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TRANSGÊNICOS Se são inofensivos, por que esconder?

DE QUEM É A BOLA O abismo entre a paixão pelo futebol e o mundo dos cartolas

nº 108 julho/2015 www.redebrasilatual.com.br

PARA A VIDA FLUIR

Com ciclovia na Av. Paulista, São Paulo ousa na ocupação do espaço sagrado do carro em nome de uma cidade mais ágil e viável, como já fazem Rio, Brasília, João Pessoa, Aracaju...


Previna-se das armadilhas da desinformação. Acompanhe aqui a cobertura dos principais fatos no país e do mundo. E siga nas redes sociais nosso jornalismo crítico, cidadão e transformador

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ÍNDICE

EDITORIAL

5. Na Rede

Notas que foram destaque na RBA no mês que passou

10. Marcio Pochmann LEON RODRIGUES/SECOM/PREFEITURA DE SÃO PAULO

Desajuste não passa confiança a empresas nem à sociedade

12. Ambiente

Ciclovia na Av. Paulista é marco na luta por outra mobilidade

18. Saúde

Se o transgênico é inofensivo, por que esconder do consumidor?

24. Entrevista

Pesquisa musical de Franklin Martins conta história do país

30. Esporte

Bikers tomam conta da Avenida Paulista: revolução contra a cultura insustentável do carro

O abismo entre a paixão pelo futebol e o mundo dos cartolas

Um bom conselho

36. História

D

Henry Ford queria a borracha da Amazônia em seus pneus

40. Mundo

Flávio Aguiar e a leitura que o mundo anda fazendo do Brasil

LUCIANA WHITAKER/RBA

O samba de Moacyr Luz

44. Viagem

Renascença, no Rio: espaço de resistência e referência do samba

Seções Cartas 4 Destaques do mês

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Lalo Leal

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Emir Sader

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Curta essa dica

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Crônica: Selma Vital

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urante o seminário Cidades Rebeldes, no mês passado, o geógrafo britânico David Harvey sugeriu ao prefeito de São Paulo, Fernando Haddad: “Abra o maior número possível de espaços onde movimentos revolucionários possam acontecer”. É uma forma de permitir que espaços públicos sejam desprivatizados e destinados ao exercício da cidadania. Ao enfrentar a ditadura do automóvel, a política de expansão dos corredores exclusivos a quem quer usar a bicicleta como meio de transporte pode não ser exatamente uma revolução. Mas vinda da administração de uma das maiores e mais congestionadas cidades do mundo, a opção não é pouca coisa e cria uma referência de grandes proporções para a democratização do espaço público. Não se trata de inventar a roda, já que várias cidades mundo afora pensam em mobilidade. Mais que a cultura egoísta, violenta e insustentável do carro, o objetivo de chegar ao fim do ano com 400 quilômetros de ciclovias enfrenta o mau humor de uma parcela pequena da cidade. Setores acostumados a se opor a um projeto não pelo seu mérito, mas pela cor da bandeira de quem toca a ideia. Foi vergonhosa a cobertura de alguns jornais tentando encontrar pelos em ovos enquanto uma multidão celebrava uma conquista que vai além de qualquer coloração partidária. Essa conduta da picuinha associada a interesses mesquinhos é exemplo de deseducação política. E dificulta ao cidadão comum entender, por exemplo, o que move o político que quer abrir a exploração do pré-sal às companhias estrangeiras num momento em que se decide que parte significativa dos recursos de controle nacional se destinarão à saúde e à educação. Ou o deputado que se diz preocupado com os trabalhadores ao votar mudanças na Previdência – só para derrotar o governo –, mesmo tendo votado a favor da terceirização que assombra o futuro dos empregos. Ou os que desprezam escolas públicas e seus professores num dia, e no outro querem condenar ao castigo de um adulto uma criança que não teve nem sequer oportunidade de sonhar. São as contradições de um sistema caduco, em que parte dos políticos e dos “formadores de opinião” atua para que a sociedade se desencante, em vez de se interessar pela política. Caberia, então, aos governos progressistas subordinar-se menos as essas coalizões repletas de forças ocultas, e abrir-se mais ao conselho de David Harvey. REVISTA DO BRASIL

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CARTAS www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Helder Lima, Hylda Cavalcanti, Rodrigo Gomes e Sarah Fernandes Arte Leandro Siman Iconografia Sônia Oddi Capa Fotos de Rafael Neddermeyer/Fotos Públicas e Danilo Ramos/RBA (futebol) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 (Carla Gallani) Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Tiragem 360 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eliana Brasil Campos, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Raimundo Suzart, Raul Heller, Roberto von der Osten, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior

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Futuro à deriva A matéria tenta justificar a greve política feita pela Apeoesp/CUT. São Paulo tem um dos melhores índices de educação do país. Investe mais do que a lei prevê para a pasta. Vai começar a testar uma nova grade curricular flexível, modernizar o ensino e melhorar a qualidade. O fracasso da greve mostra que a ação política da Apeoesp, manipulada pelo PT, de jogar a opinião pública contra o governador, não surtiu efeito. (“A omissão deseduca”, ed. 107) Welbi Maia Brito A convenção do PSDB em São Paulo lançou o nome de Geraldo Alckmin à presidência da República para 2018. Deus nos livre. Coitados dos professores do país inteiro, vão comer o pão que o diabo amassou. Alckmin sugou e secou SP. Vai sugar e secar o Brasil inteiro. Agora é que os movimentos sociais e a esquerda têm que se unir contra esse tucano que pode destruir o país. (“A omissão deseduca”, ed. 107) Helena Osawa

Greve e EUA Sobre a greve dos professores (“A omissão deseduca”, ed. 107): sou professora e vejo que não fomos fortes o suficiente para derrotar o governo. O sindicato somos nós, os professores. Quem deu os rumos da greve não foi o sindicato, fomos nós. A questão, após 92 dias, e sem fundo de greve para manter os resistentes, é que foi o ponto chave. Com os desgastes físicos, psicológi-

cos e financeiros... claro, a militância já não estava aguentando mais. Mas ainda insisto em dizer que quem deu o rumo fomos nós, os professores, e há muitos independentes, sem estar presos a nenhuma corrente. Sobre a coluna de Emir Sader (“Uma concorrência para os EUA”, ed. 107): isso mostra que os Estados Unidos já não são o “país das oportunidades”, embora alguns ainda achem. E com essa extraordinária ascensão da China... aí a casa cai mesmo. Mas penso que isso já vem lá de trás também. Grande parte da culpa dessa decadência cabe a George W. Bush, que deu rédeas soltas aos bancos, não? Sandra Cantii

Operação Zelotes O que o articulista quis dizer com “A investigação de crimes praticados por grandes empresários, detentores de fatia considerável do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, caminha relegada ao desinteresse por falta de associação a um escândalo que reverta em dividendos ou prejuízos políticos.”? (“Abafada com zelo”, ed. 107) Renato Martins Barcellos Resposta da repórter Hylda Cavalcanti: Quis dizer que a maioria dos parlamentares não demonstra interesse em ir fundonasinvestigações,assimcomoamídia, talvez porque o escândalo vai respingar emempresascujosdonoselesconsideram “amigos” ou “patrocinadores”. E que não terãodividendopolítico,poisasapurações não vão ajudar a criticar adversários, comoacontecenaLavaJato.Issoestáditona reportagem por parlamentares e por um procurador da República.

Jornalismo livre Única esperança de um Brasil mais justo! Imprensa ética, livre da mordaça corporativa que impõe a mentira, o desrespeito e a distorção do entendimento público! (“Tod@s junt@s somos fortes”, ed. 107) Luiza Rotbart

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


redebrasilatual.com.br

Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

Melhor ajuste é o tributário O governo tenta conter gastos sem promover coerência fiscal. O sistema de impostos precisa cobrar de quem tem mais e criar bases para um modelo econômico mais distributivo

A

discussão sobre mecanismos de aplicação de impostos e de combate à sonegação é antes de tudo político, diz respeito a todos os poderes e, sobretudo, a toda a sociedade, que é quem vai pagar e terá de ser atendida pelos serviços públicos financiados com os recursos arrecadados. Para o auditor fiscal da Receita Paulo Gil Introini, o assunto não interessa à elite e seus porta-vozes nos meios de comunicação: “A classe dominante é competente em convencer a sociedade a manter o quadro de injustiça e iniquidade”, afirmou Introini, durante seminário promovido pelo Sindicato dos Bancários de São Paulo no final de junho. Segundo o professor João Sicsú, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), empresas multinacionais remeteram ao exterior US$ 52,3 bilhões em 2013 e 2014. “Esse valor assombroso não se reverte para criar renda e emprego.” Para Sicsú, a opção atual da equipe econômica, de basear o dito ajuste em

MAURICIO MORAIS/SIND.BANCÁRIOS SP

Sicsú: “A justiça tributária é a principal fonte de financiamento do desenvolvimento”

cortes de gastos, sem introduzir a preocupação com melhorar a arrecadação, vai levar a um retrocesso. “A justiça tributária é a principal fonte de financiamento do desenvolvimento.” Na opinião de Introini, a isenção de impostos sobre lucros e dividendos pagos a sócios e acionistas de empresas é questão essencial no contraditório sistema tributário. “Se tivesse uma bala de prata, a primeira medida seria revogar essa isenção, inclusive sobre remessa de lucros ao exterior”, afirma o auditor. No mesmo debate, o diretor de Assuntos Institucionais do Instituto de Justiça Fiscal, Dão Real Pereira dos Santos, ponderou que a mudança do sistema tributário não se dará facilmente por meio do Parlamento, uma vez que o poder econômico é determinante na composição do Legislativo: “Os parlamentares são eleitos por quem financia, e não por quem vota. No caso do nosso sistema tributário, o poder não emana do povo, emana do lucro”. Nem seria preciso mexer muito na Constituição para se chegar a mudan-

ças significativas, na opinião da auditora Clair Hickmann. “Uma reforma infraconstitucional poderia ser capaz de trazer justiça em vários aspectos. Por exemplo, o princípio da progressividade, que pode fazer o tributo ser um instrumento de distribuição de renda. Todos os rendimentos de capital têm de ser levados a uma tabela progressiva”, defendeu. O presidente da Fundação Perseu Abramo e colunista da RBA Marcio Pochmann, lembrou ainda que o país nunca teve tradição de congressos progressistas e que é tarefa do governo elaborar um plano de ação para conquistar apoio da sociedade. “É necessário planejar o que fazer nos próximos três anos. Juscelino Kubitschek não tinha maioria. Construiu-a­com diá­logo e articulação social, com a agenda 50 anos em cinco, feita com o povo. Não podemos aceitar a mediocridade”, afirmou. “Precisamos construir uma nova maioria política para democraticamente caminhar no sentido da justiça tributária. Se nós da esquerda não pensarmos, a direita já tem tudo pronto.” bit.ly/rba_reforma_tributária REVISTA DO BRASIL

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O geógrafo britânico David Harvey, um dos marxistas mais influentes da atualidade, não precisou ser questionado para deixar uma sugestão ao prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, durante o seminário Cidades Rebeldes, em junho, em um debate em que participaram juntos. A dica valeria para qualquer município: “Se alguém me perguntasse que conselho eu dou para o prefeito, diria: ‘Abra o maior número possível de espaços onde movimentos revolucionários possam acontecer’. A revolução não ocorrerá amanhã. A tarefa que pode ser feita é dar a oportunidade. Sem esses espaços, o aparato repressivo do Estado cresce”, explicou. “Sou um anticapitalista por motivos racionais. Qualquer pessoa que olhe objetivamente para a situação que estamos pode pensar o mesmo.” bit.ly/rba_rebelde1

Harvey: anticapitalista por motivos racionais

ANA YUMI KAJIKI/BOITEMPO EDITORIAL

Espaço para a revolução

Polícia sem freio O Movimento Passe Livre considera que o Ministério Público Federal “blindou” o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), ao arquivar o inquérito civil que investigava os abusos cometidos por oficiais da Polícia Militar durante protesto de 13 de junho de 2013 pela redução da tarifa do transporte. “O arquivamento deixou clara a posição de blindagem do Ministério Público Federal ao governador e jogou a responsabilidade para o estadual, que não só não investiga nenhuma das ilegalidades cometidas pela polícia nos últimos anos, como tem agido para processar manifestantes ilegalmente”, diz uma das integrantes do movimento, Nina Cappello. “Reunimos muitos elementos que deixam bem clara a articulação do governo de São Paulo e da PM para reprimir os manifestantes.” bit.ly/rba_pm_impune 6

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O Supremo Tribunal Federal (STF) liberou por unanimidade, em 10 de junho, a publicação de biografias não autorizadas, sem autorização prévia. O voto da ministra relatora, Cármen Lúcia, favorável a uma ação movida pela Associação Nacional das Editoras de Livros (Anel), teve a concordância de outros oito ministros da Corte: Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Rosa Weber, Dias Toffoli. Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. Segundo Lewandowski, foi “um momento histórico” do STF, ao reafirmar a “mais plena liberdade de expressão, desde que não se ofendam outros direitos constitucionais dos biografados”, referindo-se tanto à liberação de obras sem autorização prévia como à garantia de eventual reparação decorrente de abusos que venham a ser reconhecidos pela Justiça. bit.ly/rba_biografia Cármen Lúcia: liberdade para as biografias ANTONIO CRUZ/ AGÊNCIA BRASIL

Violência da PM no dia 13 de junho de 2013 causou revolta

JENNIFER GLASS/RBA

Sem censura


Fernando Brant se foi no dia 12 de junho, aos 68 anos. Uma das mentes brilhantes da música brasileira, fez história com canções eternizadas, como Travessia, Canção da América, Nos Bailes da Vida e Maria, Maria. “Ele fez parte da coisa maior da minha vida, que é amizade. A gente compartilhava o que aparecia nas nossas vidas”, disse o amigo Milton Nascimento. Outro parceiro de Clube da Esquina, Lô Borges, escreveu sobre o amigo em rede social: “Um dos intelectuais mais brilhantes e fundamentais do Brasil, partiu em seu voo pássaro. Amigo, parceiro, grande e inspirado letrista, escritor e jornalista, Fernando escreveu pérolas que ficarão gravadas no inconsciente coletivo por toda eternidade”. A presidenta Dilma Rousseff, mineira da mesma geração dos compositores que fundariam o Clube da Esquina, disse, em nota: “Fernando cantou a nossa geração, o nosso povo e os nossos sonhos”. bit.ly/rba_brant

JUNINHO/MUSEU CLUBE DA ESQUINA

Amigo pra se guardar

Brant e Milton Nascimento no início dos anos 1970

Acolhimento reconhecido

VITOR VOGEL/UNE

Carina: reduzir o Estado não é o caminho

Coração de estudante A nova presidenta da União Nacional dos Estudantes (UNE), Carina Vitral, assume em um momento em que a entidade vem resgatando seu papel de protagonismo nos movimentos da sociedade, com marcação cerrada contra o projeto de redução da idade penal e preocupação com a condução da política econômica. Estudante de Economia, Carina disse em entrevista à RBA que o ajuste não servirá como porta de saída da crise se inibir a retomada do crescimento. “A gente não acha que reduzir o papel do Estado possa contribuir para ampliar o investimento privado, no Brasil. É preciso retomar o crescimento e o emprego, principalmente na indústria. O corte na educação é ainda mais desastroso, porque boicota, inclusive, esse crescimento que a gente precisa ter no médio prazo”, diz. “A atual situação da universidade faz com que a gente tenha de investir mais na educação, e não menos.” bit.ly/rba_estudantes

O representante do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), Andrés Ramirez, elogiou a política brasileira, “humanitária e generosa”, de acolhimento de refugiados. “Os países ricos, em geral, têm de aprender com o Brasil como implementar ações receptivas. Essas pessoas não vêm para tentar uma vida melhor, mas para salvar suas vidas. O Brasil está oferecendo um bom exemplo”, disse. O país tem hoje 7.700 refugiados de 81 países. O número de solicitações de refúgio ao governo brasileiro aumentou 22 vezes entre 2010 e 2014, de 1.165 para 25.996, de acordo com o Ministério da Justiça. “Fica claro que os números do Brasil estão aumentando. O país não está isolado das tendências mundiais de refúgio. Cada vez mais está diante de uma situação complexa e precisa se fortalecer mais.” bit.ly/rba_refugiados REVISTA DO BRASIL

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HEINRICH AIKAWA/INSTITUTO LULA

Lula ao lado de Felipe González: revolução dentro do PT

Temporada de caça ao Lula A abordagem “distorcida” da Operação Lava Jato pelos meios de comunicação e por setores do Judiciário tem intenções políticas e as prisões preventivas, como as dos executivos da Odebrecht e da Andrade Gutierrez, em 19 de junho, em muitos casos não se justificam. Para o jurista Dalmo Dallari, especializado em Direito Constitucional, “em última análise, a intenção é atingir o Lula, visto como provável candidato à sucessão da Dilma”. Para ele, a “direita intolerante, vingativa, feroz, deve estar sofrendo muito. Até agora não conseguiram chegar no ex-presidente Lula.E, pelo que foi revelado, não irão conseguir. Não há elementos para isso”, diz. bit.ly/ rba_dallari O ex-presidente, por sua vez, não se recolhe na retranca.

