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STÉDILE O agronegócio e os venenos na terra

ÁGUA EM SÃO PAULO Um crime do estado contra os cidadãos

PERUS Caso das ossadas à espera do desfecho

nº 104 março/2015 www.redebrasilatual.com.br

O IMPOSTO É MAIS EM CIMA Reforma tributária deve inverter a lógica perversa em que os ricos pagam menos do que os assalariados, que são o motor da economia


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ÍNDICE

EDITORIAL

5. Na Rede

Notas que foram destaque na RBA no mês que passou CENA DO FILME NOSFERATU, DE FRIEDRICH WILHELM MURNAU, 1922

10. Ambiente

O crime da água. Quem vai pagar por ele?

16. Economia

Governo tem de mirar nos alvos certos para bater suas metas

22. Entrevista

João Pedro Stédile: o futuro depende da agroecologia

26. América Latina

As mulheres na resistência à suspeita escassez de alimentos

30. História

Certos vampirismos não têm o glamour do cinema nem se combate com alhos e cruzes

A esperança na identificação das ossadas de Perus se renova

Saíram da cripta

36. Saúde

Os médicos da floresta contra as doenças de brancos dos índios

O

40. Atitude

SUCENA SHKRADA RESK

Pélagos, dança multiplicadora de arte e de cidadania

44. Viagem

Serra da Capivara, um dos berços do homem americano

Seções Cartas

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Mauro Santayana

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Marcio Pochmann

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Lalo Leal

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Curta essa dica

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Crônica: Bernardo Kucinski

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senador José Serra (PSDB) – derrotado nas eleições presidenciais de 2002 e 2010 – entrou para o cartum político como um vampiro brasileiro por ter seu nome envolvido, quando ministro da Saúde, em denúncias do escândalo dos sanguessugas, também chamada de máfia das ambulâncias, que desviava de recursos que deveriam tratar da saúde do povo brasileiro. Um escândalo cuja apuração deu em nada e seguiu o padrão do conjunto da obra durante o governo de Fernando Henrique Cardoso. Contribuiu também para dar autenticidade a essa imagem o costume de trocar a noite pelo dia e se apresentar com profundas olheiras, para a alegria dos cartunistas. Agora, no ambiente do impacto da Petrobras nos destinos do Brasil, Serra sai mais uma vez da cripta e vem confirmar o que personalidades, entidades, movimentos sindicais e sociais denunciam: de que, muito além das apurações da Operação Lava Jato, estão os aproveitadores de sempre que jogam no quanto pior, melhor, para tentar mudar a partilha da exploração do pré-sal e criar condições para a privatização da empresa. Afoito e sedento, o senador revelou em entrevista sua intenção de mudar tudo na petroleira e entregá-la às grandes corporações mundiais. Serra não seguiu à risca o comportamento dos verdadeiros vampiros, de que o terror não passa de uma forma codificada de humor, e que para ser autêntico é preciso usar da sedução e do encantamento para fincar seus caninos na vítima. Ele, porém, expôs à luz a sua sede. Assim como seu colega de bancada, Aloysio Nunes, ao apresentar no Senado projeto que acaba com o regime de partilha, que assegura no mínimo 30% do que for extraído do pré-sal. Para enfrentar essa modalidade de vampirismo, o governo Dilma e os movimentos que a apoiaram, em nome da democracia e dos avanços sociais e econômicos já conquistados, vão precisar muito mais do que alho e crucifixo. Para defender as conquistas dos últimos 12 anos e em busca de novos avanços, terão de sair ao sol, às ruas e falar alto e claro para se fazer entender. Dilma ajudará, se convencer os movimentos sociais sua disposição de cumprir, com unhas e dentes, o programa vencedor das eleições. REVISTA DO BRASIL

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CARTAS www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Helder Lima, Hylda Cavalcanti, Rodrigo Gomes e Sarah Fernandes Arte Leandro Siman Iconografia Sônia Oddi Capa Foto da Shutterstock. Gerardo Lazzari/RBA (Stédile) Nacho Doce/Reuters/Latinstock (água). Danilo Ramos/RBA (ossadas). Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 (Carla Gallani) Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos Cordeiro, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eliana Brasil Campos, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Raimundo Suzart, Raul Heller, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior

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Crise da água Não consigo ver culpa neste governador, pois que culpa tem ele se o clima não esta dando trégua (“À espera de um milagre”, edição 103). No Rio de Janeiro a situação também está se agravando, e pelo fato de aqui serem governos petistas ninguém cai de pau. Será que não está havendo críticas sem fundamento neste caso? Todo governo tem defeitos, mas nesse caso estão sendo totalmente injustos. Falar que deveriam ter sido feitos investimentos na ampliação da captação de águas é oportunismo. Mauricio Ferraz, Rio de Janeiro Culpar o clima é brincadeira. Até um leigo como eu sabe que há períodos em que chove mais e há os de maior seca. Precaver, investir, antecipar, entre outros verbos, devem ser utilizados por nós e pelos governos. Sentar a bunda na cadeira, cruzar os braços e culpar São Pedro é muito fácil Marcos Esteves, São Paulo Acredito na sinceridade do diretor da Sabesp Paulo Massato Yoshimoto, que disse: “Saiam de São Paulo, pois aqui não vai ter água”. Diante dessa sinceridade não sei como o senhor Massato ainda não foi demitido da Sabesp pelo Alckmin. Helena Osawa, Santo André (SP)

O fim do Brasil “O Brasil vai quebrar.” Ouvimos isso todo ano desde 2002. Enquanto muitos focam nesse mantra mentiroso, tapam os olhos para a realidade (“Quem quer o fim do Brasil”, Mauro Santayna, edição 103). Falam isso dentro de seus carros e casa melhores, com mais conforto e acesso a serviços, mas não percebem. E se alguém abre seus olhos, eles os chamam de “alienados”, “mensaleiros”, “bolsa xis ípslon zê”. Mesmo sendo sonegador de imposto, furador de fila... corrupto e alienado é quem reconhece o progresso do país. Karina Zarocinski Juros e spread Quando se fala em juros altos os economistas citam Dilma (“A ditadura do capital especulativo”, Emir Sader, edição 103), às vezes até de forma benevolente: tentou baixar os juros, mas sofreu terrorismo da mídia a serviço dos bancos e voltou a subi-los... Dilma é mesmo responsável por isso? Na minha ignorância acredito que não. Para continuar a receber investimentos, o país tem de fazer a “lição de casa”. Se não, as agências de classificação de riscos x ou y nos tascam uma nota baixa. Se os investidores estrangeiros fixam o que devemos fazer em todas as nossas atividades econômicas, deixariam ao nosso alvedrio a fixação dos juros? Mauricio Bernardi Passado e futuro As recomendações da Comissão Nacional da Verdade devem ser transformadas em políticas públicas (“O passado pode ajudar o futuro”, edição 103) e o governo tem a obrigação de dizer quais providências vai adotar em relação a elas. Independentemente de qualquer iniciativa, a primeira medida é dar ampla divulgação ao relatório, o que não foi feito até agora. César Cordaro

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


redebrasilatual.com.br

Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

Desde o ano passado, quando surgiram as denúncias de corrupção em contratos, a Petrobras entrou no olho do furacão. É senso comum que houve um sem-número de episódios que precisam ser investigados, com punição exemplar dos responsáveis. Até aqui, as instituições parecem funcionar: as investigações prosseguem e há suspeitos de corrupção presos. Mas, paralelamente aos pedidos de apuração, parece haver também um processo de “especulação conservadora”, termo usado pelo físico Luiz Pinguelli Rosa, durante um ato no Rio de Janeiro que cobrou punições e defendeu o patrimônio que representa a empresa. “Devemos cobrar punição para os corruptos e a defesa da Petrobras. Precisamos fazer isso com rapidez para não deixar rendendo uma pressão que, no fundo, é para acabar com a Petrobras”, afirmou o cientista. “Não se pode confundir atos criminosos de pessoas com o comportamento da empresa”, declarou o ex-presidente da companhia José Sergio Gabrielli. Ele lembrou que, em relação a 2002, a Petrobras tem valor de mercado quatro vezes maior, passou de 33 mil para mais de 80 mil empregados, ampliou a área de produção e dobrou sua capacidade de pesquisa e desenvolvimento. Gabrielli teme uma sucessão de demissões em consequência das investigações da Operação Lava Jato. “Se essas empresas (de construção pesada) começarem a enfrentar problemas mais graves, vão parar de funcionar, haverá uma onda de desemprego que vai se espalhar para metalurgia, para a indústria naval etc.” O presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Wadih Damous, chama a atenção para afrontas à legalidade no processo, apontando riscos à própria democracia. “Espero que esse

RICARDO STUCKERT/ INSTITUTO LULA

Investigação e afrontas

Ex-presidente Lula participa de ato em defesa da Petrobras

ato signifique que as forças democráticas saiam da letargia e defendam a ordem jurídica. O que está acontecendo no Brasil hoje é uma articulação – que só tem paralelo em 1964 – da grande mídia, de setores oposicionistas conservadores de direita, do Judiciário e do Ministério Público, numa afronta sem precedentes à ordem jurídica, com prisões ilegais, manutenção de prisões sem necessidade e a irresponsabilidade de pretender quebrar a Petrobras.” bit.ly/rba_defesa

O vazamento de dados bancários do HSBC em Genebra, no escândalo conhecido como SwissLeaks, ainda terá desdobramentos. Mas nem todas as informações vazam do lado brasileiro, que tem 6.600 envolvidos em contas do paraíso fiscal. A história veio à tona por meio do jornal francês Le Monde e pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (Icij, na sigla em inglês). O professor da USP Vladimir Safatle vê no episódio um exemplo de promiscuidade entre mercado financeiro, política e mídia. “E não é para estigmatizar o banco, mas para esclarecer o que é o sistema financeiro internacional. São corporações que estão acima dos governos.” Foi protocolado no Senado pedido de CPI. bit.ly/rba_hsbc

MARTIAL TREZZINI/EFE

Nem tudo que é suspeito vaza

Esquema: lavagem de dinheiro e sonegação

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NICOLA IANNUZZI/FUTURA PRESS

O pacote tucano que parou o Paraná Os profissionais da educação pública do Paraná promoveram um movimento inédito na história do estado. Durante três semanas de paralisação, que ganhou a adesão de outras categorias do funcionalismo, e de dezenas de manifestações nas ruas e na sede da Assembleia Legislativa, o governador Beto Richa (PSDB) viu-se obrigado a retirar de votação um projeto polêmico e a abrir negociações com os servidores.

O pacote que tentou votar a toque de caixa impunha perdas a direitos como aposentadoria, auxílio-doença, licenças, férias, atribuições entre outros. A medida, associada a atrasos salariais e superlotação de salas de aula, levou à interrupção do início do ano letivo. Protestos chegaram a reunir mais de 100 mil pessoas, entre elas alunos e pais. Os jornais de cobertura nacional esconderam o fato e suas causas. http://bit.ly/rba_paranaparaná.

A prefeitura de São Paulo vai leiloar área de 632 mil metros quadrados (equivalente a quase metade do Ibirapuera) em Cidade Tiradentes, na zona leste, com o objetivo de equilibrar oferta de emprego com a de moradia. É um distrito estritamente residencial, com 240 moradores e 4.500 postos de trabalho, o menor número entre as 32 subprefeituras. Com a construção de um empreendimento no local, a expectativa é de criar até 4 mil empregos diretos. A área pertence à Companhia Metropolitana de Habitação (Cohab), que desde os anos 1970 produziu 40 mil moradias na região, a maioria destinada à população de baixa renda. bit.ly/rba_ cidade-tiradentes 6

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Haddad: expectativa de criar 4 mil empregos

FERNANDO PEREIRA/SECOM

Emprego e moradia


DANILO RAMOS/RBA

À ESPERA DE UM EMPREGO Haitiano exibe documento de trabalho

O Haiti também é aqui O número de haitianos que chega à cidade de São Paulo continua crescendo, sem que haja vagas suficientes para abrigá-los. Da segunda metade de janeiro para os primeiros dez dias de fevereiro, aumentou de três para cinco o número de ônibus que semanalmente trazem haitianos vindos do Acre. Apenas em um dia, 70 deles tiveram de dormir no chão na sede da organização Missão Paz. “A cidade

precisaria de pelo menos 400 vagas para abrigar imigrantes”, afirma o padre Paolo Parise. A capital tem 220 vagas para acolhida provisória. Em condições vulneráveis, cresce a chance de essas pessoas caírem no que o padre chama de rede de trabalho precário. Entre 2013 e 2014, pelo menos 230 haitianos foram resgatados, no Brasil, de trabalhos em condições análogas à de escravidão. bit.ly/rba_haitianos

Trabalhador na direção

SINDIPETRO-BA CLAUDIO VIEIRA/SM SÃO JOSÉ DOS CAMPOS-SP

O técnico de segurança Deyvid Bacelar, de 34 anos, funcionário da Refinaria Landulpho Alves, na Bahia, foi eleito representante dos trabalhadores no Conselho de Administração da Petrobras. Coordenador do Sindicato dos Petroleiros daquele estado, tomará posse em um dos momentos mais turbulentos da história da empresa. Ele defende apuração e punição dos envolvidos em denúncias de corrupção, mas critica a cobertura feita pela mídia tradicional e propõe maior participação dos empregados nos processos de decisão da companhia. Longe de quebrar, como dizem alguns comentaristas, Deyvid observa que a Petrobras segue tendo bom desempenho, com recordes de produção e com valor de mercado muitas vezes maior em relação a 2002. “A Petrobras é maior do que tudo que está na mídia”, afirma, propondo também uma “reestatização” da empresa, por meio de compra de ações pela União. bit.ly/rba_conselho_br Em uma ex-estatal, a Embraer, o vice-presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, no interior paulista, Herbert Claros, é o novo representante dos trabalhadores no Conselho de Administração. É a primeira vez que a entidade conquista uma cadeira desde a privatização da empresa, ocorrida em 1994, informam os metalúrgicos. bit.ly/rba_embraer

Deyvid Bacelar

Herbert Claros REVISTA DO BRASIL

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REDEBRASILATUAL.COM.BR

Assis Ângelo e seu acervo particular

JAILTON GARCIA/RBA

Não atire em mim

Caminhos da cultura O jornalista e pesquisador Assis Ângelo reúne regularmente em sua casa, em São Paulo, gente para discutir arte e cultura, trocar ideias sobre as alternativas para aumentar o acesso aos interessados, declamar e cantar. Costumam passar por lá gente como o violonista Theo de Barros, o sambista Osvaldinho da Cuíca, os músicos Papete, Eduardo Gudin e Mário Albanese, entre outros. Até Geraldo Vandré, amigo do anfitrião e paraibano como ele, às vezes aparece. Assis é criador do Instituto Memória Brasil (IMB), que conta com um acerto de 150 mil itens. bit. ly/rba_assis_angelo

Cuba libros

EDUARDO SEIDL

Evento tomou a Fortaleza de San Carlos de La Cabaña

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O assassinato do estudante Douglas Martins Rodrigues, de 17 anos, em 28 de outubro de 2013, na zona norte de São Paulo, é lembrado até hoje pela reação do jovem enquanto era socorrido. “Por que o senhor atirou em mim?”, frase dirigida ao policial Luciano Bispo, virou nome de movimento contra a violência. Encaminhado para Justiça comum, o caso pode ir a júri popular. Douglas completaria 19 anos em 11 de fevereiro. Segundo a promotoria, os laudos da perícia contestam a versão de disparo acidental. bit.ly/rba_porque_atirou

REVISTA DO BRASIL

Considerado o maior evento cultural de Cuba, a Feira do Livro de Havana recebeu uma multidão em sua 24ª edição, realizada no mês passado. O evento foi instalado na Fortaleza de San Carlos de La Cabaña, construída pelos espanhóis, e que sozinha já vale uma visita – foi prisão militar e, posteriormente, quartel-general da Revolução Cubana. Segundo os organizadores, na edição deste ano foram lançados mais de 850 títulos. A reportagem integra uma série publicada pela RBA com seis episódios retratando o cotidiano cubando e as expectativas da população diante da possibilidade de fim do bloqueio econômico imposto pelos Estados Unidos desde 1962. bit.ly/rba_cuba_livros


MAURO SANTAYANA

‘Não matarás.’ O mito do American Sniper Se o Egito Antigo deixou as pirâmides e Atenas e Roma seus templos e anfiteatros, o império norte-americano sobreviverá, quem sabe, no brilho mortal do sol instantâneo de Hiroshima, ou nos mitos do cinema

