FOI-SE O TREM Os 260 km de vias da CPTM poderiam ajudar a desafogar SP
SAÚDE NA ROÇA Agroecologia, modelo de segurança alimentar e de negócio
nº 109 agosto/2015 www.redebrasilatual.com.br
Metalúrgico Danilo Leite, demitido da Mercedes, protesta em Brasília contra overdose de ajuste
EMPREGOS EM JOGO Ajuste fiscal já compromete uma das principais conquistas dos últimos 12 anos, e trabalhadores cobram do governo correção de rota
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ÍNDICE
EDITORIAL
6. Na Rede
Notícias que foram destaque no site da Rede Brasil Atual
10. Economia
Produção cai, consumo diminui e desemprego volta a assustar
14. Entrevista
Químicos: rotatividade no setor e política alimentando crise
18. Transporte
CONSTRUCTION DIGITAL
Trem lotado, panes e cartel nas ferrovias da CPTM
24. Saúde
Produção orgânica tenta aumentar espaço no país Trabalhadores protestam nos EUA, onde o BC observa o desemprego antes de elevar juros
30. Comportamento Pai também curte cuidar da casa – e dos filhos
Passou do ponto
34. Mundo
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Conflitos e crises levam quase 60 milhões a procurar refúgio
40. Cidadania
Livro mostra realidade das presidiárias brasileiras
GLAUCO UMBELINO/FLIKCR/CC
Parque Estadual de Ibitipoca
44. Viagem
Ibitipoca, em Minas Gerais: natureza em estado bruto
Seções Cartas 4 Emir Sader
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Destaques do mês
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Marcio Pochmann
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Lalo Leal
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Curta essa dica
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Crônica: Vitor Nuzzi
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m julho, a presidenta do Federal Reserve (FED, o Banco Central dos Estados Unidos), Janet Yellen, declarou que havia, sim, possibilidade de uma elevação dos juros, hoje perto de zero, desde que o mercado de trabalho continuasse melhorando – a taxa de desemprego de junho foi a menor em sete anos. Mas o FED indicava cautela, já que a recuperação da economia norte-americana ainda era lenta. No Brasil, também em julho, o Comitê de Política Monetária (Copom) do BC aumentou a taxa básica de juros pela sétima vez seguida, desta vez para 14,25%. É o maior nível em nove anos. Não se vê nas atas do Copom qualquer menção ao mercado de trabalho, a não ser uma preocupação com reajustes salariais. Terra do livre mercado e da desregulamentação, os Estados Unidos incluem entre seus objetivos, além do controle da inflação, conseguir taxas de juros de longo prazo moderadas e fortalecimento do emprego. A política monetária brasileira restringe-se ao combate, no momento pouco eficaz, da inflação. Os juros, que sobem constantemente a pretexto de inibir a alta de preços, asfixiam a atividade produtiva. A consequência é óbvia: menos vagas. Os juros não são o único motivo de o desemprego no Brasil voltar a assombrar os trabalhadores, depois de uma década de crescimento contínuo do mercado de trabalho, inclusive com carteira assinada, e de recuperação gradual dos salários. O ritmo arrefeceu em 2014, mas os resultados continuaram positivos, até a estagnação atual. No BC, a única preocupação, ou obsessão, é com o “centro da meta” da inflação. Enquanto isso, o país para em uma crise que se torna mais grave com o ambiente político, com muita gente mais preocupada com o fogo na lona do que com alternativas para recuperar a economia. Há mesmo quem veja com alguma satisfação o aumento das taxas de desemprego, porque isso pode “ajudar” a diminuir a inflação. Melhor seria ouvir os liberais do BC norte-americano. Passou da hora de o governo rever suas políticas. Assim como a inflação não pode ser o único item da pauta do BC, o ajuste fiscal tem de vir acompanhado de medidas de proteção social e estímulo ao crescimento. Por ora, o aperto foi tão grande que o próprio governo perdeu arrecadação. O consumo caiu. E o mercado de trabalho vive maus momentos, causando aflição ao trabalhador e tensão no movimento sindical, que em sua maioria apoiou Dilma em 2014. REVISTA DO BRASIL
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CARTAS www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Helder Lima, Hylda Cavalcanti, Rodrigo Gomes e Sarah Fernandes Arte Leandro Siman Iconografia Sônia Oddi Capa Sérgio Lima/RBA Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 (Carla Gallani) Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Tiragem 360 mil exemplares
Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eliana Brasil Campos, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Raimundo Suzart, Raul Heller, Roberto von der Osten, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior
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Ciclovias Bicicleta é saúde, inclusive na política. Haddad (PT) é uma das mais importantes promessas para a carcomida e desinteressante política brasileira. Administrar São Paulo é desafio. É berço das elites mais conservadoras do país; tem uma parcela da classe média beirando o fascismo. Mas o prefeito está ganhando o jogo bruto. Nas fotografias da matéria, São Paulo parece mais alegre, mais humana. Quem em sã consciência pode ser contra as ciclovias? (“Pedaladas da Cidadania”, ed. 108) José Gilbert Arruda Martins Adoro andar por São Paulo de bike, faz um ano que comecei e descobri uma cidade. Cheguei, até sem saber, a ver um show no Anhangabaú, justamente por estar andando sem por quê, apenas por pedalar. Jean Michel Teixeira A Revista do Brasil de julho cita as ciclovias, especialmente a da Paulista, como exemplo de mobilidade, contra “a ditadura do automóvel”. Cabe analisar o assunto com serenidade. As fotos mostram ciclistas de calção, usando a bicicleta para passeio e não como veículo para deslocamento a trabalho. Ou seja, não estavam substituindo o carro como meio de transporte. Não dá para comparar cidades menores, como Copenhague, com megalópoles, como São Paulo. A bicicleta tem sua vez, mas também suas limitações. Roldão Simas Filho, de Brasília
Fordlândia Meu pai foi médico do Serviço Especial de Saúde Pública (Sesp), montado pela Ford para Fordlândia. Morei lá durante a minha infância. Esse serviço especializado em “saúde da família” e “saneamento” depois foi disseminado para todo o baixo Amazonas, em seguida passou para o estado, depois tornou-se a Fundação Sesp para todo o Brasil e parte virou a Sucam (Superintendência de Campanhas de Saúde Pública). Foi um serviço que nos anos 90 foi descentralizado para o os municípios. Em seguida no Programa da Saúde da Família, que está em todo Brasil... O que quero dizer? Que essa experiência nasceu em Fordlândia, com desdobramentos interessantes, agora perdidos na memória institucional. (“Império perdido na Amazônia”, ed. 108) Renato Athias Visitei Fordlândia ano passado e constatei como está abandonada. Senti o espírito histórico latente tentando sair das profundezas esquecidas daquela que foi uma das localidades mais desenvolvidas na década de 30 e 40, isso da América Latina. Meu pai e minha mãe que lá viveram nesse período áureo contavam o que Fordlândia representava para eles e se orgulhavam de terem feito parte da história daquela região. O hospital, a Vila Americana, a Vila Operária, os hidrantes, a caixa d’água são monumentos que ainda perpetuam a memória histórica. Foi motivo de orgulho para os que lá trabalharam naquele período e, ao mesmo tempo, de tristeza, para os remanescentes. Valdenir Pessoa
Renascença Grande pólo de resistência o Rena. Faltou falar da miss Guanabara, Vera Lúcia Couto. Primeira miss negra do Rio de Janeiro. Longa vida ao nosso Quilombo Musical. (“Samba para o trabalhador”, ed.108) Valdete Lima
carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.
EMIR SADER
Círculos viciosos da direita brasileira
Depois dos governos da ditadura e dos governos neoliberais, a direita brasileira está zonza. Não sabe o que fazer, para onde caminhar, o que propor
MÁRCIA MINILLO/RBA
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direita pôde gozar, durante um tempo, da sua capacidade de impor uma estabilidade política baseada na força e um crescimento econômico, mesmo se com aumento das desigualdades e da exclusão social. O modelo brasileiro serviu de referência para outros países da região, tanto como imposição violenta da ordem, quanto como modelo econômico. O primeiro aspecto se reproduziu em outros países, o segundo não. Mas aqui a direita ficou como referência de “ordem” e de “expansão econômica”. Quando a economia deixou de crescer, a legitimidade da ordem ditatorial se enfraqueceu e o consenso da democracia se consolidou. A direita ficou com sua imagem vinculada à repressão. A direita se renovou no Brasil com o figurino neoliberal, tendo não a repressão, mas o mercado como referência central. Conseguiu um sucesso inicial de marketing com Fernando Collor, e depois o êxito do controle da inflação com Fernando Henrique Cardoso. A incapacidade de transformar esse controle em retomada do crescimento econômico e em distribuição de renda levou ao esgotamento e ao fracasso também desse modelo da direita. Mas a consolidação da crise da direita veio realmente com o governo de Lula, que conseguiu superar prolongada recessão que havia herdado, assim como combater ao mesmo tempo as acentuadas desigualdades na sociedade brasileira. Esse sucesso enterrou a direita, como ela existia, e deixou-a órfã de modelos. A partir daquele momento, a direita oscilou entre a retomada do modelo neoliberal de FHC – fracassado aos olhos da massa da população – ou tentar aparecer como continuador do programa do Lula, com adequações. Fracassou nas duas tentativas. Seus elementos de força estão na capacidade de desestabilização dos governos a partir do monopólio privado dos meios de comunicação. Nesse plano, a direita tem mostrado invejável capacidade, seja no chamado “mensalão”, com todos os seus desdobramentos, seja
na campanha mais recente de denúncias a partir da Petrobras. Consegue impor a agenda nacional, deixa o governo sem iniciativa e pôde colar no PT a imagem de partido corrupto, extensível ao governo. Porém, essa capacidade de desestabilização não consegue se transformar em força política alternativa aos governos do PT. A falta de propostas inovadoras leva a direita ao círculo vicioso do neoliberalismo e da ditadura, que não goza de nenhum apoio popular. Assim, apesar de conseguir, conforme pesquisas feitas pela própria mídia privada, rebaixar o nível de apoio do governo Dilma a 7%, não consegue, por mais que manipule, baixar o apoio do Lula a menos do que 33%. É essa crise que levou a direita às atitudes mais incongruentes, entre apoio a formas de golpe, disseminando ódio e baixarias contra o governo, seja apoiando medidas contraditórias com o que defenderam e implementaram no passado, elevando os gastos públicos, seja aliando-se, de forma aventureira, a Eduardo Cunha. Quando baixa a espuma, a direita se vê órfã: nem impeachment, nem qualquer forma de golpe e com perspectivas eleitorais difíceis para 2018: Alckmin contra Lula.
A direita no Brasil não faz questão de mudanças; se contenta em derrubar o governo
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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook
Coração com razão
LUCINEY MARTINS
Lançado há 30 anos, Brasil: Nunca Mais foi um marco na infante democracia brasileira, mal saída de um período de duas décadas de regime autoritário. O livro tratava justamente, com detalhes, das torturas praticadas durante a ditadura. Foi feita de forma praticamente clandestina, com uma rede de colaboradores, tendo à frente o cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns (foto), e o reverendo presbiteriano Jaime Wright. Hoje, tem todo o conteúdo acessível pela internet (http://bnmdigital. mpf.mp.br). A obra é tema do documentário Coratio, dirigido por Ana Castro e Gabriel Mitani. Os autores também tentam refletir sobre o esquecimento de fatos históricos e a permanência da tortura como prática cotidiana. “Há uma geração nascida depois dos anos 80 que teve o privilégio de não ter vivido a ditadura. Essa geração cresceu sem muita informação. Outro ponto é que essa história, o fim da ditadura, ainda não está bem resolvida no país. Acabou sem punição para quem violou direitos humanos, sem que houvesse um grito definitivo contra a tortura, contra os abusos de agentes do Estado”, diz Ana Castro. bit.ly/rba_nuncamais
Tempos difíceis, sim, diz o expresidente Luiz Inácio Lula da Silva, mas o país vai melhorar. Ao mesmo tempo, afirma que a presidenta Dilma Rousseff deve conversar com a população, “encostar a cabeça no ombro do povo”. As declarações foram feitas durante evento da Federação Única dos Petroleiros (FUP). O ex-presidente já promoveu encontros reservados com dirigentes da CUT e da Força Sindical. A apreensão não é apenas com a economia, mas com a política. Para Lula, as pessoas devem se manifestar e ir às ruas cobrar seus governantes, mas isso não pode ser confundido com agressão. bit.ly/rba_democracia Em outra frente, Lula enfrenta até um noticiário que tenta vinculá-lo como lobista de empreiteira, por sua atuação no exterior. Um absurdo, segundo o ex-chanceler Celso Amorim. “Não vou ficar citando nomes, todos os ex-presidentes apoiam. Apoiar empresa brasileira em coisas que são boas para o Brasil – dentro da honestidade, da legitimidade – é 6
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EDUARDO ANIZELLI/FOLHAPRESS
A democracia e a bomba
perfeitamente cabível. Seria surpreendente um presidente não fazer isso”, afirmou Amorim. “Minha sensação é que a mídia brasileira tem posição mais conservadora do que a média da elite brasileira.” bit.ly/rba_amorim Nem todos parecem conviver bem com a democracia. Por volta das 22h de 30 de julho, uma bomba explodiu na entrada do Instituto Lula, em São Paulo (foto). Imagens de câmeras de segurança mostram o artefato sendo arremessado de um carro, que passa lentamente pelo local, seguido de outro veículo. bit.ly/rba_bomba1
DANILO RAMOS/RBA
O rapper Sabotage morreu em janeiro de 2003, meses antes de completar 30 anos. Mas seu trabalho deixou marcas. O documentário Sabotage – O Maestro do Canão (referência à favela onde morava, na zona sul de São Paulo) conta um pouco da trajetória do artista. No começo de julho, o filme foi exibido em plena cracolândia, na região central de São Paulo, como parte do projeto CineB, apoiado pelo Sindicato dos Bancários de São Paulo, e em parceria com o programa De Braços Abertos, da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da capital paulista. “A história do Sabota pode inspirar a galera para o lado positivo”, diz o diretor do filme, Ivan 13P. bit.ly/rba_sabotage
Poderes concentrados As operações bancárias do país ficarão ainda mais concentradas com a aquisição do HSBC pelo Bradesco. Atualmente, os cinco maiores bancos do país (Itaú Unibanco, Bradesco, Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal e Santander) que já respondem por 80% de todos os ativos do sistema financeiro nacional, passam a controlar 83%. Em 1995, os cinco maiores detinham 56% dos ativos. O levantamento foi feito pela subseção do Dieese no Sindicato dos Bancários de São Paulo. Segundo o estudo, esses bancos passam a movimentar sozinhos 86% das operações de crédito e 92% dos depósitos à vista. A concentração bancária é um dos fatores de influência do sistema financeiro internacional nas economias dos países. O movimento sindical bancário vai pressionar o Bradesco e governo para que o negócio não cause a extinção dos 21 mil empregos diretos do HSBC, 12 mil deles no Paraná. bit.ly/rba_hsbc_bradesco
Operário em construção
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TVUNESP/REPRODUÇÃO
Chaga que não passa
Há executivos de televisão que afirmam a inexistência do racismo no Brasil, mas no dia a dia é outra a realidade. No campus de Bauru da Universidade Estadual Paulista, em um banheiro, foram encontradas pichações contra mulheres negras, coletivos de jovens e o professor de Jornalismo Juarez Xavier. Alunos, em repúdio, penduraram cartazes contra o racismo. “Trata-se de um ato contra o Estado Democrático de Direito, a população afrodescendente e a política de inclusão adotada pela Unesp.” bit.ly/rba_racismo
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Olhos abertos
Trabalhador, escritor, pensador, militante, professor, Vito Giannotti, filho de italianos, chegou a São Paulo em 1964. Partiu em 24 de julho, no Rio de Janeiro, aos 72 anos. Deixou um legado de resistência, de construção da memória operária e de desenvolvimento da imprensa popular, materializado no Núcleo Piratininga de Comunicação. Foram duas dezenas de livros e uma produção incessante, alicerçada na troca de conhecimento e no debate. bit.ly/rba_vito
País dos alimentos Nos próximos dez anos, o Brasil tem possibilidades concretas de ser o principal exportador mundial de alimentos, segundo o representante no Brasil da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), Alan Bojanic. Em relatório sobre o período 2015-2014, lançado em conjunto com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), um dos destaques é a estimativa de crescimento (1,5% ao ano) para as áreas destinadas aos principais produtos agrícolas brasileiros. Mas é uma produção concentrada: a soja deve continuar predominando, com quase metade da área de cultivo. A previsão é de que a cana cresça 37% no período e o algodão, 35%. bit.ly/rba_fao REVISTA DO BRASIL
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Novos passos da nova TV. Primeira concessão de canal aberto mantida por entidades de trabalhadores amplia parcerias e traz programação inedita e exclusiva
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TVT, mantida pelos sindicatos dos Metalúrgicos do ABC e dos Bancários de São Paulo, completa cinco anos no ar neste 23 de agosto com a ampliação de sua grade de conteúdo próprio. Desde a primeira semana do mês, o telejornal diário Seu Jornal passou a ser exibido em novo horário, às 19h15, com 45 minutos de duração. A expectativa da direção é, nos próximos meses, apresentar uma edição também aos sábados. Com a expansão do Seu Jornal em 15 minutos e a estreia de produções, a TVT terá média diária de 90 minutos de produção exclusiva de segunda a sexta-feira. A emissora que pode ser vista no canal 8.1 da TV aberta digital, que uma vez sintonizado leva direto ao seu endereço digital, ampliou as parcerias com outros veículos públicos, educativos e comunitários para produção e exibição de conteúdo. Fazem 8
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parte dessa rede colaborativa, além da TV Brasil, Rede Minas, TV Escola, TVE Bahia, TV PUC, Conselho Nacional do Sesi, TV Unesp/ÓperaMundieCanalSaúde-Fiocruz, o que viabilizou diversos novos projetos para incrementar a grade com mais prestação de serviço, cultura, memória e informação do Brasil e do Mundo com viés diferenciado das redes de televisão comerciais. Às terças-feiras, às 20h, o canal estreou uma série de especiais conduzidos em parceria com a TV PUC, que resgatam produções comunitárias e populares realizadas entre os anos 1980 e 1990. Vídeo Popular – 30 Anos Depois terá 26 episódios, sempre às terças, com meia hora de duração, trazendo um registro histórico de três décadas de incursões de movimentos e entidades da sociedade na linguagem do vídeo. Atores, diretores, roteiristas e personagens relembram momentos marcantes das produções da Associação Brasileira de Vídeo Popular
(ABVP), com apresentação do documentarista Joel Zito Araújo. A música, a dança, a literatura e as várias formas de arte conduzidas por coletivos e comunidades das periferias da Grande São Paulo têm agora espaço para um sarau de diversidades na TV. O programa Art é Arte dá voz aos novos atores sociais que, com energia, enfrentam as adversidades da vida. Em locais onde predominavam a ausência do Estado, o crime organizado e o narcotráfico, florescem saraus, rodas de samba, batalhas de rimas, rap, grafites, danças. O processo de afirmação da identidade como caminho da cidadania. Será exibido cada semana de um lugar diferente, todas as quartas-feiras, às 22h. Às 20h das quartas-feiras, depois do Seu Jornal, continua o programa Bom pra Todos. Às quintas-feiras as, experiências das aulas públicas organizadas pela TV Unesp e portal Ópera Mundi estão agora na TVT. As
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Como sintonizar Canal 8.1 HD DIGITAL, com sinal aberto e gratuito, em toda a Grande São Paulo n
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Nos canais da NET Canal 12 da NET, na região do ABCD (24h)
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Canal 13 da NET, em Mogi das Cruzes (24h) n
Três décadas de registros e momentos marcantes em 26 episódios
Canal 2 da NET, na cidade de São Paulo (19h às 20h30, segunda a sexta)
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Canal 26 da NET, nas cidades de Barueri, Santana do Parnaíba, Osasco, Vargem Grande Paulista, Taboão da Serra, Carapicuíba, Cotia, Embu, Itapecerica da Serra, Itapevi e Jandira (19h às 20h30, segunda a sexta)
Canal 9 da NET, Brasília (19h às 20h30 de segunda a sexta-feira)
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Pela internet: tvt.org.br e nas redes facebook.com/redetvt e twitter.com/redetvt
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aulas são gravadas em campi universitários discutindo temas da atualidade no Brasil e no no mundo. O programa Melhor e Mais Justo, de debates e busca de soluções para problemas contemporâneos, será exibido agora às quintas, às 22h, depois do telejornal Repórter Brasil, da TV Brasil. Nas sextas-feiras, às 20h, o programa Panorama seleciona reportagens especiais que foram ao ar ao longo da semana, aprofundando notícias a partir de um olhar diverso daquele com que foi tratada pela mídia tradicional. A leitura crítica da imprensa comercial será também assunto de um novo programa, com estreia em 17 de agosto. Ainda sem título, o programa comandado pelos jornalistas Marco Aurélio Cordeiro de Mello, Rodrigo Vianna e Altamiro Borges irá ao ar às segundas-feiras, às 20h, lavando aos expectadores uma análise da abordagem dos temas nacionais pelos jornais, emissoras, revistas e noticiário da internet na semana que passou.
