito e lentamente degustava as baforadas, como se não tivesse pressa de acabar. Depois guardava pito e rolinho de fumo num dos bolsos da saia e continuava a trabalhar. Ela nunca ia à igreja, mas em compensação não comia carne na Quaresma, jejuava na 146
A espiritualidade popular é um caminho seguro a Deus
Sexta-feira da Paixão, tinha um oratório apinhado de santos e sua filha cuidava, com zelo, dos altares da matriz. Diziam que ela havia feito uma promessa – a de iluminar, dos dois lados, com velas, o Morro do Cruzeiro. E eu, criança, imaginava o Morro todo iluminado, as chamas trêmulas, piscantes, a noite enfeitada de ouro e prata, toda a população presa àquele espetáculo feérico. Torcia para que a promessa se cumprisse e ardia de curiosidade por saber o porquê daquele voto que ninguém sabia explicar. Era tudo tão misterioso e sagrado, que ninguém ousava indagar à preta velha. Comentavam que seriam necessárias centenas de velas e se perguntavam onde ela iria conseguir dinheiro para tanto gasto; e se a promessa não fosse cumprida, como iria se arranjar diante de Deus e de toda a corte celeste? Relembravam velhas promessas - a de uma mulher que, para conseguir a cura do filho picado por cobra, jurara subir de joelhos a ladeira da basílica de Aparecida; a de um homem que, para salvar o filho apunhalado, se comprometera a nunca mais sair de casa. Achavam tresloucada a idéia da pobre Benedita, que continuava tranqüila ao lado do córrego, com suas saias longas, seu pito e seu quintal povoado de plantas e galinhas. O tempo foi passando, as crianças crescendo, os velhos morrendo e as coisas sendo esquecidas... Certo dia, longe de casa, recebi uma carta de minha mãe com a notícia da morte da querida Benedita. Falava-me da doença, os pés inchados, os olhos remelentos, toda ela um amontoado de dores e lágrimas. Aposentara o pito e deixara de mascar fumo. Sempre silenciosa e resignada na pobreza. Morrera em Lorena, longe de sua casinha-de-pau-a-pique, longe do seu córrego e do seu quintal. Senti não ter estado ao funeral. Imaginei um enterro pobre, flores humildes, sem coroas e disfarces. Imaginei-a, também, ingressando na Eternidade, percorrendo um caminho todo iluminado de velas, sorridente e feliz, ao longe uma Cruz, tudo igualzinho ao que sonhara aqui na terra.
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Nossa Senhora da Piedade: a festa
“… as festas regularmente renovam os frutos” Emile Durkheim, in As formas Elementares da Vida Religiosa.
A festa mostra o que o grupo é e pensa. É um momento de participação de todos,
em que a identidade se expressa plenamente em cerimônias, por meio dos cultos e em festividades, por meio da demonstração da alegria. É, sem dúvida, em todas as culturas a manifestação de uma vida diferente, de uma vida presenteada. Ma-neira de estarmos juntos, de nos encontrarmos e de convivermos. Expressão de solidariedade e comunhão. Festar é a força do coletivo e a necessidade de nos reconhecermos, enquanto parte da comunidade de nossos semelhantes, em nossas ações de reciprocidade, que nos homens realiza o sentido de sua humanidade e, portanto, é também o que nos reúne regularmente. É o momento em que a própria vida social adquire concretude, porque é a sociedade quem a produz, num exercício permanente dizer quem somos. Assim a festa se revela como algo primordial, porque é o lugar de reunir consciências e ações humanas. Portanto, repleto de significados que caminham pelo tempo, onde “o passado não deixa de viver e de se tornar presente”, como nos ensinou o historia-dor. O espaço festivo é lugar e um tempo especiais, onde as relações entre o universo do sagrado e do mundo dos homens devem existir, é onde se exercita também a conciliação entre os seres como a angústia e o prazer, a vida e a morte, o sagrado e o profano, o passado e o futuro, em que nossa sociedade se revela publicamente em suas tradições e em suas raízes históricas e culturais. No caso das festas religiosas, elas não são apenas formas de expressão de sociabilidade; elas constituem essencialmente a manifestação do sagrado. Obedecem a um calendário divino, são ritualizadas e contam uma história sagrada que encoraja e mantém a devoção. É como estar perto de Deus e ser reconhecido entre os homens. Elas consolidam relações e formas de sensibilidade – são os modos de agir, pensar e sentir muito particulares entre os