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ouis Wiznitzer, brasileiro, correspondente de jornais francófonos nos Estados Unidos, nos anos 1960 e 1970, gostava de citar uma frase que ficou famosa, atribuída ao membro dos Panteras Negras H. Rap Brown: “Este país nasceu da violência. A violência é tão norte-americana como a torta de maçã”, para explicar que os negros deveriam libertar-se da opressão por “todos os meios”, violentos ou não. Autor de biografia famosa, com o nome de Morra, Negro, Morra, H. Rap Brown foi condenado pela morte, no ano 2000, de um policial negro, Ricky Kinchen, e cumpre pena de prisão perpétua. A violência encontra-se historicamente enraizada, no entanto, não apenas dentro da sociedade, mas também na relação da república dos Estados Unidos da América com outros países, e talvez seja essa a razão do fascínio que ela exerce naquela sociedade, na política e na cultura. A violência também caracteriza o cinema típico norte-americano, das “séries” de TV aos westerns e filmes de gângster e de guerra, que retratam a relação da sua população com cada época, e a visão que ela tem de si mesma, e do restante do mundo. É o caso do filme American Sniper, campeão de bilheteria deste início de 2015, nos Estados Unidos, baseado em best-seller de Chris Kyle, um ex-membro de “forças especiais” na Guerra do Iraque. Branco, cristão e republicano, incensado pelos radicais do Tea Party, Chris Kyle não foi, ironicamente, morto por um terrorista contrário às intervenções norte-americanas. Mas por um soldado compatriota, “branco” e “convencional”, o ex-marine Eddie Ray Routh, condenado também à prisão perpétua pela morte de Kyle e de outro ex-soldado, Chad Littlefield. Se a história de H. Rap Brown e de Ricky Kinchen reflete as contradições da luta pelos direitos civis e a questão racial, a de Chris Kyle, Chad Littelfield e Eddie Ray Routh é emblemática da espetacularização e “patriotização” das relações exteriores norte-americanas. Em seu livro American Sniper, Chris Kyle afirma

ter matado, no Iraque, 160 pessoas, entre elas uma mulher que carregava em um braço uma criança e, no outro, uma granada. Seria herói o invasor que atira contra uma mulher que protege sua pátria, e coloca em risco a vida do próprio filho? Em tempos em que as crianças aprendem a matar em jogos de computador, nunca é demais lembrar que, por mais eficaz que seja militarmente, o sniper é basicamente um covarde, combate de longe, em condição de desigual vantagem contra o inimigo. Por essa razão, para nossa geração, o maior sniper da história continuará sendo não o herói de American Sniper, o “O Diabo de Rahmadi”, mas Vassili Zaitsev, o soviético que matou 242 soldados e oficiais alemães na Batalha de Stalingrado. Camuflado em uniforme branco, que naquele inverno de 1942 se confundia com a neve, e armado com um rifle Mosin-Nagant com mira telescópica, Zaitsev matou soldados aos quais se opunha ideologicamente, que haviam, com armas potentes e modernas, invadido o seu país, e que ao sair do território da União Soviética, escorraçados e perseguidos pelo Exército Vermelho, deixaram rastro de tortura, estupros e 20 milhões de mortos, a imensa maioria civis. No Antigo Testamento, Jeová pede a Moisés que grave, nas Tábuas da Lei, em quinto lugar, um mandamento que deveria ter sido o primeiro. Afinal, se Deus fez o Homem à sua imagem e semelhança, a melhor maneira de amá-lo sobre todas as coisas é amar e respeitar o Deus que reside nos outros seres humanos. “Não matarás”, poderiam dizer alguns, talvez, a não ser que o faças quando em defesa da tua pátria. Chris Kyle, que afirma ter “cumprido seu dever”, matou 160 seres humanos não para defender seus filhos, seu sangue, ou a sua terra, mas sob uma desculpa hipócrita, de que havia armas de destruição em massa no Iraque, nunca encontradas até hoje. Ferido no final da guerra por um morteiro, o capitão Vassili Zaitsev, que depois trabalhou em uma fábrica, nunca foi atingido por outro soldado russo. Morreu em 1991, em sua cama. REVISTA DO BRASIL

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AMBIENTE

O CRIME DA ÁGUA O governador Geraldo Alckmin não fez o que deveria para evitar prejuízos ao abastecimento, às economias regionais, à saúde da população e ao meio ambiente. No Direito brasileiro, isso tem nome: crime de responsabilidade Por Cida de Oliveira e Rodrigo Gomes 10

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ó prendendo muita gente podemos resolver a péssima gestão da água no nosso estado.” A afirmação foi feita em março de 2014 pelo então primeiro promotor do meio ambiente do Ministério Público de São Paulo (MP-SP), José Eduardo Ismael Lutti, dois meses depois de o governador Geraldo Alckmin (PSDB) admitir publicamente a severidade da crise hídrica no estado. Agora, no final de janeiro, o Conselho Superior do MP aprovou seu afastamento. Ele foi transferido para a Secretaria do Meio Ambiente,


DESERTO DA CANTAREIRA Instalação do artista e ativista Mundano, no leito seco numa das represas

TIAGO MAZZA CHIARAVALLOTI/NURPHOTO/CORBIS/LATINSTOCK

AMBIENTE

NACHO DOCE/REUTERS/LATINSTOCK

O TUCANO E OS BANQUEIROS Protesto aponta a ligação governo-Sabesp-dividendos

onde assumiu a gestão da Coordenadoria de Parques Urbanos, responsável pela gestão de dez parques na capital paulista, além de outros três em Carapicuíba, Santo André e Campinas. Lutti é coautor de uma ação civil pública ambiental ajuizada na Justiça Federal em São Paulo em outubro. Ele e os promotores do Grupo de Atuação Especial do Meio Ambiente (Gaema) de Piracicaba Alexandra Facciolli Martins e Ivan Carneiro Castanheiro, do Gaema

de Campinas Rodrigo Sanches Garcia e Geraldo Navarro Cabañas, mais o procurador Leandro Zades Fernandes, do Ministério Público Federal (MPF), querem que a Justiça imponha restrições e limites à Sabesp na exploração das águas remanescentes nos reservatórios do Sistema Cantareira, o mais afetado, inclusive no chamado volume morto. Além da companhia na qual o governo estadual tem pouco mais da metade das ações e Alckmin escolhe quem vai presidi-la, o processo coloca no banco dos réus outra autarquia do governo tucano, o Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado (DAEE), e a Agência Nacional de Águas (ANA). O que Lutti, o procurador e os outros promotores também querem é chamar a atenção à inação e falta de planejamento, especialmente dos órgãos ligados ao governo paulista, para evitar a situação de escassez hídrica. Eles alegam que o agravamento da crise se deve à exploração excessiva do Cantareira pela Sabesp, por anos seguidos, inclusive durante o atual período de seca, o que levou à degradação do sistema. Além disso, reforçam ser inadmissível

o argumento de imprevisibilidade de mudança dos padrões de chuvas. Afinal, há anos os órgãos envolvidos na gestão hídrica do sistema, o mais prejudicado no estado, já vinham sendo alertados. A ação pede que, por meio de medida liminar, seja concedida ordem para restringir o direito de uso da Sabesp sobre o sistema Cantareira, que coloca em risco também as bacias hidrográficas que o abastecem. Em resumo, que a Justiça Federal imponha limites e enquadre as ações da empresa comandada por Alckmin aos preceitos legais e técnicos para uma gestão sustentável e racional das águas remanescentes, antes que se esgotem definitivamente. Em outubro, a Justiça havia concedido liminar para que a segunda parcela do volume morto não fosse utilizada, mas o governo tucano entrou com recurso, cassando a liminar.

Crime de responsabilidade

Com a reeleição de Alckmin com 57% dos votos no primeiro turno, a mídia corporativa se sentiu mais à vontade para abordar o problema, que antes era tratado exclusivamente como de São Pedro. O noticiário agora se ocupa de cobrar alterREVISTA DO BRASIL

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MAURICIO LIMA

AMBIENTE

O SERTÃO DO SUDESTE Mundano retrata a seca da região que não tem mandacaru nem cisternas para aliviar a sede que vem por aí

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coberta por um discurso, segundo ele, fraudulento em relação à realidade da empresa, mais preocupados com a cotação das ações da companhia enquanto a população mais pobre era penalizada com o racionamento informal, por meio da chamada “redução de pressão”, que deixa bairros da periferia sem água por horas, às vezes dias.

CASO DE POLÍCIA Lutti: “Só prendendo muita gente”

SECRETARIA DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO

nativas de economia de água da população, em especial a mais pobre, que há meses já enfrenta o racionamento. Mas nem de longe associa a gestão do governo paulista – que sabia o que (não) estava fazendo – à mais grave crise no abastecimento da história. O que dirá cobrar dele sua responsabilização, inclusive na Justiça. E segundo especialistas, o governo pode ser cobrado criminalmente. O professor de Direito Internacional João Alberto Alves Amorim, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirma não haver dúvidas de que os agentes públicos envolvidos devem ser responsabilizados. “As provas são robustas. Há dez anos, o documento de outorga do Sistema Cantareira determinava a redução de dependência do manancial”, afirma Amorim, especialista em Direito Ambiental. “E o relatório Cenários Ambientais 2020, da Secretaria de Recursos Hídricos, já apontava, em 2009, um cenário trágico para 2015.” Ele não tem dúvidas quanto à inação do governo paulista e da direção da Sabesp, en-

Amorim lembra que o governador Alckmin apareceu em rede nacional garantindo que não haveria falta de água. “E pouco depois o discurso mudou”, destaca, referindo-se ao último debate do período eleitoral, em 2014, quando ele chegou a pronunciar a frase que virou uma letra de funk que circulou pela internet: “Não, não falta água em São Paulo, não vai faltar água em São Paulo”. Amorim vai além: “A atitude pode configurar crime de responsabilidade”. Para o professor, autor do livro Direito das Águas – Regime Jurídico da Água Doce no Direito Internacional e no Direito Brasileiro, é cabível a aplicação da Lei 1.079, de 1950, ligada à defesa da moralidade pública. “Apesar de antiga e muito pouco usada, é extremamente importante e atual, já que tipifica e disciplina os chamados crimes de responsabilidade, dentre outros, dos governadores de estado e de secretários de estado”, afirma. Os crimes de responsabilidade, segundo destaca, não são crimes no sentido li-


AMBIENTE

Perdas e danos

Cantareira + Alto Tietê

ALTO TIETÊ CANTAREIRA BAIXO COTIA

ALTO COTIA

O volume total dos sistemas é de 1,9 bilhão de litros de água. O Cantareira, que tem a pior situação, responde por mais da metade dessa capacidade de armazenamento

teral da palavra, uma vez que sua punição se limita a perda de cargo eletivo e cassação de direitos políticos. Em tese, a falta de medidas efetivas de contenção e mitigação dos efeitos da escassez hídrica, bem como de prevenção e planejamento nos últimos dez anos ou mais, as negativas do governo estadual em reconhecer e dar transparência à crise ao longo de 2014, podem vir a ser classificadas pela Justiça como crime de responsabilidade. Autora do livro Água Juridicamente Sustentável, a professora de Direito Clarissa Ferreira Macedo D’Isep, da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, também considera cabível a responsabilização por omissão. Para ela, cada agente gestor, em sua devida função, pode ser enquadrado pelo que deveria ter feito e não fez – omissão – ou pelo que fez de maneira equivocada. “Dentro dessas condutas, vamos identificar quais podem ser tipificadas – ou enquadradas – na esfera criminal, na esfera administrativa, e quais os danos comprovados que podem

RIO CLARO RIO GRANDE

Sistemas que abastecem a Grande São Paulo ser enquadrados na responsabilidade civil”, explica. De acordo com ela, as três esferas atuam em conjunto sob a mesma temática e nenhum dos envolvidos seria punido duas vezes pelo mesmo crime. “O meio ambiente é tão complexo que congrega as três responsabilidades ao mesmo tempo.” “PROVAS ROBUSTAS” Amorim: o governo pode ser cobrado criminalmente

MARCIA MINILLO/RBA

GUARAPIRANGA

Conforme Clarissa, para responsabilização civil é preciso apurar se houve dano. E sabe-se que houve. Além das torneiras secas, o estado teve seu desenvolvimento afetado pela falta de planejamento que reduziu a água nos reservatórios, embora o Cantareira tenha a situação mais grave. Há comprometimento na produção agrícola. E também de energia elétrica. Para garantir a geração, desvia-se água de outros sistemas, como a hidrovia Tietê. Via de navegação principalmente para o transporte de cargas, é fundamental para o escoamento da produção agrícola. De acordo com o diretor-presidente do Sindicato dos Trabalhadores no Transporte Fluvial e Lacustre do Estado de São Paulo, Osmar da Silva, já existe colapso no setor. Sem navegação prevista para todo este ano, 90% dos 5 mil aquaviários já foram dispensados e os demais estão em vias de demissão. “Não é fácil se recolocar no mercado uma mão de obra qualificada para o trabalho em embarcações, que passa muito tempo a bordo e não pode se qualificar para atividades mais comuns”, diz o sindicalista, que articula a absorção dos trabalhadores pelo ramo marítimo. Outro aspecto importante, passível de responsabilização, é a maneira como a Sabesp explora as represas, sem respeitar limites impostos pela ANA. Mesmo no período em que a estiagem se agravou, a compania manteve a vazão de água para a região metropolitana e a reduziu para as demais cidades abastecidas pelos rios que a compõem. Relator especial do Direito Humano à Água e ao Esgotamento Sanitário das Nações Unidas (ONU) e pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Belo Horizonte, Léo Heller é categórico. “Se tivesse havido um planejamento mais adequado, nós não estaríamos passando pelo problema que estamos passando. Certamente, com um planejamento estratégico, cuidadoso, de longo prazo, especialmente que levasse em conta as variações climáticas, não estaríamos passando por essa situação. Não é admissível que um bom prestador de serREVISTA DO BRASIL

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viço de abastecimento de água seja pego de surpresa pela variação do clima”, diz. São inadequadas também, segundo Heller, as manifestações dos gestores e autoridades públicas, de que existem alternativas técnicas. “Não é adequado que essas soluções sejam traçadas e implementadas depois que a crise se instala. Deveriam ter sido implementadas antes de terem esse impacto, para evitar tudo isso”. Ele endossa as declarações de sua antecessora, a advogada portuguesa Catarina de Albuquerque. Em outubro passado, em visita ao Brasil, a então relatora afirmou que, obviamente, a seca tem a ver com as alterações climáticas e, às vezes, sua gravidade foge ao controle. Mas que há uma parte que é previsível. “É por isso que, numa perspectiva dos direitos humanos, aquilo que digo para todos os governos é: planejem, adotem medidas, preparem-se”, declarou ao jornal O Globo, acrescentando que se a questão se aplicava tanto ao caso de São Paulo como a de outros locais no mundo. “E acho que isso é bastante razoável.”

Evidências de sobra

Nada disso foi feito. Conforme o Ministério Público paulista e o federal, havia estudos e mapeamentos de instituições e universidades renomadas, como a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que alertavam

MARCIA MINILLO/RBA

AMBIENTE

“QUESTÃO DE SAÚDE E SOBREVIVÊNCIA” Clarissa: “Responsabilização por omissão”

para o risco de seca. A gestão do Cantareira vinha sendo de altíssimo risco por desconsiderar métodos de segurança do sistema, como as Curvas de Aversão a Risco, que determinam quanto de água pode ser retirada das represas conforme o volume acumulado. Além disso, apontam um descompasso entre entrada de água no sistema e a quantidade retirada diariamente pela Sabesp, os cenários extremamente otimistas adotados pelas agências reguladoras para projeção da situação do sistema nos meses seguintes. A realidade, no entanto, era outra: o rápido esgotamento da primeira cota do volume mor-

to e os impactos da seca para além das torneiras secas: prejuízos ao meio ambiente e à saúde pública, danos à economia, ao desenvolvimento e ao patrimônio turístico. Nesse cenário desolador, o risco de desabastecimento vai para além da Grande São Paulo. Como o sistema represa águas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, a população de toda a região de Campinas e Piracicaba pode ser prejudicada. As chuvas vinham diminuindo ao longo de 2013. Em janeiro daquele ano, choveu metade da média histórica em três dos seis sistemas de represamento da Grande São Paulo. Em abril, somente o Sistema Rio Claro – que abastece 1,5 milhão de pessoas do bairro de Sapopemba, na capital paulista, e parte dos municípios de Ribeirão Pires, Mauá e Santo André, na região do ABC – recebeu chuvas acima da média. Desde agosto, o Cantareira – onde cabem 990 bilhões de litros de água, o suficiente para encher 990 milhões de caixas de água, mas que em 1º de fevereiro deste ano chegou a estar com 5% da capacidade, incluindo o volume morto – não teve mais chuvas dentro da média de 2013. Em janeiro de 2014, mês de chuvas intensas, o sistema recebeu somente 44% de sua média histórica. Em 2014 foi registrada a pior entrada de água no Sistema Cantareira de sua história, com média de apenas 8,7 mil

Calamidade anunciada 2003

2004

Seca leva o sistema Cantareira a 1,6% do volume. Obras como a transposição do Rio Paraíba do Sul e a busca de água em São Lourenço já são cogitadas

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Renovação da outorga do Cantareira determina a realização de obras para redução da dependência daquele sistema em até 30 meses e a produção de plano de contingência para emergência

REVISTA DO BRASIL

2009 Estudo da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e trabalhos acadêmicos indicam risco de seca em São Paulo entre os anos de 2014 e 2015

2010

2012

Cheia histórica no Sistema Cantareira faz a Sabesp desconsiderar sistemas de gestão de risco, sob justificativa de possuir grande estoque de águas

A Sabesp já tinha conhecimento e fazia projeções de risco sobre a possibilidade de estiagem severa. Informação será repassada aos acionistas na Bolsa de Valores de Nova York no ano seguinte

2013 Volume de chuvas fica bem abaixo da média em vários meses do ano. Vazão de entrada no Cantareira também cai, mas a Sabesp ignora os mecanismos de segurança e retira água normalmente


litros por segundo, o que não levou o governo paulista a reduzir a retirada de água para abastecimento, que ficou em 18,53 mil litros por segundo, em média. Em janeiro do ano passado, a Sabesp devia retirar do Cantareira, no máximo, 29 mil litros por segundo, pois o sistema estava com 27,2% da capacidade. No entanto, a companhia retirou 33 mil litros por segundo. No mês seguinte, seu nível baixou para 21,9% e a vazão para abastecimento devia ser de, no máximo, 28 mil litros por segundo – quando a retirada foi de 32,64 mil litros por segundo. Assim, a Sabesp, com aval da ANA e do DAEE, retirou muito mais do que o permitido pelo principal instrumento de gestão para prevenir o risco de desabastecimento na região metropolitana de São Paulo. Em 2009, a Secretaria do Meio Ambiente, na gestão do então governador José Serra (PSDB), produziu o estudo Cenários 2020, com a colaboração de 200 especialistas de diversas áreas. Seu relatório previa períodos extremos de chuva, confirmados em 2010 e 2011, e seca a partir de 2014. E destacava que em 2015 a crise atingiria também a bacia dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, que fazem parte do Sistema Cantareira. Um outro relatório, intitulado Plano da Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, alertava para o fato de o Cantareira ser um sistema com “altas garantias de atendimento, mas com déficits de grande magnitude”. A variação regular do clima, que al-

2014 Crise é admitida, mas Alckmin descarta risco de falta de água e racionamento. Segue a retirada de água maior que o permitido pelas Curvas de Aversão a Risco. Volume morto começa a ser utilizado

2015 Em meio ao tempo seco, Alckmin admite rodízio, mas condiciona medida ao volume de chuvas até o final de março. Em fevereiro as chuvas foram mais intensas e o nível das represas subiu pela primeira vez em seis meses

