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GETÚLIO VARGAS Trilogia desapaixonada explica atualidade do estadista

JARDINS DE NOVA YORK Coletivos nova-iorquinos cobram espaço para suas hortas urbanas

nº 101 novembro/2014 www.redebrasilatual.com.br

Tamires Sampaio, bolsista do Prouni no Mackenzie (SP), presidente de Centro Acadêmico e guerreira contra o racismo: participação transforma as pessoas

RECADOS DA VIDA REAL

Quem escondeu o debate de projetos para tentar o golpe, perdeu. Os efeitos dos avanços sociais na vida das pessoas decidiram a eleição. Mas o governo terá de ouvir mais a sociedade


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na sua casa.

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www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Diego Sartorato, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Hylda Cavalcanti, João Peres, Moriti Neto, Sarah Fernandes, Rodrigo Gomes e Tadeu Breda Iconografia: Sônia Oddi Capa Fotos de Jailton Garcia (Tamires) Capa do livro Getúlio, dos Anos de Formação à Conquista do Poder e Carolina Caffé (Jardins de NY) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Bancas: Fernando Chinaglia Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Paulo Roberto Salvador, Raimundo Suzart, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilian Vagner Moreira, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior

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ÍNDICE

EDITORIAL

8. Política

Democracia é posta à prova e passa pela sétima eleição presidencial

12. Brasil

Mercado não abala quem vê a vida com olhos na realidade

16. Legislativo

Sociedade brasileira não se vê representada no Congresso

20. Entrevista

Tamires Sampaio: jovem, negra e doida para mudar o mundo PAULO PINTO/FOTOS PUBLICAS

24. História

A eternidade do político mais importante da história do Brasil

30. Cidadania

Trabalhadores e o direito à memória, à verdade e à justiça

32. Cultura

Sob a bandeira da presidenta reeleita, simpatizantes fazem festa na Avenida Paulista

O samba caipira de Quadra, no interior de SP

Sociedade garante a vitória da democracia

36. Perfil

Um brasileiro tinha de escrever sobre Mandela e Malcom X

38. Ambiente

Guerrilheiros verdes e a batalha por espaço e saúde em NY

JESUS CARLOS/IMAGEMGLOBAL

Vale do Cercado, Parque Nacional da Chapada Diamantina

42. Viagem

Paraíso ameaçado no Parque Nacional da Chapada Diamantina

Seções Cartas 4 Destaques do mês

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Emir Sader

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Marcio Pochmann

15

Lalo Leal

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Curta essa dica

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Crônica 50

A

liados e movimentos sociais entraram com firmeza na guerra da informação e foram decisivos na apertada vitória de Dilma Rousseff nas eleições. Mas uma parte da oposição, embora tenha perdido, parece achar que levou. Vozes mais exaltadas contestam o resultado legítimo das urnas. Esquecem de valorizar a democracia reconquistada com tanta dificuldade e dos passos dados nesse processo. O Brasil teve apenas 21 eleições diretas para presidente da República. Sete foram nos últimos 25 anos. As quatro últimas optaram por uma visão de governo que, mesmo com erros, priorizou políticas públicas, distribuição de renda, justiça social. Há ainda muito o que fazer nesse sentido. É lamentável – mas não surpreendente – que um jornal de grande circulação, ­adepto do golpe de 1964 e tradicional adversário de governos populares, divida o resu­ltado eleitoral entre setor produtivo e beneficiários de políticas públicas. Alguns foram além e tentaram vender a ideia de que o Brasil se dividiu. Os votos da chapa vencedora se distribuíram pelo país – teve tantos votos no Nordeste como no Sudeste, e não só em regiões pobres. Bem informados, ao contrário do que chegou a dizer um ex-presi­dente, os cidadãos votam em quem lhes garante melhores condições de vida. E naqueles que acreditam ser mais capazes de manter programas sociais, de governar para a maioria. Ou, simplesmente, em candidatos com quem se identificam. A isso se chama opção política. E todo voto deve ser respeitado e valorizado. Agora, enquanto alguns tentam um terceiro turno, negam o diálogo e invocam ações intervencionistas, é momento de identificar prioridades e problemas. De buscar medidas que façam o país retomar o crescimento. De ouvir mais toda a sociedade: empresários, sindicalistas, movimentos sociais, partidos, aliados e da oposição. Pensar no Brasil e em seu desenvolvimento. Por reformas e mudanças, sim, com participação social. Golpe, nunca mais. REVISTA DO BRASIL

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redebrasilatual.com.br

Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) divulgou vídeo em seu perfil oficial no Facebook em que comenta o resultado das eleições, elogia eleitores de ambos os candidatos que disputaram o segundo turno pelo exercício da democracia e fala sobre o preconceito e a necessidade de reforçar a distribuição de renda no país. “Felicidade a gente divide ou a gente perde”, resume Lula. “Mais generosidade e menos preconceito fariam muito bem ao Brasil.” O petista ressaltou ainda que, com a ascensão social dos mais pobres, todos os demais segmentos ganham. “As pessoas deveriam estar felizes, já que 40 milhões de pessoas ascenderam de classe social, estão se vestindo melhor, comendo melhor. Quando regulamos a profissão da empregada, demos

RICARDO STUCKERT/INSTITUTO LULA

Felicidade se reparte

cidadania a um setor da sociedade. A patroa não tem que ficar com raiva, tem que ficar feliz, porque a pessoa progrediu.” http://bit.ly/rba_video_lula

Fotógrafo Alex Silveira foi atingido no olho por bala de borracha em 2000

Bala a proibir

A 10ª Vara da Fazenda Pública de São Paulo expediu em 24 de outubro liminar que pode proibir a Polícia Militar de usar armas de fogo e balas de borracha durante manifestações. A PM terá 30 dias para elaborar e divulgar um plano de ação para protestos de rua que não preveja o uso desse tipo de artefato, sob o risco de multa diária de R$ 100 mil. A decisão, de primeira instância, tem caráter provisório. Cabe recurso por parte do governo estadual. “Queríamos que a Justiça proibisse armas de fogo e balas de borracha em protestos populares, mas, na decisão, o juiz acolheu parcialmente nosso pedido, ordenando que a PM faça um plano de ação em que conste a proibição desses artefatos”, esclarece o defensor público Rafael Lessa, membro do Núcleo de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, órgão que moveu a ação. “A decisão em si não proíbe o uso de balas de borracha. Ela diz que o plano deverá prever a proibição.” http://bit.ly/rba_borracha 6

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CAIO GUATELLI/FOLHA IMAGEM

Menos vulnerável O Brasil foi novamente citado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como exemplo na proteção dos direitos sociais e do emprego em meio ao cenário adverso trazido pela crise global iniciada em 2008. A ­18ª Reunião Regional Americana da OIT, em Lima, elogiou a proteção da população mais vulnerável a oscilações. A representante da OIT no Brasil, Laís Abramo, destacou à Rádio ONU o processo de formalização e de aumento do rendimento do trabalho. Ela avalia que a América Latina se saiu bem por meio de políticas anticíclicas, que tinham como preocupação central a defesa do emprego, do salário e da proteção social. “Isso não apenas foi fundamental para defender a população trabalhadora da crise, como para evitar processo de recessão, como aconteceu em outros países do mundo.” http://bit.ly/rba_oit_brasil


OSWALDO CORNETI/FOTOS PÚBLICAS

TRABALHO

Passado o segundo turno, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), mudou o tom de seus discursos dos últimos dez meses e, admitindo a gravidade da crise hídrica no estado, disse que pedirá ajuda financeira e desonerações fiscais para auxiliar no enfrentamento do problema. “A eleição já acabou.” Resta saber quem orientou a Sabesp a esconder a crise. A presidenta da empresa, Dilma Pena, afirmou em reunião com sua diretoria que era contra omitir informações sobre a crise antes das eleições,

TVT

conforme lhe fora ordenado. Mas omitiu. Na mesma reunião, o diretor metropolitano da Sabesp, Paulo Massato, soava o alarme: “Saiam de São Paulo, porque aqui não tem água, não vai ter água pra banho, pra limpeza da casa, quem puder compra garrafa, água mineral. Quem não puder, vai tomar banho na casa da mãe lá em Santos, Ubatuba, Águas de São Pedro, sei lá, aqui não vai ter”. O áudio das declarações vazou por meio do blog do jornalista Renato Rovai. http://bit.ly/rba_sem_agua

LUIZ ALBERTO FRANÇA/CÂMARA S. PAULO

Sem água, sem segredo

Dilma Pena: omissão eleitoreira

Canal 44 UHF Digital: Grande São Paulo. Canal 2 NET Digital: São Paulo (das 19h às 20h30). Canal UHF 46: Mogi das Cruzes. No site: tvt.org.br

Fernando Morais na TVT

JAILTON GARCIA/RBA

O jornalista e escritor Fernando Morais é agora colunista do telejornal da noite da TVT. A participação será às sextas-feiras durante a exibição do programa Seu Jornal, que vai ao ar de segunda a sexta, das 19h às 19h30. O autor de A Ilha e das biografias de Olga Benário Prestes, Assis Chateaubriand e Paulo Coelho fará comentários sobre política, comunicação e cultura. Morais foi secretário estadual da Educação e da Cultura nos anos 1980. Como biógrafo, se habituou a ver seus livros virarem filme. Olga foi o primeiro. Corações Sujos, história da imigração japonesa na Segunda Guerra Mundial, também já foi para as telas. Chatô, o Rei do Brasil está filmado. Toca dos Leões, que tem como pano de fundo o sequestro do publicitário Washington Olivetto, e Os Últimos Soldados da Guerra Fria, sobre os cinco prisioneiros cubanos presos nos Estados Unidos, já tiveram seus direitos vendidos para o cinema. REVISTA DO BRASIL

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POLÍTICA TRABALHO VOTO RACIONAL Rua de Belágua (MA), onde a presidenta Dilma teve 94% dos votos

PONTE U BELÁGUAMIAMI Democracia foi posta à prova e o país passou pela sua sétima eleição presidencial seguida, feito inédito na história. Cabe aos políticos e à sociedade mostrar capacidade de conversar na divergência Por Vitor Nuzzi 8

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ma frase batida, no meio esportivo, indica que não existe mais “bobo” no futebol. Assim é também na política, a despeito das tentativas de desqualificar parte dos eleitores por suas opções. Da mesma forma, não se sustenta a “tese” da divisão política do país, à medida que os votos para ambos os candidatos, no segundo turno, se distribuíram pelas regiões. Mas é verdade que será necessário um esforço dos dois lados para garantir um mínimo de civilidade na relação entre governo e oposição – e, especialmente, entre os eleitores, independentemente de suas preferências. Frases publicadas no Twitter, logo depois do resultado da eleição, dão conta do clima. “A democracia saiu + arranhada q vaqueiro inexperiente em mata de jurema”, escreveu o jornalista e escritor Xico


FABIO BRAGA/FOLHAPRESS

POLÍTICA

índice de frases com dados incorretos de parte a parte tem consequências desastrosas. Meu grande receio é que onde caem os pactos civilizatórios emerge a barbárie.” Para ele, uma suposta divisão no eleitorado é um sinal “que se plantou mais bruma do que visibilidade”, embora para o advogado o desenho socioeconômico das candidaturas tenha sido claro: uma deu prioridade à macroeconomia, enquanto outra (que prevaleceu) reunia um conjunto de diretrizes com primazia ao desenvolvimento social.

Grandeza x surdez

Agora, sustenta, é o momento de todos mostrarem certa “grandeza”, sabendo de suas responsabilidades. “Com esse parlamentarismo atípico, que vem sendo chamado de governo de coalizão, não há como fazer isso sem uma espécie de pacto federativo em que se definam políticas de Estado”, afirma Fachin, pedindo uma espécie de “concertação” no Brasil, “sob pena de contribuir para o famoso quanto pior, melhor”. Por exemplo, uma discussão sobre reforma política não pode ser um “diálogo de surdos”, lembra Fachin, defensor de um novo modelo de financiamento de campanhas. “Em 2016, vai ter essa insanidade de novo, que chega a ser

VOTO EMOTIVO Foi em Miami que Aécio teve seu maior percentual de votos, 92%

ROBERT HOLLAND/GETTY IMAGES

Sá. “Agora, gente, na boa: esse papo de impeachment é horrível. Isso é golpismo”, criticou a também jornalista e escritora Cora Rónai. “Essa eleição mostrou que o povo quer mudança sim, mas na linha de Lula-Dilma que vai na direção das demandas populares. Não adiantou o ódio”, disse o escritor Leonardo Boff. E muitos chamaram a atenção para os locais onde cada candidato obteve o seu melhor desempenho. Dilma Rousseff­ conseguiu 94% dos votos em Belágua, no Maranhão. Aécio Neves teve 92% em Miami, nos Estados Unidos. É sintomático que a presidenta reeleita tenha tido maior percentual em uma cidade ainda pobre, mas onde os indicadores melhoraram consideravelmente. E também desperta curiosidade o fato de o candidato da oposição ter conseguido maior vantagem em reduto de ricos e novos-ricos. São as contradições

brasileiras, em um país onde as transformações sociais têm provocado hostilidades. Talvez por isso, a presidenta, em seus primeiros pronunciamentos, tenha insistido na importância do diálogo e na construção de “pontes”. “A política brasileira vai entrar em nova fase”, aposta o jornalista Rodrigo Vianna, em texto no seu blog Escrevinhador divulgado pouco antes da votação do segundo turno. “Não há mais espaço para consensos produzidos apenas nos bastidores. O ódio na rua e nas redes precisa ser barrado com debate, política, ação, disputa simbólica permanente”, reivindica. Quatro anos atrás, o advogado Luiz ­Edson Fachin, professor titular da Universidade Federal do Paraná (UFPR), destacava que alguns limites haviam sido ultrapassados na eleição, podendo pôr a governabilidade em risco. Neste ano, ele destaca duas questões preocupantes. “Em todas as candidaturas, foi muito mais reputado um espetáculo do que discussão programática. Agora, o que se agravou é que a agressividade se tornou um espetáculo. Isso cria uma espécie de eleição plebiscitária em que toda a complexidade é reduzida a marcar um x”, analisa. O segundo ponto, diz Fachin, é o que ele chama de banalização acusatória. “O

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agressiva para a população, em razão das cifras que são apresentadas?”, questiona. Ele espera que a vencedora estenda a mão aos opositores. E todos devem compreender que o presidente, ou presidenta, é do país, e não de um partido. Fachin pede ainda “humildade” para reconhecer o acerto de determinadas políticas públicas. “É dessa grandeza nacional que o Brasil está precisando neste momento.” Já a exacerbação do discurso representa um desfavor para a democracia. Da mesma forma que vozes pró-impeachment, como as que se levantaram mesmo antes do final da eleição – inclusive na mídia tradicional –, são uma “agressão à democracia”, no entendimento do advogado. Renato Janine Ribeiro, professor titular de Ética e Filosofia Política da USP, identifica, ainda, certa surdez para o diálogo. “Tornaram-se duas narrativas muito diferentes no Brasil. As pessoas que foram

ANTONIO CRUZ/ABR

POLÍTICA

NÃO ADIANTOU O ÓDIO Leonardo Boff: “Essa eleição mostrou que o povo quer mudança sim, mas na linha de Lula-Dilma”

mais marcadas pela discussão política estão muito afastadas entre si”, comenta Janine, dando um exemplo curioso, mostrando que uma simples expressão se torna fator de divergência e revelador de

posições. “A divisão está tão grande que uma palavra que existe desde o século 19 – presidenta – é ridicularizada.” Para ele, ainda cético quanto à possibilidade de uma distensão, mesmo na proposta de reforma política falta discussão com a sociedade, que não estaria devidamente informada sobre os temas principais. Mas Janine também identifica certo discernimento do eleitor. “Eles não estão tão interessados em saber se Ronaldo, Romário ou Luciano Huck apoia alguém, mas se a sua vida melhorou.” Mesmo admitindo certo “romantismo político”, Fachin exalta o funcionamento da democracia e das instituições no Brasil, que ainda padecem de clientelismo, exclusão social, desigualdades regionais – mas avançou. “Nestes últimos governos, precisamos celebrar alguns ganhos. Eu me recordo que não votávamos. Ter eleições periódicas é um ganho imenso.”

