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SEM LEI E SEM ATENDIMENTO Agência Nacional de Saúde prioriza o lucro dos convênios

A ARGENTINA VAI ÀS URNAS Oposição perde força e candidato de Cristina é favorito

nº 111 outubro/2015 www.redebrasilatual.com.br

urélio Mello A o rc a M , ri a ll a Dalmo D amento d n fu m e e v o ã n e Ayres Britto peachment em im

MAS MELHORA, DILMoA essiv Movimentos criticam ajuste rec ento e cobram retomada do crescim


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ÍNDICE

EDITORIAL

8. Economia

Documento: Por um Brasil Justo e Democrático

14. Política

Uma frente contra o golpe e pela volta do crescimento

18. Entrevistas

Dalmo Dallari, Marco Aurélio Mello e a defesa da Constituição

22. Saúde

LIDYANE PONCIANO

Criada para regular os planos de saúde, a ANS falhou

26. América Latina

Cristina Kirchner tem a chance de fazer o sucessor no 1º turno

32. Música

Lançamento da Frente Brasil Popular: defesa da soberania nacional

Gonzaguinha, original e sempre aberto a começar tudo outra vez

Os fins e os meios

36. História

Quem derrubou os aviões da Panair

E

40. Cinema

LÉO MALAGOLI/ACERVO SVMA

Mulheres na ditadura: as golpistas e as libertárias

O verde ainda existe em São Paulo

42. Viagem

Um polo de ecoturismo em plena periferia de São Paulo

Seções Destaques do mês Marcio Pochmann

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Emir Sader

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Lalo Leal

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Curta essa dica

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Atitude: Rodrigo Gomes

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nquanto esta edição era concluída, a presidenta Dilma Rousseff tentava, com uma reforma ministerial e um pacote fiscal, abrandar a crise de governabilidade; afastar riscos de o Congresso se aventurar em um processo de impeachment, ilegítimo e perigoso; evitar que esse mesmo Congresso, que cobra austeridade da presidenta, aprove pautas que levariam a rombos orçamentários; e garantir ainda que o Parlamento aprove medidas do ajuste fiscal, que a equipe econômica considera vitais para resistir à crise. No mesmo período, repercutia um documento de um grupo de intelectuais e formadores de opinião no campo progressista. O trabalho, tema de reportagem desta edição, defende que a crise econômica por que passa o país não poderá ser debelada com um ajuste tão apertado a ponto de prolongar a recessão de efeitos perversos no mercado de trabalho. Segundo o documento, enquanto persistir nesse aperto, o governo não vai retomar o caminho do crescimento sustentável, combinado com os eleitores há um ano. Sem deixar de travar a batalha pela agenda econômica, esses mesmos setores se preocupam com a estabilidade democrática. Como você verá em outra reportagem desta edição, a Frente Brasil Popular, um amplo leque de organizações e integrantes de diferentes partidos, abraça também a tese de que toda tentativa de golpe contra a presidenta, mais do que derrubá-la, tem a finalidade de impedir a expansão dos direitos sociais e do crescimento com distribuição de renda. As “forças ocultas” querem destruir não apenas o governo, como também todo pensamento e força política ameaçadora dos interesses que dominam o país desde Cabral. Enquanto você lê esta edição, é provável que nem a oposição partidária e midiática acredite mais em impeachment e já esteja dedicada apenas ao esforço de “sangrar” a presidenta. O objetivo será manter inflamada a crise política, econômica e moral, e explodir qualquer possibilidade de Lula voltar em 2018. Os jornais, provavelmente, estarão enlameando a reputação do ex-presidente. E encobrindo a as contas na Suíça e a gravidade dos crimes de que é acusado o presidente da Câmara, Eduardo Cunha – o que nivela a índole da imprensa à de seu protegido. REVISTA DO BRASIL

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www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Helder Lima, Hylda Cavalcanti, Rodrigo Gomes e Sarah Fernandes Arte Leandro Siman Iconografia Sônia Oddi Capa Márcia Minillo/RBA Luisa Santosa/RBA (ANS) Santiago G. Heguia/Télam (Argentina) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 (Carla Gallani) Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Tiragem 131 mil exemplares