JAVIER BELVER/EFE

AMBIENTE

“FALTOU PLANEJAMENTO” Heller: “Situação inadmissível”

terna períodos chuvosos e secos, é outro ponto. Para a pesquisadora em Ciências Atmosféricas da USP Maria Assunção Silva Dias, não há surpresa. Como entre 2009 e 2013 São Paulo teve chuvas até 30% acima da média, era normal que viesse um período de seca na sequência. “A crise expôs a fragilidade do sistema, que opera no limite. Bastaram três meses de pouca chuva para ver que ele não se sustenta”, disse em entrevista à BBC Brasil. Em 2004, os pesquisadores do Departamento de Ciências Atmosféricas do Instituto Astronômico Geofísico da Universidade de São Paulo (IAG/ USP) alertavam para as ilhas de calor e seu impacto nas chuvas na região metropolitana. A própria Sabesp chegou a avisar seus investidores na Bolsa de Valores de Nova York e à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) brasileira, no relatório anual 20-F de 2013, que desde 2012 acompanhava uma redução no volume de chuvas na região. E que havia risco de uma estiagem na região do Sistema Cantareira que poderia exigir ações mais severas de redução do consumo e consequente redução dos ganhos. O relatório, porém, não indica nenhuma obra estrutural que tenha sido realizada para evitar problemas de abastecimento. Em 2003, uma estiagem na Grande São Paulo baixou o nível do Cantareira para 1,6% do volume útil; o do Alto Tietê

para 17%; do Guarapiranga para 19,5%; do Alto Cotia para 5,3% e do Rio Claro, 27,2%. O melhor foi o da Billings, com 62,1%. Naquele ano, a Sabesp apontou a necessidade de buscar água no Rio São Lourenço, no município de Ibiúna, a 83 quilômetros da capital. A licitação só seria feita em 2012, com entrega da obra prevista para 2018. Ainda em 2003, a própria Sabesp chegou a relacionar obras que poderiam ser realizadas para evitar que a situação se repetisse. Em 2004, a ANA e o DAEE renovaram a outorga à Sabesp – autorização para retira de água do Sistema Cantareira – mediante o compromisso de a companhia providenciar, em até 30 meses, estudos e projetos para reduzir sua dependência do Cantareira, bem como a elaboração, em 12 meses, de um plano de contingência para situações de emergência. Nada foi feito. Ao longo de 2014, a ANA cobrou um plano de contingência da Sabesp. Também desconsiderou os dois esboços apresentados pela companhia, pois, em vez de projetar a redução da retirada de água e trabalhar com cenários pessimistas, a estatal propunha retirar mais água do reservatório. As propostas atuais de Alckmin são as mesmas de uma década atrás. A transposição das águas da bacia do rio Paraíba do Sul, que abastece o Rio de Janeiro, já era considerada. Hoje a proposta é interligar as represas Jaguari e Atibainha, separadas por 15 quilômetros. Outra ação cogitada era aumentar a capacidade de tratamento de água, que em 2003 era de 65 mil litros por segundo, para 73 mil litros, até 2006. O que seria suficiente para abastecer a região com segurança até 2010, de acordo com as projeções do crescimento populacional. Clarissa Ferreira, da PUC-SP, destaca que é plenamente possível acreditar na responsabilização. “Isso é possível e necessário para que os próximos gestores e os gestores atuais não pensem que proteger o meio ambiente, a água, as florestas, os recursos naturais seja um modismo. Pelo amor de Deus. É uma questão de saúde e sobrevivência.” REVISTA DO BRASIL

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ECONOMIA

Superรกvit sem mal

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ECONOMIA

C

É possível melhorar a arrecadação e a contabilidade do governo cobrando mais de quem tem mais.

ldades E não mandar a conta do ajuste para os trabalhadores – emprego e renda são capazes de proteger a economia

BILDERBOX/AGE FOTOESTOCK/EASYPIX BRASIL

Por Ana Cristina da Conceição

omo qualquer síndico de prédio, todo governo precisa mesmo estar preocupado com o equilíbrio das contas públicas, gastar de acordo com o que arrecada, e na falta de caixa para dar conta de seus planos, financiar-se dentro de sua capacidade de pagar. Mas no apagar das luzes de 2014 o governo surpreendeu ao anunciar medidas que transferem parte da conta desse equilíbrio fiscal para as costas dos trabalhadores. Foi esse o entendimento de centrais sindicais e movimentos no que se refere ao impacto das Medidas Provisórias (MPs) 664 e 665, que, se não forem modificadas pelo Congresso ou via negociações do governo com a sociedade, restringem o acesso ao seguro-desemprego, ao abono salarial, à pensão por morte, ao auxílio-doença e ao seguro-defeso, pago aos pescadores artesanais. Para as lideranças dos trabalhadores, ficou evidente que o governo optou pelo caminho errado ao abrir o saco de maldades para economizar pouco mais de R$ 18 bilhões em 2015, dentro do esforço de proporcionar superávit primário (economia para pagar juros da dívida) equivalente a 1,2% do Produto Interno Bruto (PIB). A edição das medidas veio acompanhada de um movimento de alta na taxa básica de juros, de ampliação no crédito imobiliário para os imóveis de valor acima de R$ 750 mil e da disposição em reajustar em 4,5%, e não em 6,5%, a tabela do Imposto de Renda. Em um país onde os salários a partir de R$ 1.868,23 são tributados na fonte, enquanto os lucros e dividendos distribuídos a sócios e acionistas de empresa e ganhos de capital abaixo de R$ 20 mil estão isentos, a reação negativa foi instantânea. Para os sindicalistas, o governo improvisou mais um puxadinho fiscal que agrava o injusto sistema tributário brasileiro em vez de sinalizar com uma reforma mais ampla que simplifique e conduza para uma formato mais progressivo – no qual quem ganha mais deve pagar mais. A taxação sobre o patrimônio no Brasil, por exemplo, é uma das menores do mundo, e projetos de lei para regulamentar o imposto sobre grandes fortunas

repousam há anos nas gavetas do Congresso Nacional. O cenário levou organizações da sociedade a, mais do que reclamar das medidas alegadas como necessárias pelo governo, reapresentar uma série de propostas que vêm sendo debatidas, com pouco ou nenhum eco nem do Executivo, nem no Legislativo. O presidente do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco Nacional), Claudio Damasceno, defende uma reforma tributária que mande a conta para os mais ricos como uma necessidade mais urgente do que recorrer à prática neoliberal. “Hoje o governo investe na arrecadação fácil de quem não pode sequer reclamar e deixa de buscar a tributação em cima de quem deveria”, observa Damasceno. Proposta do Sindifisco é uma das que tramitam no Congresso desde 2013, assinada pelo deputado Vicente Cândido (PT-SP). O presidente da CUT, Vagner Freitas, admite haver empecilho para debater mudanças estruturais. “Há muito tempo que se discute a reforma tributária e obviamente temos dificuldades no Congresso Nacional. Afinal, os detentores do enriquecimento estão lá”, diz. “Mas não podemos concordar com medidas que retiram da área previdenciária as fontes de capitalização para o ajuste fiscal”, pondera, lembrando que não são poucas as propostas dos trabalhadores que estão na mesa há muito tempo, esperando que governo e Congresso façam a “verdadeira lição de casa”.

Grandes fortunas

A tributação sobre grandes fortunas está prevista no artigo 153 da Constituição Federal (artigo 153, VII) desde 1988, mas até hoje a medida depende de aprovação de projeto de lei complementar estabelecendo como será feita essa cobrança. Há vários projetos de lei parados propondo diferentes alíquotas de tributação e critérios para definir grandes fortunas. Um estudo da subseção do Dieese na CUT estima que se o governo estabelecesse uma alíquota de 1,5% sobre o patrimônio das 5 mil famílias mais ricas arrecadaria R$ 32,44 bilhões ao ano. O Sindifisco REVISTA DO BRASIL

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DINO SANTOS/CUT

ECONOMIA

QUEM TEM, CUIDA Não se faz ajuste fiscal tirando direitos trabalhistas, dizem as centrais, que vão às ruas defender o que se custou a conquistar

também defende a regulamentação desse imposto, mas ainda não concluiu estudos para construir o seu modelo, nem fez simulações de arrecadação potencial. A entidade defende o fim da isenção de imposto de renda para os rendimentos das pessoas físicas provenientes de lucros ou dividendos distribuídos a sócios e acionistas de empresas. A isenção está prevista na Lei 9.249/1995. Segundo Claudio Damasceno, essa isenção permite, por exemplo, que um empresário pessoa física receba por ano R$ 10 milhões, declare um pro-labore mensal irrisório e não pague um centavo de imposto. O Sindifisco propõe alíquota de 15% para lucros e dividendos distribuídos acima de R$ 60 mil e calcula que essa isenção representava em 2013 uma renúncia tributária de R$ 18,12 bilhões. A mesma Lei 9.249/1995 isentou da tributação a remessa de lucros ao exte18

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rior das empresas estrangeiras, o que desestimula o reinvestimento desses lucros no país. “Em 2014, as remessas brutas de lucros e dividendos, segundo o Banco Central do Brasil, totalizaram US$ 26 bilhões que saíram do país sem pagar um só centavo de imposto”, cita o presidente da UGT, Ricardo Patah. O Sindifisco também sugere a cobrança de uma alíquota única de 15% sobre essas remessas. Em estudo publicado em junho de 2014, o sindicato estima que, entre 1996 e 2013, essa renúncia tributária somou R$ 91,2 bilhões. Na justificativa do PL 6.094/2013, essa tributação traria arrecadação de R$ 6,5 bilhões em 2013.

Propriedades, heranças e luxo

As centrais sindicais também defendem a revisão do Imposto Territorial Rural (ITR), com a criação de alíquotas, faixas de tributação e novos parâmetros

para elevar a progressividade do tributo – quando maior a propriedade, maior a incidência. Segundo cálculos da subseção do Dieese na CUT, feitos com base em levantamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), em 2012 o país possuía 5,5 milhões de imóveis rurais e o ITR tinha peso de 0,02% do PIB, abaixo de qualquer outro país. “Aqui, quanto mais terra você tem, menos você paga”, critica Vagner Freitas. Pelos cálculos da central, se o governo elevasse esse peso para 0,05% do PIB progressivamente, em três anos teria um potencial de arrecadação de cerca de R$ 2,6 bilhões, em valores atualizados. Segundo o Dieese, o aumento do imposto incidiria principalmente sobre os grandes latifúndios, já que pouco mais de 2% das propriedades representam cerca de 50% das terras – 3,75 milhões de minifúndios concentram apenas 10,2%.


ECONOMIA

Superávit com justiça fiscal Propostas dos trabalhadores1

Potencial de arrecadação2

Imposto sobre Grandes Fortunas

R$ 32,4 bilhões

IR sobre Lucros e Dividendos Distribuídos por Empresa a Sócios e Acionistas

R$ 18,12 bilhões

IR sobre Remessa de Lucros

R$ 6,5 bilhões

Revisão do Imposto Territorial Rural

R$ 2,6 bilhões

Revisão do Imposto Sobre Heranças (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD)

R$ 2 bilhões

Melhoria do Sine

R$ 2,5 bilhões

IPVA sobre veículos aquáticos e aéreos

R$ 2,7 bilhões

(1) Centrais sindicais, Sindifisco Nacional e Dieese (2) Estimativas feitas por ocasião da apresentação de propostas ou projetos de lei: os valores não estão necessariamente atualizados.

Outro imposto que no Brasil tem peso irrisório é o aplicado sobre heranças, um dos menores do mundo. Segundo estudo da consultoria EY (antiga Ernest & Young), a alíquota média cobrada pelos estados brasileiros é de 3,86%, distante do que é praticado no Chile (13%), na França (32,5%) ou na Inglaterra (40%). Estados como Ceará, Bahia e Santa Catarina, com maior alíquota do Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), chegam a 8%, enquanto a máxima na França é de 60% e na Alemanha, na Suíça e no Japão, de 50%. A subseção do Dieese na CUT calcula que um aumento da alíquota de 3,4% para 5,6% representaria arrecadação adicional de R$ 2 bilhões por ano. O Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) também padece das mesmas contradições. O proprietário de um carro popular recolhe, mas dono de jatinho, helicóptero, lancha, iate ou jet sky não paga nada. A isenção se deve ao entendimento do Supremo Tribunal Federal de que o imposto estadual incide apenas sobre veículos terrestres. No Brasil, país que figura entre as maiores frotas de aeronaves do mundo, o Sindifisco estima que a cobrança do imposto geraria uma arrecadação anual em torno de R$ 2,7 bilhões. A cobrança do IPVA, inclusive sobre veículos aquáticos, está prevista numa Proposta de Emenda

Constitucional (PEC 283) há dois anos. Pouco antes do último carnaval, o senador Lindbergh Farias (PT-RJ) apresentou uma série de emendas às MPs 664 e 665. Todas cutucam o “andar de cima”: aumento de 15% para 20% da alíquota da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) paga pelos bancos; novas alíquotas na tabela do Imposto de Renda da Pessoa Física (IRPF) para taxação de grandes fortunas; revogação da isenção de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) sobre lucros e dividendos; revogação da isenção de IRRF para remessas de lucro ao exterior; e aumento das alíquotas do ITR para propriedades com mais de mil hectares. Lindbergh, em sua justificativa, cita o economista francês Thomas Pikkety e afirma: “É possível estabelecer alíquotas maiores e uma tabela crescente de acordo com patamares de renda mais elevados. Não é aceitável que, por falta de correção da tabela, aqueles que ganham rendas menores passem a pagar imposto enquanto outros têm sua renda aumentada, mas a sua alíquota permanece a mesma. É o caso dos ricos e milionários”.

Reações adversas

“As medidas provisórias vieram fundamentalmente para cortar gastos”, critica o diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, lembrando que sempre é

necessário discutir a justiça das ações que o governo vem anunciando. “Uma coisa é mudar as regras do seguro-desemprego quando o mercado está contratante. Outra é fazer isso quando o mercado não está favorável”, acrescenta. Ele observa que se era para melhorar o sistema, sobretudo com ações para evitar a ocorrência de fraudes numa ponta e, na outra, de se combater a rotatividade, deveriam ter sido adotadas em 2009. “Nossa base é formada principalmente por jovens que estão no primeiro emprego. Se aumentar de seis para 18 meses a carência para pedir o seguro-desemprego, vai ficar mais difícil para esses jovens se manterem”, observa Patah, da UGT. O cenário de baixo crescimento econômico combinado com o aumento de tributos sobre combustíveis e a elevação da taxa de juros apontam ainda mais para o caminho da recessão. “Não adianta manter uma política de juros altos que impeça o investimento”, acrescenta Freitas, da CUT. “De que serve uma política de inflação controlada com desemprego?” “A gente não consegue entender a lógica perversa dessa brincadeira”, comenta o presidente da Central dos Sindicatos Brasileiros (CSB), Antonio Neto, citando o veto presidencial à correção de 6,5% da tabela do Imposto de Renda Pessoa Física 2015, outra medida que pune os trabalhadores e a classe média assalariada. “Apoiamos um projeto (na campanha eleitoral) de desenvolvimento e avanço das conquistas sociais. Essa mudança de rumo é muito acentuada”, comenta. A surpresa inicial deu lugar à indignação e as centrais passaram o mês do carnaval elaborando um calendário de ações e mobilizações na rua e no Congresso para derrubar as medidas provisórias, combater a rotatividade e informalidade nas relações de trabalho e discutir uma política industrial voltada para a retomada do crescimento econômico. O professor André Biancarelli, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), lembra que faltou uma sinalização mais forte por parte da equipe econômica na direção do investimento público. Ele observa que o ajuste fiscal em momentos de baixo cresREVISTA DO BRASIL

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IMPOSTO INVERSO Vagner Freitas: “Aqui, quanto mais terra você tem, menos você paga”

cimento econômico reforça a queda da demanda e desestimula o investimento privado. “Sem crescimento tudo fica mais difícil: é preciso fazer mais cortes de gastos e isso é mais cruel, porque prejudica o trabalhador em geral.” Para o professor, o governo deveria ter combinado medidas difíceis, como o aumento dos combustíveis, com outras socialmente mais justas, como sinalizar com a taxação das grandes fortunas. Biancarelli critica a ideia de que o governo deve cortar gastos e frear a economia para recuperar a confiança do setor privado. O professor lembra que o go-

verno já fez uma série de concessões, inclusive na nomeação de ministros, e ao apostar numa política econômica mais conservadora, arrisca-se a perder o apoio dos trabalhadores sem garantir o apoio das classes dominantes. “É uma aposta arriscada em um momento em que a economia internacional não vai bem. O momento político também não é dos melhores. É preciso fazer um aceno mais à esquerda, que foi quem decidiu a eleição”, pondera. “A solução de qualquer problema fiscal é sempre o crescimento econômico e não o corte de gastos”, afirma o professor

DINO SANTOS/CUT

ECONOMIA

João Sicsú, do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que prevê dois anos difíceis em 2015 e 2016, a menos que haja uma reviravolta no campo das decisões políticas. Ele lembra que as dificuldades econômicas foram criadas pelo próprio governo, ao desestimular a economia a partir de 2011. Problemas com superávit primário estão relacionados não aos gastos e sim aos mais de R$ 100 bilhões em desonerações feitas pelo governo. Ele considera os cortes desnecessários e acrescenta que a situação fiscal do país nem é assim tão grave. “Em 2002/2003, no governo Fernando Henrique, a relação dívida/PIB estava acima de 60%. Hoje, está na faixa dos 30%, muito melhor que países como Estados Unidos, Itália e Alemanha.” Para Sicsú, é hora de o governo escolher se governa para os pobres e para a classe média, “mandando a conta para os ricos e para os banqueiros”, desafia. O professor da UFRJ lembra que mais de dois terços dos benefícios da Previdência pagam um salário mínimo. “Pobre gasta dinheiro no supermercado e estimula a economia. Quando o governo tira dinheiro do rico, está tirando da sua poupança financeira, do dinheiro que ele manda para o exterior. Os ricos podem pagar e nem por isso vão deixar de comprar carro de luxo, iate e jatinhos.” Colaborou Maurício Thuswohl

Combate à informalidade e à rotatividade Em resposta às medidas anunciadas pelo governo, as centrais sindicais centram fogo em propostas para combater a informalidade e a rotatividade no trabalho e, por tabela, prevenir distorções em benefícios como o seguro-desemprego. Entre essas propostas está a ratificação da Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), contra a dispensa imotivada. Outra medida é a regulamentação do parágrafo 4º do artigo 239 da Constituição: empresas com índice de rotatividade acima da mé20

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REVISTA DO BRASIL

dia do setor em que atuam deveriam fazer uma contribuição adicional para o financiamento do seguro-desemprego. A CUT propõe a melhoria do Sistema Nacional de Emprego (Sine) – que envolve União, estados e municípios em políticas de recolocação e qualificação, por exemplo, para promover um rápido e melhor retorno do desempregado e assim proporcionar uma economia de R$ 2,5 bilhões por ano, com a consequente redução do número de parcelas sacadas do seguro-desemprego. Segundo

o presidente do Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT), Quintino Severo, que também é secretário de Finanças da central, um investimento em torno de R$ 500 milhões seria suficiente para a melhoria do sistema. “Isso permitira cadastrar dados do trabalhador imediatamente após a demissão e indicar uma nova vaga compatível com a área de atuação, formação e a faixa salarial anterior. “ Ainda no quesito combate a fraudes, o presidente da CSB, Antonio Neto, lembra que o

Decreto 7.721/2012 condiciona o benefício à matrícula e frequência em curso de qualificação profissional. Caberia ao governo monitorar essa frequência. Já o presidente da UGT, Ricardo Patah, defende que todas as demissões sejam homologadas nos sindicatos e não somente a dos trabalhadores com mais de um ano de vínculo empregatício. “É uma forma de inibir a rotatividade e trazer maior vigilância para situações que cheiram a descumprimento das regras”, observa o dirigente.