Salário, inflação e investimento

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esse discurso sem medo. Nossa inflação é moderada, abaixo da médias dos Brics. O governo está numa posição muito defensiva”, avalia Sicsú. ”O governo precisa se reorientar no discurso, porque isso causa um clima negativo na discussão sobre decisões econômicas.” O terceiro item é a ativação do investimento, seja público ou privado. “É preciso recuperar a capacidade da União de investir, mas é preciso uma articulação maior com estados e prefeituras. É a partir daí que vamos retomar o crescimento da economia. É preciso uma força-tarefa para executar projetos grandiosos de infraestrutura”, pede o professor, citando setores como o de mobilidade (transporte de pessoas e cargas) e comunicações (banda larga, internet). “A melhor forma de recuperar o incentivo ao investimento privado é realizar o investimento público. Não adianta conversa. Temos de fazer.” O economista prevê

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Sicsú: “O governo precisa se reorientar no discurso, porque isso causa um clima negativo”

VALTER CAMPANATO/ABR

Para o país voltar a crescer, o professor João Sicsú, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), identifica três questões importantes, independentemente de mudanças na equipe econômica. A primeira é a manutenção da política de valorização do salário mínimo, “um vetor distributivo de renda”, como define. “A explicação da emergência de um grande mercado de massas está muito relacionado ao salário mínimo e ao crescimento do emprego formal.” Ele também espera que o poder público melhore sua comunicação sobre as causas da inflação, dando explicações sobre o que está acontecendo e mostrar que não há muitos instrumentos para combater uma alta de preços de alimentos que se origina, por exemplo, de choques climáticos. “Elevar juros para combater uma inflação que vem dos alimentos não é muito adequado, cortar gastos também não. Temos de fazer

ainda, para os próximos anos, um boom no setor de petróleo, em termos de extração, refino e exportação. Siscú enfatiza a importância dos bancos públicos, especialmente do BNDES, “exemplar em termos de financiamento de investimentos”. O banco, por sinal, esteve na mira de Armínio Fraga durante a campanha eleitoral. “Sorte dos empresários brasileiros que o PSDB não ganhou, senão eles

não teriam essa alternativa de financiamento barato que o BNDES oferece. Acho que o radicalismo do neoliberalismo é pensar a economia brasileira sem ter bancos públicos. Durante os anos 90 os tucanos fizeram isso, enfraqueceram esses bancos e toda a economia brasileira. Sorte nossa, dos empresários, dos consumidores, dos agricultores, porque senão o crédito se tornaria muito escasso”, diz o professor.


EMIR SADER

Projeções para o continente e o mundo

A reeleição de Dilma, a posse de Bachelet e a vitória de Evo ampliam as perspectivas de integração latino-americana e do hemisfério sul

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uando a continuidade dos governos do PT esteve em risco, ao longo da campanha eleitoral – pelo menos em dois momentos dela –, foi possível avaliar consequências que essa mudança poderia ter também no plano internacional. A apreensão permitiu avaliar a importância que o Brasil passou a ter partir do primeiro governo Lula, ao se imaginarem impactos de uma eventual mudança radical da nossa política exterior. Quando Marina Silva chegou a abrir vantagem sobre Dilma Rousseff no primeiro turno, suas propostas de política internacional vieram à tona e causaram espanto: rebaixamento do perfil do Brasil no Mercosul, acordos bilaterais e um elogio à Aliança para o Pací­ fico, o bloco formado por Chile, Colômbia, Peru e México. Seria uma mudança brusca e radical. A começar porque acordos bilaterais – e se poderia supor que o primeiro e mais importante seria com os Estados Unidos – são incompatíveis com a presença no Mercosul. O Uruguai, no primeiro governo de Tabaré Vásquez (2005-2010), se propôs a assinar um tratado de livre comércio com os Estados Unidos, permanecendo no Mercosul, e recebeu uma resposta taxativamente negativa. Significaria, portanto, a saída­do Brasil do bloco sul-americano, com reflexos diretos nos outros processos de integração regional, como a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e a Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac). A referência favorável à Aliança para o Pacífico permitia deduzir uma consequência coerente com a visão delineada: privilegiar o acordo com os países da região que assumem as políticas de livre comércio e tratados bilaterais com os Estados Unidos, em detrimento dos que fazem parte do Mercosul – Argentina, Uruguai, Venezuela, Bolívia, Equador, Suriname e Guiana. Seria difícil imaginar as consequências para os Brics e os acordos recém-assinados em julho em Fortaleza, que se chocam diretamente com a política internacional norte-americana.

Mais adiante, na campanha eleitoral brasileira, com o lugar de candidato principal da oposição reassumido por Aécio Neves, com possibilidades de vitória, os mesmos raciocínios poderiam ser feitos. Afinal, o tema política externa de sua era coordenado por ex-diplomatas do governo de Fernando Henrique Cardoso, que tinham participado da articulação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). A reeleição da Dilma, junto ao começo do governo de Michelle Bachelet no Chile, à reeleição de Evo Morales na Bolívia e e ao favoritismo de Tabaré Vásquez no Uruguai, ao contrário das ameaças anteriores, projeta um cenário distinto para a integração latino-americana. Bachelet coloca em prática o que havia anunciado: perfil mais baixo do Chile na Aliança para o Pacífico e aproximação com os processos de integração regional. Evo Morales dará continuidade ao ingresso da Bolívia no Mercosul, enquanto o Uruguai dará continuidade na sua participação dos projetos de integração regional. O momento é favorável também porque, depois de longa acefalia, foi designado Ernesto Samper, ex-presidente da Colômbia, como novo secretário-geral da Unasul. Isso se dá ao mesmo tempo em que a Aliança para o Pacífico perde relevância. A dimensão mais importante da política externa brasileira no segundo mandato da Dilma deve girar em torno da regulamentação e implementação dos acordos dos Brics. Colocar em prática o Banco do Desenvolvimento, para financiar projetos dos países do sul do mundo, deve demandar um prazo de cerca de dois anos para poder funcionar plenamente. O mesmo deve acontecer com o fundo de reservas para atender a países com dificuldades – como é o caso da Argentina, atualmente. Os acordos desenham um mundo econômica e financeiramente multipolar, independentemente dos acordos de Bretton Woods, que constituíram o mundo centrado no FMI e no Banco Mundial. Não por acaso, os acordos assinados este ano em Fortaleza foram chamados de Bretton Woods do sul do mundo. REVISTA DO BRASIL

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BRASIL TRABALHO ENCONTRO Dilma faz comício em Nova Iguaçu (RJ)

A REALIDADE FALOU Votação de Dilma no Sudeste e no Nordeste foi de 20 milhões em cada região. A primeira cedeu mais às pressões do mercado e da mídia; a segunda seguiu as constatações da vida Por Fábio Jammal e Paulo Donizetti de Souza

O

desempenho eleitoral de Dilma Rousseff no Nordeste, tido como “decisivo” para assegurar sua reeleição, requer uma análise para muito além de 2014. E mais profunda do que as teses simplistas ou mal intencionadas, como as que apregoam que o país estaria diante de uma “sociedade dividida” ou de confronto de “ricos contra pobres”. Os pontos de partida devem 12

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ser o extremo nível de desigualdade em que o Brasil entrou no século 21 e a evolução dos indicadores socioeconômicos nas regiões mais pobres, à medida que políticas públicas foram direcionadas a reduzir essas desigualdades de maneira mais acentuada. Em termos proporcionais, o Nordeste de fato conferiu resultado expressivo. A presidenta Dilma Rousseff venceu nos nove estados da região, com vota-

ção média de 72%, ante 28% de seu adversário. Mas em números absolutos, foram 20,6 milhões os votos pela reeleição no Nordeste e 19,9 milhões no Sudeste, praticamente empatando. Outros 6,8 milhões de votos saíram da região Sul, mais 4,4 milhões do Norte e 3,2 milhões do Centro-Oeste. Três edições atrás, uma reportagem na Revista do Brasil demonstrava o descompasso entre o noticiário negativo sobre a


FÁBIO JAMMAL/RBA

ICHIRO GUERRA/DILMA 13/FOTOS PÚBLICAS

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FÁBIO JAMMAL/RBA

EMERGÊNCIA Antônio de Almeida, de Sanharó (PE), perdeu cinco das nove vacas que tinha. Parte do sustento de nove filhos e dez netos também saiu do Bolsa Família

OU MAIS ALTO economia e a expectativa positiva das pessoas e o otimismo em relação a sua própria vida. “O que vai decidir o voto é a capacidade das candidaturas de entender os problemas reais que o eleitor enfrenta e de oferecer perspectivas de futuro”, dizia o publicitário Renato Meirelles, sócio-diretor do instituto Data Popular – empresa de pesquisa especializada no conhecimento das classes C e D. Dois meses depois, a poucos dias da eleição, o instituto Datafolha ainda identificava esse contraste. No jornal Folha de S.Paulo de 22 de outubro, informava-se: “O mercado financeiro, a maioria dos economistas e alguns organismos internacionais podem estar muito pessimistas

com a economia do país em 2015. Mas os brasileiros em geral estão na contramão desse sentimento, o que ajuda a explicar o aumento da aprovação da presidenta Dilma Rousseff ”. Pode ter sido esse o “fenômeno” mais decisivo da votação que em todo o país conferiu a Dilma mais um mandato. E com mais ênfase no Nordeste, justamente por ser a região de desigualdades sociais mais graves, e que acabou dispondo, muito mais do que o mercado, de elementos da vida real para avalizar os efeitos da economia e das políticas sociais em suas vidas. A classe C, sob o governo do PT, cresceu 20% na região e chegou a 42% da população local. Dos 20 milhões de empre-

SEM DESESPERO Aurides Raimundo, de Pesqueira (PE), nunca havia recorrido ao Bolsa Família por achar que outros precisavam mais do que ele. Mas este ano a seca devastou sua lavoura e não teve jeito: “Minha situação ficou péssima”

gos formais criados até 2013, cerca de 4 milhões foram no Nordeste. O crescimento da renda do trabalhador também teve impacto bem maior: aumento de 72,8% de 2003 a 2014, ante 33% da média nacional. Além do emprego e da renda, a escolaridade dos nordestinos também aumentou mais do que a média nacional. Enquanto o número de matrículas no ensino superior praticamente duplicou no Brasil, de 2001 a 2011, no Nordeste esse volume triplicou, segundo dados do Censo da Educação Superior de 2012. Das 208 escolas técnicas construídas a partir de 2011, o estados do Nordeste receberam 77.

Transformações

Em 2002, quando Lula venceu sua primeira eleição, apenas 24% dos votos do PT foram do Nordeste. Pouco depois de tomar posse, em 10 de janeiro de 2003, o REVISTA DO BRASIL

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MARCELO SERRA DINIZ

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18 MIL CURTIDAS Motorista adere à manifestação que cercou seu ônibus em Recife. Subiu no veículo e, sacudindo uma bandeira de Dilma, gritou: “Eu faço faculdade pelo Prouni”

presidente fez sua primeira viagem oficial com todo seu ministério. O local escolhido: Brasília Teimosa, bairro pobre de Recife, nascido de uma ocupação em 1947. “Não havia saneamento, nem ruas, eram só um amontoado de palafitas”, conta a secretária Rosilene Batista de Souza, de 58 anos, moradora da Brasília Teimosa há 30 anos. O nome do local, diz Rosilene, veio da teimosia dos primeiros moradores, que eram constantemente expulsos da área pela prefeitura e passavam a noite reconstruindo casas derrubadas durante o dia. “Foi assim até o final dos anos 90. A polícia vivia ocupando o bairro para despejar a gente. Me lembro até da música de resistência que a gente cantava quando a polícia chegava: ‘Mas onde é que eu vou morar/ se derrubam meu barraco é de lascar/ tenho muitos filhos pra criar’...” No início de 2001, o petista João Paulo assumiu a prefeitura de Recife e continuou derrubando palafitas, mas construía no lugar conjuntos habitacionais regularizados. Urbanizou o bairro, levou serviços básicos e abriu um canal de diálogo com a associação da Brasília Teimosa. Dois anos depois, os governos federal e municipal fizeram parcerias que 14

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transformaram a Brasília Teimosa. Em 2004, uma grande intervenção urbana abriu uma avenida à beira-mar, que fomentou o surgimento de restaurantes típicos e uma rede de comércio que fazem do bairro um local agradável. “Sou muito grata. Eles só fizeram coisas boas por Brasília Teimosa”, diz Rosilene. Transformações sociais começaram a alcançar também o interior. Nem mesmo a maior seca dos últimos 50 anos, que atingiu o Nordeste em 2013, levou os nordestinos a migrar em massa para outros estados. No começo de abril do ano passado, o agricultor Aurides Raimundo da Silva decidiu plantar milho na sua pequena propriedade localizada na zona rural de Pesqueira, na divisa do sertão com o agreste de Pernambuco. Investiu os R$ 1.500 que tinha na compra de 30 quilos de semente e no preparo da terra. Um mês e meio depois, os planos de Aurides se transformaram em frustração por conta da seca. Em vez de se desesperar, recorreu ao auxílio do Bolsa Família. “Há anos a seca tem me prejudicado, mas eu nunca quis pedir o benefício porque pensava que tinha gente que precisava mais do que eu. Mas ali a minha situ-

ação ficou péssima”, lembra o agricultor de 67 anos, que trabalha na roça desde os 17. O pequeno pecuarista Antônio de Almeida, morador de Sanharó, um dos municípios mais afetados pela seca em Pernambuco, perdeu cinco das nove vacas que tinha um ano e meio atrás. Parte do sustento de nove filhos e dez netos também saiu do Bolsa Família. Além do benefício, o governo Dilma destinou R$ 7 bilhões, no ano passado, para incentivar a agropecuária com tecnologias de convivência com o semiárido e a estiagem, por meio do Plano Safra do Semiárido. Para amenizar os efeitos imediatos da estiagem, criou a Bolsa Estiagem mensal de R$ 80 para 1,5 milhão de sertanejos que temporariamente não têm como produzir. Segundo documento da Confederação Nacional de Municípios (CNM), o Bolsa Estiagem evitou um grande êxodo rural como se viu nas secas dos anos 1980. No dia em que o Datafolha constatou que a maioria dos brasileiros estava na “contramão” do que acredita o “mercado”, Lula e Dilma fizeram em Pernambuco um dos maiores atos políticos da campanha, acompanhado por 50 mil pessoas. A multidão tomou ruas em Petrolina, Goiana e Recife, por onde os dois passaram. Na ocasião, os petistas criticaram o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que havia dito em entrevista que o PT está “fincado nos menos informados”. Dilma disse na ocasião que seus adversários “vestiram pele de cordeiro” para esconder seus preconceitos com o Brasil. Daquele ato saiu uma das cenas simbólicas da autoestima nordestina, quando o motorista desceu do ônibus, subiu no teto do veículo com uma bandeira e gritou: “Eu faço faculdade pelo Prouni”. Sua imagem correu as redes sociais. O encanador Manuel do Santos, também morador da capital pernambucana, explica o sentimento por outro viés: “No tempo do Fernando Henrique, a vida era muito difícil. Eu mesmo fiquei dois anos desempregado, sofri muito para cuidar de três filhos pequenos. Fiz muito bico, não quero nunca mais passar pelas dificuldades que vivi”, diz Manuel, que trabalha com carteira assinada desde 2003.


MARCIO POCHMANN

O novo papel do Estado

A ladainha neoliberal, que prega a ineficiência do Estado, se apresenta cada vez mais enfraquecida. A ampliação das atividades permitiu enfrentar a desigualdade no país

O

reposicionamento do Estado foi fun- presentavam 7,3% do PIB. damental para o estabelecimento da Além dos programas sociais, pode-se destacar os nova trajetória do desenvolvimento avanços em atividades como educação e saúde públibrasileiro desde o ano de 2003. Se cas. Durante a década de 1980, havia cerca de 22 micomparado ao Estado que vigia no re- lhões de matrículas no ensino básico no Brasil, o que gime militar (1964-1985) ou durante a experiência significou apenas três quintos do que passou a exisneoliberal dos anos de 1990, podem ser constatadas tir nos anos 2000, posto que o setor público responde por mais de 80% da oferta educacional do país. mudanças consideráveis. Na saúde, a função estratégica do Sistema Único Inicialmente pela queda relativa no peso do emprego público no total da ocupação, de 12,2% na dé- de Saúde, que apresenta dimensões significativas de cada de 1980 para 11,3% nos anos 2000. A dimi- atendimento quantitativo e qualitativo. A incorponuição da participação dos servidores públicos no ração de praticamente a totalidade da população é, total da ocupação nacional se deu paralelamente à por si só, algo jamais registrado em todo o país, ademais da diversidade de especializaelevação do conjunto do gasto do ções no atendimento populacional. setor público (descontado o paga- Na década de 2000 mento com juros da dívida públi- os recursos públicos De tudo isso, percebe-se, de imeca), de 22,8% para 30,2% do Produ- comprometidos com diato, que a ladainha neoliberal, to Interno Bruto (PIB), no mesmo as transferências que prega a ineficiência do Estado, período de tempo. se apresenta cada vez mais enfrasociais alcançou quecida. Por um lado, a ampliação A ampliação do peso relativo do 15,3% do PIB. Nos Estado no gasto total com a dimi- anos 1980, eram 7,3% das atividades do Estado permitiu nuição da participação do empreenfrentar a desigualdade no país, go público não resultou na piora do desempenho bem como a elevação do padrão de vida do conjunda administração do setor público. Pelo contrário, to da população, especialmente dos segmentos de observa-se uma melhora geral nos anos 2000 acom- menor rendimento. panhada tanto pela ampliação no número de benePor outro lado, observa-se um avanço da produficiários dos programas de garantia de renda como tividade no setor público brasileiro. Na década de da previdência e assistência social. 2000, verifica-se a elevação nos ganhos de produtiviEntre os anos de 1980 e 2000, por exemplo, a par- dade frente a ampliação das funções do Estado e do cela dos beneficiários atendidos pelos programas so- gasto público paralelamente ao decréscimo relativo ciais passou de 6,5% para 33,1% do conjunto da po- da quantidade de funcionários público. pulação. Resumidamente, constata-se a ampliação Para a segunda década do século 21, torna-se imem 5,1 vezes no contingente beneficiado pelos pro- portante considerar novas demandas que surgem gramas de transferência sociais, enquanto a soma- em função da transição do país para uma sociedatória dos recursos públicos comprometidos com as de de serviços. Recorda-se que parcela significativa políticas sociais relacionadas ao PIB foi duplicada. das reivindicações da sociedade em junho de 2013 No mesmo sentido, registra-se também que na dé- localizou-se no tema dos serviços (educação, saúde, cada de 2000 a quantidade de recursos públicos com- transportes, entre outros), o que exige uma reformuprometidos com as transferências sociais alcançou lação do Estado em busca da matricialidade e inter15,3% do PIB. Nos anos 1980, os gastos sociais re- disciplinaridade das funções e orçamento público. REVISTA DO BRASIL

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LEGISLATIVO TRABALHO EXTREMA-DIREITA O ruralista Ronaldo Caiado é uma das caras do Congresso que não tem a cara do Brasil

GUSTAVO LIMA/CÂMARA DOS DEPUTADOS

RETRATO DESFOCADO

Com poucos jovens, negros e mulheres – e nenhum índio –, Legislativo brasileiro não reflete composição da sociedade brasileira Por Vitor Nuzzi

O

Congresso que saiu das urnas em 5 de outubro – e será empossado em 1º de fevereiro – terá, como já se demonstrou, perfil mais conservador que o atual. Uma das bancadas que cresceram, e se mostra organizada, é a dos ruralistas, com 153 deputados. A sindical caiu de 90 para 51, enquanto a empresarial tem quatro vezes mais (217). Mas o desequilíbrio não está apenas na

correlação de forças. A diferença entre a composição da sociedade brasileira e sua representação legislativa é gritante em todos os recortes de comparação entre os eleitos e dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE. Um caso é o da representação feminina: elas são 51% da população, mas o número de deputadas eleitas soma 10% do total, com ligeiro crescimento em relação à atual legislatura (9%).