Conselho diretivo Adi dos Santos Lima, Admirson Medeiros Ferro Jr., Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eliana Brasil Campos, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Raimundo Suzart, Raul Heller, Roberto von der Osten, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior

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redebrasilatual.com.br Tragédia anunciada e premiada

JOSÉ CRUZ/AGÊNCIA BRASIL

Manifestação em Brasília: em conflitos, só indígenas são presos

O presidente da Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul, Junior Mochi (PMDB), mandou prender o advogado Rogério Batalha Rocha, do Coletivo Terra Vermelha, a pedido da deputada Mara Caseiro (PTdoB). Ele era um dos 200 manifestantes que protestavam em 24 de setembro contra a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para investigar o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – organização com histórico de luta em defesa dos direitos das comunidades tradicionais. Os manifestantes pediam, em contrapartida, uma CPI do genocídio indígena. Em 12 anos, 390 indígenas foram assassinados na região. Quanto à CPI instalada, o Cimi afirma não ter nada para esconder. Para a entidade, “a intenção é tirar o foco da violência e dos ataques paramilitares patrocinados e realizados por milícias armadas, comandadas por esse setor ligado ao agronegócio”. bit.ly/rba_ruralistas 6

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A bancada conservadora na Câmara dos Deputados só pensa “naquilo”. Entidades que defendem os direitos da comunidade LGBT consideraram como “discriminatória” e “fundamentalista” a definição de família apenas como a união entre um homem e uma mulher, prevista no Estatuto da Família, cujo texto-base foi aprovado por uma comissão especial. O projeto ainda tem de ser apreciado no plenário e, se aprovado, pelo Senado. “Este texto é um ataque à cidadania de todos, por privilegiar um tipo de família em detrimento dos outros. Ele exclui, por exemplo, as famílias homoafetivas, os filhos de mães solteiras e as crianças que são criadas pelos avós. Um quarto da população está excluída desse projeto homofóbico e hipócrita, de quem não quer ver a realidade”, diz o secretário de Educação da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), Toni Reis. Segundo o projeto, a opção sexual dos integrantes é mais importante que o amor para a concepção de uma família. bit.ly/rba_familia

WWW2.CAMARA.LEG.BR

O amor é dispensável?

A notícia de que o governador paulista Geraldo Alckmin (PSDB) será premiado no Congresso Nacional por sua gestão na crise da água revoltou o coordenador do Coletivo de Luta pela Água, Edson Aparecido: “Isso é mais absurdo do que a própria crise. Ela é resultado justamente da incapacidade de gestão e planejamento do próprio governador Alckmin, que não deu ouvido a avisos, não investiu, não cumpriu promessas que ele mesmo fez na crise de 2003. Esse tipo de premiação é incentivo à má gestão”. Alckimin foi um dos vencedores do Prêmio Lúcio Costa de Mobilidade, Saneamento e Habitação, oferecido pela Câmara dos Deputados neste 13 de outubro Segundo o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, o governo recebeu diversos alertas sobre a necessidade de um plano de contingência contra a escassez. O nível do Sistema Cantareira, principal fonte de abastecimento da Grande São Paulo e adjacências, terminou o mês com -13%, considerada a reserva técnica, ou o chamado volume morto. O prêmio caiu como piada pronta nas redes sociais com reações sugerindo também o “Prêmio Infância Protegida ao casal Nardoni” ou “Nobel da Paz para Bolsonaro”. Seria cômico se não fosse trágico. bit.ly/rba_premio_alckmin

Selvageria parlamentar

Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook


MARCIO POCHMANN

Desenvolvimento na agenda; não à recessão Dilma tem a oportunidade histórica de se reinventar nas asas do desenvolvimentismo renovado e com base de apoio que faça jus aos 54 milhões de brasileiros que lhe deram vitória consagradora em 2014

