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NA VOLKS, UMA RESPOSTA EXEMPLAR DOS TRABALHADORES

nº 103 janeiro-fevereiro/2015 www.redebrasilatual.com.br

n Crise interna e cobiça externa põem em risco investimentos da Petrobras n Aperto fiscal, alta de juros e impostos ameaçam crescimento, e movimentos se unem contra o retrocesso

UM PAÍS DESAFIADO


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ÍNDICE

EDITORIAL

8. Ambiente

Alckmin esconde a crise e SP deve secar antes que ele reaja

12. Brasil

Petrobras é maior que os riscos e as ameaças que a cercam

18. Entrevista

Como reinam as empreiteiras desde os tempos dos generais WANDAICK COSTA/SINDIPETRO/BA

26. Cidades

As promessas do Plano Diretor para a São Paulo do futuro

34. História

Verdade, memória e justiça. O país reconstitui seu passado

40. Mídia

O esforço para inclusão da democratização na agenda

Petroleiros fazem manifestação em frente à sede da Petrobras em Salvador: risco social

44. Economia

Menos mercado, mais social

Empreendedorismo reage à informalidade, mas exige atenção

D

48. Comportamento Uma história do Fora do Eixo e uma entrevista com Capilé

52. Cultura

Orquestra de Cordas da Grota, em Niterói, resiste à crise

RENATO SOARES

Ritual Bororo

56. Ensaio

O sentido dos rituais dos índios Bororo para chorar seus mortos

Seções Cartas 4 Emir Sader

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Mauro Santayana

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Marcio Pochmann

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Viagem: Chapada dos Veadeiros 60 Curta essa dica

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Crônica: Flávio Aguiar

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a reeleição aos primeiros dias de governo, os discursos da presidenta Dilma Rousseff guardaram sintonia com as expectativas de quem trabalhou duro por sua vitória suada em outubro. A começar pela defesa de investigações que identifiquem corruptos e corruptores “doa a quem doer”, e do papel da Petrobras nos investimentos, na estratégia de desenvolvimento e na soberania nacional. No campo econômico e social, veio a garantia de preservação de direitos, e de um novo ciclo de desenvolvimento sustentado nos pilares da redução das desigualdades, do fim da miséria e, agora, sob mote de uma nova era para a educação. Na prática, porém, os primeiros gestos do governo foram dignos de, a pretexto de acalmar o mercado, deixar as forças progressistas que a elegeram perplexas, e as forças (sic) derrotadas aos risos. Mesmo entre as mais leais lideranças políticas e intelectuais de esquerda paira a sensação de que o programa aplicado na prática é o derrotado. Aquele que aproxima o país das teses de ajuste semelhantes às que levaram ao desemprego 60 milhões de pessoas no mundo nos últimos sete anos, período em que o Brasil, apostando na via alternativa das políticas anticíclicas, abriu 15 milhões de vagas. Aumento de impostos e cortes orçamentários para melhorar o superávit, elevação de juros, restrição ao acesso a direitos como seguro-desemprego e auxílios previdenciários, intenção de abertura de capital da Caixa Federal (expondo-a ao risco de uma “sabespização”, ou colocar lucros e dividendos acima dos objetivos sociais centenários da instituição), entre outras decisões ortodoxas, deixaram os movimentos sociais em estado de alerta. As centrais, por exemplo, terminam janeiro com uma jornada de protesto e já projetam nova marcha unificada contra o risco de retrocesso nos avanços conquistados nos últimos anos. Na disputa por espaço nas esferas de decisão, tanto do Executivo como do Legislativo, e por um diálogo em que de fato a agenda dos trabalhadores seja levada em conta, assim se compõe o ritmo para 2015. Nos primeiros dias de janeiro, os metalúrgicos do ABC, com uma greve de dez dias que impediu centenas de demissões na Volkswagen, já demonstraram que decisões resolvidas mais nos gabinetes do que nas mesas de negociação são reversíveis nas ruas. REVISTA DO BRASIL

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CARTAS www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Carolina Scorce, Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Helder Lima, Hylda Cavalcanti, Rodrigo Gomes e Sarah Fernandes Arte Leandro Siman Iconografia Sônia Oddi Capa Montagem com foto de Steve Bloom/Getty Images (tornado). Foto de Adonis Guerra/SMABC (Volks) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 Claudia Aranda e Carla Gallani Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Fernando Ferraz Rego Neiva, Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Raimundo Suzart, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior

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Flávio Dino Nosso Maranhão está de parabéns. Tem à frente do seu governo um político sério, honesto, inovador, democrata, lúcido e que enxerga o povo (“À margem esquerda do rio da vida”, edição 102). Mas o povo maranhense, que, diga-se de passagem, tem uma paciência enorme, terá de ampliá-la ainda mais, porque o estado tem problemas estruturais em todas as áreas e todos sabem, ou deveriam saber, não existe mágica na administração da coisa pública. Flávio Dino e sua equipe de trabalho têm a grande chance de tirar o estado do noticiário da fome, da violência, da corrupção, da falta de competência, da falta de educação pública, da falta de saúde pública. Como o próprio governador diz na entrevista, o estado tem potencial, pode sair, se bem administrado, da situação lamentável que se encontra há séculos. José Gilbert Arruda Martins Eduardo Cunha Fico a rir quando alguém aponta para Lula ou Dilma como chefes de organização criminosa. Essa é a nova designação do Aécio e seu ideólogo FHC. Mas Eduardo Cunha (“O risco Eduardo Cunha, edição 102”) tem concorrentes fortes nessas questões, é só olhar para Pauliceia e Cláudio (MG). Os petralhas são noviços, fichinhas. Prefiro ser chamado de comunista, bolivariano, odiados por eles. Aliás, somos odiados por quê? Saintclair Ligorio

Reforma política Observem que o problema não está na ação dos grupos conservadores, caducos, retrógrados, ignorantes e reacionários; mas sim na omissão dos grupos progressistas (Mauro Santayana, “Golpismo, comunismo,hipocrisiaereformapolítica”, edição 102). É questão de acreditar no que se escreve. Por exemplo, o PT tem a melhor e mais avançada proposta contra a corrupção no Congresso. Uma emenda do Suplicy para introduzir o referendo revocatório de mandato, nosso direito de cassar políticos por iniciativa e voto popular. Se movimentos sociais tivessem ido na frente do Congresso cobrar a aprovação dessa lei, a Dilma teria engolido o Aécio Neves, o PT teria aumentado sua bancada e o Suplicy não perderia a eleição para o Serra. Nossa omissão tem um preço muito alto; que custará ainda mais caro em 2016. Lisboa Elia Invisível gaúcho A estátua do Laçador retrata um gaúcho branco, mas com adereços herdados do povo charrua, primitivo ocupante do território (“Invisível gaúcho negro”, edição 102). Apesar de o estado dever muito ao povo negro, não há uma única representação de negro em nenhuma cidade do Rio Grande­. Encontram-se homenagens (justas) aos imigrantes, mas não ao negro. José Ricardo Chagas O “símbolo” do gaúcho que está representado pela estátua do Laçador se dá em razão de que toda a cultura dos CTGs institucionalizada por aquele homem em específico, que casualmente é branco. Giovani Castle Bravo Reportagem muito bacana. É importante essa revisita à história brasileira rememorando a importância da população negra para formação da sociedade gaúcha, hoje, majoritariamente branca. Vilma Passos

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


EMIR SADER

A ditadura do capital especulativo

Quando se procura no dicionário o significado da palavra ‘spread’, lá no final, como uma das alternativas, aparece um provável sentido real: “banquete”

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pread é uma expressão – mantida em inglês para facilitar a camuflagem do seu significado –, que indica o ganho líquido dos bancos, a diferença entre o que pagam pelo dinheiro que captam e o que recebem pelo que emprestam. Leve R$ 100 reais ao banco para uma aplicação, e no mês seguinte retire R$ 100,50. Dê a volta no balcão e consulte o mesmo funcionário sobre quanto pagará se quiser tomar emprestado a mesma nota de R$ 100. Ele provavelmente dirá que você terá de devolver, no mês seguinte, algo próximo R$ 110. A diferença é o spread, o ganho improdutivo, à custa do suor alheio. Quando se procura no dicionário o significado da palavra, lá no final, como uma das alternativas, aparece um provável sentido real: “banquete”. Porque disso se trata, de um banquete especulativo. O capital financeiro nasceu como apêndice, apoio do capital produtivo. O proprietário de terras tomava dinheiro emprestado para comprar sementes e devolvia uma parte do ganho na colheita para pagar o empréstimo. Na era de hegemonia do capital industrial continuou assim. Na passagem para a era neoliberal, o lema dominante foi “desregulamentar” (regras impostas pelo Estado ao mercado), porque o capital deixa de investir quando há muitas travas para sua circulação. O capital, livre dessas travas, voltaria a investir, as economias voltariam a crescer e todos ganhariam. Não foi o que aconteceu porque, como lembrava sempre Marx, o capital não foi feito para produzir, mas para acumular. Livre de travas, gozando de taxas de juros altas, de baixa tributação sobre os ganhos nas Bolsas de Valores e com liquidez total, os capitais se transferiram, maciçamente, para a especulação financeira. Um fenômeno gigantesco que se deu em escala mundial, fazendo do capital financeiro, na sua modalidade especulativa, o setor hegemônico nas economias. Um capital que não gera bens, nem empregos, que não financia a produção, nem a pes-

quisa, nem o consumo, mas vive da compra e venda de papéis. Mais de 90% dos movimentos econômicos no mundo são compra e venda de papeis. Neoliberalismo e hegemonia do capital financeiro são assim almas gêmeas, um não existe sem o outro. Por isso, as crises neoliberais começam no sistema bancário, antes de se alastrar para o resto da economia. E são imediatamente atendidas porque, dizem os economistas neoliberais, se os bancos quebrarem, as telhas caem nas cabeças de todo mundo. Na atual crise internacional do capitalismo, iniciada em 2007/08, o risco de quebra generalizada dos bancos, que haviam absolutamente afrouxado o controle sobre créditos – especialmente imobiliários –, fez com que o objetivo geral fosse “salvar os bancos”. Os bancos foram salvos, mas quebraram Grécia, Portugal, Espanha, Itália... No Brasil, a presidenta Dilma se deu conta, na campanha de 2010, de que não haveria um novo ciclo expansivo da economia com as taxas escorchantes de juros reinantes. E se comprometeu a baixá-las, no seu mandato, a uma taxa em torno de 5%, ao padrão médio internacional e do nível interno de inflação. Assim, deixariam de acorrer os capitais especulativos de fora e os capitais nacionais não teriam as justificativas para serem canalizados à especulação, em vez da produção. O governo começou a diminuir a taxa de juros, como resposta sofreu ataque de terrorismo econômico da mídia a serviço dos bancos, e voltou a subi-las. Já no começo do segundo mandato, a tendência parece se reiterar: defender-se do terrorismo econômico elevando as taxas de juros. Não haverá novo ciclo expansivo da economia incentivando-se a especulação com juros escorchantes. Os juros do cartão de crédito chegam aos patamares da crise de 1999. A taxa mensal chega a passar de 10%, mesmo com taxas de inflação anual na casa de 6%. Imaginem o tamanho do tal do spread. Isso, sim, é um banquete às custas do país. REVISTA DO BRASIL

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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

ADONIS GUERRA/SINDICATO METALÚRGICOS ABC

Rafael Marques e os metalúrgicos da Volks: dez dias de greve com final feliz

Vitória e sinal de alerta Centenas de trabalhadores da Volkswagen em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, passaram o final de ano sob a angústia da perda do emprego. A empresa havia mandado telegramas avisando para não retornar ao serviço na volta das férias coletivas, em janeiro. No total, 800 dos 13 mil funcionários da fábrica estavam sendo demitidos. A resposta foi uma greve que durou dez dias, até que a montadora cancelasse as dispensas, firmando um novo acordo com o Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, que inclui a vinda de um novo produto (o Jetta, para ser montado) e manutenção de postos de trabalho até 2019. A Volks alegou que havia adotado várias medidas antes de decidir pela demissão. O sindicato entende que havia um acordo em curso. Centrais sindicais criticaram a empresa e o setor automobilístico como um todo, afirmando que, após receber isenções de tributos, as montadoras deveriam apresentar uma contrapartida. O presidente do sindicato, Rafael Marques, acredita que o episódio da Volks é um alerta para o ano, quando a defesa do 6

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emprego deverá fazer parte das prioridades das centrais – a entidade, inclusive, apresentou uma proposta de uma política nacional de proteção do emprego. bit.ly/rba_volks E 2015 começou com divergências entre sindicalistas e governo, que sem discussão prévia anunciou medidas dificultando o acesso a benefícios como o seguro-desemprego e abono salarial, entre outros, com a intenção de economizar R$ 18 bilhões/ano. Em reunião com quatro ministros, em 19 de janeiro, as seis centrais reconhecidas formalmente reivindicaram a revogação das Medidas Provisórias 664 e 665. Como o governo não cedeu, foi aberta uma negociação para tentar alterar o conteúdo das MPs. “Minha preocupação é muito maior do que com as medidas vistas isoladamente. O que eu questiono é qual a linha política e econômica que esse governo irá desenvolver”, diz o presidente da CUT, Vagner Freitas, lembrando que durante a campanha eleitoral “fizemos debate do desenvolvimentismo contra o conservadorismo”. bit.ly/rba_retrocesso


FOTOS DANILO RAMOS/RBA

Entrega das moradias teve presença de Lula

Nossa casa, nossa vida Foram quase 200 moradias (exatas 192) entregues no final do ano passado, as primeiras projetadas e geridas por movimentos sociais dentro do programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal. Por isso, a entrega das chaves em Taboão da Serra, na região metropolitana de São Paulo, foi duas vezes mais festiva. “Essa conquista não foi presente de ninguém. É fruto da organização e da luta dessas famílias”, destacou o coordenador nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), Guilherme Boulos. “É um resultado impressionante. Muitos aqui são idosos que ocuparam, ficaram embaixo de lona, com barro no pé, participaram de manifestações”, lembrou. O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participou da

cerimônia, em 20 de dezembro. Ele lembrou que quando propôs o programa, em 2009, muitos não acreditavam que fosse viável. “Fomos visitar obras em Governador Valadares (MG) e se não fosse presidente da República, e não tivesse de respeitar uma certa liturgia, eu tinha me pegado de cacete com os caras que cuidaram daquela casa. Não estava acabada, não tinha estuque, não tinha porta e o chão era de terra. Tudo para fazer mais barato. Fui ficando indignado.” Articulado entre o MTST e o Movimento Sem Teto de Taboão, o condomínio ganhou o nome de João Cândido, marinheiro e líder da famosa Revolta da Chibata, em 1910. Os apartamentos entregues são destinados a famílias com renda abaixo de três salários mínimos. http://bit.ly/rba_com_teto

A Pastoral e o tribunal

Mal a nova equipe econômica havia tomado posse, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo percebia a chegada de tempos ruins. A Belluzzo: percepção, segundo ele, era quem simples: a adoção, no Brasil, paga? de um consenso equivocado segundo o qual não existe saída fora do ajuste fiscal e do chamado tripé macroeconômico (inflação, câmbio e superávit), conjunto de princípios de interesse do mercado financeiro. Quem paga a conta? Os assalariados. “Eles (economistas) acham que devemos adotar as políticas que foram executadas na Europa e não deram certo, mas que aqui vai funcionar. O que vai acontecer? Eles vão cortar renda e emprego. Só que isso vai ser feito com uma recessão”, prevê Belluzzo. “O país está entregue à ignorância dos macroeconomistas.” http://bit.ly/rba_belluzzo

VALTER CAMPANATO/ABR

O poder dos ignorantes

Em pleno recesso judiciário, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, concedeu liminar à Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias e suspendeu a publicação da chamada “lista suja”, que relaciona empregadores que submetem trabalhadores à condição análoga à de escravidão. Para a Comissão Pastoral da Terra, foi uma decisão funesta e sem sustentação. Entre outras consequências, diz a CPT, a medida “impede dramaticamente a continuação do esforço virtuoso iniciado para municiar e reforçar o monitoramento corporativo e a vigilância cidadã das cadeias produtivas, estimulando assim o retorno a práticas abomináveis além de desleais”. Também pode significar um estímulo à prática de crimes, acrescenta a CPT. A entidade pediu manifestação da presidenta Dilma Rousseff, que durante a campanha assumiu compromisso pelo combate ao trabalho escravo. Em meados de janeiro, a Procuradoria-Geral da República solicitou a liberação do cadastro, publicado pelo Ministério do Trabalho desde 2003. bit.ly/rba_lista_suja REVISTA DO BRASIL

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Alckmin ignora avisos, esconde a crise e, mesmo com as represas secando, espera a água chegar à cintura para agir. Mas tudo indica que o Cantareira vai secar antes disso Por Cida de Oliveira

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EDSON LOPES JR/A2 FOTOGRAFIA

À ESPERA DE UM MILAGRE


AMBIENTE

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tempo. Pouca gente soube, por exemplo, dos protestos em Itu contra as torneiras secas, que terminou com ônibus incendiado. E muito menos que os reservatórios estão secando pela inoperância do governo estadual paulista – que transfere a culpa para São Pedro, que teria resolvido esticar férias. A população praticamente não sabe que o governo paulista tem pouco mais da metade das ações da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e que é o governador quem escolhe quem vai presidi-la – como acontece com a Petrobras, cuja crise a mídia não faz cerimônia em vincular ao governo federal.

Omissão determinada

Embora a Sabesp insistisse em negar, em outubro passado já havia racionamento em 35 municípios, prejudicando 5 milhões de pessoas e inflacionando o preço da água engarrafada, que mesmo assim começou a sumir das prateleiras. Se fosse pouco, famílias inteiras tiveram de recorrer a poços desativados e contaminados, começaram a estocar em recipientes improvisados, a comprar galões de água de origem duvidosa, vendidas até em pet shop. Sem que se toque no assunto – a Secretaria Estadual da Saúde nem sequer emitiu um boletim esclarecendo

a população – a saúde está em risco também porque não é fácil tratar adequadamente o chamado volume morto, cuja qualidade a Sabesp jurava controlar em seus próprios laboratórios. “A água dali é mais turva, mais contaminada, e o excesso de cloro também faz mal à saúde”, diz o coordenador do Observatório de Clima e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o sanitarista Christovam Barcellos. De acordo com ele, toda a água consumida neste momento tem de ser monitorada. “Também é necessário reforçar o sistema de vigilância para detectar surtos de doenças como a hepatite A, diarreia e dengue. Além de economizar água, a população deve relatar problemas de abastecimento, garrafões suspeitos, água turva e com mau cheiro, surtos de doenças na vizinhança.” Confirmada a reeleição para um terceiro mandato, o pacto de silêncio começou a fazer água. A escassez e seus efeitos foram deixando de ser tabu nos jornais e na TV, a ponto de já noticiarem o final dos tempos do sistema. Ou seja, a confirmação do que os técnicos diziam e que Alckmin negava sem corar a face. No último dia 14, o novo presidente da Sabesp, Jerson Kelman, admitiu à Rede Globo que é possível que o Sistema Cantareira seque em março.

ALEX RIBEIRO/VISOR MAGICO

stamos passando por uma estiagem histórica. A falta d’água está presente em todo o Sudeste. Apesar da grave situação, estamos trabalhando para melhor servir. Use a água com muita consciência.” A mensagem está no site da Marina Estância Confiança, de Bragança Paulista, 90 quilômetros da capital paulista. O centro de lazer combina hotelaria e atividades náuticas às margens da represa Jaguari-Jacareí, que com outras cinco compõem o sistema Cantareira. De acordo com o atendente do setor de reservas, a paisagem está bonita, mas quem conhece a represa de outros carnavais logo percebe seu nível mais baixo. Mesmo assim, nenhuma das atividades aquáticas deverá ser suspensa neste verão. Há em Bragança várias marinas, que criam empregos e receita para o município. De três anos para cá, o movimento vem caindo conforme o nível da água. “Pelo menos 300 trabalhadores desse setor foram demitidos. O ramo hoteleiro, de alimentação, o comércio em geral também são afetados. A indústria começa a sofrer”, diz Lamartine Oscar Veiga, assessor de comunicação do Sindicato dos Trabalhadores em Hotéis, Bares e Restaurantes de Águas de Lindoia e Região. Morador antigo de Bragança, ele acompanha o esvaziamento da represa nos últimos anos e foi um dos primeiros a levar o tema para o debate ambientalista. “O aumento da população, o boom imobiliário e a ganância comercial aumentaram a demanda por água. Faltaram planejamento e investimentos da Sabesp para a reposição do crescente volume retirado do sistema. Como ninguém percebia o que estava acontecendo?”, questiona, chamando a atenção para a ameaça aos municípios do Circuito das Águas de São Paulo. “Se nada for feito, cidades como Lindoia, Águas de Lindoia, Serra Negra, Amparo e Socorro, entre outras, passarão a compor o circuito da seca. Não terão como sobreviver.” Com a conivência da imprensa comercial, Geraldo Alckmin abafou a crise e dela conseguiu se desvencilhar por um bom

SAUDADE ˙Há três anos a água chegava a esse pier no bairro Água Comprida, em Bragança

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ADRIANO ROSA/AGÊNCIA SOCIAL DE NOTÍCIAS

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SITUAÇÃO CONHECIDA Zuffo: do final dos anos 1960 até início dos 1970, São Paulo tinha falta d’água e o racionamento era constante

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IMPACTO ECONÔMICO Lamartine: Pelo menos 300 trabalhadores de marinas em Bragança foram demitidos. O ramo hoteleiro, de alimentação, o comércio em geral também são afetados. A indústria começa a sofrer”

CARLOS EMIR/O DIÁRIO

A iminente tragédia ambiental, com consequências sociais e econômicas, não era segredo. Doutor em Engenharia Hidráulica e Saneamento, o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Antonio Carlos Zuffo explica que não é de hoje que se sabe que a natureza alterna períodos de pouca chuva com outros de chuvas mais abundantes. “Até final da década de 60, começo da de 70, a gente tinha problema de falta de água, com racionamento constante. A partir da década de 70 começou a chover mais e as enchentes estampavam os jornais. Agora devemos voltar aos tempos mais secos.” Mais: em 2000, um estudo da Organização das Nações Unidas já previa que quase metade da população mundial vai ficar sem água no ano 2025. E institutos de hidrologia de várias partes do mundo já advertiam que as reservas poderiam se esgotar completamente, em um mapa que incluía São Paulo. Naquele mesmo ano, quando o também tucano Mário Covas governava São Paulo, paulistanos abastecidos pelo sistema Guarapiranga, o segundo mais importante da região metropolitana, tiveram a água racionada por três meses. Cinco anos antes, durante o governo do outro tucano Franco Montoro (então no PMDB – o PSDB ainda não havia sido criado), um racionamento com o pretexto de baixar o consumo da mesma Guarapiranga, previsto para durar uma semana, se arrastou por dois longos meses.

O VAZIO E O ESVAZIADO O projeto de usar as águas do rio Paraíba do Sul para abastecer a Grande São Paulo só ficaria pronto em 2016. Mas o problema é que o rio já mostra margens secas por causa da falta de chuvas e não será capaz de suprir a demanda


O MAR VAI VIRAR SERTÃO O novo presidente da Sabesp, Jerson Kelman, admitiu que é possível que o Sistema Cantareira seque em março

“Não é segredo que vêm por aí eventos climáticos cada vez mais extremos. E a capacidade dos sistemas produtores de água é insuficiente para atender a demanda crescente, ainda mais com clima desfavorável assim”, ressalta o especialista em gerenciamento de recursos hídricos e recuperação de reservatórios José Galizia Tundisi, do Instituto Internacional de Ecologia, de São Carlos (SP). Com base na análise de séries históricas de dados climáticos e hidrológicos, ele diz que uma mudança climática está em curso, que ameaça a segurança hídrica no Sudeste, especialmente na região metropolitana de São Paulo – o que sempre chegou ao conhecimento do governo.