Pretos e pardos, conforme a classificação do IBGE, somavam 53% da população em 2013. Dos eleitos, apenas 20% se declararam negros. Quase metade da nova Câmara terá parlamentares com patrimônio superior a R$ 1 milhão. Pela Pnad, 60% dos ocupados têm renda de até dois salários mínimos. Por escolaridade, aproximadamente 80% dos eleitos têm nível superior, bem acima dos 37% dos brasileiros com 11 anos ou mais de instrução.

Composição da Câmara dos Deputados

PT = 70

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PMDB = 66

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PSDB = 54

PSD = 37

PP = 36

PR = 34

PSB = 34


LEGISLATIVO

PTB = 25

DEM = 22

PRB = 21

“PRECARIZACÃO” DO TRABALHO O empresário Laércio Oliveira (SD-SE) é dirigente da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo. Na sua pauta está a aprovação do Projeto de Lei 4. 330, que regulamenta a terceirização

SAULO CRUZ/CÂMARA DOS DEPUTADOS

“Mais importante do que ter um Congresso mais conservador é uma situação que repete e agrava os problemas de representação do Congresso atual”, diz o analista legislativo Sylvio Costa, criador do site Congresso em Foco. Além da sub-representação de mulheres e negros, ele destaca a ausência de índios. A propósito, esta é uma regra e não exceção. “Juruna foi o primeiro e último”, lembra. Em toda a história do Parlamento brasileiro, apenas o xavante Mario Juruna tornou-se deputado federal, eleito em 1982 pelo PDT. No Dia do Índio, em 19 de abril de 1983, ele discursou: “Juruna é o primeiro índio que está representando brasileiro, porque o governo brasileiro não dá oportunidade pra índio, porque ele quer continuar tutelar toda vida índio. E nós não somos tutelados”. Juruna foi ousado e criticou o governo militar. O último dos generais-presidentes, João Figueiredo, chegou a pedir a sua cabeça. Juruna, que não foi reeleito, morreu em 2002. Para Sylvio Costa, é preciso repensar a suposição de que o Congresso reflete a sociedade. É a reflexão que faz também o deputado federal reeleito Daniel de Almeida (PCdoB-BA), chamando atenção ainda para a pouca presença de jovens. “Não é o perfil da sociedade brasileira. Essa eleição foi, mais do que outras, influenciada pelo poder econômico, pelo discurso desprovido de conteúdo. Uma reforma política é absolutamente inadiável”, afirma. Para Sylvio Costa, se o Congresso é muito conservador e está distante da composição real da sociedade brasileira, aumenta a responsabilidade do governo. O Executivo pauta o Congresso”, observa, destacando a disputa, entre os parlamentares, pelos recursos orçamentários. “O governo tem poder imenso. Vai depender da capacidade de articulação.”

O analista destaca uma “perda razoável”, pelo menos 40 cadeiras, de deputados mais identificados com a esquerda. “Isso significa um espaço menor para defesa de temas ligados aos direitos humanos, criminalização da homofobia, por exemplo.” Segundo ele, a maior conse­ quência da eleição desse novo Congresso é um “cenário potencialmente de maior tensão”. Outro ponto é o da fragmentação. O número de partidos representados no Parlamento aumentou de 22 para 28. Na Câmara, Costa lembra que as cinco maiores legendas elegeram 263 deputados, enquanto as demais têm 250.

Ruralistas

Entre as bancadas organizadas, destaca-se a ruralista, que crescerá de 142 para 153 deputados na próxima legislatura. Tem objetivos bem definidos, como a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215, que aguarda parecer em comissão especial. A PEC transfere do Executivo para o Congresso a prerrogativa de aprovar demarcação de terras indígenas. Esta é uma prioridade declarada da Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), que durante a campanha eleitoral entre-

PDT = 19

SD = 15

PSC = 12

gou carta aos principais presidenciáveis enfatizando sua reivindicação. Em seminário no final do ano passado, a presidenta da entidade, a senadora reeleita Kátia Abreu (PMDB-TO), foi explícita: “As demarcações indígenas não se concentram mais nas florestas; hoje entram nas áreas produtivas, que são transformadas em terras indígenas”. A instalação da comissão especial foi uma vitória da bancada ruralista. Recentemente, a senadora também se reelegeu para a presidência da CNA. Outro líder ruralista, Ronaldo Caiado (DEM-GO) foi eleito e passará da Câmara para o Senado. Apontado como outra liderança dessa bancada, o deputado catarinense Valdir Colatto (PMDB) também cita, em entrevista no mês passado à TV Record em seu estado, a questão indígena como central, além dos quilombolas. “Estamos perdendo grandes investimentos. Há uma grande insegurança jurídica no campo”, afirmou o parlamentar, além de defender mudanças na legislação trabalhista rural. Na bancada empresarial, sai Sandro Mabel (PMDB-GO), que não se candidatou, após cinco mandatos consecutivos na Câmara. Ele é o autor do Projeto de Lei 4.330, sobre terceirização, combatido pe-

PROS = 11 PCdoB = 10

PPS = 10

outros = 37

PV = 8 PSOL = 5 PHS = 5 PTN = 4 PMN = 3 PRP = 3 PSDC = 2 PEN = 2 PTC = 2 PRTB = 1 PSL = 1 PTdoB = 1

Fonte: Diap REVISTA DO BRASIL

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las centrais sindicais e cotado para voltar à pauta ainda este ano. Um dos líderes do grupo é Laércio Oliveira (SD-SE), defensor do projeto. O deputado é dirigente da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). O analista político Antônio Augusto de Queiroz, diretor do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), acredita que Dilma Rousseff sofrerá pressão maior dos empresários, a quem precisará fazer sinalizações, em um cenário de provável ajuste de contas públicas – seletivo, para preservar programas sociais e investimentos – e sem tanto a oferecer do ponto de vista de incentivos. E isso deverá exigir maior atenção dos trabalhadores, com uma bancada menor. “No (início do) mandato passado, a presidenta teve de acalmar dois segmentos, a classe média e a imprensa. Agora, precisa resgatar a confiança do mercado.”

Cartolas

Menos numerosa, mas ativa, a chamada bancada da bola se mobiliza pela aprovação do PL 5.201, sobre renegociação de dívidas dos clubes de futebol. Na prática, é a bancada da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), diz o jornalista José Cruz, especializado em legislação do esporte. Ele lembra que os principais membros do grupo foram reeleitos (casos de Vicente Cândido, do PT-SP, e de Jovair Arantes, PTB-GO, vice-presidente do Atlético Goianiense), e ganharam reforços. A CBF segue sendo uma instituição poderosa, lembra Cruz. “No tempo de Ricardo Teixeira ele chegou a colocar o ex-minis-

RAFAEL NAKAMURA/COMISSÃO GUARANI YVYRUPA

LEGISLATIVO

NA RUA Sindicalistas e líderes populares esperam anos difíceis, em que só a pressão sobre o Parlamento pode resultar em conquistas e impedir o avanço conservador

tro do TCU Marcos Vilaça como chefe de delegação para um amistoso no exterior”, exemplifica. “Vamos saber sobre quem é quem, dos novatos, principalmente, na votação do PL da dívida dos clubes, que dificilmente ocorrerá este ano.” O jornalista lamenta que ainda seja difícil ver um cartola, ou ex-dirigente, trabalhando pela moralização da gestão esportiva. “O dia em que o esporte em geral e o futebol em particular forem administrados dentro de normas oficiais e rígidas, os trambiques vão desaparecer, como as transações de jogadores, a contratação por salários mínimos e pagamentos através do direito de imagem, de patrocinadores, de empresas fantasmas, enfim.” E critica o Estado por ser “omisso” na fiscalização. E qual será o peso do ex-jogador e deputado Romário (PSB-RJ), agora eleito senador? “Ele fugiu à regra do tratamento elitista ‘Vossa Excelência’. Campeão mundial, se comportou com autoridade. Ga-

Tudo desigual

Mulheres

Negros

Índios

51%

A Câmara dos Deputados está longe de ser um reflexo do país

53%

da população*

20%

da Câmara

* Pardos e pretos, conforme classificação do IBGE

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da população brasileira

900 mil no país

nhou boa cobertura da mídia. Deverá moderar o tom no Senado, pois a casa é outra, menor, de mais diálogo. E como ele tem 4,6 milhões de votos nas costas, isso significa respeito político. Deverá ser muito assediado pelos pares”, comenta Cruz.

Agenda

O movimento sindical já começa a se rearticular sob a ótica de que a disputa no Parlamento será difícil. “É verdade que o Brasil elegeu uma presidenta progressista, mas elegeu também um Congresso extremamente conservador. Vamos disputar agenda. Mesmo na coalizão da presidenta Dilma, há muitos conservadores”, diz o presidente da CUT, Vagner Freitas, que defende uma “agenda de mobilização” para pressionar Executivo e Legislativo. “Serão quatro anos de caravanas a Brasília.” Ele dá como exemplo a reivindicação de redução da jornada de trabalho. “Se quisermos diminuir a jornada, temos de

Ensino superior 10%

da Câmara

37%

da população

Renda Nenhum no Congresso

(só existiu um deputado em toda a história)

60%

da população ganha até dois salários mínimos

80%

dos eleitos

50%

dos eleitos têm patrimônio acima de R$1 milhão


RR

AM

PA

CE

MA

RN PB

PI

PE

AC

AL SE

TO

RO

BA

MT DF GO MG

ES

MS

Distribuição de forças

SP PR SC

Os partidos que governarão os estados a partir de 2015 Estado Acre Alagoas Amapá Amazonas Bahia Ceará Distrito Federal Espírito Santo Goiás Maranhão Mato Grosso Mato Grosso do Sul Minas Gerais Pará Paraíba Paraná Pernambuco Piauí Rio de Janeiro Rio Grande do Norte Rio Grande do Sul Rondônia Roraima Santa Catarina São Paulo Sergipe Tocantins

RJ

Quantidade de estados por partido

RS

Partido ■ PT ■ PMDB ■ PDT ■ PROS ■ PT ■ PT ■ PSB ■ PMDB ■ PSDB ■ PCdoB ■ PDT ■ PSDB ■ PT ■ PSDB ■ PSB ■ PSDB ■ PSB ■ PT ■ PMDB ■ PSD ■ PMDB ■ PMDB ■ PP ■ PSD ■ PSDB ■ PMDB ■ PMDB

PMDB PT PSDB PSB PDT PSD PCdoB PROS PP

7 5 5 3 2 2 1 1 1

Dilma e Aécio por estado

Mapa com escala de cores ponderada mostra como foi o resultado da eleição presidencial nos estados. Os tons entre o vermelho de Dilma e o azul de Aécio dão uma ideia da distribuição dos votos pelo país. A presidenta Dilma teve maioria em 15 estados. Aécio em 11 e no Distrito Federal.

ELABORAÇÃO THOMAS VICTOR CONTI

forçar para que o projeto passe. Não vai ser por uma canetada da presidenta.” Logo após a eleição, o deputado reeleito Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, ex-presidente da CUT, líder da bancada do PT na Câmara, defendeu maior mobilização em contraponto ao avanço ao conservadorismo no Congresso. “Agora será fundamental que a sociedade ocupe Brasília em todos os momentos”, disse à Rádio Brasil Atual. De volta ao Congresso, agora como senador, Paulo Rocha (PT-PA) considera essa “renovação conservadora” no Parlamento proveniente de dois fatores: “A força do poder econômico e uma certa degradação da politica. É preciso fazer algumas reformas importantes, como a política, que vai ao encontro do sentimento do povo, de combate à corrupção, que aparece mais hoje porque há mais funcionamento das instituições.” Ex-sindicalista e ex-deputado, ele acredita que no Senado estará “a grande trincheira” de oposição ao governo. O senador eleito acredita na força do diálogo para que temas importantes, como reforma tributária e a discussão sobre o papel da mídia na democracia, ganhem repercussão na sociedade organizada. Rocha é o autor original da proposta de emenda à Constituição (PEC) de combate ao trabalho escravo, em 1995, assim como de um projeto que resultou em lei que alterou o Código Penal, caracterizando aquela prática como crime. Ele entende que retroceder em questões relativas ao tema seria uma espécie de golpe parlamentar. “Esses avanços nós já conquistamos. Temos de ficar atentos e denunciar.” Em relação à proposta sobre a demarcação de terras indígenas, ele observa que o governo e Dilma simplesmente cumprem a Constituição. O artigo 231 confere à União a responsabilidade de “demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. A parada será dura. Dois dias depois da eleição, a Câmara, com apoio de aliados, derrubou decreto do governo sobre a política de participação social. E o PMDB deve lançar Eduardo Cunha (RJ) – não exatamente um amigo do Executivo – como candidato à presidência da Casa.

LEGISLATIVO

AP

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ENTREVISTA

Tamires Sampaio, primeira mulher negra a presidir um CA no Mackenzie, atribui avanços sociais do país aos movimentos, é devota da participação política e avisa aos que se acham donos da política: a juventude pede passagem Por Paulo Donizetti de Souza

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JAILTON GARCIA/RBA

Da periferia ao Centro Acadêmico, via Prouni


ENTREVISTA

A

técnica em laboratório Rosemary Gomes Sampaio, 47 anos, contou com a ajuda dos pais e irmãos para criar a filha única. Moradora da zona leste de São Paulo, trabalhava em posto de saúde da prefeitura paulista enquanto cursava a faculdade de Psicologia em Guarulhos, na região metropolitana. No início da década passada, saiu do aluguel para o atual apartamento em Guaianazes – num prédio de quatro andares, dois dormitórios, sala, cozinha e banheiro. Rosemary sempre foi frequentadora do sindicato dos servidores e ativista do movimento negro. Levava tanto a filha pequena em eventos e manifestações que, Tamires Gomes Sampaio, fã incondicional da mãe, desenvolveu paixão própria por “participar das coisas”. Tamires faz 21 anos neste 13 de novembro. Desde os 18, começou a militar com as próprias pernas e opiniões em movimentos contra a violência policial sobre a juventude negra e contra a discriminação racial. Em setembro tornou-se a primeira mulher, negra, moradora da periferia, bolsista do Prouni, a presidir o Centro Acadêmico João Mendes Júnior, da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, uma das instituições privadas mais tradicionais de São Paulo. Sua chapa, Catarse, foi formada por integrantes da Frente Perspectiva, coletivo de estudantes de esquerda de diversos matizes ideológicos. Venceu a eleição com maior número de participantes da história do CA, pouco mais de 1.600. “Diante de 6.600 alunos do Direito, é pouco ainda, né?” Para ela, a participação política é a principal atitude que a sociedade pode ter para mudar a realidade. As políticas de cotas, ações para a juventude pobre, a criação de órgãos como a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e o Estatuto da Igualdade Racial são resultados práticos de demandas dos movimentos sociais transformadas em políticas públicas. “Elas ainda precisam ser melhoradas e ampliadas, mas já surtem efeitos nas condições de vida e na criação de oportunidades para muita gente que não tinha”, avalia, ela própria um exemplo de oportunidade. Tamires sempre estudou em escola pública. Conseguiu bolsa para fazer cursinho pré-vestibular enquanto terminava o colégio. Por meio das notas no Enem, e graças ao Prouni, conseguiu ingressar, em 2011, e se manter até hoje no Mackenzie. Lá, nunca se considerou diretamente discriminada em razão de sua origem. “É o ambiente da universidade que compõe um retrato mais amplo do processo de discriminação que está na formação da nossa sociedade”, observa. “Você sente ao entrar no campus, passar por um segurança negro, deparar com a faxineira negra no banheiro e chegar numa sala com 80 alunos e apenas quatro negros. E ver outras que não têm nenhum.”