que fazem parte dessa crença e dessa fé – cores e sons, o esplendor das opas e dos crucifixos preciosos, o brilho das luzes e da fé, o repique de sinos a conferir sentido à vida dos que dela participam. A Europa, que nos ensinou o sentido das festas modernas, a partir dos séculos XV e XVI, legou-nos o culto aos Santos, em especial o culto mariano trazido pelos portugueses devotos da Virgem Santíssima, revelando o profundo sentimento de insegurança e necessidade de proteção, tanto no tocante à grande aventura ultramarina, como na convivência difícil com o trópico. As devoções marianas também se consolidaram através de suas festas e de alguma forma persistem até os dias de hoje, incluindo ricos e pobres, brancos, negros e mestiços. Virgem que consolava no sofrimento (Nossa Senhora da Piedade ou das Dores), que protegia na guerra (Nossa Senhora da Vitória), a quem se apegavam os senhores das 151
Elisa Sá Torquato Salles
casas grandes (Sant’Ana Mestra), e os aristocratas (São Pedro), ou os escravos (São Benedito e Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos), ou ainda, todos os santos juntos quando venerados como protetores de vilas e cidades, como seus padroeiros. Em sua trajetória secular, a festa de Nossa Senhora da Piedade ou de 15 de agos-to, como a chamam popularmente, incorporou as transformações que o próprio tempo em diálogo com o mundo contemporâneo tece, continuando a dar vida à tradição das relações sociais características da cidade e da região valeparaibana. Dessa maneira, os sentimentos e as ações sagradas caminham em harmonia com o tempo garantindo a força e o poder do catolicismo brasileiro. É a nossa Senhora da Piedade senhora dos caminhos que veio nas trilhas do ouro e da fé vencendo as outroras verdes águas do Paraíba resguardada na bolsa de couro dos bandeirantes lá no fundo das canoas, ou, transpondo os abismos pedregosos da serra nos suados lombos de muares. Maria Luíza R. P. Baptista, in Nossa Senhora da Piedade - Padroeira de Lorena
Histórias e crenças que se repetem e se renovam e asseguram a realização das festas sagradas de santos e, em especial, de santos padroeiros. Revelam-se fortes ecos de um passado nos dias atuais através de uma religiosidade católica que nos foi ensinada por um passado distante e que se recria e se transforma no hoje. Como a comprovar, através do Frei Agostinho de Santa Maria, no século XVIII (1723) observamos indícios claros da existência da festa de Nossa Senhora da Piedade, em Lorena, já no século XVIII, quando faz referência à milagrosa ima-gem da Piedade, e assim passo Rio Paraíba à outra parte para buscar o Santuário da Virgem nossa Senhora da Piedade. Este Santuário está situado em huma Aldea, ou povoação, que he o porto aonde desembarcão as canoas e se chama Guaypacaré, porto muyto frequentado, de todos os que passão ás minas, e vem das minas. Com esta misericordiosa Senhora de todos aquelles moradores daquelle porto muyto grande devoção, e também todos os que por alli passão para as minas. He esta Casa da Senhora a Paroquia daquelle lugar, e assim se vê colocada no seu altar mòr, como Senhora e Patrona, que he daquelle Santuário. Todos os moradores daquelle lugar a servam com fervorosa devoção, e lhe solemnizão a sua festa, o que fazem com muyta perfeição, e grandeza. 152
Nossa Senhora da Piedade: a festa
São os Santos e suas celebrações – no caso, Nossa Senhora da Piedade – fazendo acontecer a importante relação sagrado e profano e garantindo aos homens a intercessão junto a Deus, essencial à manutenção da fé e de nossas raízes. É a festa caminhando pelo tempo, é um documento vivo da sociedade, em que a fé e a arte nos mastros, nos cânticos, nos enfeites das ruas, nas procissões, marcam o lugar da participação coletiva e de sua incorporação em um cotidiano nem sempre solidário e feliz, mas que alimenta a alma coletiva, como um longo e rico texto de religião e cultura, em que se pode ler o passado identificando o presente em forma de devoção. E assim, O templo, a noite regorgita de fiéis, o coro sonoriza as recolhidas naves com melodias… tudo vibra, tudo se movimenta. Esquecem-se as amarguras e as lutas de todos os dias. Há mais sorrisos nos lábios, mais esperanças nos corações, mais amor a esta Lorena de Nossa Senhora da Piedade (Correio Diocesano, 1964). E viva Nossa Senhora da Piedade! E viva a Lorena das Palmeiras Imperiais!
