Dhaianny Vieira • Elis Faber • Lauany Rosa Natalia Guimarães • Sandra Nascimento
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Nas Asas do รกguias A vida dos atletas da equipe ร guias da Cadeira de Rodas
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Dhaianny Vieira • Elis Faber • Lauany Rosa Natalia Guimarães • Sandra Nascimento
Nas Asas do águias A vida dos atletas da equipe Águias da Cadeira de Rodas
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Orientação: Wagner Belmonte Revisão: Claudio Fatigatti Capa: Julia Lima Diagramação: Leandro Siman (NeGo!) Fotos: Tine Black/Arquivo Pessoal
Vieira, Dhaianny Nas asas do Águias: a vida dos atletas da equipe Águias da Cadeira de Rodas / Elis Faber; Lauany Rosa; Natalia Guimarães; Sandra Nascimento. São Paulo, 2012. 192 p.
“A diferença entre quem gasta o próprio talento para se realizar e quem aposta tudo nele é abissal. A arte passa a ser a sua vida, não no sentido de totalizar todas as coisas, e sim naquele de que somente a arte pode continuar a fazer viver, a garantir o futuro. Não existe um plano B, uma
1. Livro-reportagem 2. Basquete - Deficientes 3. Atletas com deficiências.
alternativa qualquer à qual se pode recorrer”.
I. Faber, Elis II. Rosa, Lauany III. Guimarães, Natalia V. Nascimento, Sandra 8
Roberto Saviano, em A Beleza e o Inferno 9
...à mãe Sandra Vieira, que viveu meu sonho à distância. Ao pai Diogo Pereira e aos quatro irmãos. E à prima Vânia por me acompanhar até o final.
Dhaianny ...à mãe Inês, pelo apoio incansável. Ao pai Jair, pelos sonhos altos e ideias aparentemente mirabolantes. E ao irmão Jean, que mesmo discreto sempre acreditou em mim.
Elis ...à mãe Tânia, por toda força e ajuda. Ao pai Robson, por me fazer querer provar que sou capaz. Ao irmão Demétrius. E ao Fofo, por me mostrar que nem tudo está perdido.
Lauany ...aos Guimas, pela inspiração de cada dia e por acreditarem em mim. E aos amigos (meus melhores) por sempre colorirem minha monocromia.
Natalia ...aos meus pais, Bernardo e Maria Solidade, por sempre me apoiarem e acreditarem em mim. E aos amigos, por dividirem alegrias e incentivos constantes.
Sandra 10
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Agradecimentos Após tanto tempo fugindo dos clichês, não abrimos mão de usá-lo agora e começamos agradecendo a Deus, por toda a força e companheirismo, não só no trabalho, mas durante toda a vida. Agradecemos aos mestres que tanto ajudaram nesta caminhada, especialmente a Lilian Crepaldi, por cada interpretação espontânea durante a leitura dos nossos textos; ao Vanderlei Dias, pela enorme ajuda e expectativa que demonstrou a cada novo passo dado pelo grupo; ao Claudio Fatigatti, pela revisão detalhada;e principalmente ao orientador Wagner Belmonte, que esteve ao nosso lado em todas as decisões. Um agradecimento especial à equipe Águias da Cadeira de Rodas, desde a comissão técnica até os jogadores, pela recepção calorosa, pela colaboração durante todo o projeto e, principalmente, por cada lição de vida que nos mostraram a cada dia. E agradecemos também a todos os amigos e familiares dos jogadores que, de alguma forma, ajudaram a tornar o nosso projeto uma realidade. Por fim, agradecemos aos nossos familiares que deram todo apoio, incentivo e inspiração necessários para que nenhuma de nós desistisse no meio do caminho.
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Os voos dos “Águias” *Jairo Marques O esporte voltado às pessoas com deficiência tem se mostrado uma das maneiras mais eficazes para alavancar inclusão e promover uma nova realidade de vida para milhares de brasileiros. É por meio da prática do atletismo, do halterofilismo, do futebol para cegos, do basquete em cadeira de rodas que muita gente conhece formas de estar em sociedade, novas tecnologias de apoio e ganha vigor para a vida. O Brasil está a poucos passos de se tornar uma potência paralímpica e, durante a trajetória para atingir esse feito, tem chamado a atenção dos olhos do mundo. Essa pressão internacional auxilia em conquistas internas que são básicas em outras partes do planeta, entre elas o direito de todos de ir e vir. É nas quadras, nas piscinas, nos tatames que aquele que teve uma mudança drástica em sua vida, em decorrência de fatalidades do trânsito e da violência, pode renovar sua energia de seguir adiante, refazendo objetivos e traçados de futuro. É neste sentido que “Nas Asas do Águias” propõe uma colaboração com o firme propósito de tentar ampliar as fronteiras sociais revelando valores, histórias e experiências de para-desportistas ligados ao basquete. Importante frisar que ser um “águia” é ter de subverter uma realidade perversa de falta de acessos, de falta de reconhecimento público. É ter de enfrentar lugares cujo transporte público e estrutura urbana aflige, inclusive, aqueles que se dizem plenamente capazes em seus sentidos ou de controle motor. Uma sociedade moderna reconhece e valoriza sua diversidade seja em uma modalidade esportiva praticada em cadeira de rodas seja no acolhimento daqueles que precisam de um cão-guia para melhor se deslocar. O papel do esporte tem sido fundamental. O ouro ganho por um atleta amputado tem o mesmo peso e valor que o do atleta convencional, sendo que, no 14
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caso do primeiro, o espetáculo da exibição costuma ser grandioso, pois dribla a tida ineficiência física com o resultado campeão. Que o voo desse time seja rasante para quebrar as injustiças, panorâmico para
Índice
mostrar a beleza do diverso e seguro em sua função transformadora da humanidade.
O Clube.................................................................................................. 19 Nilton...................................................................................................... 29 Douglas................................................................................................... 41 Heriberto................................................................................................. 53 Berg......................................................................................................... 69 Anderson................................................................................................. 85 Luciano................................................................................................... 95 Rebô...................................................................................................... 111 Alex....................................................................................................... 121 Daniel.................................................................................................... 131 Henrique............................................................................................... 141 Rodrigo................................................................................................. 149 Leandro................................................................................................. 161 Nas Alturas............................................................................................ 171 *Jairo Marques, 38 anos, é colunista na Folha de S.Paulo, mantém um blog no site do jornal voltado a questões que envolvem as pessoas com deficiência e é cadeirante desde a infância. 16
Um dia na vida do outro....................................................................... 177 Galeria de fotos..................................................................................... 184 17
O Clube Na quadra, o templo destes atletas, olhares de respeito e esperança fixam-se no discurso que ecoa, espalha-se e chega na forma de sussurro para os curiosos atentos sentados na arquibancada. O costumeiro círculo formado pelos jogadores, em volta da técnica, que fala e gesticula com peculiaridade, é sinônimo de união. Alguns mais eufóricos estralam os dedos, outros expressam garra, e poucos, mais calmos, transmitem serenidade. Uma notável montanha russa de emoções. Um sentimento em comum pode ser visto em toda a equipe, desde a comissão técnica até cada jogador: vontade de vencer. Não se trata só de mais um jogo. Trata-se de honrar a família. A cada passe de bola, jogada ensaiada, lance livre e cesta realizada um nome é honrado. Nomes de atletas que já se foram e que estão por vir. Nomes dos atuais integrantes desta família, que aos poucos se estruturou com pessoas comuns motivadas pela sede de vitória ao longo de suas carreiras. Determinação e honestidade são as palavras que norteiam o discurso que está por terminar. Ao final, um sorriso surge em alguns rostos. Eles se olham, cumprimentam-se e demonstram o quanto acreditam em cada um. De mãos dadas, começam uma oração baixinha “Pai nosso que estás no céu...”, é nessa força que eles acreditam. O “Amém” firme é seguido pelo impetuoso grito de guerra: “Ôooooo, um, dois, três, ÁGUIAS!”. Agora sim, estão prontos! Tudo começou no dia 7 de abril de 1986, quando mais de trinta amigos se reuniram com o objetivo de fundar uma associação civil. Sob a presidência de José Augusto da Silva, nascia o Grêmio Recreativo Independente de São Paulo – Esportes para Deficientes Físicos – Águias da Cadeira de Rodas. Tratava-se
“Pai nosso que estás no céu...”, é nessa força que eles acreditam. O “Amém” firme é seguido pelo impetuoso grito de guerra: “Ôooooo, um, dois, três, ÁGUIAS!”.
de um grupo de amigos, com diferentes deficiências, que promoviam encontros para desenvolverem atividades recreativas como teatro, damas e basquete. Diante de algumas opções apresentadas pelo presidente, o nome da entidade foi 19
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escolhido pelos participantes da reunião. Em seguida, as cores preto, branco e
gavam por recreação, passaram a enxergar o esporte por outra ótica. Tinham
vermelho foram definidas para representar o Grêmio. A eleição da diretoria foi
ali um time competitivo que estava se formando com capacidade de ir além da
feita, para que os integrantes assumissem o mandato que duraria dois anos. A
quadra daquele ginásio.
promessa feita em ata foi que a diretoria, ali instituída, faria de tudo para que as finalidades sociais daquela instituição fossem realidade no mais curto prazo
Brasil
possível. Aquele grupo de amigos jamais imaginaria que mudanças estavam por
A prática de basquete adaptado no Brasil teve início na década de 50 e foi a primeira modalidade paralímpica do país. Diante do aumento do interesse dos
vir em tão pouco tempo e de bicicleta. Em 1988, Meire Marino tinha 22 anos e era estudante de Educação Física.
jogadores pelo basquete, foi fundada, em dezembro de 1997, a Confederação
O interesse pelo esporte vinha desde a adolescência, quando jogava vôlei. Além
Brasileira de Basquetebol em Cadeira de Rodas (CBBC), responsável pela mo-
da prática esportiva, outra área chamou a atenção de Meire. Ao participar de
dalidade de acordo com as regras estabelecidas pela Federação Internacional de
uma palestra na empresa Folha de S.Paulo, ela se sentiu encantada pelo mundo
Basquete em Cadeira de Rodas (IWBF). O jogo é disputado por dois times de
da comunicação. A princípio, com o objetivo de se manter na faculdade, Meire
cinco jogadores cada, com o objetivo de marcar pontos na cesta do adversário.
começou a trabalhar como recepcionista na Folha e aos poucos foi conquistando
As partidas são divididas em quatro períodos de 10 minutos. O choque entre
espaço. Um dia, o grupo de cadeirantes visitou a redação do jornal para pedir
as cadeiras e quedas de atletas são comuns durante os jogos e nem sempre são
uma entrevista. Foi ali, no local de trabalho dela, que uma nova oportunidade
considerados faltas. A cada dois toques na cadeira, o jogador deve quicar, passar
surgiu. Resolveu conhecê-los. Meire fez uma visita ao Raul Tabajara, um ginásio
ou arremessar a bola. As cestas realizadas podem ser de um, dois ou três pontos.
da Prefeitura de São Paulo onde o grupo se reunia. Por considerar a distância
A equipe com o maior número de pontos, ao final da partida, será a ganhadora.
curta, foi de bicicleta. “E aí eu entrei no Águias e nunca mais saí. Era perto da
A quadra, traçada em linhas brancas, tem a mesma dimensão da quadra do bas-
minha casa, eu moro na Barra Funda e eles treinavam perto da Marginal. Ao
quete olímpico, 28 metros de comprimento por 15 metros de largura.
longo da minha carreira só fiquei fora do basquete três anos”.
O basquete adaptado pode ser praticado por homens e mulheres com algu-
As pessoas que se reuniam jogavam basquete adaptado da maneira deles e
ma deficiência físico-motora. A cadeira de jogo é considerada parte do atleta e
com cadeiras convencionais. Meire observou que alguns cadeirantes queriam
é adaptada de acordo com a necessidade de cada um. Pode ter três ou quatro
praticar o esporte para valer, mas ela não sabia como ajudar. Naquela época era
rodas, sendo duas grandes atrás e uma ou duas rodas pequenas na frente. Para
precário o material que falasse sobre a modalidade. “Quando vi que realmente
participar das competições, os jogadores são submetidos a testes com o objetivo
existia uma habilidade em basquete de cadeira de rodas, me encantei”. Decidida
de identificar a pontuação de cada um. Esta pontuação chama-se classificação
a se empenhar, Meire pediu ajuda para um dos professores na faculdade, que
funcional e pode ser 1.0, 1.5, 2.0, 2.5, 3.0, 3.5, 4.0 e 4.5. Quanto maior a defi-
explicou como adaptar as regras do basquete andante para o cadeirante. Aos
ciência, menor a classificação. Em uma partida, nenhuma equipe pode ter joga-
poucos, com as dicas do professor e a ajuda dos cadeirantes, o basquete adaptado
dores com total de pontos que exceda 14. Os técnicos do time são responsáveis
foi se desenvolvendo no Águias. “Eu aprendi muito com eles, aliás, eu devo muito
por conferir a pontuação durante os jogos, para manter a equipe potencialmen-
a este grupo que começou, porque eles me ensinaram tudo”.
te equilibrada.
Com a chegada de Meire ao Grêmio, os cadeirantes, que até então só jo20
O Águias da Cadeira de Rodas foi um dos primeiros times em São Paulo. 21
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Aos poucos foram surgindo outras equipes, como a de Cubatão e Santos. Com
um corpo e quem conseguia ficar, ficava”. O Águias já era um time de basquete
isso, era possível organizar algumas pequenas competições. “A gente fazia al-
estruturado taticamente, porém sem equipamentos e condições financeiras para
guns Torneios da Amizade, que era o que é o Campeonato Paulista hoje, mas
investimentos. As cinco primeiras cadeiras de jogo foram doadas pela jornalis-
era muito diferente em todos os aspectos de evolução. Mesmo nesses torneios, o
ta Joyce Pascowitch, que atualmente é a patrocinadora oficial do time. Outros
Águias foi campeão algumas vezes. Eles já tinham uma cara de equipe, só que
patrocínios foram surgindo, como o da Fiat, que fez doação de cestas básicas
sem equipamento, sem grana, sem nada”. Meire, com pouca experiência de vida
durante um ano. “Eu retirava lá todo mês umas 20 cestas básicas, dependendo
e profissional, deu brilho à habilidade daqueles jogadores e conquistou a con-
do tanto de atleta que tinha. Tanto no basquete, como natação e atletismo. Aí
fiança e o respeito de cada um deles. “É uma experiência que não dá muito pra
lotava a Kombi de cesta básica, ia lá e entregava por mês”.
gente entender. Não tem muito que dizer. Eu era uma menina muito novinha,
Mesmo com algumas dificuldades, a vontade de participar dos jogos e cam-
de 22 anos, e não tinha a mínima noção de nada da vida. Tinha jogadores muito
peonatos era mais forte. Em certa ocasião, o time não tinha condições de via-
mais velhos que eu de 35 ou 40 anos e tinha os novinhos de 15 e 16. Acho que a
jar para a disputa de um Campeonato Brasileiro. Para arrecadar verbas, surgiu
principal coisa foi o encantamento. Eles se sentiram lisonjeados de ter uma téc-
a ideia do “pedágio”. Os jogadores iam para os faróis das principais avenidas
nica. Isso foi o grande começo. Alguém se interessou realmente pelo esporte em
de São Paulo e abriam uma faixa feita artesanalmente com os dizeres: ‘Ajude
cadeira de rodas, naquele momento dentro do Águias”.
o Águias da Cadeira de Rodas a disputar o Campeonato Brasileiro que será
Mas para que os objetivos fossem alcançados como time, era necessário orga-
em Curitiba, precisamos da sua ajuda, qualquer quantia vale a pena’. Algumas
nização. Meire, agora como técnica, passou a exigir disciplina, horário e preparo
pessoas davam dinheiro na hora, outras pediam o número da conta bancária e
físico. O grupo se reunia somente aos sábados, por isso as regras foram estabeleci-
faziam depósitos posteriormente, e assim o time recebia as contribuições.
das. E os jogadores respeitavam. Os mais velhos mostravam para os novatos que
Durante essa experiência, pessoas importantes colaboraram para o desen-
ali havia regras. No começo, ela era sozinha, mas aos poucos convidou colegas da
volvimento do Águias, como o falecido comandante Rolim Amaro, na época,
faculdade para que trabalhassem como voluntários no Grêmio. Neste período, os
presidente da companhia aérea TAM. A estratégia era sempre a mesma, uns
deficientes poderiam escolher entre natação, atletismo e basquete. Com a ajuda dos
jogadores abriam a faixa e os outros ficavam em volta dos carros distribuindo
voluntários, essas modalidades também puderam ser desenvolvidas, porém com
adesivos. Até que um dia alguém quebraria a rotina. Rolim Amaro era torcedor
menos força. “O Águias teve até bons anos atrás natação e atletismo. Agora a gente
do São Paulo Futebol Clube, que coincidentemente também é um time tricolor.
encerrou e só faz o basquete como carro chefe da entidade, o que é ruim, mas a
Os jogadores do Águias ganharam a simpatia dele, que abaixou o vidro do carro
gente tem que fazer bem alguma coisa, não pode fazer tudo mais ou menos”.
e disse: ‘passagem aérea eu banco’. Meire, que já tinha contato com a imprensa,
E como em qualquer equipe ou organização, alguns se adaptavam às regras
sabia de quem se tratava e ficou responsável por fazer o intermédio. “Então o
e outros, não. “Impus muita disciplina, mandei muita gente embora, briguei mui-
Águias era uma equipe muito pobre, mas que só viaja de avião e todo mundo no
to, a equipe mudou, teve nego que eu coloquei pra fora, porque não se adequava
Brasil achava que a gente era milionário, mas não. Eu mandava um fax - naquela
à disciplina. Álcool, bebida, algumas vezes droga e tudo isso eu enfrentei, dizen-
época não tinha e-mail - para o Rolim Amaro, dando a relação dos meninos e ele
do a eles que não combinava, que eles poderiam ser atletas, que eles poderiam
falava: ‘beleza, a TAM patrocina todas as passagens’. Então a gente viajava de
ser profissionais e que eles poderiam ter um patrocínio. E esse time foi ganhando
avião para o Brasil inteiro de graça e usava bonezinho e camiseta promocional”.
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Após a morte do comandante Rolim Amaro, este patrocínio deixou de
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Mudanças
existir. “Alguns diretores de marketing desencantaram. Eu acho que ele fazia
A reestruturação não seria fácil, mas uma nova geração de jogadores com-
porque ele gostava mesmo, era uma coisa dele. E, na verdade, a gente parou
prometidos totalmente com o esporte estava por vir. “Eu entendia que tinha um
de procurar muito, quando ele faleceu, porque começamos a viajar de ônibus
objetivo e quando vi que esse objetivo estava desfigurado, na verdade eu não
e entendemos que era mais prático”. O transporte feito com ônibus fretado
tinha nada. Às vezes, a gente acha que tem alguma coisa que é muito frágil,
facilita na locomoção durante os eventos esportivos. No caso de campeonatos
então nos preocupamos em manter coisas que não existem, que são feitas pela
em outros Estados, o Águias vai de ônibus e, durante os dias de competição,
nossa imaginação. Acho que nisso eu sou muito radical, sou muito pé no chão.
usa o mesmo veículo para ir de um lugar para o outro como hotel, ginásio e
Se tem coisas que não funcionam ou a gente corrige ou corrige. Não existe meio
restaurante.
termo. Você vai criar situações, vai tirar gente da zona de conforto, mas você
O Águias teve também a ajuda de uma padaria que doou as camisetas da
está buscando o objetivo? Quando todo mundo foi embora tive uma grande tris-
equipe. Outro grande patrocinador foi o Bingo Itaim, que possibilitou muitas
teza, mas obviamente eu já estava prosperando, porque outras pessoas estavam
conquistas, como a compra de um apartamento e a oportunidade de trazer para
chegando”. Em pouco tempo o Águias estava novamente com 10 jogadores. Um
São Paulo alguns jogadores de Recife. “Eu acho que o grande ‘boom’ do Águias
falava para o outro e a equipe foi se formando com mais força. Mesmo com a
foi realmente na época do patrocínio do bingo. Foi quando a equipe se estrutu-
inexperiência da maioria, rapidamente tornou-se uma equipe de vencedores.
rou. Foi aí que pudemos dizer: ‘nossa, existe uma entidade mesmo’”.
Atualmente, o time conta com atleta de outros Estados. Isso só foi possí-
A exigência por disciplina no Águias resultou em alguns problemas de com-
vel, porque alguém abriu esta porta. Ainda nos anos 90, num campeonato em
portamento que não se adequavam ao perfil de um atleta. Meire precisou fazer
Anápolis, Meire se impressionou com um jogador que era bem rápido e estava
algumas mudanças radicais que influenciaram diretamente o grupo como um
dando trabalho para o time dela. Ela alertou: “se vocês deixarem esse número 15
time, pois alguns jogadores foram mandados embora, ficando apenas três. “Na-
puxar mais um contra-ataque o bicho vai pegar”. A bronca funcionou. O Águias
quele dia entrei no carro, fiquei chorando e pensei que tudo que tinha construído
melhorou na marcação e não permitiu que Rosenaldo, conhecido como Ruy,
durante todos aqueles anos eu estava perdendo. Aí os caras vieram, começaram
tivesse mais sucesso nas jogadas. No final, ele contou para Meire que seu sonho
a bater no vidro e eu disse: ‘some da minha frente, porque vocês jogaram a mi-
era jogar no Águias, mas ela explicou que o time não tinha condições e nem es-
nha vida inteira no lixo’. Acho que eles não acreditaram, passaram dois dias e
trutura para levá-lo de Recife para São Paulo. “Eu falei assim: ‘olha vamos fazer
eles voltaram pedindo desculpas e eu disse ‘Rua! Agora não tem mais, esperei
uma coisa, deixa passar. Deus sabe de todas as coisas, se eu tiver estrutura a gente
demais a desculpa de vocês’”.
se fala’. Peguei o telefone dele, e é claro que eu perdi”. Um ano depois, Meire
Após essa transformação, Meire sentiu a necessidade de ter alguém que pu-
recebeu uma carta de Ruy com o seguinte remetente “Resenaldo, o número 15
desse auxiliar na parte psicológica e na comunicação da equipe. Em 1998, ela
do time de Recife, aquele que você mandou marcar”. Na carta ele apresentava
convidou Neli Silva para integrar a equipe, uma psicóloga que até então havia
novamente o desejo de integrar a equipe liderada por Meire. Então, ela decidiu
trabalhado apenas com atendimento em consultório. Aos poucos, Neli aprendeu
que alugaria um apartamento, conversou com os patrocinadores do Bingo e, em
a lidar com o tratamento dedicado ao esporte, o que fez do Águias um dos pri-
1999, conseguiu realizar o sonho de Ruy. Sonho este que possibilitou a entrada
meiros times do País a ter acompanhamento psicológico.
de outros jogadores do Recife no Águias. “O Ruy era realmente um paizão”. No
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dia 25 de 2011, vítima de um câncer no estômago, Ruy faleceu, deixando excelentes lembranças e um marco na história do clube. Com o passar dos anos, Meire pode contar com a colaboração de outros profissionais. Em 2007, a professora de Educação Física Ana Lúcia Cardoso, que já trabalhava com basquete adaptado em Goiânia, recebeu uma proposta para integrar a comissão técnica do Águias. Ana já conhecia o trabalho da equipe e passou a substituir outra técnica que tinha alguns trabalhos com a Seleção Brasileira de 15 em 15 dias. Ana se interessou pelo profissionalismo e dedicação do time e resolveu ficar. João Paulo Casteleti de Souza, professor de Educação Física, trabalhava com esporte adaptado desde 2007, na Universidade Estadual Paulista (UNESP), no campus de Presidente Prudente. Em 2011, quando voltou para São Paulo, participou de uma Assembleia da Federação Paulista na qual teve contato com a equipe do Águias. Ele foi convidado para fazer parte do grupo e no segundo semestre aceitou o convite. Cada treinador tem sua função na Equipe. João Paulo é responsável pelo preparo físico dos atletas, Ana pela parte técnica e Meire pela parte tática. “Claro que temos um trabalho em conjunto, há espaço para que um dê palpite e auxilie na parte do outro, é uma convivência tranquila”. Atualmente, com uma comissão técnica bem estruturada e 12 jogadores, o Águias da Cadeira de Rodas é um dos maiores times de São Paulo.
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Nilton Experiência e determinação. Há mais de uma década praticando o esporte que lhe permite brilhar nas quadras. A beleza das finalizações faz valer a sincronia das jogadas ensaiadas. O time adversário está posicionado no ataque, um jogador arremessa, mas coloca muita força sobre a bola e erra a cesta. Com precisão, o pivô do Águias pega o rebote e lança a bola para o armador que já está na outra metade da quadra. O reflexo rápido faz com que este passe a bola para o ala, que ainda em movimento, desliza por baixo da cesta, finalizando com um belíssimo gancho. E os que assistem, comemoram a jogada bem executada. O ala, com a “camisa 9”, faz parte da história do melhor time de basquete adaptado do Estado de São Paulo. Tudo começa em uma cidade do interior da Bahia, a 200 quilômetros de Vitória da Conquista, chamada Rio do Antônio. Nilton Divino Alves Pessoa, 36 anos, o sétimo de oito filhos, nasceu no dia 28 de janeiro nesta pequena cidade próxima a Ibitira, na qual não havia energia elétrica, água encanada e a única distração era um radinho à pilha. Os pais de Nilton possuíam uma roça e alguns animais. O pouco que tinham era para comer e, se dessem sorte, efetuar alguma troca ou venda. Desde pequeno, ele tratava dos animais: sua função era dar comida às galinhas e amansar bois e cavalos das redondezas. Sempre que sobrava tempo entre os afazeres e a escola, ele gostava de jogar futebol e brincar de bola com as outras crianças. Mas, aos dez anos, teve de abandonar a infância para trabalhar na roça com plantio, limpeza e colheita de feijão, milho e mandioca. Como o sertão da Bahia castigava os moradores e oferecia poucas oportunidades de trabalho, Nilton assistiu à ida de seus irmãos mais velhos para São
“Eu sempre quis ser independente, ter minhas coisas e meu cantinho. O basquete me proporcionou tudo isso e muito mais, aqui encontrei uma segunda família”.
Paulo. O fato de ter familiares em outro estado fez com que, desde criança, ele sonhasse em juntar dinheiro, para que, ao completar 18 anos, pudesse ir morar no Sudeste. 29
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Na adolescência, começou a trabalhar em uma carvoaria que lhe proporcio-
uma empreiteira e conseguiram o serviço de ajudante de pedreiro para ele. A
nava um salário melhor. “Cortava madeira e empilhava, depois colocava tudo no
obra na qual trabalhavam ficava no Jaguaré, bairro de Osasco que faz divisa com
forno. Às vezes, o fogo já estava aceso e a temperatura era muito alta, chegava
a cidade de São Paulo. Ao completar dois meses que estava trabalhando com
a uns 60 graus quando estava enchendo o forno, e 500 graus quando estava
os irmãos, Nilton descobriu um pé de abacate próximo ao canteiro de obras.
produzindo carvão. Jogávamos água e subia um vapor bem quente, eu espera-
Durante dois dias seguidos, ele e os irmãos foram até a árvore para colher al-
va um pouco e colocava os pedaços de madeira dentro para então reacender o
guns frutos. “No horário vago que a gente tinha no almoço, íamos pegar alguns
forno.” Nilton realizava o trabalho por empreitada e recebia aproximadamente
abacates. A gente guardava as frutas e levava para casa. No outro dia de manhã
dois cruzados a cada cinco fornadas cheias de carvão. “O trabalho era muito
fazíamos uma vitamina bem gostosa e íamos trabalhar mais animados”.
pesado: tinha poeira e fumaça em todo lugar e quase não dava para enxergar.
No dia 12 de outubro de 1994, feriado de Nossa Senhora Aparecida, Nilton e
Nós protegíamos o nariz e a boca com um pano, mas, mesmo assim, o pó entrava
os irmãos foram trabalhar. O dia estava lindo e ensolarado, o que os incentivou a
pelo nariz, dava tosse e falta de ar. A carvoaria era muito quente, quanto mais
fazer o serviço com mais entusiasmo. No horário de almoço, por volta de meio dia
próximo do forno mais o corpo parecia ferver.”
e quarenta, depois que já haviam comido e descansado um pouco, os três foram
Ele trabalhou na carvoaria por quase quatro anos, tempo suficiente para
até o pé de abacate pelo terceiro dia consecutivo. Como Nilton era o mais ágil,
juntar dinheiro. “Eu sempre quis ser independente, queria ter minhas coisas,
subiu na árvore para colher abacates e garantir a vitamina do dia seguinte. Por
meu cantinho. Quando era criança comprei minha bicicleta, depois meu cavalo,
não ser a primeira vez que subia no abacateiro, ele estava confiante e ia cada vez
mas na Bahia era muito sofrido, então decidi ir para São Paulo.” O sonho de mu-
mais alto para colher os frutos maduros. Quando chegou a uma altura de mais
dar de estado era incentivado pelos irmãos mais velhos, que anos antes tinham
ou menos doze metros, pendurou-se para alcançar um abacate que estava mais
feito a mesma escolha.
longe e se desequilibrou. João, irmão mais velho de Nilton, se lembra que o galho
Ao completar 18 anos, a mãe Ana Rosa e o pai Diacis não desejavam que
quebrou. “Ele pegou numa galha e ela quebrou, não aguentou o peso dele”.
ele deixasse sua terra natal. Depois de muito conversar e convencê-los, ele foi
O chão próximo ao abacateiro era de terra batida, porém, em alguns locais,
com a mãe até um cartório e tirou os documentos: RG, CPF e a carteira de
a raiz estava exposta. Quando o galho quebrou, Nilton caiu de costas. A maior
trabalho. Três meses depois, em outubro de 1994, aproveitou que sua tia Maria
parte de seu corpo foi amortecida pela terra e justamente a coluna bateu em uma
iria viajar para participar do casamento da filha, comprou uma passagem de
das raízes. O impacto fez com que as vértebras se quebrassem, provocando uma
ônibus e a acompanhou.
grave lesão que atingiu a medula óssea.
No dia em que embarcou para São Paulo, levou uma mala repleta de roupas,
Devido ao tombo e à coluna quebrada, Nilton desmaiou assim que seu cor-
sonhos e expectativas. A viagem durou um dia e, quando ele e a tia chegaram na
po tocou o chão. Ele foi retirado do local numa maca de madeira e foi encami-
rodoviária, parentes os aguardavam. Maria foi para a casa da filha ajudar com os
nhado ao Hospital Regional da cidade de Osasco. Ficou desacordado durante
preparativos do casamento, enquanto Nilton foi para casa da irmã mais velha, Ali-
dois dias e, quando recobrou a consciência, ainda estava na maca em que havia
ce, na Vila Cretti, um dos bairros próximos ao centro da cidade de Carapicuíba.
sido resgatado. Por causa da lesão, os médicos ficaram com medo de trocá-lo de
Nos dois primeiros dias que estava morando com a irmã, Nilton conseguiu
lugar ou mudá-lo de posição no leito hospitalar. Ao acordar, a primeira coisa que
um emprego. Seus irmãos José e João trabalhavam como mestres de obras em
notou era que não conseguia se movimentar e entrou em desespero. Devido à
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lesão medular que sofreu, os médicos lhe explicaram que seria necessário realizar
falou pra gente: ‘o que der pra gente fazer, a gente faz por ele. Vamos ver o que
uma cirurgia reparadora na coluna vertebral, para que ele pudesse voltar a se
eu vou conseguir fazer por ele’. Aí ele falou: ‘infelizmente o caso do seu irmão
sentar e, talvez, recuperar os movimentos das pernas.
não tem jeito. Ele não vai voltar a andar. Só se fosse um milagre mesmo’”.
Nilton aguardou a cirurgia durante dois meses. O período de espera foi uma
Era Natal de 1994 e Nilton estava em uma festa na casa de Alice. As pessoas
tortura. “Como não conseguia me mexer, passei dois meses deitado em uma
à sua volta dançavam, cantavam e sorriam, todos estavam felizes. Sentiu-se mal
mesma posição. A espera era agonizante, mas as esperanças eram boas”. As
por estar preso a uma cadeira de rodas e por não conseguir mais andar. A felici-
expectativas alimentadas por ele e a família eram as melhores possíveis. Eles
dade dos outros o incomodava e o levou a pensar sobre essas diferenças durante
acreditavam que Nilton voltaria a andar e faziam planos para depois da recupe-
uma semana. Na noite de Ano Novo, pouco antes da virada, a cena se repetiu e a
ração. Mas a cirurgia foi muito delicada. João lembra que o irmão não conseguia
tristeza e o desespero tomaram conta de Nilton. Como Alice morava em um so-
se movimentar e só ficava deitado. “Era muito difícil ver ele naquela situação, eu
brado e a festa acontecia na parte superior da casa, ele juntou forças, pegou velo-
e minha irmã Alice é que dávamos banho e comida para ele”.
cidade na cadeira de rodas, apoiou-se nas grades e tentou se jogar, por duas vezes
Como as vértebras estavam quebradas e a medula óssea havia se rompido, foi
nessa mesma noite. As pessoas que estavam na festa e seus irmãos o seguraram
necessário colocar uma haste na coluna, para que ele pudesse voltar a dobrá-la.
e o afastaram do terraço. “Eu me sentia deprimido, tinha dezoito anos e sempre
A cirurgia ocorreu bem e Nilton ficou no hospital durante uma semana. Depois
fui independente. Gostava de sair, ter minhas coisas, e me ver naquela situação
de se recuperar, pode voltar para casa, mas teve de se adaptar à nova condição.
era terrível. Eu me via preso, não queria mais viver, não tinha mais alegria”.
“Parece que tem uma ferida até hoje sem cicatrizar, é muito difícil. Ele era do
Após as tentativas de suicídio, a irmã de Nilton não o deixava mais sozinho.
interior, do Nordeste, ele fazia de tudo lá. Ele era um garoto esperto e inteligente.
Ele era vigiado pelos familiares e sempre estava acompanhado por alguém. Um
Andava de bicicleta, de cavalo, subia em árvore. É complicado. Foi só ele chegar
tempo depois dos incidentes, em 1995, amigos falaram para ele sobre a AACD
aqui e isso tudo aconteceu”.
(Associação de Assistência à Criança Deficiente) e o convenceram que o lugar
‘Os médicos fizeram o possível, mas, devido ao tombo, ele perdeu o movi-
poderia ser bom para uma reabilitação. Ele e Alice procuraram a instituição e fi-
mento das pernas. “Eu nunca imaginei que um pé de abacate ia me deixar para-
zeram um cadastro. Devido à grande procura existente na Associação, demorou
plégico. Quando eu morava na Bahia amansava boi e touro, subia em coqueiros
um ano e oito meses para ser chamado e iniciar o tratamento
altos. Já tomei vários tombos de bicicleta e animais, me machuquei na roça, mas
O acompanhamento na AACD durou em torno de quatro meses. Na Asso-
nunca pensei no perigo que um abacateiro poderia representar e que ele fosse
ciação, Nilton começou a fazer tratamento com uma psicóloga, iniciou a práti-
tão frágil”.
ca da natação e ficou mais desinibido. Durante esse período, os médicos apre-
Os primeiros meses de adaptação foram muito complicados para Nilton.
sentaram a ele um aparelho que poderia ajudá-lo a voltar a andar que custava
Após a cirurgia, ele voltou para casa de sua irmã Alice e não conseguia aceitar
R$ 800. João lembra da animação de Nilton, por de repente ter uma oportunida-
a nova condição. No primeiro ano com a deficiência, teve dificuldades em se
de de voltar a andar. “Ele ficou empolgado com o tratamento. Fez amizade com
adaptar e sua revolta e tristeza o levaram a tentar o suicídio por duas vezes. “Foi
toda a equipe médica. Tinha tanta esperança que voltaria a andar que se recu-
muito difícil pra nós todos. Muito difícil mesmo. Nós trabalhava na obra, do lado
perou melhor, estava mais animado”. Na esperança de que deixasse a cadeira de
da obra tinha um médico que era diretor do hospital que ele ficou internado. Ele
rodas, os irmãos e amigos de Nilton se uniram para comprá-lo. Ele continuou a
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Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
fazer a fisioterapia e, mesmo com a ajuda do novo recurso, não conseguiu voltar
cos, Nilton foi ficando mais independente e, assim como os outros jogadores,
a andar. Isso fez com que ele tomasse outro choque e desanimasse novamente.
começou a ir e voltar do treino sozinho, utilizando transporte público. “Quando
“O aparelho foi só para gastar dinheiro, não tive resultados e nada do que foi
cheguei ao Águias, vi que todo mundo se virava sozinho. Então pensei: ‘eu tam-
prometido aconteceu”.
bém posso’”. João se recorda das mudanças pelas quais o irmão passou. “Ele
Durante o período em que ficou na AACD, Nilton conheceu Fernando, um
começou a fazer as coisas sozinho. Ia e voltava do treino, resolvia seus problemas.
jogador de basquete adaptado que fazia parte do time Águias da Cadeira de Ro-
Aos poucos ele foi ficando mais independente. Não vou dizer que o basquete é
das. Ele o convidou para conhecer a equipe e contou que, no Águias, os atletas
tudo, mas foi muito importante na vida dele, principalmente durante o período
recebiam salário, viajavam de avião e eram independentes. “Eu aceitei o convite
de adaptação”.
na hora. Viajar, conhecer lugares e pessoas era tudo o que eu queria”.
No começo, o principal empecilho era o transporte. Para se locomover, ele
Em dezembro, Nilton foi com a irmã Ana até o ginásio do Baby Barione,
pegava o trem na estação de Carapicuíba, que não era adaptada. Pedia ajuda a
que fica na Barra Funda, zona oeste de São Paulo, conhecer o time de basquete
quem passava no local ou ficava esperando os guardas da Companhia de Trans-
adaptado, porém, como era final de ano, os atletas estavam saindo de férias e
porte Metropolitano (CPTM) para subir os dois lances de escada. Os ônibus
pediram que ele retornasse em fevereiro. Nesse primeiro contato com o Águias,
também não possuíam elevador e, para subir, Nilton precisava de auxílio. “Eu
ele procurou Fernando entre os jogadores, mas não o viu. Ficou bastante anima-
arrumei várias brigas no ônibus e no trem. Os funcionários das empresas recla-
do ao perceber que todos do time eram deficientes e que faziam tudo sozinhos.
mavam e não queriam ajudar e eu achava isso falta de respeito. Na verdade, eles
Durante o pouco tempo que conversou com os integrantes da equipe, Nilton
não têm obrigação de ajudar, mas as empresas têm obrigação de fornecer acesso
ficou admirado com a agilidade e a independência deles ao se deslocarem para
às pessoas com dificuldade de locomoção”. Embora Nilton encontrasse algumas pessoas indiferentes, a maioria o ajuda-
os treinos sem ajuda de ninguém. Em fevereiro de 1996, Nilton voltou ao local que o Águias treinava e recebeu
va. “Na estação, várias vezes juntavam quatro pessoas para subir as escadas me
o convite para fazer parte do time. “A treinadora tinha feito uma limpa. Todos
segurando na cadeira. O brasileiro tem uma coisa bacana que é sempre dar a
que não estavam no padrão foram mandados embora. Ela queria montar um
mão ao próximo. Acontecia de algumas vezes as pessoas se recusarem a ajudar,
time de qualidade, com pessoas realmente interessadas em serem atletas. Como
mas a maioria era solidária”.
apareceram muitas vagas, ela me convidou”. Quando passou a integrar o quadro
Com o treinamento e o basquete, Nilton foi se tornando mais independente.
da equipe, ele ficou sabendo que Fernando, o jogador que o havia convidado, era
Os treinos ocorriam três vezes por semana e tinham a duração de três horas di-
um dos que foram dispensados. “Eu nunca mais o vi. Cheguei a procurar por ele,
árias. Todas as segundas, quintas e sextas-feiras, ele saia rumo ao ginásio com o
mas nunca mais o encontrei. Foi graças a ele que conheci o basquete”.
objetivo de melhorar. Além de passar a se locomover sozinho, começou a ajudar
No mesmo mês, Nilton começou a treinar com o Águias. Como não conhe-
nas tarefas de casa. “Quando cheguei ao Águias, não conseguia subir os acessos
cia o basquete adaptado, teve de aprender as regras, movimentos e jogadas. “Eu
da calçada sem ajuda. Toda liberdade que consegui foi com os treinos. Eu disse:
nunca gostei de basquete e nem sabia que existia o adaptado. Sempre gostei de
‘quero isso para mim, vou treinar e vou conseguir chegar onde os demais joga-
futebol, quando era criança vivia correndo atrás de bola”. No início dos treinos,
dores do time estão’”. Com pouco menos de três meses que estava na equipe, ele
precisava de algum familiar para acompanhá-lo e isso o incomodava. Aos pou-
passou a apresentar o basquete adaptado para outros colegas. De todas as pes-
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Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
soas que ele trouxe, apenas uma, que também mora em Carapicuíba, persistiu e
para trabalhar na roça e ajudar na renda da família. Depois que veio para São
até hoje continua como jogador do Águias.
Paulo e se tornou atleta, mais uma vez o estudo teve que esperar: o motivo era
No início dos treinos Nilton teve dificuldade de conciliar as manobras
alcançar um sonho. “Eu deixei o estudo, porque queria defender a camisa do
com a cadeira e a posse de bola, mas, aos poucos, com muito treino e dedi-
Brasil um dia. Pensei em voltar a estudar, mas treino algumas vezes de manhã,
cação, foi se acostumando e se tornando um jogador melhor. “Meu irmão
outras à tarde e à noite, então não tinha horário para o estudo. Foi uma opção
sempre gostou de alcançar objetivos, ele traçava uma meta e corria atrás”.
que tive que fazer e escolhi ser atleta. Para isso, é preciso se dedicar, dar tudo da
Durante o período de treinos, Nilton passou a se preparar e se esforçar mais
gente e se esforçar ao máximo. Eu não iria ter tempo para a escola, mas penso
para um dia conseguir fazer parte da Seleção Brasileira. Além disso, ele que-
em um dia voltar a estudar”.
ria conquistar sua independência e, por isso, em 1997, alugou uma casa e
A primeira convocação para a Seleção Brasileira de basquete adaptado
começou a morar sozinho. Neste período, mais um irmão do jogador veio
ocorreu quando Nilton estava com 24 anos. No ano 2000, ele foi chamado para
para São Paulo, Nilson era mais novo e veio para ficar com o irmão. “Fui
jogar pela seleção na Copa América e do Campeonato Sul Americano. “Eu nun-
morar com ele quando cheguei aqui, porque ele era independente e muito
ca tinha viajado para o exterior. Ainda era mulecote e era tudo muito novo para
organizado. Agem trabalha e revesava os serviços de casa”.
mim. Quando recebi a convocação, não me aguentava de tanta felicidade”. Ele
O jogo de estreia de Nilton foi contra o time do Hospital das Clínicas. A
lembra que o momento mais importante para um jogador da Seleção é quando
partida ocorreu na casa do adversário e ele estava muito nervoso.“Como eu era
toca o hino. “Quando você ouve o hino nacional, percebe que está representan-
novo, não sabia muito o que fazer. Entrei e pensei: ‘que se dane, vou fazer a
do seu país, a emoção é muito grande. A vontade que dá é de chorar”. Para Nil-
minha parte’”. O segundo jogo dele foi contra o Centro Olímpico e ocorreu no
son, uma das maiores emoções que teve foi ver o irmão com a camisa do Brasil.