MARCIO POCHMANN

O crescimento volta quando? Sem crescimento econômico, especialmente nos países ricos, as turbulências políticas devem ser mais acentuadas. E a viabilidade das economias de mercado, mais questionadas

E

sta pergunta não quer calar. Como se sabe, desde a crise de dimensão global iniciada em 2008 que os países ricos ingressaram numa maré de baixo dinamismo econômico combinada com a piora dos indicadores sociais, como o desemprego, desigualdade e pobreza. Quase sete anos se passaram e o crescimento sustentado das economias dos Estados Unidos, da União Europeia e do Japão não voltou sa se manter como outrora. As medidas econômicas adotadas até aqui se apresentam tão restritivas, que tornou impossível incluir a totalidade da população no mesmo projeto de país em curso. Ademais, a economia dos países ricos registra outros obstáculos que podem ser destacados. Na sequência, apresentam-se alguns dos principais freios à sustentação do crescimento econômico no centro do capitalismo mundial. Inicialmente, o custo ampliado da globalização neoliberal, que inspirada na abertura dos mercados acirrou ainda mais competição, assentada fundamentalmente na redução do peso do trabalho na produção. Além da diminuição da participação dos salários na renda nacional dos países ricos, processa-se o deslocamento de empresas e, por consequência, dos empregos para outros países, sobretudo asiáticos, como a China. Dessa forma, o centro capitalista mundial enfraquece não apenas a sua estrutura produtiva local, incapaz de motivar como no passado a expansão interna da economia e sustentá-la por meio do consumo avantajado dos trabalhadores. O resultado tem sido a concentração da renda e riqueza em poucas mãos. Na sequência, passa-se a alguns dos principais constrangimentos de natureza ambiental. Até pouco tempo atrás, a prosperidade era tratada como um fim em si mesmo, fazendo valer a importância de uma cidade pela quantidade de chaminés emitindo fumaça escura. Nos dias de hoje e no futuro, contu-

do, ganha cada vez mais terreno o estabelecimento de regras e normas para a produção que não contribua ainda mais para os problemas do aquecimento global. O avanço tecnológico tem sido identificado com o principal aliado dessa nova cruzada, porém os resultados até o momento não são estimulantes tanto para o meio ambiente como para o aumento da produção. Por fim, a atuação do Estado com relação assimétrica de poder das forças privadas do mercado. As grandes corporações transnacionais, cada vez maiores, sobressaem seus faturamentos em relação aos orçamentos dos governos, o que torna comprometedora e viciada as relações da economia com a política. Os interesses econômicos, sociais e políticos concentram-se no curto prazo, como aqueles que se associam à própria manifestação da corrupção, por meio da frequente compra de facilidades. O endividamento dos Estados, por outro lado, serve também de aprisionamento das finanças públicas à lógica dos mercados financeiros, centrados no rentismo e não na plena produção e emprego da força de trabalho. A compressão dos gastos públicos para assegurar o ganho gordo dos financistas compromete a qualidade dos serviços de responsabilidade do Estado, sobretudo saúde e educação. Isso no momento em que a demografia aponta para a elevação da quantidade dos inativos no conjunto da população economicamente ativa. Por força da elevação na expectativa de vida da população, cresce a presença da parcela com mais idade no conjunto dos habitantes, tornando mais exigente os ganhos de produtividade para sustentar o crescimento da economia. O futuro do capitalismo, nestes termos, está ainda por ser escrito. Sem o crescimento econômico, especialmente nos países ricos, as turbulências políticas devem ser mais acentuadas e questionadoras da viabilidade das economias de mercado. REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

Tem veneno até na pinga João Pedro Stédile, do MST: temos de fazer um trabalho civilizatório de alertar a população: é um crime o que está acontecendo por conta do agronegócio. “Estão tendo lucro a peso de vidas humanas” Por Paulo Donizetti de Souza 22

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oão Pedro Stédile não vê mais como prosperar, no Brasil, a luta pela reforma agrária tal como entendida sob o senso comum de repartir o latifúndio e entregar para o sem-terra. “É isso mesmo, na essência, romper com a grande propriedade. Porém, os projetos feitos pelos instrumentos do Estado só se viabilizaram, no passado, porque eram política combinada com um projeto de desenvolvimento nacional que objetivava desenvolver a indústria para o mercado interno”, diz. O movimento avalia que a questão agrária não pode se resumir ao objetivo de segurar as pessoas no campo. “Não é apenas resolver um problema de trabalho. Tem de ser para resolver o problema do veneno, da alimentação. De garantir um futuro, fazer uma agricultura que respeite o meio ambiente, a biodiversidade.” Enfim, deve integrar um novo modelo de desenvolvimento, que una progresso industrial e sustentabilidade. Stédile critica a permissividade no uso de agrotóxicos já proibidos em outros países pela agressividade ao ambiente e à saúde. Cita pesquisas que associam o veneno ao crescimento da incidência de doenças como câncer de próstata e de mama, mal de Parkinson e a problemas de infertilidade. Alerta que, no cigarro, a má fama fica com a nicotina, que só vicia – o que mata são produtos químicos


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usados, sobretudo, no cultivo do fumo. E que a produção em larga escala de cana-de-açúcar leva o veneno também para a aguardente: “Pode largar mão de tomar pinga. No Brasil se bebe cachaça há 400 anos, mas antigamente não tinha veneno. Agora tem”. Ele vê o cenário político-institucional dominado pelo poder econômico. Avalia que a burguesia industrial perdeu a oportunidade de fazer um pacto de desenvolvimento porque prefere colocar o dinheiro na especulação. “Por isso foram contra a CPMF. O dinheiro deles está no banco, não na fábrica e na produção.” A quantas anda o potencial agressivo dos alimentos que a população consome?

GERARDO LAZZARI/RBA

O agronegócio tem como único objetivo o lucro, não importa se vão destruir a natureza, usar venenos, desempregar pessoas. Nos últimos dez anos, apesar de termos um governo progressista, o agronegócio expulsou em torno de 4 milhões de assalariados. O trabalho humano foi substituído por máquinas e pelo veneno.E não é uma necessidade agronômica. Para produzir não precisa veneno, usado como uma forma de substituir a mão de obra que antes fazia as práticas agrícolas com tempo de trabalho, por exemplo a capina, um plantio mais cuidadoso. Agora, é máquina e veneno. Como são monoculturas em larga extensão – ou só soja, ou só laranja, ou só algodão, ou só pasto – têm de matar, na lógica deles, todas as outras formas de vida vegetal ou animal. Não praticam uma agricultura. Querem produzir uma commodity.

O Instituto Nacional do Câncer tem alertado que o veneno se acumula no organismo e começa a atacar células mais frágeis. Por isso tem aumentado a incidência de alguns tipos de câncer

O veneno, em si, também é um negócio.

Há uma aliança de interesses. A Monsanto, por exemplo, fornece fertilizantes, veneno, e compra soja. A mesma coisa a Cutrale com a laranja. A mesma empresa ganha dinheiro com veneno e controlando o mercado, que tem origem nas fórmulas desenvolvidas pela Bayer, pela Basf, pela Du Pont, para os negócios das guerras. Na Primeira e na Segunda Guerra Mundial usaram muito. Depois, na Guerra do Vietnã. Quando terminaram as guerras, as fábricas de veneno pra matar gente e floresta em larga escala foram adequadas para a agricultura. Agora não é mais em larga escala?

São as mesmas empresas. E os efeitos são de extrema gravidade. Um punhado assim de terra (junta as mãos em concha) tem mais de mil formas de vida. São aqueles bichinhos invisíveis, bactérias, que formam os nutrientes, senão a terra não produz nada. O veneno mata essas formas de vida. E contamina a água. Todas as grandes cidades do Brasil já têm água contaminada com mais de 20 princípios ativos de venenos agrícolas, inclusive em São Paulo. Essa água que a Sabesp fornece, aparen-

temente boa, mesmo sendo considerada potável, tem mais de 20 contaminações. A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) ainda considera tolerável porque está dispersa. Só que ao tomar essa água todos os dias aquele veneno vai se acumulando. Como o consumidor pode imaginar alguma gravidade se ele, como diz o samba, “bebe sim, come sim, e está vivendo...”? Não seria alarmismo falar em veneno?

É uma necessidade da população saber o que tem naquele alimento. Em relação à água, que é mais problemático, os graus de contaminação estão acima de qualquer país da Europa. Temos uma campanha nacional contra o uso do agrotóxico, para pressionar o governo a mudar a legislação e baixar os índices de toxicidade. Nos alimentos, a única coisa que a Anvisa faz é avisar. Fazem uma pesquisa a cada seis meses nos supermercados, só têm dois laboratórios no país que fazem, quando deveria haver um por cidade, e te avisam. Já estamos cansados de saber. Mas vamos avisar os leitores: os produtos que têm mais agrotóxico são o tomate, o pimentão, o morango e a maçã. Ultrapassam o tolerável. Se você está acostumado a, toda semana, comer maçã, é claro que vai acumular mais veneno do que quem come banana. Se está acostumado a sempre fazer a comida com pimentão, está frito, porque o pimentão vai transferir para o seu organismo um índice maior de veneno. Mas se as pessoas não sentem os efeitos...

Aí vem a maior gravidade: os cientistas e médicos que trabalham no Instituto Nacional do Câncer (Inca) têm feito várias pesquisas e alertado que o veneno, quando se acumula no organismo, começa a atacar as células mais frágeis. É por isso que tem aumentado a incidência de alguns tipos de câncer, sem relação com a idade das pessoas. Você pode ter câncer de próstata com 40 anos. Tem mulheres com 20, 30 anos, com câncer de mama. Por quê? Veneno. O professor Wanderlei Pignatti, da Universidade Federal do Mato Grosso, pesquisou durante dez anos mulheres de uma região do estado e encontrou resíduos de glifosato no leite materno. As mães achavam que estavam dando o melhor alimento do mundo. Não sabiam que através do alimento concentravam o veneno absorvido no leite. E as crianças, ainda bebês, recebendo as primeiras doses. Ainda assim, o uso dos agrotóxicos não preocupa pouco as pessoas?

Gosto dessa pergunta, pois nós, como movimento social e como esquerda em geral, temos de fazer um trabalho civilizatório de alertar a população: é um verREVISTA DO BRASIL

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dadeiro crime o que está acontecendo por conta do agronegócio. Eles estão tendo lucro a peso de vidas humanas. O Inca advertiu que, a cada ano, surgem 500 mil novos casos de câncer no Brasil. Grande parte vem do uso de venenos agrícolas. Mesmo as duas causas aparentes maiores, o tabaco e o álcool, no caso brasileiro: por que tem incidência maior de câncer no tabaco? Porque para produzir vão 30 tratamentos de veneno por ano. Aquele veneno vai para a folha e, depois, você aspira, da pior forma, vaporizado. Vai direto para a garganta e o pulmão. A fama ruim do cigarro é a nicotina, mas a nicotina não causa câncer. Ela vicia. O veneno está no tabaco. A mesma coisa vale para a cachaça. Vou absolvê-la, porque conheço essa região do norte de Minas, e na cana-de-açúcar dali, além de ser um microclima e uma variedade que só dá lá, portanto produz uma cachaça muito gostosa, não usam veneno, pois são pequenas propriedades. Já em São Paulo, toda a cana é cultivada com altas doses de veneno. Você, que é peão e está acostumado, pode largar mão de tomar cachaça. A cana tem veneno, quando se retira o mosto, fica a essência, transformada em álcool, junto com o veneno. Ao se tomar com frequência, vai absorvendo. Por isso que tem aparecido câncer entre os alcoólatras. Não é a cachaça o mal pior. Toma-se cachaça há 400 anos no Brasil e antigamente não tinha veneno, agora tem. As organizações têm conseguido ampliar a cultura do orgânico nos assentamentos?

Não é fácil mudar do dia para a noite. Até o Lula ganhar as eleições não havia faculdade que ensinasse agroecologia, o agrônomo não sabia como produzir com outras técnicas, na faculdade só se falava em adubo químico e veneno. Já estamos tendo cursos de agronomia baseados na agroecologia. Olha que demorado. Tem de formar os agrônomos, para que comecem a dar aulas para outros agrônomos e multiplicar o conhecimento, que é universal, das técnicas de agroecologia. Tivemos a sorte de ter aqui a maior cientista da agroecologia de solos, a professora Ana Maria Primavesi, que tem 92 anos e produziu o conhecimento científico que embasa isso. Depois, tivemos de levar esse conhecimento para os agricultores e provar que era possível produzir sem veneno. O terceiro campo é convencer o governo, que também é ignorante. Reflete a sociedade. Pela primeira vez, no ano passado criamos um plano nacional de agroecologia, para fomentar o conhecimento. As compras públicas são um estímulo a essa produção?

Exatamente. Agora, conseguimos estabelecer em lei que no mínimo 30% de toda a merenda, que é financiada pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar, do Ministério da Educação, e vai para as prefeituras, venha da agricultura familiar. Ainda sobra espaço para o Toddynho, o salgadinho...

Ainda sobra. Mas também estamos produzindo o Terrinha, concorrente do Toddynho, com leite e chocolate sem veneno. Aqui mesmo, na prefeitura de São Paulo, até a entrada do Fer24

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Mesmo a da região de Salinas, por exemplo?

Na Europa é proibida a pulverização aérea. Aqui 60% dos venenos são passados com avião. Dois anos atrás, “bombardearam” uma escola. Foram hospitalizadas mais de 200 crianças nando Haddad, o anterior se fazia de sonso: “Como não tem agricultura familiar na cidade, não sou obrigado a comprar”. Mas a lei não diz que tem de ser do município, diz que é da agricultura familiar. Agora, com vontade política da prefeitura, as mais de 3 mil escolas respeitam a lei e no mínimo 30% da merenda sai da agricultura familiar. Outro movimento que estamos fazendo: há uma proliferação de feiras agroecológicas. Todas as cidades do Brasil já têm. Algumas de maneira permanente, como a da Água Branca (São Paulo), em outras fazemos em temporadas. Há uma perspectiva otimista de que a agricultura familiar possa crescer e disputar espaço com o agronegócio?

Não tenho dúvida nenhuma. O chamado mercado dos produtos saudáveis, orgânicos ou agroecológicos, cresce em torno de 10% ao ano. A população se dá conta de que não é mais caro se produzir na forma da agroecologia. Estão surgindo mais feiras, e isso está quebrando o monopólio dos supermercados. O que o Pão de Açúcar ainda faz? Compra o produto dos pequenos agricultores, coloca naquelas caixinhas padronizadas e, como sabe que o produto orgânico chega numa pessoa que tem mais consciência, aumenta o preço, para ter lucro máximo em cima da disposição de pagar um pouco mais por um produto que tem selo de garantia. Essa máscara está caindo, porque mais produtos estão chegando ao mercado, às feiras, e as pessoas começam a comparar: por que um quilo de tomate orgânico custa R$ 14 no Pão de Açúcar e R$ 7 na feirinha da Água Branca? É perceptível que aumentou a cons-


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ciência da população, pelos casos de saúde na família e pelo aumento da informação. O próximo passo é nós, como movimento social, começarmos a buscar barreiras legais ao uso do veneno. Em toda a Europa é proibido usar pulverização aérea. Aqui é um festival, 60% dos venenos são passados com avião. Dois anos atrás, chegaram a “bombardear” uma escola. Foram hospitalizadas mais de 200 crianças. Foi em Rio Verde, Goiás. O que acontece com tabaco e bebidas?

Quem sabe, no futuro, consigamos o que na indústria tabagista já se conseguiu em outros países. Se se comprovar que a causa do câncer do cidadão foi o veneno agrícola, quem tem que pagar o tratamento é a Bayer, a Basf, a Monsanto, quem fez o veneno. Mas isso seria um sonho. Espero também que as prefeituras nos ajudem a produzir material para esclarecer as crianças e os professores dos perigos disso, para começarmos lá na base e elas mesmas, as crianças, recusarem. No recreio compram batatinha, refrigerante...

Tudo o que é pior. Por exemplo, o abacaxi é uma das frutas que mais usa veneno, depois que começou a ser produzido em escala pelo agronegócio. Quando era o pequeno agricultor, como dá muito trabalho, ele cuidava de meio hectare. E, na medida em que ia amadurecendo, colhia. Agora, amadurecem na marra, com veneno. Vão colocando já na flor do abacaxi. O veneno cai em conta-gotas, para amadurecer tudo igual. Quando se vai comer um abacaxi, já vem a dose de veneno, que vai para o suco, e assim por diante. Além do que a maioria desses sucos de caixinha, para ele sobreviver dentro da caixinha, vai conservante. Também é veneno. O que nós, como movimento da agricultura familiar e da agroecologia, dizemos é: tem de se abandonar as embalagens de plástico e voltar para o vidro. As cooperativas não têm condições de criar essa demanda?

Claro que têm. No Uruguai, na época do neoliberalismo, houve uma greve da única fábrica de vidro do país, uma multinacional espanhola. Para transformar areia em vidro, precisa de mais de mil graus de temperatura. O forno não pode desligar. E os operários fizeram a greve e desligaram. O capitalista ficou puto, voltou para a Espanha e fechou a fábrica. Os operários o que fizeram? Religaram o forno, transformaram numa cooperativa e funcionando. Quando começamos a ter problemas, fomos comprar vidro do Uruguai. E nos perguntaram por que não montávamos uma fábrica. Então, ajudaram com um projeto e vão nos dar assessoria, tomara que o BNDES financie, para começarmos a fazer vidro destinado às cooperativas. Demora, mas esse é o caminho em todo o mundo.