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C artas dos Bispos 155
P arabéns, Igreja de Lorena! Oitenta anos! Dom Eduardo Benes de Salles Rodrigues Estava eu em terras gaúchas, mais precisamente em Porto Alegre, servindo como bispo auxiliar, quando fui comunicado por um emissário da Nunciatura que seria nomeado bispo da Diocese de Lorena, o sétimo em linha sucessória. No dia 11 de janeiro de 2001 foi publicada minha nomeação no “L’Osservatore Romano”. Recebi com alegria a nova missão a mim confiada por Sua santidade, o Papa, hoje São João Paulo. Tornei-me o sétimo bispo de Lorena, sucedendo a Dom João Hipólito de Morais que, por 24 anos se dedicou zelosamente ao seu governo pastoral. Como sói acontecer, minha pobre mente se tornou habitat de muitos pensamentos, todos de interrogação, a respeito da nova tarefa a que Nosso Senhor me destinava. Sempre de novo o temor diante da missão muito maior que nossas capacidades humanas. Só depois de algum tempo se deu o retorno à paz interior pela consciência retomada, com a luz do Espírito Santo, de que a graça de Deus atua precisamente na medida em que nos reconhecemos pequenos e pobres. Finalmente, em 11 de março de 2001, assumi em celebração solene, na linda Catedral de Nossa Senhora da Piedade, a missão, em festiva e generosa acolhida da parte de Dom João Hipólito de Morais, do clero diocesano, presbíteros e diáconos, das religiosas e de fiéis vindos de todas as paróquias da Diocese. Durante quatro anos e três meses exerci em Lorena o ministério episcopal. Um tempo de muitas alegrias e de muitas amizades. Foi pouco tempo – apenas quatro anos –, mas foi um tempo fértil, quando pude experimentar o calor humano e o espírito cristão do povo dessa linda e histórica região do Estado de São Paulo. Quando me sentia bem “instalado”, sintonizado com a alma de Lorena, fui nomeado Por Bento XVI Arcebispo de Sorocaba. Era quatro de maio de 2005. Foi um dos primeiro atos do Papa Bento XVI. Agora, quando me torno Arcebispo Emérito de Sorocaba, visitando os anos que se foram, quero deixar à Igreja de Lorena minha palavra de gratidão. Primeiro, declaro minha gratidão a Nossa Senhora da Piedade. Na minha infância, ela foi “das Dores”, pois minha primeira comunhão se deu na igreja de Bias Fortes, que tinha Nossa Senhora das Dores como padroeira. Minha história tem uma marca forte de Nossa Senhora da Piedade. Padroeira da Cidade de Barbacena, onde repousam os restos mortais de meus pais. É ela também padroeira de Minas Gerais. Em Sorocaba, duas são as paróquias confiadas à sua proteção. A mais tradicional, no 157
município de Piedade, e a outra em bairro da zona industrial de Sorocaba, no Éden. Ambas feitas de comunidades que se distinguem pelo acolhimento e pelo espírito missionário. Depois, declaro minha gratidão aos padres e diáconos, dos quais recebi imerecida e generosa acolhida. Fica muito viva a lembrança de nossas reuniões e das visitas pastorais, sempre muito frutuosas, iluminadas pela alegria do povo. Gratidão aos diáconos, sempre serviçais, fieis à palavra de Jesus, modelo de serviço: “Estou no meio de vós como aquele que serve” (Lc 22, 27). Gratidão aos religiosos e religiosas, que, tanto na Educação, quanto no atendimento pastoral do povo, constituem uma inestimável riqueza da Igreja de Lorena. Gratidão aos educadores de nossas escolas, que eu tive o cuidado de visitar quando das visitas pastorais. Como foi bom esse contato com as escolas! E como se torna cada vez mais necessário, diante da invasão de uma mentalidade laicista, que pretende banir do processo de educação o cuidado com a dimensão religiosa de nossas crianças e jovens! Gratidão à Comunidade “Canção Nova”, que espalha pelo mundo, a partir de Cachoeira Paulista, o amor de Deus, e que me convocou para colaborar em sua programação através de entrevistas, permitindo-me assim um contato permanente com um vasto público não só do Brasil, mas também de outros países. Gratidão aos fiéis leigos e leigas que colaboraram decididamente na administração e nas pastorais, permitindo melhor articulação na dinâmica de nossos empreendimentos. Gratidão aos bispos que me precederam no governo pastoral de Lorena e que já partiram para a pátria definitiva. Que Deus os tenha na plenitude da visão! Gratidão a Dom Antônio Affonso de Miranda, SDN, e a Dom Benedito Beni dos Santos pelo generoso pastoreio exercido em favor do povo nessa amada Igreja. Gratidão a Dom João Inácio Müller que, com dedicação, continua a dar direção à caminhada da diocese, e que bondosamente abriu as portas da Catedral para que eu celebrasse os 50 anos de vida presbiteral, em 2014. Peço a todos que orem por mim. Ao me tornar emérito, desejo servir mais e melhor à Igreja de Nosso Senhor, na “Alegria do Evangelho”. Uma breve reflexão final: Assim respondi a alguém que me perguntou como estava eu passando: “Estou passando... Ninguém fica para sempre. Penso que, com a graça de Deus, estou passando... bem. Espero que, quando minha história for toda passado, eu tenha chegado lá onde só é o Presente, a Presença plena”.