Parque do Ibirapuera. Essa foi a partida que mais marcou a vida de Nilton e a
“Foi maravilhoso ver que ele alcançou seus objetivos. Tenho muito orgulho dele,
lembrança desse dia continua na memória do jogador. “Nesse jogo, a técnica
é muito determinado e busca sempre realizar os seus sonhos”.
falou para mim: ‘vamos ver se você tem dom e se deve continuar a treinar’. Eu
Depois da primeira convocação para a Seleção, Nilton retomou seus trei-
mandei muitas bombas, fiz as jogadas que treinamos. Dei bandeja por baixo,
nos com o Águias e presenciou o período de ouro do time, eles conseguiram
ganchinho, bandeja de gancho e comecei a me destacar. Saí de lá satisfeito”.
muitos títulos. “Eu queria ser um atleta, eu queria ser alguém do esporte.
O terceiro jogo foi contra o extinto Cubatão, time do litoral paulista. O Águias
Então tive que abrir mão de algumas coisas. Nós só nos tornamos o melhor
venceu todas as três partidas.
time, porque nos dedicávamos e era quando nos destacávamos que surgiam
Durante mais de dois anos, o Águias ficou sem patrocinador. Para se manter
as vagas para a Seleção”.
no time e conseguir se sustentar, paralelo aos treinos, Nilton trabalhou como
Em 2004, ele voltou a ser convocado. Esse ano foi muito importante para o
vendedor. Montou uma barraquinha e vendeu doces em frente ao Wall Mart
Brasil, pois foi a primeira vez que o basquete adaptado participou de uma pa-
da Avenida Pacaembu, no centro de São Paulo. Depois mudou para o bairro
ralímpiada. Mesmo sem conquistar medalhas, os Jogos Paralímpicos na Grécia
de Moema e vendia doces próximo ao Shopping Ibirapuera. Ele trabalhava três
marcaram a história e a memória de Nilton. “É incrível representar o seu país. Eu
vezes por semana e de lá ia para os treinos do Águias.
estava ali representando milhões de brasileiros, milhões de sonhos. Era a primeira
Nilton estudou até a sétima série do ensino fundamental. Ele largou o estudo 36
vez que o basquete estava na Paralímpiada, então foi muito emocionante”. Em 37
Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
2007, ele participou do Parapan, no Rio de Janeiro, em 2008 ele jogou na paralímpiada da China e, em 2011, participou do Parapan no México. Desde a primeira convocação, 2012 foi o único ano em que Nilton ficou de fora da Seleção. Nilton joga pelo Águias há 16 anos e se considera profissionalmente realizado, mas ele ainda tem o sonho de ver o Águias voltar a ser um time de elite. “O Águias para mim é uma grande família. Ele é meu trabalho, minha fonte de renda. Ele me resgatou da escuridão, me trouxe para a vida de novo e para o esporte. Foi através dele que eu consegui realizar o sonho de ir para a Seleção. O Águias para mim é tudo”. Para a treinadora Meire, Nilton tem uma força impressionante. “Ele é um cara de força física monstruosa, mas não tem concentração. Então é muito positiva a força dele de marcação, mas ao mesmo tempo desestabiliza um pouco porque falta concentração para efetuar algumas tarefas em equipe”. João Paulo, preparador físico do time explica que Nilton tem uma característica difícil de encontrar nos atletas, ele é veloz e tem resistência. “Dificilmente a gente consegue encontrar pessoas rápidas e com uma resistência boa. As fibras musculares são
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diferentes. A fibra branca é a fibra rápida e a vermelha é a fibra de resistência e ele possui as duas de forma equilibrada”. A treinadora Ana o considera um atleta determinado. “Ele é muito bom em defesa, tem um ótimo arremesso e uma boa definição. O problema é que, às vezes, ele leva ao pé da letra o que a gente fala e não muda a estratégia durante o jogo”. Embora tenha perdido o movimento das pernas há 18 anos, Nilton ainda tem esperanças de um dia voltar a andar. Ele acredita que, com tantos avanços na tecnologia e os novos experimentos com células tronco, em breve alguma solução deve ser apresentada. “Eu ainda tenho para mim que algum dia voltarei a andar. Pode não ser agora, mas carrego comigo essa convicção. É uma última vontade que desejo realizar”.
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Douglas Concentrado, respira fundo e foca a atenção na quadra. A cada passada com a cadeira, a timidez é deixada de lado e o homem invisível dá lugar a um jogador forte e determinado. Soa o apito. A bola é arremessada para o alto, ele se estica para pegá-la. A envergadura o ajuda e faz com que o Águias inicie o jogo com a posse de bola. Contente com a vantagem, o pivô do time ergue a cabeça e vai para a sua posição na intenção de fazer o máximo de cestas possível. Douglas Aparecido da Silva, 34 anos, nasceu na cidade de Barueri, localizada na Grande São Paulo. Ele foi o primeiro dos nove filhos que Maria Aparecida e Benedito tiveram. “Ele era um bebê gordo e forte. Nasceu quando eu tinha 21 anos”. Os primeiros meses de vida de Douglas foram normais. Como toda criança em desenvolvimento, ele balbuciou as primeiras palavras com poucos meses e depois aprendeu a engatinhar e andar. Quando estava com um ano e nove meses, Douglas teve catapora e os sintomas da doença foram muito fortes. Pouco antes do final da quarentena, ele passou a ter febre muito alta e diarreia. Como a temperatura dele não baixava, Maria ficou preocupada e o levou ao Hospital São Jorge. “Ele chorava muito, estava irritado e gritava. Não importava o que eu fizesse, a febre dele não baixava de jeito nenhum”. Ao chegarem ao hospital, a criança foi internada. Como os médicos não conseguiam baixar a febre de Douglas, ele ficou em uma enfermaria especial, na qual os pais não podiam acompanhá-lo. As feridas causadas pela catapora estavam secando e, como sentia coceira por todo o corpo, ele ficava mais agitado. Devido à irritabilidade da criança, o soro foi colocado em uma das veias do pé, para que ele não se ferisse. Como Douglas se coçava muito e as unhas
“Ser pai foi uma experiência boa, eu jamais imaginava essa felicidade. Acho que evoluí bastante na vida, no esporte e a maior causa foi minha família”.
provocavam feridas em sua pele nos locais em que a catapora estava, durante a tarde uma enfermeira achou melhor amarrá-lo, para que ele pudesse parar de se coçar e de se balançar. 41
Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
No dia seguinte, Maria e sua mãe foram visitar o bebê. Ana, avó materna de
Depois de receber alta do hospital, Douglas voltou a morar com Rosa. Como
Douglas, lembra de como encontrou o neto na cama do hospital. “Ele estava co-
seus pais sempre trabalharam, ele foi criado no bairro Vila Veloso, na cidade de
berto e, quando coloquei as mãos na perninha dele, ele começou a gritar e chorar.
Carapicuíba, desde quando tinha um ano. “Ele era uma criança saudável que
Tiramos a coberta e a perna dele estava amarrada com fitas. Foi uma cena hor-
adorava brincar”. Devido aos problemas acarretados pela encefalite, passou a
rível de se ver. As perninhas dele estavam rochas e muito inchadas, parecia que
fazer tratamento no Hospital das Clínicas (HC). As tias e a avó se revezavam
ele não tinha circulação”. Maria correu e chamou os médicos para socorrerem o
para levá-lo às consultas. Após deixar o hospital da Marginal, ele fez uma bateria
filho. “Eles falaram que a enfermeira esqueceu-se de desamarrar as pernas dele,
de exames no HC e passou a fazer tratamento para a encefalite e fisioterapia e
mas que não tinha problema, pois eles já tinham o diagnóstico do meu filho”.
correções cirúrgicas para as pernas.
Os exames constataram que Douglas tinha encefalite, uma doença rara que,
Regina lembra que, após o incidente, o sobrinho ficou com as pernas tortas
na maioria das vezes, aparece no primeiro ano de vida das crianças. Por ser uma
e teve que fazer um tratamento com gesso para tentar corrigi-las. Além desse tra-
doença infectocontagiosa, ela foi acarretada pela catapora e os sintomas que se
tamento, no decorrer dos anos ele passou por cirurgias nas pernas e no quadril
manifestaram em Douglas foram febre alta, dores de cabeça, irritabilidade e
para tentar corrigir a atrofia. Além disso, ele fazia sessões de fisioterapia para
pouco controle de humor. Por ser uma doença que atinge o cérebro, a encefalite
tentar recobrar parte dos movimentos. “Ele ficava mais nas Clínicas do que em
causa consequências físicas e psicológicas, entre elas fraqueza muscular com pos-
casa. Depois das cirurgias ele chegou a ficar três meses internado”.
sibilidade de paralisia, fortes dores de cabeça, incapacidade de tomar decisões
O tratamento durou dez anos e, durante esse período, a rotina de Douglas
ou afastamento da interação social, além de acarretar problemas graves como o
se dividia entre as consultas e a casa da avó. “Como eu não me mexia, passava
coma e até mesmo a morte.
a maior parte do tempo na cama. O hospital era como se fosse minha casa, eu
Após as pernas de Douglas ficarem amarradas, ele piorou. A mãe lembra
estava muito acostumado com o ambiente”. Regina conta que, até os dez anos,
que ele chegou a ficar em coma por quase uma semana. “Foi tudo muito rápido,
ele não usava cadeira de rodas. “Ele vivia se arrastando, porque a mãe dele não
nós não entendíamos muito bem o que estava acontecendo e não sabíamos o
queria que ele usasse cadeira, mas já estava na hora dele se locomover. Então,
que fazer”. Quando acordou do coma, ele estava sem sensibilidade nas pernas
sem ela deixar, eu fui atrás e consegui uma cadeira para ele, afinal minha mãe e
e não conseguia movimentá-las. Ana recorda do argumento dos médicos para
minhas irmãs e eu é que cuidávamos dele”.
o problema. “Eles falavam que foi encefalite, mas a gente acha que foi culpa da enfermeira, porque foi a má circulação que causou paralisia”.
Douglas era uma criança muito quieta e introvertida, não gostava de sair de casa e tinha muita vergonha das outras pessoas. “Eu não fazia muita coisa, precisava de
Embora Douglas tenha perdido o movimento completo da perna esquerda
ajuda para tudo. A maior parte do tempo eu ficava assistindo televisão ou conversan-
e parte do da direita, seus pais Maria Aparecida e Benedito não procuraram a
do com meus primos, não fazia mais nada”. Ele lembra que se sentia muito deslo-
ouvidoria do hospital para reclamar ou denunciar a suposta negligência médi-
cado, quando a casa de sua avó estava cheia. “Essa convivência foi difícil, porque eu
ca. “A gente não quis ir atrás, somos pobres, ninguém ia ouvir ou dar atenção”.
parecia bicho do mato. Eu tinha vergonha de sair, tinha preconceito comigo mesmo.
Douglas permaneceu oito meses no Hospital São Jorge. Durante o tempo em
Nem tanto as pessoas para comigo, mas era eu mesmo que me isolava. Acho que fi-
que ficou internado, a avó Rosa, as tias Regina, Maria de Olinda e Elizangela se
quei tanto tempo no hospital, sem conviver com a minha família, que não conseguia
revezavam para ficar com ele no hospital.
me acostumar com tantas pessoas. Acho que saí de lá com a cabeça meio zuada”.
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Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
Para ajudar o sobrinho a perder a timidez e a fazer mais amizades, Regina
para os meus pais, eles não dão garantia e eu não vou passar por tudo de novo e
conseguiu uma vaga para ele em uma escola que só atendia crianças com de-
ficar mais dez anos nessa ida e volta de hospital. Melhor comprar uma cadeira e
ficiência. “Foi minha cunhada que falou: ‘por que você não leva ele lá para se
viver a minha vida”. Maria e Benedito ouviram o pedido do filho e interrompe-
alegrar um pouquinho?’. Como o Douglas ficava sempre sentado no sofá, vivia
ram o tratamento e ficou definitivamente na casa da avó.
triste e não se conformava por andar de cadeira de rodas, achei uma ótima opor-
Durante o período em que Douglas ficou no hospital, seus pais tiveram vá-
tunidade para ele aprender e se divertir”. A instituição era gratuita e possuía
rios filhos. Ao todo, ele tem oito irmãos com os quais não conviveu durante
uma perua para levar e trazer os alunos. “Estudei o básico, porque como ficava
os primeiros 15 anos de vida. “Era estranho ter uma família tão grande. Nós
alguns dias em casa e outros no hospital, eu perdia muita matéria e eles não vol-
demoramos para nos acostumar, porque nunca tivemos contato e a maioria dos
tavam para explicar. Então eu tinha que acompanhar de onde estava e acabava
meus irmãos meio que nem sabiam que eu existia. Então era como se fossem des-
não aprendendo muita coisa”. Ele lembra com carinho o apoio que as tias e a
conhecidos, pessoas completamente estranhas”. Em 1994, quando estava com
avó davam para ele. “Como minhas tias não trabalhavam, tinham mais tempo
16 anos, Douglas ganhou uma nova cadeira de rodas, menor e com mais mobi-
para ficar lá comigo. Elas sempre me ajudaram muito. Mas quem ia mais era a
lidade. Como nunca tinha andando em uma cadeira sozinho, a família sempre
minha avó. Ela é guerreira. Tinha vezes que nem a minha mãe, nem meu pai
o empurrava: ele demorou bastante tempo para se adaptar e aprender a usá-la.
iam. Somente a minha avó que sempre esteve comigo”.
“No começo é difícil, se eu falar pra você que eu tinha a experiência da cadeira
Além da cadeira de rodas e da escola para o Douglas, Regina conseguiu,
que eu tenho agora é mentira. Você fica com medo de cair, não sabe descer uma
por meio da Secretaria de Saúde de Carapicuíba, uma ambulância para levar o
guia e não sabe subir. Não é fácil não, o manejo de cadeira é mais complicado
sobrinho até o Hospital das Clínicas. “O maior problema é que era minha irmã
do que parece”.
que ficava com todos os documentos dele. Nós precisávamos deles para que o
Na casa da avó, os companheiros de Douglas eram os primos Robson e Wa-
Douglas pudesse usar a ambulância e fazer o tratamento, mas às vezes ela não
shington. Aos olhos de Ana, o neto nunca deu trabalho e sempre foi uma criança
trazia ou chagava atrasada. A gente falava para ela dormir aqui, pois assim não
maravilhosa. “Quando criança ele era muito bonzinho, sempre foi sossegado
se atrasaria, mas ela não aceitava”. Por conta das faltas e atrasos, Douglas perdeu
quem cuidava mais dele eram as tias”. Regina, por sua vez, lembra que o sobri-
os encaminhamentos para instituições especializadas em crianças com deficiên-
nho sempre foi muito peralta. “Ele soltava muita pipa, subia em cima da laje e no
cia e deixou de fazer outros no HC. “Se ele tivesse feito o tratamento direitinho,
muro para soltar pipa melhor. Depois que ele estava lá em cima, a gente levava a
hoje ele estaria andando de aparelho. Umas duas ou três vezes a gente conseguiu
cadeira para ele. O Douglas é um ótimo sobrinho, muito bom, esforçado. Uma
levar, mas depois ela ia para casa e levava os documentos. O problema dele tinha
pessoa maravilhosa”. Douglas sempre foi sossegado. Mesmo depois que come-
que ser corrigido antes dos dezesseis anos”.
çou a perder a timidez, ele não gostava de sair. “Eu ficava mais em casa, quando
Em 1993, quando completou 15 anos, os médicos chamaram Douglas e os
alguém me chamava para sair eu inventava várias estórias, dava uns perdidos e
pais para conversar. Eles explicaram que todo o tratamento que havia sido feito
não falava o motivo. Ficava lá na zoeira com os meus primos, assistindo TV, to-
com ele durante os últimos dez anos não havia dado resultados. Mas, se ele e os
mava uns xingos. Tinha vezes que passávamos dos limites com a bagunça, coisa
familiares estivessem de acordo e dispostos a assumir um compromisso, a equipe
de adolescentes”.
poderia iniciar um novo tratamento, porém sem garantia de resultados. “Eu falei 44
No final do ano de 1994, quando estava com 16 anos, Douglas começou a 45
Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
perder a timidez e passou a ficar mais sociável. O motivo da mudança foi Kátia,
“Ele não ficou muito tempo na FCD. Não gostou, porque a gente não ganhava
amiga de uma das suas irmãs que sempre ia visitá-lo. “Ela saía da escola meio
dinheiro, mas a gente virou colega”. Em 1997, quando estava com 19 anos,
dia e toda vez ela passava lá em casa, procurando minha irmã, mas era desculpa
Douglas recebeu uma ligação de Nilton. O colega havia conhecido um time de
pra ficar de gracinha comigo”. Aos poucos ele e Kátia foram se aproximando e
basquete adaptado chamado Águias da Cadeira de Rodas e estava treinando
começaram a namorar. Embora ela gostasse de Douglas, ele tinha a impressão
com eles. “Ele me convidou para conhecer o time, disse que era bacana e que
de que todo mundo estava olhando para eles ou que ela só estava com ele por
eles estavam precisando de gente para jogar. Eu enrolei durante um tempão, mas
dó. “Eu colocava um monte de coisa na cabeça. Ela falava: ‘para, você é melhor
acabei indo”.
do que um monte de caras aí’. Eu ficava pensando muitas coisas que não tinham
Douglas nunca tinha ouvido falar de basquete adaptado. “Eu não sabia o
nada a ver e comentava com ela. Mas aos poucos parei de pensar que era dife-
que era isso. Conhecia o basquete, mas não sabia como as pessoas jogavam de
rente das outras pessoas, ela me mostrou que não tinha nada a ver, que era só
cadeira de rodas”. Ele encontrou Nilton no Terminal Urbano Barra Funda. Os
coisa da minha imaginação”.
treinos ocorriam no Ginásio Poliesportivo Baby Barione, que fica próximo ao
O namoro não durou muito tempo, mas foi o suficiente para libertar Dou-
Parque D’água Branca. A princípio ficou observando tudo: ele olhava os joga-
glas da timidez. Ele passou a sair com os primos, fez amizade com os vizinhos e
dores, a cadeira e os treinadores com muita curiosidade e atenção. “Umas das
começou a ir mais à rua e a sair durante a noite. “Eu tinha preconceito comigo
técnicas me deixou testar a cadeira. Fiquei correndo de um lado para o outro da
mesmo, mas depois da primeira menina que apareceu na minha vida, eu desan-
quadra. Como não sabia arremessar, fiquei jogando a bola para cima”.
dei”. Na época ele gostava de ir e para as baladas do Atlético, em Osasco ou no CTN que ficava na Vila Dirce, em Carapicuíba.
Após o primeiro contato com o time, Douglas ficou pensando e resolveu começar a frequentar os treinos. “No começo essa rotina me cansou pra caram-
Além de começar a sair mais, ele voltou a estudar. Em 1995, quando estava
ba. Eu vim e treinei nos primeiros dois dias, depois parei um tempo e voltei só
com 17 anos, Douglas começou a fazer supletivo e passou a fazer parte de uma
depois de um mês. Fiquei fazendo isso durante um tempo, até que eu tomei uma
associação chamada FCD Carapicuíba. “Na FCD tinha palestras e reuniões, a
carcada do Ailton que era presidente do Águias. Ele falou: ‘ tá na hora de você
gente fazia trabalho de artesanato, aí a gente vendia e mantinha aberta a enti-
resolver se quer jogar. Aqui é sim ou não’. Resolvi cair pro sim e entrei na roti-
dade. Tinha várias pessoas com deficiência lá. Eles ajudavam quem estava pen-
na”. Devido aos treinos, ele deixou o supletivo. “Fiquei lá treinando e treinando,
sando em se suicidar ou até mesmo triste. A gente fazia muita coisa na FCD, mas
acabei estudando até a sexta série, mas um dia vou voltar”.
não tinha nenhum recurso financeiro pra gente. Era mais por amor mesmo”.
Quando começou a treinar, a maior dificuldade de Douglas foi aprender a
Douglas lembra que ele e as demais pessoas possuíam uma rotina na associação.
conduzir a cadeira e a bola ao mesmo tempo. “Acostumar com a cadeira é fá-
“Nós chegávamos lá umas oito horas, tomávamos café e tinha a palestra que ia
cil, você bate de frente com o outro, cai sozinho, é uma bagunça, mas depois já
até o meio dia. Depois, de meio dia em diante nós íamos trabalhar, fazíamos
era. Agora arremessar, bater a bola, enquanto conduz a cadeira é que é difícil.
trabalhos com madeira, um serrava e o outro colava. Era banquinho, mesinha
Demorei quase um ano para aprender”. Durante o período de aprendizado, ele
tapete, essas coisas”.
ficava mais no banco. As técnicas davam oportunidade de ele jogar contra times
Durante o período que frequentou a FCD, Douglas conheceu Nilton, que
mais fracos para que assim pudesse ganhar mais experiência. “Tinham medo
fazia tratamento na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD).
de que me machucasse contra um time forte. Quando era um time fraco, eles
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Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
me colocavam, para que pudesse me desenvolver mais. Com time forte, que era
nunca tinha saído do Estado, eu só conhecia Carapicuíba, Osasco e um pouco
pauleira, eu ficava só assistindo”.
do centro de São Paulo. A primeira viagem que fiz com o time foi para o Rio
Douglas demorou dois anos para conseguir se tornar titular do time. De
de Janeiro, durante o Campeonato Brasileiro. Eu lembro que perdemos de sa-
todas as competições, o que ficou gravado em sua memória foi um jogo do
colada, mas valeu a pena ir para lá”. Por meio da equipe, Douglas teve a chance
Campeonato Paulista em que o Águias jogou contra o time do Hospital das
de conhecer vários Estados brasileiros. “Eu já fui para Minas, Rio de Janeiro,
Clínicas. “Nesse dia, o jogo teve quatro prorrogações. Nós achávamos que ía-
Goiânia, Ceará, viajei pelo interior de São Paulo. Vixe, o Águias jogou em tantos
mos morrer na quadra, o jogo não acabava nunca. Nunca vi um jogo assim ir
lugares que nem me lembro mais”. A técnica Meire define o Douglas como um
para quatro prorrogações”.
menino tímido que evoluiu bastante no decorrer dos anos de treinamento. “A
Uma das coisas que motivou Douglas a permanecer no time foi a remune-
timidez meio que atrapalha o basquete e quando a gente faz jogos de potência e
ração. Pouco tempo depois que começou a treinar com o time, o presidente do
explosão não pode ter essa timidez toda. Mas ele é um cara que se esforça muito,
Águias Ailton começou a pagá-lo e isso fez com que tivesse mais responsabili-
para ter a condição que tem, e para estar num time como o Águias. Ele se esforça
dade. “Vi que o Águias era uma espécie de emprego e que eu tinha que fazer as
bastante em todos os sentidos, de raciocínio, para conseguir acompanhar, e isso
coisas certas, como começar a ter responsabilidade”. No primeiro ano em que
pra mim é bem positivo”.
estava no time, a equipe ficou sem patrocinador e os jogadores fizeram de tudo,
Em 2008, quando estava com 30 anos, Douglas foi convocado para fazer
para que as portas não tivessem que ser fechadas “Na época do campeonato,
parte da Seleção Brasileira de Basquete Adaptado. “Foi uma maravilha, eu fiquei
o time todo foi pra rua. Íamos no farol com o uniforme do Águias, para tentar
muito feliz com a convocação, mas o melhor de tudo é que fui convocado dire-
arrecadar dinheiro pra poder viajar e jogar os campeonatos”. As arrecadações
to. Dessa vez não teve esse negócio de convocar 30 pessoas e ficar apenas com
pararam, quando os dirigentes do time conseguiram o patrocínio do Bingo
12. Eu dei sorte e fiquei na Seleção direto”. Douglas competiu pela Seleção na
Itaí. “Na época o bingo era legalizado e pagava direitinho. Eles conseguiam
Paraolimpíadas de Pequim, na China. O Brasil jogou contra o Canadá e depois
pagar a gente e os gastos com campeonatos. Com o patrocínio nossa respon-
contra os Estados Unidos, durante os jogos amistosos. No primeiro jogo para-
sabilidade dobrou”.
límpico, enfrentamos a Austrália. “Foi a primeira viagem internacional que fiz.
Em 2002, quando tinha 24 anos, Douglas conheceu Janaína, sua atual espo-
As únicas coisas que eu sabia falar em inglês eram café e água que são cófie e
sa. Juntos há dez anos, eles constituíram uma família moderna e sólida, que já vai
jhuice”. Entre as principais diferenças das equipes do exterior e do Brasil, Dou-
para o segundo herdeiro. “A gente tentou morar junto, mas não deu certo. Então
glas aponta o material humano e o equipamento. “O material humano daqui
durante a semana eu fico na casa da minha vó e, no final de semana, eu fico com
para lá é igual, se bobear aqui a gente é melhor. Mas o equipamento é que faz a
minha esposa e filha. Assim não tem briga e a gente vive bem”. Além de terem
diferença. A cadeira de lá não tem nem comparação, é leve, você levanta só com
Maria Eduarda, de cinco anos, Janaina está grávida do segundo filho, que vai se
uma mão. Já a cadeira daqui é muito pesada e lenta”.
chamar Pedro. O atleta adora ser pai e nunca imaginou que poderia chegar onde
Para a família ver Douglas na Seleção é maravilhoso. Eles apoiam comple-
está. “Ser pai foi uma experiência boa, eu jamais imaginava essa felicidade, eu
tamente as escolhas que o atleta faz. Regina se emociona ao falar do sobrinho.
acho que evolui bastante e a maior causa da minha evolução foi minha família”.
“Ele é orgulho da família. É emocionante ver ele jogar, os pulos que ele dá com
As primeiras viagens da vida de Douglas foram feitas com o Águias. “Eu
a cadeira são lindos. É muito gratificante você ver o seu sobrinho jogando pelos
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Nas Asas do Águias
países do mundo”. Para a avó coruja, o basquete faz parte da vida do neto. “O basquete é o trabalho dele, é o que ele faz melhor. Ele se dedica muito. Chega em casa e lava as camisetas e uniformes do treino. Tenho muito orgulho do Douglas”. Enquanto Douglas estava na China, a família se reuniu para assistir ao jogo de basquete pela internet. “Não dava para ver muita coisa, mas, mesmo assim, todo mundo ficou em volta do computador. A gente gritava como se eles estivessem ouvindo”. Para recepcionar o atleta, a família se uniu com amigos e conhecidos e fez uma festa. Embora tenha jogado pela Seleção, o maior sonho do atleta é ver o Águias voltar ao seu período de ouro. “Naquela época, a gente tinha um time tão bom que ficamos varios anos sem perder. Os outros times se preparavam para enfrentar um time só que éramos nós. Não tinha para ninguém. Quero muito que volte a ser assim”. Para a técnica Ana, Douglas tem tudo para ajudar o time voltar a vencer. “Ele é um jogador muito ‘liso’ no basquete, ele consegue entrar e fazer as infiltrações muito bem, tem uma agilidade boa e sabe se livrar muito rápido da defesa. Ele é bem arisco e, para ser um jogador completo, precisa se dedicar
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mais”. Douglas sabe que não tem se esforçado tanto nos últimos meses, mas está disposto a dar o máximo de si para fazer com que o time volte a ser campeão.
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Heriberto O último quarto já havia começado. A visão de espectador privilegiado por estar no banco da equipe com os outros colegas, só aumentava a ansiedade. Falta. Mais uma. O armador do time estourou o número máximo. Alguém precisava substituí-lo. A pontuação não era a mesma, mas sabia que era a oportunidade que precisava. A técnica muda o esquema tático. Coloca-o em quadra, mas troca também o pivô. Uma mudança inesperada. A equipe adversária não conhecia a forma de jogo do time que agora se posicionava para o reinício da partida. Dentro do garrafão, de fora da zona morta ou mesmo num tiro livre, as cestas começaram a surgir e os pontos cresciam no placar. A ousadia da treinadora e a vontade de quem precisava mostrar serviço: a união que faltava para encarar uma equipe de primeira. Fim de jogo. A exaustão se mistura à sensação de dever cumprido. No placar, 15 pontos a mais que o adversário e nova vitória para a equipe. Na memória, a importância do jogo em que fez a diferença. Essa é a principal lembrança de Heriberto Alves Roca, 32 anos, o primeiro ponto 1.0 a ser armador de uma equipe paulista de basquete adaptado. Nascido em 21 de abril, na zona Leste de São Paulo, passou toda a infância e a adolescência no bairro Parque São Lucas. Ele assume não ter muitas lembranças dessa época, mas afirma ter sido um menino muito ‘rueiro’, daqueles que estava sempre brincando com os amigos. “Adorava empinar pipa, subir em muro, brincar a todo o momento, mas sempre com os amigos mais próximos, perto de casa”. A mãe, Eva, faz questão de dizer que o filho nunca foi uma criança problemática.
“Na verdade, não entrei no Águias por causa do esporte. Entrei porque vi os meninos muito independentes e eu não tinha essa visão do deficiente físico [...] E nisso eu fui aprendendo, fui gostando do esporte aos poucos”.
“Ele passou a gostar de sair mais na adolescência, ia passear com os amigos. Na infância era mais calmo. O único problema dele era com os estudos”. Mesmo consciente da importância dos estudos, Heriberto assume que nunca gostou de estudar. Por outro lado, a vontade de ser independente surgiu logo cedo e ficou mais difícil conciliar o período escolar com o trabalho. “Considero a escola 53
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Nas Asas do Águias
um momento de descoberta, de fazer amigos. Até a sexta série foi normal. Depois
mas ele me respondeu tranquilo que não teria problema nenhum. Então eu dis-
da sétima até o 1º colegial, quando parei de estudar, foi meio de bagunça e quan-
se: ‘vai filho, mas toma cuidado’”.
do repeti mais, até porque comecei a trabalhar com 14 anos. Sempre gostei de ser
A noite passou rápida, Heriberto e os amigos se divertiram e aproveitaram
independente, ter minhas próprias coisas, então procurei emprego e comecei a
cada momento. Eram quatro horas da manhã, quando eles resolveram voltar
estudar à noite. E o período noturno para estudo não é muito bom, porque quinta
para casa. Eva sabia que o filho chegava sempre nesse mesmo horário. “A gente
e sexta ninguém vai pra aula. Teve um ano que eu estourei em falta”.
sempre teve carro, mas ele preferia sair com os amigos de metrô mesmo e naque-
Heriberto não concluiu os estudos, apesar do apoio da família e da própria vontade que tinha em poder finalizar esse ciclo. Mas algumas questões mais sérias
le dia ele até falou: ‘mãe, eu vou, mas umas quatro e meia ou cinco horas eu já tô de volta’, como ele sempre fazia”.
viriam complicar e dificultar esse caminho de volta. Em 1994, Heriberto come-
Era junho de 1997 e enquanto Heriberto caminhava com os amigos até a
çou a trabalhar. Devido à idade, ele não tinha registro em carteira, mas não pen-
estação de metrô mais próxima, um conhecido do grupo que voltava de carro
sou duas vezes, quando teve a oportunidade de ganhar o próprio dinheiro. “Fiz
perguntou se eles não queriam ir junto. “Por incrível que pareça eu sempre an-
um curso de silkscreen numa creche e durou um ano. Aí, o professor que ensinava
dei com meus amigos de condução, usando transporte público. Quem apareceu
tudo pra gente tinha uma estamparia e me convidou pra trabalhar com ele, então
era um conhecido que estava dirigindo junto de um amigo meu, e por infelici-
eu fui. Não era nada registrado, era bem tranquilo. Também trabalhei em mer-
dade, justo naquele dia, ele disse que podia nos dar carona. A gente tava quase
cado. E foram os dois serviços que mais me dei bem, trabalhava todos os dias”.
no metro já, mas acabamos aceitando. Éramos seis dentro de uma Parati. E a
Nos momentos livres em que aproveitava para se divertir, mesmo contando
gente nem bebia naquela época. Quem bebia, bebia muito pouco e nem dirigia.
com a fase da infância, Heriberto nunca foi muito chegado ao esporte. “Eu qua-
Acabamos pegando a carona com esse cara, ele também estava bem, até que de
se nunca jogava, era muito ruim na verdade. Ninguém me chamava pra jogar
repente, ele começou a tirar um racha com o cara do carro ao lado”.
futebol e quando chamava eu sempre ficava no gol, então já dá pra imaginar
Heriberto lembra que o problema de espaço foi o mais fácil de resolver. Cou-
como era”. As atividades físicas que fez, quando era mais novo, ficaram por
be todo mundo tranquilamente no carro. “O motorista era o Marcelo, no passa-
conta apenas do escotismo. “Meu irmão era escoteiro, quando mais novo e eu
geiro estava o Jeferson. Atrás tinha o Jackson numa ponta, o Jeferson em outra e
também era, quando pequeno. Minha família sempre gostou e aprendi a gostar
o Maurício e eu no meio”. A história se complicou, quando Marcelo, aparente-
também dessas coisas de acampamento, ficar no meio do mato, ir à cachoeira
mente, esqueceu que o carro estava lotado e começou a disputa no trânsito. “A
e tudo relacionado a isso. Sempre que tinha oportunidade participava, mas de
gente tava numa Parati com seis pessoas e o cara tava sozinho em um Ômega.
esporte, nunca fui muito chegado”.
Foi muito do nada. Um começou a passar a frente do outro e foram levando
Três anos depois, em 1997, Heriberto estava mais uma vez se arrumando
adiante. Não foi nem de parar o carro e começar do zero. No meio do trânsito
para sair com os amigos. O dia era especial entre eles: era a primeira vez que
mesmo. Eles começaram um cortar o outro e seguiu assim”. O racha começou,
um dos garotos ia sair à noite. O local escolhido foi o Projeto Radial, localizado
mais ou menos, na metade da Avenida Salim Farah Maluf, pouco depois do local
no Tatuapé, uma casa que só tocava música Black e Rap. Pela primeira vez, en-
onde cruza com a Avenida Radial Leste, no Tatuapé. “A gente falava: ‘para, para
quanto Heriberto se preparava, sua mãe pediu que ele ficasse em casa. “Quando
com isso’. E nessa bagunça dele correr e a gente gritar pra parar, ele perdeu o
ele se arrumou pra sair eram umas dez e meia da noite e eu disse: ‘não vai filho’,
controle do carro a 120 quilômetros por hora”.
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A lembrança dos rápidos acontecimentos antes da batida ainda está clara na
volta na vizinha e falou: ‘mãe, ele sofreu um acidente e está no Hospital Tatuapé.
memória de Heriberto. “A gente tava no final da avenida, na última curva e ele
Os outros meninos já foram liberados, só ele tá lá ainda. Eu tô indo pra lá, fica
não conseguiu fazer. O Ômega tava na frente e na Salim tem quatro faixas, aí
aí’. E eu tive que ficar naquela espera, ansiosa por uma notícia”.
para não bater no outro carro, ele tentou fazer a curva mais aberta e não con-
Heriberto dependia dos resultados dos exames para ter alta. E só depois,
seguiu. Como o carro ficou sem estabilidade, capotou”. É só quando pensa no
quando o médico veio explicar a situação é que ele entendeu por que os outros
momento da batida que Heriberto não consegue definir mais nada. “Não dá pra
garotos haviam sido liberados mais rápido. “Dos dois que estavam na frente: o
ver nada. Nem luz, nem nada. Era só aquele desespero de querer sair do carro
passageiro se machucou por causa do cinto e o motorista também, além de des-
e não conseguir”.
troncar o pé. Os dois que estavam nas laterais do banco de trás machucaram a
Ao mesmo tempo, na casa de Heriberto, Eva tinha se levantado e resolveu
cabeça. O que estava do meu lado também não teve nenhuma lesão mais grave.
ir até o quarto do filho para ter certeza de que ele já estava em casa. “Naquele
E eu não tive nenhum arranhão, mas por dentro quebrei duas costelas e duas
dia, quando deram umas cinco horas da manhã, eu fui olhar no quarto e ele não
vértebras”. A irmã, Nuvia, resolveu tudo que era preciso no hospital, antes de
estava, já pensei: ‘ah meu Deus, aconteceu alguma coisa’. Fui falar pro meu es-
voltar para casa e dar a notícia aos pais. “Quando minha filha voltou, ela disse:
poso que devia ter acontecido algo com Heriberto, porque ele não tinha voltado
‘mãe, infelizmente meu irmão vai ficar na cadeira de rodas’. E isso não é uma
ainda e meu marido respondeu brincando: ‘ah, calma, daqui a pouco a polícia
coisa fácil de ouvir nem de lidar”.
traz ele’”. Apesar da tranquilidade de David, Eva não conseguia se livrar da pre-
Foram quarenta dias internado no Hospital Tatuapé e de todo o tratamento
ocupação, então aproveitou que os colegas de Heriberto moravam perto e foi até
que Heriberto teria que fazer, essa foi a pior parte. “Nunca gostei de hospital e
a casa de uma das vizinhas, saber se os garotos haviam dado algum recado. “Ela
fiquei internado bastante tempo. Foi horrível, eu não gostava nem um pouco.
estava desesperada porque o filho dela também não tinha voltado. A sorte foi que
Graças a Deus, mesmo sendo um hospital público, fiquei num quarto só com
Heriberto tinha o número de telefone da irmã mais velha dele no bolso. Como
duas pessoas, bem mais tranquilo e mais reservado. Deu para aguentar bem.
naquela época a gente não tinha telefone, fui numa vizinha e pedi pra usar o dela
Assim que cheguei já fizeram radiografia, descobriram tudo logo de cara. Fiz
porque pensei: ‘vou ligar pra minha filha e avisar que ele não chegou. Se ligarem,
uma cirurgia de colocação de haste na coluna, saiu tudo bem, mas fizeram uma
ela dá um jeito de me avisar’”.
ressonância e viram que tinha afetado muito, então os médicos logo avisaram
Depois que Marcelo perdeu o controle, o carro chegou a ficar de ponta cabeça algumas vezes, mas quando parou, ficou do lado certo. Apesar da forte panca-
minha família que tentaram de tudo, mas não tinha mais jeito. As duas vértebras afetadas no acidente não quebraram, elas foram esmagadas”.
da, Heriberto permaneceu alerta, à espera de socorro. “Não demorou tanto pra
A vida de Heriberto tinha mudado de repente. De um dia para o outro,
chegar, pelo menos, não que eu me lembre. Tive que esperar o resgate dentro do
ele teria uma nova companheira na hora de aprender a lidar com as situações
carro até porque eu já não conseguia mais me mexer. Não fiquei desacordado,
cotidianas. Mas, por incrível que pareça, ele teve a calma e a tranquilidade que
nem nada. Simplesmente não sentia mais as pernas. Na verdade, estava todo
ninguém esperava para lidar com a notícia. “Acho que Deus me abençoou com
mundo consciente”. Assim que recebeu o atendimento, os responsáveis ligaram
isso, porque tudo na vida sempre levei numa boa. Tanto que até os médicos se
para o único contato que Heriberto tinha: o telefone da irmã. Mas a notícia que
espantaram, falaram assim: ‘nossa, você tá aceitando tão fácil’. A psicóloga do
chegou não foi suficiente para Eva. “Passaram uns minutos e minha filha ligou de
hospital conversou comigo, mas eu disse: ‘tudo bem, aconteceu, mas tô vivo’.