A reforma agrária parou? Continua? Em termos práticos e teóricos, em que pé está?

No senso comum, se perguntar o que é a reforma agrária, todo mundo tem na cabeça que é repartir o latifúndio e entregar para os sem-terra. E é isso mesmo, na essência, romper com a grande propriedade, sinônimo de latifúndio. Só a (ministra da Agricultura) Kátia Abreu não sabe, porque estudou psicologia. Se tivesse estudado português, saberia que latifúndio é sinônimo de grande propriedade. Ela mesma tem 3 mil hectares. É latifundiária sem saber. No Brasil, o projeto que chegou mais próximo dessa reforma agrária foi com o Celso Furtado, em 1964. Ele foi sábio. Disse “vamos desapropriar todas as propriedades acima de 500 hectares”. Com isso, estabelecia um limite. Pra que 100 mil hectares, ou 300 mil, como tem o (senador) Blairo Maggi? É absurdo. O projeto do Celso Furtado era desapropriar essas áreas, ao longo das rodovias federais, dez quilômetros de cada lado, para o camponês ficar perto do asfalto e das cidades. Assim, ele ia ter luz elétrica rápido e, atrás viria a geladeira, o fogão, a televisão, o ferro elétrico. Ou seja, a indústria chegaria lá. Qual foi o resultado dessa proposta? O golpe militar. Depois, na redemocratização, o José Gomes da Silva, nosso amigo, que era da equipe do Lula e pai do José Graziano, hoje presidente da FAO, tentou recuperar a ideia e fez um projeto que previa o assentamento de 1 milhão e 400 mil famílias. Entregou em 4 de outubro, dia de São Francisco de Assis, e o Sarney o demitiu no dia 13. A pergunta subsequente é... Por que o Lula não fez a reforma agrária?

Na generosidade dele, acredito que até queria. Por que a reforma agrária está bloqueada até agora? Porque falta um projeto de desenvolvimento nacional e industrial. Na década de 80, a indústria pesava 50% do PIB, hoje é 16%. Não se pode fazer uma reforma em que é só dividir a terra, sem estar casada com um projeto de desenvolvimento. Como nos falta um projeto, falta também uma burguesia industrial disposta a bancar esse projeto. Os camponeses, sozinhos, 10% ou 15% da população, não têm forças políticas para impor. Não há condições políticas no Brasil para fazermos aquela reforma agrária clássica. Eu fui dar palestra na Fiesp e disse: “Vocês são burros! Estamos querendo fazer parcerias com vocês para desenvolver a indústria, a agroindústria, mas vocês não querem. Querem ganhar dinheiro com juros”. Na época que faziam campanha para acabar com a CPMF. Por quê? Porque o dinheiro deles estava no banco, e não nas fábricas. Leia a íntegra no site www.redebrasilatual.com.br

Na década de 80, a indústria pesava 50% do PIB, hoje é 16%. Não se pode fazer uma reforma de só dividir a terra. Falta-nos um projeto de desenvolvimento, e uma burguesia industrial disposta a bancar. Os camponeses não têm forças políticas para impor

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AMÉRICA LATINA

Mulheres na guerra econômica Resistência do chavismo às ações orquestradas pela oposição na Venezuela, como a crise de abastecimento, passa pelos coletivos de gênero e pelas lideranças femininas nas comunidades Por Carina Santos e Juliana Afonso

“O

que tem hoje?”, pergunta o freguês, do lado de fora da mercearia. A resposta corre rápido pelas ruas. Em poucos minutos, os vizinhos descobrem quais produtos os estabelecimentos mais próximos estão vendendo. Então, é voltar em casa, pegar o dinheiro e ir para a fila. “É comum esperar uma ou duas horas, mas algumas pessoas ficam manhãs inteiras”, conta a professora e tradutora Raquel Bravo, que mora em Caracas há 13 anos. Enfrentar filas que se 26

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estendem por quarteirões para comprar alimentos é um dos efeitos mais claros da crise de abastecimento que se alastra pela Venezuela. Há mais de dez anos cidadãos encontram dificuldades para comprar alguns produtos básicos, como papel higiênico e farinha de milho. Com o tempo, outros itens esticaram a lista. A situação se tornou mais preocupante de um ano para cá. Formam-se filas para comprar fralda, xampu, sabonete, café, carne, frango e outros produtos. Em janeiro, a rede McDonald’s chegou a anunciar que ser-

viria mandioca frita no lugar das escassas batatinhas. A crise de abastecimento também bagunça o orçamento doméstico. “Às vezes você sai para comprar um quilo de tomate e acaba levando coisas que não precisa por não saber quando vão vender de novo”, explica Raquel. Outra consequência é o contrabando de alimentos, como fazem os bachaqueros, pessoas que se dedicam a fazer filas para comprar grandes quantidades de produtos e revender a preços mais altos. Um exemplo: enquanto um pacote de fraldas com 32 unidades custa


AMÉRICA LATINA

154 bolívares, eles vendem três unidades a 100 bolívares. Filas, prateleiras vazias e desespero para conseguir certos produtos dão o tom do noticiário. Isso num país em que nos últimos 15 anos o consumo de alimentos subiu 80%, segundo dados do Banco Central da Venezuela e do Instituto Nacional de Estatística. Os números se confrontam com a pauta da escassez. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a Venezuela é o país da América Latina mais avançado na erradicação da fome. Desde 1999, ano

ROSANA SILVA

ALTERNATIVA Experiência das comunas busca construir outro modelo de produção

FOTOS GIULIANO SALVATORE

ARMADAS COM VONTADE A comuna Comandante Hugo Chávez, no centro de Caracas, é composta por cerca de 9 mil pessoas. As famílias utilizam o teto de um consultório popular para cultivar alimentos. Em menos de um ano produziram quase duas toneladas, vendidas equivalente a um terço do preço no mercado privado

em que Hugo Chávez assumiu o poder, os venezuelanos consomem 50% a mais de calorias do que no período anterior, e só o consumo de carne aumentou cerca de 75%. Em 2013, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) chegou a 0,764 ponto, ante 0,677 em 2000. Como, então, o país ganha as páginas dos jornais pela suposta falta de alimentos? A contradição dificulta a compreensão da realidade. Para os setores que fazem oposição ao governo, o problema seria consequência das políticas econômicas que afugentariam empresas e a en-

trada de recursos. O sociólogo Luís Salas, diretor do Centro de Estudos de Economia Política da Universidade Bolivariana da Venezuela, explica que o principal argumento desses setores é que o governo intimida a iniciativa privada por meio do controle das taxas de lucro e do câmbio. E pondera que esse controle é consequên­ cia, e não causa, da inflação e da fuga de capitais. “São medidas que respondem à prática dos setores empresariais. O fato é que o setor privado especulativo mantém por mais de 30 anos uma ‘greve’ de investimentos, para defender seus inteREVISTA DO BRASIL

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AMÉRICA LATINA

resses econômicos em um modelo rentista”, afirma. Os partidários do governo de Nicolás Maduro, por sua vez, afirmam que a escassez de alimentos é fruto de uma estratégia oposicionista para pressionar o governo a tomar medidas impopulares. O cientista político Pedro Otoni (Secretário Político Nacional das Brigadas Populares) considera incorreto dizer que existe escassez, pois alimentos existem, mas não são colocados à disposição da população. “Com dois objetivos: a especulação, gerando lucros extraordinários para os empresários do comércio, e a criação de um sentimento de incerteza, com o objetivo de desestabilizar o governo.”

Guerra econômica

A repercussão internacional é associada, segundo Otoni, a ataques da oposição. O conjunto dessas estratégias tem sido denominado como Guerra Econômica, uma espécie de “guerra total” que os Estados Unidos, em associação com a elite econômica venezuelana, vêm travando desde a fracassada tentativa de golpe contra Chávez, em 2002. O financiamento de candidatos opositores e a incitação de conflitos regionais seriam parte dessa prática. “Promovem a redução da oferta de alimentos como principal instrumento de ameaça ao governo, tentando colocá-lo na condição de refém dos interesses empresariais”, diz Otoni. Uma das reações do governo à crise de desabastecimento foi criar comissões de investigação dos responsáveis pela estocagem de produtos. A investida mais recente, em 12 de janeiro, encontrou mais de mil toneladas de alimentos de primeira necessidade em uma zona industrial do município de São Francisco, no estado de Zulia, a noroeste do país. Outras medidas buscam ampliar a rede pública e popular de distribuição. A Missão Alimentação, programa criado em 2003 para garantir o acesso aos produtos básicos com preços subsidiados em até 70%, conta com 22 mil pontos por todo o país­, de pequenas comunidades indígenas a grandes centros urbanos. “Ali se vendem carnes importadas, frango, vegetais, açúcar, macarrão e diversos produtos da cesta básica a preços muito menores que no mercado normal”, conta a profes28

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SISTEMA VULNERÁVEL Prateleiras vazias: país ainda tem dependência externa e problemas de distribuição

sora Raquel Bravo. Mas combater o medo da escassez não é tarefa fácil. “A Venezuela apresenta grande vulnerabilidade no sistema de oferta, que ainda é dependente de compras internacionais e possui uma base de distribuição nacional controlada por empresas privadas”, explica Pedro Otoni. Para ele, quando o processo de produção, beneficiamento e distribuição de alimentos forem solidamente ancorados no Estado e nas iniciativas de cooperativas, a situação mudará e o empresariado deixará de contar com o poder de ditar o preço e produzir escassez. Em outubro de 2012, pouco depois de ganhar as eleições, o então presidente Hugo Chávez realizou um conselho de ministros, transmitido em cadeia nacional, em que evidenciou o que seria a essência da continuidade de seu projeto. Chávez dizia e repetia nesse discurso “comuna ou nada”, referindo-se à necessidade de consolidação das instâncias de participação social nas decisões de “autogoverno”. A frase ganhou evidência nos muros de todo o país e na base social de

apoio ao chavismo. Muitas dessas experiências comunitárias buscam construir outro modelo produtivo, como alternativa ao desabastecimento de alimentos e às limitações do Estado burocrático. Em cidades como Caracas, particularmente nas localidades mais pobres, os coletivos estão passando da organização política à organização econômica produtiva. Um exemplo dessa resistência é a comuna Comandante Hugo Chávez, localizada no centro da capital. Criada em 2013, é composta por cerca de 9 mil pessoas. Devido ao pouco espaço entre os edifícios da região central, as famílias utilizam o teto de um consultório popular para produzir alimentos. A líder comunitária Arelys Rivas conta que os primeiros cultivos foram de tomate e pimentão: chegaram a produzir quase duas toneladas em menos de um ano. Os produtos são vendidos sem intermediários, a um terço do preço do mercado privado. “Se nossa experiência for multiplicada em outros lugares, com diferentes produtos, poderíamos oferecer alimento a preços realmente justos e combater também a


especulação”, afirma. O protagonismo feminino é um dos segredos da sustentação das políticas públicas na base social. O país tem um ministério para a mulher e a igualdade de gênero. Um dos programas criados no contexto da Guerra Econômica é o “Mulheres na defesa popular da economia”, a partir de uma análise de que elas são as que mais sofrem os reflexos do armazenamento de alimentos básicos. Paralelamente aos aparatos governamentais, existe a construção dos comitês de mulheres, além do comitê para a defesa da economia, de mães do bairro, frentes populares, coletivos feministas e de diversidade sexual, entre outras organizações, que dão capilaridade social aos chamados dos órgãos públicos à resistência contra várias formas de manifestação da Guerra Econômica – uma espécie de rede de inteligência e contrainteligência, governamental e social. “Não por acaso nossa experiência tem o protagonismo das mulheres. Tanto no nosso país como no mundo, a mulher sempre se destacou por ser

lutadora, empreendedora e altruísta. Nessa nova etapa da vida socialista ocorreu um reencontro com as qualidades que nos caracterizam. Desde então, não descansamos”, diz Arelys.

Alinhamento

MELHORIAS Segundo a ONU, Venezuela é o país da América Latina mais avançado na erradicação da fome

ROSANA SILVA

CARLOS BECERRA/ANADOLU AGENCY/GETTY IMAGES

AMÉRICA LATINA

É necessário ultrapassar as fronteiras venezuelanas para identificar interesses dos Estados Unidos no processo. Pedro Otoni lembra de semelhanças com o Chile, no período que antecedeu o golpe que derrubou Salvador Allende (1970-1973). “Houve paralisação de atividades da indústria e do comércio. Isso criou um forte impacto na distribuição de bens e foi um dos componentes do golpe.” A participação do governo e de agentes norte-americanos na derrubada daquele e de outros governos democráticos da América Latina é conhecida. A conjuntura venezuelana é distinta, contudo. Atualmente, os Estados Unidos também se encontram em crise, e existe apoio internacional – e principalmente regional – à Revolução Bolivariana. “Neste caso é muito mais difícil produzir um isolamento que permita um golpe ou um ataque direto”, pondera o cientista político. Mas nada impede que os meios de comunicação alinhados com a política norte-americana se articulem para difundir um desgaste, local e internacionalmente. O jornalista brasileiro Leonardo Fernandes, que viveu cinco anos na Venezuela, afirma que as estratégias da oposição sempre estiveram aliadas aos editoriais da imprensa corporativa: “Os meios privados cumprem papel de porta-vozes da oposição. Foi assim durante o golpe de 2002 e nunca deixou de ser”. O sociólogo Luís Salas considera que o cenário favorece o clima de catástrofe: “A população vive um sentimento de frustração e angústia que pode terminar criando condições subjetivas tanto para a especulação como para a conspiração contra o governo”, diz. Para Otoni, ameaçar com a fome é uma forma de rebaixar a disputa política ao nível das necessidades imediatas: “Se a escassez é produzida artificialmente, o medo gerado é algo que se torna bastante real e não deve ser menosprezado”. REVISTA DO BRASIL

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HISTÓRIA

O ESTADO EM TRÊS E TEMPOS Os 25 anos da descoberta das ossadas de Perus, em São Paulo, mostram diferentes faces do poder público: opressor, indiferente e cuidadoso Por Vitor Nuzzi 30

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m setembro de 1990, a abertura de uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, na zona noroeste de São Paulo, revelou a existência de 1.049 ossadas. Ali haviam sido enterrados indigentes, vítimas de esquadrões da morte, crianças mortas por meningite – e presos políticos. Quem acompanha o caso acredita que esses restos mortais encontrados no bairro de Perus podem ser de pelo menos 40 desaparecidos durante a ditadura. Nesse um quarto de século, que coincidiu com a volta da democracia, as ossadas foram levadas para lá e para cá e expostas às piores condições, evidenciando desca-


HISTÓRIA

I. Desinformação e perseguição

“Não adianta você ir lá na Quarta Parada. Vai em Perus”, sussurrou um agente do Instituto Médico-Legal a uma prima de Joaquim Seixas, que procurava o corpo do militante político e já estava de saída do IML. O atestado de óbito indicava – e ainda indica – a Quarta Parada, na zona leste paulistana, como local do sepultamento. Cemitério tradicional, do século 19, onde estão, por exemplo, os músicos Arnaldo Rosa, do grupo Demônios da Garoa, Tonico e Tinoco. Mas os funcionários do IML sabiam que o destino de Joaquim Seixas, assassinado em 17 de abril de 1971, tinha sido Perus. “Meu pai foi salvo da vala comum porque a gente ficou em cima”, diz uma das filhas, Ieda. A morte, que ocorreu à noite, foi anunciada de manhã. Ieda, Iara e Ivan Seixas foram presos e levados ao Doi-Codi, em São Paulo. O rapaz, à época, foi torturado diante de Joaquim e também viu o pai sofrer nas mãos dos algozes. Ieda foi abusada sexualmente na carceragem. “A gente ficou sendo vigiada desde que saiu da prisão. Todo dia tinha um carro parado na porta com um sujeito.” As visitas ao cemitério, com o pai já descoberto e devidamente enterrado, também eram acompanhadas. A família saía da estação de trem, pegava uma subi-

so do poder público com a importância histórica e política da descoberta. E, principalmente, com as famílias, que desde os anos 1970 ouvem relatos sobre essa e outras valas clandestinas. Em setembro do ano passado, foi dado um passo talvez decisivo para um capítulo­ derradeiro sobre o caso Perus. As ossadas estão sendo analisadas por uma equipe coordenada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), em condições adequadas e com a seriedade que o caso exige. Não é garantia de que serão identificadas, dado o estado de conservação, mas o atual estágio do trabalho mostra outra postura por parte do Estado brasileiro.