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A leitura dos jornais por Rodrigo Vianna e Altamiro Borges; todas as segundas-feiras
Art é Arte, às quartas: novos atores sociais REVISTA DO BRASIL
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Para espantar o fantasma Desemprego volta a assustar a população, depois de dez anos de melhorias no mercado de trabalho. O desafio é retomar o investimento para crescer
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uas notícias, uma boa e outra má, alteraram a rotina do operador de máquinas especiais José Djalma de Souza. Seu filho mais velho, Pablo Lênin, de 17 anos, passou pela seleção do Senai e vai começar a trabalhar na Mercedes-Benz, em São Bernardo do Campo, no ABC paulista. “São testes difíceis. Ele sempre estudou em escola pública e conseguiu. Para mim, foi uma bênção. Sempre quis ver meu filho trabalhando numa grande empresa. Dá para fazer uma faculdade mais na frente”, comemora Djalma. Ao mesmo tempo, ele recentemente passou por um drama que voltou a assombrar a rotina dos trabalhadores brasileiros. Prestes a completar 12 anos de fábrica, foi demitido. Pela mesma Mercedes, por telegrama. Djalma chegou a passar seis meses afastado, por meio do sistema conhecido como lay-off, de suspensão de contratos de trabalho. Aos 41 anos, casado com Vanessa, que trabalhava como manicure, e com um filho (Caio) nascido em 11 de abril, Djalma mora de aluguel perto do Jardim Zoológico, em São Paulo, na divisa com o ABC. Tem recebido ajuda da família. Mas se preocupa. “Você se sente totalmente sem nada, sem o pé no chão. Minha mulher já perguntou como é que a gente vai fazer. O convênio acabou, estou 10
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buscando outro. E agora, com um moleque de três meses?” Ele está no mercado de trabalho desde os 14 anos. Foram cinco em uma empresa de material de construção. Passou por mais três empresas metalúrgicas até chegar à Mercedes – onde também começou pelo Senai. Para o metalúrgico, a empresa poderia ter mantido os trabalhadores – dispensou 250 – , mesmo em tempos de crise, considerando o faturamento que teve nos últimos anos e o esforço dos operários. “A minha esperança é voltar e tentar se aposentar na Mercedes.” Djalma torce pelo sucesso do Programa de Proteção ao Emprego (PPE), anunciado em julho pelo governo, por meio da Medida Provisória (MP) 680, após anos de negociações com sindicalistas, embora sem consenso entre as centrais. “É uma boa novidade para as relações de trabalho no Brasil”, diz o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC (entidade que apresentou originalmente a proposta), Rafael Marques. “As negociações podem melhorar a proposta. É um suporte importante em um momento em que você tem (como alternativas) o lay-off ou a demissão. O Brasil não dispõe de ferramentas boas para preservar o emprego”, acrescenta o dirigente, vendo no PPE um instrumento mais racional. “Não pressiona tanto o caixa do governo e preserva posto de trabalho.
MÁRCIA MINILLO/RBA
Por Vitor Nuzzi
É mais racional do que pagar uma pessoa desempregada. Pode ser um paliativo, mas é uma boa nova. Pode virar um programa perene, e melhorar.” O PPE possibilita, por meio de acordo coletivo negociado com o sindicato da categoria e aprovado em assembleia, redução de jornada e salários em até 30%. A diminuição do rendimento seria parcialmente compensada com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). Rafael acredita que o programa poderá garantir a manutenção de pelo menos 3 mil postos de trabalho na região, fustigada pela crise na indústria.
Retração
O caso do setor automobilístico espelha o momento preocupante. Segundo a Anfavea, a associação das montadoras, em 12 meses,
BOAS E MÁS NOTÍCIAS O filho mais velho de Djalma conseguiu vaga na Mercedes-Benz, quase ao mesmo tempo em que ele foi demitido na mesma fábrica. Preocupação cresce com filho recém-nascido
até junho, foram eliminados 14.500 postos de trabalho, uma queda de quase 10%, sendo 10.400 em autoveículos (-8%) e 4.100 em máquinas agrícolas (-20%). Várias empresas, não apenas no ABC, recorreram a medidas como férias coletivas, lay-off e programas de demissão voluntária. No caso da Mercedes, no início de julho chegou a ser negociada uma proposta que incluía redução da jornada em 20% por um ano e de 10% do salário, com estabilidade e retorno de parte dos demitidos, que chegaram a montar um acampamento diante da fábrica. O acordo foi rejeitado em votação. Mas a retração não se limita a essa área da economia. O emprego, que vinha crescendo de forma contínua há mais de dez anos, deu sinais de estagnação em 2014. A situação não foi pior porque havia pouca pressão no mercado de trabalho – a pro-
cura por emprego era pequena, o que ajudava a manter baixas as taxas de desemprego. Uma situação que refletia em parte a melhoria na renda, o que retardava a entrada de mais pessoas na população economicamente ativa. Este ano, mais gente saiu à procura de vagas, em um mercado que vem oferecendo poucas oportunidades. O mercado de trabalho mostrava bom desempenho até então. A taxa média de desemprego anual, medida pelo IBGE em seis regiões metropolitanas, caiu de 12,4%, em 2003, para 4,8% no ano passado, no menor nível histórico da pesquisa. Também o setor formal mostrou evolução, contrariando uma crença formada nos anos 1990 de que o emprego com carteira estava condenado à extinção. Em junho deste ano, havia 40,9 milhões de trabalhadores formais no país, segundo o Cadastro Geral de Empregados
e Desempregados (Caged), do Ministério do Trabalho e Emprego. Em junho de 2002, eram 22,6 milhões. Só que a crise chegou ao mercado. O próprio Caged mostra perda de 602 mil vagas em 12 meses, até junho – são menos 345 mil só neste ano. Segundo outra pesquisa do IBGE, a Pnad Contínua, com amplitude geográfica nacional, o desemprego subiu para 8,1% no trimestre março-maio, ante 7% em igual período de 2004. Nesse intervalo, foram abertos 297 mil postos de trabalho no país, uma variação de apenas 0,3%, enquanto quase 1,6 milhão de pessoas saíram à procura de emprego. O resultado foi um acréscimo de 1,269 milhão no total de desempregados, para 8,157 milhões – crescimento de 18,4%. O emprego cai tanto entre os com carteira no setor privado como entre os sem REVISTA DO BRASIL
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ECONOMIA
carteira, aumentando entre os trabalhadores por conta própria. O cenário é de “mais pessoas procurando trabalho, uma ocupação que não cresce, a carteira de trabalho caindo”, na definição resumida do coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, Cimar Azeredo.
Dificuldades
WILSON DIAS/AGÊNCIA BRASIL
O cenário é difícil, avalia o diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio. “A economia brasileira tem condições de superar essas dificuldades, e acho que está muito mais preparada do que esteve no passado. Mas
TOMBINI E LEVY Juros continuam crescendo e sufocando a economia. Fazenda era contra o PPE
ADONIS GUERRA/SMABC
Rafael Marques
RETOMADA “Precisamos pensar no país de forma responsável”, diz Rafael
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há muitas dificuldades”, afirma. “A adversidade econômica não é pequena, mas é gravemente afetada pela crise política, que traz graves restrições à margem de manobra do governo.” Para ele, dado o nível de restrição na atividade econômica, 2015 e 2016 “serão anos de dificuldade”. Clemente vê a necessidade de um esforço, por parte do governo, para retomar a capacidade de investimento do Estado. Essa dificuldade de manter o nível de investimento, entre outros fatores, tem repercussão em toda a cadeia produtiva. Isso ocorre, por exemplo, no setor industrial, e faz tempo. “Estamos há 20 anos ou mais desmobilizando a capacidade produtiva na indústria.” A tarefa é complicada e leva tempo, diz o economista, que usa a imagem de uma ladeira para ilustrar o tamanho do desafio: para incrementar o crescimento, é para cima. “Para desmobilizar, é um precipício.” Para o professor Claudio Dedecca, do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), o cenário é ruim, também, do ponto de vista social. “A renda vai sofrer mais do que o emprego, a desigualdade vai aumentar, a pobreza vai recrudescer”, diz. Ele se afirma otimista no sentido de acreditar que a crise não terá percurso tão longo, e pessimista ao avaliar que, daqui até 2018, dificilmente o crescimento atingirá 2%, na média. O governo perdeu tempo, analisa Dedecca, porque os sinais de redução da atividade não são recentes. “O governo se acomodou mesmo quando o crescimento perdia fôlego. A economia brasileira parou na Copa e não retomou desde então. As famílias vêm tendo uma atitude cautelosa há algum tempo.” As medidas de desoneração de alguns setores, implementadas no mandato anterior, expressam essa acomodação, diz o economista. “Qualquer analista do complexo automobilístico sabia que aquele aumento da produção ia se interromper a qualquer momento.” Para ele, teria sido importante aproveitar o momento para discutir estratégias e planejamento para o setor, talvez desenvolvendo políticas voltadas ao transporte coletivo. A reflexão vale para a macroeconomia. “Não fizemos nenhum esforço mais organizado, mais estruturado, para pensar em políticas de médio e longo prazo. Vo-
cê fica prisioneiro das medidas de curto prazo, e de modo atabalhoado”, observa Dedecca. Agora, o governo enfrenta o desafio de não deixar crescer um processo de perda de legitimidade, em meio a uma crise social. E terá de percorrer um “estreito caminho”, entre as providências do ajuste fiscal e outras para reduzir o impacto social de tais medidas.
Recuperação
Rafael Marques, do Sindicato dos Metalúrgicos, acredita em uma recuperação “mais palpável” a partir do ano que vem. “Vai ter um sentimento de melhora, porque as pessoas tendem a se ambientar com esse novo cenário. É possível que no segundo semestre (deste ano) a gente tenha algumas percepções de retomada, mas não muito claramente.” Ele cita programas como o Plano Safra (agricultura familiar), o plano de exportações recentemente apresentado e a iminência do Minha Casa, Minha Vida 3, entre outros. “A reação é lenta. Poderia ser mais rápida se a gente tivesse um ambiente político mais estável. A questão política deixa as pessoas pessimistas, desconfiadas.” Isso se reflete no mercado de trabalho. “Combater a corrupção, sim. Mas não dá para combater corrupção destruindo as empresas de infraestrutura nacional”, afirma o dirigente, também criticando o papel da oposição, particularmente o PSDB, que não mostra respeito ao resultado da eleição do ano passado. “Estão trabalhando no quanto pior, melhor. Precisamos pensar o país, e na sociedade, para valer, de maneira séria.” E o governo também precisa dar sinais, combinar política econômica e compromissos sociais, acrescenta Rafael. “O Lula fez isso. A Dilma tem de fazer”, afirma. Isso aconteceu, acredita, com o PPE, que sofria oposição do ministro Joaquim Levy. “A Fazenda foi derrotada. Temos de fazer a política econômica no seu conjunto.” Isso também passa pela política monetária: “Na minha avaliação, a taxa de juros já chegou no teto”. Mas para o outro mercado, o financeiro, espera-se ainda mais um pouco de aperto. Algumas análises, sutilmente, apontam um lado “positivo” do desemprego, no sentido de conter pressões salariais e, conse-
ROBERTO PARIZOTTI/RBA
DIAS MELHORES Danilo: desemprego “Mexe com a cabeça”. Mas ele espera recuperar vaga
quentemente, a inflação. O próprio Banco Central, na ata da reunião do Comitê de Política Monetária (Copom) realizada no início de junho, observava certa “distensão” do mercado de trabalho, mas ainda via necessidade de observar o quadro: “Não obstante a concessão de reajustes para o salário mínimo não tão expressivos, bem como a ocorrência de variações reais de salários mais condizentes com as estimativas de ga-
nhos de produtividade do trabalho, o Comitê avalia que a dinâmica salarial ainda permanece originando pressões inflacionárias de custos”. Os dados mostram diminuição da renda. Segundo o IBGE, a massa salarial nas seis regiões metropolitanas estudadas caiu 10% desde novembro. Outro levantamento, da Fundação Seade e do Dieese, aponta perda de R$ 1,9 bilhão em rendimentos nos
Avanços no mercado de trabalho... Ano* 2003 2014
Número de ocupados 18,520 milhões 23,087 milhões
* Médias anuais
Número de desempregados 2,608 milhões 1,176 milhão
** Participação no total de ocupados
Taxa de desemprego 12,4% 4,8%
Empregos com carteira (setor privado)** 39,7% 50,8%
Fonte: Pesquisa Mensal de Emprego (IBGE)
…e fatores de preocupação Situação do emprego formal Junho 2002
Junho 2015
22,633 milhões
40,860 milhões
de vagas com carteira
de vagas com carteira*
Apesar de contar com um estoque de quase 41 milhões de empregos formais em junho deste ano, o mês teve um desempenho negativo, com fechamento de 111.199 vagas. No semestre, a baixa foi de 345.417 vagas. O período não tem desempenho tão negativo (contratações versus demissões) desde 1992.