Como é a rotina de estudante que leva o curso a sério, faz estágio, preside um Centro Acadêmico de quase 60 anos de tradição e ainda participa de movimentos sociais?

(risos) Eu saio de casa às 6h da manhã para chegar na faculdade às 7h30. Com atividade no Centro Acadêmico, fico entrando e saindo no decorrer da aula várias vezes, os professores ficam até meio “assim” comigo. Saio da aula, passo mais um tempo no CA, almoço, vou para o estágio na Secretaria de Promoção da Igualdade Racial da prefeitura, às 13h30, à noite volto para o CA e fico até umas 22h. E aí, se tem manifestação a gente vai, se tem reunião a gente vai... O CA representa 6.600 alunos – só da Faculdade de Direito. Participaram da eleição pouco mais de 1.600 votantes, a maior participação da história da faculdade, e mesmo assim a gente percebe que ainda é pouco, né? É preocupante. É como nas eleições gerais, que tiveram 20% de abstenção. A gente luta tanto por democracia para as pessoas não participarem? Nossa chapa, Catarse, teve 627 votos e uma vantagem de mais de 200 sobre a segunda colocada – e isso foi surpreendente, porque a gente se elegeu dizendo que era de esquerda, que queria fazer o combate às opressões, que faltava horizontalidade para estimular a participação dos alunos nos assuntos da universidade. Na semana seguinte já estávamos organizando sabatinas entre candidatos a cargos legislativos, e temos dito que é preciso estimular o movimento estudantil no Mackenzie. Muitos vêm falar com a gente, parabenizar. E não falta também oposição. Faz parte. Você observa uma relação de ódio permeando as divergências na sociedade?

Nossa sociedade nunca foi estimulada a pensar coletivamente. Muita gente confunde democracia com “fazer o que a gente quer”. Como se se resumisse a poder votar e seu candidato ganhar, se ele não ganhar os que votaram nos outros estão errados, são burros. E isso acontece com gente de oposição e da situação. A gente vê as pessoas perdendo a capacidade de aceitar a crítica e de ser tolerante com a opinião do outro. Não sei de onde vem essa predisposição. Acho que é um misto de várias coisas. Uma delas é o processo de educação, que não estimula a formação crítica, o pensar, debater ideias. Outra é essa luta de classes diária, parcela da sociedade mais abastada pensa de uma forma, e outra parcela que não teve acesso a tantas oportunidades pensa de outra. São vários pontos de vista sobre o Brasil – e tudo isso é o Brasil – mas essas pessoas não conseguem entender essa diversidade de ideias, cultural, étnica e de gênero que a gente tem. A gente vive em uma sociedade estruturalmente racista, machista, classista, homofóbica, e isso se reflete nessas ações. REVISTA DO BRASIL

O feminismo discutido fora da questão racial não traz a emancipação de todas as mulheres. Se a gente não consegue protagonismo para todas, não serão todas as emancipadas; será a mulher branca e ‘tudo bem’, porque vivemos em uma sociedade racista NOVEMBRO 2014

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ENTREVISTA

Gosto muito de filosofia, de ciência política. A nossa chapa, a Catarse, utilizou esse termo porque o Gramsci (o pensador antifascista italiano Antonio Gramsci, 1831-1937) considera catarse a transição de um momento mesquinho, individual, para um momento ético-político em que todo mundo vai ser representado. A gente queria fazer uma catarse no movimento estudantil, para o CA deixar de ser de um grupo e representar a coletividade. Estou lendo muito sobre segurança pública, pois meu trabalho de conclusão de curso vai ser sobre o genocídio da juventude negra. Estou lendo muito sobre o sistema prisional, a desmilitarização da polícia, a mentalidade policial. Esse é o meu foco. Como sou militante do movimento negro, acho que o movimento deve vir até a academia, ocupar a academia para, combinado com pesquisas, dados concretos, trazer a realidade para dentro da academia. Por exemplo, a gente sabe que a Polícia Militar mata três vezes mais jovens negros do que brancos. Se a gente não tiver a academia mostrando que não são dados da minha boca, mas de uma pesquisa de um grupo de pesquisadores da UFSCar, a gente não consegue convencer todo o mundo. A gente vive em um país que viveu dois terços da sua história sob regime de escravidão e, ao assinar a Lei Áurea, um papel, não se acabou o processo de exploração e opressão de uma raça sobre outra. Não foi feita nenhuma política de inserção da raça que foi explorada. E não existe mágica. Esse preconceito histórico se tornou estrutural e, hoje, institucional. A polícia pode funcionar sem ter a força da arma e da hierarquia militar?

Não tenho respostas, mas acho que a transformação vem a partir da educação. Falta formação crítica nas escolas, onde vão estudar inclusive crianças e jovens que um dia vão querer ser policiais. Precisa haver uma formação mais humanizada dos policiais, e uma formação mais crítica da sociedade para cobrar que se cumpra a lei. Por exemplo, a Lei 10.639, que exige o ensino da história afro-brasileira. Se a gente tivesse essa disciplina bem aplicada, seria muito diferente. Nossa cultura é muito grande, a religião é muito rica. A ausência do ensino desse processo histórico acaba refletindo na formação da personalidade do negro, que é criado para não ter a autoestima, não ocupar os espaços de poder. Você é religiosa?

Sou batizada na Igreja Católica, fiz catequese, mas não adotei religião. Ultimamente tenho estudado sobre o candomblé, umbanda. Nas escolas, não se tem noção de que a África é um continente com tanta diversidade. É a partir do movimento negro que você descobre que a diversidade cultural é enorme. Sou muito curiosa. A religião africana é fascinante, orixás, guerreiras... Se, antigamente, as nossas referências de mulheres bonitas eram Branca de Neve e Cinderela, ali você descobre Iansã, Oxum, Iemanjá, princesas guerreiras. Isso é muito bacana porque você passa a ter referência de uma mulher negra bela, guerreira, rainha, com poderes para influenciar positivamente a vida das pessoas, e isso muda bastante a concepção de como você se vê. 22

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JAILTON GARCIA/RBA

Que tipo de leitura a atrai e faz parte da sua formação?

A Dilma é guerreira, enfrentou a ditadura e enfrentou o ódio. E venceu. Que bom. Mas o resultado da eleição mostrou que é preciso diálogo, e o PT voltar às bases. Senão, na próxima vai perder

Você também atua em questões de gênero?

Acompanho alguns grupos. Por exemplo, sou coordenadora nacional do Para Todas, um coletivo de movimentos estudantis, que se organiza nas universidades do Brasil inteiro, a partir da UNE. Acompanho a Marcha Mundial de Mulheres. Minha mãe fez um curso de promotoras legais, que surgiu depois da Lei Maria da Penha e estimula pessoas da comunidade a mediar conflitos, e eu acompanho também. O debate de gênero está muito ligado à questão do racismo, na minha concepção, porque são opressões estruturais. A gente tem de debater isso em todos os espaços porque não é uma questão pontual. O feminismo, em si, é uma questão muito diversa porque, mesmo na questão de gênero, a questão de raça é deixada de lado. É progressista, quer a transformação social, mas se é colocada uma questão de raça, dificilmente é considerada com tranquilidade. De um tempo para cá, as mulheres negras têm se auto-organizado numa vertente diferente, o feminismo negro. Se a mulher branca sofre machismo, a mulher negra sofre o machismo e o racismo, o tratamento diferente, e é importante saber fazer essa ligação e esse recorte. Os movimentos de mulheres, descolados da questão racial, têm conseguido ampliar mais seus espaços de oportunidade? É uma causa que tem alcançado resultados mais efetivos?


ENTREVISTA

Por exemplo, na minha sala de aula são 80 pessoas, 50 são mulheres. Na maior parte das salas de aula, na universidade, as mulheres têm ocupado os espaços, mas a mulher negra não. São apenas duas universitárias negras na minha sala. O feminismo discutido fora da questão racial não traz a emancipação de todas as mulheres. Cada mulher tem a sua especificidade. Se a gente não consegue dar o protagonismo para todas, não serão todas as que serão emancipadas. Vai ser a mulher branca, porque a gente vive em uma sociedade racista, e tudo bem. A gente tem sempre de fazer esse recorte, porque senão não teremos a emancipação, de fato, de todas as mulheres. Você acha que a presidenta Dilma conseguiu uma grande vitória por enfrentar uma situação de massacre da imprensa e mesmo assim vencer, ou acha que o resultado apertado é para o governo e o PT quase uma derrota?

Um pouco das duas coisas. O resultado mostrou para o governo e para o PT que, se continuar esse modo de política e de governo, sem diálogo direto com o movimento social, como aconteceu nos últimos anos, na próxima eleição vai perder. Ainda assim, é uma grande vitória porque prevaleceu sob vários ataques. A Dilma é uma mulher guerreira, que enfrentou a ditadura e se mostrou forte, mostrou que consegue enfrentar qualquer coisa. Enfrentou o ódio. A gente falava que a esperança vai vencer o ódio, o amor vai vencer o ódio, e venceu. Que bom que venceu. Mas o governo e o PT precisam entender que não dá pra fazer política como vem sendo feita nos últimos anos. Se continuar nessa politica de concessão, o governo vai pender para a direita. É perigoso. O PT, historicamente de esquerda, fez uma transformação social muito grande. Se se deixar levar por esse Congresso que aí está, ou por acordos como os que foram feitos nos últimos anos, vai acabar toda a história. Espero que tanto o PT como o governo tenham entendido esse recado dado pelas urnas. A gente saiu do mapa da miséria. Agora, o negro pode fazer universidade, pode trabalhar no serviço público, em cargos importantes. Tem o Pronatec, o Bolsa Família, vários outros programas que propiciaram uma transformação muito grande. A “nova classe média”, que surgiu no governo do PT, está votando no PSDB. Um colega da chapa conservadora na eleição do CA é negro, prounista e votou no Aécio. Tenho outro colega negro, prounista, filiado ao PSDB. Isso, em muito, culpa do PT que não fez esse debate na sociedade. Precisa fazer, voltar às bases. Dialogar com os movimentos sociais não só no momento da campanha, mas durante os quatro anos de governo.

Em que área do Direito você pretende se especializar?

Em princípio penso na área penal, mas preciso amadurecer isso. Sei que quero ser professora universitária. Mas ainda não sei se vou ser advogada... criminal, se vou pleitear o Ministério Público, que foi o que me moveu a entrar na faculdade. Aí a gente vai percebendo que o Ministério Público não funciona como deveria. Você escreveu em seu blog que 2013 foi um ano “muito louco” em sua vida. Por quê?

Ah, você encontrou meu blog? O ano passado foi especial porque depois dos 18 anos, quando parei de ser uma acompanhante da minha mãe em atividades de militância, passei a ser a militante Tamires. Então participei de congresso da UNE, de encontros de mulheres da UNE, da conferência de igualdade racial – tanto no encontro regional como no nacional –, foi um ano em que mergulhei de cabeça em movimentos sociais, feminista, negro, partido, e isso me transformou muito. Porque a luta transforma, muda o seu modo de ver as coisas, parece que havia uma venda nos meus olhos que sumiu a partir do momento em que mergulhei nela. Por isso 2013 mudou bastante a minha vida. Fora as manifestações de junho, que transformaram a sociedade como um todo. Foi um momento em que as pessoas foram para as ruas e mostraram que a participação social pode mudar o curso de um governo. Foi um momento que mostrou também que os antigos meios de se organizar estão ultrapassados, precisam se transformar também. Foi um recado contra a política tradicional e os políticos tradicionais. Mas não foi esse o setor que se saiu melhor nas eleições para o Congresso, e quase também na presidencial? O PT perdeu mais que os conservadores pouco identificados pela marca partidária?

Não sei se foi o PT, só. A esquerda em geral, i­ ncluídas as organizações e movimentos tradicionais da sociedade que se organizam há muito tempo. Foi passado um recado. Tem de haver uma oxigenação. Terão de passar a ouvir mais essa juventude que está aí e quer lutar – e que não viveu as lutas que eles viveram no passado, mas que viveu essas jornadas de agora e quer se manifestar, quer uma forma diferente de se organizar. Se não houver essa autocrítica, em reconhecer que essa juventude que está se manifestando não quer mais ser comandada por quem se acha dono da política porque é mais velho e participou de outras lutas, esses setores serão engolidos por essa galera que está se organizando de outra forma. REVISTA DO BRASIL

Junho de 2013 foi um momento em que as pessoas foram para as ruas e mostraram que participação social pode mudar o curso de um governo. E que os antigos meios de se organizar estão ultrapassados e precisam se transformar também NOVEMBRO 2014

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HISTÓRIA Vargas na Fazenda Itu, Rio Grande do Sul (1949)

Trilogia sobre Getúlio traz perfil desapaixonado do estadista até hoje atual e polêmico. Ao suicidar-se para que nenhum sangue fosse derramado, exceto o “de um homem cansado e enojado”, fez da derrota sua vitória Por Amaro Augusto Dornelles

Nem desespero, nem covardia. Política

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HISTÓRIA

ACERVO ICONOGRAPHIA

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projeto de biografar o “Velho Caudilho” consumiu cinco anos de dedicação praticamente integral do autor, o jornalista e escritor cearense Lira Neto. “Lembro que, na época, comprei um novo computador para a empreitada. Só que antes do final do trabalho ele se mostrou insuficiente para suportar o volume de dados e documentos digitalizados. Eram tantas fotos, filmes, arquivos sonoros, charges, cartazes, panfletos, cópias e recordes de jornais e revistas, bilhetes, telegramas, memorandos, ofícios, inquéritos policiais militares, anais parlamentares, processos judiciais, teses acadêmicas e livros, que faltou memória”, conta. De fato, proporcionar aos brasileiros conhecer e entender o papel desse personagem na história do país é desafio que vale o esforço. Afinal, até hoje sua passagem é cercada de polêmicas. Assim como seu legado para os projetos de desenvolvimento do país de um lado, e de entendimento das relações e da legislação trabalhistas, de outro. Sua dimensão é tamanha que no final de 1994, quatro décadas depois do tiro que tirou Getúlio da vida e o eternizou, o presidente recém-eleito, Fernando Henrique Cardoso, prometia para os próximos anos “o fim da Era Vargas” (leia quadro à página 24). O primeiro volume da obra de Lira Neto veio em 2012: 1882-1930, Dos Anos de Formação à Conquista do Poder. No ano passado, saiu 1930-1945, Do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo. Uma rara combinação de virtudes está presente em Getúlio, 1945-1954 – Da Volta pela Consagração Popular ao Suicídio, o terceiro e último volume da biografia. O lançamento foi em agosto, na passagem dos 60 anos do suicídio de Vargas, no Palácio do Catete, no Rio de Janeiro Conhecer a história continua sendo o melhor antídoto para um povo não repetir erros já cometidos. A compreensão do passado ganha consistência quando os fatos analisados são fartamente documentados. Melhor ainda quando os acontecimentos são redigidos com a isenção que se espera de um historiador, sem que se abra mão da melhor técnica narrativa, de um enredo que parece ficção. A realidade, como se sabe, pode superar a mais elaborada criação literária. “Para o bem ou para o mal, Getúlio é o personagem político mais importante da história do

Brasil”, costuma dizer Lira Neto, ao deixar clara sua isenção em relação ao biografado. O último volume da trilogia começa em São Borja, onde Getúlio buscou exílio depois de 15 anos de poder no Catete. Um apontamento de 1945 registra o estado de espírito dele, ao voltar para o Rio Grande: “Entrei para o governo por uma revolução, saí por uma quartelada”. O legado de Vargas permanece até hoje, goste-se ou não. A começar pela questão legislação trabalhista, toda a regulamentação da relação capital e trabalho, assim como no seu projeto de desenvolvimento, com a criação da Petrobras, BNDES, Banco do Nordeste, Eletrobras, só para citar alguns exemplos. “Agora, temos de ter como perspectiva – e foi com isso que me preocupei como biógrafo – a necessidade de fugir do maniqueísmo; de tentar vê-lo só por um lado positivo, ou só negativo, do ditador que perseguiu liberdades democráticas. Ele é fascinante exatamente por isso: ele é isso e é aquilo. Qualquer tentativa de analisá-lo por um único viés vai cair no pecado original daqueles que simplesmente o amam ou o odeiam”, sustenta o biógrafo. Getúlio é identificado como ditador, violento, responsável pelo fechamento do Congresso. Mas também como o homem que exerceu um papel de protagonista na invenção do Brasil moderno. Tais facetas fascinam quem conhece sua história; um homem que caiu em 1945, como ditador, e teve forças para voltar em 1950, eleito pelo voto popular, na condição de grande líder de massas.“A forma como ele escolheu para passar à história, dando fim à própria vida, ajudou a consolidar ainda mais a sua permanência no imaginário coletivo”, diz Lira Neto.