Aquela doença

Em vez de assumir e enfrentar o problema, Alckmin voltou ao tempo em que o câncer era chamado de “aquela doença”. Como não se tocava no assunto, havia pouca pesquisa e opções de tratamento, e o doente ia piorando até não ter mais chances. Enquanto tinha o tempo a seu favor, ele não fez a

FOTOS ALEX RIBEIRO/VISOR MAGICO

AMBIENTE

manutenção dos sistemas e nem investiu para ampliá-lo de maneira sustentável, conforme o aumento da demanda. Muito menos buscou alternativas, como a transposição de águas subterrâneas, conforme defende o geólogo Carlos Eduardo Guaglia Giampiá, integrante do Conselho Estadual de Recursos Hídricos e da diretoria da Associação Brasileira de Água Subterrâneas (Abas). “O estado sempre ignorou as águas subterrâneas, que respondem por 87% dos estoques de água doce do planeta. Além de não investir nessa nova tecnologia, a Sabesp ainda abandonou poços artesianos produtivos em todo o estado”, diz. De acordo com ele, dois estão no distrito do Anhanguera, na região noroeste da capital, que está na lista dos que mais vão sofrer com a escassez conforme a própria companhia. O descaso inclui a poluição de partes do aquífero Guarani, um dos maiores do mundo, sobre o qual está boa parte do território paulista, e também a inoperância do Conselho Estadual de Recursos Hídricos, que tem um terço dos integrantes ligados ao governo estadual. “Há cinco anos estou no Conselho, que mal se reúne mesmo diante da crise. Passamos a tomar decisões em bloco antes das reuniões para ver se conseguimos fazer algo, já que as decisões são empurradas com a barriga”, diz Giampiá. Segundo ele, antes da crise a Sabesp produzia 60 metros cúbicos de água por segundo, mas perdia 25% em razão de vazamentos. Até pouco tempo, o Cantareira era um dos maiores produtores de água do mundo. Formado por seis represas, que utilizam as águas dos rios Atibainha, Cachoeira, Jaguari, Jacareí e Juqueri, interligadas por canais e túneis que somam 48 quilômetros, depois de vencer desníveis. Produzia 30 metros cúbicos por segundo, mas sua a vazão caiu pela metade. Sem conseguir esconder uma crise sem precedentes, Alckimin quis multar a população por aumento no consumo, trocar a gestão da Sabesp e considerar soluções que, infelizmente, não são para amanhã. Furar poço é possível, mas é literalmente tirar água de pedra devido às características do solo paulista. Se a perfuração pegar fraturas

nas rochas, encontra água, mas seriam necessários muitos poços. E perfurá-los depende de tempo para os estudos, as licenças e a perfuração. A transposição das águas do rio Paraíba do Sul para o Cantareira, via rios Jaguari com Atibainha, exigem a construção de 25 quilômetros de adutoras e bombea­ mentos, o que não deve ficar pronto antes do segundo semestre de 2016. “Mas os reservatórios estão vazios. Estaríamos ligando o vazio com o esvaziado. Mesmo que se construa ainda para este ano, se não vierem chuvas em quantidade não vai ter água de um lado para transportar para o outro”, diz Zuffo, da Unicamp. No final do ano passado, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) realizou um seminário para discutir saídas para a crise. Do encontro saiu um conjunto de recomendações, a Carta de São Paulo. A preocupação é com as consequências que vão além dos atuais prejuízos às economias locais e regionais, à produção de energia e de alimentos que logo deverão ser colocados na ponta do lápis por pesquisadores como Tundisi, com financiamento de bancos e outras empresas. Sem alarmismo, eles consideram o aumento da vulnerabilidade da população, conflitos pelo uso da água e, portanto, o risco socioeconômico. Por isso, recomendam modificações imediatas no sistema de governança de recursos hídricos, com a participação do público num modelo transparente, em que a sociedade possa discutir soluções e não apenas pagar multas. Afinal, trata-se de um problema de todos. Além disso, defendem investimento imediato em medidas de longo prazo, projetos de saneamento básico e tratamento de esgotos em nível nacional, estadual e municipal, monitoramento de quantidade e qualidade da água, proteção, conservação e recuperação da biodiversidade, reconhecimento e conscientização social da amplitude da crise e capacitação de gestores com visão sistêmica e interdisciplinar. Por enquanto, para evitar o pior que está por vir, só mesmo rezando para que os céus despejem as chuvas que não estão previstas nos relatórios científicos. REVISTA DO BRASIL

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A GIGANTE A

Governo e Petrobras têm o desafio de superar escândalos e de criar uma nova era. Empresa banca 10% do PIB e tem papel vital nos investimentos que o país precisa para crescer Por Roberto Rockmann 12

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A

os 62 anos de vida, que se completarão em outubro, a Petrobras convive nos últimos meses com a mais grave crise de sua história. O desenrolar da operação Lava Jato e as denúncias de corrupção no Brasil e no exterior têm atrasado pagamentos a fornecedores, dificultado a assinatura de aditivos contratuais e posto em dúvida metas de produção da maior empresa brasileira, que responde por cerca de 10% do PIB e da taxa de investimentos do país e 5% da arrecadação de impostos.


BRASIL

ACORDOU?

DIFICULDADES Operários que construiram a P-52: Lava Jato traz riscos para o emprego

FOTOS AGÊNCIA PETROBRAS

As incertezas se somam à pressão de grupos econômicos para mudar as regras de produção de petróleo no pré-sal – como o regime de partilha e as regras de conteúdo nacional –, o que foi rechaçado pela presidente Dilma Rousseff no seu discurso de posse, em 1º de janeiro, ao se referir a um “cerco especulativo de interesses contrariados”. O impacto da operação da Polícia Federal (PF) e das investigações em curso nos Estados Unidos e na Europa sobre a empresa ainda é incerto, mas, passada a tempestade, a Petrobras REVISTA DO BRASIL

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continuará sendo a principal empresa brasileira, com uma promissora carteira de projetos, depois de ter realizado uma das maiores descobertas de petróleo no mundo das últimas três décadas no hemisfério ocidental. O peso da estatal na economia é brutal. Em 2000, o setor de petróleo, em que a Petrobras é a principal força, com mais de 90% dos negócios na área, respondia por 3% do PIB. Hoje responde por 13% e poderia atingir 20% em 2020. A estatal gasta cerca de R$ 100 bilhões por ano em aquisição de equipamentos e bens, de contratos com construtoras a acordos com empresas de alimentação e planos de saúde. Segundo dados do Dieese, somente em 2013 a empresa gastou, em média, R$ 383 milhões diários em compras de equipamentos e em obras. Hoje a Petrobras está envolvida em uma série de investigações, no Brasil e no exterior, em razão de suspeitas de desvios de recursos da estatal para partidos políticos e suspeitas de superfaturamento de contratos e privilégio para construtoras. A principal autoridade do mercado de capitais dos Estados Unidos está investigando a estatal brasileira, que tem ações negociadas na Bolsa de Nova York. A Justiça da Holanda está também de olho em uma denúncia da empresa SBM, que alugava plataformas para a Petrobras. Por sua vez, no Brasil, o Ministério Público Federal e a PF têm ouvido ex-diretores da empresa e de empreiteiras com contratos com a estatal, para identificar supostos desvios de dinheiro, que alimentava caixa dois usado para partidos políticos e executivos de empresas privadas.

Impactos

Os desdobramentos da Lava Jato são desconhecidos, assim como o uso que os órgãos judiciais farão da Lei Anticorrupção, que faz sua estreia no Brasil nesse caso. A lei, sancionada em 2013 por Dilma, traz uma novidade: a responsabilização da pessoa jurídica pelos atos ilícitos. Anteriormente, a legislação tinha foco maior sobre as pessoas corrompidas, e não sobre instituições corruptoras. Essa responsabilidade é objetiva em relação à pessoa jurídica: se forem comprovadas irregularidades ou uma vantagem a uma 14

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empresa, ela estará sujeita a penalidades, o que cria um novo marco na relação entre empresas e governos. As sanções podem ir de 0,1% a 20% do faturamento bruto anual. Na esfera judicial, além de multas, a empresa pode sofrer arresto de bens, perder incentivos fiscais ou até ter suas atividades suspensas. A aplicação da lei poderá ter impacto sobre o caixa da estatal e suas fornecedoras – e por tabela atingir indiretamente outros empreendimentos de infraestrutura que têm participação das empresas envolvidas. Com essas investigações em curso, a estatal anunciou a criação de uma diretoria de governança com intuito de reforçar controles internos e evitar novos casos de corrupção – o diretor de Governança, Risco e Conformidade, João Adalberto Elek Junior, foi eleito pelo Conselho de Administração em 13 de janeiro. Um dos problemas que o caso trouxe foi o fato de a Petrobras ter entrado em 2015 sem ter publicado o balanço do terceiro


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PESO BRUTAL NA ECONOMIA Em 2000, o setor de petróleo, em que a Petrobras é a principal força, com mais de 90% dos negócios na área, respondia por 3% do PIB. Hoje responde por 13% e poderia atingir 20% em 2020

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ESTADO DE ALERTA A Petrobras responde por 10% dos investimentos do Brasil. Cerca de 5 mil funcionários terceirizados em obras de construtoras para a estatal já estão ameaçados de perder o emprego

trimestre de 2014, por falta de uma estimativa do quanto foi desviado do caixa da empresa. Mesmo os números prometidos para janeiro, não auditados, criam incertezas, e a situação contábil ainda dará margem para deixar o mercado financeiro mais duro com a Petrobras. A criação do cargo que passou a ser ocupado por Elek Junior provocou protesto da Federação Única dos Petroleiros (FUP). Em nota, a entidade afirma que “o combate à corrupção se faz com mudanças estruturais na gestão, que rompam com o modelo autoritário que se perpetua na Petrobras desde o regime militar”. Para a federação, “terceiriza” para o mercado a indicação de seu gestor. “É na força do corpo técnico e da massa de trabalhadores que fazem a Petrobras crescer a cada dia que a empresa deveria buscar a inspiração para enfrentar os atuais problemas, e não no mercado”, diz a nota. Sem números devidamente auditados, é impossível a estatal emitir títulos de dívida no Brasil ou no exterior para financiar seu bilionário plano de investimentos. O impasse, enquanto perdurar, pode afetar a capacidade de investimentos da estatal – e da cadeia de fornecedores ao seu redor. No fim de junho, a Petrobras tinha em caixa R$ 66,4 bilhões. Os recursos poderiam cobrir os R$ 23 bilhões em dívidas que vencem até meados do próximo ano e bancar os investimentos de dois trimestres (a estatal investe cerca de R$ 20 bilhões a cada três meses). Não há ainda previsão de quando será lançado o balanço auditado – em nota de 14 de janeiro, a empresa afirma que está empenhada em divulgar as demonstrações contábeis auditadas do terceiro trimestre “o mais breve possível”. “A Petrobras é auditada pela Price (PricewaterhouseCoopers), será que ela vai auditar os números da estatal, sendo que a Price é uma empresa americana e a Petrobras está sendo investigada nos Estados Unidos? Sem balanço, ela terá de reduzir os investimentos”, diz um fornecedor da estatal.

Efeito dominó

A ausência de balanço tem peso sobre os cerca de 85 mil funcionários da Pe-

trobras. A companhia e suas subsidiárias calculam o adiantamento da participação nos lucros ou resultados (PLR) tomando como base a comparação entre os resultados dos três primeiros trimestres do ano-base e do mesmo período do ano anterior. O pagamento da PLR, bem como do seu adiantamento, foi formalizado no acordo que a FUP e seus sindicatos assinaram em fevereiro de 2014. O recebimento do adiantamento de 40% a ser pago em janeiro ficou ameaçado. Sindicatos estão com medo do impacto das investigações no emprego. Em janeiro, representantes do Sindipetro da Bahia organizaram uma manifestação contra corruptos e corruptores, em defesa da dignidade dos petroleiros, da Petrobras e do pré-sal. Para o coordenador geral do Sindipetro Bahia, Deyvid Bacelar, não se podem confundir interesses do capital, a ação de um punhado de corruptos e corruptores presos na operação Lava Jato, com a categoria, nem com a capacidade técnica da estatal. Um exemplo dos possíveis impactos sobre o emprego está no futuro da indústria naval, que previa receber US$ 100 bilhões em investimentos entre 2012 e 2020 com os planos da Petrobras de dobrar sua produção até o início da próxima década. A indústria naval foi, na década de 1980, a segunda maior do mundo, nos anos 1990 estava reduzida a pó e agora se encontra entre as cinco maiores do planeta. De 2.500 mil empregos no início dos anos 2000, o setor emprega hoje mais de 80 mil pessoas e poderia duplicar esse número. Agora, o futuro repousa sobre como ficará a situação da Petrobras. O ambiente empresarial está em estado de alerta. “Ninguém na empresa está assinando aditivos contratuais e grandes contratos estão parados, o que cria um temor grande, porque a Petrobras responde por 10% dos investimentos do Brasil e por cerca de mais de 10% do PIB, é muita coisa”, diz o vice-presidente de uma das cinco maiores empreiteiras do Brasil. Cerca de 5 mil funcionários terceirizados em obras de construtoras para a estatal já estão ameaçados de perder o emprego até este fevereiro. Nas estimativas de algumas consultorias, um corte de REVISTA DO BRASIL

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10% no plano de negócios da petroleira pode tirar de 0,1 a 0,5 ponto percentual do PIB. Essas ameaças fazem as grandes construtoras, que têm na estatal um importante cliente, pressionar governo e sindicatos para mostrar o impacto que essa investigação poderá ter sobre a economia. Essas empressas deixaram há muitos anos de ser responsáveis apenas por obras de construção pesada. A Camargo Corrêa é uma das acionistas da CCR, concessionária de rodovias e da Linha 4 do Metrô de São Paulo. A Odebrecht é principal acionista da Braskem, que também tem no seu controle a Petrobras. A Andrade Gutierrez detém presença relevante na Cemig e na Oi. Hoje, as construtoras acreditam que a Justiça e a Corregedoria Geral da União (CGU) vão saber “separar os fatos”, segundo um executivo de uma grande empreiteira. Nas entrelinhas, isso significa que caso uma construtora tenha atuado de forma incorreta, quem pagará a multa e sofrerá proibição de participar de uma nova obra será a construtora e não o grupo econômico de que ela participa. “Esse é o nosso entendimento. Se não for feito assim, as coisas não vão parar de pé e o programa de concessões do governo po-

derá ficar paralisado”, frisa um advogado que acompanha a questão. A construtora Camargo Corrêa, por exemplo, pagaria a penalidade e não a CCR ou a CPFL, a companhia de energia que serve parte do estado de São Paulo, em que o grupo econômico detém participação relevante, sendo controlador de ambas.

Outro patamar

Apesar das incertezas de curto prazo, o horizonte de médio e longo prazo da Petrobras é positivo. A descoberta da camada pré-sal, em 2006, mudou o patamar de operação da estatal, que prevê chegar ao início da próxima década com uma produção de 4 milhões de barris por dia, o dobro do que extrai hoje – em 2014, a produção total de petróleo e gás no Brasil cresceu 6%. Ou seja, a estatal, que levou 60 anos para chegar à marca de 2 milhões de barris por dia, pretende dobrar esse patamar em apenas sete anos. O avanço se dará com o pré-sal, que responde por 22% da produção atual da empresa, mas que em 2018 chegará a 52% do total. Serão 19 novas unidades de produção instaladas no pré-sal da Bacia de Santos até o final daquele ano. Com esses projetos, a expectativa da Petrobras é de que a produção de petróleo exclusi-

vamente nas áreas do pré-sal, em 2017, ultrapasse a barreira de 1 milhão de barris por dia. Entre 2014 e 2018, a estatal prevê investir US$ 220 bilhões, o maior programa de investimento de uma petroleira no mundo. “Nossas reservas descobertas têm o grande diferencial de estarem próximas ao maior mercado consumidor de energia do país, o que resulta em alta competitividade. Em quatro anos, com base em 2010, nossa produção no pré-sal cresceu dez vezes”, destaca a presidente da estatal, Graça Foster. Publicado recentemente, relatório da companhia de petróleo e gás BP aponta crescimento da participação do Brasil no cenário energético mundial até 2035. O pré-sal se converterá em uma das principais províncias petrolíferas do planeta, o que fará o Brasil se tornar um exportador de energia e o maior produtor do setor na América do Sul. Devido a essa riqueza descoberta no Brasil, o governo alterou as regras de exploração e produção de petróleo na camada pré-sal, em 2010, fim do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Foi criado o regime de partilha na exploração da camada pré-sal, em que a União tem parte das receitas asseguradas,

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terior; manter a marca aqui e usar Petrobrax no exterior; e alterar no Brasil e lá fora para Petrobrax. O projeto foi pressionado por uma enxurrada de críticas e a ideia, abortada. Em 1997, a empresa valia R$ 25 bilhões e faturava R$ 26 bilhões/ano. Hoje, vale R$ 200 bilhões e sua receita supera R$ 300 bilhões. A produção, que estava em pouco mais de um milhão de barris/dia, hoje supera 2,2 milhões. E é alvo de ataques dos mercados de capitais e de energia – sobretudo dos Estados Unidos e aliados árabes, que já forçam a queda do preço do óleo para prejudicar Rússia e Venezuela –, por conta da influência do potencial produtivo do pré-sal no mercado global.

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Petrolífera da Venezuela, outro alvo da associação entre EUA e árabes

CARLOS GARCIA RAWLINS/REUTERS/LATINSTOCK

O uso político da estatal ocorre há décadas, assim como seu rumo depende do humor das políticas econômicas vigentes. Em agosto de 1997, quando o governo Fernando Henrique Cardoso avançava nas privatizações, foram modificadas as regras do setor de petróleo, estabelecidas em 1953 por Getúlio Vargas. O monopólio da estatal no segmento foi quebrado. Iniciaram-se estudos para a venda da estatal em leilão de privatização, o que não avançou. Em 2001, sob o comando de Henri Phillipe Reichstul, a empresa iniciou um projeto de ajuste de promoção da marca. Foram sugeridas três ideias: manter Petrobras no Brasil e no ex-


RICARDO STUCKERT/INSTITUTO LULA

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PREOCUPAÇÃO E CONFIANÇA Dilma: “Estamos enfrentando essa situação com destemor e vamos converter a renovação da Petrobras em energia transformadora”

e a obrigatoriedade de a Petrobras deter pelo menos 30% dos campos a serem concedidos na área. Há também regras de conteúdo nacional de compra de equipamentos fabricados no Brasil. Com a crise da Petrobras, parte da mídia e grupos econômicos têm criticado essas ideias. “A Petrobras precisará de foco e de uma política mais flexível. Obrigar a empresa a ter 30% de participação nos campos do pré-sal traz muita pressão. Ela tem capacidade técnica muito grande e um grande conhecimento em águas ultraprofundas, o que é um trunfo para o pré-sal. Ela poderá superar os obstáculos”, diz o economista Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infra Estrutura (CBIE), que atuou na Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). O Sindicato dos Petroleiros do Norte Fluminense (Sindipetro-NF) lançou um documento no fim do ano em que observa que “os ataques sofridos pela Petrobras neste momento têm relação direta com o potencial do pré-sal”. Grupos econômicos e parte da mídia têm defendido abertura para outras empresas participarem

da exploração do pré-sal sem a presença da Petrobras. “Embora o modelo adotado pelo governo não tenha atendido a todas as propostas feitas pelas entidades sindicais, contribuiu para garantir a soberania nacional em relação a esta produção, por meio do sistema de partilha e da criação da Petrosal. É preciso, portanto, enfrentar com vigor qualquer intenção entreguista que queira se aproveitar deste momento delicado pelo qual passa a Petrobras”, destaca o documento.

Oportunidades

Um ciclo de investimentos, turbinado pela exploração do pré-sal, poderá ser usado para a economia brasileira evitar a desindustrialização, na avaliação do diretor do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Fernando Sarti. Entre 1990 e 2009, os investimentos responderam por cerca de 20% do PIB nacional, enquanto na China estiveram acima de 40%. “Nós temos oportunidades e haverá demanda, mas ela ficará com indústrias daqui ou de fora?”, questiona Sarti.

“A questão não é apenas de câmbio, e a competição ficará mais acirrada porque a China e países desenvolvidos, como Alemanha e Estados Unidos, buscarão mercados para seus bens neste mundo em crise. O que precisa ser feito é usar essa demanda de forma estratégica, o que pode contribuir para o adensamento de cadeias produtivas geradoras de mais riqueza aqui”, analisa. Para o diretor, criar inovação e riqueza no Brasil depende de um papel mais ativo do Estado. Por meio de política industrial, o governo pode aumentar as oportunidades em setores competitivos com soluções diferenciadas criadas por empresas brasileiras ou multinacionais com negócios no Brasil. “Isso abre perspectiva de capacitação de fornecedores locais e de criação ou maior inserção em cadeias de valor. A empresa líder do setor é a Petrobras, com dimensão de mais longo prazo e condições de participar de uma política industrial mais ativa. A política de ­conte­ú­­do nacional é um trunfo.” O escândalo em torno dos contratos da companhia com empreiteiras, a despeito do oportunismo político com que é tratado por parte da oposição e de setores da imprensa, poderá significar uma nova era para a estatal. O assunto ocupou espaço importante no ato de diplomação da presidenta Dilma, em 18 de dezembro. Na ocasião, Dilma ressaltou que o governo trabalha para recuperar o prestígio da empresa. “Alguns funcionários da Petrobras, empresa que tem sido – e que vai continuar sendo – o nosso ícone de eficiência, brasilidade e superação, foram atingidos no processo de combate à corrupção”, afirmou a presidenta. “Estamos enfrentando essa situação com destemor e vamos converter a renovação da Petrobras em energia transformadora do nosso país”, disse ela. “A realidade atual só faz reforçar nossa determinação de implantar, na Petrobras, a mais eficiente estrutura de governança e controle que uma empresa estatal já teve no Brasil. Temos de apurar com rigor tudo de errado que foi feito. Temos, principalmente, de criar mecanismos que evitem que fatos como estes possam novamente se repetir.” REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA SOLANO JOSÉ/AGE/AE

ÍCONE DE UMA ERA Trecho de Altamira (PA) da rodovia Transamazônica, em 1972, sob concessão da Mendes Júnior: a obra nunca chegou a ser concluida

A construção do

CARTEL Escândalos recentes expõem como nunca a atuação das empreiteiras no Brasil. Um poder que se fortaleceu com a ditadura Por Maurício Thuswohl

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gênese da estreita ligação entre essas grandes empresas e o poder no Brasil é contada e analisada no livro Estranhas Catedrais – as empreiteiras brasileiras e a ditadura civil-militar, escrito pelo professor Pedro Campos, diretor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Camargo Corrêa, Odebrecht, Andrade Gutierrez, Mendes Júnior, OAS. Os nomes que compõem o seleto grupo das grandes empresas do setor de construção civil no Brasil são conhecidos há décadas pela população e já fazem parte do imaginário nacional. Arrastadas pelas denúncias de corrupção na Petrobras, com alguns de seus executivos presos desde o ano passado, essas e outras empreiteiras vêm sendo associadas pela mídia tradicional aos “desmandos” do atual governo, mas o fato 18

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é que pela primeira vez terão de prestar contas à Justiça sobre sua forma de agir e fazer negócios. Uma forma de agir que remonta ao governo de Juscelino Kubitschek e, sobretudo, à ditadura imposta aos brasileiros entre 1964 e 1985. O momento crucial dessa relação, segundo o autor, acontece em dezembro de 1969, quando, já no governo Médici, é publicado o Decreto 64.345, assinado pelo general-presidente anterior, Costa e Silva, que transforma em reserva de mercado para um grupo de empreiteiras brasileiras os grandes projetos de infraestrutura levados a cabo naquele período de “milagre econômico”. Desde então, as gigantes da construção civil no país vivem um longo e próspero período de expansão de atividades e crescimento dos lucros. Período que agora pode estar com os seus dias contados. A relação das grandes empreiteiras brasileiras com o poder nasce com o Decreto 64.345, de 1969? Como era a presença delas no mercado antes da ditadura?