Desemprego Trimestre março/maio 2014 X Trimestre março/maio 2015 =
mais 1,269 milhão de desempregados Fontes: Caged/MTE e Pnad Contínua/IBGE
últimos 12 meses na Grande São Paulo. “É algo muito ruim em termos de perspectiva”, diz o coordenador de análise do Seade, Alexandre Loloian. No caso do Caged, do Ministério do Trabalho, a renda média caiu 1,63% no primeiro semestre. Mas acumula aumento real de 43,57% desde 2003. O metalúrgico Danilo Gritti Leite, 29 anos, aguarda dias melhores. Praticamente metade de sua vida foi dentro da Mercedes-Benz de São Bernardo, da qual foi demitido após 14 anos (e com 13 meses passados em lay-off) – entrou aos 15, pelo Senai. Soube da dispensa por um boletim da empresa e pela TV. Ele aproveitou o período de inatividade para fazer cursos. “Se não, a cabeça fica a milhão.” E acompanhou uma caravana que no dia 28 de julho foi a Brasília protestar, em frente ao Ministério da Fazenda, contra a política de juros. Naquele dia, a taxa básica foi elevada de 13,75% para 14,25% ao ano, e, sua sétima alta seguida. Da mesma forma que o colega Djalma, ele teve boas e más notícias. Em março, a mulher de Danilo, gerente de projetos na área de publicidade, havia sido demitida. Com rendimentos equivalentes, o casal – que mora de aluguel em São Bernardo, item responsável por um terço da renda – se programou, então, para se manter durante algum tempo com apenas um salário. Só que ela conseguiu nova ocupação dois meses depois, justamente quando ele perdeu o emprego. Uma vaga que Danilo tem esperança de retomar. REVISTA DO BRASIL
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Matéria-prima do crescimento Presidente do Sindicato dos Químicos do ABC, Raimundo Suzart, critica setor por abusar da rotatividade: “Ganhou muito nos últimos dez anos e tem gordura para não tratar resfriado como pneumonia”. Para ele, a política está travando a economia Por Vitor Nuzzi
U
m sinal amarelo acendeu na base do Sindicato dos Químicos do ABC, entidade que representa 40 mil trabalhadores de diversos setores, inclusive o estratégico polo petroquímico. No primeiro semestre, entre contratações e demissões, a base perdeu 1.400 vagas, especialmente no segmento plástico, que concentra metade da categoria. “É um número considerável”, comenta o presidente da entidade, Raimundo Suzart. Baiano de Andaraí, na Chapada Diamantina, ele está na base da categoria química do ABC há 30 anos – tem 47. Eleita em novembro passado com 98% dos votos, a nova diretoria tomou posse em abril, e em julho último realizou seu 12º congresso – que, entre outros temas, discutiu o cenário político e a campanha salarial que se aproxima, em um ambiente turbulento. Raimundo admite a crise. Mesmo assim, acredita que há espaço para fechar acordos com, no mínimo, a reposição da inflação. Até porque muitas empresas adotam uma tática que implica em uma redução salarial disfarçada: contratam trabalhadores com remuneração anterior à da data-base e, portanto, sem aumento. Para ele, também há motivos para criticar o governo, mas ao mesmo tempo não tem dúvida de que se trata de um projeto a ser defendido. “Com todas as dificuldades, não podemos negar os avanços que a gente teve.” As investigações da operação Lava Jato, que para o sindicalista passaram a ter viés político, não afetaram a operação da Braskem, empresa cuja receita líquida atingiu R$ 46 bilhões no ano passado, com lucro de R$ 726 milhões. No caso da gigante petroquímica, a principal preocupação, diz Raimundo, concentra-se nas negociações com a Petrobras para fornecimento de nafta – o acordo atual vence em agosto. Sem a matéria-prima, tudo pode parar no polo. Vocês acabaram de sair de um congresso. O que preocupa mais neste momento? 14
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Tomamos a decisão de fazer do nosso 12º congresso um evento político. Fizemos análise macroeconômica, política, trouxemos várias pessoas de outros países e de outros setores. Em alguns momentos a crise é mais política do que econômica. A gente percebe que alguns setores da nossa categoria poderiam estar avançando mais, e aí a gente pode citar a Lava Jato, que atinge diretamente a nossa maior empresa, que é a Braskem, e a Petrobras, que é a sócia e vende a matéria-prima para a Braskem. Temos um impasse hoje em torno da nafta que nos afeta. Não podemos negar que a Lava Jato deixou de ser criminal e virou processo político, e aí gente vê que o senador José Serra (PSDB-SP) foi citado e botaram uma tarja preta em cima do nome dele. Entendemos que economicamente existe um problema que é mundial, mas que no Brasil é agravado pela crise política que a gente tem hoje com o Congresso, o presidente da Câmara denunciado. Há tempo é discutida a questão da nafta. Como está essa negociação? Na questão da nafta, a Lava Jato não teve impacto. Tem um impacto na Braskem, o presidente do conselho foi detido (Marcelo Odebrecht – a Odebrecht é controladora da Braskem). Uma negociação sobre preço se arrasta. São feitos acordos semestrais e a todo momento tem um impasse, se será renovado. Entra toda aquela tensão se vai ter nafta para as unidades continuarem produzindo: a de Capuava, aqui no ABC, a de Triunfo, no Rio Grande do Sul, e a de Camaçari, na Bahia. Quando apareceu a crise e talvez fosse faltar nafta para a Braskem, foi uma grande tensão, porque o polo que ficaria parado é o do ABC. Até o momento não tem renovação do contrato. Vence no final de agosto. O que sabemos é que tem um processo avançado de negociação, Petrobras, Braskem, e dessa negociação participa um representante de cada estado onde há polo petroquímico, mais ministérios de Minas e Energia e de Desenvolvimento, para tentar construir o acordo de renovação de fornecimento da nafta da Petrobras para a Braskem.
DINO SANTOS/AGÊNCIA ÀGAMA
ENTREVISTA
A Lava Jato deixou de ser criminal e virou processo político. O Serra é citado e botam uma tarja preta em cima do nome dele. Há um problema econômico mundial, mas que no Brasil é agravado pela crise política
Os sindicatos do setor têm algum tipo de participação nessa discussão?
Até oito meses atrás, a negociação era entre Braskem e Petrobras. O que mudou foi que, com a eleição da Dilma, se montou uma comissão para negociar. Tem um representante do PSDB, do estado de São Paulo, indicado pelo governador Alckmin. Foi solicitado que se indicasse um representante do ABC, que é onde está o polo petroquímico, mas o governo (estadual) não aceitou. Tem um representante do Rio Grande do Sul, que é do PMDB. E tem um representante da Bahia, que é do PT. Podemos dizer que os três grandes partidos do Brasil estão representados na comissão de negociação.
É um setor estratégico para vocês... Não só para nós, para o Brasil. Hoje, podemos dizer do componente do carro que de 30% a 40% são resinas plásticas. Na construção civil, que a cada dia a gente tem mercados novos aparecendo. Até no medicamento você tem resina plástica. O polo petroquímico acaba também fornecendo matéria-prima para o setor farmacêutico. Como os estudiosos colocam, nenhum país será grande se não tiver uma grande indústria química. Para se ter uma ideia, Mauá (município do ABC), que tem quase 400 mil habitantes, tem 66% da arrecadação proveniente das indústrias químicas. Em Santo André, a indústria química responde por 35% do orçamento. É um impacto enorme em qualquer redução que você tenha na produção da indústria química nessas duas cidades. Com as investigações, houve paralisação de investimento em empresas ligadas à Petrobras. Na Braskem, na questão do investimento, de projeto, isso chegou a acontecer? A indústria petroquímica é muito específica. Ela faz uma parada de manutenção a cada cinco a sete anos, e faz todo o investimento. Faz um ano que teve a parada técnica – ela parando, as outras também param, porque consequentemente não terá matéria-prima. Todo investimento, a não ser que seja programado, você faz na parada técnica. O investimento em manutenção, troca de equipamentos, foi feito. Esse investimento, que segundo a gente sabe foi de R$ 200 milhões, talvez não fosse feito, se fosse hoje. Uma parada técnica signifca 5 mil homens trabalhando na Braskem. Mas aconteceu há um ano. São nove empresas que recebem a matéria-prima diretamente da tubulação da Braskem. Você tem o PVC, o polipropileno, que é a base de toda a produção de plástico. O polo é interligado, não tem muro, a divisão é geográfica. Você sabe que terminou uma empresa em determinada rua e começa na outra. Você entra em Mauá e sai em São Mateus (bairro da zona leste de São Paulo) por dentro do polo petroquímico. Neste momento de crise, como se manteve o nível de produção? A gente teve uma pequena redução, você tem uma demanda menor. A arrecadação não caiu muito, até pela alta do dólar – como são commodities, tudo é baseado no dólar. Podemos dizer que não afetou tanto o orçamento dos municípios. Não é um setor que a gente possa dizer que estamos com uma grande dificuldade. Já no conjunto da categoria, de janeiro a junho, houve redução de postos de trabalho. Entre demissões e contratações, temos um déficit de 1.400. É um número considerável. Algum setor particulalmente é mais atingido?
O de plástico (que representa 50% da base), principalmente a parte ligada ao setor automotivo. É um setor em que a rotatividade gira em torno de 30%. Com a crise, além da rotatividade, você tem o fechamento de postos de trabalho. REVISTA DO BRASIL
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A database para o reajuste é 1º de novembro. Daí a empresa demite o trabalhador em janeiro, fevereiro, e admite um novo com salário de outubro. E assim passa a pagar salário do ano anterior, antes do reajuste. Isso é rotatividade com redução de salário
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Cosmético está começando a ter reflexo. Um empresa que não tem um produto direto, trabalha para Avon, Natura, tem 700 trabalhadores e anunciou 80 demissões. E o de plástico a gente está há alguns meses com dificuldade. Com a crise, além da rotatividade, temos fechamento de postos de trabalho. Tivemos 3.400 contratações no nosso setor (no semestre), a rotatividade é muito grande. Você contrata muito, mas demite muito. É uma das grandes discussões que temos com o sindicato patronal. A gente fechou o ano passado em torno de 200, 300 novos postos de trabalho. Não repusemos as perdas que tivemos em 2010, mas fechou o ano positivo. Quem entra ganha menos do que quem sai? Nossa data-base é 1º de novembro. A empresa demite o trabalhador em janeiro, fevereiro, e ao admitir um novo trabalhador contrata com salário de outubro. Então, a empresa demite e simplesmente passa a pagar o salário do ano anterior e não com o reajuste. Esse é um dos grandes problemas que a gente tem. É redução de salário. E não é só no setor de plástico. Também acontece nas grandes indústrias. Todas acabam usando esse artifício. Você tem 1,5%, 2% de aumento real, que é a média da nossa campanha salarial, tem a manutenção dos postos de trabalho, mas não tem o ganho no rendimento. Parece que é uma política muito forte no estado de São Paulo, não pelo fechamento do postos de trabalho, mas para redução de salário. E neste ano, com perspectiva de PIB negativo, inflação perto dos 9%, aumento do desemprego, como se preparar para a campanha? A indústria química, junto com os bancos, foi o setor que mais teve lucratividade nos últimos anos. Outro fator que a gente tem no nosso setor é que as grandes indústrias são multinacionais, com exceção da Braskem e da Oxiteno, do grupo Ultra. Sem falar a indústria farmacêutica, que temos três nacionais, que são de genéricos. Então há grandes remessas de lucros para o exterior. Nossa discussão é a seguinte: aqui a gente tem um resfriado e já é tratado como se estivesse com pneumonia. Ja começam a demitir, discutir redução de salário. E entendemos que a indústria química tem uma gordura que dá para discutir reposição da inflação e outras questões. Passamos dez anos com as indústria tendo uma lucratividade acima do mercado da América do Sul. É um dos setores que mais cresceu. Se a gente pegar o setor cosmético, cresceu em média 10% ao ano nos ultimos dez anos. Não dá para dizer que essa indústria vai quebrar porque teve um ano de crise.
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E o Programa de Proteção ao Emprego, recentemente criado? Você vê como um paliativo, uma alternativa de emergência, ou uma proposta que pode vigorar mais à frente, pode ser aprimorado, fazer parte de acordos?
Na nossa avaliação, é um programa paliativo. Não é algo que a gente vai implementar numa convenção coletiva. Mas é um momento de crise, e eu acho que a gente tem de buscar algumas saídas. Eu disse que estamos com 1.400 postos de trabalho negativos. Se tem alguma opção para garantir que não aumente esse número, tenho de buscar. Vamos discutir, mas aí tem de fazer uma ressalva: nós temos 950 empresas cadastradas no sindicato, e pelo menos 85% são micros e pequenas, e portanto é praticamente impossível elas participarem do PPE. Temos duas empresas que procuraram, vamos fazer o debate. Esse debate começa a ser feito também dentro da CUT, que em outubro terá novo congresso. Alguns congressos coincidiram com o primeiro ano de governo, como em 2003 e agora. O movimento sindical se queixa de diálogo com o governo. Essa relação está um pouco desgastada? Tem duas situações que a gente precisa tratar. Tem um desgaste natural, pela crise econômica, e é natural que alguns sindicatos sofram pressão da base quando tem risco de desemprego, redução de salário, e que essa pressão reflita na CUT, para que ela cobre também o governo. Precisa ter um diálogo maior, principalmente a nossa central, que foi quem deliberou apoio irrestrito à Dilma (na campanha). Era um compromisso de reabrir o diálogo. Infelizmente, vieram aquelas medidas no final do ano (as medidas provisórias 664e665,quealteraramoacessoabenefíciossociais). Precisamos reclamar, mas vamos defender intransigentemente a presidenta, com todas as críticas e dificuldades. O movimento sindical não pode negar os avanços que a gente teve, a correção do salário mínimo, Minha Casa, Minha Vida, o projeto da indústria química, da Braskem, que nasceu de um projeto do governo Lula. Temos críticas às ações e algumas condições que estão colocadas, e a pessoas que foram para o governo. Ganhamos, mas não levamos o governo. Ajudamos a eleger, mas o mercado financeiro foi lá e emplacou(pessoasemalgunscargoschave,comooministro Joaquim Levy). Temos críticas, mas não temos dúvida da defesa do governo. Com certeza, vamos ratificar a defesa do governo (no congresso da CUT) e da democracia. E vamos defender também a democratização da mídia, porque 50%, 60% dessa crise é feita de mentira e reportagem montada. Projetos que o governo desenvolve a mídia simplesmente esconde.
DINO SANTOS
Mauá tem 400 mil habitantes e 66% da arrecadação vem das indústrias químicas. Em Santo André, é 35% do orçamento. Qualquer redução na produção tem impacto nessas cidades
O PPE também será um dos temas. É uma visão minha, presidente do Sindicato dos Químicos: é de autonomia de cada sindicato. É mais uma ferramenta que você pode utilizar para defender os postos de trabalho na sua base, como banco de horas é uma saída, lay-off, licença remunerada, férias coletivas. Nós, do movimento sindical, temos de avaliar com muita maturidade se é o momento correto de aplicar ou não. O PPE também é uma ferramenta no local de trabalho. É a discussão que a gente sempre teve, de aumentar a organização nos locais de trabalho. E o outro Congresso, o Nacional? Como agir diante de uma ofensiva conservadora, com diminuição da bancada sindical? Nesta mesma sala, estávamos acompanhando a apuração do segundo turno e já apreensivos. Reduzimos deputados, e abre aspas, tem alguns que se dizem representantes dos trabalhadores, porque montam até o Solidariedade (SD), mas na nomenclatura é um dirigente sindical e na teoria deveria representar os trabalhadores. Ninguém imaginava o cenário de hoje. O projeto de terceirização, redução da maioridade penal, aprovação do financiamento privado para as campanhas eleitorias, um presidente da Câmara que dizem que reelegeu 60 deputados. É talvez o pior cenário que a gente já teve. Em São Paulo, na Assembleia, foi uma derrota terrível. O Alckmin domina de uma forma que é como se não tivesse deputado estadual. E ao nível nacional, outra derrota. A cada dia que passa corremos o risco de perder direitos. Para se ter uma ideia, quase ninguém está falando, mas teve um deputado que apresentou uma proposta de revogar a NR 12. (Raimundo se refere a um projeto, o PDL 1.408, 13, de Sílvio Costa, do PSC-PE, propondoextinguiranormaregulamentadoraquetratadasegurançanotrabalhonosetordemáquinaseequipamentos,noqual
foramregistrados172milacidentese358mortesde2011a2013). É esse o Congresso que a gente tem, que perdeu a vergonha, o pudor, de apresentar as propostas da direita. Perdemos o projeto da terceirização – a gente tem de lembrar que é a antiga Emenda 3, que o Lula vetou lá atrás, e nós achamos que estivesse resolvido. É muito difícil para nós, quando você vai ao Congresso e tem um Arthur Maia, que é a pessoa que relatou o projeto de terceirização, que é do partido Solidariedade, que na teoria saiu de uma central sindical. Então, para nós, é um Congresso reacionário. É nos preparar para que em 2018 a gente possa rediscutir esse Congresso que está aí. Dá para fazer essa discussão com a base, sobre o Legislativo? Nós temos feito, mas a nossa avaliação é que a gente tem perdido para a mídia, que tem perseguido os nossos representantes, e perdido principalmente para a estrutura. Nós tivemos deputados aqui na região que fizeram campanhas absurdas, do ponto de vista da condição financeira. Cada dia que passa a gente tem a sensação, sobre o financiamento empresarial de campanha, de que vai ficar cada vez mais difícil debater. Nós temos debatido com a base, mas temos de assumir: perdemos esse debate. No ABC, fizemos quatro deputados estaduais e um federal, tínhamos dois. Estamos retomando esse debate com a base. Não adianta eleger o governo, você precisa dar uma base de sustentação. A preocupação é porque os nossos projetos de proteção para os trabalhadores não vêm do Executivo, vêm do Legislativo. O projeto de terceirização simplesmente reflete uma base que nós perdemos. Ou a redução da maioridade penal, que é atingir o filho do trabalhador, o trabalhador que mora na periferia e o negro. Se a gente não conseguir fazer esse debate, vamos correr risco, nossos filhos vão correr risco. REVISTA DO BRASIL
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AVENER PRADO/FOLHAPRESS
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Controlada por tucanos há mais de 20 anos, CPTM não supera velhos problemas das ferrovias que unificou. Com baixo investimento, sistema não atende à necessidade da Grande São Paulo por transporte público ágil e decente Por Cida de Oliveira Fotos Danilo Ramos
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Metrô de São Paulo foi construído na mesma época que o da capital chilena, no final dos anos 1960. A diferença é que o daqui tem 78 quilômetros de trilhos e o de lá 92. Outra diferença é que a região metropolitana de Santiago do Chile, com cerca de 6,6 milhões de habitantes, tem a metade da população da capital paulista. Diariamente, em média, 4,7 milhões de pessoas passam pelas catracas das estações em São Paulo. O sistema exibe sinais de que já não dá conta da demanda e – ao que tudo indica – deve chegar ao final desta segunda década do século 21 com os mesmos 78 quilômetros. Um reforço poderia vir da Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM), com linhas que cortam a cidade em praticamente todas as direções e ligam ao centro da capital e entre si dezenas de cidades da Grande São Paulo. A CPTM, porém, transporta hoje 2,8 milhões de passageiros por dia, embora disponha de 260 quilômetros de trilhos. Obviamente, as condições estruturais das vias, estações e trens da companhia, por ter uma história bem mais antiga que a dos automóveis como meio de mobilidade, não foram pensadas para atingir a mesma velocidade e volume de passageiros do Metrô. Mas algumas medidas de modernização, que andam em marcha lenta demais para o ritmo da metrópole, demonstram que a malha ferroviária tem um potencial muito maior do que o oferecido. Ao completar 23 anos, em maio, a CPTM orgulha-se de ter deixado para trás a imagem frequente de passageiros pendurados ou se equilibrando no alto das composições. Também são coisas do passado usuários sem pagar passagem, atravessando cercas esburacadas. O comércio nos vagões, em que ambulantes ofereciam doces, salgados, bebidas, cigarros, brinquedos, revistas e eletrônicos, disputando no grito a atenção dos passageiros com pedintes e pregadores religiosos, é mais controlado. Mas faltou aos sucessivos governos, desde 1992, dar a merecida prioridade ao trem. À época, o então governador, Luiz Antônio Fleury Filho, assinou a lei que criou a CPTM ao lado do então vice e secretário estadual dos Transportes Metropolitanos, Aloysio Nunes Ferreira Filho, hoje senador (PSDB-SP). “Fleury criou a CPTM para gerir concessões, uma empresa com estrutura ruim e de caráter provisório. E prometia reduzir os intervalos en-
tre trens para três minutos. Mario Covas assumiu em 1995 e seguiu o mesmo caminho”, lembra o estudante de Planejamento Territorial na Universidade Federal do ABC (UFABC) Caio César Ortega, idealizador do Coletivo Metropolitano de Mobilidade Urbana (Commu). Duas décadas depois, o intervalo ainda é um sonho cuja realização nunca é prioridade – e tampouco o orçamento é cumprido. De 2003 a 2014, o total orçado para o setor somou R$ 8,2 bilhões, em valores atualizados, mas R$ 1,1 bilhão deixou de ser investido.