Correspondência

A grande contribuição do escritor para a compreensão do fenômeno Getúlio Dornelles Vargas é o resgate da correspondência – inédita – mantida com a filha Alzira. Para o jornalista, a primogênita se tornou uma espécie de embaixatriz do getulismo na capital federal, mantendo o pai, deposto por militares em 1945, informado sobre os bastidores do governo Eurico Gaspar Dutra e ao mesmo tempo ajudando-o a manter as rédeas do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB). Procurado pela imprensa – ou mesmo por correligionários – para falar sobre sua volta REVISTA DO BRASIL

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HISTÓRIA

à política, Getúlio sempre desconversava. Dizia estar disposto a permanecer calado até as eleições. Um ano depois, em 1946, no entanto, o ex-ditador voltaria ao Rio de Janeiro nos braços do povo, que votou maciçamente em seu nome para o Senado. A partir do amplo ‘arsenal de informações’ coletadas, o autor reproduz o clima histórico do país ano após ano. Em 1949, com a sagacidade que se tornou sua marca registrada, Getúlio deixou transparecer a possibilidade de voltar ao Palácio do Catete. A partir daí o movimento “queremista” recomeçou a ecoar por todo Brasil, exigindo a volta do “Pai dos Pobres” à presidência. A consagradora votação alcançada na eleição de 1950 foi o marco inicial de um dos períodos mais conturbados da vida política nacional. A oposição visceral da União Democrática Nacional (UDN) e da imprensa – liderada por Carlos Lacerda – combateu todas as iniciativas populares do segundo governo Vargas. E também as nacionalistas. Em 3 de outubro de 1953, por exemplo, foi criada a Petrobras, depois de 22 meses de tramitação no Congresso. O Última Hora foi o único jornal a dar destaque positivo ao fato na primeira página. Os demais deram a notícia em espaços reduzidos em páginas internas. Ao contrário dos editoriais e comentários assinados, todos contra a Petrobras, que ganhavam destaque. No seu Diário da Noite, Assis Chateaubriand rotulou a abertura daquela que se tornaria a maior empresa brasileira de todos os tempos como “capricho caro”, reprovando a opção brasileira pelo monopólio estatal do petróleo. Chatô lembrava que Estados Unidos e Canadá jamais haviam cedido à tentação de nacionalizar a pesquisa ou a indústria de petróleo. “Se essa lição parte das duas nações melhor administradas da terra, por que vamos adotar aqui um sistema peculiar a xenófobos de países inferiores?” O Correio da Manhã tachou­a criação da Petrobras como aventura de “nacionalistas rasteiros”, defensores de “monstruosidades”. Os Diários Associados deram espaço para o deputado Plínio Pompeu (UDN) cometer uma análise primorosa: “A Pe26

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Vargas no Palácio do Catete, após Revolução de 1930

Na refinaria da Petrobras em Mataripe (BA) aperta a mão de um funcionário (1952)


HISTÓRIA

FOTOS ACERVO ICONOGRAPHIA

Durante a campanha eleitoral de 1950

trobras é um convite para que se retirem do Brasil os que colaboram conosco”, sustentava o parlamentar, dizendo que a culpa era do governo Vargas, covarde e incapaz de resistir à onda comunista”. Do alto de sua indignação, o udenista previu que a experiência fracassaria dentro de um ano, no máximo. Com a autoridade de quem mergulhou de corpo e alma durante meia década na vida do mais controverso político deste país, Lira Neto ressalta que, depois de governar com mão de ferro o Brasil durante o Estado Novo – perseguindo adversários, imprensa e quem contrariasse seus planos –, de 1951 a 1954 Getúlio jamais utilizou a força para fazer valer sua vontade. E ressalta que o segundo governo se deu sob o Estado democrático, com Congresso funcionando e imprensa livre para criticar. Seu ministério foi de coalizão – uma espécie de pacto de governabilida-

de, como se diz hoje –, trazendo até um representante da arquirrival UDN, para ocupar o Ministério da Agricultura. Como hoje, as pressões contra o governo eram múltiplas. Com a astúcia que se tornou marca de sua política, Vargas montou uma equipe especial para assessorá-lo. No primeiro dia de seu mandato, convocou o economista baiano Rômulo de Almeida, diretor da Confederação Nacional da Indústria, e o incumbiu de uma importante tarefa: compor uma assessoria econômica, ligada diretamente à secretaria da Presidência, para elaborar estudos e projetos de infraestrutura em áreas consideradas estratégicas, como energia, transporte e industrialização. No livro, o próprio Rômulo de Almeida – que recebeu carta branca do chefe para selecionar auxiliares em função da competência técnica, desde que fossem nacionalistas – conta que “quase ninguém” sabia da existência da assessoria econômica.

Tubarões

“Era o chamado Ministério dos Tubarões, por reunir representantes dos empresários, banqueiros e usineiros, só peixe graúdo”, diz Lira Neto. “Eles tinham uma sala no primeiro piso do Catete e trabalhavam livres de qualquer tipo de pressão política, militar ou o que fosse. Foi desse grupo que saíram todos os projetos de desenvolvimento daquele perío-

do, como Petrobras, Eletrobras, BNDES, Banco do Nordeste.” O tempo passava e a oposição não dava tréguas. A imprensa “espetacularizava” denúncias reais e forjadas, mantendo o governo sempre em xeque. Até chegar a hora em que a pressão se tornou irresistível: era o “mar de lama” que transbordava no noticiário político e se transformava no assunto de todo mundo. Pelo que se constata, mesmo com toda evolução do aparato tecnológico, a velha mídia não muda. Até hoje envolto em uma aura de mistério, o atentado a Lacerda, em agosto de 1954, é apresentado em múltiplas versões. Inclusive uma segundo a qual o próprio jornalista confessa não ter entregue sua arma à perícia por temer que dela tivesse partido o tiro no militar, acidentalmente. Acuado pela eminência de um golpe militar, Getúlio chegou a esboçar uma resistência, mas preferiu o tiro no coração à renúncia. Segundo Lira Neto, a resistência ao golpe – “Sim, golpe, pois Vargas foi eleito pelo voto democrático e governou com o Congresso” – suscita dúvidas até hoje. Ele lembra que há interpretações – como a da própria filha Alzira – sobre uma possível resistência. Ela acreditava que o pai tinha todas as condições objetivas, militares, de resistir ao cerco de brigadeiros, almirantes e generais. O trio havia assinado os três famosos manifestos exigindo a REVISTA DO BRASIL

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HISTÓRIA

FOLHAPRESS

Carlos Lacerda é condecorado pelos golpistas de 1964

renúncia. A Vila Militar ainda não havia aderido ao golpe. Na célebre reunião que antecedeu o suicídio, Alzira irrompeu na sala onde o ministério discutia com o presidente a conjuntura política. Depois de bater na mesa, a moça peitou o general Zenóbio Costa, ministro da Guerra, propondo não entregar os pontos diante das adversidades. E perguntou à queima-roupa: “E a Vila Militar? Alguém faz uma revolução, ou dá um golpe, sem a Vila Militar? Pois nós estamos prontos para responder à bala! Meus informantes dizem que a Vila Militar está como o presidente”.

Lira Neto lembra que Alzira Vargas escreveu um livro – Getúlio Vargas, meu pai –, mas deixou de fora outras notas destinadas ao segundo volume, que ficaram inéditos. Foi nelas que o autor encontrou, com impressionante riqueza de detalhes, informações sobre o que aconteceu até a crise final: “Alzira diz que os Vargas estavam armados. Ela tinha um revólver na bolsa, esperando que os militares viessem tirar Getúlio do Palácio”. A carta-testamento de Getúlio Vargas permite mais de uma leitura. Maciel Filho, o secretário particular que a datilografou – o chefe não sabia usar a máquina

de datilografia – declarou não entender aquilo como carta de um suicida. Mais tarde, quando foi cobrado pela família sobre o motivo de não alertar ninguém, disse achar que fosse uma carta de resistência, não de suicídio. Se você ler a carta-testamento na perspectiva de alguém que está disposto a morrer com a arma na mão, ela tem esse sentido. Para Maciel, o documento era o testemunho de um homem disposto a morrer lutando. Mas Getúlio escolheu poupar os outros e disse, textualmente, que “se algum sangue for derramado, será o de um homem cansado e enojado de tudo isso”. Em geral, o senso comum costuma entender o suicídio como ato de desespero ou covardia. Para Lira, naquele momento, o ato de Getúlio não correspondia a nenhum dos dois. Era, na verdade, um ato político, calculado friamente, do qual ele sabia da eloquência, do significado e dos efeitos sobre a crise política. Ele sabia que o gesto seria tão forte, com efeitos tão intensos, que seus adversários teriam de partir para a defensiva. “Curiosamente, a derrota naquele momento – sua morte – significou uma vitória. Ele conseguiu trocar os sinais de uma equação política que já parecia resolvida: quem era vitorioso passou a ser derrotado, e o quase certo derrotado foi o grande vitorioso, não só para aquele momento, mas para a própria história.”

FHC e o fim da Era Vargas Já no terceiro milênio, a Petrobras é uma das maiores empresas do setor no mundo – além de dispor da tecnologia mais avançada para prospecção de petróleo em águas profundas –, mas ainda tem muita gente contra. Eleito no final de 1994, Fernando Henrique Cardoso fez um discurso inflamado no Senado chamado “O Fim da Era Vargas”. O tucano prometia “acertar contas com o passado” e promover um futuro de desenvolvimento sem as amarras impostas pelo “modelo de desenvolvimento 28

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autárquico e seu Estado intervencionista” imposto ao Brasil pelo presidente Getúlio Vargas. Dito, mas não feito. Mas tentaram. Em 1998, o governo FHC impediu a Petrobras de obter empréstimos no exterior e de emitir debêntures para a obtenção de recursos para novos investimentos. Criou ainda o Repetro – regime aduaneiro especial – concedendo isenção fiscal a empresas estrangeiras que importassem equipamentos de pesquisa e lavra de petróleo, sem a devida contrapartida para as em-

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presas nacionais. Com isso, 5 mil empresas brasileiras fornecedoras de equipamentos para a Petrobras quebraram, provocando desemprego e perda de tecnologia nacional. Em 2001, com a desculpa dos desafios trazidos pela internacionalização da marca Petrobras, a diretoria chegou a anunciar um projeto de mudança de nome para Petrobrax. Seria o primeiro passo para uma futura privatização. O plano fez água, e FHC foi obrigado a recuar diante do desgaste que a medida causou.

No programa de governo do tucano Aécio Neves, a proposta era rediscutir o modelo de partilha para a exploração do pré-sal adotado por Dilma Rousseff, retomando as concessões da era FHC. O modelo dá ao setor privado o direito de exploração dos campos de petróleo. O governo é remunerado apenas pelos royalties. No sistema atual, em vigor desde 2010, a produção é dividida entre o consórcio e a União. Vence o leilão quem oferece a maior parcela da produção ao governo.


LALO LEAL

O frio na barriga podia ser evitado

Um grave déficit de democracia do Brasil é o de diversidade de visões de mundo circulando pelos meios de comunicação. Sem superá-lo, seguiremos sujeitos às intervenções da mídia na decisão do eleitor

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angústia que tomou conta dos eleitores de Dilma Rousseff ao final da tarde de domingo 26 de outubro poderia ter sido evitada. A margem tão estreita de votos obtida pela presidenta diante de um candidato fraco, dono de um currículo de realizações paupérrimo e com propostas voltadas para o retrocesso, só foi possível graças ao trabalho intenso desenvolvido pelos meios comunicação. Sem essa interferência, a disputa poderia ter sido decidida no primeiro turno. A escalada intensificou-se às vésperas do segundo, e ganhou ares de guerra nos três dias que antecederam a eleição final, chegando ao ápice entre a noite de sábado e o domingo, depois da divulgação das últimas pesquisas. Assim se explica o estreitamento da margem de votos entre os dois candidatos verificado nas urnas em relação ao que anunciavam os institutos de pesquisa. Os quatro ou seis pontos previstos foram reduzidos ao final para 3,2. Dois fatos alardeados pela mídia no sábado à noite e durante todo o domingo contribuíram para essa alteração. Uma manifestação diante do prédio da Editora Abril foi o álibi usado pelo Jornal Nacional para ampliar a denúncia de corrupção feita no dia anterior pela revista Veja, sem qualquer respaldo nos fatos. No domingo, ainda com um grande número de eleitores indecisos, rádios, TVs e internet não se cansavam de especular a respeito do doleiro delator que teria sido “envenenado” pelo PT. Chegava-se ao auge da irresponsabilidade. Nada disso é novo na história do Brasil, variando apenas o seu grau de intensidade. Assumido como partido de oposição, o conjunto dos meios de comunicação nunca poupou os governos populares de duros e constantes ataques, ao longo de todos os mandatos. Com a aproximação dos períodos eleitorais a prática se intensifica e a verdade, quase sempre, é deixada de lado. Em 2014, no entanto, a mídia se superou. A campanha foi crescendo ao longo do ano,

tendo como tema a corrupção, sempre apresentada de forma seletiva e dirigida a desgastar apenas o nível federal de governo, e apenas um partido. Em qualquer democracia, propostas e mensagens partidárias chegam à população pelos meios de comunicação. Aqui dá-se o contrário: é a mídia que oferece à oposição os seus motes de campanha. Dão o tema e os partidos correm atrás. Exemplo maior foi o candidato do PSDB responder a uma pergunta sobre a corrupção, no último debate televisivo, dizendo que o problema se resolveria tirando o PT do poder. Um dos principais déficits de democracia existente hoje no Brasil é de diversidade de opiniões e visões de mundo circulando pelos meios de comunicação. Sem superá-lo não chegaremos à democracia plena e seguiremos sujeitos a eleições em que a mídia ­interfere abertamente na decisão do eleitor. Em 2007, o documento final do 3º Congresso Nacional do PT propunha “a imediata revisão dos mecanismos de outorga de canais de rádio e TV, concessões públicas que vêm sendo historicamente tratadas como propriedade absoluta por parte das emissoras de radiodifusão. Essa atualização passa pelo cumprimento da lei, haja vista a flagrante ilegalidade em diversas emissoras, por maior transparência e agilidade nos processos e pela criação de critérios e mecanismos para que a população possa avaliar e debater não somente a concessão, mas também a renovação de outorgas. (…) O PT deve se juntar à luta da sociedade organizada para concretizar os preceitos da Constituição de 1988 que estabelecem a proibição do monopólio na mídia e definem como finalidade do conteúdo veicular a educação, a cultura e a arte nacionais”. A resposta dada pela presidenta Dilma ­Rousseff às inverdades publicadas pela revista Veja foi um alento. Alimenta a esperança de que, em seu segundo mandato, a Lei de Meios seja posta em discussão com a sociedade e que o governo venha a se empenhar para transformá-la em realidade. REVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

É SÓ O COMEÇO Representantes de trabalhadores apresentam sugestões à Comissão da Verdade e querem que propostas, como a punição de empresas que colaboraram com a ditadura, sigam adiante Por Vitor Nuzzi

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Comissão Nacional da Verdade está a um mês de entregar o seu relatório final, depois de dois anos e meio de trabalhos, em meio a pressões tanto de ativistas dos direitos humanos como de setores favoráveis ao golpe de 1964. Em meados de outubro, 30

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um dos grupos que compõem a CNV, o dos trabalhadores, entregou as suas recomendações para o relatório, incluindo desmilitarização das polícias militares, revisão da Lei da Anistia e punição para empresários e empresas, públicas e privadas, que colaboraram com a ditadura. Além disso, o grupo – formado por cen-

trais sindicais e outras entidades – quer que sejam apuradas responsabilidades em episódios que resultaram em mortes de trabalhadores. Citam, entre outros, casos ocorridos em Serra Pelada (PA), Volta Redonda (RJ), Ipatinga (MG), Morro Velho (MG) e Sampaio (TO). Outra recomendação é pela revogação de artigos do Código Penal que interferem no direito de greve. No total, são 43 recomendações, divididas em cinco temas: crimes contra a humanidade, legislação, segurança pública, memória e direitos. O secretário de Políticas Sociais da CUT, Expedito Solaney, representante da central no grupo de trabalho, avalia que a apresentação do relatório da CNV


CIDADANIA

SEM CLEMÊNCIA Repressão à greve dos metalúrgicos em São Bernardo, 1979

à presidenta Dilma Rousseff, em dezembro, está longe de significar o encerramento das atividades. “Não é para ficar na gaveta do Arquivo Nacional. A nossa disputa começa agora”, afirma. Os representantes dos trabalhadores propõem a criação de um organismo, após a extinção da CNV, para monitorar e pressionar para que as propostas sejam atendidas. “Agora é que vem a parte mais difícil. O relatório tem de refletir as recomendações.” A punição a empresas é parte importante do documento, considerando que várias delas colaboraram permitindo a entrada de agentes infiltrados nos locais de trabalho e entregaram listas de funcionários ao Dops. O documento fala em

JUCA MARTINS/OLHAR IMAGEM

ROBERTO PARIZOTTI/CUT

SEM PERDÃO Ato de sindicalistas pede punição

“investigar, denunciar e punir empresários, bem como empresas privadas e estatais, que participaram material, financeira e ideologicamente para a estruturação e consolidação do golpe e do regime militar”. Essas empresas deveriam ser punidas financeiramente, inclusive. No primeiro dos 43 itens, o grupo dos trabalhadores defende que o Estado brasileiro acate as normas do direito internacional sobre crimes contra a humanidade e ratifique convenção das Nações Unidas sobre a imprescritibilidade de tais crimes. Também propõe suprimir artigo da Lei da Anistia de forma a permitir punição de agentes públicos, além da revogação da Lei de Segurança Nacional. Ainda no campo legal, o grupo pede revisão da lei que criou a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos (9.140, de 1995) e duas relacionadas, “com reabertura de prazo indeterminado para a entrada de requerimentos com pedidos de reconhecimento e reparação”. Os trabalhadores querem ainda a formação de um grupo de trabalho interministerial para identificar e suprimir leis incompatíveis com o estado democrático de direito. Uma reivindicação constante das centrais, a ratificação da Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), foi incluída no texto. A norma tra-

ta de proteção contra demissões imotivadas – Solaney lembra que o golpe de 1964 acabou com a estabilidade no emprego prevista em lei. Além disso, os trabalhadores querem que enfim se regulamente a Convenção 151, sobre organização sindical e negociação coletiva no setor público. Solaney também enfatiza a necessidade de acabar com o “manual“ da Escola Superior de Guerra e introduzir elementos de direitos humanos na formação militar. A proposta tem alcance além do trabalhista, observa o sindicalista, e busca “quebrar a doutrina de que todo civil é um suspeito”.