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Sempre me apeguei nisso, no fato de estar vivo, de saber que podia ter sido pior.
os meninos moram longe, pegam ônibus, metrô, têm a maior dificuldade, porque
Para mim, dos males o menor. Desde o começo, sempre pensei assim”.
eu não vou sair de casa também?’. Então o que realmente me chamou atenção
A volta para casa foi o começo da nova fase na vida de Heriberto. “Ah, vol-
foi essa independência deles. E nisso eu fui aprendendo, fui gostando do esporte
tando para casa tudo fica melhor. Fui procurar fisioterapia, fiz tratamento na
aos poucos”. O desejo de fazer suas próprias coisas e não depender de ninguém
AACD. Então foi tudo meio lento”. Naquele momento, a única saída para ele
para ir a outros lugares despertou a vontade que ele precisava para entrar na
era viver um dia de cada vez. Mas o jeito alerta e sempre produtivo, somado à
equipe. “Meu pai ajudou muito, tava sempre comigo e me levava para o treino.
força que recebeu de sua mãe, o ajudaram a seguir em frente. O mais importante
Eu não andava muito de ônibus, mas quando vi a habilidade que o pessoal tinha
para Eva era manter o filho sempre ativo. “Eu trabalhava então não queria que
com a cadeira, que eram pessoas que saíam ou até moravam sozinhas, percebi
ele ficasse sozinho. Nessa época, ele fez curso de computação e várias outras
que era aquilo que eu queria pra mim”.
coisas, porque sempre pensei em como seria ruim deixar ele dentro de casa, fora
Ele não podia imaginar que o interesse pelo esporte em si faria tanta falta no
que ele sempre foi um menino ativo que não gostava de ficar sem fazer nada.
começo de tudo. O fato de não ter toda a força de vontade, voltada para aquilo
Mas Deus nos deu muita força nessa fase e a gente conseguiu contornar a situa-
fez com que logo surgissem as primeiras dificuldades de adaptação. “Nada me
ção. Fora os dias que o pai levava ele pra fisioterapia ou saía de carro com ele pra
chamou a atenção no esporte logo de cara, então sofri pra caramba. Quando
passear. E a vida dele seguiu assim”.
comecei, não tinha toda essa tecnologia de hoje. Comecei com uma cadeira de
Foram dois anos de tratamento intensivo. De 1997 a 1999, Heriberto fez
ferro, depois usei uma de alumínio. Não tinham as rodinhas de trás que dão
todo o acompanhamento médico na AACD e, ao mesmo tempo, tentava en-
estabilidade, então a gente caía demais. Foi meio sofrido pra mim. Depois que
contrar um caminho. “Eu tentei encaminhar os estudos, mas foi exatamente na
começou a fase boa do basquete. Tratando-se do Brasil, pelo menos, posso dizer
mesma época que comecei a treinar. É como se esses dois anos tivessem sido de
que acompanhei a evolução da modalidade, um crescimento muito significativo
transição, só com fisioterapia, médico, tratamento e pensando num caminho pra
em relação ao que se vê lá fora, mas no começo foi difícil”.
minha vida”. E a opção mais inesperada, quase inimaginável como diz sua mãe,
Além da dificuldade com os equipamentos, havia o jogo em si. Heriberto
foi justamente a que despertou o interesse de Heriberto. “Um dia, quando meu
também precisava aprender as técnicas do esporte, pois a partir daquele mo-
marido o levou pra AACD, pra fazer a fisioterapia, um amigo dele que jogava
mento ele teria uma nova companheira, além da cadeira de rodas: a bola. “Tive
basquete falou: ‘oh Heriberto, você não quer jogar com a gente?’. Ele ficou meio
que aprender a bater bola, porque não sabia nada. Foi tudo bem aos pouquinhos
pensativo, não sabia como ia ser, mas eu incentivei desde o primeiro momento e
mesmo. Hoje vejo os meninos que estão começando e até brinco falando: ‘se
já tinha dito que ele precisava fazer alguma coisa”.
você pegasse o meu tempo ia ver que o negócio era bravo’. Eles são muito dedi-
Leomar, conhecido como Leo, foi quem fez o convite para Heriberto conhe-
cados, mas a situação é diferente. A antiga técnica, chamada Adriana, me ensi-
cer a equipe na qual jogava: o Águias da Cadeira de Rodas. Ele acompanhou um
nou bastante e pegava muito no meu pé. Eu tinha que ficar repetindo o mesmo
treino, se interessou e procurou saber como fazer parte do time, mas assume que
gesto por muito tempo pra pegar domínio de bola e técnica de arremesso. Era
não foi o basquete que chamou sua atenção nesse primeiro contato. “Na verda-
meio complicado”.
de, não entrei no Águias por causa do esporte. Entrei porque vi os meninos muito
Eva não sabe se foram as primeiras dificuldades ou se era a deficiência que
independentes e eu não tinha essa visão do deficiente físico, então pensei: ‘poxa,
ainda incomodavam o filho, mas lembra o quanto precisou apoiá-lo na decisão
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de ser atleta para ele não desistir. “Muitas vezes, principalmente no começo, ele
mas resolvi comprar um apartamento e acabou dando certo. Fiz as coisas, orga-
quis desanimar, mas eu falei: ‘não desanima, você tem que continuar’. Ele insis-
nizei o financiamento e falei: ‘agora eu vou mudar’. Tinha juntado um dinheiro,
tiu até que pegou gosto. Depois não teve mais jeito, ele não perdeu mais nenhum
mas a minha intenção era alugar ou qualquer coisa assim. Só que gostei da ideia
treino, nem jogo. Também já acompanhei muito jogo. Hoje não existe barreira
e falei: ‘não, agora vou mesmo morar sozinho’. Arrumei tudo aos pouquinhos,
pra ele”. E o apoio materno deu resultado. Foram, em média, dois anos de adap-
comprei uma coisa de cada vez e quando fez um ano, que terminei de arrumar
tação. Heriberto levou um pouco mais de tempo do que o normal até perceber
tudo, eu fui de vez. Precisava tentar”.
que teria um retorno de verdade, pois a possibilidade de ver o esporte se tornar
Aos 24 anos, em 2004, ele saiu definitivamente da casa dos pais. A tentativa
sua profissão só viria mais tarde. “Comecei a me dedicar de verdade ao esporte
não seria fácil e Heriberto estava ciente disso, quando tomou sua decisão. Mas,
com a minha primeira convocação, que foi para a Seleção Sub 23. Foi quando
para ele, o importante foi o aprendizado conquistado nesse período, algo que
passei a pegar gosto mesmo e pensei: ‘agora isso dá pra render alguma coisa e
ficou para a vida toda. “No começo era difícil. Ter que arrumar a casa, cozinhar,
quero ver no que vai dar’. Então passei a investir totalmente nisso”.
lavar, passar, é muito trabalho. Mas era uma coisa que eu queria e deu super
Foi aos 21 anos, em 2001, que chegou a primeira oportunidade com a cami-
certo. Foi uma baita experiência morar sozinho, ter a responsabilidade de pagar
sa verde e amarela. Era o Mundial Sub 23, realizado em Blumenau, Santa Ca-
as contas, não ter que depender dos pais. Me senti mais independente ainda. E
tarina. “Foi uma surpresa. E lá eu senti e vi a realidade mesmo. Pude conhecer o
tinha também a diferença de que fui morar em apartamento, sendo que sempre
basquete dos outros países, o modo de jogar de quem é de fora, principalmente
morei em casa, então foi bem legal pra mim”.
dos mais conhecidos, como o Canadá e os Estados Unidos. Foram 30 dias de
Ainda em 2004, quando sua vida pessoal tinha acabado de mudar radical-
treinos, a época que eu fiquei mais tempo foi nessa convocação da Sub 23. E o
mente por ter ido morar sozinho, o lado profissional estava cada vez melhor.
campeonato foi maravilhoso. Nós ficamos em 2º lugar. Ganhamos de times bons
Além de seguir com os treinos e uma evolução visível no Águias, Heriberto estava
e foi emocionante”. Participar de um campeonato internacional e ter experiên-
construindo uma carreira sólida na Seleção Brasileira. Após o campeonato com
cias reais com o basquete deu o toque final. Heriberto percebeu o tamanho da
a Sub 23, ele foi convocado direto para a Seleção Profissional e jogou uma Copa
oportunidade que estava a sua frente e resolveu agarrá-la. “Depois disso eu voltei
das Américas, em Vitória, no Espírito Santo, em 2001; o Mundial no Japão, em
com gás total, porque passei a conhecer os materiais, as jogadas. Minha vontade
2002, e o Parapanamericano de 2003, na Argentina. Mas foi em Atenas, quando
era conhecer mais pra poder ser convocado de novo”.
jogou a primeira Paralímpiada da carreira que ele teve noção do valor de repre-
As primeiras conquistas no esporte, aos poucos, foram fortalecendo aquele
sentar toda uma nação. “Os Jogos Paralímpicos foram uma lição de vida para
que sempre foi o verdadeiro objetivo de Heriberto: alcançar sua independência.
mim. Nunca tinha imaginado um campeonato tão grandioso. A quantidade de
O primeiro passo foi começar a ir sozinho aos treinos, sem precisar da constante
pessoas, de deficientes, de dificuldades que todo mundo vive, e mesmo assim,
companhia do pai. Depois, ele decidiu que queria morar sozinho. “Meus pais
estão lá e lutam por medalhas. Foi um dos momentos mais marcantes da minha
não gostaram, não queriam muito, mas era uma coisa que eu queria. Sempre foi
carreira. É indescritível ver as pessoas carregando bandeiras, saber que está lá
difícil a conversa sobre isso, principalmente com meu pai, porque foi sempre ele
em nome de todo o seu País. Mas foi só quando a gente chegou na Grécia que
que me ajudou e me levava para todos os lugares. Querer mudar de casar, ir mais
caiu a minha ficha, porque nem nos outros campeonatos, no Japão ou em outro
para o centro, ficar longe, não era bem visto por eles. Estava procurando casa,
lugar, a gente pensava assim”.
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As histórias desse ano, dessa competição em especial, já foram contadas aos
rondando, passavam sempre nessas áreas, porque, infelizmente, a gente não tava
amigos, parentes e conhecidos diversas vezes. E a semelhança que acompanha
livre de nada. Poderia acontecer algum atentado ali também. Então tinha toda
cada narração é a emoção com que Heriberto descreve os dias que passou na
essa proteção, até porque é uma coisa diplomática. Isso mexe com países. Então
Grécia. “A gente vê várias coisas, notícias na televisão, mas eu particularmente
foi ali que vi e entendi a dimensão, a grandiosidade, do que era e de onde eu es-
nunca tive essa visão ampla. De repente, a gente estava lá e quando olhei para
tava, do que estava representando, o que eu era ali. Então pensei: ‘Brasil é Brasil,
frente, vi a bandeira do Brasil hasteada e várias pessoas com o uniforme verde e
vamos nos dedicar ao máximo e lutar por isso, porque estamos representando
amarelo. Falei na hora: ‘nossa, que doido tudo isso’. Depois me entregaram uma
toda uma nação”.
bandeira e logo pensei nos milhões de pessoas que nós estávamos representan-
Apesar do destaque e da importância de cada competição internacional em
do. Nos outros campeonatos não tinha aquela coisa de ir para o alojamento e
que Heriberto participou vestindo o verde e amarelo da Seleção, ele sabe exa-
colocar a bandeira na janela para marcar território como todos os outros países
tamente o quanto isso foi produtivo para o Águias. “Foi uma época em que a
fizeram. Isso só acontece na Paralímpiada. Então tinha Estados Unidos, Canadá,
gente começou a ganhar muito, em muitos campeonatos. A gente treinava, e
países que eu nem conhecia, mas estavam lá”.
ainda treina, todos os dias. Às vezes viajava e ficava dias fora. Depois voltava,
No decorrer da competição, todos os atletas sempre têm alguns dias de des-
treinava aqui e já tinha competição de novo. Foram anos bem corridos mesmo. E
canso, uma folga entre uma e outra partida. “Aproveitamos bastante por lá, pas-
a gente tava num grau de crescimento muito alto, tínhamos uns cinco que eram
seamos muito”. E foi em um desses momentos de descontração que Heriberto
da Seleção, porque o Águias sempre formou atletas e sempre tinha gente sendo
viu a cena mais inusitada, algo que ele nunca havia imaginado. “Uma história
convocada. Então, na nossa ausência, os moleques treinavam que nem loucos,
que me marcou muito foi quando vi dois chineses sem braços telefonando no
aí a gente voltava, treinava com eles e todo mundo crescia. Foi muito legal, uma
orelhão. Não tinha ideia de como era aquilo e fiquei só olhando. Sempre conto
época muito boa de lembrar e contar”.
essa história porque marcou muito. Só não tive coragem de filmar, porque fiquei
Além das viagens com a Seleção, que permitiam Heriberto conhecer pessoas
com vergonha. Mas eles fazem assim: enquanto um pega o telefone pelo pé,
de diversos lugares, os atletas do Águias também conheciam muita gente em São
apoia na coxa para levar até o ombro, o outro vai discando, também com o pé. É
Paulo. Como a entidade nunca teve um local próprio, eles foram aos poucos con-
uma coisa que eu nunca tinha imaginado e os caras estavam lá, se virando numa
seguindo lugares para treinar. Com ofícios e documentações bem organizadas,
boa. É algo impressionante”.
local de treino nunca faltou, mas por outro lado, a equipe se prepara num lugar
Outro ponto marcante naquela Paralímpiada foi o momento político em que
diferente a cada dia. Uma das quadras utilizadas é a da Faculdade São Judas.
tudo aconteceu. Era a época da guerra no Iraque e a disputa com os americanos
Em 2006, algumas garotas do primeiro ano da faculdade tiveram curiosidade
ultrapassava todas as linhas que determinavam os espaços esportivos. “Lembro
ao ver o time treinar e, aos poucos, foram se tornando amigas dos jogadores. Foi
de um fato, acho que eram os atletas dos Estados Unidos, eles estavam com se-
então que Heriberto conheceu Eloá. “Nós começamos a acompanhar jogos, às
guranças e a área do Iraque também era separada. A organização não queria
vezes assistia aos treinos deles e então nós fomos nos conhecendo”. Após muitas
mostrar isso, mas existia. Não sei como foi na Olimpíada, mas na Paralímpiada
conversas e dois anos de convivência, a situação mudou. “A gente começou a
dificilmente você via um americano, um iraquiano ou qualquer outro de um
namorar sério mesmo no final de 2008”.
país que tinha rincha passando perto. Tinha certa proteção, os policiais ficavam 62
Eloá se tornou, além de amiga, uma companheira. “Sempre que dava eu 63
Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
assistia e ainda assisto aos jogos. Antes aproveitava pra assistir os treinos tam-
Meire escolheu a segunda opção. A gente tava perdendo por uma diferença de
bém. Eu gosto de estar perto e participar com ele. Costumo incentivar bastante,
oito pontos e era uma final. Mas nós entramos, nos acertamos e conseguimos
desde que nos conhecemos”. E toda essa compreensão com a vida profissional
virar o jogo em 15 pontos e levamos aquele título. Eles não esperavam aquilo.
de Heriberto vem com a consciência do quanto o esporte é importante para ele.
Nós surpreendemos”.
“Acredito que o esporte foi tudo na vida dele. Ele adquiriu toda a independên-
Analisando todos os anos de experiência no basquete adaptado, Heriberto
cia, criou uma rotina produtiva, cresceu muito e tudo através do esporte. Isso
acredita que a visão de jogo é a principal qualidade que tem como jogador. “Sou
deu muita força pra ele vencer as dificuldades que tinha no começo. O esporte
ponto 1.0, considerado o cara mais ferrado do time, pra não dizer outra coisa.
é muito bacana, porque pode ajudar mais do as pessoas imaginam. E foi impor-
É o que tem mais dificuldade. E sempre que eu ouvia isso, ficava chateado e foi
tantíssimo na vida dele”.
quando comecei a me dedicar aos treinos. Então, hoje tenho uma visão mais
A vida de Heriberto evoluía um pouco mais a cada dia. Jogos importantes
apurada do jogo, tanto que o Águias foi um dos primeiros times a colocar al-
pelo Águias, novas convocações para a Seleção Brasileira e um relacionamento
guém ponto 1.0 como armador”. No ponto de vista da comissão técnica, todos
tranquilo. Em 2010, eles ficaram noivos, mas o status não seria o mesmo por
reconhecem a força, a habilidade e o bom arremesso dele, mas os pontos nega-
muito tempo. No dia 14 de janeiro de 2012, Heriberto e Eloá se casaram. “Foi
tivos sempre giram em torno do mesmo fator: sua pontuação. Ana acredita que
um dia ótimo. É muito bom casar. A gente passa muito tempo planejando, tem
atualmente “os jogadores têm mais velocidade e mais explosão” e o preparador
um gasto bem grande, mas no dia é só curtição. Foi tudo muito bacana e muito
físico, João Paulo, explica quer isso é diferente para Heriberto. “Ele acaba sobre-
marcante. Aquela choradeira da família, todo mundo emocionado, os amigos
carregando bastante e não consegue atingir tanta velocidade por conta de ter só
todos por perto, foi bem bacana”. Para Heriberto, a maior mudança vinda com
o braço pra movimentar o corpo inteiro”.
o matrimônio envolvia a moradia. “Mesmo depois que casei, continuei morando
Por outro lado, Heriberto assume que precisa melhorar a questão da pa-
no apartamento. Aí a gente teve que arrumar, porque era uma bagunça lá. O
ciência. Mas, para isso, depende do entrosamento e do jogo em equipe. “Os
que tinha pra eu morar estava ótimo, mas pra um casal, as coisas são diferentes.
jogadores estrangeiros falam muito durante o jogo e acaba irritando quem tá
É meio complicado, mas é legal”.
dentro de quadra. Então, acredito que essa mania que eu peguei, tanto de xingar
Há 13 anos representando o Águias, Heriberto já passou por diversas situa-
quanto de dar apoio a quem precisa crescer na partida, vem da experiência pelo
ções e sua vida foi dividida em fases. Cada uma positiva à sua maneira. E entre
tempo que tenho no basquete. Tento passar isso para os outros, porque não se
tantos momentos bons, mesmo depois de mais de uma década, a partida mais
joga mudo. Não dá pra saber quem é a pessoa que vem atrás de mim, se quem
marcante na memória dele foi um dos primeiros jogos em que vestiu a camisa
estiver comigo não avisar, então temos que trabalhar juntos. E se eu não falo,
da equipe tricolor paulista. “Estávamos jogando o Paulista, de 2006, se não me
eles também não vão falar. Então eu tento passar isso positivamente, mesmo que
engano, tínhamos um time formado e eu não entrava muito, devido a minha
de vez em quando eu fique bravo, falando alto, mas é porque eu falo tanto pra
pontuação. Só entrava no esquema tático que jogava com o pivô reserva. O
um entender como para incomodar o adversário. Por isso que a gente fala tanto
adversário era o CAD, de São José do Rio Preto, e o Águias começou a perder.
que é uma família. É preciso ter essa consciência, essa tática. Precisamos ser um
No último quarto, nosso armador estourou em faltas e não tinha quem colocar.
conjunto dentro de quadra. Se não acaba ouvindo isso do técnico, se não vier
As opções da técnica eram colocar só eu ou colocar os dois (pivô reserva), e a
dele vai ouvir de outro atleta. E pior ainda se escutar da torcida”.
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E ao pensar em tudo que aprendeu e todas as oportunidades e portas que se abriram a partir do basquete, Heriberto acredita que está no momento de passar isso adiante. Essa é a beleza dos objetivos que tem atualmente: são situações que envolvem seus companheiros. “Dentro do Águias, com os jogadores novos que nós temos agora, acredito que o meu objetivo mais claro mesmo é ajudar a colocar eles em quadra, poder passar um pouco do que aprendi para eles, porque tudo na vida é uma fase. Tem aquela em que você está no topo, mas depois vem a fase do envelhecimento e é preciso dar espaço para outros. Eu não acho que vá parar agora, nem quero isso, mas gostaria muito de ver eles jogarem, poder ver eles entrarem em quadra e serem campeões pelo time que representam, que é o mesmo time pelo qual já fui tantas vezes campeão: o Águias. Então acho que falta isso: ver eles jogarem e levar nosso time ao pódio de novo”. Toda essa preocupação de Heriberto com os novos companheiros tem explicação no reconhecimento da importância do esporte. “O basquete foi o que fez minha vida, o que mudou minha situação e hoje, graças a Deus, sou completamente independente. Sou casado, cheguei a morar sozinho por quatro anos
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e era uma coisa que eu queria muito. Pra mim foi isso, foi o que trouxe minha independência. Acho que se eu não tivesse no meio esportivo não conseguiria força nem coragem de chegar e meter a cara no mundo, viver e fazer o que for preciso. É muito importante pra mim. Acho que o esporte, seja para deficiente ou não, sempre traz uma coisa boa para a pessoa”. E é essa a principal lição que ele pretende passar adiante.
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Berg Uma quadra, uma bola e dez homens em cadeiras de rodas. A atenção está parcialmente voltada para as mãos que movem as cadeiras. Corridas, voltas, curvas e dribles. A coordenação motora, imprescindível, desperta um novo ângulo, uma percepção incomum, talvez diferente, dessa realidade. Aos olhos do espectador surge um emaranhado de dúvidas e surpresas. As arquibancadas estão vazias, mal consegue lembrar se os refletores estão ou não desligados, pois não é isso que o atrai. A movimentação na quadra é a única coisa que os olhos conseguem focalizar naquele momento. A cena é, no mínimo, inusitada e improvável para quem nunca teve afinidade com qualquer tipo de esporte. Uma possibilidade que não existia nem no mais louco dos sonhos, mas foi amor à primeira vista. Daquele momento em diante ele tinha uma certeza: iria trocar de lugar. Na próxima vez que estivesse naquele clube, seria dentro das quatro linhas. Uma semana foi o tempo necessário para que Wandemberg Nejaim do Nascimento, ou Berg – como prefere ser chamado – 29 anos, passasse da arquibancada para a quadra. Nascido em 28 de setembro, em Recife, Pernambuco, mais precisamente no bairro de Apipucos, localizado ao norte da capital e com uma população de quase 3.500 habitantes, a microrregião tem o nome derivado do tupi ape-puca, que significa caminho que se divide. E o formato que deu nome ao bairro, assim como na vida, apresenta duas opções frente às diversas situações que o mundo impõe. Lá ele viveu toda a infância e parte da adolescência. Foi criado com o amor da família, os mimos da avó materna, Cecília, e aprendeu a se adaptar ao mundo como todos nós. Aos seis meses de vida, em
“A primeira impressão que tive [do basquete] foi muito diferente, porque eu nunca me vi como um deficiente. Eu sou, sempre fui, mas nunca me senti dessa forma”.
um dia com tudo para ser normal, como haviam sido os outros, ele acordou com febre. Quando sua mãe Vânia percebeu, logo imaginou que seria apenas uma gripe. “Eu levei ele para a emergência e o médico que atendeu disse que era 69
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mesmo uma gripe. Passou um remédio e me mandou de volta para casa”. Mas
Nas Asas do Águias
O resultado da doença na vida de Berg foi a má formação dos membros inferiores e no lado superior direito, além de um tratamento intensivo durante
ele não melhorou. Nessa época, ele já conseguia se levantar sozinho dentro do berço e Lilian,
a infância. Como toda criança, que vive com fôlego de derrubar adultos e com
irmã mais velha, era quem costumava ver ele primeiro. “Todos os dias de ma-
vontade de brincar a todo instante, Berg considerava a fisioterapia a parte mais
nhã, eu sempre ia até o berço e brincava um pouco com ele. Um dia, vi que ele
chata, senão a única, dessa época. Fisioterapeutas sempre se esforçam para fazer
ainda tava deitadinho e estranhei. Comecei a brincar, mas quando o colocava
brincadeiras e atividades mais leves, quando a sessão é infantil, mas executar
de pezinho, ele não ficava, as perninhas dele esmoreciam. Aí eu chamei minha
exercícios repetitivos e tomar choques para estimular músculos é considerado
mãe”. Essa foi a principal mudança que fez Vânia ficar realmente preocupada.
cansativo até mesmo para os mais velhos.
“Eu acordei no dia seguinte e estranhei que Berguinho ainda não tinha acor-
O tratamento foi todo realizado no Nordeste e durou sete anos. Remédios, con-
dado. Quando cheguei ao quarto, vi ele deitado, quietinho na cama”. Depois
sultas médicas, sessões e mais sessões de fisioterapia. Mesmo depois de ter conhecido
alguns dias, a febre passou, mas ele continuava sem forças para movimentar as
outros lugares e hospitais, ele não consegue ver um caminho diferente do que traçou
pernas. “Foi então que eu me desesperei, voltei com ele ao médico, mas todos em
durante sua vida. “Acredito que o local (Nordeste) não tenha feito diferença. Eu rece-
que passei disseram que era só gripe”. Foram pouco mais de 15 dias até o parecer
bi atendimento tanto público como particular, tive acesso a toda estrutura necessária
correto e final. “Primeiro o médico pensou que tinha sido uma injeção mal apli-
para uma recuperação. Não sinto que tenha faltado nada”. Por outro lado, a vontade
cada, mas com os exames ele teve certeza que era paralisia infantil”.
e o desejo de sempre querer o melhor para os filhos, faz com que Vânia discorde:
A poliomielite é uma doença contagiosa, disseminada pelo poliovírus, mais
“Eu acho que poderia ser melhor sim, com certeza. A gente vê muito caso em que
comum entre crianças, mas que também pode afetar os adultos. Atualmente,
acontecem as coisas e você não tem apoio de ninguém, chega aos postos de saúde e
descobrir essa enfermidade ficou mais fácil, sem contar o forte trabalho da cam-
não é bem atendida, é muito difícil quando não se tem conhecimento”.
panha de vacinação, que acontece sempre duas vezes ao ano para menores de
O tratamento percorreu quase todo o período de infância e devido às limi-
cinco anos. Mas há quase 30 anos, mesmo numa grande cidade como Recife, a
tações causadas pela poliomielite, Berg sempre recebeu os amigos em casa e se
tecnologia e os procedimentos médicos nem sempre eram suficientes.
adaptou às brincadeiras. O amigo de infância Rodrigo, três anos mais velho,
Depois da confirmação sobre o problema de saúde de Berg, uma nova mu-
acompanhou todas as dificuldades e ajudou nesse processo de adaptação. “Nós
dança aconteceu e mudou novamente a situação e Vânia e toda a família. “Como
crescemos juntos e começamos a brincar. A gente era tão próximo que ele foi
uma coisa ruim leva a outra, nessa mesma época, o pai dele se separou de mim”.
crescendo e eu notava que ele não ficava de pé, mas como eu era criança e ele
Mesmo com a distância inevitável, José Abdon auxiliou no tratamento do filho.
mais novo ainda, eu achava que era normal. Então levei isso numa boa e a gente
Por ser policial civil, ele tinha convênio no Hospital dos Servidores do Estado de
brincava de luta, no chão mesmo. Eu fazia karatê, então colocava o quimono
Pernambuco (IPSEP). Como o direito se estendia aos filhos, parte dos cuidados
e lutava com ele”. A diversão consistia em jogos de montar, pintar, desenhar e
com Berg foi feito lá. Por outro lado, Vânia também conseguiu atendimento em
atividades simples com bola. O fato de não poder andar, nunca fez com que se
um posto perto de casa. “O posto ficava em Casa Forte. Era um lugar que fazia
sentisse excluído e buscou a todo o momento interagir e se integrar à vida dos
fisioterapia só com crianças especiais”. E depois, com os direitos que a mãe tinha
colegas. “Tive uma infância muito boa. Fora essa parte da fisioterapia que foi
no trabalho, ele teve a oportunidade de usar também o convênio particular.
dolorida, cansativa e que é chata pra criança, foi tranquila”.
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A limitação que a doença trouxe à vida de Berg não o impediu de aproveitar
O cuidado maior sempre foi direcionado a ele, mas por uma questão de ne-
cada momento, desde a primeira idade. O jeito ativo de menino que não aguen-
cessidade e não por predileção ou escolha entre um ou outro filho. A avó Cecília
tava ficar parado e buscava sempre o que fazer é um dos detalhes mais presentes
tomou para si a responsabilidade de acompanhá-lo, não só nas sessões de fisio-
nas lembranças da irmã Viviane, assim como o desejo de ter uma bicicleta. “Ele
terapia, mas a todo e qualquer lugar necessário, porque os horários de trabalho
não conseguia andar com a bicicleta, mas os amigos andavam e sempre o leva-
de Vânia não eram compatíveis. “A avó dele foi uma guerreira. Não que eu não
vam na garupa”. Mas da mesma forma que ela trazia alegria, um dia foi motivo
tenha sido, mas ou eu trabalhava ou levava ele para o tratamento”.
de decepção. “A bicicleta dele foi roubada e ele ficou desesperado, por que viu o camarada chegar, pegar as coisas e não pode fazer nada”.
Berg frequentou duas escolas. Começou os estudos na rede pública, na Escola Professor Cândido Duarte, e depois foi transferido para a particular, no
Em 1990, aos sete anos, chegou o fim das sessões de fisioterapia. Junto disso,
Colégio Marista. Na época de escola, ele já andava com ajuda da órtese, mas se
Vânia conseguiu aquilo que mudaria de vez os dias de Berg: o aparelho ortopé-
lembra das condições dos dois lugares. “Não era adaptado, nenhuma das duas”.
dico chamado órtese. O uso do aparelho foi indicação médica para melhorar a
E nessa fase, a lembrança mais clara na memória é relacionada à professora Ri-
função dos membros mal desenvolvidos, além de dar sustentação à perna direita
solene. Apesar de não se lembrar da fisionomia, ele carrega consigo cada peque-
dele e permitir que ele andasse. Vânia diz que foi um anjo que ajudou seu filho a
no gesto da educadora. “Ela me ajudava em tudo. Me levava pra o banheiro, pra
dar os primeiros passos. “Meu patrão, na época, que deu o aparelho para o Berg.
ir merendar, pra brincar na hora do recreio. Então, uma coisa que me marcou
Pra mim era Deus no céu e esse homem na terra, porque ele me deu emprego,
quando era criança foi isso. Esse contato meu com ela e vice-versa”. As aulas de
deu o aparelho do meu filho e nunca me cobrou nada”. A partir daí, cansou de
Educação Física foram a única limitação no período escolar, de modo que fazia
esperar: foi em busca dos amigos para se divertir. Assim, duas outras brincadei-
apenas as partes teóricas e assistia às práticas.
ras passaram a fazer parte de sua rotina: o futebol, que jogava num campo de
Como todo bom adolescente, Berg estava crescendo e sempre dava um jei-
várzea do bairro, perto de casa, e que lhe sobrava sempre a função de goleiro; e
to de não precisar dos pais, principalmente nas questões financeiras. Ele nunca
o pique-esconde, no qual sempre levou a vantagem de ser considerado café com
teve um trabalho com registro em carteira, mas fez algumas atividades que lhe
leite, que era a forma como chamavam as crianças que tinham alguns privilégios
rendiam algum dinheiro. Primeiro, ajudou um amigo que vendia camarão, tanto
nas brincadeiras.
no preparo como na venda; depois, trabalhou com outro amigo que tinha um
A transição para a adolescência foi serena; os hábitos e a vivência conti-
bar. E Viviane conta que não foi só isso. “Minha mãe abriu uma lanchonete que
nuaram iguais. Os colegas de escola eram os mesmos da infância e o principal:
vendia salada de frutas e sorvete e ficava em um posto, perto de casa. Meu irmão
eles nunca o viram como um impossibilitado, da mesma forma que ele nunca se
ia lá para lavar carros e ganhar uns trocados”. Até mesmo pela idade, ele nem
colocou como tal, o que seu amigo Rodrigo considera resultado da criação que
teve oportunidade de pensar numa carreira profissional. Mas, nesse caso, a vida
receberam. “Fomos criados juntos e logo a gente aprendeu a aceitar um a dife-
se encarregou de apresentar o caminho logo cedo.
rença do outro, até porque todo mundo tem diferenças”. A mesma situação se
Em 1997, o amigo Vagner, mais conhecido como Hugo devido ao apelido
repetia em casa. Tanto os pais, como as duas irmãs mais velhas, Lilian e Viviane,
que tem desde a infância, porque todos diziam que ele parecia com o Huguinho
e a avó nunca o trataram como um coitado. O convívio com a deficiência sempre
do desenho Pato Donald, foi quem contou ao Berg sobre o time de basquete para
foi tranquilo.
pessoas com deficiência da região. Hugo era funcionário do clube da Associação 72
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dos Deficientes Físicos Motores de Pernambuco (ADM-PE) e foi com o incentivo
que ninguém fosse com ele. Ter o aparelho que o ajudava a andar era como se
dele que Berg se interessou em conhecer o esporte. Aos 13 anos, apesar da estra-
ele tivesse conquistado a liberdade, então pegava o ônibus e ia sozinho para os
nheza e com um pouco de curiosidade, pediu à irmã Lilian que o levasse para
treinos”. Enquanto Hugo, que lhe apresentou o esporte, não imaginava que veria
ver a equipe e saber como era o jogo. “A primeira impressão que tive foi muito
tanta diferença na vida de Berg. “Na verdade, eu não conhecia o basquete, não
diferente, porque eu nunca me vi como um deficiente. Eu sou, sempre fui, mas
sabia da importância do esporte na vida de uma pessoa com deficiência. Quando
nunca me senti dessa forma. Na verdade, o principal foi o encantamento de ver
Berguinho entrou, eu vi a vida dele mudar totalmente”.
o jogo, o basquete, não houve um choque por perceber as diferenças, mas era
A mudança foi positiva e mesmo sendo um fato muito recente, era impossí-
uma novidade pra mim”. E Lilian ainda se lembra de quanto aquela cena mexeu
vel não pensar no futuro. Lilian sabia que se dependesse apenas da vontade de
com ele. “Me lembro que ele ficou encantado, porque era algo novo, que ele não
Berg, as conquistas não demorariam a chegar. “Pensando só pelo meu irmão, de
conhecia, nunca tinha visto”.
verdade mesmo, sempre acreditei que ele chegaria a ser profissional, porque ele
Em todo o tempo que observou o treino, os detalhes que mais chamaram
sempre foi muito dedicado, nunca gostou de faltar em treino, sempre fez tudo
sua atenção foram a velocidade e a força. A união desses aspectos, demonstrados
direito”. Por outro lado, Rodrigo não conseguia imaginar o amigo como profis-
a partir da coordenação motora na movimentação com a cadeira de rodas, era
sional devido a equipe em que ele jogava. “Na ADM ainda não e nem é pela
algo realmente novo. Depois de assistir ao primeiro treino, o interesse pelo es-
capacidade dele, porque isso eu sei que ele tem, mas é pela situação do esporte
porte foi espontâneo. Berg procurou os diretores e responsáveis pela equipe para
brasileiro mesmo. Aqui, se não é futebol, não é nada, dificilmente você consegue
conversar e saber o que deveria fazer para ingressar no esporte. Já na semana
alguma coisa. Agora, sem ser futebol e para deficientes, é mais complicado ain-
seguinte, iniciou a prática do basquete adaptado. “Lá não é muito rigoroso. Na
da. Então quando ele começou a jogar, vi aquilo mais como uma ocupação, até
verdade, eles fazem mesmo essa captação de jogadores, encontram na rua e já
porque ele não era remunerado nem nada”.
chamam pra praticar algum esporte”. A ADM trabalha com tênis de mesa, atle-
Começar a vida de jogador trouxe uma nova experiência para ele: andar de cadeira de rodas. Apesar da deficiência e mesmo com ajuda da órtese, Berg
tismo e natação, além do basquete. Berg representou a ADM-PE de 1997 até 2000, equipe na qual teve um
sempre andou, mas para jogar é preciso estar nas mesmas condições dos outros
bom início, apesar de saber que a Associação trabalha de forma mais recreativa
jogadores. A adaptação com a nova companheira não foi fácil, mesmo com esse
do que profissional. Foi um começo interessante, principalmente para quem está
contato inicial sendo apenas com a cadeira própria para o jogo. Se a primeira
entrando no mundo do esporte em geral porque é tudo muito encantador. Mas,
experiência foi assim, a coordenação entre corrida e giros somados à habilidade
apesar de todo amor que tem atualmente pelo basquete, de toda a vontade de
com a bola e os dribles foram piores ainda.
jogar profissionalmente e do envolvimento com a área esportiva, Berg tem uma
O aprendizado, até então, era direcionado aos movimentos necessários ao
peculiaridade difícil de encontrar: ele nunca foi apaixonado por esportes! Assiste
jogo. “Acredito que a minha adaptação foi bem rápida, porque depois de três
a um ou outro jogo de futebol, já deu uma olhada em partidas de outros esportes,
meses fui para o primeiro campeonato oficial com a equipe. Não sabendo muito,
mas nunca foi fissurado. Em síntese, sempre um atleta, nunca torcedor.
mas fui. Então, já tinha certa habilidade com a cadeira”. Quanto a aprender as
A entrada de Berg no mundo esportivo criou entre a família e os amigos
regras e técnicas, o processo foi mais demorado. “Como no basquete adapta-
um misto de sentimentos. “A gente ficava preocupada, porque ele não queria
do existe a pontuação para cada jogador, tem uma banca avaliadora em cada
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campeonato, então acho que foi mais por isso que a direção me levou. Havia o
equipe”. Dessa vez ele assumiu a vontade de ir e recebeu o apoio dos familia-
interesse do clube em saber minha classificação. Fui muito mais pra isso do que
res. “Eu estava muito a fim de aprender, já tinha uma paixão grandiosa pela
pra jogar mesmo”.
modalidade e São Paulo sempre foi um grande polo do basquete adaptado.
Nos três anos que jogou pela ADM, Berg ganhou mais do que experiência
Pernambuco, durante muitos anos, teve duas grandes equipes que foram se
no basquete. No clube, ele conheceu Ruy, o companheiro de equipe que se tor-
desfazendo por falta de condições financeiras e campeonatos. Por isso eu
nou um grande amigo. Mas o que eles não sabiam era o rumo e a proporção
decidi viajar”. Entrou em contato com a direção, e tanto ele como os pais
que tomaria essa amizade. Em 1998, no Campeonato Brasileiro da segunda di-
conversaram com a Meire e com o Hildo, presidente do clube na época, para
visão, tiveram como adversário o Águias da Cadeira de Rodas. O amigo Ruy,
definir todos os detalhes da transferência.
conhecedor do clube paulista e da fama que a equipe tem quanto à formação de
Após 16 anos, vivendo em uma cidade, cujo nome lembra o dom que a vida
jogadores profissionais, ao fim do jogo, conversou com a técnica Meire e pediu o
tem de surpreender com as oportunidades e caminhos que nos oferece, Berg per-
contato. No ano seguinte, Ruy mandou uma carta dizendo que tinha o interesse
cebeu que aquele era o momento de aproveitar a chance. Para a irmã Viviane,
de jogar em São Paulo.
tudo aconteceu muito de repente. “Fomos pegos de surpresa, mas ficamos felizes,
Em 1999, o Águias conseguiu fechar um patrocínio com a rede de Bingos
porque a gente sabia que era o que ele queria e seria bom para ele”. Hugo não
Itaim, época em que o jogo ainda era legalizado. Com o apoio financeiro, a
conseguia saber qual seria o final dessa história, mas as expectativas eram as me-
equipe teve oportunidade e renda suficiente para contratar jogadores. “Quando
lhores. “Eu imaginava que ele estava no caminho certo, mas não sabia pra onde.
fechou o patrocínio, a Meire ligou pro Ruy e disse que ele podia ir pra São Pau-
A gente não tinha noção das coisas que poderiam surgir. Só sabíamos que ele
lo, pois o clube tinha interesse em contratá-lo. Foi quando ela disse que gostaria
ia pra São Paulo jogar e achamos que seria uma oportunidade boa. O basquete
também do ‘garotinho’ que tinha visto na quadra, o número quatro”. O jeito
acabou se tornando a profissão do nosso amigo e ele faz isso com muito empe-
determinado e esforçado de Berg foi o que chamou a atenção da treinadora. “Eu
nho”. Por outro lado, Vânia ficou apenas com a preocupação materna. “Quan-
era bem daqueles que acabava o jogo e continuava na quadra arremessando e
do ficou decidido que ele ia se mudar, fiquei imaginando como seria, porque ele
treinando mais um pouco”.
não tinha ninguém e estava indo para uma cidade violenta. Mas a gente cria o
E foi dessa forma que ainda em 1999, aos 15 anos, ele recebeu o primeiro
filho pro mundo e ele tinha de aproveitar, até porque já era a segunda vez que
convite do Águias, a equipe mais visada da metrópole brasileira pela história de
uma oportunidade dessas aparecia. Eu fiquei com o coração partido, minha mãe
formar e revelar bons jogadores, além dos inúmeros títulos. O amigo Ruy foi
também, mas a gente teve que deixar ele ir”.
quem repassou o convite e explicou o interesse da equipe paulista, mas a pedido
A ida para São Paulo ocorreu em 28 de fevereiro de 2001. Amigos, estudos
da família, todos preocupados devido à distância e por ser ainda muito jovem,
e o início da prática esportiva são lembranças carregadas com ele. Os compa-
ele recusou o convite.
nheiros de equipe, além de Ruy que já conhecia do Recife, passaram a ser as
Continuou jogando em sua cidade natal até que, no ano seguinte, veio
amizades mais presentes, algo que não mudou muito com o tempo. “É engraça-
um novo convite. “Como o Ruy tinha família em Recife, no fim do ano, ele
do, porque meus amigos aqui são todos do basquete. Na verdade, sou mesmo de
voltou pra passar férias. Foi então que ele me procurou e disse que o Águias
poucos amigos. Até em Recife, conheço bastante gente, mas tenho apenas dois
estava reforçando o convite, que eles queriam muito que eu fizesse parte da
grandes amigos, o Hugo e o Rodrigo”.
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Quando chegou à cidade já tinha clube e moradia, mas o segundo item foi
São Paulo, se sente dividido entre as duas cidades. Recife sai na frente por ser a
mais complicado no quesito adaptação. “Havia outro jogador no time, Carlos
cidade em que foi criado, por conhecer cada canto e é onde se considera mais
Roberto, e a mãe dele morava em Guarulhos. O quintal era grande e tinha mais
natural. “Parece que lá é meu, sabe?! Me sinto completamente à vontade”.
de uma casa, onde o Águias alugou um espaço de dois cômodos pro Ruy, um ano
A verdadeira intenção da técnica sempre foi ter os atletas o mais próximo pos-
antes, e eu acabei indo morar lá com ele. Passei três meses no local e foram os
sível, até pelo fato de serem jovens. Após quase três anos surgiu a oportunidade que
três piores meses da minha vida”. Berg conviveu com a família, dona do terreno,
ela precisava: um apartamento vago no mesmo prédio em que mora. Foi então que o
que era bem grande. Tinha cerca de oito filhos. Habituado com o dia a dia que
endereço mudou e eles passaram a morar na Rua Lopes Chaves. “Não mudou muita
tinha em Recife, foi difícil entender a dura realidade de uma família grande e de
coisa, o primeiro apartamento ficava a duas quadras do condomínio em que a Meire
poucas condições. “Nós fazíamos a refeição na casa principal, do Betão, e eu não
mora, mas ela preferiu que a gente se mudasse”. A estrutura do local não era muito
era acostumado com a rotina deles. Era uma briga pra comer. ‘Porque esse bife é
diferente: são dois quartos, sala, cozinha, área de serviço e dois banheiros. A mudan-
meu’, ‘não sei o que é meu’, várias coisas. E eu me assustei. Tinha 16 anos, tinha
ça mais complicada viria alguns anos depois com a chegada de novos companheiros
acabado de chegar, foi complicado”.
e um número maior de pessoas morando no mesmo lugar. “Hoje somos cinco no
Nesse período, o apartamento que o Águias havia comprado para os atletas vin-
apartamento: o Leandro, o Anderson, o Henrique, o Alex e eu”.
dos do Nordeste ficou pronto. Foi então que Berg e Ruy se mudaram para o novo
A adaptação com a moradia e a falta que sentia dos familiares e amigos são
lar que ficava na Rua Conselheiro Brotero, próximo ao metrô Marechal Deodoro.
fatores importantes, mas acima de tudo, tinha o basquete. As diferenças na rotina
A casa era grande: duas salas, sendo que uma virou sala de reuniões da equipe; dois
e na forma de lidar com o esporte vieram acompanhadas de mudanças visíveis.
quartos; área de serviço e um quartinho menor, que virou o “cantinho da bagunça”.