Quando menos se espera, vai ao ataque. Recentemente, durante encontro com o ex-primeiro-ministro Felipe González, do Partido Socialista, que governou a Espanha por 14 anos (1982-1996), cobrou de seu próprio partido uma atitude para que saia do marasmo, rejuvenesça e resgate suas origens. Sem se excluir, reconheceu dificuldades diante do atual processo político brasileiro, mas desferiu uma ruidosa bronca a integrantes do governo, da máquina partidária e mesmo a parcela da militância: “Eu penso se não está na hora de a gente fazer uma revolução interna e colocar gente nova, mais ousada, com mais coragem do que a gente. Temos que definir se queremos salvar a nossa pele e nossos cargos ou salvar o nosso projeto”. bit.ly/rba_fala_lula

Memórias latino-americanas

O escritor Eric Nepomuceno lançou recentemente o livro A Memória de Todos Nós (Editora Record), contando histórias de quem passou por ditaduras na Argentina, no Chile e no Uruguai. “Países que se confrontaram com o passado”, ressalta. O autor lembra que em meados dos anos 1970 a região só tinha dois países com governos constitucionais, Venezuela e Colômbia. Os demais viviam períodos de exceção, situação que começou a mudar nos primeiros anos de década seguinte, interrompendo um longo período de autoritarismo, desencadeado ainda em 1954, com um golpe na Guatemala e, pouco depois, no Paraguai. Antes de entrar no relato do livro em si, Eric fez uma reflexão sobre as dificuldades de se avançar no resgate da memória. “Por que o Brasil ficou na rabeira? Por que levou 20 e tantos anos para instalar uma Comissão da Verdade? Por que a memória nos incomoda tanto, nos faz mal?” bit.ly/rba_eric-nepomuceno Outro lançamento recente é a CIA Contra a Guatemala: Movimentos Sociais, Mídia e Desinformação, de Leonardo Severo (Editora Papiro, selo Barão de Itararé). O autor faz um resgate histórico da situação do país da América Central onde se deu o primeiro golpe de Estado na América Latina arquitetado pelos Estados Unidos. O golpe, em 1954, pôs fim ao governo democrático-popular de Jacobo Árbenz, que havia implementado reformas estruturais, como a agrária, e que atingia os interesses da multinacional bananeira United Fruit Company. bit.ly/rba_guatemala 8

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WILSON MAGÃO

Cartaz de Tico-Tico no Fubá, um dos grandes sucessos produzidos pela Vera Cruz

A volta da fábrica de cinema Ainda levará alguns anos, mas a expectativa é de que os antigos estúdios da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, possam voltar a produzir filmes e outros conteúdos audiovisuais. Famoso por produções nos anos 1950, o local está desde 23 de junho em regime de concessão, sob a responsabilidade da Telem (Técnicas Eletro Mecânicas) – com prazo de 30 anos. O objetivo é implementar uma cadeia econômica ligada ao audiovisual. O prefeito Luiz Marinho afirmou que, com a concessão, se delega um trabalho para que se possa produzir mais e melhor. “Não basta ter a visão romântica da cultura, dos estúdios da Vera Cruz. É preciso ter o pé na realidade e conseguir equilíbrio econômico.” Criada em 1949, a companhia foi responsável por produções como Caiçara (1951), filme dirigido por Adolfo Celi, Tico-tico no Fubá (1952), do mesmo diretor, e O Cangaceiro (1953), de Lima Barreto, melhor filme de aventura e trilha sonora no Festival de Cannes, na França, com um clássico da música brasileira, Mulher Rendeira. O estúdio não funciona desde 1972. O complexo de quase 46 mil metros quadrados terá se-

te estúdios, de diferentes tamanhos, centro cultural, salas de produção, memorial e teatro com 853 lugares. O Centro de Audiovisual (CAV) da prefeitura, espaço montado em parceria com o Ministério da Cultura para formação de profissionais, passará a funcionar no complexo, onde também deverá ser organizada uma incubadora de empresas com o propósito de fomentar o setor. “Os estúdios da Vera Cruz são uma parte de nossa memória afetiva”, diz o secretário municipal da Cultura, Osvaldo de Oliveira Neto. “O objetivo é não só que a cidade volte a discutir cinema, mas construir uma nova cadeia econômica. Chegamos a um modelo de negócio. O que nos faltava era trazer o mercado.” O cineasta Newton Cannito, ex-secretário do Audiovisual do Ministério da Cultura, aposta no projeto, que não seguirá mais o modelo clássico dos antigos estúdios. “O que está crescendo mais, em termos de indústria, é a produção independente. O mais importante é que o modelo de criação está previsto de forma muito aberta. Há um caminho natural de democratização da produção”, disse Cannito, filho de operário da Villares, no ABC. bit.ly/rba_vera-cruz REVISTA DO BRASIL

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MARCIO POCHMANN

Outra agenda é possível

Ajuste que desajusta não passa confiança à sociedade nem a empresários. Caberia, no lugar do atual programa, retomar a combinação de democracia com crescimento e distribuição de renda

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diagnóstico de que a economia brasileira não cresceria mais sem antes haver a recuperação do grau de confiança dos empresários levou a equipe econômica do segundo governo da presidenta Dilma Rousseff a defender um conjunto de medidas definidas como ajuste fiscal. Isso porque a queda nas expectativas dos empresários foi entendida pelo governo federal como decorrente de piora na situação das contas públicas. Como somente o ajuste fiscal causaria um novo contexto nacional de finanças saudáveis, plenamente satisfatório à elevação das expectativas dos empresários, a retomada do crescimento econômico brasileiro se tornaria mera consequência. Justificável, portanto, a centralização do funcionamento do governo federal – neste início de 2015 – em torno das políticas de ajuste fiscal de curto prazo. Mas, junto com isso, passaram a surgir contradições importantes, talvez inesperadas inicialmente. De um lado, a posição dos ministérios da Fazenda e do Planejamento comprometida com a adoção do programa de austeridade fiscal, que atinge valor próximo de R$ 106 bilhões e se compõe de três partes, a saber. A primeira a ser anunciada foi a de cortes nos benefícios sociais (abono salarial, seguro-desemprego, seguro-defeso, pensão por morte e auxílio-doença), impulsionada pela expectativa da economia de cerca de R$ 15 bilhões. A segunda parte do programa de austeridade fiscal implementado compreendeu a alta nos tributos sobre combustíveis, cosméticos, operações financeiras e produtos importados, entre outros. A arrecadação adicional esperada pelo governo federal foi de quase R$ 21 bilhões. Por fim, a terceira parte foi a retenção das despesas orçamentárias (contingenciamento), que limitaram os gastos nos ministérios. Para 2015, por exemplo, o governo federal contingenciou a soma de R$ 69,9 bilhões, o que equivale a reter R$ 1 de cada R$ 4 que 10

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havia previsto despender no orçamento deste ano – os cortes serão nas despesas chamadas discricionárias (aquelas que não obrigatórias, definidas pela Constituição federal, o piso mínimo para educação e saúde, por exemplo). A maior parte da retenção orçamentária veio do Programa de Aceleração do Crescimento, que contribuiu com R$ 25,7 bilhões (39% do total contingenciado), seguida de outras despesas como saúde, educação, transporte, ciência e tecnologia, entre outras, representando R$ 22,8 bilhões (33% do total retido). As emendas parlamentares contingenciadas envolveram a somatória de R$ 21,4 bilhões (31% do total contido). Com esse esforço gigantesco, a equipe econômica acreditou ser possível garantir a realização de superávit fiscal equivalente a 1,1% do Produto Interno Bruto de 2015. Ou seja, terminar o ano com um saldo positivo de R$ 55 bilhões, resultado de receita líquida federal esperada de R$ 1,158 trilhão para uma despesa primária (sem contar gastos com juros) fixada em R$ 1,103 trilhão.

Combinação contraditória

De outro lado, está a postura do Banco Central comprometida com a elevação das taxas de juros. Somente nos primeiros seis meses do ano, a taxa de juros subiu dois pontos percentuais (de 11,75% anuais em dezembro de 2014 para 13,75% em junho de 2015). Considera-se que a cada aumento de um ponto percentual na taxa de juros o custo total anual da rolagem da dívida do setor público indexada à Selic eleva-se em torno de R$ 13 bilhões. Com isso, o Banco Central sozinho contribuiu para o aumento das despesas públicas em R$ 26 bilhões por força da alta nos juros somente neste primeiro semestre. A combinação do programa de austeridade fiscal com a elevação das taxas de juros provocou inexoravelmente o encolhimento da economia brasileira. Diante da queda na renda nacional, a diminuição da arrecadação tributária torna-se simples consequên­cia. Esti-


LULA MARQUES/ AGÊNCIA PT

MARCIO POCHMANN

mativas iniciais apontam a possibilidade de redução da arrecadação tributária em até 3% em termos reais, o que poderia equivaler a algo próximo de R$ 50 bilhões a menos nos cofres governamentais deste ano. Eis aqui a contradição das políticas de curto prazo em 2015: o programa de austeridade fiscal dos ministérios da Fazenda e Planejamento visa à economia de R$ 106 bilhões, enquanto a ação do Banco Central, com a elevação dos juros, e a recessão contaminando o caixa do governo envolvem cerca de R$ 76 bilhões. Ou seja, o imbróglio de seis meses do segundo governo Dilma encontra-se entregue a uma batalha de R$ 30 bilhões capazes de fazer emergir o grau de confiança dos empresários e, por assim, dizer, o retorno do crescimento da economia nacional com base em investimentos do setor privado. Sem superar essa armadilha de curto prazo, o horizonte do crescimento dificilmente voltará a aparecer. Mas outra agenda é possível, uma vez que o papel dos governos é o de trazer para o valor presente o que o povo imagina ser apenas possível na forma de sonho. O Brasil é um país em construção. Falta ainda de tudo, da infraestrutura básica (saneamento, rodoviá­ rias, ferrovias, entre outros) à pesquisa científica e tecnológica. Essa deveria ser a agenda retomada, em que o segundo Programa de Investimento em Logís-

tica recentemente anunciado poderia se constituir em nova direção a seguir. Na esteira desse rumo, a implementação de uma política pública democraticamente negociada em defesa da produção e do emprego nacional se colocaria essencial. São milhões de ocupações ceifadas pelo curso da recessão que, acrescida da queda dos rendimentos do trabalho, aprofunda o desgaste no interior da estrutura social e ameaça combinar-se com as faces política e econômica da crise aberta. Estancar o sofrimento humano, que resulta de um programa que em vez de ajustar desajusta, deve ser prioridade, alcançável por meio da adoção de outra agenda. O crescimento de uma economia como a brasileira não se constitui de uma simples e natural confiança dos empresários, ainda que fundamental, mas não o suficiente. O sentido, a direção e a motivação geral que definem o crescimento econômico dependem da confiança da sociedade no seu governo. O programa atual de austeridade fiscal não tem conseguido estimular a maior confiança tanto da sociedade como dos empresários. Para que outra agenda se mostre capaz de recuperar a força do desenvolvimento, a combinação da democracia com crescimento econômico e distribuição de renda deve seguir sendo a principal força motriz.

CONTRAMÃO O ministro da Fazenda, Joaquim Levy, entre os ministros Nelson Barbosa, do Planejamento, e e Carlos Gabas, da Previdência: programa econômico que em vez de ajustar, desajusta

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AMBIENTE

PEDALADAS D “A foto da mobilidade em São Paulo vai ser a Avenida Paulista às 18h, com os carros travados e um monte de ciclistas circulando ali no meio”, diz o cicloativista Daniel Guth Por Helder Lima

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LEON RODRIGUES/SECOM

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epois de uma onda de críticas com algum eco em parte da imprensa paulista, que alimentava uma suposta indignação de setores da sociedade para os quais somente o automóvel é sinônimo de mobilidade, a ciclovia no canteiro central da Avenida Paulista foi finalmente inaugurada em 28 de junho. O ato resultou na ocupação da famosa avenida por uma correnteza de bicicletas. Por mudar a paisagem e a funcionalidade viária de um dos cartões-postais e centros de efervescência de São Paulo, o gesto tem também um valor emblemático para a política de mobilidade tocada pela gestão de Fernando Haddad (PT). O próprio prefeito se disse surpreso com a reação inicial ao seu projeto de chegar aos 400 quilômetros de faixas exclusivas para ciclistas ainda este ano. Ele esperava mais chiadeira com as faixas destinadas aos corredores de ônibus. “Acho que existe uma obsessão da imprensa com as ciclovias. Achei que a mídia fosse ser mais contra as faixas de ônibus, achei que fosse haver mais resistência. Mas com as ciclovias todo mundo esqueceu as faixas de ônibus”, disse Haddad a um seleto público presente a uma aula sua intitulada

SãoPaulo,CidadeInteligente,naorganização Casa do Saber, dias antes da inauguração da ciclovia. A resistência a que se refere chegou até mesmo a contar com liminar expedida pela 5ª Vara de Fazenda Pública, em março, determinando a paralisação da construção dessas vias na cidade, à exceção da Paulista. A resistência é também preocupação dos cicloativistas, que têm como causa uma mobilidade menos escravizada pe-

lo automóvel. “No nosso entendimento, essa resistência já caiu muito, especialmente com a ciclovia da Paulista”, afirma Daniel Guth, diretor de participação da Ciclocidade, associação que luta pela promoção do uso da bicicleta e seus benefícios ambientais e até mesmo sociais, já que sobre duas rodas há mais inclusão na mobilidade. Um dos últimos lances da resistência midiática às ciclovias foi dado pelo jor-


AMBIENTE

H BALLARINI/SECOM

H BALLARINI/SECOM

DA CIDADANIA

OCUPAÇÃO DEMOCRÁTICA Em 28 de junho, a Avenida Paulista teve mais do que bicicletas

nal Folha de S. Paulo, que duas semanas antes tentava pôr água no chope da festa da Paulista. Tanto jornal impresso como internet produziram matérias “tendenciosas e depreciativas”, na avaliação dos cicloativistas, contra a ciclovia, privilegiando o ponto de vista dos defensores do automóvel. “O jornal optou deliberadamente por não incluir a opinião e a visão dos ciclistas e de especialistas em mobilidade, contemplando apenas a visão es-

treita e limitada de engenheiros ouvidos pela reportagem. Isso mostra que o jornal não se interessa em dar voz aos principais beneficiados pela obra”, protestou a Ciclocidade em sua página na internet.

Fumaça

Atualmente, os automóveis em São Paulo concentram 29% das viagens a cada dia, mas ocupam 79% do espaço viário da capital, composto por cerca de 15 mil quilô-

metros. Mas toda a discussão em torno das ciclovias e, de quebra, das faixas de ônibus teve o aspecto positivo de amplificar o debate sobre mobilidade e inclusão. Para Daniel Guth, existe uma profunda desigualdade social na cidade. Se de um lado as ciclovias abrem a perspectiva de inclusão no transporte, de outro a sua consolidação requer o enfrentamento do que Guth chama de privilégios. “Os setores mais retrógrados, ainda com REVISTA DO BRASIL

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base no velho modelo ‘rodoviarista’, mantêm privilégios adquiridos ao longo dos anos que foram incorporados como direitos, como estacionar na rua em qualquer lugar da cidade”, afirma, destacando que se trata de um “privilégio tosco”. Ele diz que “quando você questiona esse modelo, que perdura há quase um século, de uma cidade orientada pela lógica do motor, quando você traz isso para a escala humana, por meio da consolidação de um sistema cicloviário, é natural que haja resistência desses setores que estão em risco de perder tais privilégios”. Mais do que uma simples ligação entre seus extremos, a ciclovia da Paulista deve inaugurar uma nova etapa nesse debate, já que ela tem forte apelo simbólico e deve se tornar cartão-postal do cicloativismo na cidade, em um espaço que era de risco para os bikers, onde pessoas perderam a vida tentando exercer uma mobilidade inclusiva e sustentável. Foi o que aconteceu em março de 2012 com a bióloga Juliana Dias, atropelada por um ônibus quando ia para o trabalho no hospital Sírio-Libanês. Outro caso foi o do pintor David Santos Souza, que perdeu o braço direito ao ser atropelado por um motorista, o então estudante de Psicologia Alex Siwek, em março de 2013. Além de fugir, Siwek jogou o braço preso ao carro em um córrego nas proximidades da Avenida Ricardo Jafet, na zona sul, cerca de cinco quilômetros depois. Agora, as perspectivas mudam. “A foto da mobilidade urbana em São Paulo vai ser a avenida Paulista às 18h, com os carros travados e um monte de ciclistas circulando felizes ali no meio. Isso vai ser o maior tapa na cara da mobilidade urbana da cidade para mostrar que a bicicleta agora está sendo retomada com mais força”, afirma Guth. Ele acredita que até 2030, prazo de alcance do Plano de Mobilidade de São Paulo, o PlanMob/SP-2015, feito com base na Lei federal nº 12.587/2012, que estabelece metas de reformulação de mobilidade urbana, de 10% a 15% das viagens na cidade devam ser feitas de bicicleta. Hoje, esse número está em torno de 1%, mas, segundo o cicloativista, o dado é impreciso e subestimado pela principal pesquisa de 14

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IVSON MIRANDA

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LONGO CAMINHO Daniel Guth: “Dizer que as ciclovias são loucura é incorrer em um equívoco histórico. Há pessoas que perderam suas vidas lutando para que elas saíssem do papel”

mobilidade na cidade, a Pequisa Origem-Destino, que a Companhia do Metropolitano (Metrô) realiza a cada dez anos. “A pesquisa subdimensiona o número de bicicletas porque só considera os transportes principais. Então, quem vai para uma estação de trem ou de metrô de bicicleta e para num bicicletário fica fora da pesquisa”, avalia. “Nos nossos cálculos o crescimento ano a ano dos usuários de bicicletas tem sido exponencial. Esse número ficará muito maior a partir da infraestrutura, que induz demanda, e o crescimento nos próximos anos será enorme”, acredita. “É preciso mudar a metodologia da pesquisa para ter melhores dados sobre o uso de bicicleta.”

Outra estatística

A Ciclocidade faz contagem de ciclistas a cada dois anos na Paulista, que tem uma demanda atual de mil ciclistas por

dia, entre 6h e 20h. A ciclovia da Avenida Eliseu de Almeida, na zona oeste, segundo Guth, também é um caso interessante de contagens que a associação faz. “Em 2010, quando não havia a ciclovia, nós tínhamos 561 ciclistas utilizando aquela via. Agora, com a ciclovia recém-entregue, esse número já passou para 1.245.” Esses dados confirmam a tese de que a infraestrutura induz demandas, posição também compartilhada pelo prefeito. Guth nota que nesses cinco anos o número de mulheres que usam o corredor da Eliseu de Almeida aumentou 1.400%. “Quando você tem mulheres, crianças e pessoas de idade usando, isso mostra que aquela infraestrutura está garantindo a segurança e faz sentido para a cidade, pois está incluindo mais pessoas. É um bom sintoma”, observa. As contagens da Ciclocidade também


FOTOS: DIVULGAÇÃO/WG FILM

AMBIENTE

QUALIDADE DE VIDA Cenas do documentário Bikes vs Cars: a situação da mobilidade urbana em várias cidades do mundo

apontam para o crescimento de ciclistas em outros pontos da cidade. Com essa tendência de crescimento mostrando cada vez mais fôlego, Guth afirma que o desafio para o futuro é garantir que a política em favor da mobilidade sobre duas rodas se torne uma política de Estado para que em qualquer gestão seja mantida e ampliada. Outro desafio para o uso da bicicleta como meio de transporte está na indústria, que de um lado opera com alto índice de informalidade e, de outro, não tem recebido do governo federal a mesma atenção dedicada ao setor automobilístico, com isenções tributárias. “Estou batalhando por isso aí”, diz Haddad em relação aos imposto sobre as bicicletas, que são mais altos do que sobre os veículos motorizados. Enquanto as bicicletas recolhem 40,5% de impostos, os veículos são tributados em 32%.