Universidades

Em outubro, a Rede Nacional de Comissões da Verdade Universitárias (RNCVU), que reúne 13 colegiados, também entregou um conjunto de sugestões à Comissão Nacional da Verdade. Segundo seus representantes, o documento contém 12 recomendações específicas sobre universidades e educação e 16 propostas gerais. Uma trata de tipificar crimes contra a humanidade e outra, a exemplo dos trabalhadores, é relativa à criação de um organismo permanente que dê continuidade ao trabalho da CNV. Leia mais em bit.ly/sugestoes_cnv REVISTA DO BRASIL

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CULTURA

O SAMBA CAIPIRA RESISTE Descendentes dos antigos sambeiros preservam a tradição no interior de São Paulo

Por Maurício Sérgio Dias Fotos de Adriano Ávila 32

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batuque corria nos passos dos casais. Eram mais ou menos 40 pares atravessando dias de festa, noite e dia no bailado. No palco improvisado os grupos se revezavam, vindo dos mais diferentes lugares: de Areia Branca, do bairro da Estância, do Varzeão, do Guaraná e mesmo de outras cidades, como Itapetininga e Guareí. A música era o samba caipira, tocado nas caixas, no sambão, no reque-reque, nas palmas e na voz. Os versos eram dos sambeiros mesmo, às vezes já compostos, às vezes tocados no improviso.

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Era mais ou menos assim que o samba acontecia, até meados dos anos 1960 em Quadra, localizada a 166 km a oeste da capital. Hoje os lugares de encontro são outros, mas ainda sobrevive ali um tom idílico de passado recente. Ao chegar à cidade, as barracas já se armavam na bela praça central. Na disposição espacial do comércio festeiro, estruturas metálicas se mesclavam com as armações de madeira, num prenúncio de transição: o atual e o tradicional vivendo em suave tensão. Era a quermesse se armando. Mais à noite, quando já ocorria a festa, o


CULTURA

A Quadra do Bom Jesus Cidade que o povo adora É na cidade de Quadra Que o Samba Caipira mora João de Ditão

contraste podia ser sentido na pele. Um delicioso bolinho caipira, feito à base de farinha de milho e frango de roça, leitoas e costelas assadas eram degustados ao som mecânico do sertanejo moderno e do funk carioca. É. Pelo menos ali, o samba caipira não era mais bola da vez.

Sambeiros muito vivos

Não se engane, não. Muito longe de acabar, o samba caipira continua em Quadra. Os responsáveis pela longevidade do samba são descendentes dire-

tos de antigos sambeiros — conforme eles mesmos se denominam. Ser filho de sambeiro é coisa séria. Do mesmo modo que os antigos gregos dos livros de Homero, a menção ao pai se carrega no nome: João, filho de Ditão; José, filho de Abel. João forma com o seu cunhado Francisco Soares, o Preto, de 72 anos, José Carlos Soares, conhecido como Zé do Abel, 54, e com o Francisco Domingos de Arruda Campos, o Chicão, 53, o grupo Os Filhos de Quadra. Membros de uma es-

tirpe que está rareando, são muito ciosos de seu valor e de sua importância. João de Ditão é o grande guardião do samba caipira. Improvisador nato, dono de estilo próprio, conta que tem mais de mil versos registrados. “O samba de antes se fazia batendo na caixa, mas era repicado. Qualquer verso que vinha dava certo. Agora, o do João não dá. Cada currimaço de verso é uma toada. Vai pra outro currimaço, já é outra toada”, fala Preto de seu parceiro, a quem considera um irmão. Até onde REVISTA DO BRASIL

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CULTURA

e­ ntendemos, toada corresponde a um conjunto melódico, e currimaço é como se denominaria uma estrofe ou um conjunto de versos. Dá para dizer que um importante braço do samba de Quadra começou no interior da família de João de Ditão: “Meu avô, pai do meu pai, que se chamava Dezidério José de Andrade, nasceu em 1850 na cidade de Avaré, e desde menino foi empregado de fazenda de escravos do senhor José de Campo, no bairro da Estância, aqui em Quadra. Lá meu avô trabalhava de carreiro transportava lenha, café e cereais com o seu carro de boi. Todos os sábados ele ia até os batuques dos escravos, que ensinaram o meu avô a cantar o que hoje é conhecido como samba caipira”, conta. A transmissão da tradição, do pai para os filhos, marcou profundamente as origens do gênero: “No ano de 1920 foi que meu avô ensinou meu pai Benedito de Dezidério e meus tios Cornélio e Brasilio o samba caipira”. Esses dois relatos foram extraídos do Livro de Samba Caipira dos Filhos de Quadra, de autoria de Francisco Domingos de Arruda Campos, o Chicão, que além de cantador é jornalista e historiador. Apaixonado desde pequeno pelo samba, Chicão conta a origem dos instrumentos: “Foi mantida a tradição no jeito de se usar os instrumentos. Por volta de 1870, os escravos fabricavam seus próprios pandeiros, o reque-reque de bambu e o sambão. Eles pegavam os couros dos bichos que os patrões matavam e faziam os instrumentos. Esse sambão tem uns 70 anos. Pra afinar, acende uma fogueira e esquenta o couro no calor. As caixas eram amarradas com cipó”.

Muchirão e Palizado

Uma das razões do declínio do samba caipira foi o avanço dos lazeres urbanos. Como já disseram tantos estudiosos da cultura caipira – como o sociólogo Antonio Candido, literato e professor aposentado da USP –, ela tem entranhada em seu ethos a noção do lazer. Antes do advento da televisão e do rádio, os bailes eram muito apreciados. “O pessoal dançava aos montes porque era uma das pou34

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HERDEIRO João Ditão: Todos os sábados meu avô ia até os batuques dos escravos, que o ensinaram a cantar o que hoje é conhecido como samba caipira

O nosso samba não arreia Nem que chegue o ano dois mil Por ser a primeira diversão Que alegrou o nosso Brasil Dezidério


CULTURA

O meu pai cantava samba Sambeiro o seu filho é Eu trouxe herança dos meus pais Eu sei que o samba não cai Enquanto eu tiver de pé João de Ditão

soureira, que era uma espécie de arbusto próprio pra fazer as vassoura que varria os terreiro. Era mais de 15 par dançando animado. E o pó do chão de terra que subia com tanta animação”. Hoje, contudo, as apresentações do samba são feitas para a preservação da tradição caipira, em seu batuque de estilo único, nascido e criado ali, na região de Quadra.

Recomenda das Almas

Dou valor pro meu ranchinho Amarrado de imbira É deste ranchinho que venho Mostrar o meu samba caipira João de Ditão

cas diversões que tinha. Era malha, corrida de cavalo, rinha de galo, futebol e o samba”, diz Chicão. Preto explica que isso acontecia em virtude das ações de ajuda mútua entre os vizinhos: “A gente fazia o muchirão quando tinha que limpá a roça ou senão recolher (colheita). Reunia os vizinhos do bairro e fazia uma troca de dia. Vamos supor que você tem uma lavoura e eu outra. Daí você diz: ‘Preto, dá pra você ir carpir pra mim em tal dia?’ Aí a gente fazia uma reunida pra carpir”. Para compensar todo esforço despendido, vinha a boia farta, oferecida por quem solicitava o trabalho: “Quando se reunia, sempre quem pediu oferecia almoço. A noite tinha uns bolinho de arroz e trigo, fritinho. Também tinha carne de leitoa, frango. Chamava umas 15 pessoas pra carpir um alqueire que tava perdido no mato e pra dá de comer pra esse pessoal tinha que matá uma leitoa. O almoço era umas nove da manhã e a janta às três da tarde”. Era no prolongamento desses mutirões que aconteciam os bailes. Eles eram realizados no interior de armações de mastros e forradas com palha. Chicão explica: “Os palizados eram feitos com cinco paus fincados (um no meio), coberto com vas-

Terra de samba também é terra de devoção. Os mesmos sambeiros que fazem a batucada se reúnem na quaresma para a Recomenda das Almas, ação de oração em prol das almas do purgatório. À medida que avança o crepúsculo, o grupo da Recomenda já sai para a rua, a fim de fazer suas visitas. Preto fala da dificuldade de se fazer a Recomenda na cidade: “Pra fazer, você tem que avisar o dono da casa. Porque senão a gente vai lá e o portão tá chaveado. Antigamente não tinha isso. Tinha cerca em volta da casa, mas era de arame”. Há todo um ritual em respeito das almas: “Quando o pessoal da Recomenda chega, se vê que os dono da casa que tão ali por fora entram correndo, fecham as janela, as porta, apaga as luz e fica tudo no escuro, esperando a cantoria começar. Depois, abre as portas, acende as luzes e convidam ‘vem tomá um café’. Na hora que vai embora, antes de bater a matraca, fecha a casa de novo. Isso tudo pra respeitá as alma”, conta Preto. E as coisas mais curiosas acontecem. João de Ditão completa: “Até o cachorro mais bravo não morde o cantador”. Seja no batuque ou na fé, o que impressiona é a força desses sambeiros, que carregam o orgulho da tradição da cultura caipira, no seu dia a dia, em cada uma de suas ações. Como diz João de Ditão: Assim é a vida na roça Hoje eu moro na paióça Arranjei uma carroça Pra ser minha condução Na cidade arguma história é poco Se eu fico lá eu fico louco Porque meu nome é caboclo E quero os meio da plantação REVISTA DO BRASIL

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PERFIL

DO MEU BAIRRO PARA O MUNDO

Da ‘Revolução dos Boys‘ ao cineclubismo. Do trabalho lúdico com crianças nas periferias às biografias de Mandela e Malcom X, Jeosafá Gonçalves tornou-se um homem de palavras e ações Por Cida de Oliveira

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PERFIL

MARCIA MINILLO/RBA

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o começo daquela tarde de setembro de no vestibular e o ingresso, aos 26 anos, na Faculdade de 1979, enquanto bancários se reuniam em Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. O mestraassembleia no pátio da Faculdade de Di- do na mesma instituição, convertido em doutorado pelo reito da USP, no Largo São Francisco, para desempenho e interesse da linha de pesquisa em estudos discutir o fracasso das negociações com os comparados de literatura de língua portuguesa, com esbancos, office-boys se concentraram na rua Boa Vista, no pecialização em relações Brasil-África, abriu as portas de centro financeiro paulistano, e saíram gritando palavras de muitas escolas. Foram 16 anos como professor do ensino ordem contra a Polícia Militar e os fura-greves, numa ma- básico nas redes pública e particular, chegando a dirigir nifestação sem alvo definido. algumas, como a da antiga Febem, na avenida Celso GarA polícia tentou dispersá-los, o que só fez aumentar a cia, e outros 11 anos em faculdades. Ao mesmo tempo em que lia para crianças, percorria confusão, que se transformou em passeata e em um quebra-quebra que transtornou o coração da cidade, como es- a cidade ouvindo garis, feirantes, frentistas, prostitutas, creveria o jornalista Gilberto Lobato Vasconcelos, o Giba, trombadinhas, cabeleireiras e quem mais quisesse contar em seu livro Revolução dos Boys. Imortalizados na músi- suas histórias. Todas essas tragédias e glórias, mais um traca de Kid Vinil, os boys eram jovens com idade entre 14 e balho de pesquisa bibliográfica e de imagens, compõem a 16 anos, que faziam principalmente o serviço nos bancos, série Era uma vez em meu bairro, com volumes sobre as porém, geralmente a pé, para usar o dinheiro da condução zona norte, sul, leste e oeste. A zona central está em fase em lanches ou fichas de fliperama. de pesquisa. “Sem entender nada, me dei conta de que eu estava no Jeosafá é também autor de O Jovem Mandela, única obra meio do confronto entre policiais e bancários, solidários em língua portuguesa sobre a vida do líder sul-africano, aos meninos. Assustado, fui protegido por almorto há quase um ano. Ele mistura ficção guns deles, que me levaram para dentro de um Percorria e realidade para dar corpo às angústias e às escritório no quinto andar de um prédio na rua a cidade ações de um jovem que mais tarde seria um 7 de Abril, de onde eram atirados diversos ob- ouvindo garis, dos mais importantes personagens da hisjetos e cestos de lixo sobre a polícia”, lembra o feirantes, tória contemporânea mundial, por sua luta contra o regime de segregação racial na escritor e blogueiro Jeosafá Fernandez Gon­­­­­­­­çal­­­­­­­­­­ frentistas, África do Sul. ves, 50 anos, autor de poesia, ficção e obras di- prostitutas, dáticas relacionadas à literatura e à língua por- trombadinhas, O livro é um passeio pelo sertão africatuguesa. Na época, um office-boy de 14 anos. cabeleireiras no, pelas minas de diamante mais profundas do mundo e suas péssimas condições de “Como ninguém na minha família sabia que era e quem mais vida e trabalho, pela miséria das favelas de preciso fazer vestibulinho para conseguir vaga quisesse ­Johan­­­­­­­­­­­­­­nes­­­burgo e pela opressão aos negros e de no colegial, fiquei sem estudar naquele ano e contar suas origem indiana que levaram Nelson Mandela fui trabalhar.” histórias a optar pelos riscos da luta contra o apartheid, O contato inesperado com um movimento de adolescentes habituados a jogar bola numa praça próxi- deixando de lado a zona de conforto de uma vida alienada. ma à Galeria Metrópole, também no centro de São Paulo, Jeosafá dedica-se agora a contar a história de outro joatrapalhando quem almoçava por ali, derrubou a ficha de vem que marcaria a história: o líder negro norte-ameriJeosafá. Logo passou a participar de passeatas, como a dos cano Malcom X. Em maio de 2015, serão lembrados os trabalhadores do Moinho São Jorge, na Avenida Paulista. 90 anos do seu nascimento e, em fevereiro, os 50 anos de O menino pobre da Vila Ede, na periferia da zona norte, seu assassinato. “Seu sobrenome, Little, foi substituído por que foi entregador de jornal e funcionário de granja, se X durante seu tempo na prisão, numa forma de protesto deu conta dos resquícios da ditadura em pleno processo contra a perda do nome original, africano, por seus antede redemocratização do país – “Lento, gradual e seguro”, passados quando escravizados”, conta o autor. Radical opositor da violência racial e da injustiça social como diziam os militares. A aproximação com bancários descortinou o até então nos Estados Unidos, Malcom X esteve muito próximo de desconhecido mundo dos cineclubes – ajudou a organi- lideranças políticas como Fidel Castro, o chinês Mao Tse zar o do Bixiga, no bairro da Bela Vista –, a consciência Tung e o presidente egípcio Gamal Abdel Nasser, que enpolítica e a militância por meio de trabalhos culturais nas tre outras coisas nacionalizou o Canal de Suez. O líder neperiferias pobres, como reunir a criançada para comer pi- gro, que pregava a independência econômica e a criação poca enquanto contava histórias, ou no trabalho em mu- de um estado autônomo para os negros, foi assassinado tirões para a construção de casas populares, coordenados aos 40 anos, no auge de sua potência física e intelectual. pela então líder comunitária Luiza Erundina. Até agora, sua história não foi contada por autor de línA base cultural do contato com realidades tão diversas e gua portuguesa. Jeosafá Fernandez Gonçalves está preenpessoas tão interessantes, como conta, permitiu o sucesso chendo essa lacuna. REVISTA DO BRASIL

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AMBIENTE

CADA VEZ MELHOR Judith Z. Miller, no Warren Street/St. Marks Community Garden: “Uma vez por mês todos vêm e trabalhamos juntos, no chamado work day”

Como as hortas comunitárias de Nova York enfrentam os desafios da gentrificação e da indústria de alimentos Por Carolina Caffé 38

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m um mundo em que o número de pessoas cresce exponencialmente, junto aos danos ambientais e à saúde, procurar novos paradigmas de produção e consumo, alternativos ao modelo de desenvolvimento urbano atual, deixou de ser uma escolha. É preciso atuar com urgência, estratégia e criatividade – dentro e fora do sistema. No coração da rica ilha de Manhattan, brotaram hortas comunitárias que fizeram pessoas parar suas corridas diárias e se pergun-

tar: “Eu ainda sei o que é comer de verdade?”. Esses espaços verdes se multiplicaram na cidade, e hoje representam não apenas um símbolo de resistência à privatização do alimento, mas também à mercantilização do espaço, das relações humanas e da vida. No início dos anos 1970, em Nova York, a artista Liz Christy juntou-se a Donald Loggins e outros vizinhos. E resolveram fazer algo em relação ao quadro de abandono no qual a cidade vivia. Misturaram sementes e fertilizantes dentro de bexi-


DONALD LOGGINS

AMBIENTE

ERA UM TERRENO BALDIO A pioneira Liz Christy faz poda no jardim que leva seu nome em 1973: ação entre amigos aposta no princípio do “por nós para nós”

no Harlem”, conta Donald Loggins, cofundador da comunidade. “As pessoas sentem a necessidade de fazer algo assim pelas suas vidas e pela cidade, só precisam de algo que desperte nelas esse movimento.” O jardim Liz Christy Community Garden tem um lago de 2,5 metros de profundidade, onde convivem peixes e tartarugas. Bancos de madeira e um caramanchão coberto de uvas oferecem abrigo para o saborear dos figos, peras e maçãs colhidos direto das árvores. Dali se pode contemplar o bosque de bétulas chorando, e uma enorme metasequoia chinesa, além das flores silvestres. Na casa de ferramentas pode-se encontrar um glossário com informações dos tipos de pássaros que visitam o jardim. E na horta, legumes e ervas de tipos variados para levar para casa ou cozinhar ali mesmo, com a vizinhança nos finais de semana.