“É absurdamente diferente”. Berg havia finalmente entendido que ser profissio-
“A casa era bem grande mesmo. Mas como éramos só dois, acabamos dividindo o
nal e brincar de basquete eram coisas distintas. “Na verdade, não é que eu saiba
mesmo quarto. Era tudo muito organizado, bem tranquilo”.
tudo hoje, mas eu aprendi a jogar de verdade no Águias”. Em Recife, os treinos
Foi nessa época que os laços de amizade com Ruy se estreitaram. Criado e
aconteciam apenas três vezes por semana, já em São Paulo, são cinco dias. “Só
acostumado aos cuidados dos pais e os mimos da avó, com uma adolescência
não tinha ou não tem treino quando tem algum problema com a quadra ou com
na qual não aprendeu quase nada sobre tarefas domésticas, aos poucos teve que
o transporte”. Sem contar a parte física que antigamente era feita com fisiote-
lidar com tudo isso. O colega de equipe, oito anos mais velho que Berg, teve par-
rapia e treino de fortalecimento na quadra, e hoje em dia eles fazem tudo na
ticipação fundamental no desenvolvimento dele e, aos poucos, a independência
academia do Centro Desportivo onde treinam, o Baby Barione, na Barra Funda.
começou a surgir. “O Ruy me acolheu como um filho. Acabou sendo um pai pra
Além da adaptação com as técnicas e táticas do esporte, havia a necessidade
mim no sentido de me direcionar e ensinar algumas coisas da vida”.
de se entender com os companheiros. “Ah, eu era meio louquinho. Não sabia
Mas a distância e a falta dos familiares e amigos ainda era uma constante na
direito o que fazer, onde tinha que ir, então, no começo, foi complicado de en-
rotina de Berg. Houve vezes em que saiu do treino e foi direto para casa, chorar
tender, de aprender o ritmo”. Aos poucos e com a ajuda dos próprios colegas
de saudades. O tempo não foi o suficiente para mudar isso, apesar de ter ajudado
de equipe, Berg conseguiu aprender coisas como o posicionamento tático e me-
a controlar tudo. Ainda sente muita falta dos parentes e assume que pensa em
lhorou sua técnica de arremesso, o que rendeu a ele o posto de terceiro melhor
um dia voltar, mas não sabe quando. E hoje, por causa dos amigos que tem em
aproveitamento do time. Mas o que ele não podia imaginar é que as consequên-
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Nas Asas do Águias
cias da paralisia lhe dariam um ponto de destaque: é o único canhoto do Águias.
ência o impedia de fazer isso. Lembro que no momento eu disse a ele: ‘Velho,
Um diferencial que não influencia na técnica, mas que dá um toque de beleza
só quem tá vendo a deficiência sabe que você tem, porque ela praticamente não
em cada arremesso e uma classe diferenciada nos jogadas, da mesma forma que
existe, pelo contrário, tu é uma pessoa muito mais eficiente do que deficiente. Faz
acontece no futebol.
mais coisas do que quem tem plena mobilidade’. Disse que ele tem algo especial
A grande peculiaridade que o diferencia dos outros atletas é a posição: ele
que Deus lhe deu. Ele escolheu o Berg e eu sabia que ele ia conseguir cumprir
sempre diz que não tem uma função definida. “Na verdade, sempre brinco com
essa missão que recebeu. E quando surgiu a história da Seleção, o primeiro pen-
isso, porque jogo numa estatura relativamente alta para função que mais faço
samento que tive é que ele não serviu o exército, mas serviu o Brasil de outro jei-
que é de armador. Então, muitas vezes, acabo fazendo outras funções também,
to. Ele é um soldado da nossa nação num outro campo de batalha: muito melhor,
como por exemplo, ser pivô”. E o que para ele é um motivo de risos e brinca-
muito mais agradável, num campo de vitórias”.
deira, para a técnica Ana é um ponto positivo. “Ele acaba sendo um jogador
Berg sempre reclama que tem uma memória muito ruim. Não lembra dos
coringa. Pode ser um armador, pode ser um lateral, pode ser um ala/pivô. No
detalhes dos alojamentos ou dos lugares que visitou, enquanto esteve em outros
basquete andante a gente fala que é posição 1, 2, 3 e 4. Ele é um jogador muito
países, mas agradece a Seleção por todas as oportunidades de viagem que teve
versátil e muito bom na defesa também”. Por outro lado, o ponto negativo lem-
na carreira. “Passei por tantos lugares que nem lembro todos. Às vezes, confundo
brado pela treinadora é algo que o faz lembrar sempre as sequelas deixadas pela
o local e o campeonato que joguei, mas esse é um lado positivo, porque talvez
doença. “Sei que isso envolve uma questão funcional, mas como ele tem o lado
eu não conhecesse tantos lugares se não tivesse ido para a Seleção”. No total das
direito menos desenvolvido, acaba atrapalhando um pouco o passe. Ele sempre
competições em que representou o Brasil, já viajou para 12 lugares diferentes.
tenta fazer com que isso não seja um problema e busca melhorar, mas se alguém quiser tomar vantagem disso, às vezes consegue”.
A única Paralímpiada que participou foi em 2004, Atenas, na Grécia. Jogou também os três últimos Parapanamericanos – 2003 na Argentina, 2007 no Rio
Outra novidade na vida de Berg chegou pintada com as famosas cores ver-
de Janeiro (Brasil) e 2011 em Guadalajara (México) -, além de dois Mundiais: em
de e amarela dos brasileiros. Apesar de já ter sido convocado para a Seleção de
2002 no Japão e em 2006 em Amsterdã (Holanda). A primeira convocação da
Juniores, quando ainda jogava em Recife, foi em 2001, no primeiro ano jogando
carreira foi para o Sul-Americano de Juniores, na Venezuela; depois vieram as
com a camisa tricolor da equipe paulista, que recebeu a primeira convocação
disputas no Sub-23 que somam o Sul-Americano de 2005, na Argentina, e dois
para Seleção Principal. Mesmo com a honra e o orgulho de representar seu
Mundiais: 2001 em Blumenau e 2005 na Inglaterra. Para completar, na equipe
País, ele sente que falta algo. “Apesar de todo mundo e até eu considerar algo
principal, também jogou três Copas das Américas – 2001 em Vitória, 2004 em
grandioso, parece que o compromisso é menor. Não tem muita organização, não
Colorado (EUA) e 2009 em Vancouver (Canadá).
tem tanta vontade nas competições, então é mais complicado. São coisas que eu
Novas conquistas, convocações, novos amigos e as visitas que conseguia fazer
realmente prefiro não comentar. Prefiro dar destaque às vitórias que tivemos e a
à família pareciam pequenos detalhes aos olhos de fora, mas para Berg são esses
vontade que tenho de continuar ajudando o meu país a vencer”.
pequenos detalhes que formam as boas lembranças da sua vida. Em 2006, no
Já para o seu grande amigo Hugo, vê-lo jogar com cores verde e amarela é a
auge da vida profissional, aos 23 anos, Berg recebeu a notícia do falecimento de
realização de um sonho. “Uma vez, quando a gente estava andando de bicicleta,
seu pai. O momento se tornou marcante também para Rodrigo, que acompa-
ele contou que era doido pra se alistar no exército, poder correr, mas a defici-
nhou de perto toda a situação e se admirou com a força do amigo. “Ele recebeu
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a notícia, mas em momento nenhum se desesperou, nem chorou, só pegou o
eu participei”. E quando se trata do jogo mais marcante da carreira, a final do
primeiro voo que tinha pra Recife. A gente já tava no velório, Vagner e eu, mas
Campeonato Brasileiro, no qual levantou a taça pela primeira vez, ganha dispa-
fomos buscar ele no aeroporto. Ele chegou cumprimentando, perguntando se
rado. A disputa foi contra o extinto time de Recife, Leões da Cadeira de Rodas,
tava tudo bem, começou a conversar: ‘pô, em São Paulo tá frio’. E eu pensei:
para o qual sempre perdeu, quando ainda jogava pela ADM. A equipe em ques-
‘poxa, não vou quebrar esse clima dele, vou deixar ele assim’”.
tão usou de muitas provocações, sempre tirando sarro, além do mascote do time,
Berg estava calmo e fez questão de cuidar de tudo. Apenas esperou o mo-
que era um leão. Após a conquista do título, veio a resposta: como ele precisa de
mento certo para fazer o que queria. “Quando chegou lá já era bem tarde, então
apoio para andar com a órtese, comprou uma bengala com o cabo de leão para
pediu pra todo mundo ir embora, ir pra casa, tomar banho, porque o enterro ia
mostrar que “o tinha nas mãos”.
ser só no outro dia de manhã. E ainda olhou pra nós dois e disse: ‘vocês também.
Depois da alegria de vencer pela primeira vez um grande time, para o qual
Conheço vocês, mas é melhor assim’. E depois que todo mundo saiu, ele sentou
sempre perdia no início da carreira, Berg ainda teve outras oportunidades de
ao lado do pai dele e caiu em prantos. Chorou. Eu nunca tinha visto meu irmão
voltar a sua cidade natal, graças à carreira profissional que estava trilhando. A fa-
chorar daquele jeito”. E quando parecia que ele finalmente havia se encaixado
mília e os amigos aproveitam cada uma das oportunidades que têm para assistir
na situação, Rodrigo mais uma vez viu o amigo demonstrar uma tranquilidade
a um jogo ou, simplesmente, estar um pouco com ele. “Ainda hoje, quando tem
inexplicável. “Ele chorou, abraçou e alisou o cabelo do pai, fez uma oração e
jogos aqui em Recife a gente leva torcida e sempre vai”. Mas a irmã se lembra
depois do sinal da cruz parece que ele fechou de novo aquela janela sentimental
bem que não é apenas para assistir aos jogos que eles vão à quadra. “Teve um
dele e voltou pra gente. Cara, eu nunca tinha visto isso”.
ano que o campeonato foi aqui em Recife e estava na época do aniversário dele.
Apesar do espanto momentâneo, Rodrigo admira a atitude do amigo e sabe que, de uma forma ou de outro, isso é um ponto positivo da personalidade de
A gente fez bolo, levou para quadra. A gente também fez camisa com a foto dele e falando do Águias, estava todo mundo junto e foi bem legal”.
Berg. “Ele é muito controlado, sabe muito bem o que fazer e a hora certa de fazer
Na vida de atleta, Berg faz questão de destacar que gosta de treinar e sabe
as coisas. Esse equilíbrio emocional ajudou quando ele foi pra São Paulo, quando
da importância disso, mas prefere competir. Apesar do instinto competitivo, ele
perdeu o pai e provavelmente apareceu em várias outras situações. Eu admiro
nunca deixou que a ansiedade ou qualquer outra coisa interferisse na preparação.
muito ele por isso”. Hugo completa o trio dessa forte amizade e afirma que Berg
“Não sei se é por eu já ter uma experiência grande, já jogo há 15 anos, mas nem
realmente sabe como agir em cada momento. “Ele é muito responsável e um
sempre tem ansiedade e tudo mais. É claro que cada jogo é um jogo, mas a gente
profissional exemplar. Ele sempre vai pra Recife em dezembro, passar as férias,
já tem mais consciência de qual adversário é mais difícil ou não, então a preparo
mas quando chega a hora de voltar ele se preocupa, pensa em fazer regime, sabe
psicológico é mais fácil”. Já a preparação física e técnica são sempre as mesmas, in-
que precisa se preparar pra voltar aos treinos. Ele é muito consciente do que tem
dependentemente da qualidade do time adversário. O pensamento é de ir sempre
ou não pra fazer”.
em frente e buscar a cada dia uma nova vitória. “Os títulos já se foram, é passado.
São 11 anos representando o Águias e treinando firme diariamente. A cons-
Eu quero conquistar coisas novas. Pode ser o título mais insignificante para os ou-
trução dessa trajetória vitoriosa foi acontecendo aos poucos, a partir de muitas
tros, mas vai ser o mais importante para o grupo. Qualquer copinha, campeonato
conquistas pessoais e com o grupo. “No primeiro ano, já cheguei sendo campeão
regional ou mundial que o Águias participe, eu acho que o valor de ser campeão
Brasileiro. Tenho diversas conquistas. Todos os títulos importantes do Águias,
vai ser o mesmo, porque já faz um tempinho que a gente tá na fila”.
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Anderson Soa o apito. Do centro da quadra, o árbitro joga a bola para o alto. Todos os olhares seguem lentamente a mesma direção. Em uma fração de segundo fica aquele suspense para saber qual time começará com a posse de bola. Rapidez e altura fazem a diferença. A equipe Águias da Cadeira de Rodas começa a jogada. De longe, com a visão mais ampla, o armador recebe a bola e planeja o primeiro ataque para que a finalização ocorra com sucesso. O armador, caracterizado pela agilidade de antever as jogadas, é responsável por desarmar, visualizar o posicionamento do time adversário e orientar a equipe. Ele também dá assistência para os pivôs e os alas para que estes cheguem ao garrafão e façam pontos. Anderson Carlos Silva Ferreira, 33 anos, foi convidado em 2001 para ser armador da equipe Águias da Cadeira de Rodas em São Paulo. Nascido em 21 de março, na cidade de Recife, Anderson teve poliomielite com apenas dois meses. Resultando em má formação dos membros inferiores e a necessidade de usar bengala para se locomover. Criado pela avó paterna, Maria José, e pelo pai Paulo, ele teve uma infância tranquila. Foi uma criança arteira e gostava de perturbar no bairro Tejipió, onde morava. Passava parte do dia na rua com os irmãos Fábio e Clayton. Os três eram inseparáveis e jogavam bola no mesmo time. O futebol era sua brincadeira preferida e mesmo escondido do pai, participava dos campeonatos realizados no bairro. Fábio, dois anos mais novo que o irmão, lembra de como ele se destacava nas partidas de futebol do clube Colônia. “Era um fenômeno! Ele jogava, apoian-
“...Quando enxerguei a vontade que eles tinham de viver e o que faziam numa cadeira de rodas, já que eu nunca tinha sentado em uma, eu disse: ‘poxa, por que eu estou com vergonha disso?’”.
do as duas mãos no chão, como se tivesse quatro pés. Fazia gols e todos diziam que se não fosse a deficiência, meu irmão seria um ótimo jogador de futebol.” Pelo excesso de zelo com o filho, o pai não gostava de vê-lo brincando na rua, de alguma forma que ele pudesse se machucar. Por isso, muitas vezes, Paulo o alertava de que poderia apanhar, caso fosse visto jogando futebol pela vila. A possibilidade de 85
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ser castigado não diminuiu a paixão que ele tinha pelo esporte. Como de costume,
Anderson e Fábio são irmãos por parte de pai e não moravam juntos, mas iam
todo sábado, Anderson, Fábio e Clayton iam para o Colônia. Em um campeonato, o
para o colégio na mesma van que passava todos os dias para buscá-los. Para ele,
time dos irmãos chegou à final. Todo o bairro se mobilizou para ver o tão esperado
o irmão era o motivo de estar na escola. “Sempre que ele não vinha eu ficava de-
jogo e momentos antes da partida, soube que o pai estava no meio da multidão para
sesperado. Era impressionante aquilo! Quando perdia o horário do carro que nos
assisti-lo, porém escondido. O nervosismo tomou conta do menino, não sabia se jo-
buscava, ele tinha que ir correndo atrás. E eu, já ia chorando. Eu chegava e ficava
gava ou se desistia, mas como estava ali não custava nada ir até o fim. A habilidade
na porta da escola, esperando, e quando ele aparecia dava aquela felicidade”.
com as mãos no chão surpreendia a todos que o tratavam como igual e disputavam a
Para Fábio, o período escolar junto ao irmão foi muito bom. No início, mui-
partida com garra. Aos poucos, ele pode notar a felicidade e o orgulho do pai ao ver o
tas pessoas apresentavam sentimento de dó ao verem uma criança com deficiên-
filho fazendo o que gostava. O amor pelo futebol o acompanhou por mais um tempo.
cia, mas quando se aproximavam eram cativadas pelo carisma de Anderson. “Eu
O início do período escolar de Anderson foi marcado pelos limites de locomoção
até usufruía dessa boa convivência que as pessoas tinham com ele. Na hora da
que tinha. Maria José foi quem levou o neto nos braços para a escolinha na Igreja
merenda ele era sempre o mais bajulado, não pegava fila e já ia direto para a co-
Congregacional do Pacheco durante o primário. Ele se sentia bastante acolhido pela
zinha, onde fazia a refeição. E eu pensava: ‘ah, sou irmão do Anderson!’. Apro-
professora que, além de ensinar, incentivava a interação com as outras crianças, o
veitava para comer com ele”. Certa vez, no colégio Alberto Torres, os colegas
que não era tão fácil, visto que os colegas dele só queriam correr durante todo o re-
de classe se mobilizaram para que fosse feita uma mudança de sala. Estudavam
creio. Em uma conversa com a professora, a avó contou que ele era apaixonado por
no primeiro andar e Anderson demorava muito para subir. A diretora atendeu
futebol e sabia jogar. “Naquele dia ela me deixou jogar uma partida de futebol. Me
a solicitação dos alunos e mudou o local de estudo para uma sala no térreo. Foi
colocou sentado no chão, eu era goleiro e pegava a bola. Foi muito bom! Eu saí muito
uma ação simples, mas que provou o cuidado dos colegas para com ele.
feliz da escola”. Ele não se envergonhava. A regra era se divertir.
Anderson e Fábio eram muito apegados. Passaram momentos difíceis e fe-
Aos nove anos, Anderson passou a usar muleta e órtese. “Eu fazia fisioterapia.
lizes juntos. Uma situação marcou muito a vida dos dois. Réveillon de 1991. O
Primeiro fiz uma cirurgia na perna para poder assentar o calcanhar no chão, por-
espírito festivo tomava conta de todo o bairro. Familiares unidos, vizinhos cele-
que eu não fazia isso. Depois quando viram que eu podia ficar em pé e andar de
brando e amigos na expectativa por um novo ano. Fábio teve a ideia de ir com
muleta, me deram também o aparelho. A órtese me incomodava muito. Eu já era
Anderson à casa de uma de suas professoras. Ele topou. “A casa da professora era
lento e com o aparelho fiquei mais ainda. Não me adaptei e desisti de usar”. Com
a uns dois quilômetros da minha e quando chegamos lá a muleta do Anderson
o tempo e o auxílio da muleta, ele adquiriu autonomia para ir a qualquer lugar.
quebrou. Meu avô consertava as muletas com um cabo de vassoura, colocando
Na mudança do clico escolar, Anderson foi transferido para uma escola mais
por dentro para reforçar. Foi esse cabo que quebrou. Rapaz, ele era pesado de-
longe de casa. Novo colégio, novas professoras, novos colegas e um novo desa-
mais. Na volta, tive que colocar ele nas costas e o trouxe pela avenida inteira.
fio: lidar com a timidez. Fábio o ajudava nesse aspecto. Por estudar no mesmo
Ninguém me ajudou”.
colégio, teve a oportunidade de acompanhar, incentivar e auxiliar o irmão. Por
Em 1994, com 15 anos, ele foi perdendo o gosto pelo futebol e aos poucos
ser muito tímido, apresentou dificuldades de aprendizado e a coordenação do
parou de participar dos campeonatos. Paulo não concordava que o filho conti-
colégio resolveu transferi-lo para uma turma de alfabetização, o que fez com que
nuasse jogando. “Chegou um tempo que eu disse que pra ele: ‘olha filho, você já
ele e o irmão estudassem na mesma sala.
tem certa idade e está na hora de dar uma paradinha’, porque ele ficava jogando
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com a mão no chão mesmo”. Neste período, Fábio e Clayton passaram a notar a
que era só multiplicação e adição, nada demais”. O movimento na banca foi au-
deficiência do irmão de uma forma diferente. Para eles, foi a limitação física que
mentando e experiência com o jogo do bicho foi bastante divertida, pois por falta
provocou o desgosto de Anderson pelo esporte.
de interesse, Anderson passava os jogos errados e, depois, o pai tinha que sair
Na escola, não frequentava as aulas de Educação Física, pois recebeu dispensa.
atrás das pessoas para consertar as trapalhadas do filho. “Uma vez, uma senhora,
Aos poucos, a prática esportiva foi saindo de cena. A timidez se transformou em
que era muito próxima da gente, começou a falar mal de mim na frente de todo
vergonha de si. Ele não sentia vontade de se arrumar para ir a uma praça ou festas
mundo que estava lá. Ela já veio me xingando, me chamou de tudo quanto era
com os amigos. Na cabeça dele, as pessoas ficariam olhando-o de forma diferente.
nome e disse que o jogo estava errado. As pessoas que estavam perto ficaram
Por ter repetido a sexta série duas vezes, Anderson começou o ensino médio
desconfiadas. Ela me mandou prestar mais atenção e eu fiquei todo querendo
um pouco mais tarde. Era tratado de forma igual pelos professores que não da-
chorar”. Este jogo-trabalho não era seu forte. Foi a partir desse episódio cômico
vam moleza. No primeiro dia de aula, sentou-se na última cadeira, pois preferia
e trágico que Anderson passou os jogos com mais atenção. Quando as pessoas
“não ser visto”. O professor do dia tinha fama de ser ótimo, porém bastante
davam sorte até o presenteavam com alguma lembrancinha ou dinheiro.
exigente. “Ele ficou olhando para mim e disse: ‘você consegue ficar de pé?’. Eu
Em 1998, quando tinha 19 anos, uma amiga de Anderson conhecida como
respondi que sim. Ele perguntou se eu poderia ir até a lousa. A sala inteira ficou
Dadai, passou a convidá-lo para participar de algo novo: a Associação de De-
em silêncio, acho que pensavam: ‘que professor idiota!’”. O exercício seria um
ficientes Motores (ADM) de Pernambuco. Dadai era costureira de lá, e foi sen-
ditado. O professor falava uma palavra aleatoriamente e o aluno deveria escre-
sível ao perceber, em poucos minutos, a agilidade de Anderson com a bola. Foi
ver e depois separar as sílabas. A palavra ditada para Anderson era MANTEI-
convidado várias vezes, mas não ia porque não entendia quando a amiga falava
GUEIRA. “Eu escrevi certo e separei também. O professor achava que a turma
sobre o basquete adaptado. “Como alguém conseguia fazer uma cesta sentado
o estava crucificando. Ele disse uma coisa que nunca mais esqueci. Falou que se
em uma cadeira de rodas?”. Era uma dúvida constante.
eu tinha uma deficiência era porque havia um propósito de Deus naquilo e eu
Vencido pela insistência de Dadai, ele resolveu visitar a Associação. Ao entrar, notou outras deficiências que nunca tinha visto na vida. Para a família
podia fazer qualquer coisa!”. Até completar 18 anos, a única preocupação de Anderson era estudar. Com
de Anderson, a palavra aleijado era interpretada como algo ruim. Se alguém
o tempo, Paulo percebeu a necessidade do filho de ter mais responsabilidade e
o chamasse assim, era motivo de encrenca. Já na ADM, o termo era normal.
conseguiu um emprego para ele: bicheiro. “Ele só acordava meio dia para assistir
“Quando eu cheguei comentaram: ‘chegou mais um aleijado’. Mas percebi que
Globo Esporte e tomar café, quatro horas da tarde almoçava e só jantava quan-
não falavam na maldade. A turma levava isso numa boa”. Foi apresentado a três
do voltava do colégio e eu não gostava disso. Não concordava. Ele era bastante
modalidades esportivas: basquete, atletismo e natação. Seu primeiro contato foi
ocioso. Eu dizia que ele era doente das pernas, mas da cabeça não. Como ele
com o basquete, algo que ele definiu como “amor à primeira vista. É isso que
gostava de ficar muito em uma esquina e eu não gostava, arrumava coisas pra ele
eu quero!”. Ele nem se interessou em conferir as outras modalidades, nem deu
fazer. Arrumei o jogo do bicho, arrumei uma colher de pedreiro pra ele dar uma
chance. Para Anderson, o esporte é o responsável pela vitória sobre a timidez.
arrumada no quintal e fui fazendo com que ele não se tornasse um coitadinho,
“Depois que eu conheci o basquete que eu realmente perdi a vergonha de me
por ser deficiente”. Após a insistência do pai, Anderson aceitou o trabalho. “Eu
ver. Pode ser porque me mostraram pessoas, que no meu pensamento, seriam
não sabia de nada, mas meu pai disse que ficaria junto e me ensinaria. Ele falava
piores do que eu. Quando enxerguei a vontade que eles tinham de viver e o que
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faziam numa cadeira de rodas, já que eu nunca tinha sentado em uma, eu disse:
bem acolhido assim. Os caras do time falavam: ‘Anderson, fica no ataque que a
‘poxa, por que eu estou com vergonha disso?’”.
gente vai defender com quatro. Quando eles errarem, a gente passa a bola pra
Além do esporte, Anderson teve outra oportunidade através da Associação.
tu’. E eu ficava lá só esperando. Eu não tinha muita noção de garrafão, mas sabia
Ele passou a trabalhar no DETRAN de Recife, como atendente, e permaneceu
que não podia ficar ali tão pertinho da cesta esperando a bola chegar em mim.
na função durante nove meses. Aos poucos, ele ia se familiarizado com o basque-
Fui fazendo minhas primeiras cestas assim”. Para Anderson, a convocação foi
te adaptado e com a nova profissão, sentia-se financeiramente estável, mas não
mais por oportunidade do que por preparo. Ele não estava tecnicamente habi-
queria que a prática esportiva se limitasse à recreação.
litado para uma competição como aquela, mas enxergaram nele um atleta que
No início, jogar basquete era motivo de frustração para a família dele, pois
poderia crescer profissionalmente e representar o País.
todos sonhavam em vê-lo jogando futebol, seu esporte preferido. Fábio até acha-
Na Associação, a primeira pessoa que conheceu foi Berg, mas o amigo conta
va que o basquete estava servindo para preencher a ausência deixada pela outra
uma versão diferente. “Ele sempre diz que eu fui a primeira pessoa que viu assim
modalidade. Mas ninguém, nem mesmo Anderson, tinha ideia da dimensão que
que chegou na ADM, no dia em que foi conhecer o basquete, mas eu não lembro
o basquete em cadeira de rodas poderia ter para a família Ferreira.
dele. Na minha lembrança, nós só jogamos juntos no Águias”. Aos poucos, An-
O início da prática do basquete foi um desafio para Anderson. Em sua pri-
derson cultivou o sonho de se tornar um atleta profissional que, em 2001, viria
meira conversa com o técnico deixou claro que nunca havia sentado em uma ca-
em forma de convite para jogar pela equipe Águias da Cadeira de Rodas. Era a
deira de rodas e nem sabia da existência da modalidade. Ao assistir pela primeira
oportunidade de realizá-lo, mas isso implicaria algumas mudanças.
vez um jogo de basquete adaptado ele se sentiu encantado. Não acreditava que
Criado pela avó, não sabia fazer nenhuma tarefa doméstica. Cozinhar, lavar
era possível agir com tanta velocidade em uma cadeira. “Eu vi um colega com
e passar eram atividades desconhecidas por ele. Isso teria de mudar, se o convite
uma cadeira de 50 quilos correndo. Depois eles me mostraram que a cadeira
fosse aceito, pois as regras no apartamento do Águias, local que seria sua mora-
pesava tudo aquilo porque era de ferro. Mas ele corria absurdamente! Eu pensei:
dia, exigia que todos soubessem fazer de tudo, assim um ajudaria o outro. Além
‘se ele consegue, eu também consigo’”. Anderson iniciou com uma cadeira da
disso, a rotina também mudaria: treinos diários e mais intensos fariam parte da
ADM, cada atleta que chegava usava a que estivesse disponível para treinar. “O
nova realidade. “Quando ele recebeu a proposta do Águias foi um baque para
professor via que eu não tinha noção nenhuma de espaço, mas sabia que era
todo mundo, pois querendo ou não, por mais independente que ele fosse, sabía-
uma questão de tempo. Foi um ensinamento bem detalhado. Mas acredito que
mos que ele ainda dependia da gente para algumas coisas. Ficou aquela incógni-
eu fui aprendendo rapidamente para poder ingressar logo no time. Até porque
ta, mas o Anderson já parecia decidido”.
tinha um campeonato e eu precisava participar. E foi nesse campeonato que eu
O pai, focado no sonho e no sucesso do filho, demonstrou que estaria ao lado dele mesmo com aperto no coração. “Quando o Anderson decidiu morar em
vi o Águias jogar pela primeira vez”. Com apenas dois anos no basquete, Anderson recebeu a primeira convoca-
São Paulo para jogar, havia uma preocupação sim, mas foi uma felicidade muito
ção para participar da Seleção Brasileira de Juniores. “Eu joguei, mas participou
grande por ver meu filho caminhando com as ‘próprias pernas’ e conquistando
pouco. A turma jogava em função de mim. Não sei por que, mas sempre fazemos
as coisas dele sem ter nenhuma interferência minha, principalmente na área fi-
isso com os novatos (risos). Se tem um rapaz novo, a gente sempre ajuda para ele
nanceira. Eu apoiei a ida para São Paulo, mas com o coração partido”. A tristeza
fazer uma cesta ou qualquer coisa que se sinta bem. E na Seleção eu fui muito
tomou conta da casa, pois o pai e os irmãos sabiam que não seria fácil ficar longe
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de Anderson. “Mas por outro lado, a gente sabia da mudança que o basquete
fazer limpeza em lugares altos do apartamento, onde eles não alcançam. Todo
tinha trazido pra vida dele. Quando ele parou de jogar futebol, ele começou a
dia é um aprendizado.
beber. Saía com os amigos e voltava embriagado para casa, a gente ficava muito
Os treinos no Águias começaram no segundo dia de Anderson em São Pau-
triste. Ele começou a sentir muito a deficiência. E com o basquete, ao invés disso
lo. Iniciou em uma cadeira que não era adequada para o tamanho dele, mas já
ser um problema, passou a ser um ponto positivo na vida dele”.
havia sido avisado sobre isso. Era apenas o começo de tudo e assim que surgisse
Anderson teve um ano para pensar e, em 2002, com total apoio da família, fez as malas para partir em direção a São Paulo. “Meu pai conseguiu uma Van
uma oportunidade a equipe providenciaria outra cadeira. Um mês depois, foi levado à Goiânia, para que fosse feita a primeira cadeira de rodas sob medida.
e chamou meio mundo de gente, para se despedir de mim no aeroporto. Alguns
Na quadra, o desempenho mudou. Anderson, que antes só “corria, corria e
não conseguiram ir no carro, mas foram pra lá mesmo assim. Deram um jeito!
corria”, com os treinos, passou a desenvolver técnicas que o fizeram aplicar toda a
Foi triste, mas eles sabiam que eu ia ser feliz”.
sua agilidade e velocidade durante os jogos. Com apenas uma semana de treinos, ele
Fevereiro. Um mês tipicamente quente, agitado pelas cores e sons do carna-
participou do seu primeiro jogo como atleta profissional. Era o início do Campeona-
val e regado pelas chuvas de verão no final da tarde. Foi no dia 22, nesse cenário,
to Paulista de 2002 e a entrega das medalhas do campeonato do ano anterior. Águias
que Anderson chegou à capital paulista. Apesar do calor, a temperatura era mais
versus Magic Hands, seu principal adversário. Anderson já tinha ouvido falar sobre a
baixa em relação ao clima de Recife e fez com que ele estranhasse o ambiente.
rivalidade e foi para o jogo com mais sede de vencer. Entrou em quadra faltando três
Além disso, o ritmo corrido do dia a dia dos paulistanos também o assustou.
minutos para acabar a partida. O novato começou jogando sob comentários como:
Hoje, mais de uma década depois, se acostumou à grande metrópole e vê a cida-
“quem é esse?”, mas não se deixou levar pelos sussurros e brilhou naquele dia com
de como um lugar cheio de oportunidades, para quem busca capacitação, prin-
seis pontos feitos. Primeiro jogo, três minutos e três cestas.
cipalmente no esporte adaptado. O pernambucano já é tão paulista que, durante
Há 11 anos, vestindo a camisa do Águias, seu ponto fraco tem sido a defesa.
as férias em Recife, ele consegue sentir saudades. “Eu fico dois meses de férias,
Ajudar os outros jogadores com uma marcação eficiente é algo que ele se esforça
mas com uns vinte dias, depois de ver todos os meus amigos e curtir bastante,
para aprimorar. A cobrança diária que recebe das técnicas, inclusive da Ana,
já me dá aquela vontade de voltar. Eu sinto muita falta dos treinos do Águias”.
durante os treinos, o ajuda a perceber cada um de seus pontos negativos. “Às
O convite feito a Anderson incluía moradia. Com tudo já preparado, os
vezes, há um desequilíbrio, quando ele erra muito. Ele se desestrutura emocio-
colegas de time Berg e Ruy o receberam no apartamento da equipe localizado
nalmente, quando perde o foco. Hoje, outro ponto negativo é que ele está em so-
próximo a estação de metrô Marechal Deodoro. A amizade e convivência pro-
brepeso, em compensação o Anderson é muito veloz e preciso nos arremessos”.
porcionaram um relacionamento de família entre os três atletas. Ruy, o mais ve-
Esta precisão faz dele o segundo atleta com melhor aproveitamento da equipe.
lho deles, ensinou pacientemente alguns truques culinários para Anderson, que, aos poucos, foi aprendendo e hoje cozinha de tudo. Ele adora!
Com a bola na mão e a uma distância de 9,5 metros da cesta, Anderson se posiciona e arremessa com tranquilidade. A bola, certeira, cumpre seu papel ao
No apartamento, as tarefas são divididas. Cozinhar é responsabilidade de
balançar a rede. No Águias, ele é especialista em marcar cestas de três pontos.
todos e a limpeza funciona em escala. A cada semana ela fica sob os cuidados
Em uma única partida, fez 11 arremessos, dos quais acertou nove. Para ele, isso
de um deles. O responsável pela semana lava louça, passa pano no chão, limpa
o motiva a ‘crescer’ durante o jogo.
o banheiro e tem também outros afazeres. Uma diarista foi contratada só para 92
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Luciano Jogadores agitados. A pressão natural de fim de jogo. Olha para o placar eletrônico: quinze segundos. A diferença no placar é pequena, mas a vantagem está com eles. A equipe se arma para o contra-ataque e ele já está lá, quase embaixo da cesta. Um lugar tão seu que, vê-lo em outro canto da quadra, parece um ultraje. Aguarda pacientemente a bola. Grita ao time: “Calma!”. A tranquilidade peculiar está ali e auxilia na recepção. Oito segundos. Há mais um adversário de quem precisa desviar antes do arremesso. Cinco segundos. Os colegas incentivam, os gritos parecem vir de todos os lados e ele chuta. Dois segundos. A bola lentamente segue o rumo que lhe cabe. Pega altura suficiente, faz uma leve curva e cai. Tranquila, como aquele que a mandou para casa, para cesta. O apito anuncia o fim do jogo. Mais dois pontos no placar, mais uma vitória no currículo e o sossego de sempre como companheiro primordial. Assim é o jogo na visão de Luciano Felipe da Silva, 33 anos, pivô titular da principal equipe paulista de basquete adaptado. Nascido em 15 de julho, no pequeno município de Cabo de Santo Agostinho, na região metropolitana de Recife, Pernambuco, viveu toda a infância no bairro Ponte dos Carvalhos. O local foi cenário de sua vida por mais de 20 anos. O primeiro filho de Maria e José Severino foi criado com todo o mimo possível: era o primogênito da família Silva. Mesmo Luiza, tia que se mudou cedo para São Paulo e acompanhou todo o crescimento do sobrinho à distância, reconhece que a atenção foi diferente. “Os avós e os tios faziam tudo que ele queria. Chegavam até a colocar o copo na
“Quando você tem uma deficiência, porque nasceu assim, é mais fácil de lidar, mas quando já é mais velho e, de um dia para o outro acontece algo, você fica um pouco perdido, sem rumo”.
mão dele e mandar jogar no chão. Ele era muito amostrado. Sabe o que é isso? Exibido lá na nossa terra”. Os primeiros anos de vida de Luciano foram tranquilos e soltos, algo comum para quem é criado em um bairro pequeno, onde todo mundo se conhece e os amigos são os mesmos desde a infância. A rotina, repleta de brincadeiras, era 95
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preenchida com os dribles do futebol, as disputas assíduas de bola de gude e os
Luciano concluiu os estudos aos 17 anos e recorda que sempre contava os
longos giros de quando soltava peão. A liberdade que conquistou a partir dos
dias para que chegassem as férias. “Eu gostava muito de ir à casa do irmão da
mimos dos parentes fazia dele uma criança mais bagunceira. Tia Marinalva, que
minha avó, que era tipo um sítio. Ela sempre me chamava, quando programava
na época também vivia em Pernambuco, sabe que nem tudo passava em branco.
de ir pra lá e isso acabava acontecendo quase todos os dias, à tardezinha. Era
“Ele era bagunceiro, mas o pai dava uns tabefes e resolvia. Era sempre coisa de
muito bom”. A experiência com a natureza e todas as possibilidades de brinca-
criança, nunca fez nada demais. Mas apanhava por causa de pipa. O pai dele
deiras que encontrava no lugar eram o que mais o atraíam. “Tinha fruta, bica
não suportava isso”.
pra tomar banho, cavalo para andar. Cheguei até cortar cana, só para ver como
A fase escolar chegou e isso fez com que, desde pequeno, se acostumasse às
era. Sinto muita falta disso”. Ele nunca estava sozinho, porque, durante o recesso
mudanças que acontecem na vida. “Mudei bastante de escola, porque lá (Recife)
escolar, a prima Geizia, que morava em São Paulo desde os dois anos, sempre
é muito dividido. A gente faz até quarta série em um lugar, até a oitava em outro
viajava para visitar os tios e avós. “Ele adorava subir em árvores. Fazia isso o
e muda de novo no colegial. Ainda estudei um pouco na particular, num colégio
tempo todo. E a gente se divertia junto no sítio”.
em que as professoras gostavam de fazer aula de reforço. E eu sou um pouco
Quanto à vida profissional, Luciano teve algumas experiências ainda na adolescência. Como o pai era feirante, por muito tempo ele ajudou com o serviço. “Graças
atrapalhado com o português”. Na memória carrega a imagem de quadros, estátuas e o interesse de conhe-
a Deus, como meu pai e minha mãe trabalhavam, era mais tranquilo. Meu pai tinha
cer cada detalhe daquilo que não viveu. Por isso, a lembrança mais marcante
a mercearia e trabalhava na feira, então não importava em qual eu ajudava: se não
está relacionada às aulas de história. “Sempre me lembro das viagens que a gente
estava em um lugar, estava no outro”. Ele ainda tentou começar em outra área e tri-
fazia. A professora juntava todo mundo e nos levava ao Itamaracá. Tinha outro
lhar seu próprio caminho. Trabalhou por um tempo como ajudante de metalúrgico,
Centro Cultural muito forte que a gente ia também, o Igarassu. A gente também
mas, alguns meses depois que iniciou as atividades no emprego, surgiram algumas
visitava igrejas e sempre tinha um guia turístico que ia explicando tudo”. As
dores na perna. Precisou ir ao médico, fazer exames e levou alguns meses até desco-
imagens vistas nos lugares visitados e o interesse pela matéria continuam fazendo
brir a causa da dor. Ele não sabia, mas a vida já havia lhe reservado uma profissão.
parte de sua vida.
Apenas existiam alguns obstáculos antes de alcançá-la.