Sorocaba, 10 de fevereiro de 2017 Dom Eduardo Benes de Sales Rodrigues Bispo Emérito de Sorocaba 158
R elato Pastoral Dom Benedito Beni dos Santos Ensina o Concílio Ecumênico Vaticano II que a Igreja particular (diocese) é constituída à imagem da Igreja universal. É a Igreja universal em miniatura. Componentes da diocese são o bispo, sucessor dos Apóstolos, com seu presbitério, e uma “porção” do Povo de Deus. O anúncio do Evangelho é a celebração da Eucaristia. Antes, pois, de ser uma realidade jurídica, a diocese é uma realidade teológica. A diocese de Lorena foi instituída canonicamente no dia 31 de julho de 1937 pelo Papa Pio XI com a bula “Ad Christianae Plebis Regimen”. Ela é fruto também do esforço e amor do Conde José Vicente de Azevedo, homem de fé e verdadeiro filho da Igreja. Eu tive a graça de ser designado Bispo da Diocese de Lorena pelo Papa João Paulo II e tomei posse no dia 18 de maio de 2006. Vinha da Arquidiocese de São Paulo, onde fui bispo auxiliar durante quatro anos e meio. Na Diocese de Lorena, procurei continuar o trabalho dos predecessores. Recordo algumas iniciativas: Em primeiro lugar, a criação de sete paróquias e três santuários diocesanos. Como a população vinha crescendo intensamente, a criação de novas paróquias tornou-se uma necessidade pastoral. Em segundo lugar, a visita pastoral a todas as paróquias. É, sobretudo, durante a visita pastoral que se percebe a vida da Paróquia como comunidade de graça e salvação, como rebanho de Cristo confiado ao cuidado do bispo diocesano e do pároco, que é se cooperador necessário. Em terceiro lugar, procurei promover a comunhão de todo o clero: diocesano e religioso. Todos eram convocados para reuniões, encontros e retiros. Trata-se de uma caminhada que, atualmente, é conduzida e orientada pelo meu sucessor, Dom João Inácio Müller, OFM. Em quarto lugar, a elaboração do Diretório dos Sacramentos e do Plano de Pastoral, dois pilares da vida eclesial diocesana. Sua redação contou com a colaboração do clero e dos leigos. O Plano de Pastoral teve como fonte principal de inspiração o Documento de Aparecida. Como a pastoral é uma realidade dinâmica, o Plano precisa sempre ser atualizado. Creio, porém, que sua metodologia – riqueza de diretrizes práticas fundamentadas numa teoria muito simples – continua válida. Ainda na dimensão pastoral, recordo o Projeto de Missão Permanente. Foi elaborado com competência e entusiasmo por uma equipe de leigos, assessorada pelo Bispo Diocesano e pelo Coordenador de Pastoral. O Projeto de Missão Permanente despertou o interesse de outras dioceses que o adotaram, assessoradas pela Equipe da Diocese de Lorena. O material foi publicado e pode servir ainda de fonte de inspiração. 161
Em sexto lugar, recordo a construção do prédio do Seminário Diocesano e do Centro de Evangelização. Aquele, um edifício moderno e amplo, destinado à formação do clero diocesano, mas aberto também aos seminaristas de dioceses pobres sem possibilidade de ter seminário próprio. Este, um edifício ampliado e modernizado, destinado à formação de agentes leigos para a evangelização. Outro evento importante foi a celebração dos 75 anos da fundação da Diocese de Lorena. Foi um momento não só de memória histórica, mas também de fortalecimento da identidade da Diocese. Frutos concretos da celebração são as duas publicações com a história geral da Diocese e um resumo histórico de cada paróquia. No período em que estive no governo pastoral da Diocese, houve dificuldade de colocar em prática a pastoral do ecumenismo, do menor e do ensino religioso nas escolas públicas. Ao encerrar este breve relato, quero cumprimentar a Diocese e, de modo especial, Dom João Inácio Müller, OFM, e o clero, pela celebração dos oitenta anos de caminhada de nossa Igreja Particular. Que a Mãe da Piedade continue abençoando a Diocese. Esta celebração está sendo realizada num momento em que se alarga o horizonte evangelizador da Diocese: o cunho missionário do Seminário e a belíssima iniciativa de enviar sacerdotes missionários para outras dioceses. Creio que essa iniciativa é a mais significativa comemoração do aniversário: oitenta anos de existência da Diocese de Lorena.