CAROLINA CAFFÉ

CAROLINA CAFFÉ

Terra e alimento

DESPERTAR PARA A CIDADE Work day no Warren Street/St. Marks Community Garden: trabalho para o lugar onde se vive

gas e camisinhas e jogaram por cima das cercas de terrenos baldios. Plantaram girassóis nos cruzamentos mais movimentados do bairro, frutas e legumes no parapeito de prédios abandonados. Em pouco tempo, chamaram a atenção para um terreno na esquina das ruas Bowery e Houston: onde antes se via um terreno baldio cheio de entulhos, surgiu um enorme jardim comunitário. E assim, em 1973, nasceu o Liz Christy­ Community Garden, primeira horta comunitária de Nova York, e os Green Guer-

rillas (guerrilheiros verdes). Não tardou para o movimento ganhar novos ativistas e simpatizantes, entusiasmados com o poder de transformação urbana das hortas comunitárias. O projeto foi reconhecido como ferramenta para recuperar terras da metrópole e fortalecer laços de vizinhança, além de fornecer uma alimentação justa e saudável. “Aos poucos as pessoas começaram a pedir instruções de como fazer as granadas verdes e replicar a mesma experiên­cia nos seus bairros, no Brooklyn, no Bronx,

Nova York conta hoje com mais de 600 jardins comunitários. Na maioria, eram terrenos abandonados que foram apropriados e trabalhados de forma voluntária e colaborativa pelos moradores dos seus bairros. O movimento cresceu e hoje a cidade conta com programas, centros e fundos públicos dedicados à proteção e manutenção dos jardins. Judith Z. Miller é uma das mais fervorosas defensoras do Warren Street/St. Marks­Community Garden, no Brooklyn. O local tem 26 anos e, com o comprimento de um quarteirão inteiro, funciona como um verdadeiro oásis no meio do cenário urbano. Na horta é proibido o uso de pesticidas não-orgânicos, herbicidas ou fertilizantes. “Uma vez por mês todos vêm e trabalhamos juntos, no chamado work day. É ótimo, você acaba conhecendo seus vizinhos, sujando as mãos de terra, fazendo algo produtivo. Cada vez que a gente vem fica melhor e mais bonito”, conta Judith, que também usa o jardim para ler e meditar. “Nós, que vivemos em centros urbanos, estamos muito desconectados da terra. Crianças acham que comidas vêm das latas, caixas e sacolas plásticas. Há crianças que moram a três quarteirões REVISTA DO BRASIL

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Melhores alimentos

“Devemos pressionar o setor público responsável, pois apenas o governo tem a autoridade e os recursos para colocar a pressão necessária sobre a indústria de alimentos e dizer: ‘Não, você não pode lucrar fazendo nossos filhos doentes, você não pode promover entre os pobres produtos que fazem mal à saúde lucrando sobre o fato de eles não terem acesso aos melhores alimentos’”, afirma o especialista. Freudenberg aponta também a criação e o fortalecimento de um sistema alternativo de produção de alimentos como o segundo caminho estratégico. Os mercados de pequenos agricultores locais, os green cards, bancos de moedas sociais, as cooperativas de alimentos e as hortas comunitárias são todas peças desse sistema alternativo que acaba também por pressionar as forças do mercado, além de dar às pessoas comuns, e consumidores de baixa renda, uma forma mais direta de 40

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STATE FARM/FLICKR/CC

daqui e nunca entraram nesse jardim, nunca viram uma cenoura sendo puxada da terra”, diz a ativista. Judith diz acreditar que se elas não têm a experiência prática de, com as próprias mãos, tocar o alimento, nunca irão respeitar a comida e entender a importância de proteger o meio ambiente, além das demais questões, como a mudança genética do alimento, os pesticidas e venenos na comida, na água e no ar. “As crianças que tiverem essa experiência desenvolverão uma relação muito melhor com a alimentação.” O professor Nicholas Freudenberg, especialista em saúde pública da Universidade da Cidade de Nova York, afirma que a maioria das doenças crônicas está diretamente relacionada ao hábito alimentar. Essas doenças estão crescendo rapidamente e hoje representam mais de 50% das causas de mortes em todo o mundo. São elas as cardiopatias, diabetes, câncer e hipertensão, todas relacionadas à ingestão de alimentos processados por uma indústria que lucra com produtos que possuem grande quantidade de açúcar, sal e gordura, além das substâncias químicas para realçar sabor e fazê-los durar mais tempo. NOVOS HÁBITOS Crianças de escola local trabalham no El Jardin del Pueblo, no Brooklyn. O contato com a terra e a produção de alimentos traz a possibilidade de uma vida melhor

garantir uma comida saudável na mesa. Para a pesquisadora Ann Gaba, especialista em saúde pública da Hunter College­, as hortas comunitárias oferecem uma alternativa positiva não apenas do ponto de vista nutricional, mas também social. É lugar onde o tempo desacelera, as relações humanas e coletivas acontecem sem a mediação dos aparelhos eletrônicos, e tudo isso acaba trazendo tantos benefícios quanto colher um alimento mais saudável. “A transformação do problemático sistema alimentar atual deve começar pelo questionamento do próprio consumidor sobre os seus hábitos. As pessoas não prestam a atenção na qualidade do seu dia a dia”, observa Ann. “Muitas compram algo pronto pra comer e saem correndo, ou comem na frente da televisão ou do computador, e estão tão

distraídas que nem prestam atenção no que estão comendo, nem ao menos se tem um gosto bom ou não.” Tempo & dinheiro não é a única equação responsável pelo mau hábito alimentar, mas também a falta de informação, dos conhecimentos necessários para a conquista de um melhor estilo de vida. Para a especialista, muitas pessoas não desenvolvem sequer o desejo por uma comida fresca, pois experimentaram muito pouco, e aquilo já não faz parte do seu mundo. Passam pelas hortas comunitárias e não sabem o que fazer com aquilo, não possuem mais este conhecimento. “Aqui é também um lugar onde as pessoas podem se reunir para discutir o que mais está acontecendo no bairro, para além do jardim”, conta Donald Loggins, orgulhoso das conquistas e da diversida-


AMBIENTE

Os lotes abandonados da década de 1970, em uma cidade que ainda sofria pelos tempos das guerras mundiais e da Grande Depressão, passaram a ser os espaços mais disputados do mundo hoje. Os verdes oásis contribuem para a valorização do local, isso quando não são alvo dos interesses comerciais e imobiliários que pressionam o governo para retomar os espaços e erguer no lugar empreendimentos lucrativos. Muitas das hortas comunitárias, que começaram por um movimento de ocupação civil, ainda lutam para conquistar um status diferente de “invasores”. Algumas ganham, outras perdem essa batalha. “Esse é o grande problema, as pessoas querem construir aqui. Esse pedaço de terra vale hoje milhões de dólares”, afirma Judith Z. Miller. “Lugares como esse não são populares entre os desenvolvimentistas, mas são essenciais para a comunidade.” “Estamos perdendo alguns jardins comunitários, infelizmente”, afirma Donald, “e também deixei de ver novos jardins comunitários surgindo em Ma-

concebidos não só para o descanso, contemplação e lazer, mas também para promover um sentido de pertencimento e de vida em comunidade. Uma ideia que se alinha às teorias do desenvolvimento local, e que torna os usuários responsáveis pela concepção e funcionamento dos espaços públicos abertos. A crise dos paradigmas neoliberais abre a possibilidade da criação de uma nova forma de articulação entre os diversos objetivos econômicos, sociais, ambientais e culturais. E em meio à crise moral e ética provocada pela ambição e avareza, as hortas urbanas exercem hoje o raro poder de indagar à comunidade: você tem fome de quê?

nhattan, e não acho que vai acontecer. Segundo ele, os guerrilheiros verdes vivem atualmente o desafio de conseguir o envolvimento e apoio do público, fazer a vizinhança se importar com a causa. “Fazemos churrascos e eventos de todo tipo aqui, e todos podem entrar. Chegamos a fazer uma campanha de postais, entregamos a todos que passavam para escrever mensagens de apoio para a permanência do jardim. Se você está com apoio e a opinião pública, o político não vai tirar o jardim de você.” O Liz Christy é hoje parte do Departamento de Parques de Nova York, garantido por lei como bem público, e sua permanência dependerá se seus membros o mantiverem como horta comunitária. O Warren Street/St. Marks é uma área de propriedade privada, mas dedicada ao uso público e sem fins lucrativos, por uma associação comunitária do Brooklyn. Carolina Caffé é socióloga, documentarista e freelancer em Nova York. Confira o vídeo produzido para esta matéria no site da revista por este atalho: bit.ly/rdb_guerrilheiros_verdes

CAROL NORQUIST CHAIRMAN/FLICKR/CC

A filosofia progressista do “autofazer” por trás das experiências dos jardins comunitários corresponde às características tão presentes da era digital (user–generated era), das redes sociais e da democracia (direta, inclusiva e participativa). A tecnologia e a internet foram apontadas entre todos os entrevistados como campo estratégico na defesa das hortas comunitárias e da segurança alimentar e nutricional. As hortas coletivas urbanas de Nova York se diferenciam dos tradicionais parques da cidade, como o Central Park e o Prospect Park, áreas verdes desenhadas pela “cidade para nós”, e se alinham mais com a ideia de fortalecimento local – desenhadas pelo “nós para nós”. São espaços

Novos tempos

SLOW DOWN As hortas urbanas e seu alimento orgânico são uma das respostas aos péssimos hábitos adquiridos em anos de “tempo é dinheiro

JOEY/FLICKR/CC

de do Liz Christy Community Garden. “Já chegamos a passar noites inteiras no jardim debatendo questões do bairro. Se você faz isso nas ruas a polícia logo aparece pra te tirar dali. Outra coisa incrível é que o jardim reúne pessoas de diferentes lugares e formas de pensar. Vêm pessoas de bairros distantes. Temos jardineiros do Tibete cultivando vegetais tibetanos, outros de Beijing com suas receitas próprias, e também turistas, que vêm pesquisar para reproduzirem nas suas cidades.” Donald lembra que quando começaram o Green Guerrilla, a cidade achou que eram revolucionários. “Acharam que estávamos tirando as terras da propriedade do Estado. Mas acho que chegou uma hora em que entenderam que fazíamos o trabalho melhor do que eles. Manhattan, por exemplo, conta no total com 30 jardineiros para todas as áreas verdes da ilha, incluindo Central Park. Só aqui no Liz Christy Community Garden temos 24 jardineiros voluntários, entre eles arquitetos, escritores, babás, cineastas e jornalistas. É realmente um mix de diferentes pessoas e diferentes formas de colaborar com o espaço.”

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ESTRANHOS NO PARAÍSO AQUI COMEÇA SEU PASSEIO Lixão da Capitinga, em Lençóis, onde os turistas deixam suas lembranças

No Parque Nacional da Chapada Diamantina, na Bahia, convivem caatinga, cerrado e mata atlântica, cachoeiras, montanhas, rios e lagoas. Mas ecoturismo, agronegócio e lixo não podem coexistir Por Bruno Cirillo. Fotos de Jesus Carlos/Imagemglobal

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VIAGEM

MONUMENTO NATURAL O Paredão, no Vale do Cercado

FIGURA DE PEDRA Morro do Camelo, no Vale do Cercado

MELHOR VISTA Turistas no Morro do Pai Inácio

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ocalizada no centro geográfico da Bahia, com 152 mil hectares, a Chapada Diamantina é uma das 313 unidades de conservação federal, que ocupam cerca de 9% do território nacional. Sua beleza reside no fato de abrigar uma cadeia de montanhas, a Serra do Sincorá, com espécies endêmicas – dessas que só se encontram lá – de plantas e animais, na intersecção entre três ecossistemas: cerrado, caatinga e mata atlântica. É onde está, por exemplo, o famoso trekking pelo Vale do Pati, considerado um dos mais bonitos do mundo. Depois de todos os danos ambientais deixados pelo garimpo, como a destruição dos rios, as mais de 20 cidades encravadas na região precisam encarar a situação ecológica para não perder o movimento do século 21.

Cânions, vales e campos rupestres compõem a região, banhada por rios que a fazem um oásis no meio do sertão, numa geografia rara que leva muitos viajantes a considerar a Diamantina a mais bela das chapadas brasileiras. Gente do mundo inteiro, especialmente franceses e alemães, passa dias se aventurando pelas trilhas de Lençóis, Palmeiras e Andaraí, entre outras cidades que não ficam para trás em aspectos históricos e culturais. A reserva natural tem ainda uma biodiversidade de suma importância: pelo menos 400 tipos de plantas, como a sempre-viva, que, mesmo arrancada do solo para a fabricação de buquês, jamais apodrece. Ela pode ser encontrada ao redor de Mucugê, um município bastante procurado pelos turistas, onde está a Cachoeira de Cristal, com 70 metros de altura e grandes poços em sua base. REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM

PONTO DE PARTIDA Lençóis é a cidade mais próxima do Parque da Chapada. Alí estão concentradas as pousadas

O visitante chega a Lençóis por uma estrada que parte da ­ R-242, rota mais importante entre Salvador e Brasília. A proB ximidade com a cidade mais bem preparada para acolher os forasteiros, porém, começa a misturar expectativas. A primeira, claro, é deixar as malas e planejar os roteiros, como a subida ao Morro do Pai Inácio, de onde se tem uma das visões mais deslumbrantes do Parque Nacional da Chapada Diamantina. Mas quando se está próximo da cidade com a maior oferta de agências, restaurantes e hospedagens da região vê-se logo à esquerda entulhos nas margens de uma saída de terra. E quem entrar por esse caminho vai deparar com um cenário surpreendentemente aterrorizante, em se tratando de um estandarte do ecoturismo brasileiro: montanhas de lixo erguem-se por toda parte num vasto terreno escavado, onde reinam moscas e urubus. Em meados de outubro, o Lixão da Capitinga pegava fogo às portas da antiga capital do diamante. A fumaça invadia a pista. O lençoense Edivaldo “Di” Soares, 52 anos, há 20 trabalha no local catando plástico para vender a atravessadores. E acu44

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Vale do Morrão

sa um rapaz que passava de bicicleta pela origem do incêndio. “Os órgãos públicos não têm muito interesse pela situação do lixo em Lençóis”, ele diz, abanando-se com um chapéu de palha para afastar os insetos. Di estimou sua capacidade de coleta em duas toneladas por mês, ante as mais de dez toneladas trazidas diariamente pelos caminhões da prefeitura. A 50 quilômetros dali, outro lixão é encontrado no município de Palmeiras, ao qual pertence a bucólica e mística Vila do Capão, ponto de partida para as trilhas que levam à Cachoeira da Fumaça (a segunda maior do Brasil, com 360 metros de altura) e aos campos rupestres do Vale do Pati. Não fosse o trabalho de dois grupos ambientalistas, o de Lençóis (GAL) e o de Palmeiras (GAP), que promovem a coleta seletiva e ações de reciclagem, essas duas cidades nem sequer conheceriam o conceito de destinação adequada do lixo, embora façam parte de um complexo turístico com vocação ecológica, para onde se dirigem milhares de visitantes por ano em busca de paisagens livres da intervenção humana. “A primeira reciclagem de Palmeiras aconteceu no dia 19 de


VIAGEM

novembro de 2009, dia do aniversário de Joás Brandão, fundador do grupo”, lembra a coordenadora de projetos do GAP, Yara Pereira Gonçalves. “O lixão constrange as pessoas que vêm aqui atrás de um paraíso e, quando chegam, encontram isso”, observa o presidente do GAL, Alexandre Emanuel. Com projetos de educação ambiental, as instituições sonham com a adaptação das cidades às exigências da Política Nacional dos Resíduos Sólidos, anunciada em 2010 com prazo para estar em plena vigência a partir de agosto deste ano. A lei exige das prefeituras, basicamente, uma destinação adequada para o lixo, com a construção de aterros sanitários e a criação de programas de coleta seletiva e reciclagem. “Não temos recurso para isso”, afirma o secretário do Meio Ambiente de Lençóis, Andrés Iglesias, ecoando o discurso proferido por muitas das administrações (60% do total no Brasil, cerca de 1.500 delas no Nordeste) que não cumpriram o prazo estabelecido pela legislação federal. A questão do lixo na Chapada tem um agravante: as cidades dependem da imagem ecológica para prosperar. Desde a deca-

dência do garimpo de diamantes, que vigorou entre os séculos 19 e 20, parece não haver outra saída econômica para a região senão o ecoturismo, segmento que atrai algo em torno de 560 mil estrangeiros por ano ao país. “O ecoturismo deve ser levado em conta na elaboração de políticas públicas”, afirma Emanuel. “Problemas ambientais como o lixão, logo na entrada de uma cidade como Lençóis, podem afastar os visitantes”, comenta o chefe do Parque Nacional, Bruno Lentome, listando uma série de outras ameaças, como a extração ilegal de recursos naturais, o uso intensivo de agrotóxicos em áreas de cultivo e os terríveis incêndios florestais.