Fora dos trilhos
A atual frota da companhia tem 196 trens. Em setembro passado, o BNDES aprovou financiamento de R$ 982 milhões para a compra de mais 35, a serem fabricados pela CAF Brasil, em Hortolândia, no interior paulista. A empresa é uma das envolvidas em supostas irregularidades praticadas em contratos de obras, serviços de manutenção e fornecimento de equipamentos celebrados pelos governos tucanos. As denúncias abrangem integrantes dos governos Mário Covas, Geraldo Alckmin e José Serra, além de diretores de 18 empresas do setor metroferroviário, conforme revelações feitas por um executivo de uma das suspeitas, a multinacional alemã Siemens, em 2013. Na lista, inclui a francesa Alstom, a canadense Bombardier e a japonesa Mitsui. E a formação de cartel para celebração de contratos até 30% acima do valor, conforme estimativa do Ministério Público (MP) de São Paulo. Os contratos de manutenção preventiva e corretiva com a CPTM são alvo de diversos inquéritos do MP paulista. Um deles, concluído em dezembro, examinou acordos assinados entre 2001 e 2002 para manutenção de composições com Alstom, Adtranz, CAF e Siemens – todas empresas com diversos acordos ainda em vigor com o governo de São Paulo. No inquérito, os promotores pedem ressarcimento ao estado de R$ 418 milhões e a dissolução de dez empresas envolvidas. A matriz espanhola da CAF ficou de fora do pedido de dissolução, mas foi incluída no de ressarcimento. Na época, o promotor Marcelo Milani disse acreditar em irregularidades nos novos contratos, que poderiam ter sido evitadas se o MP tivesse levado adiante as investigações em 1997, quando as autoridades da Suíça já verificavam pagamento de propinas. REVISTA DO BRASIL
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FOTOS DANILO RAMOS/RBA
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SONHO Estação Francisco Morato, da linha 7, prometida para 2011,não fica pronta antes de 2017; a estação provisória é insegura
Ainda em dezembro, a Polícia Federal indiciou 33 executivos. Entre eles, um ex-presidente da CAF, Agenor Marinho Contente Filho, e um ex-presidente da CPTM, Mário Bandeira, cujo nome circula entre trabalhadores da companhia como o “cunhado de Alckmin”, além de quatro diretores. Bandeira foi defendido, elogiado e mantido no cargo pelo suposto cunhado até o final de fevereiro. A lista inclui o ex-diretor de operações e manutenção José Luiz Lavorente, o diretor de engenharia e obras Ademir Venâncio de Araújo (que teria US$ 1,2 milhão em cinco contas na Suíça), o diretor de operações da estatal nas gestões Covas e Alckmin João Roberto Zaniboni (que teria lá US$ 826 mil), e Antonio Kanji Hoshikawa, diretor administrativo na gestão Alckmin (2003-2006). Em abril, foi o Grupo Especial de Delitos Econômicos (Gedec), do MP paulista, que denunciou à Justiça diretores de 12 empresas por participação em esquema de contratos de fornecimento de trens e de manutenção assinados em 2007 e 2008, durante a gestão Serra. Entre eles, o executivo da CAF José Manuel Uribe e o ex-presidente da comissão de licitações da CPTM Reynaldo Rangel Dinamarco. Outras empresas com diretores denunciados foram as habituais Alstom, Bombardier e Tejofran. 20
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A CAF tem outra ligação com a CPTM. O mesmo Agenor Marinho Contente Filho está vinculado à CTrens – Companhia de Manutenção. A empresa não mantém sequer um site para divulgar suas atividades. Porém, segundo o Sindicato dos Empregados em Empresas Ferroviárias da Zona Sorocabana (Sinfer), a CTrens faz manutenção de composições das linhas 8 e 9 em um pátio da estatal na estação Presidente Altino, em Osasco, na Grande São Paulo. “Não se sabe ao certo como é feito o trabalho de manutenção. Eles não permitem a entrada de gente do sindicato lá”, diz o diretor do Sinfer Evângelos Loucas, o Grego. A CPTM não atendeu às solicitações de entrevista.
Sucateamento
Foco dos contratos investigados, a manutenção não é o forte das linhas. A mais sucateada, a 7-Rubi, é conhecida pelos velhos trens da série 1100, fabricados nos Estados Unidos entre 1956 e 1957, além de outros com a lataria remendada e goteiras nos vagões. Em julho de 2000, uma composição com falhas nos freios atingiu outro na estação Perus. Morreram nove pessoas, e 115 ficaram feridas. Vítimas e familiares ainda lutam na Justiça por indenização. Em julho de 2012, dois trens da mesma linha se chocaram na estação Barra Funda, matando cinco pessoas e deixando 47 feridas.
Aparentemente mais moderna, a linha 8-Diamante carece de reformas em sua via. Em dezembro de 2011, dois trabalhadores experientes foram atropelados e mortos por um trem durante uma inspeção regular nos trilhos, perto da estação Barueri. Isso aconteceu menos de uma semana depois de três outros funcionários serem mortos entre as estações Belém e Tatuapé da linha 11-Coral. Dias depois, o governador Alckmin extinguiu a 3ª Delegacia de Polícia de Investigações sobre Infrações contra o Meio Ambiente, o Meio Ambiente do Trabalho e as Relações do Trabalho. Vinculada ao Departamento de Polícia de Proteção à Cidadania (DPPC), o órgão investigava as causas do acidente. Oficialmente, foi extinta para otimização dos recursos humanos e materiais. Comparada ao Metrô, a linha 9-Esmeralda margeia o Rio Pinheiros, cortando bairros nobres da zona sul. Liga Osasco ao bairro do Grajaú, na zona sul. Recebeu investimentos, estações e trens novos entre 1998 e 2000, entre os quais os famosos espanhóis doados pela Renfe mediante contrato de reforma assinado por Covas, no valor de R$ 93,2 milhões, sem licitação. As panes, porém, são frequentes. Em fevereiro de 2011, um trem descarrilou próximo à estação Ceasa.
n EXPRESSO LESTE
Complementar à linha 11 Coral, para somente nas estações Brás, Tatuapé e Guaianases. Seus trens são os mais lotados de toda a rede.
VÁRZEA PAULISTA
RIVALDO GOMES/FOLHAPRESS
JUNDIAÍ 7 RUBI
CAMPO LIMPO PAULISTA BOTUJURU
FRANCISCO MORATO
BALTAZAR FIDÉLIS
RIO GRANDE DA SERRA Na Linha 10-Turquesa da CPTM, a passarela está apoiada em estrutura metálica para não cair
FRANCO DA ROCHA
CAIEIRAS
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SÃO CAETANO DO SUL PREF. WALTER BRAIDO UTINGA PREF. SALADINO PREF. CELSO DANIEL SANTO ANDRÉ CAPUAVA MAUÁ
JURUBATUBA
GUAPITUBA RIBEIRÃO PIRES
AUTÓDROMO PRIMAVERA - INTERLAGOS
RIO GRANDE DA SERRA 10 TURQUESA
GRAJAÚ
9 ESMERALDA
PARANAPIACABA
n LINHA 7 – RUBI
n LINHA 8 – DIAMANTE
n LINHA 9 – ESMERALDA
n LINHA 10 – TURQUESA
n LINHA 11 – CORAL
n LINHA 12 – SAFIRA
Inaugurada em 1867, passou à E. F. Santos a Jundiaí e à Rede Ferroviária Federal. Trens velhos superlotados, problemas de sinalização e fornecimento de energia.
Criada em 1875 como Companhia Sorocabana, foi estatizada em 1919 e em 1971 tornou-se Fepasa. Carece de reformas. A manutenção dos trens piorou com terceirização desses serviços.
Entre 1998 e 2000 ganhou estações e trens novos. Superlotada, a linha mais bonita carece de subestação elétrica e tem gargalos nas integrações Pinheiros e Largo 13.
Com a mesma origem da Linha 7, tem trens antigos, superlotados, panes elétricas e de sinalização. Como nas demais linhas, os trilhos irregulares precisam de reforma.
Criada em 1875 para ligar São Paulo e Rio, tornou-se E.F Central do Brasil em 1889. Superlotada, necessita de novas estações e de sistemas de controle e sinalização.
Construída em 1932 pela Central do Brasil, tem estações antigas, em péssimo estado de conservação, composições superlotadas e problemas elétricos e na sinalização.
Fontes: CPTM, Assembleia Legislativa de SP e sindicatos dos trabalhadores da CPTM REVISTA DO BRASIL
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TRANSPORTE
Partindo do Brás até Rio Grande da Serra, cortando São Caetano, Santo André, Mauá e Ribeirão Pires, municípios da região do ABC, a Linha 10 é outra com vagões velhos e estações malconservadas. A de Rio Grande da Serra tem passarela apoiada em uma estrutura metálica instalada emergencialmente. O telhado da única plataforma em operação tem péssimas condições, assim como os banheiros. A Linha 11-Coral, que vai do Brás à estação Estudantes, de Mogi das Cruzes, atende também o Expresso Leste, que vai da Luz a Itaquera, com menos paradas. Antes de receber trens novos para a Copa, a linha sofreu uma pane em 2008, deixando 60 mil pessoas sem transporte. Os passageiros apedrejaram o trem.
Intervalos crônicos
Autora do livro de crônicas A Viajante do Trem, Andréia Garcia, 42 anos, promove saraus na estação do Brás. Usuária da CPTM há 20 anos, ela publica toda semana em seu blog casos que só acontecem ali.
“Embora estejam mais confortáveis e com linhas novas, os trens ainda são superlotados. É preciso diminuir o intervalo, mas isso depende de mais trens e menos falhas”, diz. “Há várias linhas que não se concretizam como prometido, o que é sério. Isso dá a entender que, por ser investimento público, as verbas escorrem, como não deveriam, causando os atrasos que todos vemos a cada dia.” Reforçando a queixa de seu colega Grego, do Sinfer, o presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas Ferroviárias da Zona Central do Brasil, Leonildo Bittencourt Canabrava, cobra investimentos na manutenção da frota, das vias, da sinalização, da comunicação e do fornecimento de energia. “Os trens saem a cada cinco minutos, mas com a redução de velocidade e paradas entre as estações esse intervalo muda no trajeto. Do jeito que estão as vias, não há hoje como diminuir os intervalos”, afirma Canabrava. Segundo ele, os maquinistas relatam os problemas que afetam as viagens. As
soluções chegam a demorar três, quatro meses. Nas condições atuais, cinco trabalhadores levam uma hora para trocar um dormente, e os trens ficam sem circular por cerca de duas horas, no início da madrugada. Por isso, a curto prazo, é necessário contratar trabalhadores e investir em equipamentos mais modernos. E a médio prazo, tirar do papel o ferroanel, para que os trens de carga, lentos e pesados, deixem de usar as linhas dos trens de passageiros. A companhia lucrou R$ 123,3 milhões em 2014, apesar de cortes. E informa em seus relatórios que moderniza os sistemas de energia, construindo e reformando subestações e cabines seccionadoras em praticamente todas as linhas; que revitaliza a faixa ferroviária em toda a rede, essencial para a conservação das vias; e que implementa os chamados sistemas de sinalização e de comunicação entre trens, centro operacional e estações. Porém, no final de fevereiro, suspendeu, por tempo indeterminado, diversos contratos.
Dinheiro federal Somente em aval para empréstimo até o momento, o governo federal já concedeu R$ 22 bilhões para o estado, junto ao BNDES, Banco do Brasil, Caixa Econômica e instituições multilaterais de fomento, como Banco Mundial, JBIC, BID, entre outros, para obras metroferroviárias. Do PAC Mobilidade Urbana, o estado e as cidades paulistas ganharam R$ 4,5 bilhões a fundo perdido do Orçamento Geral da União. Serão R$ 400 milhões para a Linha 18–Bronze, monotrilho que ligará a cidade de São Paulo a São Bernardo do Campo, passando por Santo André e São Caetano. Também serão repassados, a fundo perdido, R$ 1,3 bilhão do Orçamento da União para três projetos: a construção da Linha 13–Jade, duas novas estações na linha 9 e a reforma de 18 estações. A lista de obras é longa: n Atrasos – Os usuários deverão continuar se apertando por muito mais tempo. As razões dos atrasos vão de obras paralisadas pelo Tribunal de Contas por irregularidades em editais, em licitações e em contratos, a falta de recursos. n Extensão Linha 9 até Varginha – Orçada em R$ 727 milhões, a obra que inclui a estação Mendes foi prometida para 2014. Ainda em fase de desapropriação dos terrenos, tem novo cronograma para 2016, com recursos do PAC. n Linha 13-Jade – Ligação de São Paulo ao aeroporto de Guarulhos, com 12,2 quilômetros de extensão, ao custo de R$ 1,8 bilhão, deverá transportar 130 mil passageiros por ano. Prometida para 2014, não deve sair antes do final de 2017. Alckmin alega que faltam repasses federais, mas o projeto original não previa recursos da União. n Modernização de estações – Em 2007, o então governador José Serra (PSDB) prometeu modernizar 63 estações ao custo de R$ 2,5 bilhões no prazo de quatro anos. O prazo terminou em 2011, mas apenas 15 estações (23% do prometido) foram modernizadas. n Trens regionais – São Paulo a Sorocaba – Anunciado em 2013 e previsto para funcionar em 2017, não tem data para sair do papel. O projeto prevê investimento de R$ 4 bilhões, com a construção de trilhos e estações em Sorocaba e São Roque. n Trem Intercidades – Litoral-Interior – Em dezembro de 2013, sem detalhar o projeto, Alckmin anunciou um trem ligando São Paulo, Santos, Jundiaí, Sorocaba, Campibnas e São José dos Campos. A primeira etapa começaria por Campinas. A ideia está parada no Conselho Gestor das Parcerias Público-Privadas. 22
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Fontes: Assembleia Legislativa de São Paulo e CPTM/Relatório da Administração 2014
Prejuízos generalizados
LINHA 7-RUBI DA CPTM Caminhada pelos trilhos entre Pirituba e Lapa em dia de pane na alimentação elétrica
Segundo o próprio governo paulista, foram suspensos 38 dos 252 contratos da estatal em obediência ao Decreto 61.061, assinado por Alckmin em janeiro sob alegação de equilibrar as despesas. As responsabilidades de falhas são lançadas sobre trabalhadores. Descarrilamentos e acidentes geralmente sobram para o maquinista. São profissionais que estudam na própria CPTM para operar seus trens durante oito horas por dia, sem horário de almoço, fazendo refeições fracionadas a cada troca de composição na estação terminal – pouquíssimos deles almoçam, mas só porque conquistaram esse direito na Justiça. Entram a cada dia em horário e locais diferentes. Têm de estar atentos à sinalização e a qualquer nova trepidação na via e se antecipar a falhas na comunicação, muito frequentes. É quando é apertado o botão “prosseguir em velocidade reduzida” ou o trem é parado. “Toda atenção é pouca. Se avançar a sinalização, o trem sair do trilho ou bater no da frente, na melhor das hipóteses estamos na rua”, afirma Canabrava. Conforme os sindicatos, falta manutenção também nas estações. Das 96, só 30% estão no padrão. Na Brás Cubas, há uma diferença de 30 centímetros entre o piso da plataforma e a porta do trem. A CPTM fala em construção, reforma e adaptação de estações, destacando a de Franco da Rocha, entregue ano passado, e obras nas de Suzano e Ferraz de Vasconcelos. Porém, a estação de Francisco Morato,
que já foi paga, não passa de um sonho da população. Licitada em 2009 e prometida para março de 2011, só deverá ficar pronta no final de 2017. O consórcio vencedor, Consbem/Tiisa/Serveng, cobrou R$ 65,5 milhões para construir esta e a estação de Franco da Rocha, que já entregou. A CPTM pagou R$ 63,5 milhões. A estação provisória, desde 2010, tem plataformas estreitas. Para acessá-las, os usuários são obrigados a atravessar sobre os trilhos. O portão de saída não dá vazão principalmente no horário de pico. Não há acessibilidade para idosos e pessoas com mobilidade reduzida. “A justificativa é que a estação fica numa área de aterramento, instável, que alaga e requer obras da prefeitura, como um piscinão. E que há briga na Justiça com o consórcio que perdeu a licitação”, conta a estudante de Jornalismo Daniele Almeida, 21 anos, moradora de Franco da Rocha. Também integrante do Coletivo Metropolitano de Mobilidade Urbana, ela participou de reunião em junho com o presidente da CPTM, Paulo de Magalhães Bento Gonçalves. Daniele já chegou a ficar dentro de um trem lotado por mais de duas horas, no escuro, com as portas fechadas, entre as estações Pirituba e Piqueri. “Havia mulheres grávidas, pessoas pas-
sando mal. Só depois de uma hora e meia fomos informados de que faltou energia.” O estudante da UFABC Caio Ortega afirma que a CPTM é “controlada por pessoas que não conhecem a empresa e tampouco sabem o que farão para reduzir a humilhação diária à qual o passageiro é submetido nos horários de pico”. Para ele, há dez anos o governo estadual subestimou a demanda dos subúrbios, para então se espelhar excessivamente no Metrô. “Ignorou as longas distâncias, negligenciou regiões que giram em torno de cidades como Jundiaí, Campinas, Santos e São José dos Campos, agravando a pressão sobre as rodovias e enfraquecendo o papel da ferrovia como serviço de metrô urbano e regional.” A solução do problema, avalia o estudante, depende de reforma administrativa que afaste a CPTM do antigo sistema ferroviário e se volte para o cenário atual. E que constitua um plano de desenvolvimento apoiado nos trilhos, envolva as prefeituras e estimule planos diretores abrangentes. “O governo precisa ser menos preguiçoso, ouvir consultores, pesquisadores, a população, e acabar com os contratos e seus aditivos intermináveis que assina com as grandes empreiteiras que financiam sua campanha.”