O desafio da convivência entre carros e bicicletas em diversas cidades no mundo é o tema do documentário Bikes vs Carros, do diretor sueco Fredrik Gertten, lançado em 18 de junho no Brasil. O filme traz a experiência de se deslocar sobre duas rodas em São Paulo, Los Angeles (Estados Unidos), Toronto (Canadá), Copenhague (Dinamarca) e Bogotá (Colômbia), entre outras. Curioso entre essas experiências é que enquanto Copenhague e Bogotá investem no transporte sustentável, Toronto se curva à lógica do automóvel e desativa ciclovias já existentes na cidade, seguindo na contramão do que deveria ser uma tendência mundial. A cicloativista Aline Cavalcanti, que participa do filme e vive em São Paulo, afirma que o documentário coloca em perspectiva o que tem acontecido em algumas cidades ao se priorizar o uso do carro, em detrimento do transporte pú-

blico. “Não é apenas um filme para quem anda de bicicleta e é cicloativista, mas para quem também é interessado em transporte, em cidades, em deslocamento e mobilidade. Recomendo para quem está envolvido nesses temas ou tem interesse em saber o que acontece na cidade”, afirma. Chama atenção no documentário o caso de Los Angeles. A cidade do estado norte-americano da Califórnia já teve o melhor sistema de transporte público do mundo, mas hoje 70% de sua área são dedicados a rodovias e estacionamentos. Uma ciclovia que facilitava o acesso ao centro da cidade no passado hoje está abandonada. Desde os anos 1940, as empresas do setor automobilístico compraram as empresas de transporte público para desmobilizá-lo. Apesar disso, os deslocamentos de bicicletas cresceram 50% em uma década, e hoje 0,8% das pessoas na cidade usam as bikes. REVISTA DO BRASIL

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Copenhague mantém mil quilômetros de ciclovias. Quatro em cada cinco habitantes têm bicicleta. Há mais pessoas se deslocando de bicicleta na capital da Dinamarca do que nos Estados Unidos, mostra o filme, propondo o tempo todo reflexões sobre os impactos das opções de mobilidade feitas pelas pessoas.

Reações distintas

No Brasil, enquanto São Paulo trabalha para consolidar sua malha cicloviária e setores conservadores esbravejam, algumas cidades já colhem frutos de ter realizado a opção pelo transporte alternativo. Isso, no entanto, não as isenta de problemas. O Rio de Janeiro, com 380 quilômetros de ciclovias, tem o maior sistema da América Latina. Foi nos anos 1990 que a administração da cidade começou a pensar no desenvolvimento do sistema cicloviário. Até o próximo ano, quando serão realizados os Jogos Olímpicos na cidade, o sistema deverá se expandir para 450 quilômetros, e também correções precisam ser feitas para conferir mais segurança aos ciclistas, principalmente em alguns pontos de conflitos com automóveis. Isso, no entanto, não tem impedido que a cidade receba reconhecimento internacional entre as que são mais amigáveis para a bicicleta. Mas, como nem tudo é perfeito, e a exclusão no país se reproduz em cada aspecto da cultura e da economia, permanece para a cidade o desafio de levar as ciclovias para os bairros mais pobres, como a zona norte, que apresenta apenas 28 qui-

lômetros dessas vias. As ciclovias no Rio estão mais concentradas onde a população tem maior poder aquisitivo, como as zonas oeste e sul, e o centro. Brasília também investiu em ciclovias e a capital federal não sofreu tantos problemas de disputa de território, devido ao fato de ter nascido sob um modelo de planejamento urbano e de ocupação expandido. Apesar disso, a adesão do brasiliense às ciclovias é relativamente pequena. “Lá não houve resistência porque a cidade fez um sistema cicloviário que era para não atrapalhar ninguém, mas também não atende ao ciclista. E isso não resolve nada. Brasília tem terrenos abertos aos montes e eles colocaram a ciclovia onde não atrapalha e isso completou os 400 quilômetros que eles queriam”, afirma Daniel Guth. Ele também destaca que os cicloativistas estão lutando para melhorar o sistema. “Ter de consertar ou refazer é pior”, afirma. Em Curitiba, as críticas ao sistema cicloviário recaem sobre a falta de compromisso político com o transporte alternativo. Apesar de seus 127 quilômetros de ciclovias resultarem de um esforço que existe há quatro décadas, o número de ciclistas na cidade cresce em proporção tímida. De 2008 a 2013, esse crescimento foi de apenas 8%, enquanto em outras cidades a modalidade de transporte ganha adesões expressivas, como em São Paulo. Apesar disso, a capital paranaense desponta entre as cidades no país que oferecem os maiores sistemas cicloviários a seus usuários.

No Nordeste, capitais como João Pessoa e Aracaju também incorporaram as ciclovias à sua rotina. E o mais interessante aspecto desses desenvolvimentos é o diálogo permanente que as prefeituras estabelecem com a população para dar efetividade aos projetos. Em São Paulo, isso também vem acontecendo, e graças à interação a capital paulista está tirando o atraso na área. “Conseguimos junto com o prefeito e com o secretário de Transportes, Jilmar Tatto, consolidar um espaço de diálogo permanente. É a câmara temática, vinculada ao Conselho Municipal de Trânsito e Transporte, para onde levamos as questões que preocupam, como problemas de interligação de ciclovias, de manutenção, sinalização”, afirma Daniel Guth. Para os cicloativistas, a própria Avenida Paulista resulta de uma demanda histórica, e não de um projeto pontual. Por parte dos ciclistas, foram anos e anos de ofícios, petições, até um projeto básico de faixa exclusiva. A prática dá consistência à reação dos cicloativistas às críticas baseadas no senso comum, como observa Guth. “Quando alguém diz que ciclovia ‘do Haddad’ é uma loucura dessa gestão, não é. É desconsiderar tudo aquilo que a sociedade já acumulou, batalhou para que saísse do papel. Dizer que é loucura é incorrer em um equívoco histórico. Há pessoas que perderam suas vidas lutando para que a ciclovia saísse do papel, então, é uma leviandade dizer que é um delírio dessa gestão.”

Anunciada em setembro do ano passado, a ciclovia na Avenida Paulista teve custo de R$ 12,2 milhões, segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET). O projeto teve de desenvolver correções geométricas, infraestrutura de transmissão de dados, modernização da sinalização horizontal, vertical e semafórica, entre outros detalhes. Se a própria 16

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presença da ciclovia é questionada pela mídia tradicional e parte dos motoristas, com o custo da obra não foi diferente. Uma reportagem da revista Veja São Paulo de fevereiro deste ano, acusando a prefeitura de supostamente contratar a obra pelo triplo de seu custo, chegou a suscitar a instalação de uma CPI na Câmara Municipal, o que acabou não ocorrendo.

LEON RODRIGUES/SECOM/PREFEITURA DE SÃO PAULO

O preço da polêmica

Haddad: pedalando para as adversidades


RÁDIOBRASILATUAL

93.3 FM: Litoral paulista. 98.9FM: Grande S. Paulo. 102.7FM: Noroeste paulista www.redebrasilatual.com.br/radio

MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

Violência banalizada, opiniões deformadas

Grupos contra a PEC da redução da maioridade penal acampam em frente ao Congresso Nacional

Do secretário-adjunto de Direitos Humanos da prefeitura de SP: “São mortos 180 jovens a cada 48 horas no Brasil. Ouvimos o menino perguntar ‘por que o senhor atirou em mim?’ e não entendemos”

“É

fácil entender por que 80% da sociedade defende a redução da maioridade penal. A banalização da violência, a manipulação da informação por parte da grande mídia, fazem com que se construa um caos nacional como se todos os jovens fossem responsáveis pela violência”, afirma o secretário-adjunto da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da Prefeitura de São Paulo, Rogério Sottili, em entrevista à repórter Marilu Cabañas, da Rádio Brasil Atual. O secretário afirma que a mídia se comporta de maneira equivocada, pois quando o jovem comete o crime é imediatamente colocado em todas as páginas de jornais e nas principais redes de televisão por vários minutos. Ele reitera que o adolescente não é o algoz da violência, mas a vítima. “São assassinados 180 jovens a cada 48 horas no Brasil, ou seja, estamos falando de um boeing em dois dias. Ouvimos o menino perguntar ‘Por que o senhor atirou em mim?’ e não entendemos o que isso significa. O jovem está sendo assassinado.” “A população que está informada de forma equivocada não tem responsabilidade sobre isso. Ela precisa ser mais bem-informada, e essa informação, já que a grande mídia não faz, depende de nós”, acrescenta Sottilli.

No Uruguai, 80% da população também era favorável à redução da maioridade penal no país, porém a campanha “No a la baja” (não à redução) reverteu a opinião da sociedade e a lei foi barrada. “O Brasil não é o Uruguai, as complexidades são outras, mas também nos mostrou que temos que ter a capacidade de dialogar com todo mundo. A redução da maioridade penal seria um tiro no pé, um agravamento da crise e da violência no país. Iremos proporcionar à juventude que é vítima da violência uma escola da criminalidade, porque é disso que se trata nosso sistema penitenciário atualmente.” Vários movimentos contra a redução da maioridade penal estão aparecendo, como o Amanhecer Contra a Redução, com ativistas em vigília acampados em Brasília, e o movimento 15 contra 16, de Itaquera, zona leste da capital paulista, que deve ocorrer no início de agosto. “A luta não acabou. Temos que ter a capacidade de fazer uma mobilização criativa, para falar uma linguagem que as pessoas entendam, sem aquela linguagem do negativismo.” Em 1º de julho, a Câmara dos Deputados rejeitou, em primeira votação, um substitutivo à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 171 sobre redução da maioridade. Ouça a reportagem completa em bit.ly/rba_reducao_nao REVISTA DO BRASIL

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SAÚDE

O

uando percebeu que as embalagens de amido de milho trazem um T preto dentro de um triângulo amarelo – símbolo dos transgênicos usados no Brasil –, a professora de tecelagem Célia Regina de Macedo, 63 anos, da capital paulista, não pensou duas vezes. Substituiu o produto por polvilho, derivado da mandioca, em muitas receitas, como de sequilhos. E segue experimentando novas opções. Tofu, um queijo à base de soja, assim como o

referiu a índios, quilombolas e homossexuais como “tudo que não presta”. O PL, que altera o artigo 40 da Lei de Biossegurança (11.105/2005), desobriga a indústria de alimentos a informar, na embalagem, a presença de componentes transgênicos quando for inferior a 1% na composição total do produto. Impopular, a proposta entrou e saiu da pauta várias vezes desde sua apresentação. Mas, como outras igualmente conservadoras, foi logo colocada na pauta pelo presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ).

dutos processados, como margarinas e papinhas de nenê”, afirma a pesquisadora do Instituto de Defesa do Consumidor (Idec) Renata Amaral. “E sem essa informação, não há como exercer o direito de escolha e vai se consumir transgênicos mesmo que não se queira.” A legislação em vigor obriga a exibição do T em rótulos de produtos com OGM em quantidade proporcional a mais de 1% da composição total, além da menção da espécie doadora do gene na lista de ingredientes. Em vez de ser aprimorada,

fubá, só se for orgânico. “Não sei direito o que são esses transgênicos. Dizem que são plantas alteradas para resistir a pragas. Mas se foram modificadas, será que têm os nutrientes de que preciso? Minha certeza é que não quero consumir”, afirma a artesã, que há mais de 20 anos optou por alimentos livres de produtos químicos. Como ela, muitos brasileiros desconfiam desses organismos geneticamente modificados (OGM) – nome técnico dos transgênicos –, que no caso das plantas prometem maior produtividade e resistência a pragas. E fogem deles sempre que podem. No entanto, seu direito de escolha, assegurado pelo Código de Defesa do Consumidor, está ameaçado pelo Projeto de Lei 4.148/2008, do deputado federal Luis Carlos Heinze (PP-RS). Ex-prefeito de São Borja e produtor de arroz no estado, Heinze ficou mais famoso em 2013, durante audiência pública sobre a demarcação de terras indígenas, ao recomendar aos agricultores a contratação de milícias para se defender de índios. Ele também se

Em vez de proibir os transgênicos, o país caminha para banir dos rótulos de alimentos informações sobre a presença desses ingredientes com potencial ofensivo à saúde e ao ambiente Por Cida de Oliveira

OMISSÃO VENENOSA

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Para surpresa de ativistas, foi aprovada em 28 de abril – até deputados com histórico de defesa do consumidor, como Celso Russomano (PRB-SP) e o ambientalista Ricardo Trípoli (PSDB-SP), se disseram surpreendidos pela votação relâmpago, embora tenham apertado o “sim” para modificação da lei de biossegurança e para o direito dos fabricantes de excluir o T das embalagens.

Violação

“É uma violação do direito do consumidor porque é praticamente impossível quantificar traços de transgenia em pro-

com alertas seja qual for a quantidade – afinal, faltam estudos sobre dosagens seguras à saúde –, a lei pode ser afrouxada e muitos fabricantes, inibidos por causa da rotulagem, serão encorajados a incluir os transgênicos em seus produtos. Por isso, o Idec elaborou uma carta, assinada por 70 organizações ambientalistas, de saúde, direitos humanos, agricultura orgânica e educação alertando para os impactos à saúde humana, animal e ambiental associados aos transgênicos. O PL está na Comissão de Assuntos Sociais do Senado, com relatoria de Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM), que já se mani-


SAÚDE

INGREDIENTES PERIGOSOS No Brasil há grandes plantações de milho, soja e algodão transgênicos. Como são muitos os seus subprodutos e suas aplicações na produção de alimentos, esses organismos geneticamente modificados estão presentes em praticamente tudo aquilo que você compra pronto ou prepara em casa. A lista, que já é enorme, tende a crescer nos próximos anos, quando um feijão desenvolvido pela Embrapa passar a ser cultivado em escala comercial

DERIVADOS DO MILHO Fubá, óleo, farinha, amido e tudo o que for feito com seus grãos pode estar “contaminado”

DERIVADOS DA SOJA Grãos, óleo, farinha, proteína texturizada e seus derivados

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Sem a informação na embalagem não há como exercer o direito de escolha e vai se consumir transgênicos mesmo que não se queira Renata Amaral (Idec)

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HORA DA MORTE Agroativistas fazem exposição no Rio de Janeiro: segundo o Inca, o aumento do uso de agrotóxicos tem tudo a ver com a liberação de sementes transgênicas

almente têm como característica a resistência a herbicidas – venenos que matam o mato que cresce na lavoura. O agricultor, que antes precisava usar o agrotóxico com cuidado para não danificar a própria lavoura, acaba pulverizando o produto à vontade porque morrerão todas as plantas, menos as transgênicas. E cerca de outros 15% dos transgênicos reúnem os chamados cultivos Bt, nos quais foram inseridos genes de uma bactéria chama-

da Bacillus thuringiensis. Elas produzem toxinas que matam insetos – são plantas inseticidas. Assim, a lagarta do cartucho, nociva a lavouras de milho, morre quando se alimenta de qualquer parte dessa planta geneticamente modificada. Em resumo, são plantas transformadas para resistir a banhos de veneno – que nelas permanece –, ou para matar pragas que se alimentam das lavouras. Quando isso não acontece, o veneno fica na plan-

IDEC/DIVULGAÇÃO

festou contra o projeto. A rejeição é grande, como mostra o Portal e-Cidadania, do site do Senado, no qual a população pode opinar sobre as matérias que ali tramitam. Enquanto a reportagem era concluída, havia mais de 13 mil manifestações, das quais apenas 5% eram favoráveis. Apesar do atropelo na Câmara, os ativistas estão esperançosos. Não há regime de urgência e os senadores, em número menor que o de deputados, poderão ser pressionados um a um – o que não dispensa a mobilização social. “Tudo pode acontecer, mas o fato é que a derrubada da rotulagem pela Câmara gerou uma repercussão muito negativa e mesmo muita gente que não acompanhava esse debate ficou indignada com a medida. Resta ver até que ponto os senadores guardam alguma preocupação com a opinião pública ou se seguem a pauta dos financiadores das campanhas, que parece ser o caso da maioria da Câmara”, diz o agrônomo Gabriel Fernandes, assessor técnico da AS-PTA, associação não governamental sem fins lucrativos especializada em estudos e ações que atua para o fortalecimento da agricultura familiar e da agroecologia no Brasil. Tanta desconfiança não é à toa. Cerca de 77% dos transgênicos cultivados atu-

FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

SAÚDE


Dizem que esses transgênicos são plantas alteradas para resistir a pragas. Mas será que têm os nutrientes de que preciso? Célia Regina

MARCIA MINILLO/RBA

SAÚDE

ta. E a palha queimada contamina o solo. “Nesse processo, houve pragas que se tornaram resistentes, exigindo mais agrotóxico”, explica o engenheiro agrônomo e ex-integrante da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) Leonardo Melgarejo.

Distúrbios

Em abril, o Instituto Nacional do Câncer (Inca), vinculado ao Ministério da Saúde, se posicionou publicamente contra as atuais práticas de uso de agrotóxicos no país por causar diversos tipos de câncer. A venda desses venenos para matar insetos ou plantas saltou de US$ 2 bilhões em 2001 para US$ 8,5 bilhões em 2011. Em 2009, o Brasil tornou-se maior consumidor mundial de agrotóxicos, com 1 milhão de toneladas, um consumo per capita

de 5,2 quilos. O aumento, segundo o Inca, tem tudo a ver com a liberação de sementes transgênicas. De 2005 para cá, foram autorizadas 21 variedades de milho, cinco de soja, 12 de algodão e uma de feijão – ainda não cultivada. Uma das variedades de soja (RR) ocupa 21 milhões de hectares. A área total cultivada com sementes transgênicas está na faixa dos 45 milhões a 50 milhões de hectares. Segundo Melgarejo, há outros transgênicos na pauta de liberações do órgão. E novas variedades de soja, milho e algodão estão sendo pesquisadas. Todas produzem toxinas contra lagartas e agregam genes tolerantes a herbicidas. E há estudos com cítricos, cana, sorgo, alface, moscas. “Duvido que entre eles haja características de interesse da população. O que há são facilidades para os produtores em

troca de compra casada de tecnologias. A Monsanto quer vender os seus herbicidas, a Bayer os dela. E cada uma oferece sementes transgênicas que estimulam o uso desses venenos”, diz. “Já as moscas substituiriam inseticidas vendidos pelas empresas concorrentes; e a alface, só com ácido fólico, pretende substituir uma alimentação variada.” O portfólio de sementes promete plantas resistentes a seca, salinidade e doenças, entre outras. Porém, são promessas feitas há 20 anos. “O que se vê até agora são plantas resistentes a herbicidas e que carregam seus próprios inseticidas. Tudo isso vem para a mesa. Os transgênicos reforçam a ideia do filme O Veneno está na Mesa, de Silvio Tendler”, afirma Melgarejo. “Estudos relacionam os transgênicos a REVISTA DO BRASIL

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SAÚDE

estudos toxicológicos de longo prazo sobre os efeitos do consumo desses alimentos à saúde.” Para a professora, enquanto houver incertezas científicas em relação aos riscos dos transgênicos, deve ser adotado o Princípio da Precaução – a garantia contra os riscos potenciais. “É essencial sua identificação em rótulos de alimentos, principalmente considerando que a maioria dos produtos industrializados contém pelo menos um ingrediente derivado de milho ou soja. É importante que o rótulo da embalagem do alimento contenha, além do símbolo T, uma expressão para informar origem e composição transgênica do alimento”, explica. Tal expressão, segundo ela, deve trazer o nome do produto seguido do termo “transgênico”. Além disso, também deve conter o nome da espécie doadora de genes no local reservado para a identificação dos ingredientes. A discussão sobre a rotulagem em si é

outra face do atraso do país nesse campo. Lavouras transgênicas estão sendo limitadas na Alemanha e na França, enquanto Irlanda, Áustria, Hungria, Grécia, Bulgária e Luxemburgo as proíbem – tornando-se entrave para as exportações brasileiras por causa da associação com agrotóxicos vetados em muitos países – por aqui ainda se debate o direito a informações sobre essas culturas. Embora seja muito difícil comprar um alimento livre de transgênicos em sua formulação, a informação na embalagem é fundamental. “É crescente a população que busca hábitos mais saudáveis, naturais. Um mercado que não pode ser desprezado. Assim, esses produtos têm de estar disponíveis a todos”, diz o preparador corporal paulistano Vinicius Della Líbera, 31 anos, que também se dedica a escrever sobre longevidade em seu blog longevidade.voadora.com, no qual ensina, por exemplo, a fazer pão com fermento caseiro, produzido com

BRENO LOBATO/EMBRAPA

danos ao fígado e aos rins, a distúrbios hormonais e ao surgimento de tumores em animais que foram alimentados com milho transgênico. Há indícios de que seu consumo cause alergias alimentares, provavelmente pelas alterações nutricionais com a transferência de genes resistentes a antibióticos. “Fora a relação com a obesidade devido à possível desregulação do tecido gorduroso por proteínas inseticidas presentes no milho transgênico”, diz a professora Suzi Barletto Cavalli, do Departamento de Nutrição da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e integrante da CTNBio. Ela defende estudos também sobre a composição nutricional dos transgênicos para verificar se houve alterações na composição nutricional ou se a manipulação genética interferiu na maneira como o nutriente é absorvido e aproveitado pelo organismo, passando então a oferecer risco à saúde humana. “Por isso, é importante a avaliação de risco, com

CAMINHO SEM VOLTA? O próprio governo, por meio de sua agência de pesquisa agropecuária, investe no desenvolvimento de transgênicos

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ARQUIVO PESSOAL

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O corpo sofre para digerir o alimento que foi alterado para resistir a um banho de veneno Vinicius Della Líbera, preparador corporal

as bactérias presentes na própria farinha. “Uma alimentação orgânica, que ajuda a limpar o organismo, é um dos caminhos para se viver mais. O corpo sofre para digerir aquele alimento alterado para resistir a um banho de veneno. Não pode haver esse descaso com o consumidor.”