Dom Benedito Beni dos Santos Bispo Emérito de Lorena
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Um depoimento...
Comungando ideias: que seja nossa Igreja uma Igreja do Povo!
Laurentino Gonçalves Dias Jr.
Muito me honrou o convite para participar da comissão organizadora dos oitenta
anos da diocese de Lorena e, especialmente, para diagramar o livro comemorativo. No momento em que finalizo a edição deste livro, vejo que não fazia ideia de quão enriquecedoras seriam as etapas de diagramação e coleta de imagens ilustrativas. Para este último passo, conheci pessoas ímpares e partilhei de momentos que me possibilitaram crescer pessoal e culturalmente. Conheci, sem dúvidas, a Igreja do Povo. E foi isso o que mais me encantou ao longo da produção deste “Diocese de Lorena: 80 Anos. A fé se faz devoção e habita no meio do povo”. A Igreja Católica é responsável por parte significativa da História. Os arquivos da fé católica encerram inestimável patrimônio histórico, artístico, arquitetônico e cultural. A presença da Igreja em todos os pedacinhos de chão deste mundo permitiu que ela fosse promotora e guardiã desse patrimônio. Por todos os cantos, seja numa catedral ou na mais singela das capelas, a identidade local está sempre lá, representada e significativa. Para estudarmos a identidade de um povo a análise da iconografia católica é fundamental. Por meio dela se evidenciará o patrimônio imaterial daquela gente, certamente rico em simbologias da história e cultural locais. Assim como a Igreja Católica tem inquestionável participação na história do mundo, a Igreja particular é formadora e integrante da história da comunidade eclesial em que está inserida. E não seria diferente com a Diocese de Lorena: localizada em região com forte presença da fé católica, nossa Igreja Particular mantém também frutífera trajetória no acúmulo de um significativo patrimônio, seja em volume e/ou importância. Com tanto para ser registrado e contado, nascia, em 2012, o livro “A Diocese de Lorena: 75 anos de história”. Outra meia década não alteraria significativamente essa história, retratada por meio de brilhante pesquisa dos amigos queridos professora Dóli de Castro Ferreira e padre Fabrício de Senne Beckmann. Ilustrado com belíssima iconografia, garantiu-se o casamento perfeito de um livro de história com um álbum de memórias. Tão carinhosa e profissionalmente gestado, mereceu prêmio do IEV (Instituto de Estudos Valeparaibanos). Cinco anos passados, atentou-se que, rica em igrejas e esculturas seculares, além de representativo conjunto de aparato litúrgico, a Diocese de Lorena já tivera seu patrimônio material escrutinado naqueles 75 anos. Neste “Diocese de Lorena: 80 Anos. A fé se faz devoção e 167
habita no meio do povo”, nos preocupamo, então, com o patrimônio imaterial de nossa Igreja particular. Buscou-se, portanto, neste livro comemorativo ressaltar a importância do povo, sua cultura e tradição, para o entalhe da feição da Diocese. Feição esta que revela sua essência, sua personalidade particular e coletiva, e afirma sua relevância como comunidade de comunidades. Assim como é simultaneamente múltipla e una a Diocese, múltiplo e uno foi imaginado este livro. A colaboração de oito ensaístas faz referência não apenas às oito décadas da Diocese, mas, também, ao caldeirão de gentes, culturas, história e estórias que a formaram. Nos artigos, a tônica foi identificar a formação da Diocese – não apenas sua história cronológica e factual, mas especialmente a formação de sua gente, de sua alma. O resultado se nos apresenta na forma de uma leitura informativa e edificadora – emocionante até, em certos trechos – e leva-nos a conhecer os que construíram e, dinamicamente ainda moldam a Igreja da padroeira Nossa Senhora da Piedade. Harmonicamente, combinaram-se as veias antropológicas, filosóficas, históricas, memorialísticas e regionalistas dos autores que, farta e ricamente ilustradas, delinearam a arquitetura humana desta Igreja Particular. Pecado seria não destacar as referências à folclorista Ruth Guimarães, “caipira” de Cachoeira Paulista, representante máxima