DANILO RAMOS/RBA
DANILO VERPA/FOLHAPRESS
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A VIAJANTE Usuária há 20 anos, Andréia publicou livro de crônicas com histórias do trem REVISTA DO BRASIL
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Comida ou veneno? Comida!
Produção orgânica é ainda modesta no país. Mas cresce a uma taxa de 35% ao ano e se viabiliza como ferramenta de segurança alimentar e modelo de negócio – solidário, sustentável e lucrativo Por Eduardo Tavares (texto e fotos)
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ilmar Menegat não tem filhos. Mas se vê como “pai” de uma família numerosa de sementes nativas. São mais de 60 diferentes “filhotes” conservados com carinho em potes de vidro reciclados. Milho, feijão, trigo sarraceno, soja preta, chia são alguns dos nomes dessas crioulas – vistas pelo agricultor como sementes da preservação da biodiversidade do planeta. Vilmar, 42 anos, vive com os pais, descendentes de italianos, em um sítio de 50 hectares no interior de Ipê, município localizado na serra gaúcha, autointitulado “Capital Nacional da Agroecologia”. A principal cooperativa da cidade, Eco Nativa, tem 67 produtores orgânicos associados que vendem diretamente em feiras de Porto Alegre e Caxias do Sul – o excedente vai para os supermercados. Ipê e a cidade vizinha Antônio Prado foram pioneiras da produção de alimentos orgânicos no Brasil. Toda se-
mana levam quatro caminhões carregados às feiras de Porto Alegre. Normalmente retornam vazios. Esses produtores desafiam uma realidade assombrosa: o agronegócio brasileiro é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo. A venda de agrotóxicos saltou de US$ 2 bilhões em 2002 para quase US$ 10 bilhões em 2012. O Brasil tem um quinto do mercado mundial, com a marca de 1 milhão de toneladas, equivalente a um consumo médio de 5,2 quilos de veneno agrícola por habitante. Seis empresas dominam o mercado no Brasil: Monsanto, Syngenta, Basf, Bayer CropScience, Dow AgroSciences e DuPont. As seis são também as maiores proprietárias de patentes de sementes transgênicas autorizadas no Brasil. A modificação, em grande parte, torna as plantas de soja, milho e algodão resistentes aos agrotóxicos, exigindo aplicações de doses maiores de veneno para
“PAI” Vilmar tem uma família de sementes nativas
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controlar insetos e doenças. O agricultor é obrigado a comprar o pacote semente/agrotóxico da mesma empresa e não pode ter suas próprias sementes. A legislação brasileira ainda permite a pulverização aérea e a venda de agrotóxicos já proibidos nos Estados Unidos e União Europeia, e oferece incentivos fiscais aos fabricantes. Um exemplo do que o controle do mercado por essas empresas é capaz: a Monsanto, repentinamente, quintuplicou o preço da semente resistente ao agrotóxico glifosato, produzido pela empresa. Agricultores gaúchos que sempre foram favoráveis à difusão da soja transgênica resistente ao glifosato se revoltaram e foram à Justiça contra o pagamento desses royalties. “O fundamento do agronegócio é que essas seis grandes empresas, através de pequenas modificações genéticas inseridas nas plantas, estão obtendo direito de propriedade sobre aspectos fundamentais para a vida de todos. As plantas transformadas, agora com dono, estão substituindo as plantas naturais, cujas sementes deixam de estar disponíveis”, resume o engenheiro agrônomo Leonardo Melgarejo, dirigente da Associação Brasileira de Agroecologia. “Já as sementes transgênicas estão ao alcance de todos que podem pagar por elas. Não é possível aos agricultores familiares, estabelecidos em regiões dominadas pelo agronegócio, optar pelo plantio do milho crioulo, porque os grãos de pólen do milho transgênico alcançam de forma inexorável as lavouras daqueles que insistem em trabalhar com a base genética comum, comprometendo diversidade, autonomia e segurança alimentar dos povos.” O modelo polui o solo, o ar, mananciais de água e lençol freático. Os agricultores padecem de intoxicação aguda, coceiras, dificuldades respiratórias, depressão, convulsões, entre outros males que podem levar à morte. E os consumidores – a maioria da população brasileira – podem ter intoxicação crônica, que demora vários anos para aparecer, resultando em infertilidade, impotência, cólicas, vômitos, diarreias, espasmos, dificuldades respiratórias, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hormonal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer. A Fundação Oswaldo Cruz calcula que ca26
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COOPERATIVA Município gaúcho de Ipê é considerado um dos pioneiros na produção de alimentos orgânicos. Segundo Airton (acima, à esq.), produção inclui leite, carne suína e arroz. Leonardo (acima, à dir.): produtor familiar enfrenta dificuldades
da dólar gasto com agrotóxicos em 2012 corresponda a U$ 1,26 gasto no Sistema Único de Saúde (SUS).
Solução
A alternativa para esse panorama é o fortalecimento da agricultura familiar e do cultivo sustentável. Apesar do aumentos dos investimentos do governo federal nos últimos anos na agricultura familiar, o lobby do agronegócio dificulta avanços mais significativos. A bancada ruralista no Congresso é numerosa (cerca de 170 deputados e 13 senadores), enquanto o universo de 12 milhões de pequenos agricultores conseguiu eleger apenas 12 deputados. O agronegócio produz, principalmente, biocombustível, commodities para exportação e ração para animal, enquanto a agricultura familiar responde por 70% da produção de ali-
mentos. A orgânica ainda é pequena, movimentou R$ 1,5 bilhão em 2013, mas está em expansão de, em média, 35% ao ano desde 2011, favorecida pela regulamentação do setor com a Lei dos Orgânicos. A produção se concentra nos agricultores familiares organizados em associações ou cooperativas. O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) também incentiva do cultivo de orgânicos nos assentamentos. A Cooperativa Agropecuária Nova Santa Rita (Coopan), na Grande Porto Alegre, reúne 30 famílias assentadas numa área de 600 hectares, desde 1995. Segundo o diretor Airton Rubenich, o empreendimento produz por mês 40 mil litros de leite, e por ano 268 toneladas de carne de suíno e 2 mil toneladas de arroz. “Tudo orgânico. A maior parte da produção é adquirida pelas prefeituras de São Paulo e Porto
Alegre para a merenda escolar e pelo programa Fome Zero.” O agricultor Gilmar Bellé, formado em Economia, dirigente da Cooperativa Aecia e vereador no município de Antonio Prado, vai toda quarta-feira de caminhão a Porto Alegre, levando sua produção e a de outros cooperativados para vender na Feira Cultural da Biodiversidade. Ele é pioneiro na produção de orgânicos. Participou da criação da cooperativa em 1989, junto com outros jovens atuantes na Pastoral da Juventude Rural. A iniciativa é sucesso comercial. Produz 500 toneladas de hortifrutigranjeiros e mais 500 toneladas de alimentos processados nas suas agroindústrias. Além das feiras, vendem para redes de supermercados, como Zaffari e Pão de Açúcar. Negociam tudo o que produzem pelo preço que estabelecem. As 23 famílias da cooperativa têm bom padrão de vida. A de José Tondello comprova. Seus filhos Jonas, de 23 anos, estudante de Processos Gerenciais, e Neiva, 20 anos, dizem, enquanto colhem moranguinhos, que nem pensam em sair do campo. A mesma opinião tem Maiara Marcon, de 24 anos, que largou o curso de Educação Física para ajudar seu pai na produção de mudas e desenvolver um projeto de ecoturismo no sítio em Ipê.
Biodinâmicos
Na Fazenda Capão Alto das Criúvas, no município Sentinela do Sul, a 100 quilômetros de Porto Alegre, o engenheiro agrônomo João Volkmann produz, desde 1989, arroz orgânico e biodinâmico. Em 182 hectares, João extrai 5 toneladas por hectare. O arroz Volkmann foi o primeiro a receber certificado de biodinâmico no Brasil; abastece o mercado interno e é exportado para os Estados Unidos, Alemanha, Bolívia e Uruguai. Desenvolvidos por Rudolf Steiner, criador da Antroposofia, os prepa-
PADRÃO DE VIDA José (acima, à dir.) nem pensa em sair do campo. Bellé ajudou a criar a cooperativa em 1989. Maiara (abaixo) largou curso para ajudar o pai e desenvolver projeto de ecoturismo
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COMEÇO Alexandre iniciou projeto em feira ecológica. A consumidora Fabiane apoia
João abastece mercado interno e também exporta
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rados biodinâmicos usados pelo produtor são elaborados a partir de cristais e plantas medicinais, constituindo uma fitoterapia para que as plantas cumpram melhor sua função e tenham mais potencial nutritivo. “No sistema de produção biodinâmico, a propriedade é vista como um organismo agrícola vivo e espiritual. Os objetivos são a cura da terra, o bem-estar dos agricultores, a produção de alimentos sadios para o consumidor e o desenvolvimento da espiritualidade.” Sua fazenda promove cursos e estágios gratuitos. Um dos alunos, João Kranz, é diretor da agroindústria da Cooperativa Ecocitrus, em Montenegro, a 55 quilômetros de Porto Alegre. É a maior produtora brasileira de suco, polpa e óleo essencial de laranja e tangerina e exporta quase tudo para a Alemanha. Das 75 famílias associadas, 12 produzem com preparados biodinâmicos que, segundo Kranz, aumentam a produtividade e propiciam excelente relação custo/benefício. As redes de supermercados vendem cerca de 70% da produção de orgânicos no Brasil, mas os preços são maiores que os de produtos da agricultura convencional. A alternativa são as feiras livres, onde o pro-
dutor vende direto para o consumidor e cria outros vínculos. As feiras estão presentes em todas as capitais brasileiras. Porto Alegre tem sete por semana. A mais antiga é a Feira Ecológica da Redenção – funciona há 25 anos todos os sábados. Anselmo Kanaan, veterinário e coordenador da Feira da Biodiversidade do Menino Deus, constata que tem aumentado o número de consumidores com problemas de saúde que buscam novos hábitos alimentares. A feira tem 24 módulos, e todos têm certificação de produtores orgânicos. Entre eles está Gilmar Bellé, de Antônio Prado, com um avental, carregando caixas de tomates. Na banca ao lado, Alexandre Baptista, o Ali, é o mais novo produtor, e está iniciando um projeto bem-sucedido e consolidado na Europa e Japão: o CSA (da sigla em ingles A Comunidade Financia o Agricultor). São 30 famílias que pagam mensalmente R$ 93 e recebem toda semana uma cesta com oito produtos diferentes. Dessa maneira é garantido o escoamento da sua produção. A advogada Fabiane Galli é uma das apoiadoras. “As crianças não adoecem e têm muita vitalidade”, diz Fabiane, mãe de três crianças e há nove anos consumindo produtos orgânicos.
MARCIO POCHMANN
A resposta neoliberal à crise na Inglaterra Em vez de superar os efeitos do problema, o receituário da austeridade pode tornar ainda mais frágeis as contas públicas e fazer avançar a recessão, o desemprego, a pobreza e a desigualdade
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ase de lançamento mundial do receituário neoliberal, a partir da vitória eleitoral de Margaret Thatcher (1979-1990), a Inglaterra voltou a ter protagonismo com o governo de David Cameron, iniciado em 2010. Entre 1997 e 2010, contudo, o governo trabalhista de Tony Blair havia interrompido parcialmente a trajetória neoliberal com políticas de terceira via entre a tradição do conservadorismo e da social-democracia. Diante da surpreendente vitória eleitoral obtida em 2015, que permitiu inclusive se liberar da coalizão instalada em 2010 com os liberais democratas, o receituário neoliberal voltou plenamente à cena política inglesa. O ataque central ao Estado, especialmente ao gasto social, tem maior relevância, com a proposta de redução em 10 pontos percentuais à carga tributária bruta. Daqui a cinco anos, em 2020, a proposta do governo conservador inglês é a de reduzir a carga tributária da Inglaterra para 18% do Produto Interno Bruto (PIB). Atualmente, o peso da tributação é de 28%. Para que isso possa ser realizado, o governo de David Cameron pretende reduzir impostos e, sobretudo, os gastos socias. Com isso, espera reduzir a dívida pública dos atuais 88,5% do PIB para 76,4% em 2020. E também passar da situação de déficit no setor público, de 5,1% do PIB, para superávit nas contas públicas de 0,4% do PIB. Em contraposição ao projeto político maior de forte contração do Estado, com queda dos impostos e preferencialmente dos gastos públicos em saúde, educação e aposentadoria e pensões, o governo
espera que o setor privado se torne mais pujante. A aposta no programa de austeridade inglês, tido como suficiente para reequilibrar a economia que se encontra em longa fase de decadência, conta também com um ingrediente novo. O salário mínimo, constituído pela primeira vez na Inglaterra no início do governo de Tony Blair, em 1997, assumiu prevalência nas políticas neoliberais. Ao invés da proposição de seu rebaixamento, o governo de David Cameron propõe a elevação do seu valor real em 13% entre 2015 e 2020, o que permitiria passar de £ 6,6 (R$ 33) para £ 9 (R$ 45) por hora. Dessa forma, a política atual de austeridade teria por objetivo transformar a economia inglesa da condição de portadora de baixos salários e impostos e gastos sociais elevados para uma nova situação econômica de salários maiores e contidos tributos e despesas sociais. Mas isso pode comprometer a ampla geração de empregos precários sustentada por empresas privadas por meio de subsídios governamentais. Os riscos dessa renovação no receituário neoliberal como enfrentamento da crise de dimensão global não são desprezíveis. De um lado, o enfraquecimento maior do Estado não resulta imediata e automaticamente no fortalecimento equivalente do setor privado, conforme se observa dos registros dos programas de austeridade fiscal Assim, em vez de superar os efeitos da crise, o receituário neoliberal da austeridade pode tornar ainda mais frágeis as contas públicas, fazendo avançar a recessão, o desemprego, a pobreza e a desigualdade social. Sem recuperar a economia, a decadência da sociedade inglesa pode se ampliar mais ainda. REVISTA DO BRASIL
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Dรก licenรงa, que sou
pai
VITOR VOGEL/RBA
Aos poucos, homens descobrem o prazer de cuidar dos filhos, deixam para trรกs a figura de provedor do lar e engrossam o caldo cultural para uma sociedade mais igualitรกria Por Luciana Ackermann 30
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COMPORTAMENTO
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á quem diga que uma das mudanças comportamentais mais interessantes dos últimos anos é o novo papel do homem como pai. E seu desejo crescente de ser mais ativo no cuidado diário e na formação dos filhos. Não faltam tentativas de encontrar um termo que dê conta dessa transformação, ainda um tanto lenta – paternidade participativa, paternidade ativa, novo pai, pai cuidador, pai presente, paizão... Mas trata-se de um fato contemporâneo que tem tudo para afetar profundamente a sociedade, considerando que a maior participação dos pais no cotidiano dos filhos ajuda a romper o ciclo cultural de que cabe à mulher, mesmo a que trabalha fora, dedicar-se à prole e à casa. Essa nova postura do homem também contribui para a emancipação das mulheres a partir da divisão mais igualitária das funções, como acontece com o casal Perrota, o advogado Julio, de 40 anos, e a economista Bruna, de 37. “Sempre gostei do meu trabalho, me esforcei muito para passar em concurso público, tive oportunidade de crescimento e quando me tornei mãe não quis ter de abrir mão de tudo
THIAGO RIPPER/RBA
NOVA POSTURA Vinícius (à esq.): compartilhando visões do mundo com Pedro. Julio e as filhas: descobertas
que conquistei”, diz Bruna, que eventualmente viaja a trabalho e, com frequência, participa de reuniões que excedem o expediente. Perrota, que tem um negócio próprio, conta que busca ao máximo dar o suporte necessário para que a mulher continue a trilhar o caminho dela. “Tenho certeza de que nossas filhas terão orgulho da mãe. Penso que para a formação das meninas também será muito positivo ter dentro de casa essa referência de uma mulher bem-sucedida e realizada profissionalmente”, defende. O advogado se surpreendeu com a própria habilidade nos cuidados diários com Gabriela, de 6 anos, e Giovana, de 3. “Eu não ligava para crianças. Quando perdemos a primeira gestação de gêmeas, a ideia da paternidade amadureceu muito. Chorei uma semana. Quando a Bruna engravidou de novo, acompanhava as consultas de pré-natal, ultras, participei de tudo”, lembra. Com a possibilidade de ter uma rotina profissional mais flexível, Julio assumiu tarefas como levar as filhas e buscá-las na creche, dar comida, banho, arrumar, acompanhar nas festinhas e consultas. “Foi o Julio que deu banho na Gabi até o
sexto mês. Ainda grávida, fizemos um curso no hospital e fiquei com muito medo dessa aula. Depois, com a Gabi nos braços, eu pós-operada, o Julio quis dar o primeiro banho. Ficou todo orgulhoso, fez tudo certo e aí foi indo. Ele também trocava fraldas, colocava as roupinhas, sempre fez o que fosse preciso”, conta Bruna. Em 2013, a família mudou de bairro para que a mãe pudesse ficar mais próxima do trabalho e ganhar tempo com as meninas e o marido. “É puxado, mas sempre fiz tudo com prazer”, diz Julio. “Agora, elas estão maiores, nós nos mudamos. Está mais tranquilo. Quando ela chega mais tarde, as meninas já jantaram e tomaram banho.”