Educação

A professora Marijane Vieira Lisboa, do Departamento de Sociologia da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, destaca outro aspecto diluído na discussão: a incompreensão da maioria da população brasileira acerca das informações presentes nos rótulos e o próprio significado dos transgênicos por trás da letra T. Para ela, por se tratar de uma questão tão importante quanto complexa, os ministérios da Saúde, da Educação e da Justiça deveriam envolver as se-

cretarias estaduais de Saúde, com suas agências de vigilância, na criação de um projeto educativo. “Os ativistas de organizações não-governamentais não têm condições de realizar esse trabalho. E os professores das escolas regulares não têm formação específica para isso”, afirma Marijane. Na sua avaliação, a aprovação do PL na Câmara não deixa de ser “um tiro no pé” ao trazer à tona proposta tão escandalosa, ensejando o debate. Ela própria tem sido convidada para entrevistas, palestras e oficinas em diversas regiões do país­ para falar justamente sobre a rotulagem de alimentos com ingredientes transgênicos. “É preciso também um trabalho estruturado para enfrentar o assédio dos fabricantes de venenos e sementes geneticamente modificadas. Já descobrimos trabalhos de educação ambiental com kits distribuídos em escolas, patro-

cinados pela Monsanto, com o objetivo de mascarar os perigos. Depois de toda a discussão e suposta defesa da saúde e meio ambiente, o material dizia, lá no final, que os transgênicos são a melhor alternativa porque permitem a diminuição do uso de agrotóxicos, quando na verdade leva ao aumento de seu uso, em doses cada vez maiores, de suas versões cada vez mais fortes”, conta. “Além disso, a população tem de se manifestar.” Tal retrocesso, porém, não combina com políticas brasileiras exitosas. É o caso do combate ao tabagismo, reconhecido internacionalmente, que inclui embalagens nada atrativas. “Assim, não se pode esperar a consumação dos perigos da dupla transgênicos e agrotóxicos à saúde de todos para só então tornar os rótulos mais informativos”, observa André Dallagnol, assessor da organização Terra de Direitos. REVISTA DO BRASIL

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PAULO PEPE/RBA

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ENTREVISTA

O Brasil que a música inventou Franklin Martins resgata a história brasileira contada em tempo real ao longo de um século por seus melhores intérpretes: os compositores populares Por Paulo Donizetti de Souza a ditadura, foi ativista na resistência ao regime, conheceu a prisão, viveu cinco anos na clandestinidade e outros cinco no exílio. Nesta entrevista, assinala que só comenta a história até 2002. Provocado, porém, a indicar uma música de sua garimpagem que se encaixaria nos dias de hoje, cita de pronto o Rap da Felicidade (Eu só quero é ser Feliz), na verdade um funk de 1995 da dupla de MCs Cidinho e Doca. Para quem compilou mais de 1.100 canções desde os teatros de revista de Arthur Azevedo, diz muito. “O Brasil resolveu muitos problemas de 2002 para cá, mas surgiram novos.” Essa pesquisa tão intensa chegou a pegar o ambiente entre monarquia e república?

Pega alguma coisa, porque quando veio a indústria fonográfica foram gravadas músicas de sucesso na transição. Por exemplo, a primeira música do livro, As Laranjas de Sabina, foi gravada em 1902, mas é de 1889, meses antes da proclamação da República, e foi depois tema de teatro de revista em janeiro de 1890, dois meses depois da proclamação. Contava a história de uma mulata que vendia laranjas, na porta da Academia de Medicina, no Rio. A música é de Arthur Azevedo, que foi um grande autor de teatro de revista. O subchefe de polícia proibiu a mulher de continuar vendendo laranja. Os alunos fizeram um protesto bem-humorado, sacaneando o subchefe e pedindo que ela voltasse a poder vender laranja. Percorreram o centro do Rio de Janeiro, visitaram os jornais, a população começou a aplaudir e, naquilo, começaram os “Viva a República”, “Viva Ruy Barbosa”. A polícia voltou atrás, e ela virou uma bandeira republicana, sem querer. Então começa nessa época. Garimpei mais de 1.100 músicas, o que mostra a riqueza da produção musical, no Brasil, sobre política. Além dos livros, os fonogramas estão em um site que tem o nome do livro, quemfoiqueinventouobrasil.com.

QUITANDEIRAS, DE MARC FERREZ

V

eio a calhar a quarentena imposta a si mesmo por Franklin Martins, desde que saiu da cadeira de ministro da Secretaria de Comunicação Social do governo Lula – exceto para os movimentos sociais que preferiam vê-lo seguir na missão de tocar uma nova regulamentação para o sistema brasileiro de radioteledifusão, a lei de meios. O anteprojeto que deixou pronto antes de se retirar, no último dia de 2010, nunca mais saiu da gaveta. A regulação atual é de 1962 e já caducou. Estaria, portanto, na frente da fila de projetos que passaram por suas mãos. Nos últimos tempos, porém, o jornalista decidiu tocar outro projeto seu, na fila desde 1997: investigar a relação das canções populares com o cotidiano e a política, dos primeiros anos na República ao início deste século. Sua pesquisa identifica o que as marchinhas do início dos 1900 têm em comum com o rap recitado hoje: ambos registram a cena social e política no momento em que acontece. É o povo, por meio da arte musical, escrevendo a sua própria história. Para batizar esse projeto, nada mais apropriado do que Lamartine Babo (1904-1963), que absorveu como poucos duas grandes características do povo brasileiro: humor e sensibilidade. Uma frase que abre a antológica marchinha História do Brasil dá nome também à vasta garimpagem de Franklin Martins transformada em livros. Quem foi que inventou o Brasil? acaba de ter os dois primeiros volumes lançados pela Editora Nova Fronteira – um contando a história musicada da República até 1964 e outro que vai daí até 1985. O terceiro e último, de 1985 a 2002, sai em breve. São canções de todos os gêneros imagináveis, com letras e muitas imagens nas versões impressas e áudios disponíveis no site do projeto. Franklin Martins, a completar 67 anos em agosto, escreveu nos principais jornais de alcance nacional e foi comentarista político em rádio e TV. Durante

Uma música de protesto humorado Washington Luis (de 1889), sacaneando o subchefe de polícia do Rio, para que deixasse a mulata vender as laranjas, virou uma bandeira republicana

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ENTREVISTA

O início do século passado coincide com a formação do operariado. Isso se vê também no cenário musical?

ESTUDANTES COLOCAM FAIXA NA PUC SP, 1977, ACERVO ICONOGRAPHIA/DIVULGAÇÃO

Aparece pouco. Talvez porque a formação do movimento operário se dá em São Paulo, e a única gravadora que existia estava no Rio. Você tem os fenômenos políticos mais gerais sendo refletidos, as gozações aos presidentes da República, as grandes revoltas, a Revolta da Chibata, da Vacina, Contestado, tudo isso tem. Mas o movimento operário mesmo não aparece. Depois começa a movimentação política para decidir qual setor da elite vai controlar o poder. A era dos golpes, a Revolução de 1930...

Na Revolução de 30 já tem o rádio. Antes, uma característica impressionante da música é a constância da produção sobre política. Isso não ocorre em outros países, pelo menos não com a mesma intensidade. No Brasil, temos produção de caráter militante, mas temos uma crônica social muito presente. A música brasileira tem uma tradição de fazer crônica. Ora ufanista, ora dramática, ora brincalhona...

Em geral, ela é irreverente, brincalhona. No Brasil Colônia se tem referências de muita poesia irreverente, com Gregório de Matos, Tomás Antônio Gonzaga. Quando a família real vem, se faz música gozando a família e a corte. A corte foi se instalando na casa dos outros e botando todo mundo para fora. Tem muita sátira daquelas injustiças. A partir de 1850, se tem os cafés dançantes, ou os chopes berrantes, no Rio. E botavam alguém ali para cantar. Geralmente, músicas influenciadas pela cançoneta francesa, que tem o duplo sentido, maliciosa. Era a época de grandes autores de teatro de revista e, sempre, com caráter sarcástico, brincalhão. O que fazia o teatro de revista? Passava em revista os acontecimentos dos meses anteriores. Não só políticos, mas culturais, comportamentais, moda... Isso vai até 1902. A indústria fonográfica começa. Os primeiros sucessos têm muito a ver com isso. E quando a música começa a ganhar a rua?

Por volta de 1915 um fenômeno vai consolidar essa característica da crônica na música brasileira e, por tabela, da crônica sobre política: a mudança do caráter do carnaval. O carnaval era fundamentalmente uma festa bailada. As pessoas desfilavam ao lado de um corso, ao lado de um carro alegórico ou de um bloco. Mas bailava – como é o carnaval no mundo inteiro. O carnaval começa a assumir a caraterística de festa marchada, pulada. Pelo Telefone, gravado em 1917, estoura no carnaval. O carnaval se torna desaguador dessa crônica social, política, cultural, comportamental. O que é o carnaval? É o teatro de revista na rua. Populariza um tipo de teatro de revista e cria um mercado espetacular. Quando morreu o Barão de Rio Branco, pouco antes do carnaval de 1912, o governo quis suspender, guardar o luto, e coisa e tal, e marcou o carnaval para a quaresma. Aí, tem umas músicas que brincavam. Diziam “O Barão morreu, fizeram dois carnavais. Que bom se morresse o Marechal”, se referindo ao presidente Hermes da Fonseca. Já era festa com apelo popular. Quando vem o rádio, em 1922, isso se multiplica. 26

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No final dos anos 70 a censura deixa de ser sistêmica. O pessoal testa o terreno, começa a ousar. O rock entra com peso. Até 1977, era zero de rock A música caipira mudou a indústria e a indústria mudou a música caipira?

Quando chega a indústria fonográfica, a música caipira, em que muitas vezes o cara contava uma história em 20 minutos, tem de ser reduzida para dois, três, para ser lançada em disco. É a primeira produção independente no Brasil, em 1929. O Cornélio Pires, desde 1915, viajava pelo interior de São Paulo, do Paraná e de Minas dando espetáculos, mas não era nada gravado. Contava causos e tinha músicas. Em 1924, ele tinha composto a Moda da Revolução, sobre o movimento daquele ano, que não foi gravada na época, porque ninguém gravava música caipira. Só foi gravada em 1929. Ele vai para uma das gravadoras americanas recém-chegadas e diz que quer gravar. “Não, não tem mercado para isso”, ouve do diretor. Ele saiu e voltou com um pacotão de dinheiro: “Quero que imprima seis discos para mim, 5 mil de cada um (as tiragens costumavam ser de 300, 400). E tenho as minhas condições: quero a cor do rótulo diferente, quem vai vender sou eu, nas minhas exibições.” Na primeira turnê, esgotou. Voltou lá, e pediu mais. As gravadoras – eram quatro grandes, no Brasil – descobriram que a música caipira era um filão espetacular e todas, em um ano, estavam com uma dupla caipira. Tinha dupla que cantava com um nome em uma gravadora, e em outra com outro nome. O período do Estado Novo é um prato cheio para a música política?


ENTREVISTA

E na Segunda Guerra, quando o governo ficou em cima do muro um tempo?

Durante muito tempo ficou dividido. Depois as músicas começam a elogiar a América, a bater no Hitler. A luta política vai se transferindo para o único terreno em que era permitido. Reuni mais de 100 músicas sobre a guerra. Dá para escrever a história da Segunda Guerra Mundial com as músicas. É muito gozado que esse capítulo termina com três músicas com o Laurindo, um personagem fictício, que os sambistas do Rio criaram para mandar recados. Wilson Batista fez umas cinco músicas com Laurindo. No final, queria fazer uma música em que o Laurindo seria assassinado, porque ele não aguentava mais o Laurindo. Mas o Laurindo volta da guerra com ideias socialistas. O Wilson Batista faz: “O camarada Laurindo lutou na guerra, é um herói, mas aprendeu na guerra que agora tem que mudar”. Aí fazem (José Gonçalves e Ari Monteiro) o samba Conversa, Laurindo, sacaneando o Wilson Batista: “Você fica dizendo que foi lutar, que foi um herói. Você não saiu nem de Niterói”. A guerra representou uma derrota do nazifascismo, uma vitória das teses progressistas, da democracia, e também das ideias socialistas. O clima reflete o que viria nas eleições de 1945.

Ou já era reflexo da mudança de comportamento de alguns setores. Prestes se elegeu senador com uma votação espetacular. O Partido Comunista elegeu a terceira bancada. Era sintoma de que havia uma percepção do papel da União Soviética na derrota do nazifascismo. Isso no mundo todo, não só aqui. A produção musical sobre política continua fortíssima. Tem um fenômeno novo, que antes não existia, que é a produção para eleições. Quando começa a se criar o ambiente que desembocaria na Bossa Nova?

Em 1950, Getúlio tem uma produção musical muito grande em torno da campanha e, depois, da vitória. Isso vai até o suicídio. Reuni umas 12 canções sobre a morte dele. Tem embolada, rojão, toada gaúcha, música caipira, samba. Depois, tem uma grande produção musical no período do Juscelino, que é quando vai surgir a Bossa Nova – de todos os gêneros, o único que nunca fez nada sobre política. A Bossa Nova mesmo tem um período curtíssimo. Vai de 1958 a 1961. E muitos de seus autores, compositores e interpretes vão gravar músicas sobre política depois. Carlos Lyra era da Bossa Nova, e foi importantíssimo no Centro Popular de Cultura da UNE. Sérgio Ricardo também é da Bossa Nova e foi ser compositor de ritmos ecléticos. Vinicius, Baden Powell, Nara Leão... Mas de todos os gêneros que estudei é o único que não tratou sobre política. Por quê? Foi um período muito efêmero. O repertório é o amor, o sorriso e a flor. Não passa muito daquilo. Mas influencia os compositores das canções de protesto.

Em 1964, o CPC da UNE é algo que tem uma influência muito grande, e vai ter depois, no teatro Opinião, no Arena. Abrir-se para as grandes expressões culturais regionais, o frevo tem uma participação musical intensíssima. Mas já está indo para o que, depois, vai se chamar de música de protesto. Parte dela produz um pouco daquele negócio do “dia que virá”. É como se a gente não precisasse lutar por ele. As pessoas achavam que o regime ia durar muito pouco. Logo devolveria o poder aos civis e a luta política voltaria a padrões semelhantes aos anteriores a 1964. Só em 1965, 1966 é que se dão conta de que a ditadura tinha vindo para ficar. Coincide com a época dos festivais, e a música do “dia que virá” vai cedendo espaço para o “tem que lutar, e não esperar”. A partir do AI-5 vem uma censura brutal, e ao mesmo tempo muita música de adulação do regime. Com a censura, os compositores começam a trabalhar mais o conteúdo social, a crônica?

Tem muita coisa política também. Não é em cima do fato político. É em cima do clima de opressão. A partir de 1974, a ditadura começa a sofrer derrota nas eleições, a se embaralhar. Fica evidente que nem com o regime de terror, nem com a propaganda conseguiriam ganhar a maioria do país. Na década de 1970 tem músicas vindas de todos os lugares do Brasil. Tem o Clube da Esquina, de Minas, tem o pessoal do Ceará (Fagner, Belchior, Ednardo), de Pernambuco (Alceu Valença, Geraldo Azevedo) e outros, da Paraíba – fora os baianos, que já tinham chegado. Gonzaguinha, João Bosco, Aldir Blanc crescem nessa década. É pro-

Juscelino Kubitschek

DIVULGAÇÃO

É. Mas tem diferenças. Getúlio fica de 1930 a 1945, mas não é o mesmo regime. Até 1937, tem um regime centralizado, fruto de uma revolução. Nomeou interventores em todos os estados. Está cheio de músicas sobre os interventores. Teve um processo político, tem a Constituição. Em 1937, ele dá o golpe e vem uma ditadura. Os anos 1930 marcam o crescimento da produção do Norte e do Nordeste. Tem muitas músicas sobre todos os fatos. Só não tem sobre a Aliança Nacional Libertadora (ANL), do Prestes. Tem Hino Integralista. Tem músicas gozando integralistas. Quando vem o Estado Novo tem um período de pasmaceira. As músicas eram de puxação de saco. O DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) proibia música contra.