FOTOS DANILO RAMOS/RBA

NOVAS ESPERANÇAS Sob a coordenação de Samuel Ferreira (abaixo), legistas da Unifesp retomaram os trabalhos de identificação em setembro de 2014

da íngreme e via, na rua, uma perua C-14 subindo a ladeira. Era um veículo usado por agentes policiais. A mãe, dona Fanny, chegava a ironizar, comentando que pediria carona para não se cansar tanto. “A repressão ia lá, ameaçava, fazia brincadeiras mórbidas”, diz Ivan Seixas, que recorda de um primeiro dossiê, de 1979, feito por familiares de mortos e desaparecidos, para entregar ao então senador Teotônio Vilela. “Tivemos a preocupação de deixar registrado que a gente sabia.” Desde a segunda metade dos anos 1970 se sabia da existência de uma vala clandestina em Perus, onde em 1971 havia sido inaugurado o Cemitério Dom Bosco. O prefeito era Paulo Maluf. À época, se alegou que a construção foi feita a pedido dos moradores – havia uma carta de 1962 da Sociedade Amigos de Perus. O cemitério mais próximo, em Caieiras, estava lotado. Existe a suspeita de que Perus seria destinado não só aos moradores da região, mas a indigentes, vítimas de esquadrões da morte e, posteriormente, desaparecidos políticos. Uma das conclusões da CPI formada em 1990 na Câmara Municipal foi de que uma “desorganização histórica” do Serviço Funerário Municipal no tratamento de pessoas pobres, os chamados indigentes, serviu também ao ocultamento de corpos de vítimas de violência policial e desaparecidos políticos. O jornalista e pesquisador Luiz Hespanha, assessor parlamentar da Câmara na época da CPI, lembra que São Paulo, além de não ter um “cemitério distante para colocar os indigentes”, também enfrentou uma epidemia de meningite cuja divulgação foi proibida pelas autoridades. Boa parte das ossadas encontradas em Perus era de crianças possíveis vítimas da doença. “Há uma série de responsabilidades, agentes públicos coniventes ou participantes.” Hespanha relaciona Perus ao Dops e à formação da Operação Bandeirante (Oban), financiada por empresários para combater “terroristas” – cujos corpos, por sinal, chegavam ao IML com uma letra T em tinta vermelha no prontuário. O papel do IML na ditadura foi um dos focos da Comissão da Verdade da Associação Paulista de Saúde Pública REVISTA DO BRASIL

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DANILO RAMOS/RBA

HISTÓRIA

(APSP). “O esquema repressivo no Brasil não pode mais, definitivamente, ser considerado um porão. Os IMLs estavam no organograma do Doi-Codi”, diz o professor Carlos Botazzo, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo, e presidente da comissão da APSP. “O modelo de São Paulo vai inspirar a ação da repressão em outros lugares”, acrescenta. Segundo o grupo de trabalho da comissão da APSP que analisou o instituto no período, de 1969 a 1976 vários médicos legistas produziram laudos falsos. Em relatório divulgado no ano passado, são citados 33 legistas, 18 ainda vivos. Três têm o registro cassado até hoje, enquanto outros conseguiram suspender a decisão. O mais notório caso é de Harry Shibata, que tem seu nome citado em oito laudos, inclusive o do jornalista Vladimir Herzog, morto sob tortura em 1975. O primeiro da lista é Isaac Abramovitch, com 22 laudos, entre os quais o do estudan32

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te Alexandre Vannuchi Leme, morto em 1973. Recentemente, a Justiça determinou a retificação da causa da morte nos dois atestados de óbito. Alexandre chegou a ser enterrado como indigente em Perus. A família só conseguiu resgatar os restos mortais dez anos depois. Segundo Botazzo, havia um esquema para que um médico “de confiança” se responsabilizasse pelo laudo. “Eles não podiam confiar num legista de plantão.” Foi essa também a conclusão da CPI de 1990, na Câmara paulistana: dentro do IML havia “um grupo de legistas afinados com o regime”. E laudos foram produzidos para acobertar mortes e dificultar a identificação de pessoas. Também não era respeitado o prazo de 72 horas de espera para o sepultamento – Joaquim Seixas, por exemplo, foi enterrado menos de 24 horas depois de morto. “Eles (legistas) sabiam quem era ‘terrorista’, que os nomes usados eram falsos e quais eram os nomes verdadeiros”, diz o

PRIMEIRAS INFORMAÇÕES Especialistas trabalham na análise e catalogação das ossadas. De 112 caixas abertas em 2014, 26 tinham ossos misturados

ex-vereador Ítalo Cardoso, que integrou a CPI da Câmara, lembrando que médicos como Harry Shibata e Isaac Abramovitch foram prestar depoimento. A remessa das ossadas para a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) tinha como objetivo, justamente, “fugir da turma da USP”, como diz Cardoso para se referir aos autores de laudos forjados. Mas a estratégia acabou se transformando em um “grande engodo”. Na época houve esforço para garantir recursos e melhorias para a instituição, que frustrou as expectativas. “O Badan (Palhares, coordenador dos trabalhos na Unicamp) se aproveitou disso, se tornou celebridade, e nós nos sentimos enganados.” As atividades da CPI, volta e meia com ameaças, foram feitas “na raça”, lembra o


MATUITI MAYEZO/FOLHAPRESS

HISTÓRIA

ex-vereador. “Não havia estrutura técnico-científica, nem de órgãos públicos. Não havia um Ministério Público com a estrutura atual. No que dependeu da prefeitura, tivemos acesso total. Parte das pessoas denunciadas ainda estava na ativa.”

II. Esperança e descaso

A abertura da vala clandestina de Perus, na manhã de 4 de setembro de 1990, representou a expectativa de solução para dezenas de casos de desaparecidos, ainda em um período de redemocratização do país. Sem confiança, familiares foram contra a transferência para o IML. A preferência era pelo Departamento de Me-

COMOÇÃO Dom Paulo Evaristo Arns, à época arcebispo de São Paulo, celebrou um culto ecumênico diante da vala clandestina, em novembro de 1990. Ao seu lado estava a então prefeita, Luiza Erundina

dicina Legal da Unicamp. Em novembro, a prefeitura de São Paulo (gestão Luiza Erundina) e a universidade assinaram convênio com objetivo de identificar as ossadas. E a Câmara abriu a comissão parlamentar que duraria sete meses. Até 1992, os trabalhos pareciam andar normalmente. Foram obtidas duas identificações de presos políticos cujos restos mortais estavam na vala de Perus (Dênis Casemiro e Frederico Mayr). Mas a par-

tir daí o processo simplesmente parou. “Queriam mostrar serviço”, diz Ivan Seixas, referindo-se à parte inicial do trabalho da Unicamp. “Mesmo assim, o trabalho que ele (o médico legista Badan Palhares) fez foi muito relaxado, muito parcial.” Ele avalia que tudo foi interrompido depois do término do mandato de Erundina. “A pressão era da prefeitura mesmo.” Erundina foi sucedida justamente por Maluf, que tomou posse em 1º de janeiro de 1993. Após os primeiros resultados (identificação de Dênis e Frederico), “a equipe mudou radicalmente de conduta e o trabalho foi simplesmente abandonado”, relata o Ministério Público Federal em ação civil pública aberta em 2009. O processo detalha as várias etapas pelas quais foram submetidas as ossadas, que durante muito tempo ficaram expostas a condições inadequadas, se deteriorando, o que dificultaria qualquer processo de identificação. Ao citar Unicamp, Universidade Federal de Minas Gerais (para onde parte do material foi enviada) e USP, o MPF resume: a forma como os trabalhos foram conduzidos foi “negligente, desrespeitosa e irresponsável”. O Ministério Público defendeu a responsabilização dessas instituições, do governo estadual paulista e da União. Seguiu-se um longo processo de discussões sobre o destino das ossadas. Longo e doloroso para as famílias. Em 2002, as ossadas saíram enfim da Unicamp e foram para o columbário (os-

Um drama atual A questão dos desaparecidos políticos em Perus e outros cemitérios evidencia uma política do Estado, mas o problema, com outra dimensão, é atual e faz parte do cotidiano de muitas pessoas que enfrentam o drama de ter alguém da família desaparecido. O professor Carlos Botazzo, da Faculdade de Saúde Pública da USP, constata a permanência de uma prática que agrava o problema, ao observar que uma delegacia pode recomendar à família uma espera de dez dias em

caso de desaparecimento de uma pessoa. Mas o IML, responsável por atestados em casos de mortes violentas, enterra corpos não reclamados após três dias. Isso acontece também com o Serviço de Verificação de Óbitos (SVO), para onde, por meio de convênio com a Faculdade de Medicina da USP, são encaminhados os corpos de pessoas que morreram de causas não violentas. Segundo divulgou em 2014 o Ministério Público de São Paulo, desde 1999 aproximadamente 3 mil

pessoas foram sepultadas em vala pública como “indigentes” ou “não procuradas”. Muitas tinham sido reclamadas via boletins de ocorrência, e algumas portavam documentos ou telefones de contato. Desde 2013, a Procuradoria paulista integra o Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos (Plid), criado pelo MP do Rio de Janeiro. O programa consiste de um cadastro de desaparecimentos organizado a partir de diversas fontes de dados.

O ex-vereador Ítalo Cardoso lembra que a CPI sobre o caso Perus deixou algumas recomendações para tentar melhorar essa situação. Por exemplo, criar um banco de DNA para ajudar nas identificações dos considerados indigentes e descaracterizar os funcionários do IML como agentes da polícia. “Deveríamos aproveitar o momento para avançar nisso”, afirma, ao constatar que ainda existem muitos cemitérios clandestinos em São Paulo. Leia mais em bit.ly/rba_perus REVISTA DO BRASIL

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CLÓVIS FERREIRA/AGÊNCIA ESTADO/09/1990

HISTÓRIA

sário geral) do Cemitério do Araçá, na zona oeste de São Paulo. Em 27 de maio de 2013, o material começou a ser transferido para um ossário reformado, no mesmo local, atendendo a um pedido do MPF em São Paulo e da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Em novembro daquele ano, um dia depois da realização de ato ecumênico em homenagem a vítimas da ditadura, o local foi atacado por vândalos, que danificaram parte da instalação artística prevista para ser usada em uma exposição.

III. Retomada e esperança

Em 4 de setembro de 2014, exatos 24 anos depois da abertura da vala clandestina de Perus, os governos federal e municipal de São Paulo anunciavam a retomada dos trabalhos de análise das ossadas de Perus, em articulação que envolveu ainda a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, a Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), responsável por instalar um centro de arqueologia e antropologia forense. O trabalho tem participação de técnicos peruanos – uma equipe de peritos argentinos deixou o processo após discordâncias sobre procedimentos. Parte do material continua no Araçá. 34

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VAIDADES Badan Palhares, coordenador dos trabalhos de identificação das ossadas na Unicamp, “foi muito relaxado, muito parcial”, segundo Ivan Seixas. A repercussão do caso levou o legista ao posto de celebridade nacional

Pelo menos 40% do material foi levado para um endereço não revelado na zona sul de São Paulo. Ali, 17 técnicos, entre antropólogos, arqueólogos e outros especialistas, trabalham em tempo integral. Nos três últimos meses de 2014, foram analisadas 112 caixas – em 26, havia ossos misturados. Até o início de fevereiro deste ano, os técnicos haviam analisado 144 ossadas. Três tinham lesões compatíveis com armas de fogo, segundo o coordenador científico da equipe, o médico-legista Samuel Ferreira, da Secretaria Nacional de Segurança Pública, do Ministério da Justiça. As ossadas tinham “diversos tipos de degradação”, que não atrapalhavam os exames iniciais, para determinar, por exemplo, sexo, idade e altura. As autoridades admitem que o estado das ossadas poderá ser empecilho para uma efetiva identificação. “Não é certo que identifique. Colocaram essas ossadas em condições deploráveis. Vamos trabalhar de todas as formas possíveis para que a gente possa chegar a um resultado”, diz o secretário-adjunto muni-

cipal de Direitos Humanos e Cidadania, Rogério ­Sot­tili.­­“Temos uma avaliação de que nunca se chegou tão perto da identificação. Temos recursos, e determinação política das três esferas (prefeitura, governo federal e Unifesp).” A ressalva sobre as dificuldades também evidencia uma preocupação com os familiares de mortos e desaparecidos e políticos que acompanham o trabalho e têm uma compreensível desconfiança, passados quase 25 anos de decepções. “É fundamental a gente reconhecer publicamente o papel histórico dos familiares. Inclusive para localizar a vala. Desde então, eles não descansaram um minuto”, diz Sottili. Ieda Seixas é cética em relação aos resultados, mas torce. Embora considere importante o que a pessoa fez em vida, acredita que se trata de uma questão especial para as famílias, que esperam poder sepultar seus mortos. “Essa questão do enterro é fechar um ciclo.” Seu irmão Ivan tem mais esperança: “O trabalho está sendo muito criterioso. Acho que só não vai identificar se a ossada do desaparecido não estiver ali”. O processo de DNA deve começar no segundo semestre e ir até o final de 2016. Essa etapa será feita no exterior – pela quantidade, justifica o governo –, mas segundo a ministra de Direitos Humanos, Ideli Salvatti, não será preciso esperar se houver “fortes indícios” de que uma ossada seja de um desaparecido. A procuradora da República Eugênia Gonzaga comemora a criação de um centro de antropologia e arqueologia forense. “É uma demanda muito antiga. Temos excelentes profissionais, mas ainda não havia uma estrutura dessa maneira. Estamos conseguindo fazer com que esses trabalhos saiam desse cenário de IML, polícia.” Ela espera por outras descobertas a partir da análise da documentação do cemitério. Joaquim Seixas é considerado o primeiro desaparecido a ser enterrado em Perus. Seus restos mortais foram levados para o Rio de Janeiro e trazidos de volta quando dona Fanny morreu, em 1993. Hoje, os dois estão juntos no cemitério de Congonhas.


LALO LEAL

Armas para a batalha da comunicação

Não passa de mera ilusão acreditar que a grande mídia oferecerá espaços para o contraditório nas mesmas proporções abertas aos temas de seu próprio interesse

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a primeira reunião ministerial do segundo mandato, a presidenta Dilma Rousseff convocou seus auxiliares para a “batalha da comunicação”. Foi enfática: “Nós devemos enfrentar o desconhecimento, a desinformação sempre e permanentemente. Vou repetir: sempre e permanentemente”. Nada mais justo. A desinformação contrária ao governo campeia pelo país, orquestrada pelos grandes meios de comunicação. A reação da presidenta é justificável. Resta saber quais são as armas que ela e seus ministros possuem para essa batalha. Se esperam contar com a benevolência dos meios tradicionais, podem tirar o cavalo da chuva. A batalha estará perdida antes de ser travada. Alguns veículos até publicam o que chamam de “outro lado”, mas sempre de forma discreta e submissa à pauta criada para fustigar o governo. A desproporção entre o ataque da mídia e a possibilidade de resposta através dela mesma é brutal. Constata-se uma grave falha da democracia ao exigir que governantes eleitos pelo voto popular sejam obrigados a se dirigir à sociedade por meios privados, controlados por minorias que os querem ver apeados do poder. Além disso a participação do governo na batalha da comunicação não pode ser apenas reativa aos ataques da oposição midiática. É preciso tomar a iniciativa e buscar canais despoluídos para que as mensagens cheguem ao público sem ruídos. Para ampliar a liberdade de expressão uma lei de meios é fundamental, embora não seja o único caminho. Outro, de construção mais rápida, é o da comunicação pública, indispensável para o jogo democrático. Dela, já há o embrião constituído pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC), com suas duas emissoras de televisão, oito de rádio, duas agências de notícias e um portal na internet. Resta tirá-la da irrelevância. Não para se tornar porta-voz do governo mas para fazer jornalismo de qualidade, livre de ingerências partidárias e comerciais.

A primeira medida é dar a esses veículos abrangência nacional, atendendo a um dos princípios básicos da comunicação pública que é o do acesso universal. Toda pessoa tem o direito, em qualquer parte do país­, de receber os sinais desses meios de forma rápida e fácil. A TV Brasil, por exemplo, deve ser sintonizada em qualquer lugar da mesma forma com que hoje sintonizamos a Globo ou a Record. Com a digitalização e a consequente multiplicidade de canais, torna-se possível segmentá-los constituindo um conjunto formado pelo canal generalista já existente, ao lado do infantil e do noticioso. Seria o núcleo básico ao qual poderiam ser agregados canais de filmes, de música, de arte e esportes. Quanto ao rádio, cabe lembrar que ele continua sendo a segunda fonte mais utilizada para a informação e o entretenimento no Brasil. Ao controlar um leque de emissoras que vai da histórica Rádio Nacional do Rio de Janeiro à estratégica Rádio Nacional do Alto Solimões, o serviço de rádio da EBC tem potencial para se tornar uma alternativa importante em relação ao que hoje é oferecido ao público. Necessidade imediata nesse sentido é a constituição de emissora noticiosa 24 horas no ar, capaz de produzir uma narrativa distinta das produzidas pelas rádios comerciais que tornam homogênea a informação radiofônica em circulação pelo país. No caso da internet, a Agência Brasil já exerce um papel importante voltado para o público leitor e para o municiamento informativo de um número expressivo de veículos em todo o território nacional. Cabe popularizar e ampliar esse serviço tendo como uma das janelas o portal da EBC, dando a ele formas de acessibilidade e fidelização semelhantes às obtidas pelos portais informativos vinculados à mídia comercial. Com a existência de canais públicos fortes, abertos aos interesses mais gerais da sociedade, a batalha da comunicação seria travada em termos um pouco mais equilibrados, dando ao público o direito de uma escolha real. REVISTA DO BRASIL

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Os médicos da floresta Voluntários de São Paulo deixam para trás conforto, consultório e montam hospital de ponta para atender indígenas, muitos com doenças de branco Por Sarah Fernandes Fotos Rafael Salazar 36

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urante conversa da reportagem com a pediatra, um dos coordenadores da expedição interrompeu com voz alta, demonstrando a gravidade do caso: ele trazia nos braços um bebê de um ano, em estado avançado de desnutrição. Com apenas seis quilos – peso de uma criança com a metade de sua idade –, estava estático, com a cabeça caída nos ombros e os olhos fixos e secos, sem reação. No consultório improvisado em uma sala de aula da aldeia Xavante de São Pedro, na Terra Indígena Parabubure, Mato Grosso, todos entraram em alerta.

Os dois pediatras e uma equipe de enfermeiros começaram os procedimentos de emergência. “Soro rápido!”, “Adrenalina, glicose”, “Consegui uma veia!” Fora da sala, a mãe, uma jovem Xavante também visivelmente desnutrida, está tensa. Ela e a repórter são brasileiras, mas não falam a mesma língua. Segurei a mão dela e permanecemos nos olhando, em comunicação silenciosa, até sermos interrompidas pelo que parecia um milagre: o choro baixinho da criança. É por isso que esse profissionais ou voluntários vão até lá. Eles são os Expedicionários da Saúde, organização não-governamental de São Pau-


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FOTOS RAFAEL SALAZAR

MUTIRÃO NAS ALDEIAS Os Expedicionários da Saúde são uma organização não-governamental que coordena equipes de médicos, enfermeiros, dentistas e voluntários para levar atendimento médico gratuito nas aldeias indígenas

lo, que desde 2003 coordena equipes de médicos, enfermeiros, dentistas e voluntários para levar atendimento médico gratuito e de ponta para aldeias indígenas. No meio da floresta, um conjunto de tendas forma um complexo de saúde, com equipamentos modernos e profissionais de referência dos principais hospitais do país. Durante alguns dias, as tribos se transformam em centros médicos, que oferecem consultas clínicas, ginecológicas, odontológicas e cirurgias de hérnias e de cataratas. A expedição Xavante, realizada em agosto do ano passado, foi a 29ª do grupo. Contava com sete oftalmologistas,

dois clínicos, dois pediatras, quatro cirurgiões, quatro anestesiologistas, três ginecologistas, sete enfermeiros, quatro dentistas, dez funcionários de logística e 15 voluntários. O trabalho conjunto permitiu que nos dez dias em que estiveram entre os Xavante fossem realizadas 223 cirurgias gerais e oftalmológicas, 1.504 consultas médicas e odontológicas e 3.400 exames e procedimentos. A preparação para a expedição começa com uma visita percursora, na qual representantes da ONG pedem autorização para as lideranças indígenas para realizar o trabalho. Um grupo de médicos se des-

loca para a aldeia para capacitar enfermeiros e agentes de saúde indígena, um mês antes da expedição. São eles que fazem a triagem dos pacientes nas aldeias, sobretudo os que passarão por cirurgias de cataratas e hérnias. Com o levantamento em mãos, a coordenação dos Expedicionários da Saúde determina quantos profissionais e quais equipamentos serão necessários. Uma expedição custa em média R$ 100 mil, angariados junto a empresas parceiras da ONG, também responsáveis pela doação dos medicamentos e pelo aluguel dos equipamentos médicos. “Enquanto formos para dentro das aldeias fazer esse REVISTA DO BRASIL

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SAÚDE

trabalho, os índios não precisarão sair de lá. Se eles ficam, a floresta continua de pé”, defende o cirurgião geral Fábio Atui, que coordena a ONG. “Nosso trabalho é oferecer serviço de saúde de qualidade sem interferir na cultura deles.” “A expedição foi importantíssima para o Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) Xavante. Já entrei em contato com a administração da ONG para negociar a possibilidade de uma próxima. Se eles não tivessem vindo até aqui, possivelmente a maioria dos nossos pacientes ainda estariam aguardando as cirurgias”, afirma o coordenador do Distrito Sanitário Especial de Saúde Indígena (Dsei) Xavante, Cláudio Rodrigues, ligado ao Secretaria Especial da Saúde Indígena (Sesai)do Ministério da Saúde. “Os Xavante são prejudicados pela demora para agendar consultas com os especialistas. Demora até para exames de rotina. Já tivemos que acionar o Ministério Público para garantir atendimento.”