Fogo na serra, veneno no rio

Numa manhã de outubro, Lentome mostrava, nos fundos da sede do parque nacional, em Palmeiras, centenas de troncos de árvore empilhados, apreendidos recentemente numa operação policial. A exploração ilegal de madeira, especialmente nas serras de Andaraí (outra cidade turística, a 85 quilômetros ao sul de Lençóis), é um dos crimes ambientais mais recorrentes. No REVISTA DO BRASIL

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período de seca que precede o verão, contudo, os incêndios florestais são a maior ameaça – e segundo autoridades, 90% deles são criminosos. Entre setembro e outubro, a Chapada Diamantina sofreu dez incêndios, depois de quase um ano sem ocorrências, de acordo com o Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (ICMBio), responsável pela administração das unidades de conservação federais. Três deles consumiram parte das serras entre Lençóis e o Vale do Capão. “Estamos em plena temporada de incêndios”, diz o chefe do parque, que conta com as brigadas voluntárias e o suporte dos governos estadual e federal para combatê-los. Lentome lembra que o grande incêndio de 2008 queimou mais da metade da reserva natural. Os problemas com fogo, no entanto, são pontuais. Questões envolvendo a água, em certas áreas, têm maior gravidade por serem perenes e de proporções desconhecidas; a mais preocupante, segundo ambientalistas, está relacionada ao uso de agrotóxicos e à construção de barragens. Agraciado em 2012 por uma licença ambiental conjunta inédita no Brasil, o agropolo de Ibicoara e Mucugê, municípios localizados ao sul do parque nacional, ocupa um polígono de 700 mil hectares, vizinho à reserva ambiental, onde se produzem 500 mil toneladas de alimentos por ano, sobretudo batatas e tomates. Por se tratar de culturas que demandam uso intensivo de água e agrotóxicos, elas têm sido acusadas pela população de exaurir e contaminar recursos hídricos. “O nível de produtos químicos empregados na produção de batatas é gigante”, diz a coordenadora do grupo da Câmara Técnica de Meio Ambiente do Território de Identidade da Chapada Diamantina, Sirle-

O PAPEL DO PODER PÚBLICO Alexandre, presidente do GAL: “O lixão constrange as pessoas que vêm aqui atrás de um paraíso”

Cultura contra o lixão Em meados de setembro, um grupo de jovens artistas apresentou o espet sáculo Por Amor à Vida: Lixão Não na Câmara de Lençóis. De maneira lúdica, denunciavam o crime ambiental escancarado na entrada da cidade. A peça já tinha sido exibida uma semana antes a um público de 100 pessoas, que assinou uma ação civil pública exigindo da prefeitura o encaminhamento do Plano Integrado de Gestão de Resíduos Sólidos (PIGRS), aprovado pelos parlamentares em 2010 – o documento estabelece diretrizes para que o município resolva a questão do lixo. Numa sessão plenária do dia 27, os nove vereadores do município endossaram, em ofício, a demanda popular, 46

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aumentando a pressão sobre o Executivo. Por trás da ação, está a instituição de cultura mais forte de Lençóis, Grãos de Luz e Griô. Inspirado na tradição dos griots – comunicadores sociais africanos que viajam por vilarejos contando histórias e transmitindo conhecimento por meio da fala desde tempos remotos até os dias atuais –, o projeto se baseia numa pedagogia que remete a Paulo Freire, voltada à valorização de identidades e saberes regionais, em diálogo com a educação formal. A ONG mantém um centro de formação de jovens nas áreas de teatro, música e audiovisual, com 50 alunos e alcance a mais de 500

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Lílian: “Criamos uma referência em educação”

crianças e jovens lençoenses em situação de baixa renda. Conta com apoio do Ministério da Cultura e de 24 deputados ligados à Frente Parlamentar de Cultura, que

assinaram projeto de lei propondo a pedagogia griô como política pedagógica nacional (PL 1.786/11). “Criamos uma referência em educação. As comunidades definem quem são seus mestres griôs, e eles criam, junto às escolas, projetos em que dialoguem a tradição oral e a educação formal”, explica Líllian Pacheco, fundadora do Grãos de Luz e Griô junto com seu marido, Márcio Caires, expresidente do Fórum dos Conselhos Estaduais de Cultura. Eles articulam cerca de R$ 500 mil por ano para tocar seus projetos – entre 2008 e 2012, além deste valor, obtiveram R$ 8 milhões para o programa Ação Griô Nacional, que fomenta a tradição oral


VIAGEM

CRIME Depósito na sede do Parque da Chapada: a exploração ilegal de madeira é um dos crimes ambientais mais recorrentes

ne Rosa de Souza. As propriedades rurais da região representam um mercado de R$ 16 milhões anuais para a fabricante de defensivos agrícolas Bayer. Produtores investem em venenos de R$ 3.000 a 4.500 por hectare de batata e tomate plantados. Agora, as empresas Bagisa e Hayashi, atuantes há 20 anos no distrito de Cascavel, em Ibicoara, pretendem construir duas barragens e migrar a produção para a área dos Gerais de Piatã,

em 130 pontos de cultura e está em diálogo com 600 escolas, com alcance direto a 750 pessoas (griôs e aprendizes) no Brasil. A influência do projeto em Lençóis ficou provada com a reação da prefeitura, que alguns dias após o espetáculo contra o lixão se reuniu para discutir a criação de um novo PIGRS. Contudo, os manifestantes pediam a retomada do plano que já existe. “Lençóis já tem um plano para os resíduos sólidos, e a prefeitura está se recusando a abri-lo para nós. Queremos um programa de ações com base nesse plano que já existe”, criticou Líllian. Esta não foi a primeira vez que a cultura se manifestou. Alunos do Grãos de Luz e

Griô produziram, em 2013, um pequeno documentário sobre a Fonte da Muritiba, canalizada por garimpeiros no final do século 19, mas que secou misteriosamente no ano de 2011. O caso levou o Ministério Público da Bahia a abrir um inquérito, em 15 de maio deste ano, para apurar se ações de propriedades saturaram o curso do manancial ou se houve processo natural. “A perícia vai apurar se as causas foram humanas”, disse o promotor de Justiça de Lençóis, José Reis Neto. Nos azulejos de onde funcionava o bebedouro público ligado à antiga fonte, uma frase escrita em tinta vermelha, já quase apagada pelo tempo, ainda indaga: “Cadê a água da Muritiba?”.

berço das nascentes do Rio de Contas, na cidade mais alta do Nordeste, Piatã. Embora esteja localizado fora dos limites do parque nacional, o município apresenta o mesmo perfil (eco) turístico, além de ser reduto da agricultura familiar. “O lugar onde querem construir as barragens envolve três bacias hidrográficas: a de Contas, a do Cochó e a de São Francisco. Qualquer leigo sabe que não se deve fazer intervenções em áreas de nascente”, critica Sirlene. A bacia hidrográfica de Rio das Contas é um santuário aquático que ocupa 55 mil quilômetros quadrados e envolve 86 municípios, formando o segundo maior rio baiano. O comitê gestor responsável por essa bacia está elaborando um plano para que se conheça melhor a sua hidrografia. Antes da conclusão do estudo, os gestores esperam que as obras previstas para Piatã não sejam licenciadas, conforme deliberação encaminhada ao governo baiano e órgãos ambientais. Alguns desses órgãos e o próprio estado da Bahia são acusados pelo Ministério Público Federal pelos danos ambientais provocados na construção da Barragem do Apertado, em 1997, no Rio Paraguaçu — o maior da Bahia, que abastece 70% da água consumida em Salvador —, sem a realização prévia do estudo de impacto ambiental, em benefício do agropolo. A possível contaminação do lençol freático e dos rios dos Gerais de Piatã tem causado polêmica entre ambientalistas e a população local, que fez abaixo-assinado na comunidade de petições virtuais Avaaz, oem que contam com mais de 5 mil assinaturas contra o agronegócio em suas terras. “Temos travado uma verdadeira luta”, afirma Sirlene. Para uma funcionária do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos da Bahia (Inema) que preferiu não se identificar, “o desenvolvimento da região vai ser do turismo ou do agronegócio. As duas coisas juntas não dá”.

Caires: iniciativa com projeto griô se espalha em pontos de cultura REVISTA DO BRASIL

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curtaessadica

Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Inclusão vivenciada A exposição Cidades Acessíveis, em cartaz na Casa da Ciência da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) até 21 de dezembro, convida o público a refletir sobre a acessibilidade. A intenção do evento é oferecer um espaço interativo no qual os visitantes vivenciem situações a que pessoas com deficiências estão expostas cotidianamente. Além de conhecer tecnologias disponíveis para facilitar a acessibilidade, o público vai andar pela cidade fictícia com vendas nos olhos, abafadores de som, cadeiras de rodas e pesos adicionais para braços e pernas. A experiência sensorial evidencia as barreiras que cegos, surdos, cadeirantes e pessoas com mobilidade reduzida têm de ultrapassar todos os dias para exercer a cidadania plena. De terça a sexta-feira, das 9h às 20h, sábados, domingos e feriados das 10h às 20h, na rua Lauro Muller, 3, em Botafogo. Mais informações em www. exposicaocidadeacessivel.com.br. Grátis.

Cidades Acessíveis: experiência sensorial

Devaneios e inquietações

Em Tomo Conta do Mundo – Confissões de uma Psicanalista (Arquipélago Editorial, 272 págs.), Diana Corso propõe uma jornada pelas sutilezas do comportamento humano por meio de verdades próprias e alheias. Ela conduz o leitor pelos mares nos quais navega em sua vida pessoal e profissional: a feminilidade, as novas configurações familiares, a ditadura da magreza, a aceitação da idade e o cheiro inesquecível dos jasmineiros de sua infância. Mas atenção! Os textos têm contraindicação: “O contato com estes escritos pode trazer efeitos colaterais. A leitura pode causar devaneios, inquietações, desvelar a psicopatologia da sua vida cotidiana. Também foram constatadas algumas risadas estranhas. Se persistirem os sintomas, procure um psicanalista”, brinca a autora na apresentação da obra. R$ 39,50, em média. 48

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Música e animação

O grupo vocal MPB-­4 lançou em 1981 o álbum infantil Adivinha o que É, com músicas de Renato Rocha, Geraldo Azevedo, Ronaldo Tapajós e Geraldo Amaral. O disco virou CD em 1998 e ganhou agora uma versão em DVD que, além das 12 faixas originais, traz Lara Menina, canção que ficou de fora do álbum original. O Som dos Bichos, O Galo Cantor, Rosa Branca Foi ao Chão, Composição Estranha, Todo Mundo Sabe Dormir, Nomes de Gente, Botões, O Sono dos Bichos, a faixa-título e uma nova versão de A Lua ganharam cores vivas e muito movimento para crianças pequenas e grandes. R$ 23,90.


Cena de A Noiva Cadáver

Terror e humor A Mostra O Estranho Cinema de Tim Burton exibe diversos filmes do cineasta norte-americano até 10 de fevereiro, no Sesc Santana, em São Paulo. Em 18 de novembro será apresentado Peixe Grande; no dia 25 é a vez de A Noiva Cadáver; na primeira terça-feira de dezembro estará em cartaz A Fantástica Fábrica de Chocolate; e Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet será exibido no dia 9 de dezembro. A homenagem a Tim Burton traz também cine-concertos: a Trupe Chá de Boldo faz ao vivo a trilha sonora de O Estranho Mundo de Jack, em 16 de dezembro, e Naná Vasconcelos e Gem fecham o festival fazendo o som de Alice no País das Maravilhas, clássico de Lewis Carroll que foi sucesso na direção de Tim Burton. Confira a programação completa em http://bit.ly/mostratimburton. Grátis.

Tim Burton: fantasias fora do padrão

Inspiradoras

Elis Regina, Nara Leão, Clara Nunes, Elizeth Cardoso, Dolores Duran, Dalva de Oliveira, Clementina de Jesus, Aracy de Almeida... Divas eternas da música popular brasileira são homenageadas por jovens divas da cena contemporânea no CD e DVD Cantoras do Brasil (Deck Disc), ambos frutos da série de mesmo nome exibida pelo Canal Brasil. A miscelânea vai do sambacanção à Bossa Nova, da música de protesto à Jovem Guarda, tudo com uma roupagem nova que não “desconfigura” clássicos eternizados por grandes cantoras no passado. Luisa Maita homenageia Elis Regina em É Com Esse que Eu Vou; Nina Becker interpreta Dolores Duran com Manias; Túnel do Amor, famosa na voz de Celly Campello, ganha versão de Tiê; Lourdes da Luz canta Nara em Quando o Carnaval Chegar; Blubell resgata Você e Eu, em homenagem a Sylvia Telles; Mariana Aydar interpreta Clara Nunes com Canto das Três Raças; e até a atriz Camila Pitanga empresta sua voz ligeiramente rouca a Dindi, eternizada por Maysa. R$ 29,90 (CD) e R$ 46,90 (DVD), em média. REVISTA DO BRASIL

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MOUZAR BENEDITO

Aranhas e caranguejos

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m Minas Gerais, durante a chamada “República Velha”, que terminou com a Revolução de 1930, um único partido dominava a política estadual. Era o Partido Republicano Mineiro (PRM). Mas, espertamente, ele criou sua própria oposição. Os políticos manhosos sabiam que no interior muitas famílias não se bicam, e era impossível que elas convivessem num mesmo partido. Foi o mesmo que os militares fizeram depois de 1964, quando criaram a Arena (Aliança Renovadora Nacional), partido do governo, “deixando” funcionar um partido menor, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), que fazia uma oposição chocha, embora tivesse muitos membros que se podia levar a sério. Os oportunistas de sempre, que não queriam ficar fora do poder, não poderiam ficar fora do partido governista. Só que havia divergências entre eles. Meras questões locais, na maioria das vezes, mas que impossibilitavam o convívio. Então, o que fazer? Acho que eles recorreram às lembranças do PRM: criaram a possibilidade de concorrer mais de um candidato ao mesmo cargo, pelo mesmo partido. Permitia-se até três tendências: Arena-1, Arena-2 e Arena-3. Em certos lugares, havia uma briga quase mortal entre essas tendências. Mas, no caso de parlamentares eleitos por elas, eram todos arenistas, que estavam na mesma canoa, dando sustentação ao poder constituído. Bom, em Minas, nos tempos do PRM, não havia PRM-1 e PRM-2. Dava-se nomes de bichos às tendências. Por exemplo: em Muzambinho, eram periquitos e papagaios; em Passos, patos e perus; e em Nova Resende, minha terra, aranhas e caranguejos. Em Nova Resende, cidade minúscula na época, havia uma praça e duas ruas que saíam dela. Uma rua era dos aranhas e a outra dos caranguejos. A praça Santa Rita era onde se encontravam aranhas e caranguejos. E geralmente não eram encontros saudáveis, com frequência acabavam em tiroteios. 50

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Eu brinco lembrando que a única consequência positiva dessa violência besta foi a música Aquarela do Brasil. Há quem goze e não acredite. Mas vejam: Ary Barroso acabava de se formar em Direito e foi nomeado juiz municipal em Nova Resende. Dizem que ele passou uns 15 dias na cidade, hospedado num hoteleco da praça, e presenciou três tiroteios. Por isso, desistiu de ser juiz, foi para Poços de Caldas, onde ganhou uma grana tocando em cassinos, e voltou para o Rio de Janeiro. Se tivesse chegado em Nova Resende e encontrasse uma cidade calma e agradável, talvez tivesse ficado por lá e provavelmente sua genialidade musical seria meio travada. Talvez compusesse o hino da cidade. Mas voltou para o Rio e se dedicou à música. Então, compôs, entre outras, a música que muita gente gostaria que fosse o hino nacional brasileiro. Nas eleições de 2014, lembrei-me dos aranhas e caranguejos. Claro, guardadas as proporções históricas. Não acho que os projetos dos dois partidos que mais rivalizam hoje sejam iguais, tampouco que os parlamentares eleitos por um e por outro vão se abraçar em Brasília. Acho até que vão até brigar mais do que deveriam. E diante de um mesmo modelo político que, se não for mudado, tende a piorar as coisas. Neste ano, velhas amizades foram para o brejo, famílias racharam, houve muita encrenca. As redes sociais se transformaram em espaços de destilação de ódio, e até casos de ameaça de morte se viram por causa de opções diferentes. Mas mesmo fora delas houve manifestações de racismo e de outros preconceitos. Será que vale a pena alimentar essa divisão? Será impossível cada força defender seus ideais e, respeitando as diferenças, construir um país melhor que olhe para sua gente? Ou alguém acha que como resultado dessa briga surja um novo Ary Barroso? Vi, adotei e recomendo um conselho que li pichado num muro: “Odeie seu ódio”.


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