da expressão cultural de nossa região. D. Ruth legou-nos o registro da cultura e da magia das crendices populares. Por meio de sua filha, Júnia, que nos brindou com saboroso texto, e de algumas belas imagens feitas por Botelho Netto, marido de D. Ruth, agradeço aos demais ensaístas deste livro e a eles rendo homenagem. Não menos essenciais foram as contribuições de Dom João Inácio Müller, Bispo que conduz, neste 2017, a Diocese de Lorena, e as de dois de seus antecessores, Dom Benedito Beni e Dom Eduardo Benes. As palavras desses líderes demonstram quão correta foi a indicação de cada um deles para a coordenação da condução de nossas paróquias. Processar a montagem, página por página, de um livro é como uma gestação. O resultado final, tal qual um filho, requer atenção e cuidados com os detalhes. Pois foi assim, página por página, imagem por imagem, emoção por emoção, que concebi este livro. Coube-me casar fontes e estilos, parágrafos e páginas, textos e imagens, coloridos e pretos & brancos, medidas e proporções, a fim de garantir a tão procurada unidade. Ao final, a mim me restaram contatos, conhecimento, emoção e memórias registradas em fotografias ou não... Em suma, crescimento. Especialmente na fé e na espiritualidade. Encontrei, ao produzir este livro, uma Igreja Católica diferente da que conhecia. Nas comunidades evidenciei cultura, sincretismo, linguagens e religiosidades particulares que preservam a fé e a identidade de cada uma delas e, consequentemente, da Diocese de Lorena e da Igreja Católica. Ouso afirmar que sem o povo nossa Igreja não existiria na forma como é, pois perderia a base que alimenta e sustenta a fé cristã. 168
Também não faltaram experiências para conhecer o trabalho diferenciado de religiosos e leigos da Diocese, que – no caso dos sacerdotes, muito além de suas atribuições eclesiásticas – contribuem espiritual e materialmente com as comunidades, tornando menos pesada e mais bela a rotina de vida de seus membros. O que se encontra hoje é uma Igreja muito mais atuante do que muitos – eu, inclusive – conhecem, restritos que somos às missas dominicais. A limpeza e a organização das igrejas matrizes ou das distantes capelas da zona rural, a preparação da missa, o atendimento aos enfermos – seja ele para conforto espiritual ou a distribuição da Eucaristia –, o constante e intenso trabalho de assistência social e a manutenção de casas de cuidado aos idosos são alguns dos exemplos que pude melhor conhecer. Tudo isso contribuiu para a formatação deste livro, que tem em cada página um pouco desses momentos experimentados ao longo de sua gestação. Desde a colcha de fuxico, que simboliza as diversas paróquias, até a imagem de um bebê sendo batizado, passando pelas paisagens da região, tudo me tem profundo significado e serviu como algum tipo de lição que aplicarei à minha vida. Das visitas a algumas paróquias vieram os registros de gente do povo – retratos tirados muitas vezes sem que a pessoa percebesse, que muito me atraem, pois registram a espontaneidade, emprestam-me a alma do fotografado. Esse acervo me é muito caro. Muitas dessas imagens ilustram os ensaios deste livro. “Diocese de Lorena: 80 Anos. A fé se faz devoção e habita no meio do povo” pretendese um registro comemorativo e um presente para a comunidade católica. Aglutinar pensamentos diversos, harmonizados pelo intento comum de celebração de tão significativa efeméride, celebrar a fé secular e as crenças populares foram objetivos, acredito eu, alcançados. Enfim, como a colcha de fuxicos coloridos numa paleta de inúmeras cores, as oito décadas da Diocese de Lorena foram celebradas neste livro por competentes autores, os quais tive o privilégio de diagramar e conhecer, pessoalmente ou por meio de seus textos. Que a Piedade seja sempre lembrada! Que seja longa e frutífera a caminhada do povo da Diocese de Lorena! Que sejam valorizadas e preservadas nossas riquezas culturais – materiais e imateriais! Que seja nossa Igreja uma Igreja do Povo!
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Foto Alzira Beckmann Página 89: “Nair Porfírio”. Imagem em Piquete/SP.