Da grande produção musical da era JK surgiu a Bossa Nova, que nunca fez nada de política, mas influenciou as gerações futuras que fariam

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ENTREVISTA

MANIFESTAÇÃO DAS LIGAS CAMPONESAS EM RECIFE 1960 ACERVO ICONOGRAPHIA/DIVULGAÇÃO

dução de caráter nacional. Cada um do seu jeito. O Ednardo tem uma música sobre o Araguaia lindíssima (“Quando eu me banho no meu Araguaia/ E bebo da sua água sangre fria (…) Triste guerrilha, companheiro morto/ Suor e sangue, brilho do corpo”). Tem outra que é Passeio Público (“Hoje ao passar pelos lados/ Das brancas paredes, paredes do forte/ Escuto ganidos, ganidos, ganidos, ganidos/ Ganidos de morte”). É uma música sobre Bárbara Alencar, que se insurgiu contra o Império em 1917, e ficou presa na fortaleza – que dá nome à cidade de Fortaleza. É uma música sobre a tortura que as mulheres sofriam durante a ditadura. E quando o rock entra?

Em 1978, a censura deixa de ser sistêmica. O pessoal vai testando o terreno, começa a ousar. É nesse período que o rock entra com peso. Geração Coca-Cola e Que país é esse?, por exemplo, são gravadas na década de 1980, mas são de 1979, com o Aborto Elétrico, primeira banda de Renato Russo. Em São Paulo, tem bandas extremamente interessantes, meio rock, meio MPB, até difícil de definir, Premeditando o Breque, Esquadrilha da Fumaça, Língua de Trapo, o pessoal do Lira Paulistana. Uma coisa eclética. E até 1977 era zero de rock. Quer dizer, o rock deixa de ser o que falava só de amor e comportamento. O Raul Seixas bate à porta. O rock é curioso. Vai, vai, e quando dá 1990, para. A partir daí, é rap, é funk, é samba-reggae, repente. Hoje você vê algo tão parecido com crônica, associado a uma realidade social e política sendo produzida fora do mundo do rap, da música da periferia?

Não falo sobre depois de 2002, porque não estudei. Mas o rap, o funk, o samba-reggae, até mesmo o samba do Bezerra da Silva, que também tem o caráter disso que eu chamo de “bronca social”, se referem a eventos. Diário de um Detento é sobre o Carandiru (1992). A chacina de Eldorado dos Carajás (1996) tem música. Mas a característica central deles, do rap, do funk, e do samba-reggae, é uma música muito mais antissistema do que crônica. Reflete as esperanças que o povo vai perdendo no sistema. Isso perpassa, praticamente, todos os gêneros. O manguebeat é isso. Falam “tenho que mudar o sistema”, mas ninguém tem muita expectativa de que vai convencer um bonitão a olhar diferente. Contra a discriminação racial, a exclusão social, a falta de escola, de hospital, a barbárie da polícia, os massacres, uma democracia na qual os políticos fazem o que querem com ela e que não chega no povo. É nítido que o Brasil estava à beira de uma explosão social. Esse cenário não perdura?

Não acho que perdura, porque 36 milhões de pessoas saíram da pobreza. É outro cenário. Resolvem-se alguns problemas e aparecem novos. Mas naquele momento estávamos à beira de uma explosão social. Em todos os lugares, todas as músicas, todos os gêneros, é um negócio de “não dá mais”. Você não está pedindo liberdade, está pedindo “olhem por mim”. A primeira música do último capítulo, Eu só quero é ser feliz, fez o maior sucesso (Rap da Felicidade, de Cidinho e Doca, 1995), é aparentemente leve e politicamente premonitória. Lá pelas tantas, diz: “Trocaram a 28

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No início dos anos 1960, cantava-se o “dia que virá”. Quando caiu a ficha que a ditadura viria para ficar, entra em cena o “tem de lutar, não dá pra esperar” presidência, uma nova esperança/ Sofri na tempestade, agora eu quero a bonança/ O povo tem a força, precisa descobrir/ Se eles lá não fazem nada, faremos tudo daqui”. É música de garotos, tem um quê de esperança e de advertência. E a que isso correspondia? A 20 anos sem crescimento, décadas perdidas, desemprego brutal, concentração de renda monumental, Estado ineficiente, repressão como forma de conter a luta social, massacres, ação da polícia nas periferias, nas favelas. Essa polícia ainda está na ativa. A diferença é que antes ninguém falava nada. Tem alguma coisa da sua pesquisa musical que se encaixaria bem na atual conjuntura?

Acho que, no fundo, Eu só quero é ser feliz encaixa. Tem muitos progressos, e tem novos problemas. Continua atual. Um rap que gosto muito, do Gog, Brasil com P, continua atual. Pobre, Preto e Prostituta vivem sendo objeto de agressões... Pode acrescentar Petista aí também?

Pode. Mas o PT tem de melhorar, senão fica difícil. O PT precisa entender isso. Quem não luta não merece triunfar, entende? A produção iconográfica dos três volumes de Quem foi que inventou o Brasil?, coordenada por Vladimir Sacchetta, inspirou também a exposição A Música Canta a República, que fica em cartaz no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, até 2 de agosto. Depois segue para o Rio de Janeiro até novembro, quando vai para Brasília, no Espaço Cultural dos Correios das duas cidades


LALO LEAL

Admirável mundo novo

Aos poucos, as redes sociais vão se consolidando como intermediárias entre os meios tradicionais de comunicação e o público

O

diário britânico The Guardian realizou, em 1994, um exercício de futurologia. Ofereceu aos leitores, em uma de suas edições, pequenos encartes do que poderia ser o jornal no ano 2004. Nele estariam selecionadas as notícias de forma personalizada e sintetizada, segundo o interesse de cada leitor. O acesso seria feito através de máquinas, semelhantes aos caixas eletrônicos, onde o interessado, de posse de um cartão magnético, imprimiria o seu exemplar exclusivo. Com uma sofisticação bem inglesa: a impressão seria feita sobre uma resina sintética à prova d’água para permitir a leitura na banheira. Ainda estávamos longe da popularização da internet com suas novas formas de acesso à informação, e elucubrações como essas faziam algum sentido. A previsão, como constatamos hoje, furou, mas não totalmente. Se na forma ela foi atropelada por tablets e smarthphones, a ideia do conteúdo personalizado segue firme, rondando todos nós. Pesquisa do Instituto Reuters realizada com 20 mil pessoas em 12 países, Brasil incluído, mostra que aos poucos as redes sociais vão se consolidando como intermediárias entre os meios tradicionais de comunicação e o público, com todas as consequências que isso possa ter, positivas ou negativas. Em uma semana do mês de junho deste ano, “41% dos entrevistados usaram o Facebook para encontrar, ler, compartilhar ou comentar as informações, um aumento de seis pontos percentuais” em relação ao mesmo período no ano passado, ressalta o jornal francês Le Monde ao comentar a pesquisa, acrescentando que outras plataformas estão crescendo no mesmo sentido: 18% usam o YouTube e 9%, o WhatsApp. No Brasil urbano, onde os dados foram coletados, 34% dos entrevistados usam o WhatsApp para obter informações. Esse movimento vem sendo acompanhado de perto pelos líderes do mercado mundial, Facebook e Apple, que começam a firmar acordos com as grandes corporações mundiais de mídia para veicular conteú­dos informativos em suas plataformas.

A Apple já divulgou uma lista inicial de parceiros que inclui os jornais The Guardian e The New York Times e os canais de TV CNN e ESPN. Apple e Facebook oferecem para os meios de comunicação a possibilidade de publicar textos e vídeos diretamente nas suas plataformas em troca de um possível aumento de audiência e publicidade. Garantem também um formato atraente para as publicações, adequado a celulares e tablets, além de um carregamento mais rápido nesses dispositivos do que aquele oferecido hoje pelos sites dos jornais e emissoras de TV. As empresas jornalísticas esperam, com isso, aumentar o alcance de suas mensagens, podendo, segundo o acordo firmado, auferir 100% da receita por elas obtida com a publicidade vendida através das redes sociais. Se a vendedora for a Apple, as empresas de comunicação ficarão com 70% do faturamento. Se para as gigantes da internet e do jornalismo parece ser um bom negócio, para o público os resultados não são muito promissores. No dia 13 de junho, a Apple publicou um anúncio procurando jornalistas para “identificar e transmitir os melhores itens de notícias internacionais, nacionais e locais”. Segundo apurou o Le Monde, o papel desses jornalistas “será de trazer um toque humano ao News, o novo aplicativo móvel anunciado pela Apple que promete uma seleção personalizada de artigos fornecidos pelos parceiros da mídia”, a ser oferecido gratuitamente ao público a partir do próximo outono europeu. Realiza-se com a internet a previsão feita pelo The Guardian, 21 anos atrás. À primeira vista pode parecer confortável ao leitor receber em seus receptores apenas notícias relacionadas com o seu perfil, quando na verdade o que irá ocorrer é uma limitação do acesso a novos interesses e descobertas, tornando medíocre o mundo da informação. Dessa forma, o pluralismo e a diversidade informativa correrão um risco maior do que já correm hoje. Pulverizada na ponta sob o rótulo da personalização, a informação estará cada vez mais concentrada, na medida em que sua embalagem ficará nas mãos dos gigantes da internet. REVISTA DO BRASIL

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ESPORTE Afinal, chega o dia de domingo E com a chuteira na sacola Vai a caminho do campo Rever os amigos e jogar uma bola Os times, cores, valores Sentimentos, jogo, escola Cultura brasileira Nascida na base, na sola (Trecho de poema de Marco Pezão)

Lições do terrão

Futebol mundial anda em crise, com cartolas investigados e presos. Na várzea, a preocupação é uma só: jogar bola Por Vitor Nuzzi 30

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ESPORTE

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FOTOS DANILO RAMOS/RBA

RAÇA Produto do Morro, de Osasco (SP): o time ainda não tem uniforme para todo mundo, mas o importante é estar em campo

im de semana no bairro do Helena Maria, em Osasco, região metropolitana de São Paulo. O Produto do Morro se prepara para mais uma partida. Normalmente, cinco carros e uma van são usados para levar o time, quando o jogo é mais distante. “A gente fica meio com dó de não levar a torcida”, diz Robson Lourenço dos Santos, zagueiro e diretor, e fora de campo instalador de TV a cabo. “Jogo firme”, conta. Com 27 anos completados em 31 de maio, Robson joga desde os 9. Já rodou bastante. Anima-se ao falar do Produto do Morro, criado em novembro já sob polêmica, pois uma parte dos moradores queria que se chamasse Zum Zum, nome de um antigo time do bairro. Mas agora o novo time parece se firmar. O nome atual é inspirado no sambista Bezerra da Silva. Ele é “mais ou menos a cara do time”, explica. Duro mesmo é manter a equipe, com seus 21 atletas. Um novo técnico acaba de ser contratado, mas no final de junho ainda se negociava a vinda de mais duas­pessoas para fechar a comissão técnica. Uniforme, ainda não tem para todo mundo, nem estádio próprio. “Tem alguns projetos”, diz Robson. A ideia é que cada jogador tenha seu agasalho, sua bolsa. “A gente sabe que na várzea é difícil, mas se Deus quiser tudo vai dar certo.” Hoje, a principal despesa é com a lavanderia. “É complicado viver de cinco diretores só. A gente se reúne e divide as despesas”, afirma Robson, um dos três corintianos da diretoria – os outros dois torcem para o São Paulo. Ultimamente, as discussões incluíram a crise que assola a Federação Internacional de Futebol (Fifa), com investigação por corrupção e alguns cartolas presos – por enquanto sete, incluindo o ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) José Maria Marin. Em 27 de maio, os dirigentes foram detidos pelo FBI norte-americano durante operação realizada em Zurique (Suíça), às vésperas de congresso da Fifa que elegeria sua nova direção. No poder desde 1998, Joseph Blatter foi reeleito. Dias depois, anunciou renúncia, mas vai ficando, enquanto não marcam nova eleição.

“Isso influencia bastante”, diz Robson, comentando o episódio da Fifa. “Esses escândalos aconteciam há muito tempo, mas não vinham a público. Já houve manipulações até no nosso campeonato, o Brasileiro. Não vamos dizer que é o fim. A paixão nunca vai acabar, mas você sabe que por trás disso sempre tem um envolvimento de dinheiro.” Muito dinheiro. As investigações, que podem alcançar mais gente graúda, incluem suspeita de superfaturamento de contrato da CBF com uma empresa de material esportivo, compra de direitos de transmissão de alguns eventos e suposto pagamento de propina para escolha dos locais das duas próximas Copas do Mundo, previstas para a Rússia (2018) e o Catar (2022).

Geopolítica

O futebol passou a fazer tabelinha mais constante com o mundo dos negócios a partir dos anos 1970, quando se desenvolveu um processo de “mercantilização” do esporte. Não é possível estabelecer uma relação direta com a corrupção, mas os valores envolvidos nesse universo se multiplicaram. Foi também um período de mudança na geopolítica do futebol. “A Fifa era uma entidade europeia”, observa o pesquisador Luiz Rocha, que em 2013 apresentou uma dissertação ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense (UFF) sobre presidentes de futebol no Brasil, para refletir sobre “como eles pensavam o poder, a política”. Agora, ele faz uma pesquisa de mestrado com o tema A dança das cadeiras: organização dirigente e politicaexternanacampanhadeJoãoHavelange à Fifa (1968-1976). Rocha desaprova a declaração de um jornalista inglês, à época da eleição de Havelange, dizendo que a Fifa deixaria de estar “protegida” da política e do dinheiro com a saída de sir Stanley Rous (1895-1986), o antecessor de Havelange. “Em nenhum momento a Fifa esteve livre da política e do dinheiro”, afirma. “E passou a circular muito mais dinheiro na era Blatter”, observa, referindo-se ao sucessor do brasileiro, o suíço Joseph Blatter. REVISTA DO BRASIL

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ESPORTE

RAFAEL RIBEIRO/CBF

“À medida que o futebol parece se converter em um negócio extremamente lucrativo e as relações capitalistas avançam sobre o modelo de organização do clube, que se convertia num espaço profissionalizado e extremamente mercantilizado, era impossível pensar um sem a outra”, escreveu Rocha em sua dissertação, identificando um “fenômeno social total”, envolvendo uma dimensão simbólica (relativa ao futebol) e outra utilitária, que não podem ser separadas. “A Fifa é um poder”, resume o pesquisador. A entidade tem hoje 210 associados, número que supera o de países-membros da Organização das Nações Unidas (193). Quando Havelange assumiu, eram 146; quando saiu, 196. A Copa do Mundo começou a ser disputada em 1930, com 13 seleções, mesmo número da Copa de 1950, no Brasil, que teve algumas desistências. De 1938 a 1978 (à exceção de 1950), teve 16 países. Passou a 24 em 1982, e desde 1998 jogam 32. A chegada do brasileiro João Havelange à Fifa, em 1974 – desbancando o favorito, Stanley Rous, presidente da entidade de 1961 até perder a eleição para o brasileiro – representou uma guinada rumo ao mundo dos negócios e também na política da entidade, com maior presença de países africanos e asiáticos, que deram sustentação à candidatura. “Além de dar asas, verba e voz aos dirigentes, Havelange também prometia um equilíbrio de forças no futebol internacional e mudanças internas na Fifa, principalmente em relação às comissões, em que havia poucos sul-americanos, nenhum africano, dois asiáticos e um time inteiro de europeus”, relata o jornalista Ernesto Rodrigues no livro Jogo Duro, de 2007, em que narra a trajetória de Havelange, que permaneceu 24 anos à frente da Fifa, de 1974 a 1998, quando foi sucedido por Blatter, o renunciante que permanece.

Contratos

A federação começou a se tornar multinacional a partir de uma parceria com a alemã Adidas, que a ajudou a assinar seu primeiro grande contrato, em maio de 1976, que – como lembra Rodrigues 32

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PRESO NA EUROPA José Maria Marin, que foi governador de São Paulo, escapou de qualquer investigação no Brasil, mas foi pego pelo FBI na Suíça, onde ainda está detido


JOSÉ CRUZ/ AGÊNCIA BRASIL

ESPORTE

CONTRASTE A bela sede da CBF no Rio de Janeiro não combina com a situação de penúria dos clubes brasileiros. O nome de batismo do prédio foi retirado assim que Marin foi preso

– previa desembolsos de US$ 7 milhões a cada quatro anos, em troca de estampar a marca da Coca-Cola nas competições internacionais promovidas pela entidade. O jornalista lembra que aquele contrato, modesto para os padrões atuais, permitiu à fabricante entrar em mercados até então fechados a produtos norte-americanos, como o Oriente Médio e a Europa Oriental. Imediatamente após o episódio das prisões de dirigentes em Zurique, a Adidas se manifestou, afirmando esperar que a Fifa continue “os esforços para estabelecer e seguir padrões de transparência em tudo o que faz”. E acrescentou: “A Adidas é a maior marca de futebol do mundo e vamos continuar a apoiar o futebol em todos os níveis”. Em entrevista à revista Fórum, o jornalista Luiz Carlos Azenha – um dos autores do livro O Lado Sujo do Futebol, lançado

JOSÉ CRUZ/ AGÊNCIA BRASIL

AGÊNCIA BRASIL

NEGÓCIOS Havelange trouxe a política e o capitalismo para dentro da Fifa, da qual foi presidente durante 24 anos

LUCROS Para muitos, Ricardo Teixeira nem gosta de futebol. À frente da CBF, priorizou assuntos comerciais

em 2014 – observou que o mar­keting esportivo deve muito ao fundador da fabricante de material esportivo, Horst Dassler. “Ele imaginou que pudessem ser criados grandes pacotes de patrocínio”, lembrou, acrescentando que isso também permitiu a Havelange viabilizar sua política terceiro-mundista. Uma política externa pragmática, que incluiu, por exemplo, aceitar a China na Fifa, causando mal-estar na ditadura brasileira. “O governo brasileiro ficou possesso”, lembra Luiz Rocha. Ou organizar uma Copa na Argentina, em 1978, em pleno regime dos generais – nesse perío­ do, ajudou a localizar e libertar o filho e a nora da estilista Glorinha Paranaguá, conversando diretamente com o presidente, Jorge Rafael Videla. Na mesma entrevista, Azenha observa que o ex-presidente da CBF Ricardo Teixeira, ex-genro de Havelange e que era cotado para chegar à Fifa, tinha uma visão privada do futebol, apenas como fonte de lucro. “Qual o sentido de, hoje, a CBF estar riquíssima, com um monte de dinheiro em caixa, construindo uma

sede maravilhosa, e times subordinados a ela falidos no Brasil inteiro? Isso é não enxergar o sentido público do futebol.” Ele cita as ligas norte-americanas, que buscam equilibrar as competições e os direitos de transmissão. “Já o Teixeira nunca esteve nem aí para isso. Primeiro, ele não conhece nada de futebol, nunca jogou bola, nunca treinou ninguém: ele não gosta. O negócio dele é dinheiro e poder.” O cartola ficou 23 anos na CBF, de 1989 a 2012. O jornalista acrescenta que há uma concentração do domínio do futebol por poucos clubes. “O futebol brasileiro reproduz o modelo de concentração de renda que há no país, e o Teixeira nunca fez absolutamente nada mudar essa situação – pelo contrário, só trabalhou para aprofundá-lo.”