Esse decreto é bem significativo do processo de fechamento imposto pela ditadura, é expedido com o Congresso fechado, um pouco depois do AI-5. É fruto e expressão do poder já organizado desses empresários e, ao mesmo tempo, ajuda a promover e fortalecer todo o ramo da construção civil no Brasil. Na


ENTREVISTA

verdade, as empreiteiras brasileiras em 1969 já eram muito poderosas. Elas tiveram participação no golpe de Estado que impôs a ditadura. Cresceram muito antes disso, ainda no período JK (1956-1961). Além disso, há o início do chamado milagre econômico brasileiro, e é o momento em que elas vão fazer vários empreendimentos e vão enriquecer e se fortalecer muito. O decreto vai facilitar esse trâmite ao impedir a presença de empreiteiras estrangeiras atuando no país. Pode ser lido de duas formas. Primeiro, como fruto do poder, de uma demanda do setor. Os empresários, ao longo do primeiro governo da ditadura, de Castello Branco, fizeram uma série de críticas em relação às políticas de governo que incorriam na contratação de empresas estrangeiras nos setores de engenharia, de projetos de obra e tudo o mais. Esse conjunto de medidas vai ser muito criticado, muito atacado pelos empresários da engenharia, que organizam uma campanha nacional, que eles chamam de “defesa da engenharia brasileira”. Medidas como a reserva de mercado, que acabou acontecendo, foram clamadas por essa campanha. Não é uma ação do governo, uma ação do Executivo à revelia da sociedade civil. Pelo contrário, é uma queixa, uma demanda que vem desses empresários de maneira organizada, em aparelhos da sociedade civil, em organismos de empresários, sindicatos e associações, e que acaba, no meio da ditadura, de maneira bastante arbitrária e autoritária, sem passar pelo Congresso, em um decreto do Executivo para atender às demandas desse setor. O que só mostra que esses empresários estavam bastante coadunados com a ditadura, bem relacionados com a ditadura nos seus ímpetos mais autoritários. Conseguem um grande rol de obras ao longo do período do milagre, na década de 1970, e têm facilitadas as práticas cartelistas porque, se não há empresas estrangeiras concorrendo, é muito mais fácil acertar internamente como vão ser divididas as obras. Como e com quais empreiteiras se formaram os primeiros cartéis no setor de infraestrutura? Existia alguma empreiteira “líder”?

Não existe um único cartel no país. Na verdade, existem cartéis. Principalmente em relação aos chamados órgãos contratantes. Existe, por exemplo, o cartel das empresas de obras rodoviárias que atuam junto ao Departamento Nacional de Estradas de Rodagem. Existe um cartel das empreiteiras fluminenses que atuam junto à Cedae (Companhia Estadual de Águas e Esgotos, no Rio de Janeiro) e à Secretaria de Obras do Estado. Existe o cartel das empreiteiras paulistas que atuam junto ao Departamento de Estradas de Rodagem de São Paulo. E por aí vai... Outro cartel,

que agora foi à mostra, é formado pelas empreiteiras que atuam na Petrobras. Esse cartel não é de hoje, não necessariamente composto pelas mesmas empresas. Desde a década de 50, quando a Petrobras é fundada, um conjunto de empresas começa a se especializar em prestar serviços para a Petrobras e isso tem tido continuidade – é óbvio que com arranjos aqui e acolá – desde então. Não existe um único cartel, existe um conjunto de práticas cartelistas no setor de obras públicas do país, o que foi propiciado, por exemplo, por esse decreto de 1969 que impede a participação e entrada de empresas estrangeiras em obras públicas contratadas por agências do Estado no Brasil. Quem dominava o mercado brasileiro? Não existiam grandes obras antes da era JK?

O mercado de obras públicas no Brasil é complexo. É impulsionado no pós-guerra, e realmente tem um ímpeto muito grande no período JK. É um tipo específico, são principalmente as obras rodoviárias, as obras de estradas. O governo JK foi muito conhecido por ter feito realmente empreendimentos rodoviários significativos. Ele tinha uma previsão de construção de rodovias que foi superada e realmente teve um nível impressionante de construção e também de pavimentação e reformas de estradas. Existem outros tipos mais complexos do que a construção de estradas, como as de barragens, hidrelétricas, de usinas nucleares, metrôs e tudo o mais. Essas mais complexas, em geral, foram sendo controladas por experiência técnica pelas empreiteiras brasileiras ao longo do período seguinte, década de 60/70, obviamente auxiliadas ou por políticas favoráveis que impediam a participação de estrangeiras ou por medidas como obrigar uma empreiteira estrangeira a se associar a uma empreiteira nacional para fazer uma obra. Um caso clássico é o da maior construtora de hidrelétricas do Brasil, a Camargo Corrêa, que faz suas primeiras obras em São Paulo, com as empresas que depois foram reunidas na Cesp (Companhia Energética de São Paulo) – colada com uma empreiteira norueguesa, a Norendel do Brasil. Com ela, a Camargo Corrêa aprendeu tudo para a construção de barragens e, obviamente, depois foi desenvolvendo melhor todo esse know-how. A partir de medidas como essa as empreiteiras brasileiras vão criando um conjunto de experiências que as capacita a fazer obras similares, no Brasil e no exterior. O acesso ao mercado estrangeiro pode ser considerado outro salto para essas empreiteiras? Houve um momento, sobretudo nos anos 1980, em que muito se falava na presença das empreiteiras brasileiras no Oriente Médio ou na África. REVISTA DO BRASIL

Se não há empresas estrangeiras concorrendo, é muito mais fácil acertar internamente, entre as nacionais, como vão ser divididas as obras

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A ditadura é o momento em que há o maior volume histórico de obras no país, de obras rodoviárias, de energia, de transporte, realmente sem igual em período anterior e até posterior. Foram muitas obras, tem tudo a ver com uma ditadura, né? Todas as demandas sociais na forma de saúde, educação, estavam cerceadas, então o governo podia com seus recursos fazer obras sem tanto impacto social. E as empreiteiras, mesmo nesse período de bonança interna, vão para fora. Justamente pelo porte que adquirem e pela experiência técnica que vão obter, elas se capacitam a poder atuar no exterior. A Mendes Júnior é um caso clássico. Ela foi desbravar o mercado iraquiano e acabou se dando mal no final das contas, mas fez obras grandiosas no Iraque e no Oriente Médio em geral, África, América do Sul, e estão até hoje com obras significativas nesses lugares.

A Odebretch é a primeira empresa a chegar em Angola, em 1980, para fazer uma hidrelétrica em associação com a União Soviética. Ela chega ao país para fazer a hidrelétrica de Capanda e tem uma presença hoje em Angola que é um negócio impressionante de grande. A Odebrecht é dona de uma rede de supermercados, gere a hidrelétrica, fornece água para a capital do país. É a grande multinacional hoje da engenharia brasileira, presente em diversos continentes, tem mais de 500 contratos no exterior... É na ditadura que essas empresas passam a ser impulsionadas e incentivadas a atuar no exterior, inclusive com incentivo do governo, com isenções fiscais, com financiamento público, o que teve continuidade no período posterior e até se fortaleceu ultimamente, no governo Lula, com o crédito do BNDES para a atuação fora do país. Seu livro cita o parentesco de um dos fundadores da Camargo Corrêa com o então governador de São Paulo, Adhemar de Barros, como exemplo de acesso privilegiado às autoridades e ao núcleo da ditadura. Isso ocorria com outras empresas? De que forma?

É muito comum haver uma relação, não necessariamente de parentesco, mas de proximidade e de conhecimento entre controladores dessas empresas com agentes públicos, agentes políticos importantes e agentes obviamente também da ditadura. Por exemplo, o caso da Camargo Corrêa é bastante explícito. A empreiteira vai ser fundada no período do governo Adhemar de Barros no estado de São Paulo. O cunhado, o parente do Adhemar é o Sylvio Corrêa, que vem a ser na época um dos controladores da empresa. O Sebastião Camargo tinha uma parte e o Sylvio tinha outra, depois o Sebastião compra a parte do Sylvio... A Camargo Corrêa se caracteriza na sua história, até um período recente, apesar de ser uma empreiteira de porte nacional com atuação no exterior e tudo o mais, por ter uma concentração de atividades muito forte em São Paulo. Por mais que ali tivesse ligação pessoal de um dos controladores com uma figura política importante, ela não restringiu suas ações à figura do Adhemar de Barros e seus afilhados políticos. Pelo contrário, interessante 20

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DANIEL MARENCO/FOHAPRESS

Há também a conhecida presença da Odebrecht em Angola...

Na ditadura havia um cenário para as empresas se desenvolverem. Não à toa, o Brasil se tornou recordista em acidentes de trabalho naquela época

notar isso, essas empreiteiras não atuam junto a governo x ou y. Eles próprios falam, é explícito isso, que atuam junto ao aparelho de Estado, às agências de Estado. A Camargo Corrêa – entra governo, sai governo em São Paulo – tinha o controle e continuava tendo uma presença muito forte nos setores de energia, transportes e obras públicas. E, mesmo quando o governo que era oposição ao anterior entra, ela não perde poder com isso. Jânio Quadros vinha da oposição aos grupos anteriores, mas a Camargo Corrêa continua bastante presente e consegue obras e contratos em seu governo. Sempre próximas ao Estado.

É interessante notar a presença das empreiteiras junto ao aparelho de Estado. Essas empreiteiras estão organizadas, reunidas em organismos da sociedade civil. Em São Paulo, por exemplo, desde 1947 existe uma Associação Paulista de Empresários de Obras Públicas, colada com as agências que contratam obras, o DER, as agências do setor de energia, entre outras. Eles têm esse acesso ao Estado via essas agências. No caso de São Paulo, a grande líder do setor era a Camargo Corrêa. Outro exemplo significativo é a OAS. Um dos sócios da empresa é o César Mata Pires, genro do Antônio Carlos Magalhães. Em 1975, o ACM vai para a presidência da Eletrobras e o César Mata Pires funda a OAS. O ACM é indiretamente proprietário de uma empreiteira, né? Isso não quer dizer que ela se restrinja a, como seu


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codinome, “Obras Arranjadas pelo Sogro”. A OAS acaba virando muito maior que isso. Não está só na Bahia, hoje controla o Metrô e a Linha Amarela no Rio de Janeiro, está em todo o Brasil, está no exterior. Tem um modus operandi de agir sobre o Estado que os capacita a não ficar presos a certas figuras políticas. As grandes empreiteiras souberam fazer isso. Outras realmente ficaram estigmatizadas pelas relações políticas com certas figuras. É o caso da Rabello, que era muito ligada ao governo JK e, ao contrário da Andrade Gutierrez, que também tinha uma ligação muito forte com o governo JK, foi de certa forma perseguida, perdeu várias obras durante a ditadura, foi para o exterior e acabou depois indo à falência. A Delta vive uma situação semelhante nos dias de hoje...

A Delta tinha toda uma relação com o PMDB, explícita e notória. Fazia obras para os governos do PMDB no Brasil inteiro, com destaque para o Rio de Janeiro. Mas era um peixe pequeno, que foi pego em uma operação da Polícia Federal e se tornou insolvente. Eu tenho dúvidas se empresas do porte de Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez terão o mesmo fim. Eu tendo a ser cético em relação a isso, porque elas estão no mundo todo, são concessionárias de serviços públicos, têm braços em outros setores da economia. Podem fazer ameaças como parar o Maracanã ou parar o aeroporto do Galeão. Seus empreendimentos são alastrados e enraizados na economia brasileira. As empreiteiras colaboraram com ações de repressão levadas a cabo pelos agentes da ditadura? É verdade que financiaram a Operação Bandeirante?

Esse é um ramo onde é difícil obter informação. Através do Elio Gaspari e do documentário Cidadão Boilesen, eu tenho a informação de que a Camargo Corrêa não só contribuiu para a Operação Bandeirante como era uma das principais colaboradoras da repressão política financiada e auxiliada pelo empresariado paulista para perseguir, reprimir, torturar e assassinar os membros da resistência armada à ditadura. Isso pode ser maior, não tenho informações se outras empreiteiras participaram desse tipo de iniciativa. Mas o elogio da ditadura era generalizado no setor. Várias empresas eram muito elogiosas, nas entrevistas de seus dirigentes, à ditadura civil-militar. E, é claro, ali havia um cenário ideal para elas poderem se desenvolver. Os sindicatos estavam amordaçados, toda a fiscalização da segurança do trabalhador e das condições de trabalho nos canteiros era bastante limitada. Não à toa, o Brasil se tornou re-

cordista em acidentes de trabalho naquela época, e o setor que mais tinha acidentes era a construção civil, morreu muita gente nas grandes e pequenas obras da ditadura. Além disso, eles tinham várias isenções e políticas favoráveis, todo um orçamento direcionado especialmente para investimentos em obras de infraestrutura em um volume inédito na história brasileira. Como se deu a relação das grandes empreiteiras com o Poder Judiciário desde a ditadura?

Na ditadura, em função das próprias características do regime, a atuação das empreiteiras em direção ao Poder Judiciário e ao Poder Legislativo era muito reduzida. Tivemos na época uma hipertrofia do Poder Executivo em detrimento dos outros poderes. É o caso dos atos institucionais, atos do Executivo que têm valor de lei. O Legislativo é fechado e o Judiciário tem seus poderes limitados, de modo que as empreiteiras pouco vão em direção ao Judiciário, até porque não era ali que elas resolviam suas pendências. Suas ações durante o regime eram mais direcionadas ao Executivo. Com o processo de abertura, essas empreiteiras, de maneira esperta e dinâmica, vão procurar se adequar às novas regras e normas institucionais. Assim que o Congresso começa a retomar poder, assim que o PMDB começa a ganhar força dentro da Câmara e do Senado, elas passam a endereçar suas ações ao Legislativo, percebendo que ali havia um ator novo que teria um poder maior que antes. Aconteceu da mesma forma em relação ao Judiciário. Quando elas veem que algumas questões não serão mais decididas nos gabinetes do presidente da República, começam também a endereçar suas ações ao Judiciário e aos juízes, com um conjunto de advogados bastante forte para assessorá-las. Com a retomada dos poderes republicanos – e um marco importante é a Constituição de 1988 –, precisaram ter uma ação mais forte junto ao Judiciário e ao Legislativo. Quando a gente passa a ter um regime não fechado, não ditatorial, com imprensa, Ministério Público e Polícia Federal funcionando de maneira mais livre, vêm à mostra algumas práticas que essas empresas desenvolvem, como pagamento de propina ou combinação de resultado em licitação. Vão precisar agora de uma assessoria jurídica bastante grande, porque estão agindo de forma ilegal. Se, durante a ditadura, a gente não tem muitas informações sobre essas práticas – embora se saiba, segundo denúncias, que elas ocorriam de maneira deliberada –, em um regime onde isso pode ser denunciado as empreiteiras terão de se instrumentalizar para poder se defender. REVISTA DO BRASIL

Foram muitas obras, tem tudo a ver com uma ditadura, né? Todas as demandas sociais na forma de saúde, educação, estavam cerceadas

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MAURO SANTAYANA

Quem quer o fim do Brasil

O combate à corrupção, com a punição dos responsáveis, deve ser entendido como um meio de sanar nossas grandes empresas, e não de inviabilizá-las como instrumentos estratégicos

J

á há alguns meses, e mais especialmente na época da campanha eleitoral, grassam na internet mensagens com o título genérico de “O Fim do Brasil”, defendendo a estapafúrdia tese de que a nação vai quebrar nos próximos meses, que o desemprego vai aumentar, que o país voltou, do ponto de vista macroeconômico, a 1994 etc. etc. – em discursos irracionais, superficiais, boçais e inexatos. Na análise econômica, mais do que a onda de terrorismo antinacional em curso, amplamente disseminada pela boataria rasteira de botequim, o que interessa são os números e os fatos. Segundo dados do Banco Mundial, o PIB do Brasil passou, em 11 anos, de US$ 504 bilhões em 2002, para US$ 2,2 trilhões em 2013. Nosso Produto Interno Bruto cresceu, portanto, em dólares, mais de 400% em dez anos, performance ultrapassada por pouquíssimas nações do mundo. Para se ter ideia, o México, tão “cantado e decantado” pelos adeptos do terrorismo antinacional, não chegou a duplicar de PIB no período, passando de US$ 741 bilhões em 2002 para US$ 1,2 trilhão em 2013; os Estados Unidos o fizeram em menos de 80%, de pouco mais de US$ 10 trilhões para quase US$ 18 trilhões. Em 11 anos, passamos de 0,5% do tamanho da economia norte-americana para quase 15%. Devíamos US$ 40 bilhões ao FMI, e hoje temos mais de US$ 370 bilhões em reservas internacionais. Nossa dívida líquida pública, que era de 60% há 12 anos, está em 33%. A externa fechou em 21% do PIB, em 2013, quando ela era de 41,8% em 2002. E não adianta falar que a dívida interna aumentou para pagar que devíamos lá fora, porque, como vimos, a dívida líquida caiu, com relação ao PIB, quase 50% nos últimos anos. Em valores nominais, as vendas nos supermercados cresceram quase 9% no ano passado, segundo a Abras, associação do setor, e as do varejo, em 4,7%. O comércio está vendendo pouco? O eletrônico – as 22

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pessoas preferem cada vez mais pesquisar o que irão comprar e receber suas mercadorias sem sair de casa – cresceu 22% no ano passado, para quase US$ 18 bilhões, ou mais de R$ 50 bilhões, e o país entrou na lista dos dez maiores mercados do mundo em vendas pela internet. Segundo o Perfil de Endividamento das Famílias Brasileiras divulgado pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC), o ano de 2014 fechou com uma redução do percentual de famílias endividadas na comparação com o ano anterior, de 62,5%, para 61,9%, e a porcentagem de famílias com dívidas ou contas em atraso, caiu de 21,2%, em 2013, para 19,4%, em 2014 (menor patamar desde 2010). A proporção de famílias sem condições de pagar dívidas em atraso também diminuiu, de 6,9% para 6,3%. É esse país – que aumentou o tamanho de sua economia em 400%, cortou suas dívidas pela metade, deixou de ser devedor para ser credor do Fundo Monetário Internacional e quarto maior credor individual externo dos Estados Unidos, que duplicou a safra agrícola e triplicou a produção de automóveis em 11 anos, que reduziu a menos de 6% o desemprego e que, segundo consultorias estrangeiras, aumentou seu número de milionários de 130 mil em 2007 para 230 mil no ano passado, principalmente nas novas fronteiras agrícolas do Norte e do Centro-Oeste – que malucos estão dizendo que irá “quebrar” em 2015. E se o excesso de números é monótono, basta o leitor observar a movimentação nas praças de alimentação dos shoppings, nos bares, cinemas, postos de gasolina, restaurantes e supermercados; ou as praias, de norte a sul, lotadas nas férias. E este é o retrato de um país que vai quebrar nos próximos meses? O Brasil não vai acabar em 2015. Mas se nada for feito para desmitificar a campanha antinacional em curso, poderemos, sim, assistir


PEDRO REVILLION/PALÁCIO PIRATINI/FOTOS PÚBLICAS

Em 11 anos, o Brasil duplicou sua safra agrícola

ao “fim do Brasil” como o conhecemos. A queda das ações da Petrobras e de empresas como a Vale, devido à baixa do preço do petróleo e das commodities, e também de grandes empresas ligadas, direta e indiretamente, ao setor de gás e de petróleo, devido às investigações sobre corrupção na maior empresa brasileira, poderá diminuir ainda mais o valor de empresas estratégicas nacionais, levando, não à quebra dessas empresas, mas à sua compra, a preço de “bacia das almas”, por investidores e grandes grupos estrangeiros – incluídos alguns de controle estatal – que, há muito, estão esperando para aumentar sua presença no país e na área de influência de nossas grandes empresas, que se estende pela América do Sul e a América Latina. Fosse outro o momento, e o Brasil poderia – como está fazendo a Rússia – reforçar sua presença em setores-chave da economia, como são a energia e a mineração, para comprar, com dinheiro do tesouro, a preço muito barato, ações da Petrobras e da própria Vale. Com isso, além de fazer um grande negócio – as ações da Petrobras já estão voltando a se valorizar –, o governo brasileiro poderia, também, contribuir, com a recuperação da Bolsa de Valores. Essa alternativa, no entanto, não pode sequer ser aventada, em um início de mandato em que o governo se encontra pressionado, praticamente acuado, pelas forças neoliberais que movem – aproveitando os problemas da Petrobras – cerrada campanha contra tudo que seja estatal ou de viés nacionalista. Com isso, o país corre o risco de passar, com a entrada desenfreada de grandes grupos estrangeiros na Bolsa por meio da compra de ações de empresas brasileiras com direito a voto, e a eventual quebra ou absorção de grandes empreiteiras nacionais por concorrentes do exterior, pelo maior processo de desnacio-

nalização de sua economia, depois da criminosa entrega de setores estratégicos a grupos de fora – alguns de capital estatal ou descaradamente financiados por seus respectivos países (como foi o caso da Espanha) nos anos 1990. Projetos que envolvem bilhões de dólares, e mantêm os negócios de centenas de empresas e empregam milhares de brasileiros já estão sendo, também, entregues para estrangeiros, cujas grandes empresas, no quesito corrupção, como se pode ver no escândalo dos trens, em São Paulo, em nada ficam a dever às brasileiras. Para evitar que isso aconteça, é necessário que a sociedade brasileira, por meio dos setores mais interessados – associações empresariais, pequenas empresas, sindicatos de trabalhadores, técnicos e cientistas que estão tocando grandes projetos estratégicos que poderiam cair em mãos estrangeiras –, se organize e se posicione. Grandes e pequenos investidores precisam ser estimulados a investir na Bolsa, antes que só os estrangeiros o façam. O combate à corrupção – com a punição dos responsáveis – deve ser entendido como um meio de sanar nossas grandes empresas, e não de inviabilizá-las como instrumentos estratégicos para o desenvolvimento nacional e meio de projeção do Brasil no exterior. É preciso que a população – e especialmente os empreendedores e trabalhadores – percebam que, quanto mais se falar que o país vai mal, mais chance existe de que esse discurso antinacional e hipócrita, contamine o ambiente econômico, prejudicando os negócios e ameaçando os empregos, inclusive dos que de dizem contrários ao governo. É legítimo que quem estiver insatisfeito combata a aliança que está no poder, mas não o destino do Brasil, e o futuro dos brasileiros. REVISTA DO BRASIL

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MARCIO POCHMANN

DIVULGAÇÃO/PAC2

EMPREGO Obras de ampliação do aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro

O Brasil e seu caminho no mundo

A redução de gastos do país com juros da dívida pública, nos últimos dez anos, fortaleceu a política social de sustentação de renda e de proteção para a população vulnerável. Os acertos dessa missão revelam que ela precisa continuar e avançar

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Brasil registrou uma das trajetórias mais exitosas do desenvolvimento capitalista mundial no século 20 em termos de expansão de suas forças produtivas e transformação da estrutura social. Mas ingressou no final do século numa fase de regressão socioeconômica das mais graves de sua história. Entre os anos 1980/90, caiu cinco posições, para a 13ª, no ranking econômico mundial, elevou sua população desempregada de 24