Durante a adolescência, Luciano continuava um pouco tímido. O jeito cala-
Era 1998 e Luciano tinha 19 anos, quando sentiu pela primeira vez dores no
do e sossegado nunca o impediu de ter uma rotina movimentada. “Sempre saía
tornozelo da perna esquerda. “A primeira coisa que fiz foi compressa com gelo
bastante. Só na questão de namorar que eu sou muito tímido. Mas gostava muito
e passou. Depois começaram as dores no tornozelo direito e, quando fiz as com-
de sair com a turma, juntar a galera para comer ou beber algo. Todas as viagens
pressas, inchou”. Foi quando ele resolveu procurar ajuda médica. “Todos sempre
do colégio eu ia, principalmente no parque de diversões”. Ele sempre gostou
diziam que era febre reumática e eu quase morri porque tomei a medicação
muito de andar, passear e aproveitar o tempo para refletir, mas apenas um hábito
que foi recomendada, mas tenho alergia”. Depois do ocorrido, os responsáveis
dessa fase mudou. “Quando eu não era evangélico, dançava forró. Tudo mudou
acharam melhor recomendar um novo médico, que pediu o primeiro exame
um pouco, porque quando fazemos alguma coisa assim (religiosa), a gente quer
específico chamado biópsia, no qual iriam colher uma amostra da região afetada
ser diferente, tomar umas atitudes que venham nos diferenciar daquela velha
para analisar e poder diagnosticar o problema. “O resultado deu inconclusivo,
pessoa. Hoje em dia, tem vários shows gospels, mas nem sempre vou”.
negativo. Daí o médico disse: ‘você vai ter que fazer uma nova biópsia, para con-
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firmar’”. Nessa fase da busca por uma solução, um companheiro do profissional
mes, que já não detectavam mais o tumor, e confirmar que tudo estava bem. Os
que estava cuidando de Luciano, recomendou ao colega que o encaminhasse
caroços sumiram, Luciano não sentia mais dores e então recebeu alta das sessões
para o Hospital do Câncer. O objetivo era fazer um exame mais detalhado para
de quimioterapia e seguiu a vida.
ter certeza do resultado. “Parece que ele foi mandado por Deus, quando reco-
Começava os anos 2000, quando as dores voltaram a aparecer e, de um dia
mendou a mudança de hospital, porque cheguei lá, passei no médico, fiz a tria-
para o outro, o tornozelo direito estava inchado novamente. “Era quente demais,
gem, tudo certinho. Então fui encaminhado para fazer a biópsia pela segunda
não conseguia por o pé no chão, parecia um formigueiro. Tinha que primeiro
vez e foi bem mais específica e detalhada”.
relaxar, pra depois conseguir começar a andar. Era a mesma coisa, quando pisa-
A espera durou alguns dias. O diagnóstico: nódulos malignos. Câncer. “De-
va, doía; mas depois que eu dava uns dois passos, já acostumava e parava a dor”.
pois do resultado do exame, saíram três caroços no meu tornozelo. Um de cada
O retorno ao Hospital do Câncer trouxe a Luciano mais um problema. “Quem
lado e um na frente. A primeira coisa que o médico perguntou foi se eu tinha
passou a me acompanhar foi minha tia, porque minha mãe já não aguentava
consciência do quanto era crítica a minha situação”. Luciano sabia que aquilo
mais me ver numa situação em que ela não podia fazer nada”. Doutor Quentino,
não era uma doença qualquer, mas não se desesperou. “O doutor me disse: ‘mas
que a essa altura já havia se tornado médico regular dele, foi direto com o diag-
e se você tiver que amputar a perna?’. E eu falei que, se era para ficar bom, eu
nóstico. “Ele só olhou pra mim, depois para o meu tornozelo e falou: ‘agora não
faria”. Mais uma vez, a tranquilidade que o acompanhava desde o nascimento
tem mais jeito! Vai ter que amputar’”.
ajudou a receber a notícia de forma mais fácil, mas para a família, inclusive a
A notícia foi um baque para toda a família. Tia Luiza sabe que não foi fá-
tia Luiza que morava longe, a situação foi dolorosa. “Quando a gente ouve uma
cil, mesmo com a distância que os separava. “Foi muito difícil, porque a gente
palavra como amputação, a gente se desespera, porque a palavra é muito forte e
sempre acha que essas coisas acontecem na casa do vizinho, da direita ou da
a gente acha que ali acabou tudo”.
esquerda, mas nunca na nossa casa, com a nossa família. Quando acontece re-
O médico responsável pelo atendimento de Luciano analisou os exames e
almente, é bem difícil. Ninguém imagina que uma pessoa amputada pode dar
optou por fazer primeiro o tratamento. A cirurgia ficaria como segunda opção e
a volta por cima. No meu caso, especialmente, que fiquei sabendo por telefone.
ele teria que fazer quimioterapia. “Tomei a primeira aplicação em dezembro de
Era uma coisa difícil até de imaginar”. Por outro lado, Marinalva não consegue
1998. Os caroços começaram a desinchar e, no total, fiz oito meses de quimiote-
ver diferença entre estar perto ou longe da pessoa em um momento como esse.
rapia”. Os efeitos do remédio não demoraram a aparecer. Enjoos, queda de ca-
Não há outra coisa que possa ser feita, além de dar apoio moral. “Ver de perto
belo, um pouco de tontura, mas o que ele realmente lembra é do que aconteceu,
alguém que você gosta gritar, dias e noites, com dor e não poder fazer nada?! Foi
quando parou de tomar a forte medicação. “Comecei a ganhar peso novamente,
muito difícil, não consigo achar outra palavra para descrever”.
porque a quimioterapia nos deixa enjoado, mas depois parece que tem efeito reverso: quando termina o tratamento, a gente sente fome a todo momento”.
15 de junho de 2000. Depois de retomado o tratamento e com os resultados dos exames necessários na mão, era chegado o dia. A cirurgia foi marcada com
Foram longos meses de tratamento, o difícil processo de fazer o corpo se
antecedência e a amputação era mesmo a única solução. Desse dia em diante,
adaptar à forte medicação, além da força para manter a mente calma e o pen-
Luciano teria que aprender a lidar com a situação que vivia, mas a caminhada
samento positivo. Era julho de 1999 e tudo caminhava bem. As idas ao médico
para a “nova vida” ainda tinha outros obstáculos. Mesmo com a retomada da
começavam a ser apenas visitas de rotina, uma questão de manter em dia os exa-
quimioterapia, quase dois meses após amputar a perna direita, foi preciso uma
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nova cirurgia para retirada de um nódulo maligno na virilha. No início de 2001,
qual passou tivesse acontecido há anos. Nessa época, a religião já tinha se tor-
a rotina de consultas preventivas e cuidados redobrados foram interrompidos
nado uma constante na vida dele. Além de ser a fonte de forças e energias para
por outra cirurgia: retirada de outro nódulo, também maligno, mas dessa vez foi
superar o ocorrido, foi em um culto que surgiu o convite que mudou de vez o seu
na coxa. “Só então, finalmente, o doutor me suspendeu da quimioterapia. E até
destino. “Às vezes a gente fazia cultos nas casas das pessoas e um desses dias de
hoje eu vou ao médico, obrigatoriamente faço acompanhamento”.
oração foi na minha casa. Um amigo trabalhava em uma Associação e me disse
Luciano também teve momentos de preocupação e receio sobre o futuro.
Ele sabia que teria uma nova rotina pela frente e não sabia se seria tão fácil se
que tinha esportes adaptados. Eu não conseguia imaginar isso, mas da forma que ele me contou, fiquei muito curioso e fui conhecer”.
adaptar a isso. “Quando você tem uma deficiência, porque nasceu assim, é mais
Na adolescência, Luciano sempre era convidado pelos amigos para jogar
fácil de lidar, mas quando já é mais velho e, de um dia para o outro acontece
basquete, até mesmo pela sua estatura: desde cedo, já era alto. Mas o gosto pelo
algo, você fica um pouco perdido, sem rumo”. Mas essa reação foi passageira e
futebol o impedia de se acostumar com qualquer outro esporte. A qualquer mo-
as tias sentem orgulho da força que demonstrou durante o tratamento. “Ao invés
mento que lhe perguntasse, a explicação pelo desinteresse estava na ponta da lín-
dele ficar triste e chorar, era o contrário: ele que conversava e dava força para
gua. “Eles só queriam que eu fosse jogar, porque eu era alto. Todo mundo acha
gente. Sempre dizia: ‘se era preciso passar por isso, tudo bem, eu estou aí e seja
que uma pessoa baixa não pode jogar basquete, mas o que temos que diferenciar
o que Deus quiser’”.
é a habilidade de cada um. Às vezes, uma pessoa baixa tem uma habilidade
A cada nova fase da vida é preciso se adaptar, há sempre algo novo com o
monstruosa, que um mais alto não tem. Dá pra ver isso até na NBA”.
qual é preciso aprender a lidar. No caso de Luciano, o que não faltou foram eta-
Foi justamente por não se considerar bom no basquete que, quando chegou
pas de adaptação e elas vieram em maior quantidade. A primeira foi com a pró-
à Associação dos Deficientes Físicos Motores de Pernambuco, conhecida por
tese. Poder andar, correr e fazer as mesmas atividades de antes da cirurgia agora
ADM-PE, para conhecer o trabalho com pessoas com deficiência, se interessou
dependia apenas dele mesmo. E o resultado não demorou a aparecer. “Peguei
primeiro pela prática do atletismo. A passagem foi bem rápida, pois na modali-
(a prótese) em uma terça-feira, na AACD, no domingo eu já estava correndo de
dade que tinha escolhido as competições são mais rápidas e os treinos mais inten-
bicicleta. Não sei por que, mas foi muito rápido”.
sos. E o convívio na Associação permitiu que ele conhecesse os outros esportes,
O uso do novo equipamento, que agora fazia parte do seu corpo, não era
inclusive o basquete. “Cheguei a participar de algumas competições regionais de
obrigatório, mas necessário. “Se você não usar, não vai ferir, mas é como uma
atletismo, mas depois, com a convivência, vi que o basquete era o que eu gostava
chapa, um aparelho, uma coisa que você coloca e tem que se acostumar. E eu es-
mesmo. Comecei na equipe em 2001”. Ele continuava com o pensamento sobre
tava com tanto anseio, aquela vontade de andar novamente. Porque sempre um
a habilidade das pessoas para o jogo, mas quando percebeu que aquilo não era
dizia: ‘ah, você vai ter que andar com uma muleta do lado’. E eu pensava: ‘Ainda
apenas uma brincadeira, foi o suficiente para se interessar de verdade. “Entre os
vou mostrar a mim mesmo que não vou precisar disso’. Até os responsáveis pela
cadeirantes, os mais baixos são mais ágeis, isso não muda. Mas depois, vi que é
área, na AACD, diziam: ‘você já andou de prótese antes?’. Eu dizia que não, que
uma coisa séria, que levam tudo na seriedade, aí eu gostei”.
era a primeira vez e eles desconfiavam, mas a vontade era muito grande”.
Com o início da prática esportiva, após a cirurgia para amputar a perna,
Quando estava perto de completar 22 anos, ainda em 2001, Luciano seguia
surge mais um período de adaptação. Luciano andava normalmente, mesmo
a vida normal, como se tudo que aconteceu e o difícil problema de saúde pelo
após a amputação, pois conseguiu a prótese logo, mas para jogar ele precisava
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estar como os colegas de equipe: sentado. “Foi difícil me acostumar. A primeira
agoniado querendo que eu ficasse. Ia passar 40 dias na casa da minha tia e já me
vez que cheguei à quadra da ADM, olhei aquelas cadeiras e a primeira coisa
convidaram. Mas eu cansei, queria ir embora e o pessoal pediu meu telefone”.
que pensei foi: ‘eu não vou sentar nisso não, de jeito nenhum’. Mas no basquete
Junto a essa evolução que Luciano conquistava nas quadras, outro lado da
adaptado, a cadeira é a nossa principal ferramenta, então, quem não anda, pre-
sua vida também estava prestes a mudar. Também em 2005, ele conheceu uma
cisa se adaptar logo. Aprendi só o básico: andar um pouco e me mexer bem. Foi
garota que demonstrou ter todas as qualidades que ele buscava em uma com-
o primeiro passo de um atleta que nunca tinha pegado na cadeira”. Ele sabia que
panheira. O relacionamento foi muito rápido e até a prima Geizia, uma das
ainda precisava aprender mais, criar habilidade para os dribles e a movimenta-
que acompanhava tudo a distância, estranhou. “Ele conheceu ela, namorou e
ção, só que ao seu alcance, não tinha mais do que o necessário. “Tudo no espor-
casou, foi tudo super rápido. Ligou pra contar que estava namorando, depois ele
te, e na vida, envolve uma estrutura. Fica mais fácil, quando você tem apoio, mas
noivou e disse que em dezembro ou janeiro do outro ano já ia casar”. E, assim,
quando se tem uma dificuldade, as coisas complicam um pouco. Você aprende,
aquele ano se tornou decisivo. As mudanças e as decisões que tomamos marcam
mas não como se é devido. Lá na ADM eu não tinha uma boa estrutura, então
sempre. Uma de cada forma, uma em cada momento diferente. Mas nunca é
levei uns dois anos para dominar mesmo a cadeira e jogar bem”.
possível imaginar o futuro. Era preciso arriscar, tinha que decidir e naquele mo-
O começo, na ADM, foi básico, mas ao mesmo tempo produtivo. Diferente-
mento foi o que ele fez.
mente dos amigos Berg e Anderson, que também começaram a jogar na Associa-
Era janeiro de 2006. Luciano acabava de se tornar um homem casado. Do outro
ção, Luciano representou aquela equipe em uma época diferente. A principal vi-
lado, tinha a carreira, que começaria de verdade em São Paulo, dois meses após o
tória que conquistou em Pernambuco foi seguida de uma decepção, que, mesmo
casamento, quando, finalmente, aceitou a proposta do Águias. “Aceitei mais para ver
pequena, o fez buscar novos caminhos. “Joguei na segunda divisão pela ADM.
como era. Eu jogava mais por esporte mesmo, diversão, para estar com a galera. Isso
Em 2004, fomos vice-campeões, então, em 2005, a gente ia participar de um
era bom. Mas sonhar mesmo, o que eu sempre sonhei foi ser uma pessoa estudada,
campeonato em Brasília. Só que nós não fomos, porque devido aos problemas
nada além. Nunca imaginei uma carreira de atleta”. A casa em Recife tinha acabado
de organização, os diretores não conseguiram as passagens. Fiquei muito triste.
de ser mobiliada com os presentes de casamento, mas ele resolveu arriscar mesmo
Mesmo que o time não chegasse a lugar nenhum, pelo menos, a gente ia ter a
assim. Decidiu viajar primeiro: viria sozinho para ter tempo de organizar tudo o que
experiência de jogar na primeira divisão. Todo mundo queria conhecer, princi-
precisava e encontrar uma casa. Não queria transformar a vida da esposa em uma
palmente eu, porque disseram que o jogo era diferente. Foi nessa época que o
bagunça total, queria dar a ela conforto e segurança.
falecido Ruy me convidou para fazer parte da equipe do Águias”.
A ida para São Paulo ocorreu em 7 de março de 2006 e a principal difi-
Ruy era apenas mais um jogador da equipe paulista Águias da Cadeira de
culdade não demorou a aparecer: o frio. A diferença de clima entre Nordeste e
Rodas, mas por ser mais velho e ter um pouco mais de experiência no esporte
Sudeste é muito grande e atrapalha um pouco na adaptação. Os primeiros dias
tinha certa liberdade para fazer indicações à diretoria do time quanto a novos
na metrópole foram no apartamento do Águias, mas não levou muito tempo até
atletas. “A primeira conversa foi com o Ruy, mas esse convite envolveu todo mun-
que arrumasse uma casa. Como já tinha família em São Paulo, encontrou um lar
do. Como eu joguei o campeonato que levou a ADM para a primeira divisão, já
próximo ao da tia Luiza e da prima Geizia. Dois meses depois, quando já estava
havia o comentário de que tinha um pivô que se destacou na competição, coisa e
bem instalado, é que combinou com a esposa para ela trilhar o mesmo caminho
tal. Depois, vim para São Paulo, visitar a família que tava aqui, o pessoal já ficou
e ir morar com ele.
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Dentro da quadra, a maior diferença que encontrou foi nos treinos. “Minhas
hospital no dia 27. Dois dias depois, quando o casal foi ao hospital, o médico in-
mãos estouraram logo que cheguei. Aí já se percebe a diferença. Na ADM, se
formou que o caso não era tão simples e a criança precisaria ficar internada. “Ela
não tivesse ninguém, a gente arremessava um pouco e ia pro coletivo. Às vezes,
nasceu com uma deficiência na medula óssea de desenvolver glóbulos brancos, o
nem alongava nem nada. No Águias é tudo organizado, bem mais intenso”. O
que refletia na defesa do organismo, e mesmo influenciada por antibióticos, ela
entrosamento com os colegas de equipe não foi tão difícil. Já conhecia o Ander-
não conseguia melhorar. Tinha um sistema imunológico muito debilitado”.
son, com quem jogou na ADM-PE e demonstrou dedicação total para aprender
A preocupação era tão grande que parecia algo real, quase tangível. A ten-
o mais rápido possível. Isso pode ser percebido pelas memórias que tem do pri-
são de cada novo dia esperando por notícias da filha teria sido mais fácil, não
meiro jogo que entrou e da primeira vez como titular. “O jogo mais marcante
fosse o nervosismo claro da esposa. “Sempre depois dos treinos, mesmo acaban-
acredito que tenha sido o primeiro como titular com a camisa do Águias, sem
do tarde, eu passava no hospital. Era dia 22 de novembro, quando ela se decidiu
sombra de dúvidas. Cheguei em 2006, entrei para jogar no Paulista e fui bem.
e disse que precisava conversar comigo. Foi então que ela me contou que, algum
Eles me colocaram e eu mudei completamente o clima do jogo, foi excelente.
tempo atrás, ela tinha se envolvido com outra pessoa”. Mas fica complicado ter
Mas, no total, foram quase dois anos até eu passar a ser titular”.
que se preocupar com algo importante quando você descobre uma situação que
Há seis anos defendendo a camisa tricolor do Águias, Luciano lembra de cada tí-
nunca achou possível acontecer. “Ela sabia que eu nunca gostei dessas coisas. Po-
tulo que ajudou a equipe a conquistar. “Foram dois Brasileiros, quatro Paulistas e um
deria perdoar, mas não conviver. Não adiantava dizer que seria a mesma pessoa.
Regional. Na verdade, foram três brasileiros, dois jogando como titular, um em Belo
Não dava mais para começar do zero, a gente já tinha feito isso. Pensamos juntos,
Horizonte e outro no Rio de Janeiro”. São mais títulos do que anos representando
construímos coisas juntos. Ela destruiu aquilo que dizia que amava”.
o time. E eis uma contradição: no campeonato mais marcante da carreira, eles não
Apesar de parecerem anos, de saber que se trata de uma vida inteira, tudo
venceram. Vice-campeões em 2010, ele se lembra de cada jogo, dos pontos que fez,
aconteceu em poucos dias. “Minha esposa contou tudo na segunda-feira, dia
dos comentários que ouviu sobre si mesmo antes e durante a competição. Ao final
22, e minha filha faleceu algumas horas depois, à noite. Nesse dia minha vida
da disputa, um misto de dever cumprido e desgosto permaneciam em seu interior. A
se transformou, parou um pouco no tempo. Tudo se desenrolou na terça-feira,
sensação do trabalho bem feito mostrava exatamente qual o caminho a seguir, mas a
minha filha foi enterrada na quarta”.
dor da perda era recente demais para esquecer tão fácil.
Dessa vez, como não estava mais em Recife, a pequena parte da família que
No começo de 2010, uma boa notícia veio alegrar Luciano e toda a família
mora em São Paulo foi quem acompanhou de perto o sofrimento de cada um
Silva: sua esposa estava grávida. Eles já tinham um menino, nascido logo no
desses dias. A prima Geizia lembra até dos detalhes. “Ela contou a verdade para
primeiro ano do casamento. Durante o ano inteiro, fizeram planos, montaram
ele às 14h30. Quando foi 23h, a menina morreu. Não sei, parece que a menina
enxoval e aguardavam ansiosamente a chegada da menina. Em 23 de outubro,
veio só para fazer isso vir à tona. Como se Deus tivesse preparado isso. Ele so-
às 23h, nasce Ana Julia dos Anjos Silva. “A minha dificuldade foi de repente. Eu
freu bastante e veio morar na nossa casa. Foi a primeira vez que o vi chorar de
estava muito feliz com a chegada da minha filha, mas a minha esposa guardava
verdade. Acho que tudo que ele não chorou quando teve que amputar a perna,
um grande segredo: sempre dizia que ia me contar alguma coisa, mas nunca
chorou nesse período. Ele emagreceu bastante, acho que perdeu uns três quilos.
falava nada”. Foi então que tudo que começou a se desenrolar. A pequena Ana
A Meire chegou a conversar com ele. Os meninos do Águias deram muito apoio.
nasceu com problemas de saúde. Mesmo assim, a mãe e a menina saíram do
Percebi que depois dessa decepção, ele passou a se dedicar bem mais ao esporte”.
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E daí surgiu o contraste. Luciano percebeu que o basquete era a única coisa
a gente consegue visualizar os espaços, diferente de quando tá aquela correria, aque-
que havia saído intacta de toda essa história. Era a única parte real que continu-
le nervosismo, aquela impaciência que gera o estresse, que você acaba não fazendo
ava inteira, para qual ele podia se dedicar sem medo. E a família percebeu essa
nada. E hoje aprendi a ser mais paciente ainda”. E entre jogadores e comissão técni-
decisão. “Nesse período ele ficou sem jogar por uma partida, depois, quando
ca, inclusive a treinadora Ana, todos veem o mesmo que ele. “O ponto positivo dele
voltou, chegou arrasando, jogando bem demais”. Era fim de 2010. O último
é a concentração, o equilíbrio, algo que consegue manter o jogo todo. E também, por
campeonato em disputa é sempre o Brasileiro. A técnica Meire chegou a pergun-
ser um jogador ágil, acaba se destacando no posicionamento seja no rebote, seja bola
tar se ele não queria um tempo. “Eles disseram que podiam me liberar, mas não
fácil. Mas essa tranquilidade é o que mais ajuda”.
quis, porque pensei: ‘treinei o ano todinho para isso’. Se desistisse estaria sendo
Quanto aos deslizes e os defeitos, aquilo que ainda precisa melhorar, ele não
covarde comigo mesmo. Fui lá e fiz meu papel muito bem feito. Fui o melhor
consegue precisar o que falta, mas sabe que não é pouca coisa. “Acho que falta
pivô do Campeonato Brasileiro de 2010, no qual fomos vice-campeões. Podia
muita coisa, para me tornar um grande jogador. Eu sei que são detalhes, mas
ter ficado com a cabeça em outro lugar, mas centrei naquilo. E com isso eu pude
sempre essas coisas menores são mais difíceis de alcançar, de chegar ao conceito
ver que os meus problemas não podem interferir no resto da minha vida. Vi que,
da obra, mas não se pode ter pressa”. E a busca por aprender sempre mais vem
no basquete, poderia me divertir e tirar a tensão daquele problema, que naquele
com os treinos e as avaliações que as técnicas passam para cada jogador. No caso
momento era a perda da minha filha. E dei graças a Deus que deu certo, porque
de Luciano, contrapondo o que tem de melhor é que surge o ponto negativo.
é uma coisa que eu gosto de fazer, e bem feito, sempre prezo por isso”.
“Mesmo com boa concentração, às vezes, ele faz muita falta desnecessária. En-
Apesar do bom desempenho, o time não levou o título. Luciano consegue
tão, ele é um jogador faltoso e isso atrapalha”.
lembrar as pequenas coisas que os fizeram perder o campeonato. “Eu acho que
O reconhecimento desses pontos positivos e da garra que tem começou a
faltou os outros da equipe olhar para eles mesmos. Nós perdemos por detalhes.
aparecer ainda em Recife, quando foi pré-convocado para a Seleção Brasileira
Foram esses detalhes que eles (adversários) perceberam e usaram a favor. Eles
de Sub-23. “Não cheguei a ir para a competição, colocaram outra pessoa no
começaram a me anular, perceberam quem era o cara naquele momento. Joga-
meu lugar. Mas tinha sentido o gostinho e coloquei na cabeça que um dia ia con-
mos contra o CAD e eu matei o jogo, fiz 44 pontos, num jogo difícil. Mas hoje
seguir. Quando via as pessoas que jogavam, pensava: ‘nunca vou chegar nesse
o Águias tá com uma cabeça diferente e esses detalhes estão sendo corrigidos.
nível’. Cada cara monstruoso. Mas quando cheguei ao Águias, fui trabalhando e
Perdemos, não lembro exatamente, mas foi por um ou dois pontos”. A consequ-
cheguei à seleção principal”. E para tornar a primeira convocação mais inesque-
ência desse bom desempenho pode ser vista até hoje. A desenvoltura e o fato de
cível, Luciano passou pelo batismo, da mesma forma que acontece com todos os
ser pivô, a posição mais acionada nas jogadas de ataque, deram a ele o posto de
novatos. “Meu cabelo, que já não tinha muito, eles cortaram e rasparam minha
melhor aproveitamento de arremessos da equipe. É o cestinha do time.
sobrancelha. Acontece sempre, com todo mundo”.
Dentro das quatro linhas, Luciano vive a melhor parte da sua vida. Jogar se
A grandeza de representar seu País e jogar em competições internacionais
tornou não apenas uma profissão, mas uma alegria, uma paixão pela qual se dedica
está sempre presente, mas Luciano acredita que existem coisas que precisam
tanto. Na análise de si mesmo como jogador, ele não pensa duas vezes para dizer que
melhorar. “Quando cheguei lá, fiquei um pouco decepcionado com algumas
a maior qualidade que tem é a paciência. “Existe um ditado que diz que calado se
atitudes internas, algumas coisas da comissão da Seleção. Mas, mesmo assim,
aprende muito mais do que falando. Eu concordo com isso. É com tranquilidade que
eu não abaixei a cabeça, sempre fiz o meu melhor e agora tenho trabalhado e
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Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
trilhado um bom caminho, então permaneço sendo convocado. Para mim, é um
outras pessoas crescerem, porque aqui em São Paulo tem uma estrutura maior,
motivo de agradecer cada vez mais”. Depois de tantos jogos com a camisa verde
mas em lugares pequenos como o lugar onde cresci ainda existem barreiras,
e amarela, ele não se lembra de todas as competições, mas sabe de cor todas as
principalmente com os deficientes”. E força de vontade para ajudar outras pes-
disputas internacionais que participou. “Fui para a Copa América, no Canadá.
soas a ultrapassarem esses obstáculos é o que não falta.
Teve uma Copa do Mundo que fizeram para o basquete sobre rodas que foi na Inglaterra. E no México, foi o Parapanamericano de 2011, em Guadalajara”. Pouco depois da competição no México, quando estava novamente com a Seleção Brasileira, a notícia do falecimento do pai mudou mais um pouco a vida de Luciano. “Ele sofreu um infarto. Foi no dia 17 de outubro. Voltei às 17h20 de Recife, e 16h20 de São Paulo, porque era época do horário de verão. Imediatamente tirei uma passagem para às 22h. Perdi o voo, peguei o de 1h e cheguei lá umas 4h. Aconteceu no ano passado”. A figura paterna sempre foi uma presença constante para ele, mesmo depois da mudança para o Sudeste. “Quando me mudei foi difícil tanto para ele, quanto para mim. Mas o bom é que todo ano eu estava lá de novo, nas férias. Ele sempre me esperava, nem saía de casa. Sinto muita falta dele. Sempre foi um cara presente. Não falava nada, mas sempre estava ali, mesmo num momento difícil”. Após tantos altos e baixos, Luciano aprendeu algo novo a cada obstáculo e, com a clareza de sempre, faz questão de destacar a importância do Águias em todo o caminho que percorreu. “Foi uma porta que se abriu e me fez enxergar muitas coisas. Me fez aprender a valorizar as coisas por mais simples que elas sejam. Às vezes a gente olha e vê uma grande pedra e se desvia dela, mas lá na frente, aquilo que pode provocar um grande deslize, um grande desastre é uma pequena pedra. A mesma coisa são os problemas. E o basquete e o Águias me fizeram compreender tudo isso”. A importância do esporte cresce cada vez mais para Luciano e o maior objetivo que tem é poder passar esse aprendizado adiante. “O esporte é uma porta que abre novos caminhos em questão de ser mais humano e mais humilde. É uma escola. Penso em usar isso para fazer alguma coisa pelas pessoas com deficiência, porque para mim é uma porta que se abriu e não pretendo fechar por muito tempo. Quem sabe até dar aulas nessa área. Imagina que alegria poder ver 108
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Rebô O objetivo é o mesmo: fazer cestas. A vontade é a mesma: vencer, sempre. As jogadas se revezam. A habilidade individual e o entrosamento do time resultam em passes rápidos. Em poucos segundos, a bola vai de um extremo ao outro da quadra. A velocidade com que tudo se realiza e a adrenalina que vibra pelo corpo pedem cada vez mais. O incentivo complementar vem das arquibancadas. Os amigos acompanham e dão forças. E a cada novo jogo, a beleza da rotina se repete. O desejo de alcançar os títulos e conquistas maiores cresce a cada partida. E a certeza de que fez a escolha certa se fortalece a cada comemoração. Assim tem sido a vida de Izaías José dos Santos – chamado pelos colegas de Rebô, 27 anos, desde que começou a jogar basquete adaptado. Nascido em 10 de abril, na cidade de Cabo de Santo Agostinho, região metropolitana de Recife, Pernambuco, viveu no bairro Prazeres os 10 primeiros anos de sua vida. Com a companhia frequente dos amigos, teve uma infância alegre e tranquila. “Foi uma época muito boa. Ficava na rua, brincava e me divertia com os moleques. Estudava e brincava, mais nada”. Mas ele também assume que não era uma criança fácil de lidar e aprontava com amigos para se divertir. “Já corri atrás de amigo com sapo, andei em cima de boi. Isso faz parte da minha infância. Um amigo meu tinha medo de sapo, então peguei um bem grande e sai correndo atrás dele. Ele correu muito e não parava de gritar. Ele era branco e ficou vermelho, com o coração disparado. Eu devia ter uns 11 ou 12 anos nessa época”. Nessa fase, Izaías já morava no bairro Jardim dos Prazeres, pois se mudou com a família logo que completou 10 anos. Mas a distância entre um bairro e outro era pequena, o que permitiu manter as amizades de infância e as brinca-
“Eu não era assim completamente independente, era muito parado. Através do basquete que fui me associando mais à vida normal”.
deiras de sempre, que o acompanharam também durante os primeiros anos da adolescência. Alguns problemas e certas diferenças são coisas que existem em toda e qualquer família. Mas no caso de Izaías, isso influenciou nas lembranças 111
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Nas Asas do Águias
de quando ainda era criança. E até mesmo sua irmã Selma, quase 18 anos mais
amigos. “Um dia, no meu trabalho, comentei tudo com um colega e ele me indi-
velha, tem consciência disso. “Quando comecei a conhecer o Izaías, ele já estava
cou um hospital chamado Oswaldo Cruz. Ele disse: ‘não sei se você conhece, mas
com uns sete ou oito anos, porque eu também não fui criada com minha mãe.
arruma uma ambulância e leva ele lá, é um bom hospital’. Peguei o nome da área
Cresci com meus avós. E a pessoa que mais deu atenção, praticamente a única
do hospital que eu tinha que ir e procurei direto a responsável, como ele havia
que dava asas a ele, era eu”.
indicado. Mas lá a gente não descobriu nada, inclusive fui muito mal tratada”.
Assim como os outros adolescentes que viviam na região, Izaías e os ami-
A busca por informações, uma ajuda e um bom atendimento se estendia
gos dividiam seu dia entre a escola e o lazer. Conforme foram crescendo, mais
por quase dois meses, quando Selma encontrou o que precisava. “Lembrei do
duas brincadeiras passaram a fazer parte da lista deles: as partidas de futebol e
hospital chamado Restauração e, na verdade, só não tinha ido até lá antes por
os banhos de rio, algo comum em pequenas cidades do interior do Nordeste,
falta de condições. Foi o único lugar em que fui bem recebida. Entramos às 10h
onde as temperaturas são mais elevadas em relação às outras regiões. Em 2000,
da manhã no Oswaldo Cruz, às 11h da noite nós saímos e fomos direto pro
aos 15 anos, Selma, que agora morava na mesma casa que o irmão, começou a
Restauração. Lá o Izaías ficou fazendo todos os exames e conseguiram descobrir
perceber algumas mudanças nele. “Percebei que ele estava um pouco diferente e
o que era. Através da ressonância magnética foi que tiveram certeza, porque se
até falei pra minha mãe: ‘esse menino está com algum problema’. Os olhos dele
suspeitava de tudo, menos que fosse isso: uma bactéria”.
estavam amarelados, como se tivesse problema no fígado, tipo hepatite, não sei. E as mãos dele pareciam aquele barro, tinham cor de argila”.
O nome da bactéria que estava no organismo de Izaías recebe o nome de schistosoma. Com origem no caramujo, um caracol aquático que age como hospedeiro
Mesmo com uma rotina cansativa, pois Selma saía cedo e só chegava do tra-
e de forma assexuada, reproduz-se e se multiplica nos próprios tecidos. Depois, cria
balho à noite, foi ela quem reparou e percebeu os primeiros sintomas estranhos
formas multicelulares que abandonam o molusco e nadam na água. A contaminação
que Izaías apresentava. Ela também foi a primeira a procurar saber o que era. “Eu
ocorreu em um dos vários banhos de rio que Izaías tomava na adolescência, mas ele
disse a minha mãe: ‘tem que marcar um médico pra esse menino’, só que cheguei
não sabe em qual das vezes adquiriu a doença. “Eu tomava banho em vários rios e
a marcar e ele não foi. Ele não gostava de médico. O resultado foi que, tempos
poços e tinha isso em todos. Depois que mostraram como era, fui olhar o tal caramu-
depois, ele começou a ter febre. Tive que insistir, falei pra ele que dava pra ir no
jo, e encontrei em vários lugares diferentes”. A contaminação trouxe para a vida de
posto, porque era mais perto de casa. O médico passou remédio, só que passou a
Izaías algo ainda mais difícil de ser compreendido e combatido. A bactéria contraída
sentir fortes dores, principalmente nas pernas e isso foi dificultando ele a andar”.
resultou em uma esquistossomose medular, considerada uma das formas mais graves
Apesar de ter vencido a luta com o irmão, para que ele fosse ao médico, aque-
dessa doença, transmitida através da exposição em águas contaminadas. Se tratada
le havia sido apenas o primeiro embate com a doença. O tratamento indicado
no início, o paciente pode se recuperar totalmente, mas a doença é silenciosa e não
pelo primeiro médico não estava sendo suficiente. “Teve um dia que cheguei em
costuma apresentar sintomas, dificultando um tratamento eficaz.
casa e minha mãe disse: ‘oh, não aguento mais ele gritando de dor’. A gente leva-
Após a confirmação do laudo médico, quando ele e a irmã entenderam
va ele sempre no hospital próximo e quando chegava lá o médico só deixava em
como aquilo aconteceu, foi que perceberam que as chances seriam maiores se
observação. Eu questionava, queria saber o que ele tinha, mas todos diziam que
tivessem descoberto antes. “Ela (a bactéria) se reproduz, evolui dentro de você
era só fase de crescimento. Mas que fase de crescimento foi essa que só piorou?”.
e só depois começa a sentir os sintomas. Quando descobri, a minha doença já
Selma ficava cada dia mais indignada, mas tinha forças no apoio que recebia dos
estava muito avançada. Atingiu a medula, o que afetou a parte dos membros
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Nas Asas do Águias
inferiores, por isso eu tinha tantas dores nas pernas”. Ainda assim, Selma não
terapia era muito grande. Ainda fui levar ele algumas vezes, mas depois não pude
deixaria que Izaías desistisse, ele teria que fazer o tratamento e correr atrás do
mais. Depois ele começou a andar de muleta, então fiz a inscrição na AACD e
tempo perdido. Mas outros problemas surgiram com o decorrer das necessida-
ele teve uma época de assistência muito boa por lá”. Fora a Associação, Izaías
des. “Fiquei no hospital com ele e aguardamos que houvesse uma sala, uma vaga
também fez um tratamento alternativo e consegue ver bons resultados após tudo
em um dos andares, porque a gente estava no corredor. Tinha muita maca e não
que passou. “Depois que melhorei um pouco, fiz fisioterapia numa academia de
tinha vagas. Quatro dias depois, a diretora do hospital e a equipe de estagiários
musculação e era quase a mesma coisa. Hoje posso dizer que recuperei bastante.
dela arrumaram uma vaga no oitavo andar”.
Ando sem muleta e até de bicicleta, mas com a cadeira é mais rápido”.
Durante todo o tempo de internação, marcado do fim do mês de maio até
Quando Izaías estava na fase de adaptação à nova rotina e tentava deixar de
novembro de 2005, Selma foi acompanhante do irmão. “Ficamos seis meses,
lado todo que havia passado, uma nova descoberta veio mudar mais um pouco
quer dizer, falo ficamos porque fui eu que acompanhei todo o processo. Fiquei
sua vida. A desconfiança que trazia consigo desde a infância criou forças durante
internada também com ele. A única diferença é que eu tinha direito de sair, de
o período de internação. Depois de muito questionar os pais sobre o assunto, teve
descer, e ele não. Nesse tempo fizeram mais exames. Eu sempre conversava com
a confirmação, por meio de uma vizinha, que conhecia toda a história. Izaías era
os médicos e eles me explicaram da seguinte forma: um casal do schistosoma
filho adotivo. Sua irmã Selma é filha do casal que o criou e passou a conviver,
estava no final da coluna do Izaías e era como se ele tivesse sofrido um acidente
quando ele já tinha quase oito anos. E ela acredita que ele sempre soube, só não
de carro e lesado a coluna. Teve o mesmo prejuízo que teria se tivesse levado
tinha certeza. “No fundo ele sempre soube que era adotado, porque minha mãe
uma forte pancada. Deram medicamento pra que ele colocasse pra fora ou dis-
é branca e tem o cabelo preto, o marido dela era branco, meu irmão é branco de
solvesse, não sei como é exatamente. Assim que ele tomou os remédios começou
olhos verdes, a gente até o chama de galego e eu também sou loura. Só Izaías que
a doer de novo, depois passou a não sentir o corpo. Os médicos vinham, fura-
era mais moreninho e ele sempre observou muito isso, apesar de tentar disfarçar”.
vam do ombro pra baixo, todinho, e ele não sentia nada. Tive medo”. Com o
Com a certeza de sua origem, e como a maioria dos adolescentes, quando passa
tempo, o tratamento feito durante a internação, muitas injeções e medicamento,
por esse tipo de descoberta, ele se revoltou por não saber da história desde o início da
finalmente ele recebeu alta. “Ele veio pra casa numa cadeira de rodas. Ele só não
vida e insistiu até saber quem era sua mãe biológica, pois queria conhecê-la. “Depois
sentia as pernas da rótula pra baixo, mas na parte de cima, estava tudo normal”.
que ele saiu do hospital, recebeu a visita de alguns primos por parte da mãe biológica.
O tratamento a que Izaías foi submetido não impediu que os membros in-
Foi então que ele descobriu que os avós biológicos moravam perto da gente. Depois
feriores fossem paralisando. A indicação médica era que ele continuasse com os
que ele foi visitá-los, conseguiu também o telefone da mãe dele, porque ela mora no
cuidados, além da fisioterapia, a única coisa que poderia ajudá-lo a recuperar os
interior de São Paulo. Foi quando resolveu ficar com ela. Acho que pra conhecer,
movimentos. “Depois do tempo que fiquei internado, passaram o papel de reco-
saber direito quem era”. Izaías pegou o endereço e decidiu ir até ela. “Fui para São
mendação para a fisioterapia, mas eu não tinha dinheiro nem condições de fazer.
Paulo em 2000, fiquei um ano e depois voltei pra Recife”. A volta do irmão foi muito
O certo era fazer de segunda a sexta, mas só conseguia ir uma vez na semana, às
repentina e até hoje Selma não sabe direito o que aconteceu. “Fez um ano que estava
vezes duas”. A irmã também reconhece as dificuldades dessa fase. “Como ele an-
lá, ele ligou no meu celular dizendo que queria voltar. Me pediu dinheiro pra com-
dava na cadeira de rodas, tinha que chamar uma ambulância, porque não dava
prar a passagem, mas não falou o motivo, só disse que queria vir embora. Depositei
pra pagar táxi. A distância da nossa casa pro centro de Recife, onde tinha a fisio-
o dinheiro na conta e ele voltou”.
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Nas Asas do Águias
Depois da experiência de passar todo o ano de 2000 em São Paulo, Izaías
entrar lá no meio e ajudar, mas não pode. Quando uma cadeira bate na outra,
voltou a sua cidade natal em 2001. Até os 17 anos, ele ainda não havia comple-
que eles caem, a tendência é querer correr pra ajudar. Dá medo, porque a im-
tado os estudos e a insistência de Selma se tornou mais um aprendizado para os
pressão que a gente tem é que a pessoa se machuca”.
dois. “Ele quis parar, porque não era fácil se locomover e, pra falar a verdade,
Izaías logo recebeu o convite da Associação Desportiva dos Deficientes Fí-
a única pessoa que sabia lidar com ele era eu. Só que eu cheguei pra ele e disse
sicos (ADDF), mas foi preciso esperar alguns meses para fazer a transferência.
que não podia, até porque eu trabalhava e ainda o levava pra fisioterapia, pro
Assim, chegou a completar um ano representando a ADM-PE. “Quando a outra
médico, pra essas coisas. Até que um colega do meu trabalho me chamou e disse:
equipe me convidou já estava na metade do ano e a gente não pode passar pra
‘olhe Selma, você vai ter que sentar, conversar com ele e dizer que o mundo não
outra equipe enquanto não acabar o Campeonato. Se você jogar o Regional por
acabou e que, de hoje em diante, ele tem que ir sozinho pra escola, aprender a
um time, você não pode passar pra outro clube no mesmo ano, só quando passar
pegar ônibus, ele precisa aprender a fazer as coisinhas dele, entendeu?. É só uma
o Brasileiro. Então, tive que esperar pra poder ir pra outra equipe”. Foi na épo-
nova fase’. E isso doeu, porque pra mim era normal me desfazer pra ele. Só que
ca que jogava pela ADDF que finalmente pode colocar em prática o que havia
eu fui caindo na real, então ele começou a caminhar sozinho. Aí passou a estu-
aprendido no curso que fez após o tempo que passou no hospital. “Eu trabalha-
dar e fez até um curso de soldador. Ele é uma pessoa inteligente, só é um pouco
va com tudo, o que aparecesse eu tava fazendo. Aí, virei soldador de cadeira de
relaxado, mas ele é um menino esforçado”.
rodas na ADDF. Eu jogava basquete de manhã e trabalhava a tarde ou, às vezes,
Em 2005, aos 20 anos, um rapaz com deficiência chamado Emílio, que tra-
mudava a ordem,mas fiz as duas coisas”.
balhava na Associação dos Deficientes Físicos Motores de Pernambuco (ADM-
Foram três anos representando a equipe pernambucana e foi pela ADDF
PE), encontrou Izaías e comentou sobre os esportes adaptados que tinha lá. Iza-
que Izaías sentiu o gosto de ser campeão pela primeira vez. Lá conquistou o
ías teve curiosidade em saber o que era e foi então que conheceu o basquete em
Campeonato Regional. Mas o convite que sempre esperou receber veio de um
cadeiras de rodas. “Assim, eu não gostava de esporte. A primeira impressão foi
companheiro da equipe antiga equipe, a ADM-PE. “Joguei com ele na ADM,
legal, gostei muito, mas acabei desistindo. Parei um tempo e depois voltei. Ou-
mas logo ele foi pra São Paulo e eu fiquei. Depois fui pra ADDF e, um tempo
tra coisa que gostei também foi o entrosamento, os contatos e a adrenalina que
depois, ele falou comigo que a equipe Águias tinha interesse em me convidar
gera”. Desde que soube do esporte, Izaías sempre teve apoio da família. “Sempre
para fazer parte da equipe. Aí falaram com a minha técnica, fecharam lá e eu
me incentivaram bastante e quando desisti, mandaram eu continuar. Assim, lá
aceitei. Eu tinha um sonho muito grande de jogar no Águias, primeiro porque
(ADM) era meio fraco, eu não via muita graça, mas acabei voltando de novo”.