Gestão responsável

As iniciativas para impor aos clubes uma gestão mais responsável também enfrentam dificuldades para furar a retranca da cartolagem. Em 20 de março, o governo apresentou uma medida provisória (671), que trata de parcelamento das dívidas dos clubes, exigindo contrapartidas – e institui o Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro. A chamada MP do Futebol, que até o final de junho aguardava votação, enfrenta resistência da própria CBF e da chamada bancada da bola no Congresso. Em maio, a vigência da MP foi prorrogada por 60 dias. Com relatoria do deputado Otavio Leite (PSDB-RJ), a MP limita mandatos na CBF e nas federações, exige que os clubes mantenham em dia salários, direitos de imagem e obrigações tributárias, prevê ingressos ditos populares e dá direito de votos aos atletas nas entidades. O texto tem apoio do Bom Senso, organização criada pelos jogadores profissionais, e óbvia oposição da CBF. Em 25 de junho, a comissão mista (Câmara e Senado) aprovou a MP, que seguiria para votação em plenário, inicialmente na Câmara. Tanto se opõe que, em abril, o sucessor de José Maria Marin na CBF, Marco Polo Del Nero, foi visitar pessoalmente REVISTA DO BRASIL

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ESPORTE

o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL), para pedir “ajustes” no texto. Até então aliado de Marin, assim que este foi preso na Suíça Del Nero tomou duas­providências: deixou Zurique de forma apressada, antes mesmo da eleição, e mandou tirar o nome do cartola da fachada da sede da CBF, um belo edifício na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro. Como negócio internacional, o desenvolvimento do esporte é visível pelos números. De 2011 a 2014, a receita da Fifa somou US$ 5,718 bilhões – sendo 43% vindos de direitos vendidos à TV e 29% de ações de marketing –, ante US$ 4,189 bilhões no período imediatamente anterior (2007-2010). As despesas somaram US$ 5,380 bilhões, resultando em lucro de US$ 338 milhões nos quatro últimos anos. Segundo a entidade, durante esse mesmo período os investimentos em programas de desenvolvimento do esporte totalizaram U$$ 1,052 bilhão. Na Copa do Mundo do Brasil, apenas os direitos de transmissão renderam US$ 2,428 bilhões, enquanto os patrocínios somaram US$ 1,580 bilhão. A venda de ingressos, em um total de US$ 527 milhões, supera de longe os US$ 80 milhões da Copa disputada 40 anos antes, na Alemanha, mesmo sem considerar a inflação. Na divulgação de seu balanço, a Fifa informou ter reservas de US$ 1,523 bilhão em 31 de dezembro de 2014. As transações envolvendo atletas também exibem números na casa dos bilhões. De acordo com o TMS, o sistema de transferências da Fifa, esse mercado movimentou US$ 4,1 bilhões no ano passado, em um total de 13.090 negociações, 2,9% a mais do que no ano anterior – 1.493 eram brasileiros. As comissões pagas para agentes somaram US$ 236 milhões.

E os craques?

“O nosso futebol foi grandioso enquanto a várzea era um celeiro de craques. E essas federações, seja Fifa, seja quem for, nunca são dirigidas por quem realmente ama futebol”, diz o jornalista Marco Pezão, repórter de futebol varzeano­, responsável pelo blog Futbolando e um dos criadores 34

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do Sarau da Cooperifa, na capital paulista. Acompanha futebol “desde moleque”. O pai tinha um time na Vila Sônia, zona sul paulistana, chamado Alviverde – Pezão, ou Marco Antonio Iadocicco, tem um sobrenome que não esconde as origens. Já foi médio-volante, meia armador, e “depois de velho” foi jogar na defesa. Ele lamenta o empobrecimento não só financeiro, mas da qualidade do futebol. Tinha acabado de assistir Brasil x Peru, na abertura da Copa América, em 14 de junho e não se conformava. “Meu, mas não tem um! Aquele central cabeludo (David Luiz): vai pra reciclagem. Se não fosse o menino...”, diz, referindo-se a Neymar, que no jogo seguinte, contra a Colômbia, seria expulso e suspenso, perdendo o restante da competição. Para Pezão, a corrupção, que ele considera o grande mal do nosso tempo, não causa estrago só pelo dinheiro. “Corrompe ideia, projeto, tudo.” Mas não chega a ser algo novo, acrescenta. “Claro que o futebol virou um puta de um negócio, claro que isso tudo atrai. Acho que essa prática sempre teve, em escala menor, com menos dinheiro.” Segundo ele, esse é um tema que a várzea dá de bico nos dias de jogos. “O pessoal vai para bater uma bola, ver os amigos.” E se os grandes clubes passam por dificuldades e ficam rolando indefinidamente suas dúvidas, o futebol amador também tem seus problemas. “É muito gasto, é difícil. Infelizmente, a situação econômica nossa decaiu. O comércio da região ajudava, tinha essa prática corriqueira. Agora, até isso está difícil”, conta Pezão, que é defensor da ideia de que os times devem se tornar associações culturais.

Processo de formação

O futebol deve começar a ser visto de outro modo, sem perder suas características, acredita a responsável pelos projetos de futebol da Ação Educativa, Carolina Moraes. “Acho que a maior resposta que a gente pode dar ao que estamos assistindo é a construção de uma outra perspectiva e de outro diálogo para o futebol”, afirma. “A gente não desconsidera o futebol profissional de


ESPORTE

FOTOS DANILO RAMOS/RBA

REPENSANDO O FUTEBOL No ano passado, o campeonato mundial de futebol de rua, disputado no Brasil, teve participação de 20 países e 300 jovens

maneira nenhuma”, ressalva Carolina, que vê o esporte como potencializador de práticas culturais. Criada há 11 anos, a associação adota conceitos como o do fútbol callejero (futebol de rua, prática inaugurada nos anos 1990 na Argentina) e acompanha

diversas iniciativas espalhadas pelo país, com o futebol dos povos indígenas, o futlama em Macapá, o peladeiros de praia em Maceió e o peladão de Manaus, considerado o maior campeonato de várzea do mundo. Carolina destaca o envolvimento da comunidade (existe também o

“peladinho”, para crianças). “É mais conhecido que o próprio futebol profissional de Manaus”, afirma. Essas e outras experiências estarão em foco durante o 2º Encontro Ação e Cultura, que será realizado de 14 a 17 de outubro, em Fortaleza. O futebol de rua – que no ano passado teve um campeonato mundial disputado no Brasil, com 20 países e 300 jovens e adolescentes – tem delegações, não seleções. Não se joga contra, mas entre. Não há juiz, mas mediador. O jogo é dividido em três tempos – no primeiro, por exemplo, os times combinam as regras, que devem levar em conta princípios de respeito, solidariedade e cooperação. Carolina insiste que não se trata de propor uma oposição ao futebol profissional, mas de pensar sob outros pontos de vista, combatendo preconceitos e aproveitando o esporte para estimular debates. “É um processo de formação. Você não deixa de jogar. Mas como você discute direitos humanos na perspectiva do futebol?”, questiona. Ela mesmo já jogou bola durante anos. “Também queria ser jogadora profissional, também tinha esse sonho”, diz Carolina, que desenvolve uma pesquisa em pós-graduação sobre a presença de mulheres nas torcidas organizadas. Para o pesquisador da UFF Luiz Rocha, a solução, no caso do futebol, passa pela participação de outros agentes na gestão do esporte, como jogadores e torcedores. Estudioso da organização esportiva e da influência da política, ele deixa de lado essas questões e reflexões quando vai ao Maracanã ver o Flamengo jogar. “Quando estou no jogo, só penso que a gente precisa de um zagueiro melhor. Não penso que o Blatter foi isso ou aquilo.” Em 20 de junho, um sábado ensolarado, o Produto do Morro – preparando-se para um campeonato – entrou em campo no Jardim Rochdale, também em Osasco. Começou perdendo, mas terminou com uma vitória convincente: 7 a 2. “Estamos no caminho certo. E foi bastante torcida”, comemorou Robson, duplamente. Depois, como de hábito, um churrasquinho para jogadores e torcedores, indiferentes ao destino dos senhores do futebol mundial. REVISTA DO BRASIL

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HISTÓRIA

Império perdido na Amazônia Há 70 anos, terminava o plano de Henry Ford de abastecer suas fábricas com borracha produzida no Brasil. Local virou ruína Por Vitor Nuzzi

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este 2015 completam-se sete décadas da ruína de um pedaço de império no meio da floresta amazônica. Era uma área extensa, de aproximadamente 15 mil quilômetros quadrados no sudoeste do Pará, na região de Santarém, a 800 quilômetros de Belém. Foi onde se construiu a Fordlândia, referência ao empresário norte-americano Henry Ford, que planejava estabelecer ali sua base de fornecimento de borracha. A aventura começou em 1927 e terminou em 1945, sem sucesso. A área hoje está 36

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em ruínas. No início deste ano, o Ministério Público Federal (MPF) solicitou rapidez ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico (Iphan) no processo de tombamento, mas ambos concordam que isso não será suficiente para recuperar e preservar o local. Na primeira década do século passado, Henry Ford causou sensação com seu modelo T, pioneiro na fabricação em série. O modelo de produção inovador para a época foi batizado de fordismo. Surgia a linha de montagem. Para os pneus dos automóveis, ele precisava de borracha – e aí surge o projeto da Fordlândia. O ciclo da borracha no Brasil já estava superado. No início do século 20, quem produzia eram colônias inglesas do Sudeste Asiático. O empresário viu na Amazônia oportunidade de investimento e de fornecimento contínuo e mais barato para seus produtos, fugindo do monopólio britânico. Adquiriu o terreno e, em pouco tempo, criou não apenas uma fábrica, mas uma típica cidade dos Estados Unidos em plena Amazônia, no final dos

anos 1920. Uma little town (cidadezinha) à beira do Rio Tapajós, que chegou a ter mais de 3 mil trabalhadores. A produção da borracha, no entanto, nunca se firmou. As pragas atacaram as seringueiras e as plantações ainda foram transferidas – outra cidade foi erguida, em Belterra, que faz parte do processo de tombamento em análise pelo Iphan. Mas a indústria também já havia descoberto a borracha sintética. O projeto brasileiro perdia sentido. A empresa teve ainda problemas com seus funcionários brasileiros, ao tentar impor uma cultura norte-americana, que não se limitava ao modelo de produção, e incluía novos hábitos de comportamento e alimentares. Em 1930, por exemplo, houve uma rebelião de trabalhadores, que se batizou de Revolta das Panelas, descrita em detalhes pelo historiador norte-americano Greg Grandin, no livro Fordlândia – Ascensão e Queda da Cidade Esquecida de Henry Ford na Selva, lançado no Brasil cinco anos atrás.


HISTÓRIA

MATO E RUÍNAS A Fordlândia deixou de existir em 1945

COLIN MCPHERSON/CORBIS/LATINSTOCK (2005)

VIDA DIFÍCIL A cidade chegou a ter 3 mil trabalhadores, que não se adaptaram ao estilo norte-americano de vida. Na foto, vila operária em 1933

Fascínio e desolação

FORD MOTOR COMPANY/DIVULGAÇÃO

IMPERADOR O sonho amazônico de Henry Ford deu em nada

Segundo a superintendente do Iphan no Pará, Maria Dorotéa de Lima, o processo de tombamento encontra-se “em vias de finalização”, com algumas pendências. Mas os problemas são muitos, acrescenta. “Na prática, quem responde pela gestão local é a prefeitura de Aveiro, pois Fordlândia é um distrito municipal. Porém, trata-se de área da União, o que dificulta a atuação do município no que se refere à fiscalização”, diz Dorotéa, que conta ter experimentado “sensações contraditórias de fascínio e desolação” ao visitar o local. “O desafio está em superar o isolamento e encontrar soluções que associem preservação, sustentabilidade e gestão.” “Só o tombamento não vai resolver, se não houver outros canais de proteção”, afirma a procuradora Janaína Andrade, do MPF paraense, que vê necessidade de políticas públicas para cuidar efetivamente da área. “A situação é difícil. Com o passar do tempo, as intempéries vêm, e são perdas que não serão recom-

postas. E não é só esse patrimônio. Assim como na Fordlândia, infelizmente o patrimônio cultural não tem valor. O próprio Iphan não tem estrutura”, lamenta Janaína. No começo de junho, a procuradora esteve em contato com a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), que atua junto com o Iphan no caso. Foi feito um pedido de seis meses para conclusão do inventário. Apesar do prazo elevado, o Ministério Público tende a aceitar, até por uma questão prática: uma possível ação civil pública não teria efeito nenhum, porque não haveria como cumpri-la. Para Janaína, é preciso tentar despertar a consciência da população. “A sociedade não valoriza o patrimônio que tem lá”, afirma. Uma ideia em estudo, que está sendo discutida com professores da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), é levar um curso de extensão (de Arqueologia) de Santarém para Aveiro, cidade onde fica a Fordlândia, com população estimada em 16 mil pessoas, segundo o IBGE. REVISTA DO BRASIL

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FOTOS: BENSON FORD RESEARCH CENTER

HISTÓRIA

IMPOSIÇÕES Os hábitos norte-americanos, inclusive os alimentares, revoltaram os brasileiros e resultaram na Revolta das Panelas

Fordlândia em 1933

Mato e ruínas

A Fordlândia deixou de existir, definitivamente, em 1945. O governo brasileiro indenizou a empresa e ficou com a infraestrutura, que aos poucos se perdeu. O local chegou a receber instalações federais e fazendas, com casas habitadas por servidores do Ministério da Agricultura. Mas a área foi abandonada aos poucos e os prédios se deterioraram ou foram alvo de vandalismo. Ainda há moradores na região. Alguns ocuparam casas remanescentes da chamada Vila Americana. Recentemente, o repórter Daniel Camargos, do jornal Estado de Minas, visitou o local. Sua descrição a respeito do hospital que funcionava ali ajuda a 38

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Hospital em 1931

dar uma ideia do que aconteceu com o passar do tempo: “O projeto do hospital foi elaborado pelo arquiteto Albert Khan, o mesmo que projetou as fábricas da Ford em Highland e River Rouge, nos Estados Unidos. A capacidade era de 100 leitos e foi um dos mais modernos do país, sendo o primeiro a realizar um transplante de pele. Hoje, é só mato e ruínas. No local abandonado, somente o zumbido de mosquito interrompe o silêncio”. Dorotéa considera que a experiência pioneira, no sentido de implementação de um grande projeto internacional na Amazônia, não deve ser desprezada, mas faz ressalvas. “Os muitos estudos e trabalhos a respeito revelam que o despre-

Crianças na escola em Belterra (1940)

zo do componente cultural e da realidade local muito contribuiu para os desacertos”, analisa a superintendente do Iphan. “Muitos projetos vieram depois e, apesar de um outro entendimento da região e do componente local, pode-se dizer que continuamos a ser meros fornecedores de matéria-prima, inclusive no caso da energia. Muitas vezes o que fica na região é apenas o lado perverso desses investimentos: desmatamento, poluição, aumento da população nas periferias dos projetos em áreas de ocupação irregular, inchando as cidades que, em geral, não têm as condições devidas para atendê-las.” Henry Ford morreu em 1947, sem conhecer sua cidade amazônica.


EMIR SADER

Decadência europeia, do euro à austeridade A virada consolidou modelos neoliberais nos países do euro. A recessão se aprofundou e prolongou, enquanto a Europa destruía sua mais generosa construção: o Estado de bem-estar social

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momento de virada da Europa para sua rota de decadência pode ser localizada na impotência em impedir o surgimento do nazismo e do fascismo no seu seio e na incapacidade para derrotá-los. Teve de contar com a intervenção dos Estados Unidos e da União Soviética, o que consolidou seu processo de decadência, iniciada realmente com o fim da longa hegemonia britânica e na superação da Alemanha pelos Estados Unidos na disputa do lugar deixado vazio pela Grã-Bretanha. O projeto da União Europeia aparecia como uma recuperação de protagonismo em escala mundial, pela multiplicação da força de cada um dos seus países. Foi um longo processo, conduzido pela Alemanha e pela França, indicando como a Grã-Bretanha não ocuparia lugar de primeira linha nesse processo. A longa aliança com os Estados Unidos, originada depois da própria guerra de independência norte-americana, não se deixou afetar pela unidade europeia, consolidando-se ao longo das últimas décadas como eixo da hegemonia norte-americana no mundo. Depois de longas negociações, a União Europeia convergiu para a criação do euro, como expressão monetária do que se pretendia que fosse o símbolo da promoção da Europa a novo continente protagonista da política mundial – depois da consolidação da influência norte-americana no Velho Continente, pela participação decisiva na Segunda Guerra e na sua reconstrução. As consultas nacionais de adesão à unificação europeia apontavam, por sua vez, para o caráter que ela teria. A questão colocada para os europeus dos distintos países não era se aprovariam ou não a unidade europeia, mas se desejariam o euro como moeda única. Isto é, impunha-se já um caráter monetarista à unificação. Cada vez que um país rejeitava a proposta, eram feitas novas consultas, acompanhadas de fortes pressões e ameaças sobre as desgraças que recairiam sobre os que estivessem ausentes da unificação.