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2 milhões para 11 milhões, diminuiu a participação dos salários na renda nacional de 50% para 39% e manteve relativamente estabilizada a desigualdade de renda e a pobreza. A interrupção do longo ciclo de crescimento iniciado na década de 1930 ocorreu a partir da explosão da crise da dívida externa. Logo no início dos anos 1980, com a opção pelo ajuste exportador e a contenção do mercado interno, a subordinação da política econômica aos interesses dos detentores da riqueza


financeira e dos setores geradores de divisas internacionais passou a predominar. O resultado final foi a capitulação do projeto de construção do Estado nacional burguês, especialmente na década de 1990, quando a hegemonia neoliberal internalizou o receituário proveniente do Consenso de Washington. Na década passada, o país retornou ao grupo das sete mais importantes economias globais, tornou-se o segundo maior exportador mundial de produtos agrícolas e o sexto na produção global de manufaturas, conforme informações das Nações Unidas. A pobreza e a desigualdade declinaram sensivelmente, ao mesmo tempo em que o mercado de trabalho registra certa escassez de mão de obra, somente comparável à primeira metade da década de 1970. Mesmo com o êxito alcançado na recuperação econômica com inclusão social no período recente, prevalecem, ainda, desafios a serem enfrentados, como o exercício da liderança de um novo projeto de desenvolvimento ambientalmente sustentável e com grandeza civilizatória. Inicialmente por conta de uma nova geografia produtiva mundial que se estabelece em meio à crise capitalista de dimensão internacional. O movimento de deslocamento da produção de manufatura do mundo para a Ásia, iniciado com o forte desenvolvimento industrial japonês desde o fim do segundo pós-guerra, passou pela década de 1980 com o avanço de outros países asiáticos, como Taiwan, Cingapura e Coreia do Sul. Dez anos depois, a China assumiu a proeminência da expansão econômica sustentada pela produção de manufatura mundial, o que permitiu responder por quase 15% dela (eram 2,5% em 1990). Para o ano de 2020, projeta-se uma participação da Ásia próxima à dos países desenvolvidos. Estes, por sinal, apresentam desde a década de 1990 uma queda continuada na participação relativa da produção global de manufatura. No ano de 2010, por exemplo, o peso dos países desenvolvidos no valor global da manufatura foi de 66,2%, ante 81,5% em 1990. Na América Latina, sabe-se que o desempenho econômico distanciou-se da trajetória asiática. O processo de abertura comercial e de integração passiva à globalização desde o final da década de 1980 resultou na redução relativa de sua participação na produção industrial global, ao mesmo tempo em que terminou reforçando a especialização de sua estrutura produtiva nos setores de maior conteúdo de recursos naturais e montagem de componentes vindos de fora. Neste início do século 21, a participação do continente em relação ao mundo vem se reduzindo, chegando a 6,3% em 2010 (em 1990 alcançava 7,3%). Diante do curso da nova divisão internacional do

trabalho, caberia ao Brasil o exercício de maior reposicionamento interno no seu conjunto das forças produtivas. As opções econômicas nesse sentido permitiram manter em alta o nível de emprego e rendimentos dos trabalhadores por meio de políticas públicas. O êxito dessas opções, no entanto, é ainda parcial, uma vez que não foi suficiente para o desencadeamento de um novo bloco de investimentos em diversos setores da economia nacional – que permitisse hoje ao país poderia se apresentar mais confiante em termos de sua participação nas cadeias globais de produção. Ainda assim, o sentido socioeconômico geral das mudanças estabelecido no seio do capitalismo brasileiro permaneceria distinto do verificado nos últimos 50 anos, especialmente na comparação com a fase dos governos neoliberais do final do século 20. O Brasil, desde o início da década de 2000, vem conseguindo, pela primeira vez em sua história, combinar a maior ampliação da renda por habitante com a redução no grau de desigualdade na distribuição pessoal da renda do trabalho. A recuperação na participação do rendimento do trabalho na renda nacional compôs um quadro de diminuição do desemprego e de crescimento do emprego formal. A natureza geral das atuais mudanças sociais encontra-se associada às transformações na estrutura produtiva, com crescente impulso do setor terciário, sobretudo à geração de postos de trabalho. De maneira geral, o maior saldo líquido das ocupações abertas na década de 2000 concentrou-se naquelas de baixa remuneração, ao redor do salário mínimo nacional, o que abriu inegável horizonte de oportunidades de trabalho e renda a enorme segmento social esquecido secularmente. Combinado com a recuperação do valor real do salário mínimo, a recente expansão das vagas de salário de base permitiu absorver enormes parcelas de trabalhadores de baixa renda, o que favoreceu a redução sensível da taxa de pobreza em todo o país. Ao reduzir em mais de três pontos percentuais do PIB os gastos com juros da dívida pública, fruto da transição da macroeconomia da financeirização da riqueza para a lógica da produção e consumo, ocorreu o fortalecimento da política social de sustentação da renda e proteção para a população vulnerável. Tudo demonstra o quanto a inflexão brasileira a partir da primeira década do século 21 resultou em mudanças socioeconômicas importantes. O Brasil parece seguir um caminho próprio após a grande noite neoliberal de regressão social e econômica do país. As tarefas estão postas. Precisam continuar a ser implementadas. REVISTA DO BRASIL

O Brasil, desde o início da década de 2000, vem conseguindo, pela primeira vez em sua história, combinar a maior ampliação da renda por habitante com a redução no grau de desigualdade na distribuição pessoal da renda do trabalho

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Sampa,

2030 Democratização da gestão, participação social e reforma política podem ser decisivas para que o Plano Diretor da capital paulista transforme antigos sonhos em projetos realizáveis nos próximos 15 anos Por Gisele Brito. Ilustrações: Vicente Mendonça

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ão Paulo, a cidade que não para, completou 461 anos em 25 de janeiro e ainda enfrenta o desafio de pensar e planejar o seu futuro, o que praticamente não aconteceu desde que surgiu, na área do velho Pátio do Colégio. Desta vez, no entanto, há expectativa de que o Plano Diretor Estratégico (PDE), legislação municipal aprovada no ano passado recheada de diretrizes para o desenvolvimento urbano nos próximos 15 anos, consiga nortear novas linhas gerais para esse caminho, acima das cores partidárias que possam vir a administrar o município nas três gestões que se sucederão até lá. Isso porque o plano teve apoio de amplos setores da sociedade, empresariais e populares, e do meio acadêmico. E seu pressuposto central parece ser consensual, inclusive entre os que fazem hoje oposição ao governo do prefeito Fernando Haddad (PT). A maior cidade brasileira chegou a 11,9 milhões de habitantes em 2014, segundo estimativa do IBGE. Em 2000, eram 10,4 milhões. Em 2012, ainda de acordo com o instituto, concentrava 11,4% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Pouco mais da metade (52,5%) são mulheres. Um em cada cinco moradores tem menos de 15 anos e 13% têm mais de 60. Em 2030, a média de idade do paulistano, estimada pela Fundação Seade, subirá dos atuais 35 para 39 anos. Há um século, a população se concentrava no alto de uma colina, num pequeno triângulo de ruas que hoje é chamado de Centro Velho. Para avançar desse perímetro, a cidade precisou vencer, ou destruir, barreiras naturais como declives e cursos 26

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d’água. O avanço mal planejado sobre os novos territórios é uma das origens da ausência de padrões mínimos de mobilidade, moradia e distribuição do emprego e qualidade paisagística. São Paulo, assim como todas as outras riquezas produzidas sob a lógica do capital, concentrou o que tinha de melhor para poucos. Segundo expectativas para o fim do período contemplado no Plano Diretor, a região central deve ter mais moradores e menos carros. Será mais agradável para se viver, recuperando valor afe-


CIDADES

tivo. Ainda que haja indicativos de que outras áreas devam se desenvolver, especialmente na zona leste, o centro expandido deve continuar a sintetizar a cidade, guardando parte fundamental da sua história e pulsando sua dinâmica econômica e cultural. Entretanto, para o atual secretário de Cultura, Nabil Bonduki, nem a carência de moradias para a população mais pobre estará solucionada, nem as favelas terão desaparecido. “Mas gradativamente estarão sendo urbanizadas”, acredita Bonduki, que foi o vereador responsável pelo texto final do PDE, em 2013. “A velocidade com que isso se dará depende da prioridade que os governos derem para a questão. Em linhas gerais, condições legais para equacionar essa questão estão resolvidas.”

Mão invertida

A lei contém princípios opostos ao império do automóvel, cujo domínio ditado a partir da segunda metade do século passado hoje escancara como consequências a rotina de trânsito, que restringe a locomoção, e os problemas de saúde e mortes causados pela poluição ou por acidentes. Mudar esse paradigma é algo que ainda enfrenta resistências. “A elite econômica e parte significativa da classe média não aceitam bem se misturar com os mais pobres. O momento de implementação dessa nova lógica é difícil, pois a classe média tem força política e, embora aceite a tese do transporte coletivo, não está disposta a mudar seus hábitos. Afinal, um sistema eficiente de transporte coletivo ainda não está implantado”, afirma Bonduki, também urbanista e professor na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). O deslocamento no sentido inverso do habitual – periferia-centro-periferia – também pode ganhar força nos próximos anos. Três milhões de pessoas vão e voltam todos os dias, por exemplo, da zona leste para áreas centrais, e o aumento de postos de trabalho na região periférica se apresenta como perspectiva real a contribuir para essa mudança. O PDE define essa parte da cidade como um Polo Estratégico de Desenvolvimento Econômico, e desde janeiro do ano passado empresas interessadas

CARLOS CECCONELLO/FOLHAPRESS

O que será do Minhocão? Símbolo da política “rodoviarista” que marcou São Paulo a partir dos anos 1970, o Elevado Costa e Silva, o Minhocão, pode estar com os dias contados. O Plano Diretor propõe o debate na sociedade para que se decida seu destino após a redução do fluxo viário sobre nele. Duas propostas despontam: a derrubada e transformação em parque linear, nos mesmos moldes do parque High Line, em Nova York. A adoção de qualquer uma das duas soluções propostas mudará a cara do centro e muito provavelmente, se nenhum cuidado for tomado, da população do entorno do eixo viário, que pode ser vítima de uma supervalorização do trecho, correndo o risco de ser expulsa pelo mercado. Talvez por isso, até agora nenhuma das duas propostas se destacou como favorita – nem sequer a desativação do tráfego de veículos no Minhocão é consenso.

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JUCA MARTINS/OLHAR IMAGEM

em se instalar ali estão isentas de IPTU e recebem desconto de ISS, entre outras vantagens fiscais. A expectativa da prefeitura é que sejam criados 50 mil empregos nos próximos anos na região. “Não é o suficiente para inverter totalmente o fluxo, mas vai acontecer uma transformação em Itaquera. O polo institucional, a instalação da Unifesp, tudo isso pode produzir grandes mudanças, inclusive impactos sociais negativos para população de baixa renda”, avalia o urbanista Kazuo Nakano, que ajudou a elaborar o anteprojeto do PDE. Entre os impactos negativos de que fala o urbanista estaria a pressão no preço dos imóveis na zona leste com a valorização da região, o que afasta a população mais carente. O antídoto previsto para isso no Plano Diretor é a implementação das Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis).

SERÁ POSSÍVEL? Sair da estação Anhangabaú do metrô depois do expediente, parar no Largo da Memória e tomar um gole de água potável direto da fonte em frente ao obelisco, primeiro e mais antigo monumento da capital paulista


CIDADES

Nessas áreas, poder público e iniciativa privada devem construir habitações para a população de baixa renda.

das comemorações do bicentenário do obelisco. No início do século 20, essas bicas abasteciam a população. Depois viraram peça ornamental. “A ideia é que se tornem esPressão fiscal paços de convivência e demonstrem de maneira didática coÉ nessa mesma ferramenta que estão depositadas esperanças mo lidar com a água. Pretendemos captar da chuva, usar solude que o adensamento do centro contemple todas as classes so- ções filtrantes, como plantas, e deixá-las adequadas”, explica a ciais. No centro, entre as medidas que podem atrair morado- chefe da Seção Técnica de Monumentos e Obras Artísticas do res está a adoção de IPTU progressivo no tempo, que onera o DPH, Mariana Falqueiro. A iniciativa tem como parceiros pesimposto pago por proprietários que não cumprem função so- quisadores da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo cial, mantendo imóveis vazios. O mecanismo está previsto no (PUC-SP) e membros da sociedade civil. “A ideia prevê o enEstatuto da Cidade, mas jamais havia sido aplicado. A atual volvimento da sociedade e a recuperação do valor afetivo desse patrimônio. As pessoas não vão amar a cidade que as trata administração começou a pôr em prática a lei e a listar mal”, resume Mariana. imóveis que devem ser notificados na primeira etapa de um Para o coordenador da Promoção da Direito à Cidade na Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, William processo que dura no mínimo Nozaki, os esforços da gestão Haddad tentam recinco anos, até que, em casos organizar o espaço público por meio de medidas extremos, esses imóveis possam estruturais. “O Plano Diretor é a grande sinaliser desapropriados. Para evitar a desapropriação, os notificados têm até zação dessa construção policêntrica. um ano para apresentar um proDesde a campanha, depois na elabojeto para parcelar o terreno, rearação do plano de metas, havia um lizar obras ou reformas e colocádiagnóstico de que as pessoas haviam -lo em uso. Caso contrário, o IPTU melhorado de vida da porta para dentro”, diz. A melhora da porta para foaumentará. Em uma apresentação ra estaria associada ao olhar diferente A pressão fiscal acontece em um oficial de 2013, o Metrô, para o espaço público, missão que se momento em que o centro já passa que responde ao governo desdobrará em duas frentes. por uma revalorização social e ecoestadual, projetava nômica, com diversos lançamentos Uma para provocar ações com impara 2030 uma malha aumentada dos atuais 79 pacto nos conflitos de ocupação de imobiliários em curso, diferente do para 340 quilômetros de solo. Medidas como as faixas excluque aconteceu nos anos 1990, quanextensão, com a expansão do perdeu população e foi abandosivas de ônibus, as ciclovias e a notidas linhas 2-Verde, 5-Lilás e nado também pelo setor privado. ficação de imóveis que não cumprem n linhas atuais 4-Amarela, além da criação n linhas projetadas de nove linhas novas. Isso A questão agora é como manter e função social da propriedade, cita caso o planejamento seja trazer a população de baixa renda, Nozaki. A outra envolve ações poncumprido – o que esteve tuais. “É uma série de medidas que já que os novos lançamentos chegam longe de acontecer nos problematizam como o espaço públia custar R$ 12 mil pelo metro quadraúltimos 15 anos do e vão até 50 metros quadrados. “Esco pode se tornar o espaço público dos tou apostando nas Zeis no centro. Já diferentes. Como é que a gente rompe temos práticas, experiências, e o mercado absorveu esse ins- com essa lógica da cidade, essa lógica do fluxo, da passagem. A trumento. Acho que vamos ter mais habitação no centro, in- regulamentação dos parklets, os projetos do Centro Aberto no clusive para a classe média, e mais para habitação de interesse Largo do Paissandu, do São Francisco, o indicativo da desativação do Minhocão, projetos que a gente está tocando”, afirma. social”, avalia Nakano. Olhando pela janela de seu gabinete na Câmara Municipal Ocupação do espaço na hora do rush, o vereador Police Neto (PSD) reflete sobre Morar no Largo do Paissandu, no centro, e trabalhar em Ita- o que espera que seja diferente entre a paisagem atual e a que quera. Sair da estação Anhangabaú do metrô depois do expe- gostaria de ver: “É só você olhar a avenida (Nove de Julho) cheia diente, parar no Largo da Memória e tomar um gole de água de carros e a esplanada da principal praça da cidade (Vale do potável direto da fonte em frente ao obelisco, primeiro e mais Anhangabaú) vazia. Era para as pessoas saírem do trabalho e antigo monumento da capital paulista. Parece ficção. Mas al- quererem ficar ali. A cidade que estamos reconstruindo será gumas portas já se abriram para que isso se realize. Quem sabe feita para as pessoas. É doloroso para a maior parte da poaté 2030. Acesso a água potável em bica pública é um dos obje- pulação escutar isso. As pessoas querem uma nova configutivos de um projeto iniciado no ano passado pelo Departamen- ração urbana, mas não querem abandonar o conforto”, diz o to de Patrimônio Histórico (DPH) municipal, de recuperação parlamentar, que adotou a bicicleta como meio de transporte das fontes atualmente desativadas na região central, como parte há cinco anos.

Mais metrô?

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JOÃO CALDAS/OLHAR IMAGEM

Consenso

Cidade para as pessoas Olhando pela janela de seu gabinete na Câmara Municipal na hora do rush, o vereador Police Neto (PSD) reflete sobre o que espera que seja diferente entre a paisagem atual e a que gostaria de ver: “É só você olhar a avenida (Nove de Julho) cheia de carros e a esplanada da principal praça da cidade (Vale do Anhangabaú) vazia. Era para as pessoas saírem do trabalho e quererem ficar ali. A cidade que estamos reconstruindo será feita para as pessoas”

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O “nós” da frase é importante por sinalizar um consenso na inversão de prioridades. Correligionário do ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD), atual ministro das Cidades, Police chegou a ser acusado de ser o “vereador das empreiteiras” durante a tramitação do Plano Diretor. “Tem de mostrar para o empresário que esses novos conceitos de cidade geram tanta riqueza quanto o atual.” A aceitação do plano é assinalada pelo coordenador-executivo da Rede Nossa São Paulo, Maurício Broinizi Pereira, como essencial para que seu texto seja cumprido. “O PDE vai pegar quatro gestões, e é importante que seja respeitado, porque temos carência de planejamento. É importante que os partidos fiquem atentos e que ele seja executado, senão vamos continuar crescendo de maneira caótica”, afirma. “Todos os bairros precisam ter uma cesta básica de serviços públicos e privados. Para isso existem incentivos fiscais e investimentos diretos. Há muitos distritos que ainda não têm hospitais, bibliotecas”, observa. Há perspectivas também para a diversificação e melhoria dos modais de transporte público. Em uma apresentação oficial de 2013, o Metrô, que responde ao governo estadual, projetava para 2030 uma malha aumentada dos atuais 79 para 340 quilômetros de extensão, com a expansão das linhas 2-Verde, 5-Lilás e 4-Amarela, além da criação de nove linhas novas. Isso caso o planejamento seja cumprido – o que esteve longe de acontecer nos últimos 15 anos. No âmbito das responsabilidades municipais, o PDE prevê a expansão dos corredores de ônibus e da malha cicloviária. Apesar das críticas, feitas principalmente por motoristas e comerciantes que tentam preservar o espaço em frente a seus estabelecimentos para os carros estacionarem, Nakano acredita na priorização do transporte público como um processo irreversível. “Acho que nenhum outro prefeito vai se atrever a parar os investimentos nos corredores. A situação do trânsito já es-


Mais arte entender que aquilo leva também público para as suas lojas. Alguns reclamam com razão, porque há artistas que colocam o som em uma altura insuportável. Mas a 25 é uma rua saturada mesmo e há projetos para transformá-la em calçadão”. Em 2014, foi regulamentada a atividade de artistas no espaço público. Um site mantido pelos próprios interessados na atividade já conta com algumas centenas de cadastros. “Dentro da comunidade de artistas há uma tendência de as pessoas começarem a buscar as ruas. E também sair da burocracia, das restrições das casas de show, e estar em um ambiente mais acessível”, avalia o ator. “A arte serve para quebrar essa lógica de que a rua é só um espaço de passagem.”

RENATO S. CERQUEIRA/FUTURA PRESS

Imagine a Rua 25 de Março fechada para carros. E ainda mais cheia de gente. Parte delas, louca para tirar fotos com Freddy Krueger. O personagem é interpretado por um dos artistas de rua mais antigos na região. No começo, ele enfrentava olhares atravessados. Comerciantes o viam como um problema. Agora, nessa 2030 “sonhática”, há um artista em cada esquina. Freddy divide espaço com estátuas vivas, músicos, pintores e outros performers. Na São Paulo real de 2015, os que o criticam já não são maioria, acredita o ator Celso Reeks, integrante do projeto Artistas de Rua e “intérprete” do protagonista de A Hora do Pesadelo: “Os que reclamam são uma minoria que não consegue

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CIDADES

tá tão difícil e a questão da mobilidade, tão presente no debate público, que ninguém vai querer parar os investimentos. Então acho que vamos ter mesmo uma oferta mais ampla de transporte. Corredor metropolitano, linhas de ônibus. A população deve absorver as ciclovias”, prevê o urbanista. A sociedade acompanhou a elaboração do Plano Diretor e a pressão exercida foi essencial para a aprovação do texto. Ainda assim, não é no papel que estão depositadas as esperanças dos movimentos de moradia, os mais atuantes no processo. “Tivemos importância grande na elaboração do PDE por imaginar uma cidade diferente”, diz a coordenadora da União dos Movimentos de Moradia e integrante do Conselho Municipal de Moradia, Graça Xavier.

Mas ela mostra pouco otimismo. “As mudanças só vão acontecer com a participação da sociedade civil. E para isso é necessária uma reforma política de verdade, para que os vereadores não fiquem tão comprometidos com o setor imobiliário e possam de fato trabalhar para uma cidade inclusiva, com moradia, escola, creche”, avalia. “Sonhamos que não tenha gente morando na rua, principalmente no centro, onde há muitos prédios vazios que não cumprem função social, assim como não ter gente morando na beira de rios, córregos, alto de morros. Mas se as forças econômicas continuarem predominando sobre as leis e as pessoas, nada vai mudar”, alerta.

Sonhos periféricos Muita gente que está engajada em ativismo social não se entusiasma ao falar das mudanças projetadas pelo Plano Diretor

Zona sul

Zona oeste

O PDE oficializou zonas rurais na cidade de São Paulo, que poderão ter acesso a incentivos fiscais para produção agrícola e atividades de ecoturismo. Entre moradores, a expectativa é que se consolidem novos negócios e que o número de visitantes que troquem a São Paulo do caos por uma cidade mais tranquila em viagens de fim de semana aumente. “Quem sabe a gente não vira uma nova Campos do Jordão?”, sonha Fernando José de Souza, o Fernando Bike, membro do Conselho Participativo de Parelheiros, no extremo sul. “Temos a temperatura mais baixa da cidade. Por que não vir para cá, em vez de ir para outra cidade?”, provoca. A região abriga a Área de Proteção Ambiental Capivari Momos e conta com pontos já explorados, que precisam de investimentos e divulgação. O mirante Krukutu dá vista para Mongaguá, Itanhaém e Praia Grande, no litoral sul do estado, e está próximo de cachoeiras e trilhas. “Pelo Plano Diretor, isso está dado. Mas há instabilidade grande na questão da moradia. Com a regularização fundiária pode haver mais investimentos de fato. Tendo certeza de que as moradias estão certinhas, as pessoas vão se sentir mais à vontade em investir e receber pessoas”, acredita. Fernando aprova os investimentos em ciclovias na região. “Estive em uma reunião com o Haddad e foi falado que teríamos 21 quilômetros entre a Avenida Teotônio Vilela e a Estrada do Marsilac. Se sair do papel, incentivará ainda mais o ecoturismo.” Há também expectativa para que a região da Subprefeitura, que abrange 353 quilômetros quadrados (mais de dez vezes o tamanho da de Pinheiros) e cerca de 139 mil habitantes, passe a ser atendida por pelo menos um hospital público. Hoje é preciso ir até o Grajaú, também na zona sul – a uma hora e meia de transporte público. “O hospital está mais na propaganda do que na vida real. Seria muito importante para nós.” 32

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A produtora cultural Laura Sobral, do movimento A Batata Precisa de Você, vê dois cenários para a zona oeste em 2030. Ou a região, que concentra pouco mais de 1 milhão de pessoas, estará totalmente tomada pelos mais ricos, ou, o que é mais difícil, áreas populares continuarão sendo populares, porém mais dotadas de infraestrutura, beneficiando seus moradores tradicionais. É pela segunda opção que ela trabalha. “A gente não vai conseguir fazer uma cidade justa no capitalismo”, receia. “O Plano Diretor tem coisas ótimas. O aumento da fruição nos térreos dos prédios, do uso misto... Mas temos de ver como os bairros tomados por prédios vão ficar. Em certa escala é bom, porque aumenta o adensamento. Mas é importante preservar a população de baixo poder aquisitivo nesses lugares quando as melhorias chegarem”, observa. Ela lembra que bairros como Pompeia e Butantã também vivem sob pressão do setor imobiliário. “É uma relação muito predatória com a zona oeste.” Laura crê que em 2030 o largo estará vivo e popular. O movimento surgiu em 2014, depois de concluídas as obras de “revitalização” do Largo da Batata, no bairro de Pinheiros. O local cheio de vendedores ambulantes, botecos, casas de forró e lojas de R$ 1,99 parecia não combinar com a paisagem de seu entorno, depois que foi “beneficiado” pela Operação Urbana Faria Lima. Foram erguidos prédios espelhados que não podiam refletir a simplicidade da vida no chão. Desde então, as pessoas se encontram semanalmente no largo para realizar atividades, desenvolver e cuidar elas mesmas do mobiliário – antes, o local estava deserto, sem bancos nem árvores, o que afastava ainda mais as pessoas. “Aqui sempre foi uma praça com dimensões metropolitanas. Foi uma das primeiras ocupações da cidade, onde havia uma aldeia indígena. Sempre ligou a cidade com outras e outros bairros. É porta de entrada para a zona oeste, onde esse processo de gentrificação tem avançado”, afirma.