Fotos Andréia Marcondes Páginas 22 e 23: “Rio Paraíba do Sul”. Páginas 123 e 124: “Bandeirinhas enfeitam a matriz de Areias”. Imagem registrada em Areias/SP, em 2013.
Fotos Botelho Netto Página 104: “Miquelina”. Imagem registrada em Piquete/SP. Página 107: Sem título. Página 114: Sem título.
Fotos Nelson Favorino Página 80: Sem título. Página 85: Tropeiro. Imagem registrada em Silveiras/SP. Página 87: Tropeiro. Imagem registrada em Silveiras/SP.
Fotos de Laurentino Gonçalves Dias Jr. Página 01: Catedral de Lorena Páginas 04 e 05: “A Fé”. Imagem registrada no Sertão dos Marianos, em Silveiras/SP, em 2016. Páginas 06 e 07: “Mastro do Divino Espírito Santo”. Imagem registrada em Cruzeiro/SP, em 2017. Página 08: Sem título. Imagem registrada em Piquete/SP, em 2017. Página 10: “Unidade”. Imagem registrada em Cruzeiro/SP, em 2017. Páginas 12 e 13: Dom João Inácio Müller. Imagem registrada em Lorena/SP, em 2017. Páginas 14 e 15: Sem título. Imagem registrada no Sertão dos Marianos, em Silveiras/SP, em 2016. 174
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Páginas 18 e 19: “Trecho do território da Piedade”. Imagem registrada em Cunha/SP, em 2016. Páginas 24 e 25: “Piedade”. Imagem registrada em Lorena/SP, em 2017. Página 26: Detalhe da Catedral de Lorena/SP. Foto registrada em 2017. Páginas 30 e 31: Detalhes da imagem de Nossa Senhora da Piedade. Imagem registrada na Catedral de Lorena/SP, em 2017. Páginas 38 e 39: “Evangelização”. Imagem registrada no Sertão dos Marianos, em Silveiras/ SP, em 2016. Páginas 44 e 45: “Pico dos Marins”. Imagem registrada em Piquete/SP, em 2012. Páginas 52 e 53: “Encontro de Irmandades de São José”. Imagem registrada em Piquete/SP, em 2015. Páginas 54 e 55: “Festa de Nossa Senhora da Guia”. Imagem registrada em Quilombo, bairro de Cachoeira Paulista/SP, em 2011. Páginas 56 e 57: “Uma nova evangelização”. Imagem registrada no Sertão dos Marianos, em Silveiras/SP, em 2016. Páginas 58 e 59: “Terço dos Negros”. Imagem registrada em Piquete/SP, em 2014. Página 62: “A bandeira do Divino”. Imagem registrada no Sertão dos Marianos, em Silveiras/SP, em 2016. Página 64: “Batismo”. Imagem registrada no Sertão dos Marianos, em Silveiras/SP, em 2016. Página 67: “Santo Antônio”. Imagem registrada em Cruzeiro/SP, em 2017. Página 68: “A reza do terço”. Imagem registrada em Piquete/SP, em 2014. Páginas 70 e 71: “Povo de fé”. Imagem registrada na zona rural de Silveiras/SP, em 2016. Página 72: “Altar da Sá Mariinha das Três Pontes”. Imagem registrada em Cunha/SP, em 2017. Página 75: “Altar da Sá Mariinha das Três Pontes”. Imagem registrada em Cunha/SP, em 2017. Páginas 82 e 83: “Mulher de fé”. Imagem registrada no Sertão dos Marianos, em Silveiras/ SP, em 2016. Páginas 90 e 91: “Tradição”. Imagem registrada em Cunha/SP, em 2017. Páginas 94 e 95: “Caipira”. Imagem registrada em São José do Barreiro/SP, em 2017. 176
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Páginas 96 e 97: “Casa feliz”. Imagem registrada na zona rural de Cunha/SP, em 2017. Páginas 98 e 99: “Um fogão a lenha”. Imagem registrada na zona rural de Cunha/SP, em 2017. Páginas 100 e 101: “Cruzeiro”. Imagem registrada em Piquete/SP, em 2017. Página 108: “À luz da fé”. Imagem registrada no Sertão dos Marianos, em Silveiras/SP, em 2016. Página 110: “Uma escolhida”. Imagem registrada na zona rural de Silveiras/SP, em 2017. Página 112: “Confiança”. Imagem registrada em São Luiz do Paraitinga/SP, em 2016. Página 118: “Paixão”. Imagem registrada em Piquete/SP, em 2017. Página 121: “Festa”. Imagem registrada em Cruzeiro/SP, em 2017. Páginas 124 e 125: “Folia de Reis”. Foto registrada em Piquete/SP, em 2010. Páginas 126 e 127: “Folia de Reis”. Foto registrada em Piquete/SP, em 2010. Páginas 128 e 129: “Folia de Reis”. Foto registrada em Piquete/SP, em 2015. Páginas 126 e 127: “Folia de Reis”. Foto registrada em Piquete/SP, em 2010. Páginas 132 e 133: “Bandeirinhas de festa”. Foto registrada em Cruzeiro/SP, em 2017. Página 136: “Fitas do Divino”. Imagem registrada em Cruzeiro/SP, em 2017. Páginas 138 e 139: “O Divino”. Imagem registrada em Cruzeiro/SP, em 2017. Páginas 140 e 141: “Um homem de fé”. Imagem registrada em Cunha/SP, em 2017. Páginas 142 e 143: “Atrás da procissão”. Imagem registrada em Piquete/SP, em 2017. Páginas 144 e 145: “Congada de São Benedito”. Imagem registrada em Cunha/SP, em 2017. Páginas 146 e 147: “Um cruzeiro”. Imagem registrada em Cunha/SP, em 2017. Páginas 150 e 151: “São Benedito”. Imagem registrada em Cunha/SP, em 2017. Páginas 152 e 153: “Piedade”. Imagem registrada em Lorena/SP, em 2017. Páginas 154 e 155: “Detalhe da Catedral de Lorena”. Imagem registrada em Lorena/SP, em 2017. Página 157: “Detalhe da Catedral de Lorena”. Imagem registrada em Lorena/SP, em 2017. Páginas 158 e 159: “Detalhe da Catedral de Lorena”. Imagem registrada em Lorena/SP, em 2017.
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Páginas 160 e 161: “Detalhe da Catedral de Lorena”. Imagem registrada em Lorena/SP, em 2017. Página 157: “O Pão que é vida”. Imagem registrada no Sertão dos Marianos, em Silveiras/ SP, em 2017. Páginas 160 e 161: “Santa Cruz”. Imagem registrada na zona rural de Silveiras/SP, em 2016. Página 167: “Congada de São Benedito”. Imagem registrada em Cunha/SP, em 2017. Páginas 150 e 151: “Valei-me, São José”. Imagem registrada em Cunha/SP, em 2017. Páginas 170 e 171: “Dona Lurdes”. Imagem registrada em Piquete/SP, em 2017. Páginas 172 e 173: “A fé na simplicidade”. Imagem registrada na zona rural de Silveiras, em 2016. Páginas 174 e 175: “Seu Luiz”. Imagem registrada em Lorena/SP, em 2017. Páginas 176 e 177: “Liturgia”. Imagem registrada em Piquete/SP, em 2017. Páginas 178 e 179: “Aleluia!”. Imagem registrada em Piquete/SP, em 2017.
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Fotos “Arquivo Pró-Memória”, da Fundação Christiano Rosa (Piquete/SP) Página 51: “Padre Juca e Congregados Marianos em Piquete/SP”. Página 78: A piquetense Abigayl Lea da Silva durante trabalho na obra salesiana Colônia São José de Sangradouro, no Mato Grosso.
Fotos capturadas da internet (domínio público) Páginas 36 e 37: Fotografia de “Primeira Missa no Brasil”, tela de Vítor Meireles, de 1860, que faz parte da coleção do Museu Nacional de Belas Artes, do Rio de Janeiro. Imagem obtida na internet. Página da internet: https://www.google.com/culturalinstitute/beta/asset/primeiramissa-no-brasil/IQFUWbm_Wu1XaA Páginas 40 e 41 / 42 e 43: Fotografia de “A Fundação de São Paulo”, tela de Oscar Pereira da Silva que faz parte do acervo do Museu Paulista, em São Paulo. Página da internet: http:// portalarquitetonico.com.br/sao-paulo-de-piratininga/ Página 47: Reprodução de desenhos de índios Puri feitos por Rugendas (Johann Moritz Rugendas) em 1824. Página 48 e 49: Reprodução de “Escravos em fazenda de Café no Vale do Paraíba”, fotografia de Marc Ferrez, de 1882, que faz parte do acervo do Instituto Moreira Sales. Página da internet: http://ims.com.br/images/44/59/acv_imgcapa_1399734459.jpg
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