A

transição da ditadura (1964–1985) para o regime democrático na primeira metade da década de 1980 foi acompanhada da produção do documento Esperança e Mudança, que apontou as orientações fundamentais para um novo país ainda em construção. Na época, a economia brasileira encontrava-se exposta à mais grave recessão econômica (1981–1983) desde a crise de 1929, responsável pelo desvio da rota de expansão considerável da industrialização nacional. Decorridos mais de 30 anos sem que a maioria das proposições do documento Esperança e Mudan­ ça tenha sido implementada, constata-se, por exemplo, que o peso da indústria na economia nacional encontra-se atualmente abaixo de 10% do Produto Interno Bruto, enquanto era superior a um terço da produção nacional. A se manter essa trajetória, o Brasil chegará em 2020 praticamente sem indústrias relevantes. Ao mesmo tempo, constata-se que a economia nacional ingressou neste ano de 2015 na mais grave recessão dos últimos 25 anos, cujos resultados perversos para o conjunto da população são inegáveis. Diante disso, novamente um conjunto de renomados intelectuais brasileiros vem a público apresentar um novo documento que busca recolocar o tema do desenvolvimento no centro da agenda nacional, ao contrário da recessão em curso. O documento Por um Brasil Justo e Democrático (leiareportagemnaspáginasseguintes)compreende uma iniciativa democrática para um amplo, plural e suprapartidário debate sobre os rumos possíveis do Brasil. Parte do diagnóstico de que as conquistas obtidas de forma inédita pela combinação do crescimento econômico, das políticas de enfrentamento da desigualdade e do regime democrático não podem ser interrompidas. Ao contrário, precisam avançar. E, para isso, deve-se compreender que a eco-

nomia não se constitui como um fim em si mesmo, mas um meio para que o padrão de vida do conjunto da sociedade possa ser continuamente elevado. Recolocar a condução da economia a serviço do conjunto da sociedade pressupõe abandonar a atual trajetória da recessão, conforme evidencia o volume 1 do documento, sobretudo quando enuncia que é preciso mudar para sair da crise, a partir de caminho alternativo para o país voltar a crescer de forma sustentada. O volume 2 do mesmo documento aponta para a construção do Brasil que queremos, oferecendo subsídios a um projeto de desenvolvimento nacional de médio e longo prazos. Não pode ser mais possível manter a “postura de avestruz de enfiar a cabeça no buraco”, como forma de procurar fugir dos enormes desafios que a sociedade atualmente enfrenta. Encarar os problemas requer a reorganização de uma nova maioria política que supere os limites impostos pela estrutura conservadora que sustenta o receituário neoliberal protagonizado pelos meios de comunicação e parcela dos políticos herdeiros do poder econômico dominante. Esse tipo de encruzilhada política o presidente Juscelino Kubitschek também encontrou no início do seu mandato (1956–1961) frente ao receituário de austeridade fiscal imposto pelo Fundo Monetário Internacional e a uma base de apoio de apenas um terço no Congresso Nacional. Mas JK não se acomodou, construiu a legitimidade presidencial com uma agenda desenvolvimentista (Plano de Metas), cujo lema era 50 anos em cinco. Guardada a devida proporção, a presidenta Dilma tem a oportunidade histórica de se reinventar nas asas do desenvolvimentismo renovado e com base de apoio que faça jus aos 54 milhões de brasileiros que lhe deram vitória eleitoral consagradora em 2014. Querer é poder, conforme ressalta o ditado popular. REVISTA DO BRASIL

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ECONOMIA

Emprego e renda como meta Intelectuais de correntes progressistas questionam intensidade recessiva do ajuste fiscal e formulam propostas de condução da economia mais voltadas ao crescimento e menos reféns do terrorismo de mercado Por Helder Lima 8