CIDADES

Zona norte

SONIA BISCHAIN

SEM DIÁLOGO NÃO DÁ Representantes do bairro acreditam que em 2030 a Brasilândia estará em pleno conflito com as forças econômicas. O bar do Sarau da Brasa, por exemplo, vem recebendo cartinhas dizendo que terá de sair

Antes era o samba de escolas como a Rosas de Ouro. Hoje, saraus como o da Brasa mantêm viva a identidade da zona norte. Daqui a 15 anos, ainda não se sabe. A região de 2,2 milhões de habitantes é a mais arborizada da cidade. Seis das sete subprefeituras locais têm área verde por habitante acima da média do município, que é de 12,5 metros quadrados. Na Jaçanã/Tremembé, a média chega a 90, ficando atrás apenas de Parelheiros. Boa parte dessa cobertura se deve à proximidade da Serra da Cantareira, região que vem sendo castigada pelos impactos ambientais da construção do trecho norte do Rodoanel, prevista para acabar em 2017, e também pelas crescentes ocupações irregulares, em consequência da pressão dos preços de alugueis em bairros mais estruturados. Na Brasilândia, por exemplo, em 2030 já deve estar em operação a linha 6-Laranja do Metrô. A linha, que ligará o bairro à estação São Joaquim da linha 1-Azul, no centro expandido, será executada por um consórcio de empresas privadas, assim como a linha 4-Amarela. O Move São Paulo 6 terá participação da UTC Engenharia, Queiroz Galvão, Odebrecht e Eco Realty Fundo de Investimentos, que terão a concessão da operação até março de 2039. A obra preocupa moradores que devem ser removidos para dar lugar a estações. “O bar onde está o Sarau da Brasa, por exemplo, vive recebendo cartinhas dizendo que nós teremos que sair”, conta um dos fundadores, Michell da Silva, o Chellmí. “Eu acho que em 2030 a Brasilândia vai estar em mais conflito, econômica e socialmente. Pode até ser que tenha mais centros culturais chegando. Mas não podem vir como discos voadores. Tem de ter diálogo”, afirma. Aos 30 anos, Chellmí se diz membro da “geração puxadinho”, frutos de pais que, “de um jeito ou de outro”, conseguiram erguer suas casas. Com o encarecimento da região, os jovens têm dificuldade de se fixar no local. “Óbvio que o metrô adiantaria para a gente. Mas eu sempre sonhei em comprar uma casa onde eu nasci e não vou conseguir. Quem está excluído vai continuar excluído. Nos saraus, a gente fala que não é um poema que vai alimentar a barriga das pessoas, mas pode alimentar a alma e fazer essa pessoa ser mais crítica”, afirma. “Eu acredito na transformação. Não na mobilidade social. Mobilidade não depende de nós. Agora, transformação é o moleque não ir pra biqueira e ir pro sarau. Eu não consigo abraçar o mundo. Mas tocar, fazer um carinho – opa se consigo.”

Zona leste Depois de décadas de luta, no próximo ano deve ser inaugurado o primeiro campus de uma universidade federal na zona leste de São Paulo. Na região mais populosa da cidade vivem 4 milhões de pessoas, um terço da população. Mas os indicadores sociais são precários. Até 2030, deve receber grandes volumes de investimento público e privado, com incentivos fiscais para a instalação de empresas. Mas o padre Antonio Luiz Marchioni, o Ticão, um dos entusiastas da luta pela universidade, acha pouco. “O maior problema que temos é a desigualdade. No ano 2000, o 1% mais rico abocanhava 13% de toda a renda da cidade. Dez anos depois, a mordida cresceu. Ficaram com 20%. Na zona leste isso é claro.” Ele sonha em ver o Rio Tietê recuperado, com parques em suas margens. Mas não se anima com o projeto que vem sendo desenvolvido pelo governo do Estado. “Eles estão fazendo. Mas sem diálogo com as comunidades. Aí não adianta. Eles não fazem o que é preciso fazer porque aí seria necessário mexer com as grandes empresas, que jogam veneno no rio”, denuncia. Ticão espera um futuro de políticas mais humanizadas. Especialmente em educação. “Nossa universidade será focada em engenharias, mas do jeito que está o ensino só terá gente de fora. A escola, se quiser construir a cidade do futuro, tem de mudar de nome. Cada escola tem de ser um centro cultural, esportivo e educacional”, defende. Padre Ticão crítica a gestão Haddad e os acenos de seu Plano Diretor. “Eles ficam falando de mobilidade, de bicicleta. Na periferia as pessoas andam a pé e as calçadas são horríveis. Imagino que eles que dizem isso viajam muito para a Europa. A esquerda está perdendo. Vamos levar uma surra e não voltamos mais”, diz, lamentando o cenário que prevê para 2030.

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HISTÓRIA

O passado pode ajudar o futuro

Relatório da Comissão Nacional da Verdade causa reações extremadas, mas recomendações apontam para consolidação da democracia e novas informações sobre a história do país Por Vitor Nuzzi

L

onge de propor uma volta ao passado, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), apresentado em dezembro, pode ser visto como uma tentativa de aumentar a compreensão da sociedade para um período histórico e, quem sabe, mudar comportamentos, já que o cotidiano, embora sob um ambiente democrático, ainda produz discriminação, desaparecidos e torturados. “Quase tudo já era conhecido. O importante é ser uma comissão oficial do Estado, uma coisa sem precedentes na nossa história. A verdade e a memória viraram um direito”, diz o deputado Nilmário Miranda, ex-secretário de Direitos Humanos. 34

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“O objetivo maior é a não repetição, é consolidar a cultura democrática”, acrescenta Nilmário. “As gerações novas não conhecem a história. Qualquer pessoa sabe da Independência, da abolição, da Revolução de 30, mas não sabe nada sobre o golpe de 1964.” Desconforto existe, porque quem praticou violações de direitos humanos jamais esperava que as histórias fossem vir à tona, como ele observa. “A exposição da verdade já é em si um processo. Doloroso, mas necessário.” A primeira reação, previsível, foi de que a CNV, formalmente extinta desde 16 de dezembro, não investigou “os dois lados”. Militares de reserva, principalmente, insistiram nesse argumento. “O outro lado

pagou com mortes, desaparecimentos, demissões, sequestros, violência até contra bebês. O lado que enfrentou a ditadura já pagou por isso”, reage Nilmário, que ressalta a legitimidade da comissão. “O Congresso aprovou. Quando a presidenta sancionou, estavam lá todos os ex-presidentes, inclusive as Forças Armadas. Todas as correntes ideológicas votaram pela Comissão da Verdade.” Para a historiadora Maria Aparecida de Aquino, professora aposentada da Universidade de São Paulo e colaboradora do Programa de Pós-Graduação em História Social da USP, questões como desmilitarização da PM e mudanças na formação das Forças Armadas, que se incluem entre as


Castello Branco

Costa e Silva

Médici

Geisel

Figueiredo

Relatório atinge ex-presidentes

377 434

Responsáveis por violações de direitos humanos, incluindo os cinco presidentes militares de 1964 a 1985 Mortos e desaparecidos, vítimas da ditadura. São 191 mortos e 243 desaparecidos – 33 tiveram os corpos localizados posteriormente

persiste nos dias atuais. “Embora não ocorra mais em um contexto de repressão policial – como ocorreu na ditadura militar –, a prática de detenções ilegais e arbitrárias, tortura, execuções, desaparecimentos forçados e mesmo ocultação de cadáveres não é estranha à realidade brasileira contemporânea.”

CNV ouve depoimentos de agentes da repressão

recomendações da CNV, podem até não ser efetivadas ou demorar para acontecer. “Não compete à PM ou as Forças Armadas promover justiça com as próprias mãos. Tem de seguir o trâmite legal. É um avanço que vai ter um andamento mais lento.” Entre as 29 recomendações da CNV estão questões atuais, como a discriminação, inclusive na legislação, a homossexuais, a figura jurídica do auto de resistência à prisão (mortes e lesões justificadas como reação a ações de policiais), modificação do conteúdo curricular de academias militares e policiais e desvinculação dos institutos médico-legais das secretarias de segurança. O relatório constata que o cenário de graves violações de direitos humanos

TÂNIA RÊGO/ABR

Nova leitura

A democracia é um processo, observa a historiadora. “Não é algo que se institua pela lei. Você pode derrubar alguém do poder. Mas mudar a sociedade e a mentalidade leva muito tempo.” Do ponto de vista da educação, ela avalia que mudanças já começaram a acontecer. “Hoje já existe uma revisão dos livros didáticos.” Maria Aparecida também rebate a versão da existência de um “outro lado” a ser investigado. “Quando os militares chamaram as ações de luta armada de ‘terrorismo’, isso tinha outro significado. Temos 720 processos na Justiça Militar contra pessoas, grupos, agremiações. É uma inverdade completa, total e absoluta. Como você vai dizer que essas pessoas não foram julgadas?” O escritor Luis Fernando Verissimo, em artigo publicado em dezembro no jornal O Globo, é outro a contestar a tese; para ele, se trata de invocar uma simetria inexistente. “Nenhum dos mortos de um lado está em sepultura ignorada como tantos mortos do outro lado. Os meios de repressão

de um lado eram tão mais fortes do que os meios de resistência do outro que o resultado só poderia ser uma chacina como a que houve no Araguaia, uma estranha batalha que – ao contrário da batalha de Itararé – houve, mas não deixou vestígio ou registro, nem prisioneiros.” Verissimo demarca: a principal diferença entre um lado e outro é que os crimes de um lado, justificados ou não, foram de uma sublevação “contra” o regime, e os crimes do outro lado foram “do” regime. “Agentes públicos, pagos por mim e por você, torturaram e mataram dentro de prédios públicos pagos por nós. E enquanto a aberração que levou a tortura e outros excessos da repressão não for reconhecida, tudo o que aconteceu nos porões da ditadura continua a ter a nossa cumplicidade tácita”. Para o escritor, o relatório da CNV, assim como o da CIA nos Estados Unidos sobre torturas, “é um informe à nação sobre o que foi feito em seu nome”.

Trabalho sem fim

Coordenador da Comissão da Verdade de Pernambuco, o ex-deputado Fernando Coelho observa que a lei que criou a CNV “objetivamente definia como objetos de estudo as violências praticadas por agentes do Estado”. A comissão pernambucana tem um banco de dados com 100 mil documentos digitalizados e “comprovatórios de violência”. É um trabalho que não termina, afirma, destacando a importância REVISTA DO BRASIL

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FOTOS PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

HISTÓRIA


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Durante audiência pública realizada em agosto de 2013 no Rio de Janeiro, um momento mais tenso: o advogado José Carlos Tórtima (em pé), torturado durante a ditadura, encara o major bombeiro Valter da Costa Jacarandá, apontado como torturador: “Nunca é tarde, major, para o senhor se conciliar com essa sociedade ultrajada por essas barbaridades que pessoas como o senhor cometeram”

THIAGO VILELA /ASCOM-CNV

OLHO NO OLHO

ANTONIO CRUZ/ABR

de levantamento de fatos históricos ocultados durante décadas: “Cada dia a gente descobre uma coisa nova”. Uma dos itens que deve constar do relatório da comissão pernambucana é a persistência do Estado brasileiro, via Itamaraty, em impedir que dom Hélder Câmara recebesse o prêmio Nobel da Paz, nos anos 1970, ou mesmo que chegasse a cardeal. Outra polêmica reavivada após a divulgação do relatório foi a da Lei da Anistia. Os chamados jornalões publicaram editoriais criticando a Comissão da Verdade, sustentando que a lei aprovada em 1979 “pacificou” o país. Assim, não haveria espaço para punição a agentes do Estado responsáveis por torturas, sequestros e ocultação de cadáveres recomendada pela própria comissão. Mas o Direito internacional entende que tais crimes são imprescritíveis – e a anistia não tem alcance em tais casos. Deputado em 1979 pelo MDB, Fernando Coelho afirma que a Lei da Anistia não resultou de nenhum entendimento, mas de imposição. “Você não encontra um discurso, um projeto, vamos dizer, que perdoe torturadores. O que houve foi uma confrontação o tempo todo. Impuseram a versão deles (governo). Esse acordo foi uma mentira.” Depois da aprovação, a oposição ainda tentou emplacar uma emenda de Djalma Marinho (Arena-RN) que ampliava os efeitos da anistia. Perdeu apertado: 206 a 201, com 15 votos de dissidentes do partido oficial. Na interpretação de Coelho, se fosse resultado de acordo, a lei aprovada “deveria ter maioria estrondosa”. A Lei 6.683 foi sancionada às 9h de 28 de agosto pelo então presidente João Figueiredo, diante dos ministros das Casas Civil e Militar, além do comando do Serviço Nacional de Informações, o extinto SNI. Existe a expectativa de que o Supremo Tribunal Federal reveja seu posicionamento de 2010 a respeito da Lei da Anistia. Naquele ano, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro no caso Araguaia. Agora, o relatório da CNV pode representar uma pressão adicional. A recomendação de rever a lei foi a única que não teve unanimidade, entre as 29 da comissão nacional (teve um

NADA CONSTA Em fevereiro, a CNV encaminhou pedido ao Ministério da Defesa para

que as Forças Armadas apurassem desvios de finalidade em sete instalações militares usadas como centros de tortura. Quatro meses depois, Aeronáutica, Exército e Marinha mandaram relatórios em que afirmavam não haver registro de anormalidade. Para Pedro Dallari, coordenador da agora extinta comissão, a resposta significou uma “briga com a verdade comprovada”


voto contra, de José Paulo Cavalcanti Filho). A conclusão foi de que agentes do Estado envolvidos em crimes contra a humanidade não podem se beneficiar da anistia. “A expectativa é também que o tripé (memória, verdade e justiça) se complete. Não queremos torturar as pessoas que estão vivas, só que elas sejam processadas criminalmente, com direito a ampla defesa”, diz o coordenador da comissão do Rio Grande do Sul, Carlos Guazzelli, que também discorda da questão dos “dois lados”. “O lado que se rebelou foi julgado. Meu pai defendeu vários presos políticos. A ditadura brasileira tinha uma lei para julgar os adversários (Lei de Segurança Nacional) e uma justiça. Todos foram processados e julgados. E além disso foram castigados ilegalmente”, afirma Guazzelli, criticando ainda os principais meios de comunicação. “Todas as famiglias de comunicação sabem, porque cresceram com o regime militar. O outro lado já foi punido. Isso tem de ser contado nas escolas.”

A comissão gaúcha incluiu em suas recomendações a alteração de currículos nas disciplinas de História e Ciências Sociais, nos níveis fundamental, médio e superior, “com a introdução de conteúdos relativos” ao golpe de 1964 e dos 21 anos de “governos ditatoriais que se seguiram a ele”.

Fonte de consulta

O professor Paulo Giovani Antonio Nunes, da Universidade Federal da Paraíba, presidente da Comissão da Verdade no estado – com forte presença das Ligas Camponesas –, acredita que os relatórios da comissão nacional e dos vários colegiados que se formaram no país podem ajudar na discussão sobre questões atuais, como a das policias militares. “No mínimo, chamou a atenção para o período”, observa. Ele considera que o Brasil já tem historiografia consolidada sobre o período e, portanto, não aposta em grandes modificações nos livros didáticos. “Mas acredito que pode ser uma fon-

ANIBAL PHILOT/AGÊNCIA O GLOBO

HISTÓRIA

CASO RIOCENTRO

Um dos casos mais polêmicos ocorridos no regime de exceção foi o do Riocentro, no Rio de Janeiro, durante um show em 30 de abril de 1981, em comemoração ao Dia do Trabalho. Uma bomba matou um sargento e feriu um capitão, frustrando um atentado capaz de resultar em tragédia; havia 20 mil pessoas no centro de convenção. A Justiça chegou a aceitar a denúncia do Ministério Público Federal contra seis pessoas envolvidas no caso, mas a ação foi arquivada.

Um dos momentos emblemáticos de 2014, quando se completaram 50 anos do golpe que derrubou João Goulart, foi o retorno de Jango a Brasília: os restos mortais do ex-presidente, que passariam por perícia, foram recebidos com honras de chefe de Estado. Em dezembro, saiu o resultado das análises: não era possível afirmar que Jango foi envenenado, mas esta também não era uma hipótese descartável. Oficialmente, ele morreu após sofrer um infarto, em 6 de dezembro de 1976. “Sabíamos de antemão que quando a família decidia esse doloroso passo, com 37 anos decorridos, eram remotas as possibilidades que nós tínhamos”, afirmou João Vicente Goulart, filho do ex-presidente. “Tínhamos a obrigação de tentar. Vamos continuar lutando. Sempre soubemos que tínhamos três meios de chegar à verdade.”

JK

Além da exumação e da perícia, a família tem ainda documentos e a investigação do Ministério Público Federal. “Existe um processo aberto”, lembra João Vicente, que ainda tem a expectativa de que agentes norte-americanos, supostamente envolvidos no caso, sejam ouvidos. A perícia foi coordenada

Jango

pela Polícia Federal, a pedido da Secretaria de Direitos Humanos e da Comissão Nacional da Verdade. “Os dados clínicos, as circunstâncias relatadas pela esposa, relativamente ao dia e ao momento da morte, são compatíveis com morte natural”, disse na apresentação dos resultados

FOTOS PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA

Jango e JK, polêmicas abertas o perito criminal Jeferson Evangelista Corrêa, da PF. Segundo ele, o infarto agudo do miocárdio pode ter sido a causa da morte do expresidente, mas “também não é possível negar que a morte tenha decorrido de um envenenamento”. Outro episódio rumoroso foi a morte de Juscelino Kubitschek, também em 1976, pouco meses antes de Jango. A CNV acolheu a versão oficial, que fala em acidente automobilístico. Para o colegiado, não há evidências de que JK e Geraldo Ribeiro, seu motorista, foram vítimas de homicídios. A conclusão é contestada pelas comissões da Assembleia Legislativa e da Câmara Municipal de São Paulo. “A ditadura matou Juscelino. Essa história precisa ser contada”, diz o deputado estadual Adriano Diogo (PT), presidente da comissão da Assembleia, que leva o nome do ex-deputado Rubens Paiva.

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Paulo Malhães

MARCELO OLIVEIRA/ASCOM–CNV

HISTÓRIA

MORTE DO DELATOR O coronel reformado Paulo Malhães, em depoimento à CNV em março, afirmou ter participado de torturas durante a ditadura e relatou envolvimento na prisão e desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, morto sob tortura em 1971. Um mês depois, foi encontrado morto no sítio em que morava em Nova Iguaçu (RJ)

CASO PAIVA

O ex-deputado Rubens Paiva foi preso em janeiro de 1971, torturado e morto – provavelmente nas dependências do I Exército, no Rio, segundo a CNV. Até hoje, o seu corpo não apareceu. Em maio do ano passado, o Ministério Público Federal apresentou ação contra cinco militares, por homicídio e ocultação de cadáver. Recorreram, apelando para a Lei da Anistia. Em dezembro, o procurador-geral da República rejeitou a reclamação e pediu julgamento urgente do caso

Celas e corredores do Dops do Rio de Janeiro

JOSÉ CRUZ/ABR

te importante a ser utilizada pelos autores de livros didáticos, principalmente alguma coisa nova que a historiografia não tenha esclarecido. Como o relatório também tenta sintetizar todo um período, isso também poderá facilitar a consulta.” O documento da CNV estará disponível para consulta no Arquivo Nacional e na página da comissão na internet. Em seus últimos atos, o colegiado destacou a importância de compartilhar o conteúdo e, com isso, garantir o chamado resgate da memória. Afinal, mais de 80% dos brasileiros nasceram após o golpe. E 40% da população, ou 80 milhões de pessoas, nasceram depois da ditadura. Uma geração inteira não sabe como foi aquele período. “O relatório produzido pela Comissão Nacional da Verdade, assim como as recomendações ao Estado brasileiro, devem deflagrar um novo período de lutas aos movimentos sociais que atuam contra a impunidade, com centralidade na luta pela justiça”, diz Lira Alli, militante do 38

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Levante Popular da Juventude, movimento responsável, entre outros, pelos “escrachos” organizados para denunciar agentes do Estado responsáveis por torturas. Um traço civilizatório pôde ser notado antes mesmo da divulgação do relatório, ainda em outubro, quando a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e o Superior Tribunal Militar (STM) assinaram um termo de cooperação para abrir os arquivos dos julgamentos realizados naquele órgão. O chamado Projeto Vozes da Defesa deve dar acesso aos áudios da defesa primeiro aos advogados, sendo posteriormente liberados. “É evidente que o Estado brasileiro continua em dívida com as vítimas”, afirmou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo o historiador José Luiz del Roio. “Ouvir as vítimas é fundamental para uma comissão que nasceu para dar voz a elas. Então, é claro que as famílias têm razão de estarem insatisfeitas.” Del Roio considera o relatório “um marco”

na história do país, por se tratar de um documento de Estado. Além dos crimes do Estado nunca terem sido julgados, ele identifica um “crime original” ocorrido naquele período histórico: “Rasgar uma Constituição, a Carta de 1946, sem nenhuma consulta à sociedade”. “Os torturadores, assassinos e os financiadores da repressão seguem sem condenações criminais. O Brasil continua a ser um Estado fora da lei no tocante aos direitos humanos”, diz a comissão da Assembleia Legislativa de São Paulo, comandada pelo deputado Adriano Diogo (PT), em seu relatório parcial, também divulgado em dezembro. A frustração pela falta de informações novas sobre o paradeiro de desaparecidos e pela ausência de julgamentos continua. Mas o trabalho das dezenas de comissões, não apenas da nacional, ajudou a jogar luz sobre um período ainda obscuro da história brasileira. E pode abrir caminhos à frente.


HISTÓRIA

FABIO RODRIGUES POZZEBOM/ABR

VAI A JULGAMENTO?

Protesto em frente à casa do coronel Ustra

O coronel reformado Carlos Alberto Brilhante Ustra pode ir a julgamento. No início de dezembro, o Tribunal Regional Federal de São Paulo reverteu decisão de primeira instância, que havia extinguido o processo, e encaminhou o caso à Justiça Federal. Além de Ustra, ex-chefe do Doi-Codi, a ação envolve o ex-delegado Alcides Singillo. Eles são apontados como responsáveis pela morte do estudante de Medicina Hirohaki Torigoe, em 1972. Seu corpo nunca apareceu, e ocultação de cadáver é crime permanente e contra a humanidade – ou seja, imprescritível

JPAULO PINTO/FOTOS PUBLICAS

CINQUENTA ANOS DEPOIS

Sede do antigo Doi-Codi hoje abriga uma delegacia

O local abriga hoje uma delegacia. Mas durante a ditadura foi um dos mais “eficientes” centros de tortura. Ativistas calculam que passaram por lá até 8 mil presos políticos – e 50 foram mortos, incluindo o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manuel Fiel Filho. A antiga sede do Doi-Codi de São Paulo, na rua Tutoia, foi palco de um ato em 31 de março, nos 50 anos do golpe. Ali se desenvolveu a “tecnologia da repressão”, disse Rosa Cardoso, ex-integrante da CNV. No final de 2014, o jornalista Marcelo Godoy lançou livro (A Casa da Vovó) em que detalha o funcionamento do Doi-Codi, a partir de depoimentos de ex-agentes

O prédio do Dops paulista foi transformado em museu

JUCA MARTINS/OLHAR IMAGEM

VISITAS AO DOPS

A comissão da Assembleia Legislativa de São Paulo descobriu documentos no Arquivo Público do Estado que registravam a entrada e saída de pessoas no Dops de São Paulo, entre 1971 e 1973. Em alguns casos, o visitante entrava à noite e só saía na manhã seguinte. Alguns assinavam como representantes da Fiesp e do consulado dos Estados Unidos. O prédio no centro de São Paulo, hoje sede do Memorial da Resistência, era um dos principais centros de tortura REVISTA DO BRASIL

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MÍDIA

Direito à informação é coisa séria

No mundo desenvolvido, regulação das comunicações serve para ampliar a diversidade de conteúdos e democratizar a liberdade de expressão. No Brasil, quem lucra com desinformação e monopólio combate essa ideia Por Lalo Leal

A

regulação dos meios de comunicação é algo comum nas grandes democracias do mundo. Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, Portugal, Espanha, entre outros países, há várias décadas estabeleceram regras para o setor. A maioria busca atualizá-las constantemente para alinhar a legislação às inovações tecnológicas e às transformações sociais. Os britânicos, por exemplo, a cada cinco anos, em média, discutem e aprovam no Parlamento novas regras para a mídia eletrônica. E recentemente aprimoraram a regulação para os meios impressos. Na América Latina, nos últimos anos, a maioria dos países aprovou leis modernas para o rádio e a televisão com o objetivo de democratizar o seu uso. O caso mais expressivo, por seu respaldo político e pela consistência da lei, é o da Argentina, que em 2009 teve aprovada pelo Congresso a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual. Uma das principais características comuns a todos esses países é a existência de autoridades reguladoras públicas com competência para aplicar as leis existen40

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tes para a produção e a difusão audiovisual. São responsáveis por outorgar as concessões de rádio e TV, acompanhar e avaliar a qualidade dos serviços prestados pelos concessionários e promover, ou não, a renovação das concessões. São também os fóruns legais para manifestações do público e de diálogo com as empresas de radiodifusão. Nas concessões, os governos diretamente ou os órgãos reguladores redigem os chamados “cadernos de encargos”, nos quais constam direitos e deveres atribuídos aos concessionários durante o período em que vigorar a concessão. Tipos de programas, públicos que pretendem atingir e formas de financiamento são alguns dos itens a serem especificados no caderno. Caso sejam descumpridos, o órgão regulador tem poderes de impor sanções que vão de advertência a cassação da concessão. Nos Estados Unidos, a Comissão Federal de Comunicações (FCC, de Federal Communications Commission) é o órgão criado pela Lei de Comunicação de 1934 com a prerrogativa central de realizar a regulação econômica da mídia, evitando a concentração da propriedade dos

meios. Não permite, por exemplo, que apenas uma empresa seja dona de jornal e de emissoras de rádio e TV numa mesma cidade. Embora a primeira emenda da Constituição estadunidense garanta a absoluta liberdade de expressão, a FCC recebe queixas constantes sobre o conteúdo das programações. No entanto, sua ação limita-se basicamente a proteger as crianças do que ela chama de “material indecente”, proibido de ser veiculado entre as 6h e as 22h.