Terra delimitada

Nas tendas armadas nas florestas brasileiras já foram realizados mais de 28 mil atendimentos, sendo 4.800 cirurgias. Yanomami, Caiapó e outras etnias do Xingu e da Amazônia já receberam atendimento dos expedicionários. “Com o histórico de ter estado em todas, posso dizer que aqui é um cenário difícil. Os Xavante apresentam muitas doenças dos brancos, como diabetes e hipertensão”, afirma o coordenador da expedição, Ricardo Affonso Ferreira. O principal motivo das doenças é a alimentação. Cercado por uma imensidão de fazendas – ora improdutivas, ora pujantes pelo agronegócio –, o povo Xavante de Parabubure, originalmente nômade, se fixou em um local demarcado. 38

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FOTOS RAFAEL SALAZAR

SAÚDE FRAGILIZADA Na aldeia Xavante, o principal motivo das doenças é a alimentação indequada

O cultivo da terra pelas fazendas contaminou nascentes, espantou a caça, empobreceu o solo e tornou a comunidade extremamente dependente de alimentos industrializados comprados com benefício de programas de transferência de renda nas pequenas vendas do município de Campinápolis, a 60 quilômetros da aldeia de São Pedro, a maior de Parabubure. “Nossos antigos se alimentavam com fruta silvestre do mato. Agora a natureza não está mais oferecendo alimento. O índio mora em uma terra delimitada que não dá nem para fazer cerco de fogo para caçar, como fazíamos. Isso leva o índio a ser diabético e hipertenso”, afirma a indígena Ângela Rootsitsimro Tsupto, da aldeia de Três Marias. “O branco tem fartura porque tem maquinário para fazer roça. No braço, ninguém aguenta ali-

ENCONTRO COM A TECNOLOGIA Surpresa e emocionada, a gestante ouve pela primeira vez os batimentos cardíacos de seu bebê

mentar tanta gente. Não temos sementes nem ferramentas.” A base da alimentação são carboidratos como arroz e farinha, e algumas vezes doces, salgadinhos e refrigerantes. Nesse cenário, crescem casos de obesidade, hipertensão e diabetes. “Entre as crianças há um problema de baixo peso, principalmente na faixa etária de um ano. É um momento delicado para todos os bebês, porque é quando deixam de mamar e passam a só comer comida”, diz a pediatra Priscila Gonçalves. Os Xavante são um povo tradicionalmente guerreiro e constantemente se desafia com atividades que exigem muita força física, como as corridas com toras de buriti, ou como o hábito de carregar muito peso nos baquités – cestos feitos de palha, que vão apoiados na testa. Os hábitos favorecem o surgimento das hérnias abdo-


SAÚDE

RITMO HOSPITALAR Nos dez dias da expedição foram realizadas 223 cirurgias gerais e oftalmológicas

minais, e o sol forte, de catarata – a ponto de atingir pessoas de 30 anos. “São dois problemas que impactam muito no modo de vida deles, porque um indígena precisa enxergar e ser capaz de fazer força”, diz o oftalmologista Celso Takashi Nakano. Em São Pedro, oito tendas ofereceram serviços médicos. Monitor cardíaco, scanners oculares, medicamentos, macas e toda aparelhagem necessária para o atendimento de ponta foram levados para o meio da Amazônia mato-grossense, em uma viagem de 1.500 quilômetros entre São Paulo e Paraburure. Foram duas horas de voo em um pequeno avião da Força Aérea Brasileira e quase um dia de viagem em caminhonetes da Funai. “O povo Xavante conhece rezas e plantas que acreditamos que também curam doenças. Nós fizemos inclusive uma dança e um canto para ajudar os doutores no trabalho deles. A união dos médicos com a gente fez o sucesso da expedição”, afirma o cacique Tito, da aldeia de São Pedro.

‘Já dá para matar papagaio’

Os pacientes – que chegam a São Pedro de pelo menos mais cinco aldeias de Parabubure – começam o atendimento na recepção, montada em uma das poucas construções de alvenaria da aldeia. São cadastrados e encaminhados para atendimento, dando início à maratona de consultas e exames. Os que precisam de intervenção cirúrgica recebem alimentação diferenciada. No pós-operatório, descansam em colchonetes, semelhantes às esteiras de palha em que dormem. Não era preciso falar a língua deles pa-

ra entender o que sentiam os pacientes operados de catarata. A comunicação era universal: o sorriso, que rasgava o rosto dos indígenas segundos após a retirada da bandagem do olho, tomando o lugar da seriedade característica do povo xavante. “Agora dá até pra matar papagaio”, disse em um rompante o indígena Celestino Tserenipaio, emocionado após receber alta – e um par de óculos escuros. Rosalina Pedratao, 85 anos e com apenas 40 quilos, havia chegado da aldeia de Três Marias com um cajado na mão para tatear o caminho, devido a uma catarata avançada, e fez questão de deixá-lo em São Pedro. “Agora está muito bom”, disse em xavante traduzido pelo neto. É comum os médicos convidarem indígenas para atuar como tradutores, já que a maioria, sobretudo mulheres e crianças, não fala português. Enquanto isso, a ginecologista Marianna Mellone chamava atenção de uma gestante para um barulho durante um ultrassom. Para explicar do que se tratava, ela colocou a mão sobre o coração e a barriga: eram os batimentos cardíacos apressados do bebê, ouvidos pela primeira vez pela mãe, surpresa e emocionada. As duas ginecologistas da expedição realizavam o exema Papanicolau em quase todas as 178 mulheres atendidas. “Pensamos que poderíamos encontrar alguma barreira cultural, mas todas aceitaram fazer o exame. Muitas vieram com o pai ou o marido, que também entenderam a importância de elas serem examinadas”, diz Marianna. As amostras coletadas foram encaminhadas para um laboratório

da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), parceira dos Expedicionários. Quando os resultados estiverem prontos serão enviados para o DSEI Xavante. Na pediatria, Priscila cuidava de outro caso grave: um menino de 6 anos, com o sugestivo nome de Geraldo Alckmin Tsupto Tseredowe, apresentava uma hérnia grande na bolsa escrotal devido a um problema de nascença. A esperança da mãe era conseguir que os Expedicionários da Saúde o operassem, porém o homônimo do governador de São Paulo havia acabado de sair de uma pneumonia e tinha uma infecção nos dentes. “Optamos por tratar primeiro esses problemas para que mais para a frente ele possa fazer a cirurgia com segurança”, explica Priscila. Casos como o do pequeno Tseredowe e de outros indígenas que requerem intervenções cirúrgicas – em especial cirurgias de vesícula, que não podem ser feitas nas tendas médicas por necessitarem de anestesia geral – levaram os Expedicionários da Saúde a realizar, em novembro passado, uma segunda expedição ao território. O objetivo era ajudar o poder público a liberar a fila de espera no Sistema Único de Saúde. A ONG levou equipamentos de ponta para o hospital público do município de General Carneiro (MT), que foi reformado para receber os médicos voluntários e os pacientes. Nos cinco dias de expedição, foram realizados mais 98 atendimentos clínicos e 16 operações, duas em crianças. Uma delas era Geraldo, que depois da expedição poderá retomar a vida com normalidade. REVISTA DO BRASIL

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Núcleo de Dança Pélagos ensina mais do que dança a jovens da periferia de São Paulo. Os bailarinos aprendem a arte de multiplicar o que lhes foi ensinado Por Xandra Stefanel

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CADOR

MARCIA MINILLO/RBA

A HISTÓRIA SE REPETE Rubens com os corpos cidadãos dançantes da zona sul paulistana e na capa da Revista do Brasil de junho de 2007: aprendizado em movimento

ubens de Oliveira Martins tem uma agenda e tanto. Com quase 15 de seus 29 anos dedicados à dança, é coreógrafo e diretor dos grupos Chega de Saudade e Gumboot Dance Brasil, do qual também é bailarino – e trabalha como professor em uma escola particular na zona oeste da capital paulista. Mas é na zona sul que estão suas raízes e seu maior orgulho. O Núcleo de Dança Pélagos, que criou em 2010 em parceria com a ONG Arrastão, é onde promove a multiplicação de corpos cidadãos dançantes. E replica sua história, que começou ali mesmo. Filho e irmão de músicos amadores, Rubens se inscreveu no curso de percussão do Arrastão e logo sua intimidade com a linguagem artística o promoveu a monitor assistente. Foi a porta de entrada para o projeto Dança Comunidade, que o coreógrafo e bailarino Ivaldo Bertazzo abriu para jovens voluntários ou aten­didos por organizações da periferia, em 2003. Não demorou para que ele começasse a ensinar o que aprendia a outros jovens de comunidades, tanto dentro da Escola de Reeducação do Movimento ­Ivaldo Bertazzo como no Campo Limpo, no mesmo lugar onde havia começado. Rubens trabalhava intensamente na companhia de Ivaldo, mas reservava seu único dia de folga, as segundas-feiras, para ir ao Arrastão. “Eu via as crianças e os jovens que acompanhavam meu processo com muita vontade de aprender. Eles viam matérias na TV, nas revistas, e queriam saber o que era. Daí o próprio Arrastão me convidou para dar aula, conta. Quando saiu da companhia, em 2009, o dançarino propôs à ONG um projeto pontual de oficinas para os jovens do Campo Limpo. Assim nascia o Núcleo de Dança Pélagos. No ano seguinte, estreava seu primeiro espetáculo, Volúpia. “Foi muito especial. Tentei recuperar no meu corpo e na minha cabeça a experiência que eu tive em 2003. Refleti sobre como comecei e como estava ali. Tentei trazer na memória corporal qual é o início de tudo em um trabalho com um jovem que passa pelo momento mais importante da vida, que é a adolescência. Eles viviam intensamente cada segundo”, lembra.

Segundo Rubens, o objetivo principal do núcleo é fazer com que a dança seja uma ferramenta de formação e de autoconhecimento. “O Pélagos tem um projeto de dança que leva os jovens atendidos ao palco com um espetáculo, mas não só isso. A ideia é que no momento mais difícil da vida, que é essa transição da adolescência para a vida adulta, eles tenham um autoconhecimento, equilíbrio, e aprendam a lidar com os desafios da vida adulta”, afirma. Os integrantes do grupo têm fisioterapia, aulas de danças brasileiras, balé clássico, dança contemporânea, capoeira e aulas teóricas sobre história da dança, empreendedorismo, planejamento de carreira, nutrição, sexua­lidade. Além do aprendizado, os alunos recebem uma bolsa-auxílio. “Tudo isso faz com ele entenda quem ele é nessa comunidade, para que possa levar sua comunidade para onde for”, diz o professor. “Eu percebi que era também um arte-educador. Diariamente, eles vi­ nham com questões sobre a família, pessoais, físicas e emocionais para as quais eu tinha de dar um suporte, dar segurança.” Aprendeu e ensinou. Em 2015, a previsão é que os alunos mais antigos do núcleo comecem a dar aula em um projeto em São José dos Campos, no inte­rior paulista, em parceria com a prefeitura.

Ciclos de bons exemplos

Muitos alunos já começaram a replicar seus conhecimentos. Renan ­Marangoni, de 19 anos, entrou no grupo em 2011. Dá aulas no Movimento Comunitário Estrela Nova, no Campo Limpo, e até formou seu próprio grupo, o Corpo Molde, que ­estreou­­com o espetáculo Saga Tiba em novembro do passado. “Muitas coisas que aprendi no Pélagos eu levo para o Corpo Molde e para o Estrela Nova. Vejo o Pélagos como um dos disparadores para que eu começasse a criar. Ganhei mais segurança, mais estrutura, mais base para poder estabelecer aulas em outros lugares, criar meu próprio grupo, dar oficinas... Não é só você ir lá e ensinar o passo. É o seu papel de educador, é todo um processo: você tem de entender o seu corpo para poder dançar”, declara Renan, aluno do Pélagos e professor de cerca de 70 crianças e jovens do Estrela Nova. REVISTA DO BRASIL

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MARCIA MINILLO/RBA

CORPO E MENTE Liliane: “Eu participo de um grupo de dança urbana no Grajaú e acabo dividindo com eles muita coisa do que eu aprendo no Pélagos. A cultura tem que ser passada adiante”

Está seguindo o mesmo caminho de Rubens? “Não é a mesma coisa porque nós somos diferentes, mas o olhar dele para a dança me traz muitas referências. O meu sonho é criar essa possibilidade de mais pessoas poderem vivenciar a dança”, afirma Renan, cujos alunos também já começaram a promover oficinas. “Eu vejo que esses jovens estão fazendo diferença na comunidade.” Liliane Rodrigues entrou no Núcleo Pélagos em junho de 2013, aos 19 anos, depois de ter participado do projeto Jovens Urbanos e ter feito curso de mediação de leitura, de multiplicadora e de comunicação. Convidada por um professor a assistir 42

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o segundo espetáculo do núcleo, Garimpo, a jovem ficou encantada e não demorou muito para que fizes­se parte do grupo. “Percebo a minha evolução como dançarina e também na minha formação, porque o Pélagos não forma só bailarinos, tem várias outras coisas.” Liliane pretende fazer curso técnico, faculdade e dar aula de dança. “O Rubens dá essa oportunidade para a gente, de sair, dar oficinas, vivências. É uma forma de passar adiante o que a gente aprendeu. Eu participo de um grupo de dança urbana no Grajaú (bairro da zona sul) e acabo dividindo com eles muita coisa do que eu aprendo. E é isso que me faz trabalhar.”

A inclusão é ali

Lucas Saraiva não faz parte do Pélagos, mas entrou no projeto Cidadança, de Ival­ do­Bertazzo, por indicação de Rubens, em 2007. “Ele começou no Cidadança e eu e a equipe toda trabalhamos muito nele. Depois de um tempo, ele me falou que seu sonho era entrar no Grupo Corpo. Depois do Cidadança, o Ivaldo o contratou para a companhia. Para mim, foi um prazer ter trazido esse menino do Arrastão, ter participado da sua formação e tê-lo dançando ao meu lado”, lembra Rubens. Depois de ter viajado o mundo como bailarino, Lucas teve seu sonho realizado – já completou um ano no Grupo Corpo,


ATITUDE

Rubens afirma que a arte é apenas uma ferramenta para que esse jovem reconhe­ça seu poder. “Eles têm voz e entendimento; um entendimento que nasceu na periferia. Esse jovem começa a entender, na arte, o poder que ele tem e que é dele.” É sobre isso o terceiro e mais recente espetáculo do Pélagos, Y Khyssa, que significa “o que é meu”, no dialeto Yathê, da tribo indígena Fulni-ô, de Pernambuco. O espetáculo foi apresentado no final de novembro na 31ª Bienal de Artes, em São Paulo, e é tema de um documentário que os próprios alunos do Projeto Arrastão estão fazendo.

Fome de vida

Cena de Y Khyssa

FOTOS MARCIA MINILLO/RBA

REPLICADOR Renan: “Ganhei mais segurança, mais estrutura, mais base para poder estabelecer aulas em outros lugares, criar meu próprio grupo, dar oficinas...”

de Belo Horizonte. “Sempre quis dançar nessa companhia. Estou realizando um sonho que me estimula a sonhar cada vez mais. Projetos desse tipo têm uma importância sem tamanho. É uma forma de você poder dar para esses jovens uma esperança de que pode dar certo e que eles podem ser felizes”, acredita. Mesmo que muitas vezes eles nem imaginem o tamanho do mundo que os espera. “Treinar esses jovens a sonhar é dar ferramentas e discernimento para que possam evoluir seus talentos e realizá-los. Não é preciso formar bailarinos, mas formar grandes pessoas, grandes humanos que possam fazer diferença no futuro.”

A dança é o que move esses meninos e meninas bailarinos e arte-educadores. Eles são o orgulho de Rubão, o espelho, professor e paizão. “Eu acho errôneo falar sobre ‘incluir esse jovem da comunidade’. Ele já está incluído faz tempo. É que existe uma sociedade paralela que não é conhecida, que é a nossa periferia. É lógico que é importante saber a história do Masp, mas também existe um grande reper­tório cultural na comunidade. Esse jovem também circula por esses lugares onde a cada esquina tem um sarau, uma exposição de artistas locais, um show... Está sendo construída na periferia uma maneira de viver dessa arte.”