é a melhor equipe de basquete do Brasil e outra porque meus amigos da ADM
Selma sempre se diverte quando lembra o motivo que fez o irmão demorar tan-
estavam no time também”.
to para começar a jogar. “Tinha que acordar muito cedo e como ele gostava de
Com o convite para jogar no Águias da Cadeira de Rodas, ele recebeu no-
dormir tarde, então ele não queria acordar cinco horas da manhã no dia seguin-
vamente o apoio da família e não teve muitas dificuldades em se adaptar à rotina
te. Aí eu conversei com ele e quando chegou o outro ano, ele começou a treinar
e à nova cidade. “Me incentivaram bastante e na outra equipe que treinava, eu
pra valer, frequentar a Associação de verdade e se dedicar mais”. Depois disso, a
já morava só, num alojamento que tinha lá. A mudança foi tranquila, porque eu
irmã chegou a assistir aos jogos do irmão, quando ele ainda estava no começo da
já conhecia o Luciano, o Berg e o finado Rui. Já era um cara independente. Eles
carreira. “Achei bacana, e assim... é muito emocionante. É como se você quisesse
só pediram pra eu ter juízo, mas eu era ajuizado, só que em Recife eu conhecia
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todo mundo e em São Paulo não conhecia ninguém. Aí, disseram pra eu ter um
de equipe. “Preferi pagar meu aluguel e continuar morando sozinho. A gente tem
pouco mais de cautela”.
mais liberdade, mais privacidade”. Outra coisa que fez quando chegou a São Paulo
Em 2009, quando chegou a São Paulo, já estava com tudo definido: iria
foi voltar a andar de cadeira de rodas. “Eu já utilizava antes, logo no começo da de-
morar no apartamento do Águias. Dessa forma teria tudo garantido, tanto ali-
ficiência, depois melhorei quando fiz fisioterapia, aí só andava de muletas. Vim usar
mentação quanto moradia. A coisa mais difícil com a qual teve que se acostumar
a cadeira mais no basquete, porque também é obrigatório. Num campeonato, todo
na vida nova foi o frio e a rotina paulistana. “Foi um pouco estranho pra eu me
mundo tem que entrar de cadeira. Sem contar que é bem mais rápido. Todo mundo
adaptar ao clima, à rotina, porque era diferente em Recife. Lá eu treinava, tra-
(do time) anda de cadeira, não vou só eu de muletas”.
balha e estudava. Aqui, só treino, mas é mais pesado também. Lá a carga horária
Disciplinado e com desejo de um dia chegar à seleção, Izaías tem se dedi-
era pequena e não eram todos os dias, eram só três vezes na semana. Em São
cado aos treinos e busca melhorar seu rendimento cada vez mais. “Tenho um
Paulo, a carga é maior e os treinos são todos os dias,porque é a elite do basquete.
grande sonho de pegar uma seleção e jogar bem no Águias. Tô mais disciplinado
É onde está a primeira divisão e os três melhores times, então, o bicho pega. O
agora, mas preciso melhorar meu arremesso de fora”. Por outro lado, sabe que
nível é outro. É mais pesado, é mais pegado”.
seu ponto forte é a defesa e assume que o trabalho feito pela equipe paulista tem
Com a rotina de treinos diários e o cuidado que precisa ter com o corpo,
ajudado ele a melhorar muito. “Agora eu tô bem, porque a minha teimosia já me
para bom desempenho em quadra, a diversão fica por conta de programas mais
atrapalhou um bocado. Eu jogava de ala, agora tenho feito papel de pivô, então
leves, que não provoquem tanto o cansaço físico. “No final de semana às vezes
quiseram baixar minha cadeira pra melhorar meu desempenho na quadra, a ha-
tem balada ou a gente vai ao cinema, dá uma volta no shopping. Raramente é
bilidade, a velocidade, o arremesso, mas eu não quis. Aí, em 2012, eu quis fazer
balada, são mais coisas que dê pra gente descansar mais. Só quando tem feriado,
o teste, quis mudar e me sinto bem melhor”.
que aí tem um intervalo maior pra descanso”. Ainda em 2009, em um desses
Quando está em quadra e a torcida o incentiva, Izaías sente algo mais que
momentos livres, Izaías conheceu Paloma. “Eu conheci ela numa balada lá em
o amor pelo basquete. “Quando alguém me provoca, começa a provocar, grita,
Santana. A primeira vez que a gente se viu, eu falei e dancei com ela. Tentei dar
fica vibrando e tal, aí vai que vai, eu vou pra cima”. E essa sensação boa e positi-
um beijo, mas ela não quis. Na segunda vez que a gente se viu, foi na mesma
va se repete quando pensa no quanto o esporte mudou toda a sua vida. “Eu não
balada e eu aproveitei pra pegar o telefone. Aí a gente foi se conhecendo, até que
era assim completamente independente, era muito parado. Através do basquete
um dia ela me convidou pra ir almoçar na casa dela. Pedi ela em namoro e ela
que fui me associando mais à vida normal. Não dependo de ninguém, fiz curso,
aceitou”. Izaías ainda não havia tido um relacionamento sério desde que chegou
trabalhei e não dependo de ninguém. Moro só e faço minhas coisas”. Izaías re-
à cidade. “Fiquei quase sete meses sem ninguém, só indo pras baladas, conhe-
conhece que o basquete trouxe ainda outros benefícios que o ajudam a superar
cendo a rapaziada, os lugares. Aí eu conheci ela, gostei, rolou da gente namorar.
as dificuldades da deficiência no dia a dia. “No caso, nós do basquete somos
Passamos um ano e pouco juntos, me ajuntei com ela, aí ficamos mais uns seis
muito habilidosos, a gente sabe improvisar as coisas, empina a cadeira, subir
meses juntos. Tudo durou um ano e meio”.
em degrau, mas nem todo mundo tem a mesma habilidade que a gente”. E ao
No tempo em que morou com Paloma, Izaías sentiu diferença por não estar
viver a concretização de parte dos seus sonhos, ele alerta, demonstrando força de
mais com tantas pessoas no mesmo local, como era no apartamento do Águias. Por
vontade e persistência: “Que ninguém desista dos seus objetivos. Se quiser fazer
isso, mesmo após o fim do relacionamento, ele não voltou a morar com os colegas
alguma coisa, faça até o fim. Mesmo que não dê certo, tente, mas nunca desista”.
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Alex Depois de muito tempo, um reencontro. Final do Campeonato Paulista: Águias versus CAD, o jogo promete. É bem complicado competir contra sua ex-equipe. A partida é acirrada, muita emoção em quadra e os dois times lutam pela vitória com unhas e dentes. Ainda com o êxito naquela partida, o resultado não foi suficiente. O time adversário acumula maior número de pontos durante o campeonato, o que lhe garante a conquista do título. Mesmo em segundo lugar, não se deixa abater pela tristeza, sabe que fez pontos importantes durante o jogo, mas tem muito a aprender. A vida ainda lhe ensinaria inúmeras lições. Alex Santos da Silva, 31 anos. Nasceu dia 11 de outubro, no bairro de Santana, na zona Norte de São Paulo. Na infância, residiu no bairro Jardim Peri com os pais, Aparecido e Edna, além das irmãs mais novas Patrícia e Kelly. Era uma criança alegre e peralta, mas nunca deu dor de cabeça aos pais. Desde pequeno tinha responsabilidades. Cuidava das irmãs menores e com oito anos já trabalhava para ajudar a família. “Meu pai tinha um bar, eu ajudava a cuidar. Cheguei a vender sorvete na rua também”. Estudou em uma escola chamada Raul de Leoni, próximo ao Horto Florestal. Tinha muitos amigos e como toda criança brincava e também se envolvia em confusões. “Eu apanhei um pouco na escola, mas não era muito briguento”. No mesmo colégio começou a praticar esportes, lá conheceu o handebol e participou de um campeonato interescolar. Mas a maior paixão do menino era o futebol, nem machucado ele parava de jogar. “Quando eu tinha uns dez anos, quebrei o braço, quando estava jogando bola. Fui chutar, caí para trás e me machuquei feio. Passei uns quarenta dias com o braço engessado, mas não larguei o futebol”. Em 1993, aos 13 anos, foi morar com a família no Paraná. Mudou-se para
“Não penso em parar. Eu vivo o agora, depois eu vejo o resto”.
Sertaneja, uma cidade do interior com menos de seis mil habitantes. Os pais eram naturais do pequeno município e precisaram visitar o avô que estava doen121
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te. “Em São Paulo nós morávamos na periferia. Meu avô estava com câncer, cor-
adiante. O fato de ficar desacordado após o acidente também não permitiu que
ria o risco de morrer. Fomos visitá-lo e acabamos ficando”. Apesar de boa parte
ele lembrasse de quem o socorreu, mas a mãe, mesmo sem ter comparecido ao
da família residir no local, a mudança foi difícil. “Eu estava com minha família,
local, recorda do que foi informada na época. “Quem socorreu foi um amigo
a maioria dos meus parentes mora lá. Mas foi bastante radical mudar da cidade
que estava dentro do carro e não se machucou muito, se chama Elso. Esse meni-
para um lugar que vive só da agricultura”. Alex teve que se adaptar ao novo
no tinha experiência com gado e resolveu ajudar, porque o sangue estava coagu-
ambiente e voltou a trabalhar para auxiliar na renda da família. “Comecei a tra-
lando. Até hoje ele acha que salvou a vida do meu filho, porque até a polícia vir
balhar na roça, carpia soja, milho, fui servente também, fazia de tudo. Quando
com o médico, demora”. Edna rememora-se da manhã em que recebeu a notícia
fiquei mais velho, comecei a trabalhar com recebimento de semente de milho,
do acidente . “O menino ligou pra mãe dele e pediu pra ela me avisar, mas antes
soja e trigo”. Não ganhavam muito, mas juntando as economias conseguiram
disso eu tinha ido no quarto dele e me deu um gelo no coração. Eu falei: ‘Nossa
comprar uma pequena casa. Além de ter que ajudar os pais, ele se tornava um
Senhora! Ele não veio dormir’. Meu filho nunca tinha feito isso. Logo depois o
rapaz e precisava de dinheiro para sair com os amigos. “Eu entregava o dinheiro
telefone tocou. Eu e meu marido saímos correndo”.
pra minha família, até comprarmos uma casinha. Meu pai me dava um pouco quando eu queria sair, uns dez reais. Eu saía e curtia as baladinhas”.
Após o acidente Alex foi levado para o Hospital de Rancho Alegre, onde foi entubado e encaminhado para a Santa Casa de Cornélio Procópio, cidade vizi-
Devido às tarefas que fazia na roça durante o dia, Alex estudava no período
nha à Sertaneja. Ele não se recorda dos dias que passou na Unidade de Terapia
noturno. Assim, entre as obrigações do trabalho e os livros, conseguiu concluir o
Intensiva (UTI). “Minha mãe conta várias histórias do período que passei na
ensino médio. Até a maior idade nunca havia mudado de comportamento com
UTI, mas eu não lembro. Ela diz que eu falava e chorava, que pedia chocolate,
os pais, era um menino obediente e caseiro. Começou a sair à noite para festas e
coca-cola e as enfermeiras me deixaram tomar. Eu tava com minha boca machu-
bailes apenas com 18 anos e passou a se distanciar da família. Aos 21, ele e o pai
cada, minha mãe falou que foi da cirurgia que eu fiz na coluna e acabei puxando
compraram um carro, era um fusquinha azul, antigo, que ele adorava.
o tubo que eles colocaram na minha boca”.
Certo dia, quando voltava de um show de rock de uma banda local, apro-
O pai de Alex também compareceu no local onde o carro capotou, Apareci-
ximadamente às cinco e meia da manhã, sofreu um grave acidente. Estava no
do foi orientado por policiais a cuidar urgentemente do filho, que se encontrava
fusca com mais quatro amigos. Era Alex quem dirigia o carro, não havia bebido
em estado bastante crítico. “As enfermeiras falaram: ‘o senhor ajuda a gente a
na noite e estava apto a pilotar. Durante a travessia de uma curva foi surpreendi-
passar ele para a outra maca? A gente não aguenta com ele. Ele é grande’. Eu
do por um veículo que o fechou. Tentou desviar bruscamente e o carro capotou.
ajudei, ele me abraçou, grudou em mim e não queria soltar. Acho que era o in-
Com o impacto, Alex quebrou a coluna, as costelas, o fêmur e ficou desacordado.
consciente dele, porque, muitas vezes, eu falei pra ele: ‘anda devagar, não precisa
“Eu desmaiei, fiquei dez dias na UTI, só acordei quando estava no quarto, ope-
correr! Qualquer hora você pode bater em uma criança, é perigoso. Se acontecer
rado. O acidente foi uma semana após meu aniversário de 22 anos”.
alguma coisa, eu vou te bater!’”. Logo que chegou ao quarto, Alex perguntou
Apesar das poucas lembranças que Alex tem do acidente, os detalhes con-
para Edna: “Mãe, o que aconteceu?”. Assim que recebeu a notícia que havia
tinuam vivos na memória dos pais. Edna conta que o filho foi atingido por ho-
virado o carro, ele só pensava em uma coisa: ”Nossa, meu pai vai me matar!”.
mens que o perseguiam após uma discussão durante a festa e que a capotagem
Estava preocupado com uma possível repreensão que o pai pudesse lhe dar. Já na
do carro havia sido premeditada. Pela falta de provas o caso não pode ser levado
enfermaria, ele pode compreender o que tinha acontecido e ali recebeu a notícia
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Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
de que sua medula havia sido lesionada, mas não rompida. Fraturou as vértebras
lia para visitar uma irmã. Aproveitando que já percorreria o mesmo caminho
T11 e T12. “O médico falou que eu poderia tentar andar mais tarde, que era
que Alex, não custou nada ajudá-lo. “A gente foi de carro, o vereador Roque
uma cara novo, essas coisas”. Após 30 dias no hospital, ele recebeu alta médica.
Pimenta me levou. Eu não quis que minha mãe fosse, porque ia ser muito des-
Os pais ficaram radiantes com a volta do filho, pois chegaram a crer que
gastante, ia ter que arrumar um lugar pra ficar, porque ela não ia poder ficar
Alex não se recuperaria. O rapaz ficou desestimulado, quieto, só conversava com
no hospital comigo. Ia ter que gastar com hotel e a gente não tinha condição.
o pai durante os banhos e passava horas a fio trancado no quarto, isolado. “Eu
Fiquei no Centro de Reabilitação uns quarenta dias, fazendo exames, depois
tava com muita dor ainda. Ia uma porção de curioso lá, conversavam, falavam e
voltei. Lá eles mostram que a gente pode trabalhar, que tem esportes, que a vida
eu não queria falar”. Ele chorava a maior parte do tempo. Acostumado a traba-
não para. Aprendi a empinar a cadeira, aprendi como ia ser meu dia a dia e o
lhar, não acreditava que poderia voltar a praticar algum tipo de atividade que re-
que aconteceu comigo. Conheci outras pessoas na mesma ou em pior situação
quisesse movimentos ágeis. Passou quatro meses em casa, depois da internação,
que a minha”. Ao voltar de Brasília, Alex se sentia mais preparado para enfren-
sem fazer nada, só ficava deitado, mal conseguia sentar na cadeira. “Não tive
tar a vida, mesmo com a nova condição em que se encontrava. “Eu comecei a
como escolher alguma coisa pra fazer, quando eu saí do hospital era tudo novo,
me virar, fazia minhas coisas, meu dia a dia voltou ao normal, tomava banho e
eu ainda não estava acostumado com aquilo. As coisas foram acontecendo”.
trocava de roupas sozinho, fiquei mais independente. No começo, passei 40 dias
Foi durante esse período que teve seu primeiro contato com a cadeira de rodas.
no Centro, depois ia todo ano. Fui três anos seguidos. Eles me chamavam uma
“Como os médicos falaram que eu tinha a possibilidade de voltar a andar eu
vez por ano, para voltar ao tratamento”.
nem liguei muito pro fato de estar na cadeira. Eu não pensava que não ia andar nunca mais, pensava que era passageiro”.
Após o acidente, Alex conseguiu se aposentar. “Eu recebi auxilio. Eu trabalhava de carteira assinada, dei entrada no INSS e me aposentei. Tinha um sindi-
O fato de morar em uma cidade pequena não favoreceu, pois não possuía
cato que resolvia esses assuntos”. Mesmo recebendo um benefício, ele não queria
estrutura suficiente para o tratamento. Alex teve que mudar de Estado, para
ficar parado e recorreu a todas as opções possíveis para conseguir um trabalho.
poder iniciar o processo de reabilitação e acabar com o marasmo que sua vida
“Um ano após o acidente, eu passei em um concurso em Sertaneja, mas o salário
havia se tornado “Um homem da minha cidade, o Samuel do Prado, conseguiu
era menor que o meu e se eu aceitasse o emprego, perderia meu aposento. Era
que eu fosse para Brasília para o Centro de Reabilitação Internacional. Ele era
um concurso para atendente, talvez eles me colocassem numa biblioteca ou numa
locutor de rodeio da cidade, conhecia todo mundo. Ele ficou sabendo do meu
escola”. Chegou a procurar emprego em Londrina, uma cidade próxima à que
caso e tinha bastante influência com os políticos. Conhecia um governador, um
morava, mas a busca não foi satisfatória. Por não ter conseguido uma ocupação, o
senador e rapidinho conseguiu meu tratamento. Lá comecei a aprender. No co-
rapaz que trabalhava desde a infância, ficou em casa por dois anos, sem trabalhar.
meço, nem sabia sentar na cadeira direito, era complicado. A ficha caiu, quando
Em 2005, aos 24 anos, se tornou pai de uma garotinha, Ana Beatriz. Devido
fui pra Brasília, foi lá que eu entendi o que me aconteceu, sabia que não ia voltar
à lesão não acreditava na possibilidade de um dia ter um filho, Ana veio para
a andar como antes, mas poderia melhorar. Entendi o que realmente aconteceu
desmistificar esse pensamento. Ele já mantinha um relacionamento com a mãe
comigo, onde foi minha lesão, porque os médicos davam palestras”.
da menina antes do acidente. A sogra, que apoiava o namoro dos dois, mudou
A família não podia acompanhá-lo no tratamento, ele recebeu ajuda de
drasticamente de posição após Alex se tornar cadeirante. A mãe dele recorda
um amigo, a mãe do rapaz havia falecido e ele precisava deslocar-se até Brasí-
o preconceito que o filho teve de enfrentar e ainda fala emocionada. “Antes de
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sofrer o acidente, a sogra dele dizia: ‘nossa! Ele é tão bonito, é forte!’ Depois do
quando eu vou lá, ficam felizes com a minha visita. Eles estão bem, porque hoje
acidente ele virou um aleijado. As pessoas até falam pra ele gravar isso e proces-
eu também estou”. Aparecido se tornou um instrutor à distância. “Até hoje ele
sar ela, porque é preconceito. Ela falava: ‘como ele vai sustentar minha filha?
me liga. Pergunta: ‘Pai, como é que faz tal coisa? Como cozinha isso? Mas eu sei
Aleijado, vai virar um vagabundo’”.
que ele é independente, lava a roupa dele, se cuida bem sozinho”.
A criança não foi planejada. Alex nunca chegou a se casar com a mãe da
Alex começou a jogar, tornou-se um atleta do basquete adaptado e via as
menina e perdeu o contato com a ex-namorada. Ana mora com a avó no Para-
lembranças do tempo em que esteve em casa, inerte, ficarem pra trás. Tentou vol-
ná, o que complica o contato dele com a filha. “Nosso relacionamento é meio
tar a estudar. “Depois do acidente fiz seis meses de engenharia da computação e
conturbado, bem difícil. A avó dela tenta me impedir de ver a menina, ela tem
um ano de educação física”. Voltava a ser o homem ativo de antes, retomou as ré-
medo que eu peça a guarda da criança”. A interdição da avó de Ana Beatriz
deas de seu destino. A mudança foi difícil e ele teve que aprender a conviver com
não diminui a vontade que Alex tem de vê-la. Mensalmente se desloca ao Sul
desconhecidos, que a partir daquele momento fariam parte da sua nova família.
do País para matar as saudades da pequena, que cresce longe dos cuidados do
Enquanto jogava no CAD, teve sua primeira convocação para a Seleção
pai. A menina tem grande afeto por Alex, mesmo morando longe. Edna conta a
Brasileira. Um desejo utópico estava quase ao alcance das mãos. Durante a
felicidade da criança ao revê-lo. “Ela sobe nas costas dele, brinca de cavalinho,
concentração, aproximou-se de alguns atletas do Águias que também haviam
empurra a cadeira dele. Faz um monte de coisa!”. Os reencontros entre os dois
sido chamados. “Da primeira vez que fui para a seleção, tive contato com o
ocorrem sempre na casa da avó paterna, que se orgulha ao ver as brincadeiras
Nilton, Berg, Heriberto. Nós conversamos, foi bem tranquilo”. Nessa conversa
entre o filho e a neta.
recebeu o convite para fazer parte do time, se um dia lhe interessasse. A alegria
No final de 2006, durante um passeio pela praça, Alex recebeu uma propos-
da convocação não durou muito tempo, a emoção de defender o País foi des-
ta muito interessante. Um homem veio lhe apresentar a oportunidade de sair da
truída pela noticia de que havia sido cortado e daria a oportunidade para outro
inatividade e a possibilidade de praticar um esporte, o basquete adaptado. “O
atleta jogar em seu lugar. A informação foi um choque, mas não o desmotivou,
pai de um dos atletas do CAD, um andarilho que vendia adesivos, me viu na rua
voltou para casa e continuou a defender seu time, na esperança de que novas
comendo um lanche, perguntou se eu não estava interessado em jogar, trocamos
oportunidades iriam surgir.
telefone e conversamos. Ele falou com o presidente do time que conhecia um
Após três anos, jogando no mesmo time, Alex resolveu sair. Não se sentia sa-
garoto que queria fazer parte da equipe e perguntou se tinha como. Era um time
tisfeito e o relacionamento com os outros membros da equipe se tornou bastante
novo, aí eles aceitaram. Eu não tinha como fazer nada em Sertaneja. Apareceu
difícil. “Não estava muito feliz lá, aconteceram alguns desentendimentos, então
essa oportunidade e eu aceitei. Eu fui lá e continuei”.
eu saí”. Estava sem time e precisava trabalhar, foi então que lembrou do convite
Ao aceitar a proposta, teve que se mudar para a cidade de São José do Rio
que recebeu de um dos jogadores do Águias. Viu ali a possibilidade de voltar a
Preto, no interior de São Paulo. Mesmo já tendo se ausentado de casa durante
jogar. “O Nilton me chamou, conversei com o ex-presidente que faleceu e com a
a reabilitação, aquela seria a primeira vez que ele moraria longe da família. Os
Meire e comecei a jogar”. Entrou no time na posição de ala.
pais de Alex ficaram temerosos com a decisão do filho. “Eles sofreram muito,
Chegou ao Águias da Cadeira de Rodas em fevereiro de 2010. Há quase três
para os pais é complicado. Mas eu mostrei para eles que estava bem, que eu
anos na equipe, Alex consegue observar grandes mudanças, sente que cresce em
me virava. Quando saí de casa, minha mãe ficou preocupada. Hoje é tranquilo,
cada treino e a cada nova partida. Apesar da experiência, consegue observar vá-
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Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
rios pontos que ainda precisam evoluir. “Tenho que melhorar muito em algumas
evolução. Desta vez foi por causa da política de escolha mesmo, foi a opção deles,
coisas, algumas vezes eu falho na definição. Fazia muita falta, agora não faço
mas eu tenho esperança”.
mais. Um ponto forte é que eu marco bem. Mas cada jogo é um jogo, a gente
Ainda há muito o que fazer, muitos pontos a evoluir. Sabe que ainda virão
vai sempre aprendendo e tentando melhorar”. Meire, uma das técnicas do time,
dias incansáveis de treino e preparação, para que possa alcançar esse objetivo.
consegue enxergar grande potencial no jogador. “Ele é um cara que tem um ta-
Como não pretende parar de jogar tão cedo, faz grandes planos e vive seus mo-
lento nato, para mim é o melhor arremessador, tecnicamente falando, ele tem o
mentos com intensidade. “Não penso em parar. Eu vivo o agora, depois eu vejo o
melhor arremesso. Suas mecânicas de arremesso são muito coerentes”.
resto”. Alex tem um sonho, defender o Brasil com a camisa da Seleção, mostrar
Já participou de diversos campeonatos, defendendo o novo time e, em 2010, foi campeão Paulista. “O Águias é minha vida. Eu vejo os caras todo o dia, so-
ao mundo as virtudes do menino adotado por Sertaneja. Esse é o ideal que almeja, não pretende desistir de buscá-lo.
mos uma família, convivo mais com eles do que com minha família de verdade. Eu nunca tinha sido campeão e fui campeão Paulista no Águias. No outro time eu só consegui o segundo e o terceiro lugar. O Águias marcou minha carreira”. Para Edna, o acidente do filho “foi um mal que veio para o bem”. Alex era desatento e se tornou distante após a adolescência. A lesão fez com que ele se reaproximasse dos pais e também o fez trilhar uma profissão. “Agora ele lembra de todas as datas e liga pra gente, dia das mães, dia dos pais, aniversário. Hoje ele é outra pessoa. Ele mesmo fala que se tivesse as duas pernas, não teria seguido carreira nenhuma. O basquete mudou muito o meu filho”. Alex compartilha a mesma opinião que a mãe. “O basquete é muito importante, é minha vida, eu vivo pra isso. É a minha paixão, me sinto bem e feliz jogando. Ele me ensinou a ter respeito, ter responsabilidade. Melhorou no meu dia a dia para eu andar, fazer minhas coisas, ajudou bastante na minha mobilidade, me transformou em uma pessoa melhor. Eu tô feliz do jeito que estou”. Orgulhosa, a mãe nunca assistiu Alex jogar e planeja um dia poder fazer parte da torcida na arquibancada. Ainda com toda evolução gerada pelo basquete, segundo Neli, a psicóloga do Águias, Alex continua com dificuldade de entrosamento. “Ele sempre foi um cara mais difícil, tem uma personalidade forte e é muito distante das pessoas. É um dos caras mais distantes de todos, tá sempre na dele”. Em de 2012, Alex recebeu a segunda convocação para a Seleção e mais uma vez foi cortado. Sente que tem potencial ou nem seria chamado. “A última vez que fui convocado já tem três ou quatro anos, de lá pra cá eu já tive uma grande 128
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Daniel Olhos atentos observam o jogo. Na quadra, a competição faz com que fique dividido. É a primeira vez que os vê jogar. Já tinha ouvido falar a respeito desse time e do quanto eram bons, mas não colocava tanta fé. A cada segundo, a admiração aumenta e, ao invés de torcer por seu time, deseja que o Águias da Cadeira de Rodas vença. O primeiro jogo e a derrota foram suficientes para saber que era aquilo que queria. Pensa: ‘um dia quero ser igual a eles. Vou treinar e me esforçar para conseguir fazer parte do Águias’. O garoto de 15 anos jogava basquete adaptado há poucos meses, mas esse primeiro contato foi o bastante, para que começasse a sonhar em um dia tornar-se jogador profissional e ter a oportunidade de treinar lado a lado com esses atletas que passou a admirar e que tinha como referência. Daniel Georgio Silva, 21 anos, nasceu no Hospital São Lucas na cidade de Diadema, localizada na grande São Paulo. Os pais Eliude e José tinham dois filhos, Denis e Danilo e, após sete anos, resolveram ter uma menina. Como na década de 90 o Sistema Único de Saúde (SUS) não costumava fazer ultrassons, o casal sonhou durante toda a gestação com a filhinha que teriam. Eliude fez o acompanhamento de pré-natal e preparou-se para ter o bebê e, em seguida, fazer uma cirurgia de laqueadura, para que não tivesse mais filhos. Após o parto, no dia 16 de setembro, a mãe descobre que o bebê era um menino. “O médico falou: ‘Parabéns é um lindo menino!’. Na hora eu pensei: ‘Menino? Como menino? Eu tinha certeza que era uma menina!’”. Ela não pode segurar o filho no colo. “O médico apenas me mostrou ele. O Daniel era tão lindo, tão gordinho”. Pouco depois de nascer, a criança foi enca-
“Os treinos puxados, a disciplina e o companheirismo fazem com que eu me espelhe nos jogadores mais velhos do Águias, para conseguir alcançar meus sonhos”.
minhada com muito cuidado ao berçário. José foi chamado pelos médicos, que lhe informaram que o filho nasceu com mielomeningocele, uma doença em que os ossos da coluna não se formam totalmente e os nervos e a medula espinhal fi131
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Nas Asas do Águias
cam expostos nas costas da criança e são protegidos apenas por uma membrana.
gia, ele teve hidrocefalia, um sintoma causado pela mielomeningocele que faz com
“Eu ouvi as explicações do médico, mas não conseguia entender. Na hora eu só
que a cabeça da criança cresça devido ao acúmulo de líquido cérebro-espinhal.
queria ver meu filho”.
A cabeça de Daniel passou a ser medida várias vezes por dia e, ao analisarem as
José estava acompanhado por Neide, vizinha e amiga do casal que, ao perce-
medidas, os médicos constataram que ela estava crescendo rapidamente. A equipe
ber o desespero dele, tomou a frente da situação. “Fui a primeira a ver ele deita-
pediu que os pais assinassem a autorização de cirurgia emergencial, para que pu-
dinho de lado no berçário. O doutor mostrou as costas dele e falou: ‘essa pelezi-
dessem colocar duas válvulas e drenar o líquido retido na cabeça do bebê o quanto
nha é muito sensível, se ela se romper, ele não sobrevive’”. Os médicos avaliaram
antes. O maior temor dos residentes do hospital era de que a hidrocefalia pudesse
a situação do recém-nascido e deram uma expectativa de três dias de vida. Como
acarretar problemas de aprendizagem, raciocínio, memória, coordenação, organiza-
a doença de Daniel era muito delicada, ele teria que ser operado o mais rápido
ção e dificuldade de localização durante seu período de desenvolvimento.
possível, porém o Hospital São Lucas não possuía a equipe médica necessária.
Os pais assinaram os papéis e a vaga para Daniel fazer a cirurgia, em outro
Funcionários tentaram a transferência do bebê para o Hospital Santa Marcelina,
hospital, estava garantida. Eliude ficou muito preocupada com o quadro apre-
mas não havia vagas no local. Sem alternativas, José foi orientado a levar o bebê
sentado pelos médicos e resolveu procurar apoio espiritual. Ela frequentava a
de carro até o outro hospital para forçar um atendimento emergencial.
igreja Pentecostal Deus é Amor e decidiu fazer uma campanha de oração pela
Em seu segundo dia de vida, Daniel foi levado de bruços por Maria durante
cura do filho. “Os médicos falaram que, mesmo colocando as válvulas, meu filho
uma viagem de aproximadamente três horas de um hospital ao outro. Qualquer
ficaria em estado vegetativo. Isso me assustou, eles me deram um quadro horrí-
batida ou movimento brusco que atingisse a mielomeningocele poderia fazer
vel”. Daniel estava completando oito dias quando Eliude foi visitá-lo. Ao chegar
com que ele morresse. José dirigiu cuidadosamente até o hospital Santa Marceli-
ao hospital, os médicos lhe deram uma ótima notícia: o crescimento da cabeça
na. Ao chegar ao local, as freiras já os aguardavam e transferiram o bebê para a
de seu filho havia parado e, se tudo ocorresse bem, a criança poderia ir para
enfermaria na qual deram início ao procedimento pré-operatório. A cirurgia du-
casa. O bebê permaneceu em observação durante dez dias e, como a doença não
rou 12 horas e, durante a espera, o pai teve que ouvir vários comentários. “Um
avançou, ele recebeu alta. Antes de liberarem a criança, os médicos a chamaram
médico falou pra mim ‘é melhor que seu filho nem escape, pois se ele escapar, vai
para conversar. “Eles disseram: ‘não fica feliz não mãe, porque seu filho não vai
viver em estado vegetativo’. Ouvir isso foi muito duro”.
conseguir falar ou andar’”.
Durante a cirurgia de seu filho, Eliude ficou internada no hospital devido à
Em seu primeiro dia em casa, Daniel foi recebido com alegria pela família.
recuperação das operações. “Os médicos falaram que o Daniel só não morreu
Aos poucos, ele foi se recuperando e, com o passar dos meses, foi se desenvolven-
porque eu fiz a opção de laqueadura e o parto teve que ser cesárea”. O tipo de
do e passou a fazer tudo o que as demais crianças faziam. Ele conseguiu se sentar,
parto favoreceu a vida do recém-nascido: como durante a cesariana o bebê não
de sete para oito meses conseguiu balbuciar as primeiras palavras e, com os estí-
precisa fazer força para sair, ele pode ser retirado cuidadosamente, sem que a
mulos da mãe, passou a engatinhar. “Tudo o que fiz com o Denis e o Danilo eu
membrana fosse atingida.
fiz com ele. Eu não o tratava diferente ou como um bebezinho doente. Ele tinha
A cirurgia reparadora ocorreu bem e Daniel pode ser encaminhado para o ber-
o probleminha dele, mas a gente estimulava, para ele fazer as coisas”.
çário. Mas, apesar do sucesso, os médicos não descartavam a possibilidade de ele
Durante os primeiros meses de vida, Daniel ia muito ao médico. Além do
apresentar problemas cerebrais e ser uma criança vegetativa. Seis dias após a cirur-
acompanhamento que todo bebê recebe, ele passava com especialistas do Hos-
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pital das Clínicas que avaliavam seu estado de saúde e as consequências trazidas
crânio e, por esse motivo, ele passou por várias cirurgias. A segunda foi nas rótu-
pela mielomeningocele. A anormalidade dos membros inferiores foi acarretada
las dos joelhos. Ele fez outra para soltar o quadril, voltou a repetir à dos joelhos e
pela doença: Daniel possuía os pezinhos tortos e projetados para dentro. Quando
do quadril e fez uma ampliação de bexiga. Ao todo foram 12 cirurgias desde que
ele tinha um ano, Eliude conheceu uma mulher com um filho que possuía uma
nasceu até os onze anos, quando fez a última.
doença degenerativa. O filho dela fazia tratamento na Associação de Assistência
Devido às operações, Daniel faltava muito às aulas. Após a correção do qua-
à Criança Deficiente (AACD) e ela se ofereceu para levá-la para conhecer o lo-
dril, ele passou a usar uma órtese e um tutor longo que o auxiliavam a andar. A
cal. “Chegando lá, conversei com uma assistente social. Ela viu que eu não tinha
órtese o machucava e, como o local onde morava tinha muita ladeira, ele ia para
condições de pagar o tratamento e o Daniel começou a ser atendido de graça”.
a escola de cadeira de rodas. “A cadeira é muito mais rápida e prática. Enquanto
Nessa época, Eliude, José e os filhos moravam em Diadema e, para chegar a
dou dois passos de muleta, eu já estou bem mais longe na cadeira”. Como apron-
AACD da Vila Mariana, ela precisava pegar quatro ônibus com o Daniel. Todos
tava muito, a diretora sempre chamava os pais para conversar sobre as peraltices
os dias eles saiam às cinco da manhã e voltavam às 17 horas. Na Associação,
dele. José lembra que o filho nunca gostou muito de estudar. “Isso não era da
ele fazia fisioterapia e tratamentos com outras crianças da mesma faixa etária.
natureza dele. Na escola, ele só queria saber de brincar”.
Enquanto estavam fora, os vizinhos se revezavam para limpar a casa, cozinhar e
Daniel sempre teve vários problemas de infecção de urina e, após realizar
cuidar de Denis e Danilo. “Eu não tinha vizinhos, tinha uma verdadeira família
exames na AACD, os médicos constataram que a bexiga dele não havia se desen-
que me apoiava e ajudava da forma que podia”.
volvido. A correção foi feita por meio de uma ampliação de bexiga com pedaços
Com três anos ele foi para a pré-escola. “Foi uma luta conseguir colocar ele
de intestino do próprio paciente. Como era uma cirurgia muito agressiva, houve
lá. Mas essa foi a fase mais bonita, consegui realizar o sonho de ver meu filho no
complicações. Os pontos internos e externos infeccionaram e abriram, provo-
prezinho”. A diretora da EMEI não queria aceitar Daniel por falta de estrutura
cando, assim, uma fissura por onde a urina de Daniel vazava.
na escola, mas Eliude não desistia da vaga e dizia que acompanharia o filho, caso
Daniel voltou a ficar internado. Eliude lembra que os médicos temiam que
fosse necessário. Nessa época, ele apenas engatinhava, pois não possuía muita
ele tivesse uma infecção generalizada ou que pegasse uma bactéria hospitalar.
força nas pernas por conta dos pezinhos tortos. Quando foi aceito, Eliude passou
“Essa da bexiga foi a cirurgia mais terrível que ele fez. Eu fiquei 30 dias interna-
a reforçar os joelhos da calça com couro para que ele pudesse brincar e acompa-
da com ele”. Para auxiliar na cicatrização, o remédio era colocado por aquela
nhar as crianças sem se machucar. “Como eu não tinha cadeira, no início, mi-
fissura com a ajuda do bisturi. O procedimento causava muita dor. Ele gritava e
nha mãe ficava a maior parte do tempo comigo. Era complicado, mas eu nunca
chorava toda vez que faziam um novo curativo no ferimento e isso ocorria duas
deixei de frequentar o prézinho ou de ir para passeios por causa disso”. Embora
vezes ao dia. O pai lembra, com muita tristeza, deste período. “Ele gritava de
fosse para a escolinha, os tratamentos na AACD continuavam. Além das sessões
dia e de noite quando tinha que colocar aquele remédio dentro da ferida. Eu
de fisioterapia, ele passou a praticar natação, como forma de estímulo ao desen-
me sentia impotente, por não poder fazer nada para ajudar”. Após um mês de
volvimento de sua musculatura.
tratamento, com limpeza e aplicação de medicamentos diária, a cicatrização
No decorrer de toda a infância, Daniel fez cirurgias de correção pela AACD.
aconteceu e ele teve alta.
A primeira cirurgia foi por volta dos cinco anos, quando operou os pés. A mio-
Após o período de recuperação, Daniel retomou suas atividades na AACD.
lomeningocele também pode acarretar problemas no quadril, pernas, bexiga e
“Fiz natação por bastante tempo e depois tentei tênis de mesa, mas não gostei”.
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Devido ao grande número de faltas, quando estava com 14 anos repetiu a sétima
Durante o Campeonato Regional na Baixada, enquanto ainda fazia parte da
série. “Eu faltava muito para ir ao médico. Nessa época especificamente, faltei
Adesp, ele foi convidado para jogar no APBS Guarujá (Associação Desportiva
por causa de cirurgias. Eu fiz correções e fiquei seis meses sem ir à aula”. Na épo-
da Baixada Santista), um time do litoral sul paulista. “Eles me viram jogando,
ca em que ia para a Associação, ele costumava fazer manobras com a cadeira.
falaram que tinham estrutura, que a prefeitura apoiava os atletas e me convida-
Descia ruas empinando e derrapava na areia. Em 2006, quando tinha 14 anos,
ram”. Como o time de São Bernardo estava acabando, ele conversou com os pais
ele estava descendo a ladeira em que morava com muita velocidade, quando um
e resolveu aceitar a proposta. Em 2008, s Adesp São Bernardo começava a sofrer
rapaz da rua de cima o viu e comentou sobre ele com o pai, praticante de bas-
ameaças de ser desativado devido à falta de jogadores. Por essa razão Daniel re-
quete adaptado. “Valdir, o pai do Ney ficou interessado e falou que, quando ele
solveu conversar com o treinador e deixar o time. “Ele não quis me prender, pois
me visse de novo, era para me convidar para o time e avisar que ele me levaria e
sabia que uma hora eu iria para outro time. Eu fui até o final, só deixei a equipe,
buscaria. Quando o menino me viu, ele me convidou e eu aceitei”.
porque a galera desistiu de jogar e ela teria que ser fechada”.
Valdir também era paraplégico e jogava na escolinha da Metodista. Daniel
Ele não chegou a se mudar para o litoral, mas ficava a maior parte do tem-
foi até a Instituição para conhecer o esporte e gostou. Não demorou muito, para
po no Guarujá. Eliude lembra que o filho descia na quarta e voltava apenas no
que passasse a treinar com eles. “Não era um time profissional nem nada. Era
domingo. “Ele ficava muito ausente, mas a gente ficava em contato sempre por
mais para ensinar a molecada a jogar”. Os treinos eram no período da tarde e
telefone, nos falávamos todos os dias”. Da equipe do APBS, apenas Daniel e mais
ocorriam duas vezes por semana, no mesmo horário em que Daniel estudava.
dois jogadores eram de São Paulo. Devido à distância, eles treinavam menos
Como queria jogar basquete, sem que os treinadores soubessem, ele largou a es-
vezes durante a semana e quando estavam no litoral dormiam no alojamento ou
cola e passou a se dedicar apenas ao esporte. Eliude incentivava o filho a jogar e
na casa de amigos do time. Ele permaneceu no clube por quase dois anos, indo
o apoiava em tudo o que fosse necessário. No início, ela não gostou da ideia dele
e voltando semanalmente de Diadema para o Guarujá.
abandonar os estudos, mas aos poucos se acostumou com a escolha. “Desisti de
No dia 5 de agosto de 2010, quando estava com 18 anos, Daniel foi convi-
fazer o Daniel estudar, porque ele odiava a escola. Então eu não podia forçar a
dado para a equipe Águias da Cadeira de Rodas por Cristiane, auxiliar técnica
natureza dele, tive que aceitar”.
do time. Ela havia sido treinadora do Daniel na equipe de São Bernardo. Como
Ainda em 2006, Daniel foi convidado para jogar na Adesp São Bernardo.
já conhecia o jogador e teve a oportunidade de contratá-lo, ela o fez. “Nossa! Eu
“Sai da escolinha para um time profissional. Na Adesp comecei a treinar mais, lá
nem acreditei. Eles foram o primeiro time que eu vi jogar contra a Adesp, e des-
tinha mais estrutura”. No primeiro jogo de Daniel, a família se reuniu para ver o
de então, sempre me inspirei e treinei muito para ser igual a esses caras”. Eliude
caçula jogar com a camisa da Adesp. A mãe do atleta lembra que o jogo foi em
e a família ficaram felizes por ele ter conseguido a chance de jogar no time que
uma praça grande e que estava lotada. “Quando vi ele jogando chorei de emo-
tanto sonhava. “Eu não me continha de tanta alegria. Fiquei muito orgulhosa
ção. Eu gritava: ‘Vai bebê, Vai bebê!’ e o pessoal do outro lado ajudava a gritar.
por meu filho conseguir alcançar seus objetivos e ir para o melhor time”.