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MÍDIA

Ainda assim, a FCC pode punir emissoras que transmitam informações falsas, realizem sorteios ou concursos em que as regras não estejam claras e não sejam rigorosamente cumpridas ou aumentem o som nos intervalos comerciais. A comissão é responsável também por fazer cumprir a lei que determina a obrigatoriedade das emissoras de transmitir, no mínimo, três horas semanais de “programação infantil essencial”, identificando os programas com o símbolo E/I e informando an-

tecipadamente os pais sobre os horários de exibição. Eles devem ser exibidos entre as 7h e as 10h, com pelo menos 30 minutos de duração.

Proteger o público

Na Europa, os órgãos reguladores preocupam-se mais com questões de conteúdo e exigem das emissoras cuidados que vão da veracidade dos anúncios publicitários exibidos à linguagem utilizada por artistas e apresentadores. No

Reino Unido, a regulação do rádio, TV, internet e redes de telecomunicações é feita pelo Escritório de Comunicações (Ofcom, de Office of Communications), criado em 2003, quando unificou vários outros órgãos reguladores existentes anteriormente. Os meios impressos são regulados pela Ipso (Independent Press Standards Organization), uma organização independente aprovada pelo Parlamento e sancionada pela rainha Elizabeth II em 2013. REVISTA DO BRASIL

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MÍDIA

Ao Ofcom cabe a tarefa de garantir à população britânica a existência de serviços de comunicação eletrônica de alta velocidade, de programas de rádio e TV com qualidade e diversidade, além de proteger os espectadores e ouvintes de conteúdos impróprios e de impedir a invasão de privacidade. Conta para isso como uma série de canais abertos para que o público possa se manifestar em relação aos serviços prestados pelos meios de comunicação. As demandas são avaliadas e, quando é o caso, levadas aos responsáveis pelas transmissões. Abusos comprovados são punidos de acordo com a legislação. Os meios impressos foram durante quase 60 anos autorregulados por meio da PCC (sigla em inglês da Comissão de Reclamações sobre a Imprensa). O código de conduta adotado foi elaborado pelos próprios empresários que, além disso, ocupavam mais da metade das vagas do órgão. A complacência da Comissão diante de casos graves de violações éticas cometidas pela imprensa minou a sua credibilidade. Ela não resistiu ao escândalo provocado pelos jornalistas flagrados grampeando telefones de artistas e de pessoas envolvidas em casos policiais. Diante da ineficiência da PCC, o governo britânico criou uma comissão de inquérito para esclarecer o “papel da mídia e da polícia no escândalo das escutas telefônicas ilegais”. Ao final dos trabalhos, a principal recomendação do Relatório Levenson (referência ao presidente da comissão, lorde Justice Levenson) foi a criação de uma nova agência reguladora para a mídia com poder de aplicar multas de até 1 milhão de libras (cerca de R$ 4 milhões de reais) ou de até 1% do faturamento das empresas. A Ipso tem como uma de suas atribuições adotar medidas para proteção dos cidadãos, além de poder obrigar jornais, revistas e sites de internet com conteúdo jornalístico a publicar correções de matérias e pedidos de desculpas. A adesão das empresas ao órgão é voluntária, mas as que não aderirem poderão sofrer punições ainda mais severas. A criação da agência é resultado de um acordo firmado entre os três maiores partidos britâni42

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cos e tem o respaldo de uma Carta Real, assinada pela rainha Elizabeth. Qualquer alteração só poderá ser feita com o voto de, pelo menos, dois terços do Parlamento. Na Argentina, a regulação atinge apenas o rádio e a TV, com a aplicação da nova Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, aprovada pelo Congresso em 2009. Seu mérito principal é o de ampliar a liberdade de expressão no país, garantindo o acesso ao espectro eletromagnético de grupos sociais antes excluídos pela força do monopólio. A lei estabelece que 33% do espectro está destinado a organizações sem fins lucrativos e abre espaço para que povos originários possam controlar emissoras de rádio e TV, transmitindo programas em seus próprios idiomas, como já ocorre na região de Bariloche, com o canal Wall Intui (Olhar em Volta, no idioma dos Mapuche). A nova legislação acaba com os monopólios e oligopólios ao estabelecer limites

para o número de concessões outorgadas a cada empresa. Nenhuma delas (seja estatal, privada com fins lucrativos ou privada sem fins lucrativos) pode controlar mais de um terço das concessões, que terão no máximo dez anos de vigência. Até os direitos de transmissão do campeonato nacional de futebol foram assumidos pela emissora pública argentina, que posteriormente abriu o sinal para que outras redes de rádio e TV abertas pudessem exibir as partidas da primeira divisão. Por força da lei, o grupo Clarín teve de abrir mão de várias de suas licenças e, por isso, tornou-se o maior opositor da nova regulação, tendo sido derrotado em todas as instâncias do Judiciário para as quais apelou. Agora, um empresário não pode mais controlar canais de TV abertos e fechados ao mesmo tempo, e o sinal de uma empresa de TV por assinatura não poderá chegar a mais de 24 localidades nem superar o limite de 35% do total de assinantes.


A defesa da “pessoa e da família” só é feita por meio de ações propostas pelo Ministério Público, que invariavelmente são derrotadas na Justiça pela falta da lei específica. Mas só a lei não basta. É necessária a existência de um órgão regulador

A Lei de Meios argentina permitiu uma expansão do setor audiovisual até então inédita no país. Foram concedidas 814 licenças para operação de emissoras de rádio, TV aberta e TV paga. Dessas, 53 de TV e 53 de rádio FM destinaram-se às universidades e 152 a emissoras de rádio instaladas em escolas primárias e secundárias.

As aspirações brasileiras

No Brasil, calcula-se que 19 projetos de lei visando à democratização da mídia já foram elaborados pelo Executivo desde que entrou em vigor a Constituição de 1988. Nenhum deles foi levado ao debate com a sociedade e muito menos enviado ao Congresso Nacional. Seguem vigorando as leis antigas que, por serem obsoletas, atendem aos interesses dos poucos que se beneficiam dessa situação. No caso do rádio e da televisão, apenas a aprovação de leis que regulamentassem os artigos da Constituição promulgada

TATYANA TOMSICKOVA/GETTY IMAGES

MÍDIA

há menos de três décadas referentes ao Capítulo da Comunicação Social já seria um grande avanço. Por exemplo, o Artigo 220, em seu parágrafo 3º, determina que compete à lei federal “regular as diversões e espetáculos públicos, cabendo ao Poder Público informar sobre a natureza deles, as faixas etárias a que se recomendam, locais e horários em que a apresentação se mostre inadequada”. Essa é uma das poucas determinações da Constituição que já foi objeto de regulação, originando o que se convencionou chamar de “classificação indicativa” para exibição de programas de TV. Mesmo tendo sido amplamente debatida na sociedade, a classificação indicativa sofre forte oposição dos radiodifusores e é contestada por uma ação de inconstitucionalidade que tramita no Supremo Tribunal Federal. Segundo o mesmo parágrafo, ainda cabe a uma legislação reguladora “estabelecer os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defender de programas ou programações de rádio e televisão que contrariem o disposto no Artigo 221 (ver a seguir), bem como a propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente”. Não existem esses meios. A defesa da “pessoa e da família” só é feita por meio de ações propostas pelo Ministério Público, que invariavelmente são derrotadas na Justiça pela falta da lei específica. Mas só a lei não basta. É necessária a existência de um órgão regulador, como o Ofcom britânico, como poderes para aplicá-la. Além de ser um fórum com representantes dos radiodifusores, do governo e da sociedade capaz de resolver divergências mais simples, sem necessidade de recursos à Justiça. “Os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio”, também é uma regra estipulada no Artigo 3º do mesmo parágrafo. A concentração de canais de difusão de informação nas mãos de poucas empresas é o principal obstáculo à liberdade de expressão no Brasil. Um pequeno grupo controla todo o setor e veicula programas, programações e ideias semelhantes, impedindo a circulação de opiniões plurais, impres-

cindíveis para uma sociedade democrática. A revisão da distribuição do espectro eletromagnético e o estabelecimento de limites à propriedade de meios de comunicação por um mesmo grupo econômico são as providências necessárias para romper com os monopólios e oligopólios existentes no país. Agora, diz o Artigo 221 que a produção e a programação das emissoras de rádio e televisão devem atender aos seguintes princípios: “I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas” – Há vários exemplos de programas que estão no ar no rádio e na TV que não se enquadram nesse dispositivo constitucional. Não podem ser considerados informativos, por exemplo, programas que fazem do crime um espetáculo mórbido. “II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive a sua divulgação” – A promoção da cultura nacional e o estímulo à produção independente ganharam estímulo na TV paga com a lei que entrou em vigor em 2011 determinando a abertura de espaços nas grades de programação das emissoras para cotas de programas produzidos no Brasil. Para a TV aberta não há nenhuma legislação específica sobre o tema. “III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei” – A regulamentação deste artigo foi apresentada ao Congresso em 1991 e até hoje não foi votada. A falta da lei impede a ampliação do mercado de trabalho de profissionais de rádio e TV em inúmeras regiões do país, reforçando a concentração dos meios de comunicação no eixo Rio-São Paulo. Impede ainda a circulação pelo Brasil da produção cultural, artística e informativa que se faz em todo o território nacional. “IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família” – São questões subjetivas que necessitam de fóruns amplos de discussão capazes de calibrar o que se veicula pela mídia com o nível sociocultural e de valores alcançado pela população num determinado momento histórico. A existência do órgão regulador plural e democrático será um passo nesse sentido. REVISTA DO BRASIL

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e simples, mas... Lei de Microempreendedor Individual (MEI) tira 4,6 milhões da informalidade e dá acesso a direitos. Mas confira se opção é vantajosa para sua atividade, saiba planejar a aposentadoria e cuidado com a “pejotização” Por Helder Lima 44

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om a lei que instituiu em 2009 a figura jurídica do Microempreendedor Individual (MEI), o Brasil terminou 2014 com cerca de 4,6 milhões de trabalhadores autônomos que ingressaram na formalidade nestes cinco anos. Essas pessoas passaram a ser reconhecidas como pessoa jurídica, a pagar impostos em dia, a ter direitos


ECONOMIA

JAILTON GARCIA/RBA

FACILITADOR Com o MEI, Kleber conseguiu montar um estúdio de gravação, que aluga para bandas e onde dá oficinas de música

previdenciários e, ao poder emitir nota fiscal – cada vez mais exigida por contratantes de serviços privados e do setor público –, abrem novas perspectivas de trabalho. A carga tributária é reduzida, e o prestador pode ainda ter acesso a bancarização e crédito. Segundo a mais recente pesquisa do Sebrae sobre o perfil dos microempreendedores individuais, cerca de 88 mil pessoas em média aderem ao sistema por mês no país. “O nível de formalização obtido é excelente, essas pessoas estavam à margem da economia e se tornaram reconhecidas, podem oferecer nota fiscal e têm acesso a direitos”, avalia o economista Marcio Pochmann, colunista da Rede Brasil Atual. “As políticas de Estado para as empresas tradicionalmente focaram em organizações médias e grandes. É, portanto, recente esse foco em pequenas empresas e empresas individuais.” Nos anos 1990, as políticas liberais ampliaram a precariedade das relações e das condições de trabalho. A terceirização, o subemprego e o desemprego foram as principais marcas desse período. Muitas pessoas eram contratadas à margem da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT); outras, com poucas oportunidades de trabalho decente, com direitos respeitados e proteção social, optaram por investir no trabalho “por conta”. O Brasil entrou no século 21 com taxas de desemprego próximas dos 20% da população economicamente ativa nas regiões metropolitanas pesquisadas pelo Dieese e pela Fundação Seade, e com 60% de sua população ocupada na informalidade –

portanto, sem nenhuma proteção social. “O segmento dos pequenos empreendedores, que constitui a maior parte do sistema produtivo, estava à margem da economia e do Estado”, lembra Pochmann. De acordo com o Sebrae, os níveis de satisfação com a condição de MEI chegam a 94%, e 84% dos empreendedores mantêm expectativa de crescer nos negócios e superar o teto de faturamento do MEI, que é de R$ 60 mil por ano. “Vale a pena”, afirma a técnica de prevenção contra incêndio Cíntia Fel, que atua em Viamão (RS), município da região metropolitana de Porto Alegre. “Não tenho reclamação. Só vejo vantagem”, avalia José Edvaldo de Oliveira Costa, dono de um salão de beleza masculino em Juazeirinho, interior da Paraíba. Pesquisa do IBGE mostra que o emprego formal atingiu o maior nível em dez anos, alcançando 58% da população ocupada, estimada em 95,4 milhões de pessoas, enquanto a quantidade de informais, ainda alta (40 milhões), caiu 10,1% (4,5 milhões a menos). Segundo o consultor Júlio César Durante, do Sebrae-SP, o número de adesões ao sistema torna-se ainda mais expressivo frente a esse recuo. “O que temos formalizado é bem expressivo, é uma política de longo prazo. Trata-se de um instrumento de desenvolvimento para o país”, afirma Durante, observando que passos fundamentais para o sucesso da formalização foram a inclusão do conceito de pequena empresa no Código Civil, em 2002, e o Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte – Lei 9.841, de 1999.

FORMALIZAÇÃO Cintia aderiu ao MEI para formalizar sua atividade de consultoria em segurança

ANDREA GRAIZ/RBA

Aprimoramento

Durante observa que esses aparatos jurídicos evoluíram para o MEI, e depois foi preciso pensar em garantir facilidade de adesão. “No início, em julho de 2009, foram seis meses de adaptação de municípios, estados e dos próprios empreendedores para que a Receita Federal pudesse implementar o sistema. Hoje, a formalização pode acontecer em 15 minutos”, afirma. O sistema atualmente integra municípios, estados e União. “No estado de São Paulo, nos primeiros seis meses do MEI, de julho a dezembro de 2009, foram REVISTA DO BRASIL

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SÓ VÊ VANTAGENS Depois da formalização, o cabelereiro Edvaldo tem investido continuamente em formação: “Em março, vou ao Rio e São Paulo fazer cursos de um mês para me aperfeiçoar”

JANDUHI DANTAS/RBA

apenas 10 mil formalizações em um universo de 3,5 milhões de trabalhadores informais”, lembra. “O sistema era complexo e o candidato a MEI não tinha muito acesso a recursos de informática.” A partir de então, o cadastro passou a ser mais amigável. “No primeiro ano, chegamos a 270 mil formalizações no estado de São Paulo e registramos avanços com novas atividades e também a preocupação com a segurança”, diz o consultor. Também surgiram formalizações fraudulentas e, por isso, passaram a ser exigidos documentos como título de eleitor e recibo do IRPF. Para tornar a adesão ao sistema atraente, o governo também tem divulgado que o candidato à formalização não necessita de assessoria contábil. Basta preencher o formulário no Portal do Empreendedor, que o sistema libera automaticamente o número do Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ) – alguma intimidade com a era digital, portanto, é desejável. “Legalmente, o MEI não precisa de assessoria contábil, mas algumas pessoas têm recorrido a esse apoio”, afirma o técnico em contabilidade Silva Leandro, de Viamão (RS). Segundo ele, o candidato dever ter segurança ao descrever as atividades a serem exercidas e também precisa saber digitar sem cometer erros. Se não escolher a atividade corretamente, corre o risco de prestar um serviço e depois emitir nota irregular. As atividades permitidas para o enquadramento como MEI podem ser consultadas no Portal do Empreendedor. No caso de vendedores ambulantes, é preciso também termo de permissão ou concessão da prefeitura local. “Eu preciso de contador uma vez por ano para fazer a prestação de contas à Receita”, afirma José Edvaldo, de Juazeirinho, inscrito no MEI há quatro anos, com apoio do Sebrae de Campina Grande, a 88 quilômetros de sua cidade. Ele recebe em média 20 clientes por dia em seu salão aberto em 2009, e diz que aprendeu a profissão há 15 anos. “Nordestino tem de sobreviver à seca. Foram a dificuldade e a precisão que me fizeram aprender, foi tudo na prática.” Depois da formalização, Edvaldo tem investido continuamente em formação. “Em março, vou ao Rio e São Paulo fazer cursos

de um mês para me aperfeiçoar. Fiz uma reforma no salão e ficou bem legal. Pretendo sempre melhorar.” Segundo ele, a cidade tem 11 cabeleireiros para 18 mil habitantes.

Questão de oportunidade

O empreendedor cultural Kleber Luís Gonçalves da Silva mantém um estúdio de gravação em Interlagos, zona sul de São Paulo, e diz ter conseguido obter o CNPJ sozinho. “Houve um período em que me enrolei. O primeiro ano foi mais difícil, eu nunca tinha feito nada parecido, como o IRPF, mas agora já virou ro-

tina, não preciso de assessoria”, afirma. Kleber considerou a opção porque tinha em vista um contrato de trabalho curto e não valia a pena se comprometer via CLT. “O MEI ajudou a viabilizar o investimento em um negócio próprio, um estúdio de música, que atende bandas interessadas em gravar. Mas a principal atividade são oficinas de música voltadas para jovens assistidos por ONGs sob determinação da Justiça”, conta. “Atualmente, tenho quatro oficinas no Capão Redondo (bairro no extremo sul paulistano). Levo o equipamento lá para ensinar produção


MENOS IMPOSTO Gelson promove oficinas de arte em instituições públicas e privadas: “O MEI tem vantagens sobre o recibo de pagamento autônomo (RPA). A tributação é bem menor”

ARQUIVO PESSOAL

ECONOMIA

e pré-produção. E no final vamos para o estúdio gravar. Tem funk, hip hop e, se não tem música, eles operam os equipamentos. Tudo se dá em função do estúdio. Eu sou contratado pelas ONGs, o trabalho passa por acompanhamento jurídico e fazemos a gestão das oficinas.” No Rio Grande do Sul, a crescente demanda por regularização de edificações, em conformidade com as normas de segurança – depois do incêndio da boate Kiss, que em janeiro de 2013 matou 242 na cidade de Santa Maria – criou oportunidades para Cintia Fel. Em Viamão, ela aderiu ao sistema do MEI para formalizar sua atividade de consultoria em segurança. “Presto serviço para liberar alvará pelo Plano de Prevenção contra Incêndio (PPCI)”, afirma. “Se o cliente tem, por exemplo, um supermercado, precisa de alvará do Corpo de Bombeiros, projeto e certidão da prefeitura. A gente encaminha”, diz. “Meu marido tem uma empresa no ramo de segurança contra incêndio, mas não é MEI. A minha solução foi melhor do que ingressar na empresa do ma-

rido”, comenta. “Tenho os mesmos benefícios, mas pago imposto menor. Minha atividade envolve extintores, comércio, compra e revenda, o meu contador previu tudo isso. Tem várias atividades, e o MEI me dá cobertura.” Em ramo completamente diferente, o educador social Gelson Salvador aderiu ao sistema há três anos. Ele desenvolve trabalhos de artes plásticas com foco em grafite e promove oficinas de arte em instituições públicas e privadas da zona sul de São Paulo. “O MEI tem vantagens sobre o recibo de pagamento autônomo (RPA). A tributação é bem menor”, avalia. “Sou formado em artes visuais e posso dar aula no sistema formal dentro de escolas. Meu trabalho com os adolescentes é voltado para o grafite.” O educador também cria projetos de estamparia e serigrafia: “Chegamos a criar uma marca e faço trabalhos comerciais com grafite. Eu pego briefing do cliente e desenvolvo a ideia comercial. Atuo também no Projeto Pixote, com oficinas voltadas para crianças e no Instituto Santa Lúcia, para adolescentes.”