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ECONOMIA

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ausou furor na imprensa conservadora o documento Por um Brasil Justo e Demo­ crático, lançado no final de setembro com a assinatura de 200 personalidades – entre economistas, sociólogos, advogados, urbanistas e outros profissionais de pensamento progressista e considerados formadores de opinião. Por ter a Fundação Perseu Abramo (FPA), ligada ao PT, como uma de suas organizadoras, colunistas e editores pareciam divertir-se com uma suposta “notícia” de que o partido da presidenta, ao se “insurgir” contra a política econômica, poderia apimentar a crise política que arde diariamente nos jornais, revezando com o catastrofismo econômico. A conduta, entretanto, não inibiu os idealizadores da iniciativa, entre os quais se incluem Plataforma Política e Social, Brasil Debate, Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento e Rede Desenvolvimentista. O presidente da FPA, Marcio Pochmann, rebate com serenidade a pressão dos jornais, de que a iniciativa seria um “fora Levy”. “Não estamos aqui para defender essa ou aquela pessoa. A nossa proposição é de conteúdo sobre os rumos do Brasil”, afirma o economista, também colunista da Rede Brasil Atu­ al, sem abrir mão do direito ao debate e à crítica. “Já tivemos experiência no período recente com as mesmas medidas aqui defendidas (no documento) e que deram resultados fundamentais: o país conseguiu o grau de investimento fazendo outro tipo de política”, afirmou, em referência a “medidas voltadas para o crescimento e não para o aprofundamento da recessão, com receituário que deseja corte de empregos e de renda para combater a inflação”. Os signatários de Por um Brasil Jus­ to e Democrático têm como consenso o diagnóstico de que o ajuste fiscal prejudica a atividade econômica em vez de tirar o país da recessão. “O documento se presta a evitar o terrorismo da lógica de curto prazo dos mercados especulativos”, reitera Pochmann. “Não devemos pensar pequeno. Precisamos ter clareza

de que ao apontar para a lua não podemos ficar focados no próprio dedo.” Os intelectuais defendem que a criação de empregos e renda esteja no centro da política econômica do governo, como meio de combater as desigualdades sociais e promover uma distribuição mais justa de riqueza. Segundo o trabalho, a atuação monetarista do Banco Central tem foco estreito em combater a inflação com elevação de juros, quando também deveria olhar para a proteção social. E deveria haver maior controle sobre a política cambial. “A regulamentação é frouxa e permite a especulação com a nossa moeda”, afirma o professor Guilherme Mello, do Instituto de Economia da Unicamp, também defensor de um papel de longo prazo para os bancos públicos, voltado ao desenvolvimento. “O mercado privado não teria condições de financiar o desenvolvimento se os bancos públicos – constantemente atacados por esse mesmo mercado – acabassem.”

Alternativas e subsídios

O documento tem dois volumes: “Alternativas para o Brasil voltar a crescer” e “Subsídios para um projeto de desenvolvimento nacional”. Um dos pontos de partida da análise é o de que o chamado “tripé macroeconômico”, baseado em metas de inflação, de superávit primário (economia que o governo tem de fazer para pagar juros da dívida pública) e câmbio flutuante, precisa ser flexibilizado. Para Marcio Pochmann, o ajuste fiscal exagera na redução da atividade econômica ao determinar corte de gastos públicos e reduzir a renda na economia. “A economia cresce menos, o Estado arrecada menos, e não se consegue reduzir as despesas no mesmo nível. Então, é um problema permanente. E já se fala que a recessão (antes estimada em alguns meses) pode durar até 2017, e o país não suporta essa magnitude.” O coordenador do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), João Pedro Stedile, também economista, afirma que a iniciativa desse coletivo de intelectuais é necessária para ampliar a discussão sobre a crise que o país REVISTA DO BRASIL

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está vivendo. “A burguesia apresentou como saída a volta do neoliberalismo e o governo está equivocado. Essa iniciativa (do documento) recoloca o debate em seus devidos termos, precisamos de uma nova política econômica para sair da crise. E só há saída se houver debate e mobilização em torno de alternativas concretas.” Para Stedile, a opção adotada pelo governo pode ter surgido de um “susto” com a crise política que se instalou a partir das eleições do ano passado e do agravamento da crise no cenário inter-

MARCIO DE MARCO E MARCELO VINCI/FPA

ECONOMIA

PROGRESSISTAS Lançamento de Por um Brasil Justo e Democrático: imprensa não entendeu

Crise fabricada e terrorismo de mercado no Brasil, nos Estados Unidos é 103%. Há países europeus com 150%, no Japão é 239%. Esse é o ponto de partida do documento que estamos lançando. Erros do governo Dilma Sim, foram cometidos erros na condução da política econômica do primeiro governo Dilma, mas não são os erros que os liberais dizem. Eles dizem que o mundo está maravilhoso e os problemas do Brasil têm a ver com a condução doméstica, a nova matriz econômica, excesso de intervenção do Estado etc. Isso é uma bobagem. Os desdobramentos da crise de 2008 ainda estão aí. Como efeito da desaceleração da economia global, as contas externas brasileiras pioraram. O que acontece na China não é uma nova crise, mas desdobramento de 2008. Um dos equívocos do governo Dilma é que a partir de 2013 ela começa a aumentar os juros. Em 2013, a gente gastava cerca de 4,5% do PIB com pagamento de juros, passou para 5,5% do PIB no final de 2014 e este ano estamos em 8% do PIB. Isso contribuiu para a desaceleração da economia. CEBES.ORG.BR