Grupo de mães
O palhaço Vinicius Daumas, de 41 anos, gestor da ONG Circo Crescer e Viver, é o único pai do grupo de mães do WhatsApp da classe de Pedro, de 9 anos. Diariamente revisa os deveres, leva e busca, acompanha a festinhas infantis. Para Vinicius, sempre será melhor duas pessoas cuidando: “São dois olhares, duas visões de mundo. Esse convívio é gratificante, uma troca interessante. Em cada fase que o Pedro entra, eu a redescubro com ele. O cuidado cotidiano REVISTA DO BRASIL
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COMPORTAMENTO
que tenho com ele, certamente, fortalece a nossa ligação”. Caçula da família, crescido em meio às irmãs e “titio” com apenas 6 anos, Vinicius despertou desde cedo para o ato de cuidar. Por quase um ano, chegou a cuidar praticamente sozinho do filho enquanto a mãe, que é atriz, gravava uma novela em outro estado. “Pedro estava com 3 anos, eu preparava tudo. Foi um suporte importante para que Carol (sua mulher à época) pudesse dedicar-se à carreira. Isso também aconteceu em outros momentos com as peças de teatro e gravações de filmes”, conta o palhaço-gestor. Depois da separação, há dois anos, Pedro passou a morar com a mãe e a avó materna. Depois de uma viagem por três países da Europa, durante um mês, em companhia do filho, Vinicius se recuperou da dor da separação. “Foi enorme a cumplicidade, o acolhimento e a afetividade. Nunca esqueceremos o que passamos juntos.” Há três anos, o gestor participou da Campanha de Paternidade e Cuidado Você é meu Pai. Na ocasião, foi montada uma exposição fotográfica sobre paternidade, no Rio de Janeiro. A ação foi parte da campanha global MenCare, promovida por uma organização não governamental, Instituto Promundo, que atua em diversos países promovendo a igualdade de gênero e a prevenção da violência, com foco no envolvimento de homens e mulheres na transformação de masculinidades, e incentiva as relações afetivas e de cuidado entre pais e filhos.
nal do Promundo. Durante dois anos, integrantes da organização se debruçaram em pesquisas sobre a participação dos homens na paternidade nos sistemas da Organização das Nações Unidas (ONU), do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e de universidades. “A falta de dados consistentes revela a invisibilidade do tema, que é muito grave, pois o que você não consegue mensurar, não existe, com exceção dos países escandinavos, Canadá, Inglaterra, Estados Unidos e Austrália, onde há pesquisas”, diz Barker. Segundo ele, o ciclo da desvalorização na remuneração da mulher, que ganha 24% menos que os homens, em média, é o principal entrave no mundo inteiro para uma sociedade mais igualitária. “Se alguém precisar se retirar do mercado de trabalho para cuidar dos filhos, fatalmente será quem ganha menos. Para quebrar esse ciclo, é fundamental valorizar o trabalho feminino, aumentar o número de creches subsidiadas e o período de licença-paternidade”, afirma o psicólogo. Ele
destaca experiências testadas nos países escandinavos nos anos 1980, como a licença-parental com períodos destinados aos pais, às mães e podendo ser divididos entre eles. Porém, como o pagamento baseava-se no salário das mulheres, o que implicaria num corte no orçamento familiar, muitos homens não quiseram usufruir de tal direito. Na década seguinte, dois ajustes fizeram a diferença, segundo Barker, à impossibilidade de transferir o tempo destinado ao homem, assim como à aplicação da remuneração que cada um recebia. O percentual de homens que usava a licença-paternidade, que era de 10% a 20%, saltou para 90%. Islândia, Noruega e Suécia têm sistemas parecidos, um ano de licença-parental – dois meses no mínimo são destinados exclusivamente aos pais, e a partir daí cada casal faz a combinação que preferir. “Para o mundo fica o exemplo de que é possível avançarmos nesse caminho, pois essas economias ricas não caíram aos pedaços porque os pais estão tendo um tempo remunerado para cuidar de seus filhos.”
FELICIDADE “Ser pai mudou o meu jeito de pensar”, diz Marcio, com Maria Luiza no colo
De acordo com dados do instituto, em todo o mundo mulheres, que representam 40% da população ocupada, e meninas continuam a assumir a maioria das atividades familiares. A participação limitada dos homens em cuidados com as crianças continua a ser uma grande barreira para a igualdade de gênero e a autonomia das mulheres. No Brasil, elas gastam, em média, 20 horas por semana cuidando dos filhos e do lar, enquanto os homens dedicam pouco mais de dez horas. “A direção está certa, mas nesse ritmo lento só daqui a 50 anos se chegará à equidade”, afirma o psicólogo Gary Barker, diretor internacio32
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Cenário desigual
No Brasil, a licença-paternidade é de apenas cinco dias. Há alguns projetos de lei no Congresso que visam a aumentar esse período para 15 e 30 dias, ainda um abismo gigantesco perto dos 120 a 180 dias a que as mulheres têm direito. Para Mariana Azevedo, socióloga e coordenadora-geral do Instituto Papai, avanços vêm sendo incorporados em diversos setores da sociedade, como a inclusão do tema nas negociações de acordos coletivos de trabalho ou o estímulo à inserção dos homens nas consultas de pré-natal das companheiras, parte da Política Nacional de Saúde do Homem do Ministério da Saúde desde 2009. “É preciso sistematizar essa política e capacitar profissionais de saúde para lidar com essa conquista da sociedade”, reforça Mariana. A socióloga destaca a guarda partilhada entre casais separados como meio de desconstruir a ideia de que a mãe é única pessoa responsável ou capaz de cuidar dos filhos. Ela admite que é crescente o debate público em torno do novo papel do pai, da licença-paternidade e da divisão de tarefas nos lares. Mas considera que também mulheres – esposas, mães e sogras – ainda precisam abrir a guarda e encorajar os pais. Muitas ainda insistem com aquela velha opinião de que o homem não combina com cuidados e tarefas domésticas, e acabam atropelando o pai. Não há um consenso sobre essa prática no lar do gerente de marketing Marcio Vellozo, de 42 anos, e da advogada Andréa Luiza Belém Gouveia, de 43. Andréa se sente sobrecarregada, mas Vellozo diz que ela e a sogra fazem quase tudo em relação à filha Maria Luíza, de 2 anos, e à casa. “Ele gosta de passear com a Malu, o que ajuda, porque só assim consigo fazer alguma coisa para mim”, resume a advogada. Vellozo defende-se: “Já troquei fraldas, dei de mamar, fazia arrotar, sabia fazer o melhor embrulho na Maluzinha. Só não faço mais porque a Malu é louca pela mãe e cola nela”, justifica. Quanto aos passeios: “Eu não ando na rua com a Malu, eu desfilo. É a maior felicidade ser pai, a gente entra num outro mundo. Mudou meu jeito de pensar, não consigo nem explicar”, diz. “Quero levá-la no primeiro dia na escola, na aula de natação. Ao pediatra eu já vou
THIAGO RIPPER/RBA
COMPORTAMENTO
ESTAR JUNTO “Sempre gostei de crianças”, diz Edson, pai de Maria Clara (foto) e de Pedro. “Quando me tornei pai, quis aproveitar cada instante”
e continuarei indo. Todo final de semana levo a Malu ao parquinho do Fluminense e quando ela estiver maior vai comigo ao Maracanã”, avisa. Psicólogo com doutorado em desenvolvimento infanto-juvenil, Gary Barker ressalta que a participação efetiva do pai nos cuidados das crianças, assim como nas tarefas domésticas, reduz o nível de estresse ao eliminar a sobrecarga que recai sobre a mulher. “Num lar sem estresse, identificamos maior rendimento escolar e desenvolvimento cognitivo entre crianças. Os homens se sentem mais felizes quando conseguem cuidar dos filhos, percebem relações mais próximas e tendem a cuidar mais da própria saúde.” O produtor de cinema Edson da Silva Costa, de 50 anos, lembra que ainda na infância sua mãe costumava dizer que ele nasceu para ser pai. “Sempre gostei de crianças. Quando me tornei pai, quis aproveitar cada instante. Estar junto, fazer comida, cuidar, dar banho. Não consigo entender um homem que não fique feliz em cuidar dos filhos”, diz Edson, que tem Pedro, de 23 anos, e Maria Clara, de 13, de dois casamentos. O menino tinha 3
anos quando ficou viúvo. “Jamais passou pela minha cabeça deixá-lo com os avós. Eu já cuidava de muita coisa em casa, era só continuar”, relembra. Na segunda união, também participou de cada fase de Maria, mesmo com as idas e vindas do casal, que acabou se separando. “Nunca faltei ou cheguei atrasado nos meus dias com a minha filha, inclusive a Maria, quando a mãe se mudou para São Paulo, não quis ir e passou a morar comigo e com o Pedro em Niterói, por um ano e meio”, destaca. Maria concorda com o pai e diz sentir saudades desse tempo. Hoje, Pedro faz faculdade em Minas Gerais, a mãe de Maria voltou a morar no Rio, com a adolescente e a nova família, e Edson deixou Niterói. “Não existe isso de eu escolher um ou outro. Todo mundo dizia que o meu lugar era ao lado da minha mãe. Mas meu pai sempre cuidou muito bem de mim e do meu irmão. O que me incomodava era eu ter de me explicar porque eu vivia com ele e não com ela. Puro machismo. No fundo e de um jeito diferente, meu pai e minha mãe querem a mesma coisa, que eu me torne uma pessoa cada vez melhor”, diz a adolescente. REVISTA DO BRASIL
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Quando migrar é a
única escolha
Acirramento de conflitos, antigas crises não resolvidas e omissão dos países ricos fizeram com que em 2014 o número de refugiados no mundo fosse o maior desde a Segunda Guerra Mundial: 59,5 milhões Por Sarah Fernandes 34
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THE ITALIAN COASTGUARD / MASSIMO SESTINI
A
trajetória do camaronês Njtu Armstrong Atifarq começou há pouco mais de quatro meses, quando ele deixou seu país para viver na República Dominicana. Saiu de casa não em busca de vida melhor, salários mais altos ou para estudar em uma universidade. O objetivo do jovem de 22 anos, que juntou as últimas economias, trancou a faculdade de História e Geografia e partiu para a América era simplesmente salvar sua vida. Só neste ano, Atifarq perdeu diversos familiares e amigos, inclusive o pai e a mãe, devido a conflitos armados do grupo islamita nigeriano Boko Haram, autor de massacres na fronteira entre Camarões e Nigéria. “Estou tentando salvar minha vida aqui. Lá as pessoas estão se matando todos os dias”, diz. “Eu sei que a vida na América Latina também não é fácil, mas no meu país não tinha mais jeito. Pelo menos aqui não fui discriminado por ser africano, negro ou cristão.” Seu plano original era ir para a República Dominicana encontrar um amigo, em um voo que partiu de seu país, com escalas no Marrocos e em São Paulo. Na última parada, foi impedido por falta de documentos de seguir para o país caribenho. Teve de ficar. Depois de um mês vivendo em uma ala especial do Aeroporto de Guarulhos, chegando a dormir no chão, conseguiu visto de refugiado, por um ano. A documentação definitiva está em análise no Ministério da Justiça. Atifarq vive na Casa do Migrante, no centro de São Paulo, ligada à Igreja Católica. Deixou dois irmãos mais jovens, de 15 e 18 anos, que espera trazer quando juntar dinheiro. “Estou procurando trabalho. Estou feliz por Deus ter me dado esse lugar, mas todos os dias apenas acordo, como e durmo. Preciso estar ocupado, ser produtivo.” Histórias como a de Atifarq são cada vez mais recorrentes, no Brasil e no mundo. O acirramento de conflitos na Síria, no Iraque, na Ucrânia e na República Centro-Africana, somado a antigas crises ainda não resolvidas, como na Colômbia e na Palestina, fizeram explodir o número de refugiados no mundo. Desde a Segunda Guerra Mundial, o total de pessoas obrigadas a deixar suas casas devido a guerras e conflitos nunca foi tão grande: 59,5 milhões, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Isso acontece em um momento delicado, em que países europeus em crise estão reduzindo os recursos para refugiados e endurecendo os processos migratórios. REVISTA DO BRASIL
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ricos devem fazer de intervir em conflitos e acolher refugiados. “A responsabilidade de proteger é uma obrigação dos mais ricos. Que resposta Etiópia ou Ruanda podem oferecer? E a Alemanha ou a França?”
Caminhos do refúgio
A maior presença de refugiados não está nos países ricos. De acordo com o Acnur, 86% das pessoas obrigadas a fugir vão para países menos desenvolvidos. O acirramento do conflito na Síria fez da Turquia o país que mais abriga refugiados no mundo (1,6 milhão), à frente do Paquistão, há anos o primeiro lugar devido aos históricos conflitos políticos no Afeganistão, que antes liderava o êxodo. “Os refugiados saem por suas próprias pernas, carregando suas coisas, para os países vizinhos. Poucos têm como pegar aviões, por exemplo, para o Brasil. Quem consegue um veículo, como uma carona em caminhão, já é sortudo. E rezam para conseguir cruzar a fronteira, senão ficarão acampados até poderem entrar”, diz Blanes. Os Estados que têm fluxo mais intenso costumam montar nas fronteiras centros de recepção e triagem, onde são identificadas crianças sozinhas, famílias desmembradas e casos de atenção a saúde, nutrição e higiene. Feito esse atendimento, eles são alojados em tendas emergenciais e só depois vão para os campos de refugiados, que ficam em regiões mais distantes das fronteiras por questões de segurança. “Conta-
mos com parcerias com organizações não governamentais para as tarefas e construir barricadas, estradas, abrigos e para fazer os cadastros, o que hoje é muito tecnológico, com pulseiras de identificação e coleta das impressões digitais”, diz Godinho, do Acnur. “Os campos de refugiados funcionam como cidades: há serviço de saúde, escolas e atividades de criação de emprego e renda. Existem campos com 50 mil pessoas ou mais há mais de 15 anos.”
Acolhimento
O crescimento do número de refugiados no mundo não deixou de fora o Brasil: o total de solicitações de refúgios ao governo brasileiro aumentou de 1.165 em 2010 para 25.996 em 2014, segundo o Ministério da Justiça. Vivem em território brasileiro 7.700 mil refugiados de 81 países, vindos sobretudo da Síria, Colômbia, Angola e República Democrática do Congo. “Os deslocamentos são muito associados à dinâmica dos conflitos. Verifica-se no Brasil a chegada de pessoas da África e do Oriente Médio, mas esse não é um perfil histórico. Por muito tempo, a maior entrada era de pessoas pela fronteira com a Colômbia. É natural que nesse momento São Paulo e Rio de Janeiro, por terem os maiores portos e aeroportos, passem a receber a maior quantidade de refugiados”, diz Godinho. São Paulo soma 3.809 pedidos. O número aumentou 1.000% entre 2010 e 2014. A capital é a cidade com mais
FOTOS: DANILO RAMOS/RBA
No ano passado, 14 milhões de pessoas foram obrigadas a deixar suas cidades pela primeira vez, fugindo de conflitos, desastres naturais ou epidemias – quatro vezes mais do que em 2011. Os países que mais recebem pedidos de refúgio são Rússia, Alemanha, Estados Unidos e Turquia. Mais da metade dos refugiados (53%) são sírios (3,9 milhões), seguidos de afegãos (2,6 milhões) e somalis (1,9 milhão). “Chegamos a esse ponto por responsabilidade de toda a comunidade internacional, por incapacidade, enquanto conjunto de nações, de prevenir e solucionar conflitos. A responsabilidade é de todos, mas não é incorreto dizer que os países mais desenvolvidos têm maior capacidade de resolver essa situação – por seu poder econômico e pela influência política internacional”, afirma o porta-voz do Acnur, Luiz Fernando Godinho. “Quem costuma mediar esses conflitos é o Conselho de Segurança da ONU, que se encontra engessado; os países membros têm direito a veto, podem barrar alguma intervenção pacífica para controlar um conflito, como o envio dos capacetes azuis, por interesses econômicos”, diz o professor José Blanes, da Universidade Federal do ABC (UFBAC). “A China e a Rússia tinham negócios com a Síria, o que impediu que o conselho interviesse no início.” A jurisprudência internacional já admite o conceito de “responsabilidade de proteger”, um movimento que os países
NJTU ARMSTRONG ATIFARQ: “Estou tentando salvar minha vida”
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JEAN ROXY SIMEON: “Fugimos de gangues”
MUNDO
n AMÉRICA A população refugiada diminuiu em torno de 5%, totalizando 769 mil pessoas, sobretudo por uma revisão nos números de colombianos deslocados na Venezuela. A Colômbia continua sendo um dos recordistas em número de deslocados, somando 6 milhões de pessoas até o final do ano passado. A violência de gangues urbanas na América Central foi um dos principais motivos de os Estados Unidos receberem no ano passado 36,8 mil pedidos de refúgio a mais do que em 2013, totalizando 121,2 mil – crescimento de 44%.
n ORIENTE MÉDIO E ÁFRICA DO NORTE O agravamento do conflito na Síria fez do Oriente Médio a principal região do mundo de origem e recebimento de populações deslocadas por conflitos e perseguições. A guerra na Síria obrigou 7,6 milhões de pessoas a se deslocar dentro do país e 3,88 milhões a buscar abrigo em países vizinhos. O Iraque registrou 2,6 milhões de novos deslocados internos, totalizando 3,6 milhões de pessoas no final de 2014.
n EUROPA O número de refugiados que se deslocaram para a Europa totalizou 6,7 milhões no final de 2014, crescimento de 52,3% em um ano. O continente atingiu o recorde de refugiados que atravessaram o Mediterrâneo, sempre em condições precárias: 219 mil pessoas. Quase 25% dos refugiados da Europa são sírios e estão na Turquia. Os conflitos na região oriental da Ucrânia levaram 800 mil pessoas a se deslocar dentro do país e outras 271,2 mil a solicitar refúgio para a Rússia. Alemanha e Suécia recebem a maioria das solicitações de refúgio da União Europeia.