Atenção para aposentadoria e ‘pejotização’ A figura jurídica do Microempreendedor Individual (MEI) é um tipo de enquadramento específico na lei do Simples, que atende pessoas com faturamento máximo de R$ 60 mil por ano. O sistema foi instituído pela Lei Complementar nº 128, de dezembro de 2008, prevendo isenção de impostos como IR, PIS, Cofins, IPI e CSLL. O contribuinte recolhe valor fixo mensal correspondente a 5% do salário mínimo, a título de contribuição para o INSS, que no caso do valor vigente desde 1º de janeiro (R$ 788) corresponde a R$ 39,40, além de R$ 1 para ICMS e R$ 5 para ISS, dependendo do ramo de atividade. Se o MEI for exclusivamente voltado ao comércio, a contribuição mensal é de R$ 40,40; se envolver serviços, o pagamento é de R$ 44,40; e para quem atua com comércio e serviço, a contribuição é de R$ 45,40. O interessado deve verificar

se sua atividade está prevista nas regras do MEI. Desde 1º de janeiro, o governo ampliou as atividades que podem aderir, incluindo cuidadores de animais, diaristas, guarda-costas, instaladores e reparadores de cofres, trancas e travas de segurança, piscineiros, seguranças independentes, profissionais de transporte intermunicipal de passageiros sob frete em região metropolitana, de transporte intermunicipal e interestadual por navegação fluvial e vigilante independente. O optante passa a ter acesso a direitos como auxílio-doença ou acidente que o impossibilitem de exercer temporariamente a atividade declarada em seu registro. Mas seu recolhimento mensal não conta como tempo de contribuição para efeito de aposentadoria (30 anos para mulheres com idade mínima de 48, e 35 anos para homens, com idade mínima de

53). Garante apenas aposentadoria por idade, do homem aos 65 anos e da mulher aos 60, com benefício no valor de um salário mínimo. Para que a opção conte como tempo de serviço, é preciso complementar a contribuição com 15% do salário mínimo, o que atualmente representa R$ 118,20 a mais. Outro risco do sistema está relacionado à “pejotização” – quando o profissional presta serviço para uma empresa como pessoa jurídica, mas na prática tem vínculo empregatício. O MEI que é submetido a essa situação pode procurar a Justiça do Trabalho e requerer direitos como férias, 13º salário, Fundo de Garantia e outros previstos em acordo coletivo. Segundo o juiz Renato Sabino, do Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região (que abrange a Grande São Paulo e a Baixada Santista), existem muitos processos em conse-

quência da “pejotização”, pedindo reconhecimento de vínculo empregatício. “Empresas que antes contratavam empregados com carteira assinada exigem que a pessoa crie uma ‘empresa’ para prestar o mesmo serviço que prestaria como contratada”, afirma. Para ele, a facilidade em se obter um CNPJ também pode facilitar esse tipo de fraude – comum sobretudo entre profissionais qualificados, como nas áreas de tecnologia, artes e comunicação. “O impacto que vejo é negativo no mundo do trabalho, porque as pessoas saíram de uma informalidade em algumas situações, mas em outras estão enquadradas indevidamente e a relação, ainda assim, é precarizada, com redução de direitos trabalhistas.” Consulte o Portal do Empreendedor: www.portaldoempreendedor.gov.br

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Uma aventura Livro descreve trajetória da rede Fora do Eixo, de coletivos culturais e de ativismo político-digital que mobiliza jovens em todo o país. E grupo comemora retorno de Juca Ferreira ao MinC, “ministério da utopia”

contem

Por Xandra Stefanel

P

oucos dias depois de Pablo Capilé e Bruno Torturra serem entrevistados no programa Roda Viva, da TV Cultura, em agosto de 2013, o jornalista, escritor e pesquisador Rodrigo Savazoni terminava de escrever o livro Os Novos Bárbaros – A Aventura Política do Fora do Eixo (Editora Aeroplano, 264 págs.), sobre a trajetória desse fenômeno político-cultural que nasceu 48

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no início dos anos 2000. Colaborador da Rede Brasil Atual e da Revista do Brasil, Savazoni percorreu o que ele chama de “aventura contemporânea” na tentativa de descrever e compreender o Fora do Eixo (FdE), uma rede de coletivos culturais e de ativismo político-digital que ganhou notoriedade no Brasil nos últimos anos. Resultado de dissertação de mestrado na Universidade Federal do ABC, Sava-

zoni conta a saga de jovens vindos das periferias e do interior do país que começaram a se organizar em rede e criaram novos espaços de participação popular, de produção e divulgação de cultura e de informação. A rede nasceu em cidades distantes dos polos hegemônicos da produção cultural, e ao longo do tempo passou a navegar por amplos mares: “É um processo que não tem muito precedente no mundo. É uma rede de casas coletivas com


COMPORTAMENTO

MÍDIA NINJA

Casas do Fora do Eixo: convivência, informação, cultura e intervenção na sociedade

Bruno Torturra: ativismo político-digital

Mídia Ninja em ação

caixa coletivo que atua na música, no audiovisual, na literatura, no ativismo, na rede, na rua, é movimento social, é circuito cultural, é comunidade, as pessoas moram juntas, tem moeda própria, tem universidade, tem banco... Não é um movimento comum, nem simples de se decifrar”, afirma Pablo Capilé, principal porta-voz do FdE, que gostou do livro. “É uma parte da nossa história contada a partir de uma visão de um cara que dialoga com a gente

FOTOS FORA DO EIXO/FLICKR/CC

MÍDIA NINJA

emporânea

faz muito tempo.” A política cultural engendrada pelos ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira durante o governo Lula é um dos pontos de partida do movimento e, portanto, do livro de Savazoni. Não é à toa que o prefácio da obra é de Juca, de volta ao ministério, agora para o segundo mandato de Dilma Rousseff. “Acredito que o trabalho de Rodrigo expressa uma qualidade que todo trabalho intelectual rigo-

roso necessita ter: ele não simplifica seu objeto para facilitar sua narrativa. A complexidade do Fora do Eixo se apresenta desde o início, e disso o autor nos alerta ao descrever um vídeo em que o próprio coletivo de coletivos afirma ser um vetor de confusão e não de explicação. Ao longo das linhas que se seguem, Rodrigo se dedica a esquadrinhar esse fenômeno, sem se propor a assumir teses prévias sobre ele. Abre assim caminho para que REVISTA DO BRASIL

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nós mesmos possamos nos arriscar a fazer nossas próprias análises”, resume Juca, no prefácio. Capilé se diz animado com a nomeação de Juca. “Tenho certeza de que na Cultura vai mudar muita coisa. Depois de quatro anos que foram muito ruins, tanto com a Ana de Hollanda quanto com a Marta Suplicy, a chegada do Juca é um link ‘de volta para o futuro’, será um ministério com capacidade para dialogar, da esquerda, da utopia, que vai dar conta de dialogar com campos diversos, com os indígenas, com o meio ambiente, com a comunicação, com a juventude, com o movimento de moradia, com todos os artistas e as diversas linguagens que os rodeiam”, avalia o ativista, para quem as indicações para o Desenvolvimento Agrário, Secretaria-

-Geral da Presidência, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos são parte de um time “bacana”, mas que “precisa dialogar, se conectar, precisa criar uma arquitetura de participação para que mais movimentos possam contribuir para o país continuar avançando”.

Complexidade

Assim como o Brasil vivenciou avanços desde o governo Lula, o movimento viveu e vive transformações. Com atuação de difícil compreensão, a rede foi alvo de duras críticas no que diz respeito ao financiamento de suas atividades e às regras de convívio interno. “Se a gente não tivesse mudado o mapa da música brasileira, se não tivesse organizado a Mídia Ninja, não tivesse casas coletivas numa rede no

Brasil inteiro, não tivesse apoiado a Dilma, apoiado o Haddad, se não tivesse uma moeda própria, não nascesse gente dentro do movimento que a gente desenvolve e não fosse uma comunidade, nenhuma dessas críticas estaria acontecendo. A gente é uma plataforma que se movimenta o tempo inteiro. Começou na música, virou movimento social, rede de comunicação, criamos um banco interno com moeda própria... É um processo contínuo de aprendizado”, observa Capilé. Em Os Novos Bárbaros, Savazoni aprofunda a compreensão sobre esse fenômeno e, tomando-o por base, discute também o surgimento das redes político-culturais, um modelo de organização que caracteriza a política no início deste século 21, no Brasil e no mundo, como descreve o autor

‘Quem mais critica o financiamento público é quem

Como o FdE vê a transição do primeiro para o segundo mandato da presidenta Dilma? O Fora do Eixo apoiou a reeleição da Dilma e apoiou com a mesma autonomia que a gente sempre teve. Do mesmo jeito que a gente tem autonomia para apoiar, tem autonomia para cobrar, pressionar, dialogar. O Estado não é uma entidade, é uma rede a serviço do comum, e não precisa de convite para dialogar com o Estado, você tem de se convidar. Quando você decide tomar algumas decisões numa rede como a nossa, distribuída, com um monte de gente e que, em determinado momento, entendeu que a continuidade do governo Dilma é o que havia de melhor em disputa, com toda autonomia do mundo vai continuar criticando o que tem de criticar e elogiando o que acha que tem de elogiar. Dar força para o que está avançando continuar e forçar para não haver retrocesso. E as manifestações da direita nos últimos tempos? É um rebote a um levante de esquerda muito forte que aconteceu no Brasil nos últimos anos. É um processo, 40 milhões de pessoas saindo da zona de extrema pobreza começam a levantar muitas questões. E essas outras questões foram levantadas também, aí tem tanto um levante de direita quanto um de esquerda. Então, você continua em disputas contínuas, fortalecendo o campo em que acredita. Quanto mais esse campo se fortalece, mais consegue disputar princípios e valores dentro dos debates sobre o Estado, a sociedade civil e o povo brasileiro, e mais isso tem força, fôlego e vigor para enfrentar o levante do outro lado. 50

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Capilé: “É um grande projeto coletivo em que muitas pessoas dão opinião”

E a nomeação dos novos ministros? É a mesma coisa. Tem ministros muito ruins, como Kátia Abreu (Agricultura), Gilberto Kassab (Cidades), Helder Barbalho (Pesca), o ministro do Esporte (George Hilton), mas ao mesmo tempo tem ótimos ministros, como o Patrus Ananias (Desenvolvimento Agrário), o Juca, principalmente – para nós, que somos do campo cultural, foi um golaço a indicação do Juca –, o Miguel Rossetto (Secretaria-Geral), que é um grande cara também, o Ricardo Berzoini nas Comunicações, que muito provavelmente vai avançar também... São ministérios em disputa em um país em disputa, com um Congresso em disputa. A democratização da comunicação se torna mais possível? Eu espero que fique, porque a presidenta falou no discurso de posse que iria trabalhar para isso, falou durante a campanha, o Berzoini falou, os movimentos estão falando isso, parte dos

MÍDIA NINJA

Em entrevista à RdB, um dos líderes do movimento, Pablo Capilé, fala sobre o livro Os Novos Bárbaros – A Aventura Política do Fora do Eixo e sobre a disputa de poder entre os setores conservadores e progressistas no país. Ele rebate as críticas sobre o financiamento público e as regras de conduta interna do grupo.


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na introdução. E não se trata de um livro chapa-branca. Assumidamente apaixonado pelo tema, Savazoni explora também as contradições do movimento e deixa perguntas no ar. No posfácio Deus e o Diabo na Era da Cultura Digital, o autor aborda

MÍDIA NINJA

Savazoni: novos espaços de participação popular, de produção e divulgação de cultura e de informação

as críticas dos opositores do movimento sobre a relação da rede com governos, partidos, editais públicos e sobre a complexa contabilidade do grupo. Como manda a cartilha do bom jornalismo, Savazoni ouve os dois lados.

No entanto, mais do que a trajetória e o modus operandi do FdE, a obra apresenta uma revolução que está se desenvolvendo na internet e que tem efeitos em todas as esferas de poder. A pesquisadora Heloisa Buarque de Hollanda, curadora do livro, afirma que a obra é a primeira pesquisa séria sobre o poder e as contradições do revolucionário horizonte político e cultural que vem sendo gestado na web. “Do circuito da música aos protestos com novas dicções revolucionárias, o autor examina com cuidado e objetividade o passo a passo da formação do FdE, sua expansão e os debates que suscita na academia, no meio artístico e nas tribos jovens. Uma leitura indispensável para pensar o alcance das políticas e estéticas neste início de milênio”, conclui.

mais recebe’ partidos que ajudaram no processo de reeleição da presidenta também está, o partido da presidenta, que é o PT, também está falando isso... Então, a expectativa de muita gente é que esse debate avance. As críticas que o FdE recebeu no que diz respeito ao financiamento e às regras de convivência promoveram alguma mudança no movimento? Se você for pesquisar sobre as críticas, vai ver que tem um debate moralista pra caramba em torno de uma experiência de comunidade urbana que não existia no Brasil, em franco diálogo com todo mundo no centro da cidade, com um monte de intelectual, artista, produtor circulando e que estabelecia uma certa diferença do que parte dos críticos acreditava que deveria ser a sociedade brasileira, os princípios e valores que deveriam ser debatidos. Mas falar de “trabalho escravo e seita”? Quem tem o mínimo de inteligência olha para o conjunto da coisa e entende que é muito mais preconceito e julgamento moral equivocado do que algo que se possa traduzir como algo próximo da realidade. A própria vivência do grupo como rede muda conforme as necessidades? Claro, é óbvio! O tempo inteiro todo mundo dá opinião sobre o que você faz. Você acha que isso não influencia no processo de construção? É um grande projeto coletivo em que muitas pessoas dão opinião, e essas opiniões estão circulando entre todas as pessoas que fazem parte. Mas é orgânico, é o tempo inteiro essa reflexão. Não tem uma reunião anual em que a gente fala “vamos mudar nosso regimento”. As pessoas não trabalham sob algumas regras, voltam para suas casas e ganham um salário. É uma comunidade e ela está o tempo inteiro se debatendo e se construindo. As pessoas moram juntas, elas não se encontram e depois vão embora. Então, não é um processo de crítica, é a reflexão crítica que nós mesmos fazemos junto com a sociedade sobre o que estamos fazendo.

Essa história de verba pública também é a maior hipocrisia. O FdE É um movimento que faz muita coisa e na trajetória recebeu pouquíssimo recurso público. Se você pegar o custo-benefício das ações que a gente desenvolveu com os recursos públicos que recebeu, você entende claramente o que eu estou querendo dizer. É um movimento que precisa de muito pouco recurso público. Em 2014, por exemplo, a gente quase não teve recurso público para nada. Em 2015 vai ter menos ainda e em 2016, menos ainda. As pessoas, às vezes, se assustam com a capacidade que uma rede como essa tem de fazer muita coisa ao mesmo tempo e acha que isso deve estar sendo financiado por alguém. Não entendem que, você tendo pessoas que vivem naquela comunidade, que elas tendem a se dispor mais para que as coisas aconteçam do que quem vai embora para casa depois do expediente. Vocês fazem campanha de financiamento colaborativo? Sim. Tem fundos internacionais que são parceiros, tem campanha colaborativa, a gente organiza festivais... 95% do nosso recurso não é público. E eu não estou fazendo uma defesa contra o investimento de verba pública. Não! Tem de financiar. O financiamento público na cultura é pequeno. Mas a gente construiu uma plataforma que precisa de pouco dinheiro público para conseguir fazer o debate político. Muitas vezes, as pessoas criminalizam quem faz o debate político para receber o dinheiro público, e isso é uma hipocrisia gigantesca. O Estado brasileiro tinha de ter mais compromisso com o investimento na ponta, de coletivos, de movimentos, redes, ONGs, inciativas ligadas à disputa de um novo mundo possível. A mídia brasileira recebe recurso público para caramba. Recebe milhões e milhões e é a primeira a tentar levantar a desconfiança sobre como os movimentos e coletivos brasileiros são financiados. É uma ladainha, conversa fiada, hipócrita, porque os que mais criticam são aqueles que mais recebem. Leia a íntegra da entrevista no portal RBA REVISTA DO BRASIL

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A MÚSICA não pode parar Prestes a completar 20 anos, a Orquestra de Cordas da Grota enfrenta uma crise de financiamento que ameaça o seu futuro Por Renata Silver Fotos: Thiago Ripper/RBA 52

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ovens e crianças com estojos de violinos e violoncelos, a música clássica ecoando pelas vielas. Nada disso causa admiração na comunidade da Grota do Surucucu, em Niterói, ao lado da cidade do Rio de Janeiro. Mas esta familiaridade com instrumentos e sons eruditos pode acabar. A Orquestra de Cordas da Grota é conceituada e, ao longo dos anos, foi ganhando a estrutura necessária para desenvolver o trabalho. Mas os patrocínios são pontuais, para ações como a compra de

instrumentos e a construção da sede, e o dia a dia consome dinheiro. Além das despesas estruturais, é preciso levantar verba para oferecer ajuda de custo aos músicos e monitores. No início de 2014, a OCG se viu sem patrocínio. Com empenho dos alunos, professores e voluntários e vários cortes nas despesas, o projeto continuou. Mas, no fim do ano, veio a constatação dramática: se até o final de fevereiro não tiver sido captada pelo menos parte da verba necessária para cobrir os custos fixos em


CIDADANIA

Nayran Pessanha, violista do Quarteto de Cordas da Universidade Federal Fluminense e professor do Centro de Estudo e Iniciação Musical da mesma universidade, é o regente da orquestra principal. Todos contribuem mensalmente.

Horta e aulas

A Orquestra de Cordas da Grota e seus coordenadores Lenora e Márcio

2015, as aulas e atividades regulares não serão retomadas em março. Para tentar levantar o dinheiro, a OCG iniciou uma campanha de doações por meio do site de financiamento coletivo Vakinha. A venda de CDs da orquestra também está sendo intensificada, e a conta para depósito de doações regulares tem sido amplamente divulgada. Os voluntários não só trabalham sem ajuda de custo, como também são os doadores mais regulares. Márcio Selles e Lenora Mendes são os coordenadores, dando aulas e organizando todo o trabalho.

A história do projeto, que inicialmente não tinha nenhuma relação com a música, começa nos anos 1980. A professora aposentada Otávia Paes Selles começou a plantar uma horta no terreno ainda vazio e, aos poucos, foi atraindo as crianças que jogavam no campinho de futebol vizinho. Dona Otávia oferecia também aulas de reforço escolar, oficina de leitura e diversas atividades de artesanato. Remanescentes desta época, os irmãos Katunga e Nem – José Carlos e Ricardo Vidal – e a amiga Raquel Terra lembram, nostálgicos, das tardes de aula, cultivo e artesanato, dos almoços de sábado em que eram servidos legumes e verduras colhidos da horta e de quando ajudaram a construir a cisterna e a “casinha”, primeira edificação do espaço. Mas a saudade maior é de dona Otávia, que morreu em 1988. “Ela levava a gente para a casa dela para fazer chocolate, que depois vendia em bazares. Vendia também as peças de artesanato. Fiz muito sapatinho de tricô, muito pano de prato. Mas eu acho que era ela mesma que comprava tudo”, recorda Raquel. “E tinha também os shortinhos. Ela costurava shorts para as crianças, mas o tamanho era um só. Tinha que servir para todo mundo”, lembra Ricardo. Quando o espaço foi reformado, em 1997, foi mantido um fragmento do antigo edifício, onde foi afixada uma placa em homenagem à fundadora do projeto. Sem descuidar da horta, do reforço escolar e das atividades artesanais, dona Otávia convenceu o filho, Márcio, a ensinar música às crianças. Recém-chegado dos Esta-

dos Unidos – onde ele e a mulher, Lenora Mendes, cursaram mestrado na Sarah Lawrence College –, o músico, inicialmente, resistiu à ideia. Dona Otávia insistiu e Márcio assumiu o ensino de música e fundou a Orquestra, em 1995. Mais tarde, Lenora se uniu ao projeto e se encarregou das aulas de teoria musical e flauta doce.

Novo rumo

O projeto atende, hoje, cerca de 500 crianças e jovens, espalhados pela sede operacional, na Grota, pelos núcleos em outras comunidades – Jurujuba, Ititioca, Morro do Cavalão, Morro do Estado e Badu – e nos municípios de Maricá e Itaboraí. Quantos já passaram pela orquestra, ninguém consegue contar. “Não temos o número certo, porque não temos muito controle sobre estas informações. Sempre tivemos problemas com a parte administrativa. E isso atrapalha, porque, apesar de o projeto ser reconhecido e considerado sério, esta falha na organização dificulta a captação de patrocínio”, lamenta Lenora. Além das aulas de música, o Espaço Cultural da Grota também abriga uma biblioteca com 500 títulos, mantendo a tradição das oficinas de leitura. Há ainda aulas de desenho, reforço escolar, oficinas de alguns instrumentos e cursos de artesanato. Isso sem contar a orientação atenta e constante de Lenora. “Em geral, oriento quanto à escolha do curso superior, principalmente na área de música. Quase sempre recomendamos que o aluno faça licenciatura, porque ele já sai da faculdade apto a dar aulas. Se quiser depois complementar a formação, apoiamos no que podemos”, esclarece. Mas há também orientações quanto a decisões que dizem respeito à vida pessoal das crianças e jovens. “Quando percebo que alguém está bebendo, fumando, ou quer sair da escola, por exemplo, vou até esta pessoa e chamo para uma conversa. Afinal, a vida será o que a gente construir”, acrescenta.

Retorno

Os alunos mais experientes se tornam professores e monitores. Hoje produtora, Alexandra Seabra iniciou a monitoria aos 13 anos, com apenas três de aprendizado. “Eu ajudava a Lenora com os pequeREVISTA DO BRASIL

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MÚSICA “DIFÍCIL” Katunga: “Não consigo entender esse preconceito com a música clássica. Para mim é natural, meu filho de 3 anos também fica à vontade ouvindo”

nos”, lembra. Mais recentemente, sofrendo de tendinite, deixou a orquestra principal, mas, formada em licenciatura pelo Conservatório de Música – fez parte do primeiro grupo de bolsistas –, continua dando aulas. Além de lecionar na Grota, Alexandra também dá aulas de musicalização para as crianças de um tradicional colégio particular de Niterói. Paralelamente, integra um grupo, todo de músicos da OCG, que toca em casamentos, festas e eventos. Para poder diversificar suas opções de trabalho, todos os integrantes da orquestra principal têm CNPJ próprio e emitem nota fiscal, registrados como microempreendedores individuais. Manoel Ferreira, violista, além de cursar licenciatura em Música na UFRJ, é um bom exemplo de versatilidade. Por influência de uma professora da 54

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faculdade, Patrícia Michelini, o jovem de 24 anos voltou a tocar flauta doce – primeiro instrumento de todos os alunos da OCG –, entrou para a Orquestra Barroca da UFRJ e uniu-se ao cravista Eduardo Antonello, com quem toca um repertório de música barroca. Fora o trabalho musical, Manoel tem trabalhado com fotografia e vídeo – é quem registra as apresentações da orquestra e, depois de editar o material, publica na internet, ajudando na divulgação. O músico atua ainda como produtor numa produtora de eventos.

Outro futuro é possível

Mesmo com reconhecimento nacional e internacional, a maior conquista do projeto tem sido mudar as vidas das crianças e jovens que atende. Embora as

DE BERÇO Carlos: “Minha vizinha tocava violino. Me acostumei a escutar música clássica e quis aprender a tocar”


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AULAS E BICOS Ricardo Vidal: experiência e bom currículo musical não garantem o sustento

PAPEL SOCIAL a maior conquista do projeto tem sido mudar as vidas das crianças e jovens atendidos

casas da ladeira de acesso não sugiram isso, a Grota sofre com as mazelas comuns às periferias: não há saneamento básico e coleta de lixo em algumas áreas, as chuvas derrubam casas, há violência. Com tantos obstáculos, era esperado que os jovens da comunidade estudassem precariamente ou largassem os estudos, seguindo uma vida laboral de subempregos e informalidade. Mas a influência do trabalho da OCG mudou esse futuro. Dos jovens atendidos, 50 cursam ou já concluíram a universidade. Muitos estudaram música, enquanto alguns cursaram Direito, Educação Física, Geografia, Física, entre outras carreiras. A veterana Raquel Terra é um caso exemplar, já que teve o rumo da vida modificado duas vezes. Chegou à horta de dona Otávia defasada em relação à série que cursava e com muitas deficiências. “Eu aprendi a ler, mesmo, aqui”, relata a violoncelista. Melhorou na escola, aprendeu a tocar, participou da Orquestra desde sua fundação. Mas a família se mudou para o município vizinho de São Gonçalo e a menina, aos 11 anos, não podia ir sozinha para as aulas na Grota. Algum tempo depois, já com 17 anos, retornou. Havia deixado a escola, mas voltou a estudar. E acabou contemplada com uma bolsa para cursar licenciatura no Conservatório Brasileiro de Música. Hoje, formada, dá aulas na Orquestra.

Sonhos em risco

Raquel é também um exemplo de como a falta de financiamento põe em risco os benefícios sociais do projeto. Com a crise de financiamento, foi suspensa a ajuda de custo aos músicos, instrutores e monitores. Raquel teve sua renda comprometida e se viu obrigada a procurar emprego. Hoje trabalha como ajudante de cozinha em um restaurante. Ouvindo Raquel falar sobre o emprego, Ricardo Vidal perguntou à amiga se há vagas abertas no restaurante. Com quase 20 anos de carreira na música, apresentações internacionais no currículo e instrutor de três núcleos da OCG – Badu, Jurujuba e Maricá – o violinista se vê forçado a buscar uma forma de complementar a renda. Já Katunga Vidal não depende exclusivamente da OCG. Entre outros trabalhos, dá aulas de música no Afroreggae e toca em festas e eventos. Mas, além de ser um dos mais experientes integrantes da orquestra A, o músico tem um motivo a mais para desejar que o projeto continue: seu filho, Antônio, de 3 anos, já brinca com pandeiros e flautas e está mais do que familiarizado com peças eruditas. “Não consigo entender esse preconceito com a música clássica, as pessoas dizerem que é uma música difícil. Para mim é natural, meu filho também fica à vontade ouvindo.” O desejo do pai é que o pequeno também entre para a OCG. Aos 14 anos, o violinista e flautista Carlos Rodrigues já tem sete de OCG e a previsão é de que comece a dar aulas de teoria em 2015. O jovem fazia parte da banda do Colégio São Vicente, onde era bolsista, e já tocava quando chegou à orquestra. Mas foi por causa do projeto que quis se tornar músico. “Minha vizinha tocava violino aqui e eu ouvia os ensaios dela. Desde os 2 anos acostumei a escutar música clássica e quis aprender a tocar”, conta. Decidido a seguir carreira como instrumentista, o rapaz estuda com afinco e nutre o desejo de tocar com a Filarmônica de Berlim, uma das orquestras mais conceituadas e famosas do mundo. Hoje, o maior obstáculo para a realização do sonho de Carlos é a falta de financiamento. REVISTA DO BRASIL

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Bororo sabe chorar seus mortos

Os rituais dessa etnia indígena são essenciais para a reconstrução de uma sociedade desequilibrada pela morte e aniquilada pela ocupação branca Por Lucíola Zvarick. Fotos: Renato Soares 56

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frase do título é resultado de uma longa amizade entre o marechal Cândido Rondon e o chefe Bororo Oarine Okuneu, o Cadete. Em muitas ocasiões, Cadete aconselhou o antológico indigenista a morrer entre “os seus”. Sim, os Bororo, ou Boe, como se autodenominam, sabem chorar os seus mortos. O sol ardia no cerrado descampado e não tinha vento, apenas um bafo quente, quando o carro da reportagem deixava a rodovia BR-070 e adentrava o território em que ouviria essas e outras histórias da etnia. A Terra Indígena Meruri ocupa 82 mil hectares de área no município de General Carneiro (MT), a 460 quilômetros de Cuiabá. Nesta área homologada em 1987 vivem pouco mais de 400 índios, distribuídos entre as aldeias Meruri e Garças.