Isso tudo ficou gravado em minha mente. Foi lindo”. Daniel treinou durante dois
Além do convite para integrar a equipe do Águias, ele também foi convidado
anos e meio com o time, tempo suficiente para aprender muitas coisas e adquirir
para o time CAD-B (Clube Amigos dos Deficientes), mas no momento da esco-
um pouco de experiência. “A Adesp foi uma equipe que me incentivou bastante,
lha, não teve dúvida alguma. “Eu não pensei duas vezes, tinha certeza do que eu
foi meu primeiro time e eu tenho um carinho muito especial por ele”.
queria. Aceitar o convite para o Águias foi o auge da minha carreira, ou melhor,
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Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
está sendo”. No dia 9 de agosto, Daniel treinou pela primeira vez com a equipe e oficialmente passou a fazer parte do Águias. “Fui muito bem recebido. Aqui ninguém tem estrelismo e todo mundo se dispõe a ajudar. Eu acho isso muito bacana”. Em 2010, como tinha acabado de chegar no time, ele não pode ser inscrito no Campeonato Paulista por ter jogado no Campeonato Regional pela equipe do Guarujá. “Também não pude ir ao Brasileiro devido à falta de patrocínio. Só comecei a jogar pelo time no ano seguinte”. Daniel jogou pela primeira vez com a camisa do Águias no Campeonato Paulista em 2011. O primeiro jogo na equipe foi contra o CAD São Paulo e seu time saiu vitorioso. A vitória no Campeonato Paulista garantiu a vaga no Campeonato Nacional. “O Brasileiro foi uma das melhores competições que eu tive. Viagem inesquecível. Nós fomos para Recife e eu nunca tinha jogado esse campeonato. O aprendizado foi muito grande para mim”. Para Daniel, estar no Águias é aprender diariamente a ser um grande atleta com os demais integrantes do time. “Os treinos puxados, a disciplina e o com-
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panheirismo fazem com que eu me espelhe neles para conseguir alcançar meus sonhos”. Entre as principais metas do atleta está ser Campeão Brasileiro com Águias e ir para a Seleção. “Ser campeão brasileiro é o que mais quero. Depois sonho em entrar para a Seleção Sub 23 que é minha categoria e quem sabe na Principal”. Eliude sempre se emociona com as conquistas do filho, mas também carrega consigo um desejo. “Meu maior sonho é um dia ver meu filho na Seleção e ir para o pódio carregando a bandeira do Brasil”.
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Henrique O sonho da jogada perfeita ainda não transpassa as barreiras do pensamento. Os poucos minutos em quadra não permitem que brilhe com intensidade maior. Dribles e cestas ainda estão sendo arquitetados em sua mente, para que, no momento certo, sejam executados com perfeição. A pouca idade e os percalços do caminho não permitem seu total aproveitamento, mas a hora de brilhar é quase chegada. Luiz Henrique Gomes de Souza, 24 anos, é fluminense e natural de Macaé, cidade localizada no interior do estado do Rio de Janeiro. Nascido em 1º de novembro, num hospital próximo ao rio que leva o mesmo nome do pequeno município. Filho de Sérgio e Josiléia, residiu durante a infância e adolescência na Rua Arnaldo Gregório. Era uma criança ativa, sua maior diversão era soltar pipa e jogar boleba, também conhecida como bola de gude, com os amigos. Aos cinco anos entrou na escola, um ambiente que nunca lhe foi muito agradável, ele tinha muita preguiça de estudar. Aos sete anos Henrique foi obrigado a passar por um processo de mudanças radicais, os pais se separaram. O pai do menino, muitas vezes, era agressivo e então o casal decidiu que o divórcio era a melhor solução a ser tomada. Após a separação, Henrique permaneceu na companhia da mãe e dos irmãos Serginho e Jociara. Sérgio continuou a morar na vizinhança e recebia a visita frequente do filho. Henrique se sentia um menino livre, pois a cidade onde morava é banhada por rios e o contato direto com a natureza lhe proporcionava essa sensação. Gostava de correr, brincar solto pelas ruas e principalmente banhar-se no Rio Macaé. Mergulhar naquelas águas tão próximas de sua casa era um hábito muito comum e frequente na vida dele, nadava no rio quase todos os dias desde bem pequeno.
“Sou tímido, em todo o lugar que chego não falo nada”.
Em 1998, na tarde de Natal, a tia Ana o convidou para acompanhá-la à Ilha 141
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de Santana onde tinha assuntos a resolver, Henrique tinha nove anos na época.
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comecei a procurar: ‘cadê minha perna?’. Ficava procurando e chorando’”.
A mãe havia saído com as amigas e o pai não permitiu que o menino acompa-
Passados 17 dias de tratamento no hospital, era hora de voltar para casa.
nhasse a tia, então, como era de costume, ele foi brincar no rio. “Ninguém sabia
A família reunida o aguardava na casa da avó Alzira, onde ficaria durante um
que eu tinha ido tomar banho no rio. Eu ia todo dia para lá, já era costume. Nes-
longo período de recuperação. “Fui pra lá porque era maior e melhor pra eu fi-
se dia fui com meu primo Diego”.Henrique não tinha ideia do que lhe aconte-
car”. Foi difícil voltar para casa, Henrique estava aliviado por estar vivo, mas não
ceria mais à frente, a vida havia lhe reservado uma surpresa nada agradável que
completamente feliz. A mãe sofria ao perceber a mudança que acontecera com
marcaria sua história para sempre. Brincava como em qualquer outro dia, o que
o menino. “Depois do acidente ele ficou mais levado, antes só brincava na rua
ele não esperava é que um grupo de jovens viesse em sua direção em um barco
e no quintal. Com poucos dias que saiu do hospital foi pra dentro do rio tomar
desgovernado e o atingisse tão agressivamente. “Eles eram de outra cidade, esta-
banho, caiu e se machucou, foi um desespero”.
vam voltando da ilha que minha tia foi. Eles estavam todos bêbados e jogaram o
Henrique não teve nenhum tipo de tratamento específico, nem acompanha-
barco em cima de mim. Eu não conhecia eles”. As claras águas do Macaé foram
mento psicológico ou de um fisioterapeuta, tomava apenas os remédios para
manchadas com o sangue que jorrava dos profundos cortes das pernas de Hen-
cicatrização. Passou anos de recuperação por conta própria, com a vida lhe en-
rique. Todos que assistiram à cena ficaram chocados e rapidamente procuraram
sinando a se adaptar àquela nova situação. Logo após a amputação, ele teve o
os parentes da criança, para que o socorressem.
primeiro contato com a cadeira de rodas. Apesar da pouca idade, era um menino
O primeiro a saber da triste notícia foi Josimar, mais conhecido como Ore-
grande e ninguém conseguia carregá-lo nos braços por muito tempo, por isso a
lha, irmão da mãe de Henrique, que rapidamente chegou ao local. “Meu tio che-
mãe conseguiu uma cadeira de rodas, para que a criança pudesse se locomover.
gou de carro com o cunhado dele, me levou para o hospital. Até certo momento
“Primeiro eu comecei a andar de cadeira, os outros me empurravam. Foi meio
eu estava consciente. O barco passou por cima da minha perna e cortou em três
constrangedor, mas era o único jeito que tinha”.
lugares, ela ficou fatiada Vi quando ele embrulhou minha perna com um pano.
Josiléia chegou a ser orientada, para que buscasse indenização pelo acidente
Lembro que minha mãe tava sentada na pracinha, quando meu tio avisou sobre
que havia acontecido. Como os jovens que pilotavam o barco encontravam-se
o acidente, ela entrou no carro que eu estava. Depois eu apaguei”.
embriagados, seria justo que Henrique recebesse auxilio para fazer um tratamen-
Já no hospital, os médicos buscaram de todas as maneiras recuperar a perna
to médico. “O pessoal falava que eles tinham que pagar indenização. Cheguei a
mais atingida no acidente, mas os cuidados não surtiram efeito. “Ele machucou
colocar na justiça com advogado e tudo, mas a mãe dos meninos falava: ‘ah! Eu
as duas pernas. Chegaram a colocar a perna no lugar e ele ficou cinco dias com
sou pobre, não tenho condições’. Pensei direitinho, quando estava marcado o dia
ela, mas começou a inchar. Eu falava pro médico: ‘meu filho vai morrer, vocês
pra eu ir lá dar entrada no pedido de indenização pro meu garoto, falei: ‘sabe de
estão deixando meu filho inchar pra morrer! ’. A perna não corria sangue e teve
uma coisa, vou rasgar esse papel todinho, seja o que Deus quiser. Meu filho está
que amputar.O médico chegou a dizer que ia ter que amputar as duas, mas eu
vivo’. Eu larguei de lado, eles também eram pobres, não ia adiantar de nada”.
sabia que Deus ia curar a outra perna dele pra ele andar pelo menos com uma”.
Henrique passou bastante tempo em casa, saía na rua, brincava, mas não
A maior parte da família do menino estava no hospital e juntos receberam a
era o mesmo. Não fazia nada além de brincar e assistir TV. Ao recuperar-se dos
notícia tão dolorosa. A criança ainda tão pequena teria que adaptar-se, a partir
cortes, voltou para a casa da mãe que cuidava do filho, mesmo tendo que traba-
dali, a uma nova realidade. “Acordei no outro dia e estava sem minha perna. Eu
lhar para sustentar a família. Com aproximadamente 13 anos voltou a estudar.
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“Depois do acidente ele ia menos pra escola. Tinha professora que falava assim:
xílio no esporte. “Meu técnico me ajudou bastante com isso, sobre beber, ele que-
‘como ele vai ficar aqui na sala se não vai ter ninguém pra empurrar a cadeira
ria que eu estudasse. A mulher dele tem três filhos e ele não tem nenhum. Ele fala
de rodas? ’. Eu pedi pra ela falar com alguém pra ajudar, porque eu não podia,
que sou filho dele e eu sinto o mesmo carinho”. Pouco a pouco foi se adaptando
tinha que trabalhar. Depois do acidente ele estudou pouco, mas hoje, graças
à primeira profissão. O time não tinha patrocínio e para ganhar algum dinheiro
a Deus ele é sabido e esperto”. Com 14 anos teve o primeiro contato com as
a mais, Henrique ia de barco pescar no mar com o tio. “Não tive trauma para
muletas, objeto que seria seu companheiro a partir dali. As ruas da cidade onde
entrar em barcos depois do acidente. Foi normal. Eu ficava só no leme, guiava o
morava não eram uniformes e ele tinha bastante dificuldade de andar com a ca-
barco. Pescava também, mas tinha que ficar sentado para puxar a rede”.
deira. A muleta chegou como auxilio para ele se locomover melhor. “No começo foi bem difícil, eu caía muito, mas depois aprendi”.
Ainda no início da carreira de atleta, Henrique integrou a Seleção Brasileira Sub 23 e durante seis meses recebeu o auxílio Bolsa Atleta. Foi nesse período que
Henrique já estava se tornando um rapaz, saía com os amigos e não via dife-
teve a oportunidade de sair do País. “O técnico me indicou. Ele conhecia o pes-
rença entre eles. “Com 15 anos eu comecei a ir pras baladinhas com os meninos.
soal da Seleção, a treinadora. Eu nem sabia nada de basquete ainda, mas fiquei
Ia pro funk e pro pagode”. Em 2007, depois de tantas idas e vindas, desistiu dos
lá. Foi bom conhecer outro país, mas a comida era pimenta pura! Só tinha um
estudos, ainda na terceira série do ensino fundamental. “Eu entrava na escola,
Mc Donald’s e nós comemos uma vez lá. Fiquei uma semana no México e passei
depois que saía de férias não voltava mais. Eu não gostava de estudar”.
fome. Era Campeonato Sul-Americano, nós ficamos em primeiro lugar, tenho
Ainda em 2007, com 18 anos, quando andava na rua com um colega, Hen-
até medalha, mas tá em Macaé”. Na volta foi recebido como um grande atleta,
rique foi abordado por Antônio Carlos, treinador do recente time Macaé Para-
com assédio dos amigos e da imprensa. “Foi um monte de jornal tirar foto. Me
olímpico. “Veio um cara correndo atrás de mim, me chamou e disse: ‘você não
pediram entrevista, mas eu não dou entrevista. Pediam pra eu colocar a roupa
quer jogar basquete, não? Basquete em cadeira de rodas’. Era o treinador do
da Seleção, pra mostrar a medalha. Foi bom”.
time. Ele falou que tinha uma van que me iria buscar em casa toda terça, quin-
Henrique jogou quatro anos pelo time de Macaé, a equipe cresceu visivel-
ta e sábado, que eram os dias de treino. Depois de uma semana eu decidi ir”.
mente durante esse período e chegou à primeira divisão. Em um desses campe-
Inicialmente não gostava muito da ideia de ir jogar, mas a avó queria muito que
onatos ele teve o primeiro contato com o Águias da Cadeira de Rodas. “A gente
Henrique fosse. “No começo eu não gostava muito. A minha vó falava que se eu
foi disputar o Campeonato Brasileiro e jogamos contra o Águias. Aí me convi-
não fosse eu ia voltar pra casa da minha mãe. Aí eu fiquei, não gostava de morar
daram, o Heriberto me chamou pra fazer parte da equipe. O HC e a ANDEF já
com minha mãe, porque ela morava num lugar muito ruim. Minha vó falava:
tinham me chamado também, mas meu treinador falou: ‘Olha só, melhor você
‘Vai almoçar e esperar a van chegar!’ e eu fazia o que ela mandava”.
ir para o Águias que é um time melhor, você vai se desenvolver mais rápido’”. O
A van demorava aproximadamente duas horas da casa de Henrique até o
atual companheiro de equipe, Alex, lembra do jogo em que conheceu Henrique.
Ginásio Poliesportivo de Macaé, onde o time treinava. No início, ele não se entur-
“Quando a gente enfrentou o Macaé, ele arrebentou na partida. Era o único do
mou, estava retraído e tinha dificuldade de se entrosar. “Eu sou tímido, em todo
time que arremessava e fazia cesta”.
lugar que eu chego eu não falo nada. Lá também foi assim. Fui bem recebido, a
Em 2011, Henrique entrou no Águias como pivô. Foi difícil para o atleta de
equipe era nova, era o primeiro ano do time e todo mundo tava começando”. Na
22 anos se afastar da cidade onde cresceu e ter que se adaptar em outro Estado.
época Henrique tinha um problema de envolvimento com álcool e encontrou au-
“Foi muito ruim, nunca tinha ficado longe da família e tive que me acostumar,
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pensei várias vezes em voltar pra casa. São Paulo é frio e no começo a gente estranha muito. Antigamente eu não fazia nada, agora tenho que fazer tudo. É como se a casa fosse minha, tenho que lavar e cozinhar. Em Macaé minha mãe fazia isso pra mim”. Ainda no início dos treinos, Henrique sofreu um pequeno acidente que o impossibilitou de jogar e treinar. “Eu tava na balada e caí. Fui defender a namorada de um amigo, ela também é cadeirante e teve uma briga lá. Entrei na frente pra ela não tombar, escorreguei e meu ombro saiu do lugar. Em 2011, fui operado e fiquei sem jogar por uns oito meses pra me recuperar. Quando o braço tava melhorando eu ia assistir o treino”. De volta às quadras, em novembro, Henrique começou a pegar ritmo de jogo e passou a perceber a intensidade e a importância do treinamento. Com a ajuda do preparador físico João Paulo, ele fez o trabalho de fortalecimento. “Henrique fez fisioterapia e a gente o ajudou a fazer o complemento com um trabalho específico. A gente procura direcionar estes trabalhos de acordo com a necessidade de cada um”.
***
Henrique reconhece que ainda precisa aprimorar bastante o arremesso e a defesa. Modesto, não consegue apontar seu ponto positivo em quadra, mas para João Paulo isso ainda é resquício do período em que ficou parado. “A princípio, ele deixa a desejar um pouco. Não consigo te falar o que ele tem de melhor. A gente vê que ele melhorou muito do começo do ano pra cá, mas por ter pouco tempo de treino ainda não dá pra saber especificamente qual o fator predominante dele”. A técnica Meire vê Henrique como um bom jogador. “Eu o considero Inteligente, por exemplo, ele me entende nas movimentações que peço, mas acho que ele se dispersa, porque não sabe o potencial que tem”. A partir da avaliação dos técnicos, ele acredita que pode alcançar a conquista do Campeonato Brasileiro de 2012 pelo Águias. Tem como ídolo no time o jogador Luciano. “Ele é bom em tudo, na defesa, no ataque, no arremesso”. Assim como o camisa 13 do Águias chegou à Seleção, Henrique acredita que a realização deste sonho ainda está distante. 146
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Rodrigo Pulsação acelerada e muita expectativa para a primeira partida pela nova equipe. Um amistoso, sem muita importância para os demais, é a oportunidade para mostrar a si mesmo que todas as instruções recebidas durante os primeiros cinco meses foram compreendidas e assimiladas. Horas incansáveis de treinos, fisioterapia e muita preparação: o jogo vai responder se o esforço valeu a pena. O lugar desconhecido e distante, as condições da quadra e a ausência da vibração de uma grande torcida não são obstáculos para o mais novo ala do Águias. Após horas lutando pela bola, o apito anuncia o fim da partida. O resultado do jogo confirma sua expectativa e a felicidade toma conta do atleta ao olhar o placar: 88 a 64. A primeira missão está cumprida. A história de Rodrigo Luiz de Oliveira, 30 anos, acumula fatos surpreendentes. O atleta percorreu caminhos obscuros durante a adolescência e parte da vida adulta. Optou pela criminalidade antes de trilhar um destino até as quadras de basquete. Nascido em 24 de abril, é natural de Diadema, cidade do Grande ABC, na região Metropolitana de São Paulo, que ficou conhecida, durante anos, por seus altos índices de violência. Até o fim do século XX, o município teve 102,82 assassinatos para cada 100 mil habitantes. A família era guiada pelos costumes do pai, José Luiz, homem com gênio forte, nascido no interior do Estado do Mato Grosso. “Na minha casa, eu era o filho que apanhava mais. Minha avó tinha que passar água de salmoura nas
“Sou muito guerreiro, não desisto. Eu poderia estar trabalhando em outro lugar ou ficar dentro de casa, mas não estaria feliz. O basquete, minha família e Deus me fizeram viver de novo”.
minhas costas. Meu pai me deixava marcado. Quando chegava na escola, meus colegas perguntavam: ‘você apanhou dos polícia?’ Eu entrava no ritmo: ‘sim, foram os polícia’. Mas era o jeito dele: na infância do meu pai também foi assim, ele achava um tanto normal. Não tenho mágoa dos meus pais, se fosse pelas surras não teria me tornado a pessoa que me tornei”. 149
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Era um bom filho e sempre foi muito apegado à mãe, Izaíra Aparecida. Ao
quase 1,80m. Era danado, batia nos caras. Tenho marcas em minhas mãos, al-
lado dos irmãos mais velhos, José e Andréia, teve uma infância comum, com
guns ossos são quebrados de tanto eu bater nas pessoas. Parecia que eu era um
boas recordações da escola e das brincadeiras com os amigos no bairro de Ame-
ogro, bicho do mato”.
ricanópolis, onde residiu desde seus primeiros dias de vida.
Pouco tempo depois já estava envolvido com tráfico de entorpecentes (farinha,
As lembranças dos finais de semana na casa da tia Neide foram marcantes
pedra, maconha, haxixe, êxtase, lança perfume.) e cometendo roubos e furtos. “Onde
nessa fase, que passou ligeira e deixou saudade. “Sempre ia pra casa da minha tia
moro, tem muito traficante, muito ladrão, minha amizade era com eles. Meu irmão
nas férias. Ela criava cavalos e gostava de me ver limpar a cochia, tirar os estercos
falava: ‘não se envolve com esses caras, eles são da pesada’. Comecei a me misturar
e colocar no carrinho, mas não me deixava trabalhar toda hora. Me dava uma
com essas pessoas mesmo assim e, quando fui ver, já estava fazendo parte da bagunça”.
meta e eu ficava feliz. Depois me dava dinheiro ou sorvete, não pra pagar o que
Apesar da vida conturbada, não teve dificuldades para alugar um local para
eu fiz, mas porque gostava de ter meu irmão e eu ao lado dela. Morava perto de
morar. Começou a se manter com os lucros de sua “nova vida”. “Eu fui morar
Atibaia, não lembro o nome do lugar. Nós brincávamos muito, eu soltava bas-
num barraco de um cômodo. Comecei no tráfico pra me sustentar, pra sobrevi-
tante pipa, tinha um parque lá perto e eu jogava bola. Minha infância foi legal”.
ver. Às vezes, não tinha comida, meu irmão levava pra mim. Foi um momento
Chegada a adolescência, com novos amigos e fortes influências, Rodrigo
difícil. Morava próximo da casa da minha mãe. O rapaz, dono do barraco, tinha
tornou-se um menino rebelde e deixou de seguir os conselhos dos pais. “O que
outras casas e me deixou morar lá. Eu pagava pra ele. Fora isso, os traficantes
aconteceu comigo seria diferente se fosse só pela minha infância, não teria en-
tinham roubado uma casa dele e eu mandei os caras darem dinheiro pra ele. Os
trado nessa vida. Achava que era o meu caráter que tinha mudado enquanto
outros tinham medo de mim. Eu tinha revólver, tinha arma, eu tinha um 38,
crescia, principalmente pelas influências que sofri com as novas amizades. Mas
tinha uma 12 e uma 765”. Rodrigo estava totalmente envolvido e, a cada dia,
hoje, pelo fato de eu ter amadurecido tão rápido, vejo que não era tanto o meu
aprofundava-se com maior intensidade no tráfico. “Eu comecei traficando, de-
caráter, foram as amizades mesmo”.
pois eu virei gerente, era pacote, eles me davam droga e eu vendia. É assim que
Mudou-se de escola inúmeras vezes e, em muitas delas, chegou a ser expulso
funciona a biqueira, tem campana, gerente e pacote. Cada um ganha tal valor”.
por mau comportamento. Conseguiu estudar, mesmo que de forma conturba-
Sempre que podia, encontrava-se às escondidas com a mãe. Aproveitava os
da, até o terceiro ano do Ensino Médio, mas não chegou a concluí-lo. “Minha
horários em que o pai se ausentava de casa para visitá-la. Mesmo com um novo
primeira escola foi a Joana Abraão. Eu já estudei no Vicente Hall, numa escola
temperamento, o apego à mãe permanecia o mesmo. Era ela quem o ajudava,
chamada México, na escola Vila Alva e na escola Martins Penna”.
lavava suas roupas e o alimentava.
Aos 13 anos, deixando para trás as lembranças da infância calma e as re-
Entre 17 e 18 anos voltou para a casa, mesmo sem o consentimento do pai.
cordações da casa da tia, começou a usar maconha. O pai não aceitou as esco-
Queria mudar de vida, começou a fazer pequenos bicos, novas alternativas para
lhas feitas pelo filho. As atitudes haviam mudado: tornou-se violento e inquieto.
se afastar da vida do crime. Trabalhou com obras e como técnico de ar condicio-
Diante de uma transformação tão radical, aos 14 anos, Rodrigo foi expulso de
nado, mas suas novas ocupações não duraram muito tempo. “Quando você se
casa. Sem ter onde morar, procurou uma casa o mais rápido possível. Sozinho,
envolve com roubo e negócios assim, parece que é melhor roubar. Eu trabalhava
precisava agir como adulto para sobreviver. A essa altura, o menino já era temido
um mês ou dois, parava e voltava. Não tinha compromisso. Era a mesma coisa
por boa parte da vizinhança. “Quando era adolescente, eu era alto e forte, tinha
trabalhar ou não. Pensava: ‘se hoje eu não trabalho, vou ali, faço uma fita e pron-
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to’. Eu assaltava residência, comércio, esses negócio”.
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passou a não concordar com as escolhas do marido e isso gerava muitos conflitos.
No meio dessa vida desregrada, Rodrigo percebeu que nem tudo era ruim.
“Quando conheci ele eu sabia, mas era adolescente e não ligava muito. Depois
Foi quando conheceu Gislene, uma menina quatro anos mais nova do que ele.
que fui morar com ele passei a não aceitar muito, esse era o motivo da maioria
“Ele passava na minha rua e minha irmã sempre falava dele. Eu tinha 15 anos.
das nossas brigas”.
Ele foi na minha casa pedir um copo de água, beijou a minha irmã e só depois eu
Durante um desses assaltos, no dia 11 de dezembro de 2008, às 8 horas da
comecei a ficar com ele”. Rodrigo sabia que nem todos aprovavam o namoro. “A
manhã de um sábado, próximo ao Jabaquara, Rodrigo foi surpreendido pela
gente começou a ficar. Depois, ela pediu pra namorar comigo. Minha mãe falava
abordagem de um policial. Ele conta que o homem, sem dizer nenhuma pala-
pra ela arrumar outro homem, porque eu não tinha compromisso com nada”.
vra, o atingiu com um tiro pelas costas com a intenção de matá-lo. “O policial
Namoraram por um tempo e depois, em 2003, com 21 anos, resolveram se casar.
veio à paisana, eu nem sabia que era policial. Ele não me abordou, nem deu voz
Na época, ela tinha apenas 17 anos, mas eles se mantiveram firme nessa decisão.
de prisão, só atirou em mim. Com o impacto do tiro, eu caí no chão, de frente.
O sogro sempre foi contra, sabia que a filha não agia de forma muito correta e
Ele queria me matar, quando o companheiro dele chegou e não deixou”. Tom-
temia que as influências do rapaz piorassem seu comportamento. “O pai dela
bado ao chão, imóvel, aquele homem que causava espanto aos vizinhos agora
não me aceitou. Pra ele, a filha também não valia nada antigamente, por tudo
não tinha mais controle sobre a própria vida, não sabia como reagir. Naquele
que ela já fez, aprontou bastante também”.
momento elevou seu pensamento a um ser superior que, lá no fundo, sabia que
A união não foi nada formal: sem papéis ou cerimônias, os jovens resolveram
existia. “Eu pensava que era o fim, porque o policial falava que iria me matar.
apenas morar juntos. Pouco tempo depois, descobriram que um filho já estava a
Ali eu comecei a pensar, eu sabia que existia um Deus, comecei a falar com Deus
caminho. “Eu fiquei feliz, era tudo o que eu queria. Não foi planejado, mas foi
pra me salvar. Como um pai que sempre andou ao meu lado, naquela hora eu
esperado. O Rodrigo também queria muito a criança”. Ainda em 2003, nasceu
precisei e ele não deixou que eu morresse”.
Juan Pablo, o único filho do casal. Rodrigo estava tão imerso no mundo do cri-
A família de Rodrigo entrou em choque, exceto sua esposa que, no íntimo,
me, que isso refletiu até no nome da criança. “Coloquei esse nome no meu filho
já aguardava uma notícia ruim. “Eu tava na casa da minha mãe, procurando
em homenagem a Juan Pablo Escobar, um colombiano do cartel de Cáli, que
um lugar pra morar e ir embora. A gente já tinha separado algumas vezes. Tava
era fornecedor de droga. Pra você ver como eu era bem cabeça dura mesmo”.
dormindo, quando a mãe dele me ligou, falando que ele tinha levado um tiro e
Rodrigo ficou feliz com a chegada do menino, era um pai orgulhoso, mas nunca
estava preso. Não foi uma surpresa pra mim. Ele vivia na rua, nessa época ele
tinha tempo para a criança. Ele era distante e não acompanhou seu crescimento.
passava a semana fora. Eu esperava alguma coisa por causa da vida que ele leva-
“Eu perdi muito tempo da infância do meu filho, eu sinto falta disso. Queria ter
va. Quando aconteceu eu levei um susto, mas já imaginava”. A partir daquele episódio, a história de Rodrigo teve uma drástica mudan-
sido um pai mais presente”. Nem os conselhos do sogro, nem os da mãe ou mesmo a paternidade mu-
ça. A bala o atingiu em um ponto crítico, perfurou o pulmão e se alojou atrás
daram o comportamento de Rodrigo. Roubar era um hábito corriqueiro em sua
da coluna. Devido à situação em que foi abordado, foi levado para a delegacia
vida. Não envolvia a esposa nos crimes, preferia que ficasse em casa, cuidando
e enviado para a prisão, o que o impediu de receber socorro imediato. Isso re-
do filho. “Se ela se envolvesse demais comigo, poderia estar em outro sentido da
sultou na perda dos movimentos das pernas e recebeu a notícia de que, a partir
vida agora”. A convivência entre o casal tornava-se cada vez mais difícil, a esposa
dali, teria que se locomover com uma cadeira de rodas. “Se no momento do
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disparo eu tivesse um atendimento de socorro do SAMU, de uma ambulância,
muito tempo acamado, não conseguia ficar sentado. Eu apaguei não sei quanto
eu acredito que não estaria andando perfeitamente, mas ficar de pé, ao menos,
tempo, durante o banho, a água estava pelando. Acordei achando que estava no
eu conseguiria”.
banheiro de casa e gritei: Mãe!”.
Além de lesionado, Rodrigo deveria cumprir sua pena, pagar a dívida que ti-
Apesar de se sentir sozinho naquele lugar, recebeu apoio total da esposa.
nha perante a sociedade. Foi preso antes mesmo de realizar qualquer tratamento
“Eu vi aquilo tudo pelo lado espiritual, como uma mudança. Eu me conformei,
para reabilitação. “Eu fui pro Sabóia, lá eu fiquei algemado na grade da janela.
não foi uma reação de tristeza, enfrentei como um recomeço, sabia que ele iria
Eu tava no hospital com escolta policial. Eu passei doze dias lá. Não fiz cirurgia,
começar uma nova vida”. Gislene lhe mostrou lealdade e não o abandonou na-
eles colocaram um dreno no meu pulmão pra retirar o sangue acumulado. Eu ia
quele momento tão difícil. “Ela foi me visitar e eu falei: ‘se você quiser me largar,
morrer de hemorragia interna, tinha só vinte por cento de chance de sobreviver,
arrumar outro homem pode arrumar. Fica tranquila que eu não vou achar nada
tava quase morrendo. Me deixaram lá e falaram: ‘coloca o tubo aí e vamo ver se
demais, porque quantas vezes eu deixei você falando isso ou aquilo’. E ela falou:
ele vai sobreviver’. Não extraíram a bala, disseram que era uma cirurgia de risco,
‘Não! Já que Deus colocou você na minha vida, vou ficar com você até o final’.
que eu poderia perder parte da movimentação dos meus braços. Só retiraram a
Eu achei bonito da parte dela, eu vi que ela tem caráter. Ela me mostrou que era
bala após três meses. Depois fui encaminhado para o COC no Carandiru, um
mais que uma esposa, uma companheira”.
hospital penitenciário igual uma cadeia. Dizem que é hospital, mas você não tem
Rodrigo sabia que poderia não resistir se ficasse ali por muito tempo, conse-
cuidado nenhum lá”. Rodrigo atribuiu sua rápida recuperação à sua fé. Acredita
guiu um advogado e em três meses foi absolvido. “O advogado me tirou. Eu era
que o fato de ter apelado a Deus no momento de aflição lhe permitiu ficar vivo.
réu primário. Eu nunca tinha sido preso, nunca tive nenhum delito, assim você
“Estava quase morrendo. Clamei a Deus, disse: ‘se o Senhor me salvar eu vou
sai mais rápido. Mesmo tendo sido flagrante, eu estava em uma cadeira de rodas
te servir’. Fiquei recuperado muito rápido. O médico chegou pra minha mãe e
e nunca tive passagem na polícia nem por roubo, nem por homicídio, nem nada.
disse assim: ‘seu filho tem um pulmão excelente, ele quer viver’. Como eu podia
Então foi mais fácil me tirar de lá”. O pesadelo de estar em uma prisão chegava
ter um pulmão excelente se usava droga, fumava cigarro, bebia, ia pra baladas?
ao fim. Esse período foi de reflexão: ele pode ver o mau que causara a tantas pes-
Tive 15 anos da minha vida no tráfico. Se tive uma boa recuperação, foi Deus
soas e concluiu que não queria voltar a cometer os erros do passado. “Hoje, meio
que agiu na minha vida, não foi um pastor que me aproximou dEle, foi a aflição,
que dou uma risada irônica, porque penso em todas as pessoas que fiz passar por
quando eu estava entregue ao matadouro”.
um trauma também, naquela situação de ser abordada, de ser vítima de um as-
Rodrigo não conseguia processar tudo aquilo que lhe acontecia. Mesmo já
salto. Depois que aconteceu tudo isso comigo, que fiquei cadeirante, parece que
tendo cometido uma série de crimes, a prisão era um ambiente novo e desco-
dei uma acordada pra vida. Mudou muito, porque esse pensamento de vício eu
nhecido para ele, uma realidade incomum. “Os presos me ajudavam. Lá tinha
não tenho mais, esse negócio de ficar sempre em malandragem acabou”.
uma galeria com 70 quartos e dois salões grandes onde ficavam os tetra e os
A volta para casa foi marcante para seus parentes. “Foi bom e ao mesmo
paraplégicos. Tinha ala A e ala B. Eu ficava na ala B, porque na outra só tinha
tempo difícil. Ali eu tive noção de como ele estava, a ficha caiu. Ele tinha feridas
pessoas com doenças contagiosas, ninguém podia passar pra lá”. Algumas me-
por ter ficado tanto tempo acamado. Nos primeiros dias ele ficou na casa da mi-
mórias ainda são recentes na mente do jogador. “Me lembro de uma história que
nha sogra, porque a casa da mãe dele é melhor e ele ainda estava muito debilita-
estava tomando banho na cadeira e apaguei do nada, desmaiei. Pelo fato de ficar
do. Foi quando ele tomou o primeiro banho, eu olhei aquilo e achei um absurdo,
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Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
minha pressão caiu. Mesmo assim, nunca me peguei em prantos por esse moti-
equipe pra você ir é o Águias’. Eu pensei bem e falei: ‘é melhor eu ir pro Águias,
vo. Hoje eu penso que ele teve oportunidade de mudar enquanto andava, mas
lá tem pessoas sérias, que treinam’. Eu também não visei só o clube, eu visei mais
precisou acontecer isso”. O filho do casal, muito criança na época, foi marcado
lá pra frente, pensei em ter uma possibilidade de ser convocado pra Seleção”. O
pela imagem do pai retornando ao lar. “Foi emocionante ver ele de cadeira de
time em que jogava não tinha patrocínio e Rodrigo já buscava outras alternativas
rodas. Fiquei triste, porque ele não ia mais andar, mas eu já me acostumei com
para melhorar seu desempenho.
ele assim. É melhor agora do que quando ele estava no mundo”.
Rodrigo considerava o Águias um desafio. Queria crescer, ser um atleta com-
Oito meses após ter saído do Hospital Penitenciário, já no ano de 2009,
pleto, mostrar que tinha qualidades suficientes para pertencer à equipe. “Quan-
iniciou seu processo de reabilitação na escola São Francisco. Ele começou a fa-
do jogava no HC, as partidas que me marcavam eram contra o Águias. Eles
zer fisioterapia para se adaptar à nova condição. Passou mais de um ano em
ficavam até meio revoltados porque toda hora eu metia bandeja neles. Acho que
tratamento antes de conhecer o basquete. Foi difícil se acostumar com a cadeira
foi por isso que eles me chamaram”. Foi difícil se separar dos amigos de equipe,
de rodas, não conseguia se movimentar direito. Às vezes pensava que ficaria pa-
mas era uma necessidade. Meire, técnica do Águias, o convidou a participar do
ralisado para sempre. “Não dava pra eu fazer mais nada, pela dificuldade que
grupo. A proposta foi aceita e ele entrou no time em março de 2012 como ala.
eu tinha pra sair, achava que era só fisioterapia. Ficava só na porta de casa. Era
“O HC sempre foi legal pra mim, formei uma família, foi até difícil sair de lá.
difícil ficar transitando de um lado para o outro”.
Tive oportunidade de ir para o CAD-SP ou para o Magic Hands, mas achei o
Como sempre foi um homem ativo, não se permitiu ficar imóvel em uma cadeira de rodas. Teve seu primeiro encontro com o esporte no próprio hospital em
Águias a melhor opção. Eu queria vir para cá para aprender, para amadurecer e pegar experiência”.
que fazia tratamento. Brincava jogando bolas para o ar, quando uma estudante
Ele temia não ser aceito na nova equipe, eram pessoas com as quais nunca
de Educação Física, estagiária do Hospital das Clínicas, conhecida como Jaque,
tinha se relacionado. Mesmo assim não se intimidou, sabia da sua facilidade em
percebeu seu talento e o apresentou ao time de basquete adaptado do Hospital.
fazer amizades. “Me dou bem com todos. Tive medo de vir para cá, porque me
“Eu tinha interesse em fazer algum esporte adaptado. Não queria ficar parado
falavam que teria dificuldade de me enturmar. Fui bem aceito no Águias, não
dentro de casa, vegetando. Quando eu fui ver já estava no basquete. Eu saí de
tenho desavença com ninguém”.
casa uma, duas, três vezes e vi que não era difícil. Comecei a encarar a vida”.
Mesmo sem ter sido convocado para a Seleção e com pouco tempo de ex-
Chegou ao time com vontade de evoluir profissionalmente, recebeu várias
periência, Rodrigo já se considera um bom jogador. “Sou muito guerreiro, não
dicas de atletas mais experientes. Um desses jogadores foi o ala Alex Gomes, por
desisto. O meu ponto forte é assistência e corta luz. Meu esforço, minha inteli-
quem Rodrigo tem grande admiração e respeito. “Ele me ensinava a jogar no
gência e a minha força me fazem ser uma pessoa produtiva. Posso não acertar
HC. Eu me espelho vendo ele jogar. É um ala forte e joga muito. Atualmente está
cestas no dia, mas sou inteligente taticamente, então posso fazer muita assistência
no Magic Hands”. Rodrigo criou um vínculo de amizade com os jogadores do
e posso ajudar o time”.
primeiro time onde jogou, mas ele tinha pretensões ainda maiores: queria fazer parte da Seleção Brasileira de basquete adaptado.
Rodrigo procura melhorar seu desempenho a cada partida e preencher as falhas que ainda identifica em suas jogadas. “Tenho que melhorar bastante o
Em uma competição, no estado do Recife, teve seu primeiro contato com o
meu arremesso. Não no treino, porque no treino consigo ter uma margem boa
Águias da Cadeira de Rodas. “A minha treinadora Maria falou assim: ‘a melhor
de acerto. Tenho que melhorar no coletivo, porque não fico parado, sozinho e
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Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
sem marcação. E tem aquela certa ansiedade de você prever uma coisa que não aconteceu ainda. Você acaba ficando ansioso e se precipita. Tenho que pegar mais experiência, mais ritmo”. A visão da técnica Ana sobre Rodrigo confirma a avaliação que ele tem de si. “Ele é realmente muito persistente no que faz e o crescimento dele vem disso: da persistência. É um jogador forte fisicamente. O ponto negativo é o pouco volume de jogo. Então, quando ele tiver um maior volume de jogo, ele vai ganhar essa experiência necessária para o alto rendimento atual do Águias. O Rodrigo é um jogador que já pode pensar e buscar para estar na Seleção”. O basquete representa para o jovem jogador uma mudança crucial em sua vida, sente-se uma pessoa melhor dentro de quadra. “Eu poderia estar trabalhando em outro lugar ou ficar dentro de casa, mas não estaria feliz. O basquete, minha família e Deus me fizeram viver de novo”. Em abril de 2012, Rodrigo foi convidado a participar de um comercial de um grande banco. “Eu nunca pensei que iria jogar basquete adaptado. Comecei a desenvolver dentro das minhas possibilidades e tive a oportunidade de fazer um comercial. Eu achei legal, diferente. Até andando, eu nunca achei que fosse fazer um comercial.
***
Imagina numa cadeira de rodas. Você se sente feliz, orgulhoso, diferente com coisas desse tipo. Mas é só uma propaganda, simples assim”. Para o filho, ver o pai na televisão, foi motivo de festa. “Eu gostei demais de ver meu pai na televisão. Fiquei orgulhoso, falei pra todo mundo na escola. Eu falei assim que meu pai tinha um comercial que ia passar todo dia no canal cinco. Todo mundo assistiu”. Rodrigo se sente pai, esposo e filho diferente de tempos atrás. “Meu pai hoje em dia tem orgulho de mim, não me fala porque é meio fechado, mas conta para os outros. Aquela mágoa que eu transmiti pra ele está passando, com o tempo nosso relacionamento vai se fortalecer mais”. Além de se reaproximar do pai, Rodrigo se sente feliz em ver seu filho crescer e mais ainda em saber que a criança o vê envelhecer. “Meu pai era bem magrinho e só fumava, não brincava comigo, não ficava em casa. Eu gosto mais dele agora”. Rodrigo luta pela oportunidade de conquistar a tão sonhada vaga na Seleção. Pelo desempenho apresentado dentro de quadra, falta pouco para alcançála. “Tenho garra e determinação para conquistar o que eu desejo, minhas carac158
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Leandro
terísticas me fazem uma pessoa forte”.
Dedicação e determinação o definem. Atento a cada instrução dos técnicos, faz exatamente o que é exigido durante os treinos. A bola está em jogo e a agilidade com que ele maneja a cadeira de rodas deixa o adversário perdido na marcação. Com a posse da bola, focado, respira fundo, mira na cesta e arremessa. Não acertou. A expressão de autorreprovação pelo erro mostra que não vai ficar assim. Enquanto a bola não cumprir o seu papel ao sair das mãos de quem a manipula, ele pretende não parar. Leandro Mota Santana, 29 anos, nascido em Fortaleza, a capital da Terra do Sol. Passou por situações atípicas quando criança e por isto tem poucas lembranças da infância. A memória foi reconstruída ao longo dos anos com as histórias que ouvia de parentes e vizinhos. Certa tarde, Leandro brincava com alguns amigos da rua. A moça que trabalhava na casa dele pediu ajuda para jogar alguns sacos de lixo na lixeira que ficava do outro lado da avenida. A Prefeitura realizava uma obra de saneamento nessa avenida de mão dupla. Ele atravessou com a mulher, mas na volta, empolgado com a obra, se descuidou e foi atropelado por um caminhão. Leandro tinha apenas sete anos e foi levado para o hospital em estado grave. Após a análise médica, teve de amputar a perna direita. Conservar aquele membro poderia trazer doenças infecciosas como tétano e prejudicar outras partes do corpo do menino.
“Ela provou mais uma vez que me ama. Isso é amor! Ela estava em concordância com o marido, sabendo que ele tinha um sonho que estava prestes a se realizar: jogar em uma equipe de São Paulo, fazer treinamentos mais fortes e daqui uns dias, quem sabe, estar na Seleção”.