Professor de dança em uma escola de classe média em Perdizes, Rubens diz que o “corpo periférico” tem suas especificidades. “Esse corpo do jovem da periferia tem fome de vida. Tudo o que ele faz, ele faz com muita fome, é um corpo que anda a pé, pega ônibus, arruma a casa, leva o irmão mais novo na escola, carrega uma mochila durante quilômetros para chegar até a escola, joga bola, vive a rua... E esse corpo acaba apresentando muitas possibilidades. Somos um corpo marcado por histórias boas e ruins.” Além de talento e bagagem acumulados, o pertencimento pa­rece fascinar esses 30 jovens do Núcleo Pélagos. “Eu me vejo diariamente nesses meninos, a cada dificuldade que eles têm, porque são as mesmas que as minhas. Já me perguntaram: ‘Rubens, você já dançou no Ivaldo, já conhece tanta gente importante, já viajou o mundo, por que está voltando para lá?’”. Depois de um suspiro emocionado, ele mesmo responde: “Eu não estou voltando. Simplesmente, eu nunca saí de lá”. O reconhecimento vem também­de ­Ivaldo­Bertazzo. “Ele possui familiaridade com nossas tradições, é um homem forte, com expressões fortes. É bom vê-lo seguindo os mesmos propósitos que tanto perseveramos nessas últimas quatro décadas. Desenha-se com muita nitidez que ele preencherá um grande espaço na linguagem da dança, unindo diferentes biotipos e classes sociais. É uma honra lembrá-lo como ex-aluno e parceiro”, diz Ivaldo. REVISTA DO BRASIL

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CIÊNCIA

Museu arqueológico

SOB O CÉU DA CAATINGA No sudeste do Piauí, a história do homem americano emerge com sítios arqueológicos, no meio da caatinga, e revela ao mesmo tempo os desafios da conservação ambiental e de um patrimônio cultural da humanidade Por Sucena Shkrada Resk 44

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enas de parto, sexo, dança, caça e da contagem dos dias. As ações se misturam, e o cotidiano do ser humano pré-histórico começa a ser desvendado em pinturas rupestres. As imagens em movimento se repetem em diversas formações rochosas em um vaivém constante. Esse é o cenário encontrado no Parque Nacional da Serra da Capivara, que ocupa extensa área, de 129 mil hectares, com vales e chapadões cinematográficos em parte dos municípios piauienses de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias. Neste pedaço de caatinga, a 530 quilômetros de Teresina e a 300 de Petrolina (PE), centenas de sítios arqueológicos desco-


TESOURO NA PEDRA As imagens rupestres se repetem em diversas formações rochosas ao longo da Serra da Capivara

FOTOS SUCENA SHKRADA RESK

CIÊNCIA

bertos a partir dos anos 1970 figuram entre os mais importantes das Américas. As datações mais antigas da presença humana chegam a 100 mil anos, segundo levantamentos da Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham), cogestora da unidade de conservação com o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). A área é declarada pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) como Patrimônio Cultural da Humanidade desde 1991. E também é tombada pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O desafio maior, no entanto, é a sua conservação. A Fumdham – uma Organização da Sociedade Civil de Inte-

resse Público (Oscip) – depende de parcerias e apoios por meio de leis de incentivo para dar conta de atividades públicas e da manutenção. Nos últimos tempos, o apoio está escasso, como afirma a diretora da fundação, a arqueóloga Niède Guidon, 81 anos. “Conseguimos ao longo dos anos construir uma boa infra-estrutura, mas com a atual falta de verbas tivemos de diminuir pessoal e passamos a uma estrutura com 11 guaritas para dar conta de toda a unidade de conservação”, diz Niède, que cobra a manutenção permanente por parte do governo federal, já que o parque é nacional. No mês de agosto, foram demitidos 270 funcionários que tinham o papel de proteger e fazer a limpeza nas áreas onde ficam as pinturas rupestres. REVISTA DO BRASIL

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CIÊNCIA

A fonte de receitas para ampliar a capacidade de manutenção do parque, que cabe ao ICMBio, também é flutuante. O chefe do parque, Fernando Tizianel, explica que, além de recursos fixos federais para pessoal de vigilância e administração, a unidade depende de fontes provenientes principalmente de fundos de compensação ambiental, que são irregulares. No impasse, está em questão a segurança de patrimônios que permitem uma releitura sobre a chegada do homem ao continente. A teoria antes mais difundida era de que grupos asiáticos teriam chegado da Sibéria, na Rússia, até a costa pacífica da América do Norte, pelo Estreito de Bering, há cerca de 15 mil anos, e alcançado o continente sul-americano 11 mil anos atrás. Segundo Niède, com a descoberta de inscrições rupestres onde fica o monumento geológico da Pedra Furada, que indica o povoamento da região há 100 mil anos, surgiu uma nova teoria de que o homem teria chegado da África à América do Sul, pelo Atlântico. Os dados colocam a ciência em constante movimento e aprofundamentos das pesquisas, que estão em curso na fundação. Formada em História Natural pela Universidade de São Paulo (USP), a pesquisadora se doutorou em Arqueologia Pré-Histórica pela Sorbonne, na França e deu aula em Paris, trazendo seus alunos para missões no Piauí. Em 1993, se instalou definitivamente na região e foi precursora do parque e da Fumdham. Nesse cenário enigmático, a arqueóloga também encontrou fósseis humanos e de animais pré-históricos no entorno, com o apoio de equipes de pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Um rico acervo paleontológico com diferentes espécies, como a preguiça-gigante, que pertence à megafauna, integra os laboratórios de pesquisa. Um elo com o nosso passado remoto.

Porta de entrada

Para entender esse mosaico de informações arqueológicas, no meio do semiárido, a pesquisadora estruturou o Museu do Homem Americano, localizado em São Raimundo Nonato, que é fundamental visitar antes da região do parque. A instalação com recursos multimídia traça, por meio de audiovisual, exposições de artefatos e réplicas de fósseis, uma amostra do que é encontrado na unidade de conservação, que tem cerca de 20 trilhas e 50 sítios que podem ser visitados somente em companhia de guias cadastrados pela unidade de conservação. Para chegar nesses locais, só de automóvel, moto ou por meio de ônibus fretados, com autorização prévia. E lá dentro, a maior parte da incursão é por meio de caminhadas de baixa a alta intensidade. No museu, em um grande telão são projetadas diferentes pinturas rupestres da área. As imagens cadenciadas revelam traços de homens e animais. Começa a ser contada a história da vida e dos hábitos do ser humano no continente. Entre as peças expostas no espaço cultural, uma das que mais chamam a atenção é a réplica de um enterro tríplice em uma pequena gruta, onde estão uma criança e dois adultos. A instalação faz parte do conjunto de 23 sepultamentos pré-históricos encontrados na região. Objetos de cerâmica, adorno e machados milenares também integram o acervo. 46

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A incursão parque adentro exige alguns dias, para quem quiser conhecer os diferentes núcleos. Os mais próximos se encontram a cerca de 27 quilômetros de São Raimundo Nonato, pela BR-020. São os núcleos da Toca do Boqueirão da Pedra Furada, do Sítio do Meio e do Boqueirão de Pedro Rodrigues. Nesses trechos foram encontrados os mais antigos regisAPOIO ESCASSO tros da presença humana. verba pequena e Os imensos paredões, avistados Niède: funcionários de menos por meio de passarelas, exibem em detalhes as inscrições. Com diferentes tamanhos, as pinturas vão se sucedendo nas rochas. Uma das mais famosas é a “cena do beijo”. Nesse museu a céu aberto não é difícil encontrar alguns animais “contemporâneos”, como o mocó. Esse pequeno roedor se esconde nas fendas e deixa seus “rastros” por onde anda, o que exige mais manutenção, para que as pinturas rupestres não sejam comprometidas. Uma caminhada um pouco mais exigente ao alto dos chapadões leva a uma vista panorâmica das regiões de planície, geralmente secas na maior parte do ano, mas que em época de


CIÊNCIA

FOTOS SUCENA SHKRADA RESK

CIÊNCIA EM MOVIMENTO Inscrições feitas há cerca de 100 mil anos, próximas à Pedra Furada, mudaram a teoria da chegada do homem ao continente americano

chuvas (do final da primavera ao final do verão) revelam o cenário verde da caatinga. Para se chegar lá é necessário passar pelo distrito do Sítio do Mocó, na cidade de Coronel José Dias, onde vive uma comunidade com cerca de 200 habitantes, que tenta ainda se adaptar ao turismo ecológico. Maura Ferreira Paes Landim mantém com o marido uma lojinha de artesanato rústico, onde vendem peças artesanais. “Na década de 70, aqui era praticamente isolado e as pesquisas e a criação do parque ajudaram entender a importância de se proteger essa área, inclusive como fonte de renda.” O filho Nestor também tem na atividade de guia autônomo do parque uma maneira de ganhar a vida fazendo o que gosta. Já no povoado de Barreirinha se destaca o esforço empreendedor de cerca de 30 trabalhadores da Cerâmica Serra da Capivara, que mantém loja no local e atende encomendas de grandes lojas da região e internacionais. Todo o processo de produção das peças pode ser acompanhado e tem como característica especial diferentes desenhos das inscrições rupestres do parque. Cada trabalhador exibe a sua destreza em uma parte da confecção, que tenta seguir princípios ecológicos, evitando desperdícios. Uma dessas etapas é mostrada pelo torneiro Jozias Pereira Paes Lima, 34 anos, ao delinear o formato das peças manualmente. Neste roteiro, é indispensável também conhecer onde tudo teve início, com a professora Niède Guidon, em 1970. O trecho se chama Toca do Boqueirão do Paraguaio, que fica a 40 quilômetros de São Raimundo Nonato, também pela BR020, no Desfiladeiro da Capivara. Por lá, ainda há muito chão a percorrer, nas Tocas da Entrada do Pajaú, do Inferno, que é uma grande gruta escondida entre paredões, e a do Baixão da Vaca, entre outras. De certa forma, simula os caminhos percorridos pelos homens primitivos. Em outro sentido da BR-020, mais um núcleo interessante é o Sítio Vermelho, que fica no lado oposto ao da Pedra Furada. Um relevo diferenciado se apresenta com um detalhe a mais. Ocorre diariamente um espetáculo da natureza, por volta das 17h: neste trecho conhecido por Baixão das Andorinhas, as aves fazem voos sincronizados pelo cânion entre as elevações montanhosas. Parar e concentrar o olhar nessas cenas, que são ritmadas e geralmente acompanhadas pelo pôr do sol, torna a experiência ainda mais envolvente. O Parque Nacional da Serra da Capivara é essa caixa de surpresas arqueológicas e ambientais, revelando um semiárido rico e ainda pouco conhecido, que recebe anualmente cerca de 20 mil visitantes. Com a abertura em curso do aeroporto de pequeno porte da cidade de São Raimundo Nonato, reivindicado há muitos anos pela pesquisadora, talvez essa projeção possa aumentar. Essa é a expectativa da arqueóloga, que luta, há décadas, pela instalação de melhores vias de acesso e instalações para possibilitar o turismo sustentável na região. Mais informações sobre a unidade de conservação podem ser encontradas no site: www.fumdham.org.br REVISTA DO BRASIL

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curtaessadica

Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Murnau. Paisagem Estival (1909). Estudo para o quadro Casas na montanha

A voz grave de Nástio Mosquito ecoa crítica, acidez e poesia sobre uma Angola de certa forma inacessível a olhos estrangeiros. Mais conhecido por seu trabalho como artista plástico, Nástio lançou no Brasil o álbum digital duplo Se Eu Fosse Angolano, com letras que são uma viagem pessoal pelos caminhos da identidade, da política, da religião, do racismo e da exploração, mas também pelas relações entre homem e mulher, com o dinheiro e pelo amor que ele tem por seu país. O angolano passeia pelos sons do dub, hip hop, semba, rock, kuduro e do kizomba. O disco pode ser comprado na loja virtual iTunes por US$ 9,99.

Passeio abstrato O Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro expõe até 30 de março a trajetória e as ideias de Wassily Kandinsky, criador do abstracionismo. A exposição Kandinsky: Tudo Começa num Ponto propõe um mergulho nas raízes do pensamento do artista russo por meio de textos, sons, imagens e de 72 obras do pintor. O visitante poderá fazer um passeio sensorial interativo para vivenciar os conceitos desenvolvidos por Kandinsky. De quarta a segunda, das 9h às 21h, na Rua Primeiro de Março, 66, no centro. Mais informações: (21) 3808-2020. Grátis.

Filmes para mudar o mundo O papel transformador da criança é o tema central da Caixa de Mudança, coletânea com três DVDs lançada pela produtora Maria Farinha Filmes. A embalagem já anuncia a intenção dos três longas-metragens: promover mudanças a partir de uma reflexão profunda sobre como a sociedade age em algumas questões ligadas à infância. O consumo, a saúde e a diversão desses pequenos cidadãos são discutidas nos documentários Criança, a Alma do Negócio, de Estela Renner, Muito Além do Peso, de Estela Renner, Luana Lobo e Marcos Nisti, e Tarja Branca – A Revolução que Faltava, dirigido por Cacau Rhoden. O primeiro filme trata sobre como as crianças se tornaram o alvo preferencial da publicidade, que incentiva o desejo constante de consumo; Muito Além do Peso mergulha no tema da obesidade infantil e discute o porquê de 33% das crianças brasileiras pesarem mais do que devem; e Tarja Branca fala sobre a importância das atividades lúdicas e defende que brincar pode ser a cura para muitos males do mundo moderno. À venda no site da produtora (http://mff.com.br/loja) por R$ 59. 48

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WASSILY KANDINSKY/AUTVIS BRASIL, 2014

Angola plural


DIREÇÃO: TRAVIS RUMMEL E BEN KNIGHT, 2014

Filmes ambientais De 19 a 29 de março, São Paulo sedia a Mostra Ecofalante de Cinema, que reúne filmes de temática ambiental vindos de 23 países, grande parte ainda inéditos no Brasil. Matrizes energéticas, transgênicos, a vida nas grandes cidades e o esgotamento e a exploração de recursos naturais por grandes corporações são algumas das questões dos filmes, que serão divididos pelos temas Cidades, Energia, Biodiversidade, Recursos naturais, Consumo e Povos e Lugares. As sessões serão realizadas nos cinemas Belas Artes, Reserva Cultural e Olido, além das salas do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Confira a programação completa do festival em www.ecofalante.org.br.

Damnation

Lei da Água, No Código Florestal

DIREÇÃO: ANDRÉ D’ELIA, 2014

DIREÇÃO: ELIZA KUBARSKA, 2014

Walking Under Water

Eternizadores

Liberdade

Grandes fotógrafos brasileiros se encontraram em fevereiro para contar suas melhores histórias para o portal Eduk, uma espécie de “escola virtual” que oferece cursos on-line. Com mediação da doutora em Psicologia, jornalista e crítica fotográfica Simonetta Persichetti, Evandro Teixeira, Hélio Campos Mello, Juca Martins, Nair Benedicto, Ricardo Chaves e Rogério Reis contam episódios importantes que presenciaram na intensa tarefa de fotografar. Ser mantido refém de fundamentalistas na Guerra do Golfo, acompanhar o treinamento militar de crianças no Líbano e lidar com restrições impostas pela ditadura são alguns dos assuntos que os fotógrafos discutem no vídeo, que pode ser assistido na página www.eduk.com.br

Qual foi o dia mais importante da vida de Dom Pedro II, Chiquinha Gonzaga, Lima Barreto, Monteiro Lobato, Mário de Andrade, do advogado abolicionista Luiz Gama e da nadadora Maria Lenk? Antes e Depois (Cia. das Letras, 192 pág.), de Flavio de Souza, conta para os leitores mirins um dia decisivo na vida desses grandes brasileiros quando pequenos. Com ilustrações de Daniel Almeida, o livro é uma ode à liberdade, fundamental para estas (e tantas outras) pessoas que atuaram de forma inovadora e que, de alguma forma, mexeram com a sociedade. R$ 38 REVISTA DO BRASIL

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B.KUCINSKI

Papo de sogras — Quando eu começo a gostar de uma o Hugo aparece com outra. A Laura é a quarta. — Simpática, a Laura. — Pode ser, mas já estou cansada de gostar e depois ter de desgostar. — Cada qual com sua cruz. Eu já acho que é melhor assim do que ter nora permanente. Não suporto a Kátia, interesseira, falsa... Odeio a Kátia. — Você acha que ela casou com o Felipe por dinheiro? — Você tem alguma dúvida? — Não sei, a mãe é você, ou melhor a sogra é você. Por que você tem tanta certeza? — Porque tenho, ora. As mulheres sabem. Além do mais, as coisas que ela diz pra minha neta... — Por exemplo? — Por exemplo, você é o nosso patrimônio, a nossa segurança. — Disse isso pra Clarinha? Que cara de pau! — E tem mais, enjeita o filho do primeiro casamento, o Luizinho, como se fosse um traste. — O primeiro marido era pobre? — Hoje é remediado, acho até que comprou casa, mas tem a outra família com três filhos e mulher ciumenta. Não quer saber do Luizinho. — Ele não leva o Luizinho de vez em quando pra passear? — As poucas vezes que levou foi para dar serviço, pra cuidar dos meio-irmãos, dos filhos pequenos da outra, enquanto ele mesmo saía com a mulher. — Pensão, ele paga? — Paga porque o juiz forçou, mesmo assim, uma merreca, 250 reais. — Isso é o mesmo que nada! — É um pão-duro e um aproveitador, essa é que é a verdade, igual a ela, farinha do mesmo saco. — Sobra pro Felipe? — Sobra pra mim, isso sim, eu é que pago o pato. Você acha que o Felipe ganha pra sustentar mulher e duas crianças? Nem ele nem os amigos dele. Hoje em dia, nenhum deles consegue. — Você tem razão, meu Hugo também ganha pouco; não quer filhos por isso. — Não é como no nosso tempo, você se 50

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formava e logo tinha um bom emprego. Eu é que pago a escola da Clarinha e do Luizinho, pago a internet, o dentista dos dois, dou uma ajuda no aluguel e qualquer extra também eu é que pago. — A avó provedora. Esse problema eu não tenho. Pelo menos enquanto o Hugo não tiver filhos. — Mas o ninho ele não abandona... — É verdade. Vinte e sete anos e ainda mora comigo. Mas isso quase não custa, e eu até gosto, ganho com a companhia. — Pensando bem, saía mais em conta eu ter o Felipe morando comigo mais a Clarinha, sem Kátia nenhuma, sem nora. — Ele gosta da Kátia? — Baba por ela, o pior é isso. — Uma pena, não é mesmo? Se a Kátia é como você diz, quem precisa de nora? — Ninguém. — Curioso como nunca pensei nisso. Não é preciso ter noras para ter netos. Acho que você fez uma grande descoberta. — Claro! Não está mudando tudo? O mundo não está de cabeça pra baixo? União do mesmo sexo, casamento temporário, sexo virtual, barriga de aluguel, inseminação artificial, pra que ter nora? — Nora de aluguel. Grande ideia. Que nos deem os netos e sumam.


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