Lançado o euro, houve um curto momento de lua de mel diante do dólar, para logo cair na sua cotação. Mas a maior prova veio com o começo da longa crise econômica internacional, há sete anos. Foi o momento em que a Alemanha se aproveitou para consolidar sua hegemonia, usando a bandeira das políticas de austeridade. A virada para a austeridade consolidou modelos neoliberais em todos os países do euro. A recessão se tornou profunda e prolongada, enquanto a Europa destruía sua mais generosa construção: o Estado de bem-estar social. País a país, os direitos dos setores mais frágeis – imigrantes, pobres, idosos – foram sendo expropriados, concentrando a renda em torno dos sistemas bancário e financeiro, como a Europa nunca havia conhecido. Comprometidos ambos com a unificação, o euro e a austeridade, os partidos que até ali representavam a direita e a esquerda – social-democracia por um lado, conservadores por outro – entraram em um processo de enfraquecimento, de crise de representação. Cada eleição é um pânico, porque eles sabem que se debilitarão cada vez mais. Como em vários casos foi a própria social-democracia a dar início às políticas de austeridade – como na Espanha –, ambas as correntes se viram abraçadas na direção do fundo do poço. Surgiram explosões fora do bipartidismo, até que ficou configurado que as forças emergentes eram as que protagonizavam a resistência à austeridade. Onde a esquerda teve esse papel surgiram novas forças, Syriza e Podemos, na Grécia e na Espanha. Em outros, como França, Grã-Bretanha, Áustria, Noruega, Finlândia, Dinamarca, foram partidos extremistas de direita os que despontaram. O que é certo é que a Europa sairá da crise atual, quando sair, muito transformada. No planos político – dada a crise aberta do bipartidismo e o surgimento de novas forças, de esquerda e de extrema-direita – e no plano social, com muito mais desigualdade e concentração de renda. REVISTA DO BRASIL

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MUNDO

A pauta negativa sobre o Brasil

CLIVE POWER FROM LONDON/ WIKIMEDIA COMMONS

A Petrobras segue no noticiário. O HSBC, das contas podres de tráfico e da evasão fiscal, já sumiu. E a Suíça está bonita na lista anticorrupção da Transparência Internacional. É fácil. Basta não investigar Flávio Aguiar, de Berlim

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á exatos dois anos, em julho de 2013, uma solenidade em Brasília celebrava os dez anos do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – fórum consultivo da sociedade instituído pelo governo Lula para ouvir sugestões de empresários, sindicalistas, movimentos sociais, intelectuais e outros atores com algo a dizer sobre os rumos do país. Na ocasião, o diplomata brasileiro Roberto Azevêdo, então recém-eleito diretor-presidente da Organização Mundial do Comércio (OMC), protagonizou um dos pontos altos da reunião. Azevêdo expôs com clareza que os dias de lua de mel entre o Brasil e a mídia internacional tinham acabado. Dali para diante, seria ladeira acima. Não deu outra. Até aquele momento, o Brasil estava na pauta positiva. Lugar atraente para investimentos, a maior e a melhor democracia entre os Brics – senão a única (com o passivo do apartheid ainda pesando sobre a África do Sul), nosso país parecia ser ainda e sempre aquele de e do futuro. Desde então, o bolo brasileiro desandou. Naquele momento, havia um sutil componente político. Na mesma medida em que o então G-8 perdia importância para o G-20, o Brasil se fizera líder das nações emergentes. Auxiliaram nessa ascensão muitos fatores, entre eles o de ser de fato uma democracia, de não ter guerras com ninguém, de não ser um país militarista nem militarizado e de ser um país sem poderio nuclear. O Brasil era uma opção não contra, mas dentro da hegemonia mundial do capitalismo triunfante. Mas era uma opção diante do predomínio dos Estados Unidos e dos países líderes da União Europeia (Alemanha, França, Reino Unido), secundados pela Itália, Canadá e Japão, que formavam o bloco ocidental dentro do G-8. 40

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SEM INVESTIGAÇÃO O banco e seus correntistas suspeitos saíram ilesos de um dos maiores escândalos financeiros de nossa época

Ocorre que esse grupo seleto tinha outro candidato para a OMC, um diplomata mexicano, aquele país que já foi líder da diplomacia independente na América Latina e hoje se vê na condição de ser um irmão menor, ou primo pobre, da América do Norte. E ele perdeu para o brasileiro Ricardo Azevêdo. Os países hegemônicos, mais a imprensa que os representa, da Wall Street à City londrina, de Washington a Frankfurt, ou aquela que não os representa, mas os têm como referência, não ficaram nada felizes. A essa altura, já havia uma sutil mas significativa campanha que se iniciava contra o ministro Guido Mantega e seu “intervencionismo estatal” na economia. Mas muitas vozes viam tal iniciativa como uma mera ressonância da campanha da direita brasileira, na e da nossa mídia e fora dela. Não a viam como uma iniciativa da própria mídia internacional. Com o andar da carruagem, isso, que era um ribeiro, tornou-se um caudal, uma torrente vertiginosa. O canal maior dessa verdadeira campanha antiBrasil se abriu com a realização da


Copa do Mundo de 2014. Choviam matérias negativas, de todo o tipo, no jornalismo de direita, centro e meia-esquerda em todos os quadrantes do Ocidente. E a chuva caía na TV, na internet, na mídia impressa e no rádio. O tom exaltado era o de que “agora vamos mostrar o verdadeiro Brasil”. E esse “verdadeiro” era um país de eternos favelados, narcotraficantes, governantes inescrupulosos, corruptos, prostituição, pobreza escabrosa, quadrilheiros, sequestros, onde o profissional de jornalismo tinha de andar de colete à prova de balas, enfim um caos. Veio a Copa, e a única coisa que não funcionou a contento foi o nosso time. O resto só merecia elogios. Mas a contragosto. E as pautas negativas continuaram, depois alimentadas sobre as denúncias de corrupção na Petrobras, no governo, sempre bordejando a insinuação de que isso é algo “inerente” ao Brasil. Campanhas da direita – da bancada da bala, da redução da maioridade penal, a homofobia que busca se institucionalizar – se diluem nisso de que “o Brasil é assim”. As manifestações antidemocráticas, os pedidos para que a ditadura volte, se diluem numa expressão de um “descontentamento” difuso diante do “caos” ou do “impasse” na economia, na administração pública, coisas cuja raiz jaz na inapetência ou na incompetência brasileira. Ou seja, o Brasil é o Brasil inadimplente porque é o eternamente “atrasado”. As matérias sobre o “drama Petrobras” se sucedem – insinuando sempre que o Brasil não deveria, por exemplo, explorar o pré-sal, por incompetência, porque trará danos ao meio ambiente, será caro etc. Os únicos personagens brasileiros que merecem alguma­intenção positiva são aqueles que resistem ao desenvolvimento econômico, em nome da preservação de um Brasil que, diga-se de passagem, nem sequer existe mais. Para essa mídia internacional e aquilo que ela representa, a lista de pecados do Brasil só aumentou. Além de a Petrobras ter-se tornado uma das maiores companhias do mundo, o Brasil agora planeja com os Brics a organização de um mundo financeiro alternativo e com bancos independentes. Aliás, os Brics por inteiro só têm direito, em conjunto, a uma pauta negativa. China e Rússia não são democracias, a África do Sul é uma democracia capenga nas mãos dos descendentes do apartheid (de um lado e do outro dele) e o Brasil, bem o Brasil, noves fora, é geneticamente inepto para o mundo moderno. Na relação com a mídia tradicional brasileira, fica a dúvida sobre o que nasce primeiro, se o ovo ou a galinha. Uma ressoa a outra, ainda que a nossa seja mais provinciana e acanhada. Ao se ler reportagem sobre o Brasil, o mais que se pode esperar é que apareçam referências ao grupo Globo, Folha de S. Paulo,

Estado, aqui e ali Veja. CartaCapital não existe, bem como a mídia alternativa (isso eu até entendo, não há nada parecido com a nossa mídia alternativa na Europa, nem mesmo o equivalente a um site como Democracy Now, dos Estados Unidos). Penso que ideologia neoliberal antiBrasil de hoje tem por alimento principal a pauta dos arautos da City londrina, The Economist e Financial Times, mas ela também ecoa aparentemente pela esquerda no The Guardian e, em tom menor ou pelo menos não tão frequente, no New York Times. Frequenta o Wall Street Journal, de modo mais sóbrio. É frequente no El País. Mas isso não explica tudo. Há um fator psicológico importante, que abarca a relação editor-jornalista-leitor (esta última palavra num sentido bem amplo, que abrange toda a mídia). O Brasil mudou de lugar no mundo. Na Projeção de Mercator, que informa os mapas-múndi globais, o ponto de vista é determinado a partir do trópico de Câncer, o que transforma o Brasil num anão de pernas curtas frente aos gigantes, como o Alasca e a Groenlândia. Isto cria uma falsa impressão, mas é assim que nos acostumamos a nos ver, e que “eles” nos veem. De repente, o anão-criança-inepto-palhaço virou outra coisa, além do estereótipo de praia-futebol-café-pobreza-corrupção-traseiro-de-mulher-na-raia-ou-na-praia, fechando o círculo. O Brasil não cabe nos manuais, nem nos marxistas nem nos do FMI ou do Banco Mundial. Nem nos manuais de redação. Isso traz uma insegurança danada. Diante dela, o melhor é tentar devolver o “estranho” ao seu lugar. Por isso, há uma certa sofreguidão em mostrar que no Brasil noves fora, nada fica em pé. Dezenas de milhões de pessoas saindo da pobreza? Um SUS universal que, com suas precariedades, funciona? Uma política social e de auxílio a refugiados que a ONU considera exemplar? Uma presença cada vez mais forte e reconhecida nos fóruns internacionais? Ora, ora, noves fora, nada. E se tivermos um critério comparativo, a coisa piora. A Petrobras continua no noticiário. O HSBC e suas­contas podres de narcotráfico, tráfico de armas e joias, evasão fiscal etc. já sumiu das manchetes e das páginas interiores. Até porque a investigação sobre desvios na Petrobras continua, enquanto a promotoria suíça encerrou a investigação sobre as contas do banco, mediante o pagamento de uma multa irrisória, de 43 milhões de francos, nada, diante dos mais de 100 bilhões em qualquer moeda que se queira daquelas contas. A Suíça, terra dos paraísos fiscais e da Fifa de Joseph Blatter, ocupa um nobre quinto lugar na lista anticorrupção da ONG Transparency Internacional. Assim é fácil. Basta não investigar.

FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

MUNDO

DESCONSTRUÇÃO As matérias sobre o “drama Petrobras” se sucedem – insinuando sempre que o Brasil não deveria, por exemplo, explorar o pré-sal, por incompetência, porque trará danos ao meio ambiente, será caro etc

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CULTURA

Palco de resistência Joia do teatro brasileiro, Escola Martins Pena, no Rio, luta para não sair de cena Por Maurício Thuswohl

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Reação

A situação fez com que os “filhos da Martins”, como se autodenominam seus alunos e ex-alunos, reagissem. Por intermédio do Grêmio Estudantil Renato Viana, coração político da escola, 42

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PENÚRIA Manifestação na Assembléia do Rio e a sede da Martins Pena, onde já lecionaram Cecília Meireles e Procópio Ferreira: estágio terminal CAMILLA MAIA/AGÊNCIA O GLOBO

arrador dotado de uma deliciosa irreverência que até hoje influencia o teatro brasileiro e observador atento das dificuldades enfrentadas pelo povo e o país em seu cotidiano, o dramaturgo Luís Carlos Martins Pena (1815-1848) talvez conseguisse extrair alguma coisa engraçada do drama vivido pela escola que leva o seu nome. A Escola Técnica de Teatro Martins Pena, no Rio de Janeiro, luta há anos contra um permanente estado de penúria financeira que parece ter atingido nestes primeiros meses de 2015, justamente quando se completam 200 anos de nascimento do patrono, o estágio terminal. Fundada em 1908, a Martins, como é chamada na intimidade por quem lá trabalhou ou estudou, é a mais antiga escola de teatro da América Latina em atividade, mas corre o risco de não chegar a 2016. Oficialmente mantida pela Fundação de Apoio à Escola Técnica (Faetec), órgão subordinado à Secretaria de Ciência e Tecnologia do governo estadual, a escola, localizada na região central da cidade, quase viu concretizada a ameaça de fechar suas portas em 28 de maio, data do fim dos contratos de 24 empregados temporários (15 professores e nove funcionários). Desde o começo do ano letivo, outros cinco professores e quatro costureiras e figurinistas já deixaram a instituição, o que provocou a interrupção de algumas disciplinas. Quem utiliza sua sede convive com inúmeros problemas de infraestrutura que vão desde infiltrações, escadas e móveis comidos por cupins e instalações elétricas inseguras até falta de água, internet e telefone. Entre outubro do ano passado e maio deste ano, a Martins Pena não recebeu da Faetec um único centavo relativo às despesas de custeio cotidiano (escritório e manutenção), atualmente no valor de R$ 2 mil mensais. Os repasses orçamentários totais necessários ao funcionamento da escola tem valor estimado pela Faetec em R$ 400 mil mensais. Longe de ser considerada uma prioridade para o governo, a escola parecia fadada a sucumbir em meio ao intensivo processo de cortes de gastos promovido este ano pelo governador Luiz Fernando Pezão (PMDB).

e do recém-criado movimento Martins Sem Pena, foram organizados dois atos de rua que reuniram mais de 100 pessoas nos dias 24 e 30 de abril, além de diversas assembleias de estudantes, professores e funcionários. A mobilização surtiu algum efeito, chamou a atenção da imprensa e fez com que Pezão viesse a público prometer uma solução emergencial para que a escola continue funcionando. Uma solução definitiva, diz o governador, será elaborada por um grupo de trabalho que, entre outras coisas, deverá propor o envio de um projeto à Assembleia Legislativa para transferir a Martins Pena da alçada da Ciência e Tecnologia para a Secretaria de Cultura. A mudança, segundo o governo, permitiria que a escola tivesse acesso a outras possibilidades de aporte de recursos para seu funcionamento e contratação de pessoal. Procurado pela reportagem, o presidente da Faetec, Wagner Victer, afirmou, por intermédio de sua assessoria, que “a situação da Martins Pena já está regularizada”. Segundo a Fundação, além


PABLO JACOB/AGÊNCIA O GLOBO

dos repasses atrasados, a escola recebeu em 28 de abril mais R$ 4 mil para suas despesas emergenciais de custeio cotidiano, verba oriunda do Fundo de Escolas. Os contratos temporários de professores e funcionários que expirariam no fim de maio, segundo a Faetec, também já foram renovados, de forma automática: “Em relação à contratação de pessoal, não há impedimento para a continuidade dos profissionais que atuam hoje na unidade”. Sobre os problemas estruturais na sede da escola, a Faetec diz que estes já foram detectados durante uma visita feita, no mesmo 28 de abril, pelo setor técnico da Fundação. Alguns teriam sido solucionados imediatamente. “Foram feitos consertos nos aparelhos de ar-condicionado e bebedouros e reparos na bomba de água. Nos próximos dias, estão previstas novas visitas técnicas de reparo. Ressaltamos que nenhum desses problemas ocasionou a interrupção das aulas”, diz a direção do órgão.

Gestão compartilhada

“Na verdade, o repasse ainda não foi regularizado”, informa o presidente do Grêmio Renato Viana, Felipe Bustamante. “O presidente da Faetec nos disse que não há prognóstico de que neste mês ou no próximo a escola volte a receber normalmente o repasse. A Faetec remanejou recursos de uma escola que tem mais dinheiro para ajudar a Martins Pena emergencialmente com esses R$ 4 mil, que foram referentes às despesas cotidianas de maio e abril. Mas o repasse não está sendo feito como deveria ser.” Atualmente, a escola tem 150 alunos matriculados no curso regular e 50 na oficina livre. A proposta de transferência para a Secretaria de Cultura não é bem vista pelos integrantes da escola: “O que a gente quer é

uma gestão compartilhada, uma cooperação técnica entre as duas secretarias. Nosso ponto principal da pauta é o concurso público específico para a Martins Pena, e na Cultura não teríamos essa possibilidade, pois por lá não serão abertos concursos. Queremos que a Faetec continue dirigindo toda a parte relativa aos profissionais e à estrutura física da escola, mas queremos que a Cultura entre também, com mecanismos de apoio e a possibilidade de convênios com outros teatros”, afirma Bustamante. Já a Faetec limita-se a informar que “quanto à possibilidade de cessão da unidade, a questão está sendo discutida pelas partes”. Enquanto espera por soluções definitivas, o movimento Martins Sem Pena continua sua mobilização. Com o objetivo de elaborar um programa político-pedagógico para a escola, foi realizada em 18 de maio uma audiência pública com a Comissão de Cultura da Assembleia. Outra audiência, desta vez na Comissão de Educação, estava prevista para o dia 9 deste mês de junho. “Estamos mobilizados e podemos também voltar a fazer atos de rua em defesa da escola”, diz o presidente do grêmio estudantil.

Pública e gratuita

Além da tradição e da excelência que fazem dela uma espécie de xodó da classe teatral brasileira, a Martins Pena é pública e gratuita desde sua fundação, o que, ressalta Bustamante, torna ainda mais doloroso seu abandono pelo poder público “Desde sua origem, a Martins Pena foi criada para possibilitar o acesso das classes desfavorecidas a cursos de teatro. Isso segue uma vocação do próprio Martins Pena que, ainda no século 19, queria uma escola de teatro para negros e escravos. A Martins foi criada para ser uma escola de qualidade para quem não pode pagar por isso em uma escola particular”, diz. Tanto prestígio no meio teatral faz com que o concurso para ingresso na escola seja o mais concorrido do tipo em todo o continente. Houve oportunidades em que as 30 vagas semestrais foram disputadas por mais de mil pessoas – e desta vez, apesar da crise, não será muito diferente: “Já saiu o edital do próximo concurso. É muito concorrido mesmo, tem gente do Brasil todo, do mundo todo. Tem gente que quer vir morar no Brasil só para estudar na Martins Pena”, conta Bustamante. Ao longo deste mais de um século de vida, a Martins Pena já teve como professores gente do quilate de Procópio Ferreira, Cecília Meireles e Fernando Pamplona, entre outros. Nomes de peso da dramaturgia nacional, como Oduvaldo Vianna e José Wilker, já foram seus diretores. Dona de um passado de respeito, a Martins quer sobreviver para, quem sabe, retomar o caminho da glória. “Precisamos de um corpo docente sólido e que atenda às nossas necessidades específicas enquanto escola de teatro de excelência, com foco na formação de artistas completos, capazes de formar grupos teatrais de valor. Precisamos também garantir que a escola tenha uma infraestrutura digna de sua história, garantindo a continuidade e a qualidade da profissionalização gratuita de teatro no Rio de Janeiro, o que pressupõe uma reforma estrutural, novos equipamentos, e uma verba mensal condizente com os gastos da escola”, diz nota divulgada pelos “filhos da Martins” nas redes sociais. REVISTA DO BRASIL

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SAMBA PARA O TRABALHADOR Fundado para abrir um espaço que a classe média negra carioca não encontrava em redutos culturais no Rio dos anos 1950, o clube Renascença virou espaço de resistência e referência do bom samba Maurício Thuswohl

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eu destino eu moldei/ Qualquer um pode moldar/ Deixo o mundo me rumar/ Para onde eu quero ir/ Dor passada não me dói/ E nem curto nostalgia/ Eu só quero o que preciso/ Pra viver meu dia a dia.” Os versos de Filosofia de Vida, parceria de Marcelinho Moreira com Fred Camacho e o mestre Martinho da Vila, resumem o perfil do Renascença Clube, no Rio de Janeiro. Ponto de encontro de bambas de distintas gerações e polo irradiador da cultura e da consciência negra, o Rena, como é chamado pelos íntimos, colecionou glórias em seus 64


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TRADIÇÃO Moacyr Luz: “O elo em relação ao negro e às minorias me chamou a atenção”