Rússia Suécia
Alemanha Ucrânia EUA
Afeganistão
Irã
Turquia Síria Iraque
Paquistão
Colômbia
Mianmar
Etiópia Quénia
Brasil
n ÁSIA É uma das principais regiões do mundo em termos de deslocamento forçado. Só em 2014, foram registradas 9 milhões de pessoas deslocadas, 31% a mais que em 2013. A Síria ultrapassou o Afeganistão e se tornou o principal país de origem de refugiados no mundo. Mianmar registrou deslocamentos contínuos ao longo de 2014, alcançando 479 mil pessoas. Irã e Paquistão são dois dos principais países em recepção de refugiados.
República Democrática do Congo
Angola
Pessoas expulsas por guerras 59,5 milhões
51,2 milhões
milhões
2005
39,5
milhões
42
milhões
45,2 43,3 43,7 42,5 milhões milhões milhões milhões
milhões
Fonte: ACNUR – junho/2015
n O BRASIL O país tem hoje 7,7 mil pessoas refugiadas, de 81 países. O número de solicitação de refúgios ao governo brasileiro chegou a 25.996 em 2014. A maioria vem da Síria, seguida por Colômbia, Angola e República Democrática do Congo.
37,5
42,7
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2012
2013
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n ÁFRICA SUBSAARIANA Somou 3,7 milhões de refugiados e 11,4 milhões de deslocados internos, sendo 4,5 milhões deles só em 2014. Os principais países de origem são República Centro Africana, Sudão do Sul, Somália, Nigéria e República Democrática do Congo. A Etiópia substituiu o Quênia como principal destino de refugiados na região, e é agora o quinto maior no mundo. REVISTA DO BRASIL
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REFUGIADOS atravessam a Turquia vindos da Síria, principal região do mundo em origem e recebimento de populações deslocadas
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EUROPA Síria conforta os filhos após resgate em embarcação
UNHCR/A. D’AMATO
solicitantes (3.276), seguida por Campinas (218) e Guarulhos (178). “Apesar do crescimento, ainda não sabemos o que significa o drama do refúgio. Os refugiados não são os haitianos que chegam pelo Acre, os jovens centro-americanos que tentam cruzar a fronteira dos Estados Unidos. Os refugiados são viúvas, idosos sozinhos, crianças órfãs. São os mais vulneráveis entre os vulneráveis, sem chance de sobreviver se não migrarem”, explica José Blanes, da UFABC. Metade dos refugiados do mundo é formada por crianças e adolescentes até 18 anos. Para não submeter os filhos de 4 e 6 anos ao desgaste do refúgio no Brasil, o operador de câmera haitiano Jean Roxy Simeon, de 35 anos, decidiu tentar começar a vida sozinho em São Paulo antes de trazer a família da República Dominicana, onde vivem há 18 anos, sem sequer conseguir documentos de permanência – nem para os filhos, que nasceram no país. “Fugimos de gangues paramilitares que assassinam haitianos por preconceito. Em um dia, matam cinco, seis, e ninguém faz nada. Não há nenhuma segurança. Estou aqui muito preocupado com minha mulher e meus filhos”, diz, mostrando uma foto da família no celular. “Todos os haitianos que têm um pouco de condições estão saindo, porque muitos morrem nesses ataques. É muito racismo. Como pode eu viver 18 anos
Conflito na Síria Teve início em 15 de março de 2011, durante a Primavera Árabe. O governo liderado com mãos de ferro pelo partido Baath há quase 50 anos reprimiu os protestos com violência, obrigando os manifestantes a reagir. O regime do presidente Bashar al-Assad passou a controlar as grandes cidades e as estradas mais importantes do país e tem usado a fome e a miséria para punir a população civil.
Em 2012, A Cruz Vermelha e a ONU classificaram os conflitos como guerra civil e começaram a cobrar aplicações do Direito Humanitário Internacional para investigar crimes de guerra. Porém, as missões diplomáticas têm fracassado. De acordo com o Observatório Sírio para os Direitos Humanos, no primeiro trimestre de 2014, pelo menos 140 mil pessoas morreram – 7 mil crianças e 5 mil mulheres.
FAMÍLIA AFEGÃ em uma ilha grega, à espera de registro. País de origem tem três decadas de conflito
UNHCR/G. MOUTAFIS
Há quase 30 anos em conflitos civis, o Afeganistão ainda vive os resquícios da ofensiva dos Estados Unidos, em 2001, sob o governo de George W. Bush, aliado à organização armada muçulmana Aliança do Norte e de outros países ocidentais, como Reino Unido, França e Canadá. O objetivo era derrubar o regime talibã e encontrar Osama bin Laden e líderes da Al-Qaeda, acusados pelos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. A ação militar ocorreu à revelia das Nações Unidas e deixou milhares de mortos.
FOTOS: UNHCR/BRIAN SOKOL
UNHCR/IVOR PRICKETT
Afeganistão e o refúgio
IMAGENS DO CONGO África Subsaariana tem 3,7 milhões de refugiados e mais de 11 milhões de deslocados, de vários países
em um país e não ter nenhum documento de lá?” Simeon aguarda documentação permanente de refugiado a ser expedida pelo Ministério da Justiça, em um processo que pode levar anos. Apesar da postura do Brasil quanto às migrações ser considerada “exemplar” e “muito moderna” pelas Nações Unidas, o crescimento no número de pedidos excedeu a capacidade atual do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), ligado ao Ministério da Justiça. O órgão consegue atender apenas 15 por dia. “A obrigação constitucional é nossa e vamos fazer o que é nossa responsabili-
dade. Existe o problema e nós vamos enfrentar. Neste momento, estamos fazendo uma análise do que pode ser feito. Se você vai para a Alemanha, muitos refugiados ficam reclusos, se para os Estados Unidos, são deportados. É esse tipo de modelo que queremos bancar?”, questiona o diretor-adjunto do Departamento de Estrangeiros do Ministério da Justiça, Paulo Guerra, durante debate promovido pelo Acnur em São Paulo. “A legislação brasileira é avançada e abriga uma declaração ampla de refúgio. Por força da legislação criou-se o Conare em 1997, que faz com que haja uma
resposta efetiva do Estado para esses pedidos. O Brasil garante aos refugiados livre acesso ao território nacional e aos serviços universais, como saúde e educação. Isso é muito positivo”, avalia Godinho. “É importante ressaltar o papel que a sociedade tem no acolhimento dos refugiados. Ninguém é um refugiado porque quer. O refugiado é uma pessoa como eu ou você, que trabalhava, estudava e vivia normalmente, e por motivos muito graves foi obrigada a deixar seu país. Essa compreensão é muito importante para que a integração ocorra da melhor forma possível.” REVISTA DO BRASIL
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ARMANDO LIMA/[RE]MISSÃO - RETRATOS DE UM SISTEMA PENITENCIÁRIO
Mulheres invisíveis Livro Presos que Menstruam faz um retrato da vida no sistema prisional feminino brasileiro Por Xandra Stefanel
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m 2010, Nana Queiroz conheceu alguém que há anos vinha trabalhando no sistema carcerário feminino. Interessada pelo tema, a jornalista e fundadora do movimento Eu Não Mereço Ser Estuprada decidiu pesquisar sobre o assunto e descobriu que praticamente não existiam livros, documentários nem outros materiais sobre prisões femininas no Brasil. “Era como se não existissem mulheres presas”, lembra a jovem, que acaba de lançar Presos que Menstruam (Ed. Record, 294 págs., R$ 40), uma colcha de retalhos costurada durante cinco anos que apresenta um retrato dos problemas e desafios do sistema prisional feminino no país. Nana tira da invisibilidade 37.380 das 607.731 pessoas que, segundo o Ministério da Justiça, compõem a população prisional brasileira. Suas visitas a mais de dez instituições carcerárias renderam ao leitor histórias sobre gravidez no cárcere, mulheres torturadas com bebês no colo e
no ventre, solidão, abandono, celas insalubres, torturas psicológicas, refeições intragáveis e tantos outros dramas vividos por presas anônimas e famosas. Como não conseguiu da maioria das secretarias de Segurança Pública autorização para visitar os presídios, a jornalista entrou em algumas das instituições como voluntária e como parente de presa. “Descobri que não era apenas o governo que nos impedia de falar sobre o assunto. Tabus são mantidos, também, pelos que se recusam a falar sobre eles. E nós, sociedade, evitamos falar de mulheres encarceradas. Convencemos a nós mesmos de que certos aspectos da feminilidade não existirão se nós não os nomearmos ou se só falarmos deles bem baixinho. Ignoramos as transgressões de mulheres como se pudéssemos manter isso em segredo, a fim de controlar aquelas que ainda não se rebelaram contra o ideal da ‘feminilidade pacífica’. Ou não crescemos ouvindo que a violência faz parte da natureza do homem, mas não
FOTOS: ANA PAULA IGUAL/[RE]MISSÃO - RETRATOS DE UM SISTEMA PENITENCIÁRIO
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DIVULGAÇÃO
da mulher?”, questiona, no prefácio. Com mais de 100 entrevistas com presas, ex-presas, familiares e especialistas, o livro humaniza essa porção invisível da sociedade sem vitimizá-la. “Não podemos desconsiderar que as mulheres são diferentes dos homens por uma série de condicionamentos culturais que elas recebem a vida inteira; por exemplo, a ideia de submissão”, afirma Nana Queiroz. A submissão pode explicar muitas das detenções femininas. A obra traz à luz uma pesquisa feita pela Coordenadoria Penitenciária da Mulher, do Rio Grande
do Sul, segundo a qual 40% das mulheres presas se envolveram no crime para fugir da violência doméstica. “Algumas delas eram obrigadas pelo parceiro a traficar, outras saíam de casa para escapar do abuso sexual. Ou o marido batia, ela precisou fugir de casa com as crianças e, sozinha, não conseguia ter um salário suficiente para sustentar a criançada. Então, ela acabava traficando para complementar a renda. Esta história é muito comum”, relata a jornalista. Segundo o Ministério da Justiça, entre 2007 e 2012 a criminalidade cresceu 42%
INVISIBILIDADE Nana, autora do livro: “Era como se não existissem mulheres presas”
entre as mulheres. “Uma tese em voga entre ativistas da área é a de que a emancipação da mulher como chefe de casa, sem equiparação de seus salários com os masculinos, tem aumentado a pressão financeira sobre elas e levado mais mulheres ao crime no decorrer dos anos”, informa Nana no livro. “O número das que são de fato perigosas e que cometeram crimes contra a pessoa varia de 6% a 8%. O de mulheres que são presas grávidas ou lactantes é menor ainda. Se cruzarmos os dados das que são perigosas e lactantes, o número é muito menor. Isso significa que a maioria das gestantes ou lactantes poderia estar cumprindo pena domiciliar porque não representa risco para a sociedade”, declara a autora. Mas não é o que acontece. Além da chocante situação das mulheres presas, Nana acaba apresentando também a terrível realidade de centenas de crianças. Segundo ela, 166 bebês viviam presos com suas mães em instituições carcerárias enquanto ela escrevia o livro. É o caso de Luca, que estava no colo de sua mãe, Tamyris, quando ela foi presa por tráfico de drogas. Ela, um outro traficante e o bebê foram jogados na viatura e os policiais “distribuíram porrada sem discriminar em quem. REVISTA DO BRASIL
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Sobrou até para o pequeno Luca, que foi acertado na lateral do olho, que sangrou e inchou”. Alguns meses depois, já morando em uma unidade materno-infantil, o estado emocional da criança despertou a preocupação de sua pediatra, Mara Botelho: “Luca não sorria. Mara brincava com ele no consultório, fazia caretas e barulhinhos bobos. Nada atraía a simpatia do garoto”. A apatia foi a forma que seu inconsciente arrumou para lidar com tamanha violência.
Mãe sofre
Com a redução da maioridade penal, a gente colocaria na cadeia muito mais mães jovens, de família monoparental, abandonadas pelos parceiros
ARMANDO LIMA/[RE]MISSÃO - RETRATOS DE UM SISTEMA PENITENCIÁRIO
O livro revela que a maioria das detentas grávidas já chega grávida na cadeia. Como em todo o país existem apenas 39 unidades de saúde e 288 leitos para gestantes e lactantes privadas de liberdade, na maioria dos presídios e cadeias públicas essas mulheres ficam misturadas com o restante da população carcerária. Não é incomum que os bebês nasçam dentro do presídio, nem é raro que as mães, mesmo na hora do parto, sejam mantidas algemadas na cama. “Como se ela pudesse levantar parindo e sair correndo”, critica Heide Ann Cerneka, coordenadora da Pastoral Carcerária nacional para as questões femininas.
Na visita ao um presídio no Pará, Nana Queiroz deparou com um ambiente completamente insalubre: vazamentos, infiltrações, falta de ventilação e excrementos saindo dos vasos sanitários fizeram com que ela tivesse vontade de deixar imediatamente aquele lugar. “Mas eu falei que se elas suportavam isso por anos, eu tinha de suportar por alguns minutos para ouvi-las”, afirma a autora. “Da cela, saiu uma mulher tão magra que dava para ver as pontas dos ossos dela… Ela me contou que tinha perdido o bebê um mês antes e que ninguém tinha feito curetagem nem exame. ‘Estou com febre, sangramento, e eu acho que meu filho está apodrecendo dentro de mim’, disse. Quando ouvi aquilo fiquei tão mal que quando saí dali, vomitei. Foi um chute no meu estômago”, lembra a jornalista. Ela também escutou o desabafo de uma mulher que levou pauladas na barriga quando estava grávida de oito meses. “O guarda batia e dizia: ‘Não reclama. Esse é mais um vagabundinho vindo para o mundo. Tomara que ele morra antes de nascer’ Quando perguntei, no Pará, quantas delas tinham apanhado enquanto estavam grávidas ou lactantes, 90% levantaram a mão.” Será que agen-
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tes como esse acreditam que a violência promova alguma mudança positiva? Não é preciso ser especialista no assunto para entender que ela apenas piora e perpetua uma situação de exclusão. Assim como fará a redução da maioridade penal, sobre a qual Nana é categórica: terá impacto diretamente na vida das mulheres. “Com a redução da maioridade penal, a gente colocaria na cadeia muito mais mães jovens, de família monoparental, abandonadas pelos parceiros. O cara engravida, desaparece, ela fica desesperada, começa a roubar, traficar, se envolve em crimes e vai parar na cadeia. Ou então ela é vítima de violência doméstica e mata o marido. Aí, como é pobre e não consegue fazer uma boa defesa, vai presa acusada de crime hediondo”, lamenta. Quem garante que o ciclo não se repita com algumas (ou muitas) das crianças que foram torturadas antes mesmo de nascer ou com as que passaram seus primeiros meses de vida encarceradas? O que Nana pretende com Presos que Menstruam é que a sociedade reflita sobre a miséria em que o sistema prisional brasileiro está mergulhado. E também sobre como a sociedade patriarcal e o machismo têm levado cada vez mais mulheres para prisões, onde se tornam ainda mais invisíveis para a sociedade. “É fácil esquecer que mulheres são mulheres sob a desculpa de que todos os criminosos devem ser tratados de maneira idêntica. Mas a igualdade é desigual quando se esquecem as diferenças. É pelas gestantes, os bebês nascidos no chão das cadeias e as lésbicas que não podem receber visitas de suas esposas e filhos que temos de lembrar que alguns desses presos, sim, menstruam.”