A reportagem documentaria parte dos ritos funerários em homenagem ao líder José Carlos Meruri Ekureo, morto em 19 de junho passado, aos 80 anos. Era o último grande chefe de ritual Bororo da aldeia Garças. Em setembro, seu corpo ainda descansava no centro da aldeia, em uma cova rasa, sob um manto de terra e folhas de palmeiras. Em breve sua alma estaria livre para percorrer o caminho até a aldeia dos que morrem. Porém, a comunidade ainda teria de aguardar. Diariamente, a cova é regada para acelerar o processo de decomposição do corpo, cujos ossos, ao final, deverão receber um ornamento especial e ser enterrados ou depositados numa lagoa. No caso do velho José Carlos, o ritual seria finalizado com uma bênção católica e os ossos sepultados no cemitério da aldeia vizinha, Meruri, onde se instalou uma missão salesiana em 1902. Nesses 112 anos de contato, o grupo sofreu transformações. Aprenderam a falar e a rezar com os não-índios, enfraqueceram sua língua, seus rituais foram proibidos total ou parcialmente, e suas conexões com outros povos vizinhos foram alteradas para sempre. Há algum tempo, um processo de autocrítica dos missionários, depois de constatar o aniquilamento cultural dos Bororo, culminou com a retomada da língua indígena a partir do ensino bilíngue na aldeia Meruri. Uma esperança de resgate de estruturas fragilizadas e relegadas às sombras da identidade de cada Bororo.

Funeral

PASSAGEM O cerimonial funerário dos Bororo dura meses. Na cova rasa (abaixo), o corpo de José Carlos se decompõe até que sobrem somente os ossos

Entre os episódios que marcam o ciclo de vida da etnia, a morte é um dos mais importantes. Durante aproximadamente três meses de ritos funerais, os jovens são familiarizados com os valores dessa sociedade dualista. São lembradas regras de reciprocidade e de iniciação à vida adulta. Os rituais são essenciais para a reconstrução da sociedade desequilibrada pela morte. A cada funeral, todos os mortos são lembrados por seus parentes vivos e por seus representantes rituais por meio de um par de cabacinhas tocadas pelo condutor do cerimonial. É quando se dá o encontro entre o mundo dos vivos e o universo dos mortos. Os ritos reafirmam a oposição e complementaridade entre as duas metades em que se dividem a aldeia e a própria sociedade Bororo: os Eceráe e os Tugarégue. Cada uma dessas metades é subdividida em clãs com deveres bem definidos: do fornecimento de tintas para as pinturas corporais e as penas para os adornos plumários às representações rituais, que caberão ao clã da metade oposta à da família do morto. Terezinha, a filha, e Jacira, neta do ancião recém-falecido, tinham marcas de escarificação nos braços. O cacique da aldeia Garças, Emílio Cugoxereu, é marido de Jacira. É parte do ritual funerário os parentes próximos, especialmente as mulheres, se arranharem. No caso das duas, como houve perda da tradição, elas o fizeram com cacos de vidro. Também assim expressam a profunda tristeza pela morte de um ente querido. A reportagem acompanhou desde a confecção de duas grandes rodas com talos de folhas de buriti – uma simbolizando o homem e a outra, a mulher – até a sua utilização durante os rituais. Entre eles, o Aije (espírito misterioso). Numa noite de sábado, a celebração ao redor do corpo e diante das duas grandes rodas é REVISTA DO BRASIL

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longa. O chefe de cabacinha e condutor da cerimônia puxa os que contavam a história de heróis Bororo e exaltavam a vida do falecido. Em dado momento, os homens se revezavam com as rodas alçadas à altura da cabeça, e com elas dançavam e saltavam freneticamente. Em algumas etapas, não é permitida a presença de mulheres e crianças, sob a crença de que teriam a morte próxima. Elas ficam dentro das malocas, um tanto nervosas diante da suposta presença dos espíritos em rituais de que apenas os homens participam. Na tarde do dia seguinte, já com o sol batendo lateralmente, chega-se ao ponto. Homens, mulheres, jovens e crianças estão pintados com o negro do jenipapo e o vermelho do urucum. A simetria e a perfeição dos desenhos realçam a beleza exótica dos rostos. As mulheres pintam filhos e netos. No centro da aldeia, homens maduros e jovens índios, vestidos com parikos (cocares) majestosos de penas de arara azul e mantos com pele de jaguatirica, entoam novos cantos de evocação dos espíritos ancestrais e dançam, por cerca de quase três horas, ao redor do corpo do ancião. 58

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Aquele foi um fim de semana de esforço coletivo entre os moradores da aldeia Garças e de Meruri. Representantes de outras aldeias Bororo também compareceram. A realização de um funeral ritualista sempre é um ato de coragem e respeito, exige empenho e determinação. A tristeza é, de certa forma, neutralizada pela riqueza do aprendizado e pela vontade de celebrar a magnitude da vida.

Comer, pescar, viver

Na aldeia Garças moram 30 pessoas. A casa do cacique Emílio e sua família é feita de palha de buriti e coberta com telhas de amianto. Não há plantação de nenhum tipo de grão ou tubérculo em toda a aldeia. “O trator que nos ajudava a arar a terra quebrou, e a Funai não colocou outro. Já plantamos muito arroz nestas terras, mas agora parou tudo”, lamenta o cacique. “Vocês vieram num momento em que estamos de luto, e as atividades – até a escolinha das crianças – estão paradas.”


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ADORNOS Homens, mulheres, jovens e crianças estão pintados com o negro do jenipapo e o vermelho do urucum. Muitos usam cocares de penas de arara azul e mantos com pele de jaguatirica

CELEBRAÇÃO As danças são frenéticas e se prolongam por dias. Para o ritual são confeccionadas duas grandes rodas com talos de folhas de buriti, uma simbolizando o homem e a outra, a mulher

RESGUARDO Em alguns momentos, mulheres e crianças ficam de fora do cerimonial. Os Bororo acreditam que teriam a morte próxima

A comunidade deixou de plantar há alguns anos. A pesca e a caça também ficaram escassas no local. Praticamente tudo o que comem é comprado na cidade: do arroz e feijão preparados no almoço e jantar, aos salgadinhos e guloseimas industrializados que as crianças consomem esporadicamente. Percorrem de bicicleta ou de carona os 15 quilômetros entre a aldeia e a BR-070, que os levará às cidades mais próximas, General Carneiro e Barra do Garças. Para pagar o supermercado, usam recursos provenientes do Bolsa Família e do INSS, especialmente por meio das aposentadorias por invalidez. Os Bororo ocupavam uma extensa área calculada em 400 mil quilômetros quadrados, no estado de Mato Grosso, quando se deram os primeiros contatos com a civilização branca, com a chegada dos bandeirantes paulistas, no começo do século 18. A população era estimada em cerca de 10 mil. Pertencente ao tronco linguístico Macro-Jê, a língua Bororo é falada por quase toda a população, estimada em 1.700 pessoas espalhadas em dez aldeias em áreas descontínuas do estado. A classificação é feita a partir dos dois grandes clãs Eceráe e Tugarégue, em que moradores de uma metade só podem se casar com os da outra. Ao nascer, uma criança receberá um nome ligado ao clã de sua mãe. A sociedade Bororo também é matrilocal, ou seja, os filhos pertencem ao clã da mãe, a mulher é chefe da casa e o homem, seu hóspede. A demora para a finalização do funeral do velho José Carlos criou uma certa angústia na aldeia Garças. Já se passaram os três meses de praxe e o corpo ainda não havia se decomposto. O motivo? Houve um erro, e em vez de colocarem preparados que acelerariam o processo de decomposição, passaram resina, o que acabou por impermeabilizar a pele. O engano aconteceu porque morrera justamente aquele que detinha tais conhecimentos. Mais um sinal de que a comunidade teria de reaprender esse e outros processos do fascinante ciclo de vida da etnia. Um pouco nos livros, um pouco com os anciãos de outras aldeias. REVISTA DO BRASIL

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viagem começa antes de o sol nascer. Às 5 da manhã, a equipe sai da cidade de Alto Paraíso de Goiás, a 242 quilômetros de Brasília, e segue em direção a uma pequena propriedade rural nos arredores desse município de pouco mais de 6 mil habitantes. Auxiliados pela luz da caminhonete de apoio, que leva todo o equipamento de voo, começa a montagem do balão, pressentindo os primeiros raios do sol. O céu está limpo, perfeito para um voo que vai atravessar um dos pa60

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raísos naturais mais impressionantes e importantes do Brasil, a Chapada dos Veadeiros. Antes mesmo de decolar, inicia-se a conversa entre homem e natureza. O balonista Filipe Tostes, responsável pelo passeio, explica que uma das primeiras características que precisa ser levada em consideração num voo de balão é o clima e as condições meteorológicas da região, o que é determinado também pela geografia e pela formação geológica. “Temos de decolar logo nas primeiras horas do dia, para evitar as térmicas,

correntes de ar quente que se formam quando a temperatura começa a se elevar e que podem tornar o voo perigoso. Na Chapada, além da altitude, o terreno é rochoso (rico em cristais de quartzo) o que faz com que esse aquecimento seja ainda mais rápido”, explica Filipe, que já voou em vários países e que em 2014 foi campeão do 26º Festival de Balonismo de Torres (RS), um dos mais importantes do Brasil. Ele explica que, antes mesmo da chegada do balão ao local de decolagem, sua equipe já havia feito a observação das


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Paraíso visto do céu

Voar de balão sobre a Chapada dos Veadeiros (GO) é mais que surpreendente. É também uma forma diferente de entender a geografia e vivenciar a harmonia entre homem e natureza Texto e fotos de João Correia Filho

condições meteorológicas e lançado uma bexiga com gás hélio, que ajuda a mapear a direção do vento e sua velocidade. A partir desses dados é que ele elabora o roteiro do voo, determinando os locais que serão possíveis percorrer e em qual ponto a equipe em terra pode resgatar o balão. Localizado em um platô com altitudes que variam entre 1.400 e 1.650 metros, a Chapada dos Veadeiros possui clima tropical de altitude, com temperatura média de 25 graus e épocas de vento intenso, principalmente nos meses de julho, agosto e setembro, quando a temporada

de balonismo é suspensa. Em dezembro e janeiro, as chuvas constantes também impedem os voos. Isso faz com a temporada dure sete meses, de fevereiro a junho e de outubro a novembro.

Para o alto

Em pouco tempo o balão deixa o solo, lentamente. A primeira visão que se tem é das casas de Alto Paraíso, que começam a formar um quadriculado regular, no qual ruas e estradas seguem caminhos geométricos aparentemente perfeitos. Mais alguns instantes e os siREVISTA DO BRASIL

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Pés no chão

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Cachoeiras da Almécegas

HUGO CAMELO/FLICKR/CC

Olhar a Chapada do Veadeiros de cima é sem dúvida estonteante. Mas o que tradicionalmente leva milhares de pessoas todos os anos para Alto Paraíso de Goiás são atrativos para os que mantêm os pés no chão. Trilhas conduzem a cachoeiras como a Almécegas (com 50 metros e considerada uma das mais belas), ao Salto do Rio Preto (com 120 metros) e a formações rochosas como o Vale da Lua – com erosões feitas pelo rio São Miguel que se parecem com crateras lunares. A 35 quilômetros temos também o distrito de São Jorge, que une uma atmosfera rústica, meio hippie, ao requinte da boa gastronomia, de locais descolados, além de estar localizado bem próximo à entrada do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros. Alto Paraíso é também um local tido como grande polo esotérico, de aventuras extrassensoriais e místicas. Mais uma vez a natureza agiu e colocou sob a região uma das maiores concentrações de cristais de quartzo do mundo, o que, segundo alguns, a torna um grande centro de energia cósmica, cortado pelo paralelo 14, o mesmo de Machu Picchu, a cidade sagrada dos Incas – o que amplia as possibilidades transcendentais.


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TRILHA VERDE As veredas são formações vegetais típicas do cerrado, que têm como principal característica um longo corredor de buritis, palmeira que acompanha os riachos

MARCELLO CASAL JR/ABR

Congada de Catalão em São Jorge: energia e misticismo

nais de urbanidade começam a dar lugar aos traçados irregulares da vegetação e ao cerrado, bioma que cobre a região e se encontra devidamente preservado nos 65 hectares do Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, uma das mais importantes reservas naturais do país. Criado em 1961, e declarado Patrimônio Natural da Humanidade pela Unesco em 2001, o parque ocupa boa parte desse grande platô localizado no Centro-Oeste, fazendo limite com as cidades de Alto Paraíso de Goiás e Cavalcante. À medida que o balão sobe, o panorama permite entender um pouco mais a região. À esquerda, impõe-se o Morro da Baleia, à direita, a Serra da Boa Vista, que formam uma espécie de vale por onde o balão faz seu voo, protegido dos ventos mais fortes. Segue a uma velocidade média de 30 quilômetros por hora e chega a cerca de 1.200 metros acima da paisagem,

que ganha novos contornos e dimensões. O silêncio toma conta do ambiente, quebrado algumas vezes pelo som da chama lançada por Filipe para aquecer o ar e controlar a altitude do balão. Extremamente estável, o balão dá a sensação de estar parado, e permite observar com mais afinco tudo que se deslinda no horizonte. É o caso das veredas, formação vegetal típica do cerrado, que tem como principal característica um longo corredor de buritis, palmeira que acompanha riachos formando uma trilha verde. Como mantém o solo úmido, são um verdadeiro oásis para centenas de espécies do cerrado, mesmo durante os períodos de seca. De cima, é fácil perceber porque vereda também significa caminho. Além das veredas, alguns rios serpenteiam o chão, entre os quais Preto e o dos Couros, que ao descer do platô vão formar as incríveis cachoeiras e piscinas naturais que atraem milhares de turistas todos os anos. A Chapada dos Veadeiros é um importante berço e divisor de águas, e suas nascentes são os principais formadores da bacia do Tocantins, o segundo maior rio totalmente brasileiro – o primeiro é o São Francisco. Embora a altitude não permita ver, é fácil imaginar a riqueza da fauna que está sob os pés, representada por animais como lobo-guará, a raposa-do-campo, a capivara, o tucano, o caracará e a ema, um dos símbolos do cerrado. Também estamos sobrevoando uma região de flora riquíssima, com mais de 1.400 espécies catalogadas, sendo centenas delas endêmicas. Depois de cerca de 40 minutos no céu, começa a descida. É um momento um pouco mais tenso, pois as condições do vento lá embaixo podem determinar um pouso tranquilo ou, como não é incomum, o cesto do balão pode se arrastar por alguns metros, o que exige cuidado da equipe. À medida que se aproxima do local de pouso, a sombra do balão torna-se maior e compõe com a paisagem uma imagem única, inesquecível, harmônica. E a natureza, mais uma vez, mostra-se generosa, faz tocar a terra com tranquilidade, sãos e salvos, com os pés no chão e a cabeça voando alto, bem alto. REVISTA DO BRASIL

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FOTOS: JOÃO PINA/DIVULGAÇÃO

curtaessadica

Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Avião usado pela ditadura argentina para atirar militantes de esquerda, ainda vivos, no mar

Antigas celas do campo de concentração de Emboscada, no Paraguai

Entrada do Londres 38, antigo centro clandestino de detenção na zona central de Santiago

Antigos militares argentinos escondem o rosto durante sessão do seu julgamento

Patologista transporta os restos mortais de um possível guerrilheiro brasileiro do Araguaia

Memórias latino-americanas Em 1975, no auge da Guerra Fria, seis países latinoamericanos governados por militares de extrema-direita se uniram para aniquilar a oposição política, que eles chamavam de “ameaça comunista”. Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Uruguai e Paraguai fizeram parte dessa tenebrosa aliança que o fotógrafo português João Pina apresenta na exposição Operação Condor, em cartaz no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro até 22 de fevereiro. A mostra reúne 113 imagens que documentam histórias de brasileiros e sul-americanos diretamente afetados pelas ditaduras. As fotografias em branco e preto são apresentadas em oito séries: Brasileiros, Retratos, Paisagens, Laboratório, Prisões, Julgamentos, Salas de Tortura e Arquivos. Pina dedicou uma década a pesquisas em arquivos, entrevistas e produção de retratos de antigos presos políticos, 64

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de parentes de vítimas da ditadura e de antigos centros de detenção. Além da exposição, esta extensa e dolorosa pesquisa também rendeu ao fotógrafo o livro Condor (Ed. Tinta da China, 246 págs.), lançado no final de 2014. “A série Operação Condor vai muito além de imagens documentais. Elas falam de ausência, da perda do que é irrecuperável, da procura de identidades desaparecidas e ainda sem explicação, da dor dos que deixaram de conviver com familiares e amigos, do corte seco que levou para sempre os que tiveram a liberdade tolhida nos anos da ditadura. É mais que uma exposição: é um documento sobre cicatrizes”, afirma o curador da exposição, Diógenes Moura. Em cartaz no MAM de terça a sexta, das 12h às 18h, e aos sábados, domingos e feriados, das 12h às 19h, na Av. Infante Dom Henrique, 85, Parque do Flamengo, tel. (21) 3883-5600. R$ 7 e R$ 14.


CURTAESSADICA

Cores e valores dos Racionais Doze anos depois do álbum Nada Como Um Dia Após o Outro, o mais emblemático grupo de rap do Brasil lançou Cores & Valores. As críticas sociais continuam lá, o tom invocado, típico dos Racionais MC’s, também. O que mudou foi o país, como evidencia a faixa Eu Compro: “Eu quero, eu compro/ E sem desconto/ À vista/ Mesmo podendo pagar, podem ter certeza que vão desconfiar”, diz a letra, em uma referência ao aumento do poder de compra dos menos favorecidos ocorrida nos últimos anos. A Escolha que Eu Fiz trata da prisão de um assaltante e A Praça relembra a enorme confusão ocorrida no show do grupo na Virada Cultural de 2007. Com 15 faixas e 35 minutos, Cores & Valores é um álbum curto, mas potente na forma e na mensagem. Disponível para download na loja digital Google Play por R$ 9,99 e para audição gratuita no canal do grupo no YouTube.

GUSTAVO DUARTE/DIVULGAÇÃO

Poeta da Vila para crianças

Assim que o compositor Noel Rosa morreu, em maio de 1937, ele chegou ao céu e, achando que estava no lugar errado, deu meia volta. São Pedro logo o chamou de braços abertos. Na história de Memórias Póstumas de Noel Rosa – Uma Longa Conversa entre Noel e São Pedro num Botequim lá do Céu (Cia. das Letrinhas, 152 págs.), de Luciana Sandroni e Clara Barbosa, o Poeta da Vila só tem uma exigência para ficar por lá: uma mesa de botequim e um violão. “Se não, não fico aqui nem morto!” Espertinho, São Pedro aceita, mas em contrapartida pede que Noel anime as festas do céu. A biografia ficcionalizada tem ilustrações de Gustavo Duarte, além de um glossário e partituras de 12 canções do sambista carioca. R$ 45.

Música e novela Em Teletema (Ed. Dash, 512 págs.), os autores Guilherme Bryan e Vincent Villari uniram duas paixões nacionais: música e novela. Dividida em dois volumes, a obra comenta todas as trilhas musicais de produções de teledramaturgia já lançadas no Brasil. Apesar de ser ilustrado com mais de 300 capas de discos, o livro não é um almanaque e sim um estudo aprofundado sobre a importância da música para a teledramaturgia e vice-versa. No primeiro volume, pronto no final de 2014, o livro cobre o período de 1964 a 1989 e traz cerca de 220 novelas, além de muitas histórias de bastidores e depoimentos de músicos e de responsáveis pelas trilhas musicais. R$ 69. REVISTA DO BRASIL

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CRÔNICA

Pelo que torcer BANKSY: BALLOON GIRL

Este ano, dizem minha bola de cristal e meu calo no mindinho do pé esquerdo, há muito o que esperar Flávio Aguiar

T

omara que o grupo dos seis (Estados Unidos, Reino Unido, França, Alemanha, China e Rússia) cheguem a um acordo com o Irã sobre o programa nuclear. Há chances de isso acontecer. E de não acontecer. A oposição é muito forte: republicanos nos EUA, linha dura no Irã, França, Israel. Se acontecer, o mundo ficará mais seguro. A propósito, seria saudável para o mundo inteiro que Netanyahu perdesse as eleições que marcou para março. Se ganhar, podemos fazer o velório da esperança em algum processo de paz com os palestinos. Talvez perca: despedindo dois partidos mais ao centro, Netanyahu vai ter de se basear mais à direita, nos partidos judaicos ortodoxos. Mas pelo menos um, o da ex-ministra da Justiça Tipsi Livni, já se uniu ao Partido Trabalhista. Os dois teriam mais cadeiras no Parlamento do que o Likud do atual primeiro-ministro. Os curdos, lutando em Kobani e no Iraque, merecem mais apoio internacional do que o que estão recebendo. Eles são a linha de frente contra os fascistas do Estado Islâmico, que de islâmico só tem o nome, e é tudo o que as forças reacionárias do Ocidente precisam para promover sua visão discricionária em relação a tudo o que é islâmico, árabe etc. Vamos torcer para que a direita europeia perca pelo menos um pouco de seu ímpeto atual. A Europa conservadora – incluindo aí os setores à direita dos socialistas, social-democratas e verdes – está brincando com fogo. Ataca a esquerda, preocupa-se com a extrema-direita, mas suas políticas de austeridade jogam água no moinho dela. E para que os trabalhistas ganhem na Inglaterra. Não vão mudar o programa neoliberal dos conservadores de David Cameron e dos liberais democratas, mas pelo menos o aliviariam. E quando mais não seja, poderiam solucionar o caso de Julian Assange, confinado na embaixada do Equador. Também em Portugal o governo conservador poderia perder 66

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as eleições. Não vai adiantar tudo, mas sempre adiante alguma coisa. Quem sabe o Syriza vença as eleições na Grécia e reverta a “austeridade”. E os republicanos dos Estados Unidos se engasguem com suas diretivas completamente anacrônicas em relação a tudo: aquecimento global, imigrantes, comportamento. E que as esquerdas – assim, no plural – continuem a ganhar eleições na América Latina, sobretudo na Argentina, com o encerramento do mandato da presidenta Cristina Kirchner ao fim deste 2015. E que os programas do Uruguai, para a maconha e para a mídia, vinguem. Na África, é preciso que as vacinas testadas contra o Ebola deem certo. É a única maneira de conter a propagação do vírus. Na Ásia, que a distensão lenta, segura e gradual entre a China e o Japão e a China e a Índia se consolide abrindo um caminho de paz para a região, que poderá talvez chegar às Coreias e ao Vietnã. E que o governo conservador da Austrália reconheça a necessidade de combater o aquecimento e as emissões de carbono. No Brasil, ah, no Brasil... O Brasil precisa de uma oposição moderna e antianacrônica. Que o PSDB encontre seu prumo, e que seus líderes deixem de cortejar manifestações que pedem a volta da ditadura. Que Marina Silva consiga fundar sua Rede: é a melhor maneira de tirá-la da influência do pastor Malafaia. E o Brasil precisa de um partido voltado seriamente para questões ecológicas, no lugar desta coisa desossada em que o PV se transformou. Ah sim, e que o PT reencontre o caminho do diá­logo com a juventude e com as convicções que resultaram na sua criação e em seu crescimento, coisas que perdeu. Finalmente, last, but not least, para ajudar a cicatrização do “Mineirazo”, que algum clube brasileiro ganhe a Libertadores e o Campeonato do Mundo. O Internacional de Porto Alegre, por exemplo.


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