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Roda de samba no Renascença

LUCIANA WHITAKER/RBA

Araquém Azeredo frequenta o Renascença desde o fim dos anos 1950

Jorge Ferraz juntou talentos e abriu o espaço para a roda

anos e sofreu com as voltas que o mundo dá. E redescobriu o samba para se tornar nos últimos anos uma referência que atrai brancos e negros, cariocas e turistas, homens e mulheres de diversas classes sociais em eventos que muitas vezes lotam o espaço no bairro do Andaraí, zona norte do Rio. Na programação do Renascença, a joia da coroa atende pelo nome de Samba do Trabalhador, roda de samba criada pelo músico e compositor Moacyr Luz e que é feita todas as segundas-feiras. O evento acaba de comemorar dez anos de existência – e, para a data não passar em branco, foi lançado o disco 10 Anos e Outros Sambas, com 12 faixas inéditas para o gran-

de público, mas conhecidas dos frequentadores mais assíduos do Rena. Com a repercussão do álbum, a direção do clube já se prepara para novo período de casa cheia, com eventos que algumas vezes transcendem a capacidade de 1.500 pessoas e se espalham pela rua. Tudo começou quase por acaso. “Eu conheci o Renascença pelo então presidente Jorge Ferraz. Ele me trouxe a uma feijoa­ da quando o Nei Lopes (compositor e escritor) recebeu o prêmio da Medalha Pedro Ernesto. De cara, essa união que havia aqui, esse elo que se criava em relação ao negro e às minorias, me chamou a atenção”, conta Moacyr Luz, bebericando um vinho tinto, minutos antes de assumir o comando da mesa e da roda de samba. Em busca de reproduzir o clima das rodas que organizava nos anos 1990 no bar Dona Maria, na vizinha Tijuca, e nas quais recebia amiúde amigos do naipe de Aldir Blanc, Paulinho da Viola e Zé Kéti, entre outros, Luz viu o caminho do Renascença cruzar com o seu. “O clube naquela época estava um pouco caidinho, não havia muito que fazer, e o Jorge tinha o desejo de rea­ lizar alguma coisa. Aí, eu, de uma forma muito despretensiosa, pensei em fazer um encontro aqui na segunda-feira, que era o Samba do Trabalhador. O trabalhador, no caso, é o próprio músico, que não podia fazer festa no fim de semana porque estava trabalhando, aí fazia a própria festa na segunda-feira”, explica. Não demorou para o evento, apenas com a propaganda boca a boca, se tornar um evento querido pelos cariocas. “A ideia era unir comida, música, encontros. Só que aconteceu algo inesperado, virou um fenômeno. Com dois meses, a gente começou a ter aqui mil pessoas. Nós começamos no dia 30 de maio de 2005, e no dia 29 de agosto já gravamos o primeiro CD e DVD”, conta Moacyr Luz. O “fenômeno” foi possível graças à qualidade artística da roda de samba e, sobretudo, à espontaneidade de um tipo de múREVISTA DO BRASIL

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sica que ainda brota naturalmente na zona norte do Rio, longe dos esquemas comerciais. “Nossos olhos estavam voltados para a zona norte e, quando a gente viu, estava formada essa geração nova, e o Renascença começou a ganhar impulso”, lembra Luz. “Foi uma junção de novos parceiros a partir dessa roda de samba. Isso aqui foi virando um nicho alternativo para a zona norte. Eu brinco sempre que chegou a hora de essa gente não bronzeada mostrar seu valor.”

Encontro de gerações

Convivência social

O Renascença foi fundado em 1951 por um grupo de advogados, médicos e comerciantes negros, todos de classe média. O grupo, segundo narrativa do próprio clube, “impedido de ingressar em clubes tradicionalmente frequentados por famílias brancas, resolveu criar uma agremiação onde as famílias negras pudessem se reunir e se divertir numa harmoniosa convivência social e cultural e onde não fossem, portanto, discriminados”. Essa origem atrelou para sempre o nome do Renascença a um sentimento de orgulho do negro carioca. “Era uma época diferente, o pessoal pensava muito em dançar. As pessoas não tinham acesso a certos clubes, então resolveram fundar o Renascença para que a família pudesse dançar. Só que no início nós não tínhamos sede, então alugávamos clubes para fazer a nossa festa”, 46

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O Renascença passou a reunir nomes consagrados como Moacyr­Luz a grandes talentos de outras gerações de artistas, caso do percussionista, cantor e compositor Marcelinho Moreira, que comanda uma vez por mês, sempre no último domingo, o Canto do Batuqueiro, sucesso de público no clube. “A vinda do Moacyr com o Samba do Trabalhador acabou dando um conceito muito bacana e abriu espaço pra gente. Poucos conseguem chegar na rádio, chegar pra grande massa. É um problema da cultura no Brasil, infelizmente, e principalmente da cultura de raiz, que é o samba. As rádios preferem um tipo de samba mais descartável. Então, o movimento das rodas de samba se juntou naturalmente com esse lance de resistência representado pelo Renascença. O movimento não foi planejado, foi natural”, diz o músico. Requisitado para shows e gravações em estúdio desde os 16 anos, quando começou acompanhando Martinho da Vila, Marcelinho é autor, ao lado de Arlindo Cruz e Fred Camacho, da música Rumo ao Infinito, sucesso na voz de Maria Rita. Mesmo com agenda cheia, tendo de acompanhar a cantora e outros artistas e ainda fazer seus próprios shows, ele nem cogita abandonar o Rena. “Sou mais um que estou desbravando e lutando para difundir a nossa cultura. Isso me deixa muito honrado. O Renascença tem uma história de resistência. Tive convites para fazer a minha roda de samba em outros lugares, mas não achei tão interessante. Minha família ajudou a fundar esse clube, um clube de negros”, diz Marcelinho, lembrando do pai, Aderbal do Estácio, também compositor e autor de Festa do Círio de Nazaré, samba-enredo da Unidos de São Carlos (atual Estácio de Sá) e um clássico do carnaval. REFERÊNCIA Renato Milagres é pioneiro das rodas no Renascença

lembra Araquém Azeredo, vice-presidente de Relações Públicas e Comunicações e frequentador do Renascença desde o fim dos anos 1950. “O Rena não foi pensado como um clube de negros para desagregar, para não deixar branco entrar. Todo mundo conhece a história, a gente não tinha lugar, os negros eram barrados em tudo o que era clube da alta sociedade e até da classe média. Então, o Rena foi feito para a gente ter um lugar para se divertir”, completa Marcelinho Moreira. Com o passar dos anos, o Renascença conheceu fases distintas e passou por momentos de penúria financeira e quase falência.


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Pagodinho e comanda roda de samba todos os sábados. A feijoada regada a samba é servida todo primeiro domingo do mês, e o Pagode do Arruda, formado por músicos do bairro de Vila Isabel, no segundo. Motivo da queixa de Araquém, a restrição de horário acontece porque o Renascença não tem isolamento acústico. “Só podemos ficar abertos até as 22h e só pode ter evento de sábado a segunda. Cumprimos tudo fielmente, não queremos problemas com os vizinhos. Respeitamos o direito de quem não quer ouvir batucada na noite de domingo”, diz o diretor, que teve uma vaga promessa de ajuda por parte do prefeito do Rio, Eduardo Paes: “O prefeito esteve aqui no samba do Moacyr e se comprometeu a fazer a obra de isolamento acústico, que nos permitirá expandir o horário de funcionamento”.

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Patrimônio carioca

CULTURA DE RAIZ Marcelinho Moreira comanda o Canto do Batuqueiro: “O movimento das rodas de samba se juntou naturalmente à resistência representada pelo Renascença”

Na gangorra do sucesso, um momento de alta aconteceu nos anos 1960, quando o clube se tornou famoso por organizar concursos de misses e as representantes do clube no Miss Brasil e no Miss Universo levavam torcidas de toda a zona norte carioca. Depois, com a decadência dos concursos, o Rena viveu por alguns anos sua fase “clube de mulatas”, superada depois de um movimento liderado por antigos dirigentes que contestaram a desvirtuação – e, segundo antigas atas de reunião, sua “adesão à visão comum sobre o lugar e o papel dos negros na sociedade e na cultura nacionais”. Nos anos 1970, o Renascença viveu novamente um período de sucesso como casa de shows de soul, graças a um fervilhante movimento black music, então em alta no Rio. Seguiram-se duas décadas de decadência, marcada por bailes funk e brigas. Até que o Rena reencontrou o samba. “O samba, graças a Deus, alavancou o clube novamente. Primeiro veio a família do Zeca Pagodinho. Acreditaram, tocavam no sol ou embaixo de uma lona. Um, dois meses depois, veio o Moacyr no mesmo ritmo e firmou negócio. Agora, o Rena virou uma coqueluche, todos querem fazer festa aqui, mas nós não podemos atender todo mundo por causa da restrição de horário. Os domingos são divididos entre o Marcelinho, a Feijoada do Rena e o Pagode do Arruda”, diz Araquém. O diretor faz referência a outras atrações do clube, como Renato Milagres, o pioneiro, que é sobrinho e afilhado de Zeca

Apesar de seu inestimável valor cultural para o Rio de Janeiro, o Renascença não tem isenção de IPTU. Curiosamente, o clube recebeu em 2000, das mãos do então prefeito Luiz Paulo Conde, o título de Patrimônio Cultural Carioca e passou a ser tombado pelo Instituto Rio Patrimônio da Humanidade. “Ganhar o título de Patrimônio Cultural não mudou nada para o clube. Não temos subvenção nenhuma. Fica só o elogio”, brinca Araquém, para em seguida falar sério. “A gente sofre um pouco com dificuldades financeiras para bancar algumas coisas. Temos um número de associados que nos permite pagar conta de luz, gás e telefone e os salários dos quatro empregados. Temos o ganho do bar, que é sempre do clube em todos os eventos. Temos atividades esportivas e culturais, mas essas só gastam.” Existe também um Renascença para além do samba. O Departamento Cultural do clube promove uma vez por mês o RenaCine: “São filmes só sobre a cultura negra. A maioria das pessoas que vêm no samba nem sabe que existe isso”, diz Araquém. Outras atividades frequentes são debates sobre cultura e política, como o organizado em 25 de maio, Dia da África, com representantes da Comissão da Verdade da Escravidão Negra no Brasil e dos governos de Angola e de Cabo Verde. Agenda marcante no clube é a Semana da Consciência Negra. “Fazemos solenidades, desfiles, dança e palestras sobre a cultura afro. A cada ano, elegemos uma Dandara e um Zumbi”, lembra o diretor. Além de artistas e jogadores de futebol, é comum que autoridades negras deem as caras nas rodas de samba do Rena. “O Joaquim Barbosa, no auge da fervura da mídia, veio sem que a gente soubesse com antecedência. Ele ficou aqui na mesa, olhando o samba lá embaixo. E quando vem alguém de fora, pedem logo para conhecer o samba”, conta Araquém. “Hoje, o clube é referência até internacional”, concorda Moacyr Luz, antes de fazer uma comparação, sem falsa modéstia. “A gente recebe pessoas que já chegam ao Rio com bilhete comprado para conhecer o Renascença. Aqui vem nego de tudo quanto é lugar no mundo para assistir a gente. Eu diria que somos um Buena Vista do samba. Todo mundo que vai a Havana quer conhecer a Bodeguita Del Medio, todo mundo que vem ao Rio quer conhecer o Renascença.” REVISTA DO BRASIL

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Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

NAIR BENEDICTO/DIVULGAÇÃO

ANDRÉ VELOZO/DIVULGAÇÃO

curtaessadica

Na exposição Fé Menina, em cartaz até o dia 31 de julho na Imã Foto Galeria, em São Paulo, a fotógrafa Nair Benedicto faz um retrato da mulher brasileira da década de 1970 até os dias atuais. Com curadoria de Egberto Nogueira, a mostra traz uma coletânea de imagens que traçam um perfil da condição feminina: em prisões, passeatas, aldeias indígenas ou no carnaval, Nair dá voz às mulheres e mostra que, apesar de a discriminação de gênero ainda ser uma realidade, elas vêm conquistando cada vez mais seu espaço na sociedade. De segunda a sexta, das 10h às 20h, e aos sábados, das 10h às 17h, na Rua Fradique Coutinho, 1.239, na Vila Madalena, (11) 3816-1290. Grátis.

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Mulher e fé

Mostra afro Até 30 de agosto, o Museu Afro Brasil, em São Paulo, promove a maior mostra de arte contemporânea africana já realizada no país. Com instalações, pinturas, esculturas, vídeos e moda, a exposição Africa Africans apresenta cerca de 100 obras que traçam um panorama da recente criação visual de vários países daquele continente. Um dos destaques é a instalação The British Library, do artista nigeriano-britânico Yinka Shonibare MBE, composta por 6.225 livros encapados com tecidos africanos que refletem questões ligadas ao colonialismo, pós-colonialismo, identidade, deslocamento e refúgio. De terça a domingo, das 10h às 18h, no Parque Ibirapuera. Informações: (11) 3320-8900. Grátis.

Música e protesto

Depois de passar pelos grupos Mestre Ambrósio e A Fuloresta, Siba lança seu segundo álbum solo, De Baile Solto (YB Music). As dez músicas autorais trazem jogos de palavras, crítica social e ritmos de rua e de raiz de sua terra natal, Pernambuco. Em Marcha Macia, ele provoca: “Passar no caixa, voltar sempre, comprar mais/ Que bom ser parte da maquinaria!/ Teremos muros, grades, vidros e portões/ Mais exigências nas especificações/ Mais vigilância, muito menos exceções/ Que lindo acordo de cidadania!”. Embaladas por uma guitarra africana do Congo, as canções passeiam pela ciranda e pelo maracatu. De Baile Solto, assim como toda a discografia de Siba, pode ser baixada de graça em www.mundosiba.com.br. 48

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Diz uma lenda indígena que Deus criou o mundo e prometeu que voltaria no dia seguinte para entregar ferramentas para os povos. A única etnia que não esperou pelos utensílios foi a dos índios Kadiwéu, e por isso o Criador, com um forte sopro, lhes concedeu uma imensidão de terra onde viveriam e de onde tirariam seu sustento. E assim foi até que chegaram os pecuaristas. Quinze anos depois de ter feito o filme Brava Gente Brasileira com participação dos Kadiwéu, Lucia Murat lança o documentário A Nação que Não Esperou por Deus, que conta a história e os conflitos pelos quais a tribo

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Histórias de uma tribo vem passando. A cineasta acompanhou as transformações que o contato com a sociedade branca trouxe para a etnia: entre um filme e outro, chegaram até a tribo luz elétrica, televisão, cinco diferentes igrejas evangélicas, drogas, bebidas e assassinatos. “As reuniões que filmamos entre os Kadiwéu e os pecuaristas sobre a questão das terras e que estão apresentadas no documentário são reveladoras não somente da situação atual, mas dos preconceitos que se acumularam na história da conquista”, afirma Lucia. O filme estreia nos cinemas em 16 de julho.

Arte em toda parte Cidade de Deus, Complexo do Alemão/Penha, Grande Tijuca, Manguinhos, Providência, Rocinha e Vila Kennedy devem apresentar sua produção cultural durante um final de semana até agosto no Circuito Favela Criativa. Teatro, dança, música, moda, arte urbana, turismo, gastronomia, cultura popular, artes visuais e saraus são algumas das atividades previstas na programação, que tem o objetivo de divulgar e fazer circular a produção artística das favelas cariocas. Confira a programação completa em www.favelacriativa.rj.gov.br. Grátis.

Pesadelo em Guantánamo

Tortura, humilhação, terror e desespero é o que descreve Mohamedou Ould Slahi em seu livro Diário de Guantánamo (Companhia das Letras, 464 págs.), primeiro relato feito de dentro da prisão militar norte-americana em Cuba. Preso desde 2002 sem que os Estados Unidos o tenham sequer acusado formalmente, Slahi começou a escrever um diário depois de três anos encarcerado. Após ler sobre os horrores que o mauritano passou, sua advogada, Hina Shamsi, o incentivou a continuar a escrever. O manuscrito foi inicialmente classificado como documento secreto, mas depois de sete anos de batalha legal foi lançado com 2.600 tarjas pretas nos trechos censurados pelo governo norteamericano. Slahi descreve os tipos de tortura pelos quais passou: isolamento durante anos, roupas “recheadas” de gelo, ficar em pé ou em posições dolorosas durante horas, espancamentos, entre outras formas de violência. R$ 45 e R$ 30 (e-book). REVISTA DO BRASIL

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SELMA VITAL

Da minha janela

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unca escondi de ninguém minha absoluta fascinação por janelas. Creio que desde sempre, porque não posso me lembrar quando exatamente tudo começou. Amo olhar através de janelas. De dentro para fora, de fora para dentro; janelas da casa, do apartamento, do carro, do ônibus, do trem, do avião. Sou janeleira confessa, irresoluta. Por isso me parece uma feliz coincidência que tenha passado meu primeiro mês como nova residente da Dinamarca em um apartamento de amplas janelas. Não surpreende, portanto, que neste mês e pouco de tantas mudanças, o cantinho do qual me apossei para trabalhar, com o afinco que minha recente e agora inseparável dor nas costas me permite, seja, claro, ao lado da janela. Como se pode imaginar, trabalhar ao lado da janela é um ponto extremamente positivo para uma janeleira contumaz como a que aqui escreve. Por outro lado, é fator altamente improdutivo se contarmos o poder de distração de uma simples janela. É bom lembrar ainda que neste princípio de verão a Dinamarca tem nada menos que 18 horas de luz do dia o que, em tese, é um facilitador para nós, janeleiros descarados que observamos incógnitas a

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rotina alheia, como o mais terrível voyeur. Mas sinto decepcioná-los. O que vejo por meio da bela janela escandinava, presentemente necessitada de limpeza, não tem nada de ilícito ou sensual. Uma amostra? Vejo ciclistas de todos os tipos e tamanhos, rápidos ou lentos, carregando crianças, cestinhas de palha ou sonhos. Grupos (vários ao dia) de estudantes em excursões pela cidade. Nunca havia visto tantos! Meninos e meninas curiosos ou entediados, do prezinho à adolescência, quase sempre festivos, em filas indianas semiperfeitas e passos sincronizados. Moças loiras, em madeixas de reflexos cuidadosos de várias tonalidades, inevitavelmente trajando preto (o que pensariam dessa senhora, em suas roupas insolentemente coloridas, cabelos escuros mesclados por desgrenhados e rebeldes grisalhos?). Elas levam longos echarpes emoldurando os jovens pescoços e caminham sem se importar com o vento que sopra incansável. Vejo os enormes carrinhos de bebê (ao estilo Encouraçado Potemkin ou Brian de Palma, na paródia/ homenagem em Os Intocáveis) transitando o dia todo, faça chuva ou sol, empurrados por pais tanto quanto por mães, viva! Vejo a torre majestosa do prédio em frente e todas as outras janelas, a meu ver tão carentes de quem as valorize… Vejo os ônibus amarelos e os mais sóbrios azuis. Vejo esse céu que muda de tom dezenas de vezes ao dia e que se num momento se carrega de nuvens em outro breve instante me convence, até, que a vida é mesmo bela e que há um arco-íris cortando alguma outra parte de céu. E que alguém n’alguma parte do mundo também espia de sua janela com curiosidade e esperança.


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