LALO LEAL
Apagões, viroses e outros diagnósticos A entrega da seleção brasileira e dos campeonatos nacionais ao controle da Rede Globo está na raiz dos problemas. O esporte mais popular do país foi reduzido a um programa de TV
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opa do Mundo: Alemanha 7 x 1 Brasil. Diagnóstico do Scolari: “Apagão”. Copa América: Brasil desclassificado pelo Paraguai. Diagnóstico do Dunga: “Virose”. Em outras profissões, diagnósticos desse tipo poderiam ser submetidos a conselhos de ética e seus autores, a punições. Diagnósticos sérios, se fossem feitos, iriam buscar as razões dessas derrotas em problemas bem mais profundos. Práticas capazes de transformar, em duas ou três décadas, o “melhor futebol do mundo” num coadjuvante menor das grandes disputas internacionais. A entrega da seleção brasileira e dos campeonatos nacionais ao controle da Rede Globo de Televisão está na raiz desses problemas. O esporte mais popular do país foi reduzido a um simples programa de TV, obrigado a se ajeitar na grade de programação da emissora, segundo suas conveniências comerciais. As consequências foram danosas para clubes, seleções e torcedores, os mais prejudicados. Nos jogos noturnos são obrigados a sair do estádio à meia-noite porque as partidas devem começar depois da novela. E ao se postarem diante da TV, são vítimas do monopólio, já que a emissora seleciona um jogo para transmitir e impede as demais de oferecer alternativas. Essa lógica fez inúmeros clubes desaparecerem da televisão e com isso se inviabilizarem comercialmente. Os direitos de transmissão são negociados clube a clube, recebendo mais dinheiro aqueles que, em tese, podem dar mais audiência. É a contribuição da TV para o desequilíbrio financeiro entre eles, com os mais fortes se tornando cada vez mais fortes, às custas dos demais. Dos 20 clubes que disputam o campeonato nacional deste ano, há apenas um do Nordeste, um do Centro-Oeste e nenhum do Norte. Salvador, Fortaleza e Brasília somam mais de 9 milhões de habitantes, e não têm nenhum clube na série A do Brasileiro. Na Inglaterra, 50% dos direitos de transmissão são distribuídos igualitariamente e a outra metade leva
em conta os tamanhos das torcidas e o desempenho técnico nas disputas anteriores. Na Alemanha, o sistema é mais radical: o total das quotas de televisão é distribuído igualmente entre todos os clubes. Caminhamos rumo ao modelo espanhol, em que apenas duas equipes disputam para valer o campeonato nacional, com uma terceira na sombra. A única tentativa de tornar mais equilibrada a distribuição dos direitos de transmissão no Brasil ocorreu com a criação do Clube dos 13, organização que negociava com a TV em nome dos principais clubes brasileiros. A Globo conseguiu debilitá-lo realizando negociações isoladas com os clubes, pondo fim à sua existência. Quanto à seleção, não é por acaso que o principal delator dos escândalos internacionais seja José Hawilla, responsável pela intermediação na venda dos direitos de transmissão das partidas. A existência do intermediário, nesse tipo de transação, tem como objetivo apenas possibilitar a distribuição de propinas para dirigentes de federações e confederações, como salienta o jornalista Luiz Carlos Azenha, um dos autores do livro O Lado Sujo do Futebol. As “tenebrosas transações” do futebol brasileiro ganharam espaço e se perpetuaram, deixando para segundo plano questões como a formação dos atletas e a qualidade dos espetáculos. Sem ver na TV os times de sua cidade ou de seu estado, meninos e meninas passaram a torcer por clubes do eixo Rio-São Paulo e, mais recentemente, para os integrantes da Liga dos Campeões da Europa. E quando veem a seleção no gramado têm dificuldade de reconhecer a maioria dos jogadores, muitos deles com carreira iniciada na pré-adolescência fora do Brasil. As mudanças legais aprovadas no início de julho pelo Congresso Nacional, sob forte pressão contrária da bancada dos cartolas, ainda são muito tímidas. Seguimos longe dos melhores modelos europeus e mais distantes ainda da Argentina, que devolveu ao público o direito de ver pela televisão, sem custos, o futebol do seu país. REVISTA DO BRASIL
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Ibiti o quê? Parque Estadual de Ibitipoca, na Zona da Mata mineira, é um paraíso com cachoeiras, poços e grutas que atraem visitantes e pesquisadores Por Luciana Ackermann 44
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bitipoca é de tirar o fôlego. Seja pela beleza exótica, seja por algumas das longas trilhas, que exigem boa dose de disposição física. A beleza nua e crua tem o poder de levar à essência mais genuína do ser humano – somos parte da natureza. Na pauleira do jogo da vida nas grandes cidades, é normal passar batido por essa constatação óbvia, mas bastam poucos minutos diante do infinito mar de montanhas, da grandeza das rochas, da variedade de grutas e cachoeiras, para resgatar esse sentido de pertencimento. O Parque Estadual de Ibitipoca, com 1.488 hectares, fica na Zona da Mata mineira, nos municípios de Lima Duarte e Santa Rita do Ibitipoca. Ocupa o alto da Serra do Ibitipoca, uma extensão da Serra da Mantiqueira. Trata-se de uma unidade de conservação administrada pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF), com al-
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Prainha, no Circuito das Águas
titudes entre 1.050 e 1.784 metros, serve de divisor entre as bacias dos rios Grande e Paraíba do Sul. A formação geológica é predominantemente quartzítica e o relevo, acidentado. Entre as espécies da flora comuns na região, estão cactos, orquídeas, bromélias, samambaias e candeias, estas últimas repletas de outra vegetação, popularmente chamada de barbas-de-velho (líquens). A região é conhecida por ser território do lobo-guará. O parque conta ainda com uma rica diversidade de aves, como o tucano-do-bico-verde, o araçari-banana, andorinhões, que costumam dar voos rasantes. Em tupi-guarani, Ibitipoca significa “pedra que estala” ou “serra que estoura”, nome possivelmente inspirado na alta incidência de raios. O parque tem três circuitos a serem desbravados, cada qual com paisagens e extensões distintas. Todos bem cuidados, sinalizados, com
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Rio do Salto e o Paredão de Santo Antônio
FOTOS RENATA MELLO/OLHAR IMAGEM
Vista do alto da Ponte de Pedra
mirantes, escadas e até corrimões. Guias não são necessários – alguns visitantes investem num cajado para auxiliar nas andanças. O Circuito das Águas é o mais curto: com cinco quilômetros de extensão (ida e volta), forma uma espécie de U, banhado pelo Rio do Salto. No trajeto, está o imponente Paredão de Santo Antônio, que dá forma ao Lago das Miragens de tom âmbar, resultado da decomposição das folhas. Continuando a caminhada, está a bela Cachoeira dos Macacos. Há ainda a Ponte de Pedra, passagem escavada pela própria água do rio ao longo de milhares de anos. É possível atravessá-la tanto por cima como pelo seu interior. Também fazem parte do Circuito das Águas o Lago dos Espelhos, a Prainha, o Lago Negro, a Gruta Gnomos e a Prainha das Elfas. Difícil identificar qual é o ponto mais bonito. A trilha mais famosa é a Janela do Céu. São 16 quilômetros (também ida e volta), e cerca de sete horas
de passeio. Vale a pena reservar um dia da viagem só para essa parte do parque, com tempo para desfrutar de cada pedaço do trajeto, além de paradas para descansar e fazer um lanchinho. O nome é apropriado. Após cerca de três horas e meia de subidas, descidas e belas paisagens, chega-se a uma mistura de corredeira com penhasco. De uma abertura oval na rocha, o ângulo de visão só dá para o céu. Ali, há pequenos poços que formam uma queda d’água. O visitante fica no topo da formação da cachoeira. Com mais 20 minutos de caminhada, é possível desfrutar a beleza da Cachoeirinha, continuação da Janela do Céu. São cerca de 30 metros de queda d’água, com direito a prainha e arco-íris. No circuito, há ainda o Cruzeiro – onde é feita a reza do terço, sempre em 3 de maio, com a comunidade da Vila de Ibitipoca –; o Pico da Lombada, ponto mais alto do parque, com 1.784 metros e uma vista incrível, e quatro grutas: da Cruz, bem iluminada
BOA ESTRUTURA Em tupi-guarani, Ibitipoca significa “pedra que estala” ou “serra que estoura”, nome possivelmente inspirado na alta incidência de raios. O parque tem três circuitos a serem desbravados, cada qual com paisagens e extensões distintas. Todos bem cuidados, sinalizados, com mirantes, escadas e até corrimões
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VALEU A PENA Thassia e João Cláudio viajaram mais de dez horas para conhecer o parque
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Local é território do lobo-guará
por uma espécie de claraboia; dos Fugitivos, que teria servido de esconderijo para escravos; dos Três Arcos, com três aberturas e grandes salões; e a dos Moreiras, com duas entradas e uma série de salões internos interligados. É bom ter lanterna e agasalhos com capuz, pois no alto da montanha o vento costuma castigar. As dicas acima também valem para o Circuito do Pião, com 11 quilômetros de extensão. É o segundo mais alto ponto do parque, com 1.722 metros de altura. No trajeto, há três grutas. Uma delas é a do Monjolinho, onde é preciso nadar e mergulhar para atravessá-la, uma experiência surpreendente para boa parte dos turistas. Também tem a Gruta do Pião, bem escuras, com formas e cores variadas, e a dos Viajantes, bem grande e que já abrigou viajantes que passaram pela região. No circuito, estão as ruínas da Capela Senhor Bom Jesus da Serra destruída pelos raios, ventos e tempestades.
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FERNANDO QUEVEDO DE OLIVEIRA/ALAMY/LATINSTOCK
Camping pode acomodar 23 barracas
RENATA MELLO/OLHAR IMAGEM
Ponte de Pedra
EVANDRO RODNEY
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Integração
O Centro de Visitação é um bom ponto de informações e leva o nome é do botânico francês Auguste de Saint-Hilaire (1779-1853), o primeiro a pesquisar e descrever flora, fauna e paisagens da região. Tem lanchonete, restaurante e estrutura para acomodar até 23 barracas de camping. Na área comum, há mesas, churrasqueiras e banheiros equipados com chuveiros de água quente. Pode parecer desconfortável e um tanto riponga a ideia de dormir em uma barraca, mas só os campistas têm o privilégio de apreciar o céu forrado de estrelas e o amanhecer em um lugar tão especial. No início de junho, o casal de advogados João Cláudio Vieira Ribeiro e Thassia Bravin desfrutava dessa experiência. “Nunca me senti tão integrada à natureza. Jamais esquecerei deste lugar, amei a Janela do Céu. É puxado, mas vale o esforço”, afirma Thassia. “Gostei de tudo, mas a curiosidade e
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EVANDRO RODNEY
Cruzeiro, na trilha Janela do Céu
RENATA MELLO/OLHAR IMAGEM
LUCIANA WHITAKER/PULSAR IMAGENS
Igreja Nossa Senhora da Conceição, na vila de Conceição de Ibitipoca
Parque Estadual de Ibitipoca Atualmente, a capacidade é de 1.200 pessoas nos finais de semana e feriados, e 300 durante a semana. É imprescindível chegar cedo. No feriado de Corpus Christi, por exemplo, quem chegou por volta das 10h não pôde entrar. O percurso de Lima Duarte ao parque é em terra e dura uma hora. Há vacas e bezerros na estradinha. n Dias úteis: R$ 10. Fins de semana e feriados: R$ 20. n Cartões não são aceitos. n Estacionamento: R$ 20 a diária. n Camping por pessoa: R$ 40, além do valor do estacionamento. Funciona de terça a domingo. n Campistas podem passear na vila, mas devem retornar até as 17h30. n Tel.: (32) 3281-1101 n peibitipoca@meioambiente.mg.gov.br. n www.ibitipoca.tur.br
Cacheira dos Macacos
a vontade de desbravar as grutas foram muito fortes para mim. Em alguns momentos eu não via fim. Não tinha visto nada parecido na minha vida”, diz João Cláudio, capixaba, que viajou por dez horas até chegar ao parque. “Nossa expectativa é que o visitante sempre saia com algo a mais do que quando entra. Que entenda a importância de uma unidade de conservação, perceba mais a fauna, flora. Tudo isso desperta a consciência de se cuidar mais da natureza. Aqui há cerca de 70 cavidades naturais, oito abertas ao público”, conta o biólogo João Carlos Lima de Oliveira, que gerencia o parque. Com frequência, há pesquisadores e estudantes no local, considerado o segundo melhor parque do Brasil pelo ranking do site TripAdvisor, cuja seleção é feita a partir das avaliações e opiniões de viajantes. Além de desbravar os circuitos do parque, também há passeios nas fazendas do entorno e na pequenina Vila de Conceição de Ibitipoca, com pousadas, restaurantes de comida mineira e lojinhas. O caseiro e típico pão de canela é imperdível. Também há cervejas artesanais e festivais de blues, jazz e reggae em diferentes períodos do ano. REVISTA DO BRASIL
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curtaessadica
Por Xandra Stefanel
Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar
Entre novembro e dezembro de 1983, aos 21 anos, Cássia Eller fez registros caseiros de várias músicas das décadas de 1960 e 1970 apenas com voz e violão. Dez canções dessa fase inicial da carreira da cantora recheiam o álbum O Espírito do Som Vol. 1 – Segredo, distribuído pela gravadora Coqueiro Verde Records. O destaque é a música-título, Segredo, de autoria de Luiz Melodia, na qual Cássia encarna com intensidade o “ódio interno marcado/ Guardado/ Fincado, pregado, lacrado” do blues. Sua Estupidez, de Roberto e Erasmo Carlos, Ausência, de Ednardo, Ne Me Quite Pas, de Jacques Brel, Airecillos, de Marlui Miranda, For No One e Happiness is a Warm Gun, dos Beatles, também fazem parte do álbum. R$ 24,90.
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Antes da fama
Depois de oito anos sem gravar disco de inéditas, o cantor e compositor paraibano Chico César lança Estado de Poesia, álbum em que equilibra doses de paixão e crítica social nas 14 faixas. Em Negão, ele dispara contra o racismo: “Negam que aqui tem preto, negão/ Negam que aqui tem preconceito de cor/ Negam a negritude, essa negação”. Com Reis do Agronegócio, ataca o lobby da “bancada do boi” que faz crescer o latifúndio, o uso dos pesticidas e dos transgênicos, reduzindo cada vez mais as terras indígenas, quilombolas e as reservas. Chico também revisita a Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa, em No Sumaré, sobre como a burguesia do bairro onde mora, na zona oeste de São Paulo, expulsou dois moradores de rua que cuidavam de uma praça. R$ 20, em média. 48
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Crítica e paixão
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Cora feminista As secretarias municipais de Cultura e de Políticas para as Mulheres inauguraram a primeira sala temática feminista de São Paulo, na Biblioteca Cora Coralina, em Guaianases, na zona leste. Com uma das salas ambientada, a biblioteca oferece um acervo com mais de mil obras para consultas, estudos e pesquisas. Além do acesso ao acervo, a intenção
é promover continuamente atividades culturais que discutam a questão de gênero, com sessões de cinema, música, teatro, literatura, rodas de conversa e oficinas. Rua Otelo Augusto Ribeiro, 113, Guaianases, São Paulo. Mais informações: www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/ secretarias/cultura.
Um ano depois de lançar O Mercado de Notícias, filme que desmistifica a essência do jornalismo, o cineasta gaúcho Jorge Furtado apresenta seu novo filme, Real Beleza, nos cinemas em agosto. A trama conta a história do fotógrafo João (Vladimir Brichta) que, depois de encontrar a modelo ideal (Vitória Strada) numa cidade do Rio Grande do Sul, precisa convencer o pai dela (Francisco Cuoco) a deixá-la seguir carreira. O problema maior é que João acaba se apaixonando por Anita (Adriana Esteves), mãe da moça. O longa-metragem roteirizado pelo próprio Furtado tem direção de fotografia de Alex Semambi, que deu ainda mais cores às paisagens naturais de Garibaldi, Três Coroas e Porto Alegre, onde foi filmado.
Cada um, cada um O que é ser bonito(a) de verdade? Seguir os padrões de beleza ou se sentir confortável e se assumir? Este é o dilema da Chinelinha, personagem do livro Chinelinhos Brasileiros (Cortez Editora, 24 págs.), da pedagoga Silmara Rascalha Casadei, com ilustrações de Joana Velozo. Tratase de uma pequena “chinela” de dedo que está em busca do amor perfeito, mas coloca a beleza (própria e dos outros) acima de tudo. Depois de uma decepção, com o intuito de “melhorar” a própria aparência, ela começa a usar artefatos que a deixam desconfortável e descontente. O livro chama a atenção do público infantil sobre os limites do próprio corpo, sobre a importância da autoestima e de não se submeter a padrões de beleza. R$ 28.
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Belezas
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VITOR NUZZI
Os sobreviventes Ghiggia e Barbosa viveram e morreram de forma humilde, sem o glamour dos tempos modernos. Mas protagonizaram o maior dos silêncios que um estádio de futebol já escutou
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ex-presidente do Uruguai José Mujica, agora senador, tinha 15 anos quando a Celeste Olímpica, como é conhecida a seleção de seu país, disputava a Copa do Mundo de 1950. A um portal de Montevidéu, ele contou recentemente que escutou a partida final por um velho aparelho, e durante o jogo “estava pouco menos que metido dentro do rádio”. Era 16 de julho. Estavam em campo o Uruguai, campeão em 1930, e o Brasil, que ainda não era o país do futebol e precisava apenas de um empate para ganhar o seu primeiro título mundial. A história todo mundo conhece. A seleção brasileira fez 1 a 0, o Uruguai virou e tornou-se bi, calando 200 mil pessoas no recém-construído Maracanã, no nosso maior trauma esportivo e social, de um certo ponto de vista, em um país ainda em formação. Pelo menos até a Copa do ano passado, novamente disputada no Brasil, quando a Alemanha fez aqueles inesquecíveis 7 a 1. Mas o jogo de 1950, nunca olvidado, voltou a ser lembrado por uma coincidência histórica: Ghiggia, atacante que fez o segundo gol uruguaio, morreu exatamente em 16 de julho, 65 anos depois do duelo do Maracanã, quando se decidiu que o Brasil nunca mais usaria camisa branca. Justamente o último atleta uruguaio vivo daquele time, Alcides Ghiggia tinha 88 anos. Cunhou uma frase célebre: “Apenas três pessoas calaram o Maracanã: o papa, Frank Sinatra e eu”. O goleiro brasileiro, Barbosa, é dono de outra frase marcante, ao lembrar que a pena máxima no Brasil é de 30 anos, mas ele cumpria sentença “perpétua” por causa daquele gol. Moacyr Barbosa morreu em 2000, aos 79 anos. Pois sua filha “de adoção”, Tereza Borba, contou que esses dois personagens do futebol e da história de seus países, que marcaram para o bem e para o mal, eram amigos. E se visitaram algumas vezes, no Rio e em Montevidéu. O futebol e a vida mostram suas faces. Antes do jogo decisivo, dirigentes do Uruguai foram embora e largaram os jogadores à própria sorte. No dia seguinte, os atletas eram heróis. Mas também se impressionavam com a tristeza dos brasileiros. O capitão da Celeste, Obdulio Varela, conta que saiu à noite para beber, sem ser reconhecido, e testemunhou o impacto daquele jogo nas pessoas. A seleção uruguaia se hospedou em um hotel que existe até hoje, no bairro do Flamengo, zona sul do Rio. Tempos em que o futebol era modesto fora de campo, sem o 50
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peso econômico de hoje, mas grande no gramado. Já Barbosa foi escolhido como um dos vilões, talvez o principal. Antes do jogo, as autoridades brasileiras praticamente davam o título ao Brasil. Sua filha conta que, no final da vida, ele estava razoavelmente reconciliado com o passado, apesar do abatimento com a derrota. Pepe Mujica lembra de ter saído às ruas como um doido para comemorar. “Talvez quando se foi a ditadura, mas nunca vi tanta alegria resumida em um povo”, diz, sobre a festa em 1950. A final foi tema de livros, como o marcante Anatomia de uma Derrota, de Paulo Perdigão – que inspirou um curta de Jorge Furtado, Barbosa, em 1988, quando o personagem vivido por Antônio Fagundes, um menino que viu o jogo, volta no tempo para tentar impedir o desfecho. Ou documentários, como o recente Maracaná, lançado em 2014 pelos uruguaios Sebastián Bednarik e Andrés Varela. O escritor Eduardo Galeano também narrou a epopeia de 1950. Ghiggia e Barbosa, personagens da história, viveram e morreram de forma humilde. Sem o glamour dos tempos modernos. Mas protagonizaram o maior dos silêncios que um estádio de futebol já escutou. Tereza disse que o uruguaio será muito bem recebido pelo brasileiro. No céu, “onde vão jogar pelada”.
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