Se nas duas gestões de Lula e na primeira de Dilma o país criou 20 milhões de empregos formais, neste ano corre o risco de perder 1 milhão dessas vagas. A renda do trabalho também dá sinais de queda – em agosto caiu 3,5% em relação ao mesmo mês do ano anterior. “A questão fundamental é financeira. Há países com dívida bruta três vezes maior que a do Brasil que pagam a metade dos juros praticados aqui. Esse é o grande desajuste fiscal brasileiro”, afirma o Eduardo economista e professor da Unicamp Eduardo Fagnani Fagnani, um dos autores do documento Por um Brasil justo e democrático. Nessa discussão, é difícil separar política de economia. Na verdade, para Fagnani, o cenário econômico foi contaminado pelo cenário político, pois a crise não encontra nos dados a gravidade defendida pelos “neoliberais”. Mais do que isso, o economista identifica um esforço da direita em desconstruir o governo. “Então, é uma crise totalmente fabricada, de certa forma, pelo terrorismo econômico do mercado”, mesmo em meio a um cenário em que FMI, Banco Mundial e diversos países já fazem autocrítica à austeridade fiscal. Confira outros tópicos da entrevista concedida por Fagnani à Revista do Brasil. Cenário internacional Quando você olha os outros países, especialmente os desenvolvidos, nota que o desemprego cresce em geral, com exceção dos Estados Unidos mais recentemente. A inflação no Brasil não estava fora de controle. Entre 2009 e 2014, todos os países desenvolvidos têm déficits primários de mais de 5% ao ano. O Brasil durante 14 anos fez superávit primário em torno de 3% do PIB. Nenhum outro país do mundo fez esse esforço. Com o déficit de 0,6% no ano passado querem criar uma sensação de caos, e mesmo o déficit nominal, que incorpora os juros, desde o começo da década passada é em torno de 5% do PIB. A mudança expressiva ocorre somente em 2014, com aumento para 6,7%.

Alternativas no combate à inflação A questão fundamental é que a inflação no Brasil não é de demanda, então, é inócuo aumentar a taxa de juros. Por outro lado, como você vai fazer um superávit primário e cortar despesas não financeiras se você aumenta a despesa financeira com a elevação dos juros? Como é que você faz um ajuste fiscal, se as despesas financeiras aumentam? O ajuste foi vendido como algo necessário para restabelecer a confiança dos empresários, que voltariam a investir, mas isso não tem sustentação. Se a economia global e a interna desaceleram com políticas de austeridade, você aprofunda a recessão. E a primeira reação dos empresários é não querer pagar mais impostos. Então, a receita cai mais. Isso acaba levando a um ajuste fiscal sem fim.

Dívida interna A dívida interna em relação ao PIB baixou, do começo da década passada até 2013, de 60% do PIB para 33%. Em 2014, ela subiu um pouco, mas quando você olha a dívida interna em relação aos outros países ela está ótima. A dívida bruta é 65% do PIB

Questão social e desemprego Nós saímos de 13% de desemprego em 2001 e 2002 para 4,8% em 2014. Agora já está em 8,6% e a previsão para o final do ano é que chegue a 9%. Em um ano de ajuste regredimos no esforço feito. Vários economistas neoliberais diziam em 2013 que não

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ECONOMIA

Um dos argumentos centrais que o documento pretende desmontar é o de que a dose recessiva de ajuste se impôs, e a razão disso seriam “erros” de condução, o Estado brasileiro “gasta” muito, a “máquina é inchada”. Entre os tais erros estaria a “brincadeira” das desone-

rações de impostos – termo usado pelo próprio Levy no início de sua gestão ao criticar os incentivos fiscais do governo destinados a estimular setores da indústria a enfrentar a queda de atividade econômica sem demitir. Para os autores de Por um Brasil Justo e Democrático a

ISIS MEDEIROS/BRASIL POPULAR

nacional, que desta vez recai com mais força sobre Brasil, Rússia e China. E a saída via política de austeridade seria, em sua visão, um “aceno do governo à burguesia” para tentar se proteger. “E quanto mais o governo oferece, pior fica a situação.”