Com a cirurgia, algumas complicações surgiram e Leandro ficou isolado durante 13 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI). Sair da UTI “foi um milagre de Deus”, Leandro considera que essa conquista foi graças à fé de sua mãe, Inês. Mesmo fora de risco, os tratamentos eram constantes, além de outras cirurgias às quais foi submetido. A criança comum, apaixonada por futebol, passou dois anos de sua vida no leito do hospital, transferido da sala de cirurgia para o 161
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Nas Asas do Águias
quarto e vice-versa. A recuperação foi lenta e dolorosa. “Eu não me lembro de
Com 14 anos, a rotina monótona entre casa, escola e igreja não o empol-
muita coisa, mas graças a Deus, desde criança meus coleguinhas gostavam de
gava mais. Precisava de algo novo. Foi aí que recebeu o convite de um amigo
mim e queriam saber como eu estava. Teve até um colega que invadiu o hospital
para conhecer a Associação para Deficientes Motores do Ceará (ADM-CE) e
pra me ver, porque como ele era menor não podia entrar sozinho pra me visitar.
praticar natação. O amigo Edvaldo Prado atualmente é um paratleta recordista
Ele acompanhou minha mãe e aproveitou que ninguém viu, pegou o elevador
de natação que já defendeu o Brasil em algumas competições. Leandro, por sua
e foi subindo. Foi uma cena muito marcante na minha vida porque realmente
vez, não se adaptou ao esporte na água, a falta de fôlego e o peso acima do limite
ele se preocupava comigo. Era um amigo de verdade pra ter feito tudo aquilo
estabelecido para a modalidade, o fizeram parar. Ele queria mesmo um esporte
pra me ver. Ele me viu, ficou super feliz e passou um tempo lá comigo, mais ou
com bola. “Quando eu era pequeno, antes de acontecer o acidente comigo e per-
menos uma meia hora que era o período da visita”.
der a perna, jogava muito futebol, então eu queria contato com bola”. Edvaldo
Em 1993, aos 10 anos, Leandro recebeu alta e pode voltar para casa. Ter o
apresentou a Leandro o basquete em cadeira de rodas. “A primeira vez que fui
sol refletido no rosto era gratificante. “Quando voltei a ver o mundo, tudo o que
no treinamento de basquete na ADM-CE foi paixão à primeira vista. Quando
eu mais queria era viver”. O período de adaptação não foi fácil. Não ter uma
me sentei na cadeira de jogo e achei que era fácil, aí vi o tamanho da dificuldade
perna implicava dificuldades como locomoção, independência para fazer coisas
que era jogar o basquete em cadeira de rodas, porque primeiramente você pre-
simples e principalmente os limites na hora da diversão. A partida de futebol en-
cisa ter equilíbrio com a cadeira pra depois se equilibrar com a bola. Não foi tão
tre os amigos da rua deixou de fazer sentido para ele. No mesmo ano em que saiu
fácil. Foi aí que tive meu primeiro tombo: caí da cadeira de basquete. E foi onde
do hospital, Leandro voltou para a escola. O pai dele, Miguel, o levava e buscava.
tudo começou. Me equilibrei mesmo na cadeira depois de um ou dois meses e só
Quando, por algum motivo, não podia ir, esperava na porta de casa, preocupado.
depois fui ter contato com a bola”.
“No colégio, tive que aprender a lidar com diversas situações. Criança quando
Leandro sempre andou com o auxílio de muletas. Usou prótese por algum
perde algum membro devido a um acidente tem mais facilidade de se acostumar
tempo, mas não se adaptou. Ali na quadra, era o primeiro contato dele com a
com isso. E pra mim não foi tão ruim, sempre tive amigos que realmente se preo-
cadeira de rodas. A sincronia durante o jogo e o barulho do choque entre as ca-
cupavam. Na hora do intervalo, o pessoal sempre gostava de estar comigo pra eu
deiras foram motivos de encantamento e decisão. Era o que ele queria. “A bate-
não ficar triste”. Mas como em todo bairro sempre existe uma criança pentelha,
ção das cadeiras faz parte do esporte de contato. Vi pessoas com deficiência pior
um garoto passou a perturbar Leandro, quando ele voltava da escola. O menino
do que a minha que eram felizes por estar praticando aquele esporte. Queria o
aproveitava a companhia da turma e o chamava de “saci”, além de ofendê-lo por
mais rápido possível sentar na cadeira e estar ali com o grupo para jogar e viajar.
não conseguir correr como as outras crianças. Leandro não costumava chorar
Graças a Deus tive um apoio muito grande da equipe e dos treinadores. Eles me
e guardou aquelas provocações para si, até que um dia, ao voltar da escola, ele
receberam muito bem”. Apesar da dificuldade de adaptação, a cadeira de jogo
encontrou o garoto sozinho. Ele pegou o menino, derrubou-o no chão e colocou
logo passou a fazer parte do atleta. Em quadra, os dois tornavam-se um. Era
o toco que restou de sua perna amputada no pescoço do garoto para dar-lhe uma
apenas o início da carreira esportiva de Leandro como pivô do time de basquete
lição. Com o menino já roxo por falta de ar, Miguel chegou e apartou a briga.
em cadeira de rodas da ADM-CE.
Naquele dia Leandro apanhou do pai, porém nunca mais recebeu nenhuma provocação por parte dos meninos do bairro. 162
Os treinos foram conciliados aos estudos. O jogador concluiu o ensino médio e fez alguns cursos na área de informática. Leandro morava na região me163
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tropolitana de Maracanaú e praticava o basquete em Fortaleza. Com o apoio
pedirem a dele”. Ticiana estava sempre preparada para a reação das pessoas e
dos colegas do time, estava decidido a seguir como atleta pelo resto de sua vida.
não se importava com o desprezo que alguns olhavam para os dois. Ela levava
Iria atrás do que fosse preciso para realizar o sonho. O grande passo nessa nova
consigo uma lição que aprendera com o pai. “Meu pai era negro e sofreu muito
jornada foi a participação do primeiro campeonato. Com apenas 17 anos e em
preconceito, ele falava muito pra mim: ‘Ticiana, quando você for procurar uma
seu primeiro jogo como profissional, Leandro se mostrou destaque e apesar da
pessoa para viver com você, veja se esta pessoa tem caráter. Não precisa ser boni-
pouca experiência, foi convocado para a Seleção Brasileira Sub-20.
to, não precisa ser loiro, não precisa ser negro, não precisa ter carro, não precisa
Nesse mesmo período o atleta teve outra conquista, fora de quadra, mas
ter dinheiro, basta ele ter caráter. Minha filha, se ele tiver caráter ele tem tudo’.
que influenciaria sua vida para sempre. Numa noite, depois do treino, Leandro
Então, quando a gente ficou junto e eu comecei a conhecer o Léo eu lembrava
e alguns colegas se reuniram para comer em uma barraca de comidas típicas em
dessas coisas que meu pai dizia e eu nunca tive vergonha dele”.
uma feira de Fortaleza. Por causa da frequência com que comiam ali, os joga-
Namorar um atleta sempre foi motivo de orgulho para Ticiana que acompanha-
dores tornaram-se amigos das donas da barraca e Leandro, como sempre muito
va os treinos e jogos, mas como em todo relacionamento algumas discussões surgiam,
tímido, ficava na dele e mesmo assim conquistou uma atenção especial. Ticiana,
por causa do esporte. “O Léo é uma pessoa muito responsável com o que faz. Ele
filha da dona da barraca e sempre muito atenciosa e sorridente, trabalhava com
ia para os treinos doente, com febre, com dor de dente, com torcicolo. Podia estar
a mãe. A aproximação foi lenta, começaram a conversar aos poucos e desco-
com a dor que fosse que ele ia jogar. Dor de cabeça era besteira, ele ia mesmo assim.
briram juntos que existia um sentimento entre os dois. “Ele era muito fechado
Aí quando voltava do treino e falava que tinha piorado, eu reclamava. E era uma
mesmo, não sabia sorrir. Talvez fosse por causa dos traumas, talvez tivesse medo
confusão. A gente começava a discutir a relação em torno disso. Perguntei se um
de que eu não fosse corresponder ao sentimento dele”.
dia ele tivesse que escolher entre mim e o basquete, ele começou a rir e disse que me
Aquele não seria o primeiro relacionamento de Leandro. Quando adoles-
escolheria. Mas eu falei: ‘Léo, sei que você escolheria o basquete’”.
cente, teve uma namorada que tinha vergonha dele por ser amputado. Os dois
Leandro estava realizado no esporte e feliz pelos três anos de relacionamento
se davam bem, se não estivessem em público, diante de outras pessoas a menina
com Ticiana. Os dois estavam noivos, quando a notícia do falecimento do pai
o tratava mal e agia diferente. Uma vez os dois estavam de mãos dadas e com
dele o desestruturou. O apoio da noiva e da sogra foram essenciais neste período,
a aproximação de alguns colegas, ela soltou a mão dele. Foi o fim de um rápido
visto que, por motivos pessoais, a mãe do atleta se mudou para o Maranhão. Des-
relacionamento e o início de um coração machucado e desconfiado. O começo
de então, Leandro perdeu totalmente o contato com a mãe. Marlenuvia, sogra
do namoro com Ticiana foi um voto de confiança e serviu para mostrar que nem
do jogador, o acolheu como filho e abriu as portas da casa para ele. Leandro e
todas as pessoas são iguais. “Eu era muito livre e quis mostrar pra ele o outro lado
Ticiana passaram a morar juntos e constituíram uma família. Letícia e Leandro,
da vida. A gente viajava, ia para as praias do Ceará, dormia na praça. Era uma
os filhos, vieram como presentes divinos para alegrar o casal. “Estávamos juntos
aventura, o que ele não tinha vivido, ele começou a viver”.
há três anos e aí decidi parar de tomar anticoncepcional porque tinha realmen-
Ticiana é cinco anos mais velha que Leandro, mas a diferença de idade
te certeza de que a gente ia ficar junto. Trabalhávamos e nos sustentávamos,
nunca foi um empecilho. “Não tivemos problemas de preconceito por idade,
então achei que já era hora da gente começar a tentar e um ano depois foi que
porque eu aparento ser mais nova. Já aconteceu de a gente ir pra lugar onde era
consegui engravidar. Quando estava com quatro meses de gravidez da Letícia,
proibida a entrada de menor de idade e pedirem a minha identidade, mas não
perdi o emprego. E aí a gente morava na casa da minha mãe e o salário do Léo
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Nas Asas do Águias
era basicamente pra comprar fraldas e remédio. Com o tempo, o Léo conseguiu
Ele passou uma semana ensaiando para dar a notícia para a esposa, pois
outro emprego e pouco depois voltei a trabalhar, bem na época que engravidei
tinha medo de que ela não o apoiasse. No final de semana, na hora do lanche da
do Leandro. E eu não falava pra ele, mas cheguei a pensar: ‘será que meu filho
tarde, Leandro disse a Ticiana que tinha algo para contar. “Eu falei: ‘você sabe
vai nascer sem uma perna?’. Mas isso era impossível, porque o gene era de uma
que quando te conheci eu estava no esporte adaptado, estava no basquete jogan-
pessoa normal e meus filhos nasceram perfeitos e com saúde. Foi um período
do há algum tempo. E você sabe do meu sonho de jogar num grande time, de
difícil, mas hoje eu olho pra trás e sei que valeu a pena”.
estar representando um dia o nosso Brasil. Eu recebi um convite de uma equipe
Leandro não abandonou o basquete, mas agora tinha também a responsa-
lá de São Paulo, uma das melhores equipes chamada Águias’. Eu esperava uma
bilidade de manter a família. Disposto a trabalhar, não tinha dificuldades com
resposta negativa, mas no momento ela falou: ‘O que é que você está esperando?
empregos. Já foi operador de caixa em uma rede de supermercados, assistente de
É o seu sonho. Então vá!’”. Ticiana o apoiou, o que foi essencial. “Só Deus sabe
marketing e operador de monitoramento de uma empresa de segurança. Che-
como eu falei, porque era uma decisão muito difícil e estava com o coração aper-
gou a trabalhar em duas empresas simultaneamente. Não importava como, mas
tado falando aquelas palavras, eu o incentivei ao máximo. Jamais ia querer olhar
o compromisso de honrar a família precisava ser cumprido. Ele nunca deixou
para trás e falar assim: ‘se ele tivesse ido...’. Eu falei: ‘vai e veja como é, depois a
faltar nada dentro de casa.
gente decide como fazer com o resto’. Para os meninos foi muito difícil, porque
Em 2010, com 12 anos de experiência no basquete adaptado, durante o Campeonato Norte-Nordeste de Basquete em Cadeira de Rodas, ele recebeu
ele era um pai muito presente. Às vezes eu vejo eles chorando, mas nem falo para o Léo. Mas na época da decisão eu fui a primeira a incentivar”.
o título All Star, premiação para o melhor pivô da competição por classificação
Leandro não sabia como conter a felicidade, foi um momento de muita emo-
funcional. Devido ao destaque na partida, Leandro recebeu um convite para
ção. Já podia enxergar, com o apoio da esposa, o sonho se materializando. “Ela
jogar pelo time ADECE e aceitou. Com apenas um ano de equipe, o jogador
provou mais uma vez que me ama. Isso é amor! Ela estava em concordância
brilhou novamente e na disputa pelo Nordestão recebeu pela segunda vez o títu-
com o marido, sabendo que ele tinha um sonho que estava prestes a se realizar:
lo All Star. Foi durante um treino na ADECE que Leandro conheceu Anderson,
jogar em uma equipe de São Paulo, fazer treinamentos mais fortes e daqui uns
atleta do Águias que estava passando as férias em Fortaleza.
dias, quem sabe, estar na Seleção”. A grande alegria da família foi interrompida
Anderson conversou com o técnico da equipe, para que pudesse treinar com
algumas vezes por uma profunda tristeza, por saberem que não estariam tão
o time naquele período. A determinação e explosão do atleta em quadra chamou
próximos como sempre foram. Os passeios aos finais de semana e as pizzas aos
a atenção de Anderson, visto que o Águias estava precisando de um jogador 4.0
sábados à noite teriam de ser adiados para uma data não determinada. Mas já
ou 4.5. E o primeiro convite para integrar uma das maiores equipes de basque-
estava decidido, Leandro partiria para São Paulo.
te adaptado de São Paulo foi lançado. Leandro ficou muito feliz e enxergou a
O dia da despedida foi o mais complicado. Ticiana ensinou Leandro e as
oportunidade da concretização do sonho de jogar por uma equipe de destaque
crianças a viver cada emoção na sua hora. Na semana anterior à viagem eles
nacional, mas a decisão de aceitar ou não o convite seria feita em família. “Falei
aproveitaram de todas as formas possíveis. “No último dia, quando ele ia embora,
que sim, que por mim com certeza, mas que primeiramente precisava receber o
a gente se juntou e demos as mãos pra orar. A gente orou e chorou. No momento
aval da minha família: minha esposa e meus filhos, porque não dependia só de
que a gente chora, Deus vai nos fortalecendo”. No aeroporto Leandro quase não
mim. Se eu tivesse o apoio deles, iria pra São Paulo”.
se conteve de chorar, deixar os filhos, a esposa e a sogra, que ele tem como segun-
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da mãe, não foi uma tarefa fácil. “Esse é um momento que não dá pra esquecer.
Nas Asas do Águias
mostra a que realmente veio.
Foi complicado, eu estava tenso e me perguntava se era aquilo que queria mesmo.
Maltratados pela saudade, Leandro e Ticiana se falam todos os dias por
Por muito tempo sonhei com este momento e o dia chegou, mas não imaginei que
telefone. Ela tenta fazer com que ele não perca o foco. Ele procura mostrar que
seria o mais complicado da minha vida, porque antigamente eu era solteiro, não
está dando o melhor por amor à família. O plano de ambos é daqui a um ou dois
tinha filhos e apareceu essa oportunidade logo quando eu já tinha família e ficou
anos estarem morando juntos novamente, agora em São Paulo. Apesar do bas-
meio complicado. Então o apoio deles foi bacana e, por isso, eu estou aqui. Foi um
quete em cadeira de rodas ter surgido primeiro na vida de Leandro, é a família
momento feliz e triste, mas mais pra feliz do que pra triste!”.
que o norteia nesta caminhada. A esposa busca na memória momentos felizes
Leandro nunca tinha visitado a capital paulista e ao chegar ao aeroporto, em
que a faz ter esperanças de um futuro ainda melhor. “Quando começamos na-
março de 2012, foi recepcionado por Berg e Heriberto, que dedicaram atenção a
morar, a gente só veio andar de mãos dadas três anos depois, porque ele ganhou
ele naquele dia. O primeiro impacto do atleta foi com o frio. “Lá onde eu moro é a
uma ‘perna’, quando começou a usar prótese. Nesse dia chamei minha mãe e os
Terra do Sol, então para sair do sol e ir para o frio, você tem que realmente gostar
vizinhos. A gente ficou andando de mãos dadas e todo mundo chorando”. Lem-
muito do que está fazendo. No meu caso, é o basquete em cadeira de rodas, que eu
branças simples, mas reais fazem com que o apoio aumente e a saudade diminua
sou apaixonado, sou fã e no que depender de mim, vou fazer sempre o meu melhor”.
em busca de um sonho: a realização profissional.
Leandro foi bem recebido também pelos outros atletas e pela comissão técnica. Apesar de pouco tempo de jogo em São Paulo, a avaliação técnica é bastante positiva por ser um jogador forte e dedicado, visto que o volume de treinos da equipe na qual ele se encontrava é diferente do Águias. Como integrante mais novo, a meta de Leandro é contribuir para que o time chegue novamente ao pódio no Campeonato Paulista. “É um elenco forte. Todos os que estão aqui são capacitados. Treinamento de tática e de arremesso. Tudo para alcançar ser campeão paulista, se Deus quiser”. Apesar do desenvolvimento em quadra, a técnica Ana aponta que ainda não encontraram um ponto forte em que Leandro possa se destacar. “Acho que um ponto negativo é a altura dele, porque não é um jogador nem alto nem baixo, então a gente tem que ganhar um meio termo para poder melhorar a posição dele. Temos que encontrar alguma característica mais forte, seja um arremesso, seja infiltração, porque ele não é um jogador tão alto para o nível atual do basquetebol de São Paulo”. A busca pelo aperfeiçoamento do atleta é constante. O terceiro jogo pela equipe Águias foi uma partida do Campeonato Paulista disputada em São José do Rio Preto. Entrou na partida restando um minuto e quarenta segundos para o término. Leandro arremessou quatro vezes e acertou três, somando seis pontos para o time. Aos poucos ele 168
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Nas alturas Fim de jogo. O time executou as jogadas bem feitas, até que, com o soar do apito, pode-se ver o objetivo alcançado no placar e nos corações de cada um. Os jogadores se cumprimentam felizes e satisfeitos. Com gratidão, toda a equipe do Águias se vira para a arquibancada e aplaude os poucos torcedores que, em reverência, retribuem o ato em pé e com muita vibração. Duas décadas depois, os frutos gerados pela nova formação da equipe podem ser colhidos. Ao longo desses anos, cada título conquistado regou um pouco as sementes deixadas pelo caminho e fez crescer um time forte e grande. A força é resultado da união e determinação do time. Quando querem, eles fazem e vencem. A grandeza não se trata de soberba do clube, muito menos do número de torcedores, mas sim do nome. Ainda que fora do pódio, o Águias da Cadeira de Rodas construiu um império no mundo do basquete adaptado. É um time que impactou gerações com vitórias imprevisíveis e com uma estrutura profissional que cresceu e atualmente serve de modelo para outras equipes no Brasil. O divisor de águas, na história da equipe, foi a transição da segunda para a primeira divisão. A partida em Curitiba foi resolvida com apenas um ponto de diferença e foi marcante para a técnica Meire. “O Águias jogou muito e a gente fez uma volta olímpica maravilhosa, chorando, com a taça. Foi aí que a gente subiu para a primeira divisão. O Paulista e Torneio da Amizade eram bons, porque a gente perdia um e ganhava o outro, mas nível de Brasil essa foi uma grande emoção. Eu não conseguia nem dar a volta olímpica, porque fiquei sentada chorando”.
De diferentes maneiras, o basquete adaptado mudou a história de cada dos atletas do “Pai nosso que estás no um céu...”, força que Águias da CadeiraOde Rodas. eles acreditam. “Amém”
Pentacampeão Brasileiro e Octacampeão Paulista, o Águias é a equipe com o maior número de títulos, além de ser Tricampeão Regional. O time teve três anos consecutivos de glória: de 2006 a 2008 conquistou todos os troféus disputa171
Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
dos. Em Recife, a final do Campeonato Brasileiro de 2006 serviu de inspiração
pe durante os jogos. Os acompanhamentos realizados por Neli visam à melhora
para a sucessão de conquistas. A equipe adversária era a Leões de Cadeira de
de cada jogador nestes aspectos. “É aquela coisa que todo mundo sabe, quem
Rodas, na época considerada a melhor do país. O Águias foi para a partida
comanda tudo na nossa vida é a nossa mente. Se você direciona pro positivo,
confiante, mas, ao chegar ao ginásio, sentiu-se intimidado pelas provocações do
pode não acontecer do jeito que você quer, mas errado não vai dar. Pode não ser
outro time e sua torcida, que ocupava mais da metade das arquibancadas. Os
planejado do que jeito que você quer, mas não vai dar errado. Com o negativo,
familiares dos jogadores do Águias, que moram na capital pernambucana se
você atrai mesmo o negativo, é o poder da mente. Então esse exercício eles têm
juntaram, convidaram os amigos e conhecidos e foram assistir ao jogo. Ainda
que fazer continuamente”. E mesmo diante de algumas oscilações, Neli acredita
assim estavam em menor número de torcedores. A bola foi disputada e aos pou-
no potencial do grupo. “O Águias sempre foi o grande time e tem tudo para ser
cos a partida ficava cada vez mais competitiva. Mesmo na casa do adversário e
muito feliz ainda este ano, só depende dos atletas”.
em condições inferiores, o Águias foi motivado pela empolgação da torcida. Os
A técnica Ana admira o profissionalismo da equipe, mas reconhece que isto
gritos, aplausos e vibrações a cada cesta tornaram o momento especial. Naquele
não interfere no relacionamento entre eles. “Claro que somos amigos, conversa-
dia, a vitória e a conquista do título marcaram a história.
mos e até fazemos churrascos, mas é preciso sempre deixar claro esse limite na
As conquistas têm significados diferentes para cada um. O ala Heriberto
área profissional. O que a gente procura fazer é o processo inverso. Temos um
acredita que os títulos constroem a história do grupo. “O Águias é o time que
bom relacionamento dentro das linhas da quadra, então isso automaticamente
mais títulos têm e, apesar de não estar no pódio nos últimos anos, a gente con-
se reflete lá fora. Nosso objetivo é esse: ensinar o respeito na quadra, pra ser res-
seguiu construir uma equipe que ficou por volta de um ano e meio sem perder
peitado lá fora; educar na quadra, pra ter essa educação lá fora”. Para alguns,
pra ninguém, sem perder nenhum jogo: mais ou menos 80 jogos sem perder.
esta convivência preencheu lacunas deixadas por parentes distantes ou ausentes.
Ganhando três títulos importantes por ano: Brasileiro, Paulista e Regional. Na
Tornaram-se uma família. Nilton, o atleta mais antigo do time, expressa grati-
história do basquete não tem outro time que fez isso”.
dão. “Além de ser fonte de trabalho e renda, o Águias para mim é uma grande
É perceptível o melhor desempenho do time, quando motivado pela torcida. Funciona como um combustível, mas nem em todos os jogos o Águias pode
família. Com ele tive a oportunidade de ir para Seleção. Esta equipe é minha segunda família e trouxe de volta minha alegria de viver”.
contar com este apoio. Cada atleta tem a necessidade de ser impulsionado por
De diferentes maneiras, o basquete adaptado mudou a história de cada um dos
algo para apresentar um melhor desempenho na prática esportiva. Se de alguma
atletas do Águias da Cadeira de Rodas. Para alguns o basquete é vida. Poder agir
forma esta motivação deixar de existir, um acompanhamento psicológico é feito
com independência e, mesmo assim, reconhecer a importância do outro. Saber que
com a equipe. A psicóloga Neli atende os atletas de acordo com as dificuldades
existem regras a serem cumpridas, mas desfrutar o prazer da liberdade. Para outros,
apresentadas. “Quando necessário o atendimento é individual, só quando al-
é viver de novo. Segunda chance, nova oportunidade. Fazer outra vez, mas fazer
guém não está bem. Antigamente era mais direcionado no sentido de atender
melhor. É o grande amor. Acordar pela manhã com a felicidade de dedicar todas as
uma pessoa cada dia com horários organizados. Hoje, faço uma manutenção e,
energias em algo que se gosta. É um desafio. Agir além do medo e explorar o desco-
por isso, não tem a mesma frequência de antes. Atendimento em grupo eu faço
nhecido. É a realização de um sonho. Ver os planos saírem do papel. Ver acontecer
quando está mais próximo das competições”.
o que parecia impossível. É porta aberta para novos caminhos.
Muitas vezes, a falta de motivação compromete o desenvolvimento da equi172
A visão de Ana sobre a equipe resume as possibilidades de mudanças que 173
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o esporte tem sobre a vida de uma pessoa. “O Águias é uma equipe referência, que já conquistou muitos títulos e visada pelas equipes adversárias. Mas, acima de tudo, aqui nós somos um time formador de jogadores. Não buscamos atletas prontos, que se destacam na campanha de algum time, para depois vir somar ao nosso trabalho. Nós buscamos jogadores com potencial, para treiná-los, adequar à rotina ao esporte e, depois, colocar pra jogar e poder despontar como atleta. Nós formamos jogadores, mas acima de tudo formamos pessoas melhores. E essa é a melhor parte do esporte no geral. Ele nos permite formar cidadãos”. O Águias da Cadeira de Rodas tem como símbolo uma ave forte e destemida. A águia pode chegar até 70 anos, mas em um momento da vida passa por um processo de renovação. Com certa idade as unhas estão grandes e flexíveis, o bico muito curvo e as penas, velhas e pesadas. Então ela voa para a mais alta montanha onde ficará por um tempo. Lá, cercada de rochas, a águia bate o bico nas pedras até arrancá-lo completamente. Depois espera que outro nasça e com este retira as unhas. Alguns dias se passam e, com as novas garras, arranca todas as penas. A transformação é dolorida, mas o resultado surpreendente. A ave,
***
revigorada, com novas unhas, bico e penas, se prepara para o primeiro voo: o voo da renovação. Do alto, por cima das nuvens, em uma posição de grandeza, a águia enxerga o quanto ainda tem para conquistar. E, com as fortes asas, voa rumo às alturas.
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Um dia na vida do outro 24 horas para conhecer – Elis Faber “Honestidade. É isso que eu quero de vocês esse fim de semana. Pensem nessa palavra, mas não no sentido de devolver o que veio a mais no troco ou de não pegar o que é do outro, e sim no sentido de serem honestos com vocês mesmos, chegar lá e fazer o que sabem. Carreguem essa palavra com o sentido de ser honesto com os companheiros, de dividir o trabalho e buscar sempre o melhor para o grupo”. Eu não teria coragem de gravar caso tivesse uma câmera ou um gravador nas mãos. Me sentiria ainda mais intrusa do que já parecia. Mas a cada vez que lembro destas palavras, é impossível evitar o arrependimento de não ter este conteúdo na íntegra, gravado de alguma forma. Este é um trecho da rápida preleção da técnica Meire, dentro do ônibus que nos levaria a São José do Rio Preto. O jogo era na casa do adversário e a viagem, que começou às 23 horas do sábado, foi umas das maiores experiências que tive nesta caminhada. A oportunidade de viajar com a delegação surgiu alguns dias antes, quando foi marcado o jogo. Os ‘meninos’ sabiam que assistir a essa partida não era apenas uma vontade minha, mas sim de todas do grupo. Então, eles conversaram com a Meire e ele autorizou a nossa ida. Um dia antes da viagem, ela deu o recado mais importante: “Meninas, vocês devem saber que não se pode viajar ninguém de fora conosco. Eu abri essa exceção pra vocês porque estão fazendo um livro sobre nós e nada mais justo do que conhecerem tudo que envolve aquilo
Senti alegria pelo trabalho cumprido, tristeza pelos olhares de desprezo, revolta e descaso e orgulho de ter escolhido aquele time, aqueles homens de grande força e coragem.
com que estão trabalhando. Mas eu peço a vocês profissionalismo”. Confesso que senti um pouco de medo. Me perguntei um trilhão de vezes, se em algum momento, alguma das meninas ou eu fizemos algo que pudesse demonstrar outra intenção que não fosse a de ter um trabalho bem feito. Mas 177
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logo meus pensamentos mudaram de rumo, pois rapidamente ela avisou que o
Após o jogo, o combinado era almoçar para depois pegar a estrada de novo.
jogo seria no domingo, às 10 horas da manhã e que o ponto de encontro para a
A cada novo retorno ao ônibus, foi possível ver a habilidade que cada um ad-
saída seria no sábado à noite, às 22h30, no Baby Barione, clube onde treinam e
quiriu com o passar do tempo para lidar com pequenos obstáculos. O corredor
guardam todos os materiais da equipe.
estreito não impediu que a maioria fosse fazer parte da ‘turma do fundão’, os
Depois de ajudar a colocar as cadeiras no ônibus e deixar todos eles entra-
bancos desconfortáveis não atrapalharam o sono, apesar daquela não ser con-
rem primeiro é que embarquei. Fui a última mesmo em relação as colegas de
siderada a melhor noite de nenhum deles, e principalmente, nem o puxão de
grupo. Sentada praticamente no meio, podia ouvir as brincadeiras e as piadas
orelha tirou o sorriso ou as brincadeiras afiadas dos lábios de cada um.
tanto da galera do fundo, quanto dos que estavam na frente. Mas antes de tudo,
Chegado o local onde seria feito a refeição, ingenuamente separei docu-
veio a preleção, assim que o motorista deu a saída. O silêncio foi geral e a con-
mento e dinheiro, assim como as outras meninas também fizeram. Em nenhum
centração quase se tornou algo material, de tão grande e presente que se fez. E
momento percebi que um jogador do outro time era o motorista do carro a nossa
ao final, o recado que faltava para me tranquilizar de vez: “As meninas vão viajar
frente, nem desconfiei que ele nos levava para sua própria casa. Resultado: nosso
com a gente por causa do trabalho, então peço que vocês se comportem e sejam
almoço foi um churrasco entre amigos, repleto de boa comida, conversa descon-
profissionais, porque elas eu já sei que são”.
traída e muita risada.
Aos poucos, a conversa diminuiu e eu dormi como muitos fizeram. Acordei
Era mais de quatro horas da tarde e alguns já assistiam ao futebol na televi-
quatro horas depois, na metade da viagem quando o motorista fez uma para-
são quando resolveram que estava na hora de pegar novamente a estrada. Foram
da. Nesse momento, a diversão ficou por conta da luta de UFC que passava na
mais seis de horas de viagem dividida entre sono, uma parada, mais conversas,
televisão que estava dentro do estabelecimento. E a gente assistiu de dentro do
risadas e brincadeiras. E mais do que a vitória no jogo, conquistei com as com-
ônibus. Cada um narrando um pouco ao seu estilo, já que não havia áudio. A
panheiras de trabalho mais uma das tantas experiências que pudemos ter ao lado
risada foi garantida.
dos atletas e técnicos do Águias.
De volta à estrada, mais algumas horas de sono. Às sete horas o motorista
A vivência mais próxima nos permitiu conhecer não apenas a rotina es-
parou no estacionamento de um ginásio, no qual tinha levado a equipe anterior-
portiva da equipe. Dividir 24 horas com o time permitiu ver a família que eles
mente, mas o jogo não seria ali. Mais um tempo dentro ônibus e chegamos ao
formaram com o passar dos anos. Foi possível enxergar o lado corajoso e receoso
Clube Amigos dos Deficientes (CAD). O jogo era contra a ADF, considerado o
de cada um, mesmo sem que eles percebessem. Eu só não podia imaginar que a
‘time B’ do CAD. Como a viagem foi mais rápida que o esperado, todos tiveram
principal vivência ainda estava por vir.
tempo para se arrumar e fazer o aquecimento com calma e tranquilidade. O apito do juiz soou. Deixei de lado o trabalho de jornalista para vestir a camisa
50 minutos para vivenciar – Dhaianny Vieira
de torcedora. Acredito que o mesmo tenha acontecido com minhas colegas, devido aos gritos de comemoração a cada acerto ou de repreensão a cada bobeada. O jogo
Meus olhos alcançaram um ângulo jamais enxergado. Novos olhares que
foi morno e posso dizer que esperava mais. Sei que não sou nenhuma expert em bas-
antes nunca havia me julgado. Olhares de pena, olhares de dó, de superação e
quete em cadeira de rodas, mas me senti um pouco quando, na conversa pós-jogo, a
também de raiva. Sim, de raiva. Como se por algum motivo eu tivesse culpa de
comissão técnica pediu mais de empenho na próxima partida.
me encontrar naquela situação.
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No meu caso foi questão de escolha, era uma vivência com os atletas do time
Para subir as ladeiras minha respiração se tornou ofegante, meu cansaço era
Águias da Cadeira de Rodas para entender como fazem o percurso do apartamen-
visível, meus braços pareciam gritar por socorro. O topo da rua demorou a che-
to da equipe até o ginásio Baby Barione, onde treinam duas vezes por semana.
gar. Os carros mal estacionados tomaram a minha frente e dificultavam ainda
Queria entender o que sentem, como utilizam o transporte público, como encaram
mais as extensas subidas.
as ruas esburacadas e as pessoas com suas atitudes e olhares. Sempre os olhares.
Já no alto da rua, a sensação de alívio era bruscamente roubada por uma
Primeiro de tudo era preciso conhecer a cadeira, aprender a fazer curvas,
descida incontrolada. Para uma pessoa que nunca teve contato com a cadeira de
subir guias, me movimentar. Não foi fácil. Tive que treinar um pouco, alguns
rodas seria quase impossível ‘frear’. O risco de me chocar em alguma parede ou
dias antes, para que a experiência desse certo. O atleta Anderson Ferreira se
mesmo com os carros em movimento era muito grande. Eu sabia a todo o mo-
disponibilizou a me auxiliar durante a vivência e me deu dicas de como deveria
mento que poderia usar minhas pernas e parar a cadeira, mas para uma pessoa
manipular a cadeira. O trajeto deveria ser percorrido em aproximadamente 20
com deficiência essa opção não existe, por isso é preciso atenção e habilidade.
minutos, tempo que ele e os colegas de equipe que moram no mesmo local levam
Passado algum tempo, consegui chegar ao ponto do ônibus. Subir no veículo seria mais um desafio. O fato de o ônibus ser adaptado ajudou muito e o cobrador
para chegar ao lugar do treino. Já no apartamento, a primeira missão era chegar até a rua. Os atletas resi-
me auxiliou com prontidão. Dentro do ônibus me senti como objeto em exposi-
dem no quarto andar de um prédio situado no bairro Santa Cecília, no Centro
ção. Pareciam que todos os passageiros me observavam com sentimento de dó.
da Cidade de São Paulo. O elevador que os conduzem até o térreo é pequeno
Uma senhora em particular me viu como atleta. Anderson estava com a blusa da
e estreito, a cadeira de rodas pareceu tomar todo espaço existente naquele pe-
Seleção Brasileira e aquilo chamava a atenção. Após muito nos observar, a per-
queno lugar, me senti acuada. As escadas não eram uma opção, aquele pequeno
gunta surgiu inocentemente: “Meu filho, você foi jogar em Londres esse ano?”.
espaço entre quatro paredes de aço era minha única alternativa. Os segundos
“Não minha senhora, este ano só foi convocado o basquete feminino”. A resposta
passaram devagar até que cheguei à portaria.
de Anderson deu lugar a uma nova pergunta, desta vez voltada pra mim: “Ah!
O mundo do lado de fora pareceu me olhar de forma diferente ao sair do
Então você foi representar o Brasil nas Olimpíadas?”. Na hora fiquei paralisada,
prédio. O fato de estar sentada me proporcionou uma nova visão das coisas tam-
não sabia o que responder, a situação chegou a ficar até meio cômica e falei a
bém: parece que você é pequeno e mais fácil de ser atingido, frágil. Para Ander-
primeira coisa que me veio à cabeça: “Infelizmente não, esse ano não deu, mas
son, que estava ao lado a me orientar, nada parecia difícil. Acredito que os longos
da próxima vez estaremos lá”. A satisfação da senhorinha transpareceu em um
anos de contato com a cadeira lhe renderam muita experiência e essas sensações
grande sorriso. Naquele momento me senti uma verdadeira atleta. Me senti feliz.
já se distanciaram, mas eu me surpreendia cada vez que a roda da cadeira girava.
Ao descer do ônibus, uma longa rua nos levaria até o local do treino. Não sei
À frente, um mundo de subidas e descidas me esperava, as ruas eram um
se fui tomada pela ansiedade, mas parecia que a rua não acabava nunca. O pior
desafio com buracos e pedras que me impediam de passar. Precisei andar entre
é que no asfalto havia um declínio para a esquerda, o que dificultou bastante a
os carros e o medo de ser atingida por um veículo era constante. Meus braços
minha movimentação. Nos arredores, muitas crianças me olhavam curiosas. As
pediam força a cada nova volta que dava na roda para me movimentar. As dores
calçadas esburacadas e cheias de altos e baixos não permitiram a circulação das
começaram a tomar meu corpo, minhas costas e braços estavam fragilizados e
cadeiras, a única opção era a pista, entre os carros. No meio da rua um olhar
em minhas mãos surgiam bolhas devido o contato agressivo com a cadeira.
me foi mais marcante, ele veio de encontro ao meu com um sentimento de fúria.
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Nas Asas do Águias
Nas Asas do Águias
Uma mulher ainda jovem que dirigia se mostrou muito irritada com o fato de cadeirantes pararem o trânsito para conseguirem passar. Parecia que eu era culpada pela cidade não ter estrutura suficiente. Aquele olhar me machucou. Me senti inferior naquele momento. O clube já estava ao alcance dos olhos, bastava apenas subir a calçada e estava findada a experiência. Eu não sabia, mas ali encontraria a maior dificuldade do dia. A calçada alta não possui rampas de acesso e minha experiência em subir guias não era suficiente. No início imaginei que conseguiria. Tentei de todas as formas possíveis até que resolvi pedir ajuda. Anderson tentou me ajudar, assim como tinha auxiliado e até empurrado minha cadeira algumas vezes durante o percurso, mas meu peso não permitiu que ele levantasse a cadeira. Leandro, um dos atletas que acompanhava de longe o ajudou e juntos me puseram em cima da calçada. A cena comum dentro das quadras se repetia na rua, dois cadeirantes ajudaram a levantar um companheiro. Fiquei extremamente irritada naquele momento com o fato de nem o próprio local do treino ser adaptado às necessidades dos jogadores cadeirantes.
***
Dentro do clube a vivência estava terminada. Olhei o relógio e pude constatar que ultrapassei meia hora do tempo estipulado. Naquele momento um turbilhão de sentimentos me tomou. Fui ao banheiro para que ninguém pudesse ver as lágrimas que molhavam meu rosto. Aquelas lágrimas tinham muitos motivos: alegria pelo trabalho cumprido, tristeza pelos olhares de desprezo, revolta e descaso e orgulho de ter escolhido aquele time, aqueles homens de grande força e coragem.
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Aguias
Abertura - Copa Togo 2008
Campeonato Paulista 2012
Orientações durante tempo técnico Gravação Video Show - 2008
Campeonato Brasileiro 2008
Campeonato Paulista 2012
Parapanamericano 2011 - Guadalajara
Jogos
Campeonato Paulista 2012 - Águias x Gaadin Campeonato Paulista 2012 Comissão Técnica
Parapanamericano 2007 - Rio de Janeiro Seleção Brasileira e Seleção Americana
Magic Hands x Águias
Conquistas
Vivência
Ruas Inclinadas Resultados
Transporte Público
Making Off
Problemas de Acessibilidade
Colaboração
As autoras Dhaianny Vieira Carioca, 22 anos. Nordestina de coração. Uma alma nômade, movida pela fé, envolta em seus devaneios, que encontra em suas breves paradas, novos motivos para seguir. Uma jornalista que acredita na essência da profissão. Elis Faber Paulistana, 22 anos. Inspirada pela família, feliz por cada conquista e apaixonada por esportes. Jornalista que, apesar das dificuldades, sonha em dar espaço ao que não tem, por meio das palavras. Lauany Rosa Paulista, 21 anos. Jornalista sonhadora, apaixonada por animais que é movida pela sede de saber. Vê na profissão a chance de dar voz a quem não tem e de lutar pelos ideais que acredita. Natalia Guimarães Paulistana, 23 anos. Designer por formação, curiosa por vocação e feliz por inspiração. Jornalista que, apesar de admirar o silêncio, busca fazer algo pela sociedade através das palavras: escritas ou faladas. Da esquerda para a direita: Natalia, Elis, Lauany, Dhaianny e Sandra
Sandra Nascimento Paulistana, 25 anos. Educadora infantil por formação, corintiana e divertida por natureza. Apaixonada por cães e boas conversas. Jornalista que acredita que a profissão vai muito além de noticiar fatos e deve estar a serviço da sociedade.
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Formato miolo: 15,8 x 23 cm – Papel Pólen Soft 70 grs Formato capa: 25,8 x 23 cm – Papel Supremo 300 grs Tipologia: Baskerville e Britannic Bold
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Doze homens com diferentes histórias, quatro integrantes de uma comissão técnica bem alinhada e apenas uma equipe. Esta é a estrutura do Águias da Cadeira de Rodas, time de basquete adaptado que, aos poucos, se tornou a maior equipe da modalidade no Brasil. Únicos Pentacampeões Brasileiro e Octacampeões Paulista, o Águias passou por uma importante reformulação antes de obter tantas conquistas. A vitoriosa camisa tricolor da equipe paulista contou com diversos representantes ao longo dos anos e ‘Nas Asas do Águias’ relata as histórias de cada atleta da formação atual. Diferentes deficiências, diversos obstáculos, mas acima de tudo, o mesmo ideal. E este é o principal elo entre os relatos: a força e a vontade de vencer.