LUTA DE CLASSES Belo Horizonte se manifesta contra o ministro da Fazenda. Segundo Marcio Pochmann, “os assinantes de Por um Brasil Justo e Democrático não estão aqui para defender essa ou aquela pessoa. Nossa proposição é de conteúdo sobre os rumos do país”

seria possível fazer a inflação voltar para o centro da meta com o pleno emprego, seria preciso demitir sim. Está aí o resultado. Vamos baixar a inflação com o desemprego. Isso é tarefa da política econômica? Tripé macroeconômico Nós seguimos no Brasil uma gestão ortodoxa do chamado tripé macroeconômico: regime de metas de inflação, câmbio flutuante e superávit primário. O Banco Central é independente, sua única missão é fazer a inflação ir para o centro da meta, e só tem uma bala na agulha, que é aumentar a taxa de juros. Essa gestão ortodoxa está superada, nem FMI e Banco Mundial defendem. Já fizeram uma autocrítica, diversos países já flexibilizaram esse tripé. Vários países adotam para o Banco Central duas missões: combater a inflação, mas cuidar do bem-estar e combater o desemprego. O FED (Banco Central norte-americano) faz isso. Por que há dois anos o FED retarda o aumento da taxa de juros? Entre outros fatores, porque ele sente que a recuperação do emprego está boa. Ou seja, até a meca do imperialismo tem a missão de combater a inflação e cuidar do desemprego. Reformas conservadoras Estão sendo propostas pelo Congresso Nacional reformas como o projeto de terceirização ilimitada. Elas podem cortar as pontes para um projeto de desenvolvimento. Vários mecanismos institucionais e financeiros estão sendo destruídos. Nosso objetivo é ampliar esse debate. Desigualdade O desafio do Brasil para o futuro é encarar a desigualdade,

suas diversas faces, na renda, no trabalho, tributária, na riqueza agrária, na urbana, na oferta e no acesso de bens e serviços públicos, como saúde e educação. E a macroeconomia deveria estar a serviço desse projeto, assim como a consolidação da democracia e a reforma política. É fundamental manter as conquistas da Constituição de 1988 – um marco no processo civilizatório brasileiro. E essas conquistas estão ameaçadas. Tem economistas que passaram a transmitir em forma de mantra que você só vai resolver a questão fiscal no Brasil se nós revermos o pacto social da democratização. Estão culpando a cidadania, o fato de que depois de cinco séculos houve um avanço de direitos básicos. A crise econômica abre espaço para que propostas conservadoras voltem à cena e uma delas é essa. Não podemos ficar restritos ao debate imposto pelo setor financeiro. Frente Brasil Popular A nossa ideia a partir do lançamento do documento é ampliar os fóruns de debates em torno dessas questões, promover discussões. A gente vê a Frente Brasil Popular (lançada no início de setembro) como uma alternativa promissora para tentar aglutinar mais os setores da esquerda em defesa da democracia, da legalidade, dos direitos sociais, e para isso é fundamental você mudar a política econômica. Essa opção liberal de política econômica impulsiona tentativas golpistas. A nossa democracia é um evento tão recente e incipiente e até para a defesa da democracia é necessário mudar a política econômica. Existem outras alternativas, existe uma outra agenda que a gente também tem de se debruçar sobre ela, e não ficar restrito à agenda proposta pelos setores conservadores e pelo sistema financeiro. REVISTA DO BRASIL

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ECONOMIA

tentativa de criação de uma nova matriz econômica alternativa ao neoliberalismo – responsável pelo crescimento da renda do trabalho, pelo cenário de quase pleno emprego, a redução da pobreza e a expansão da classe média – incomoda a gestão financeirizada da economia do planeta. Tanto incomoda que a situação dada como catastrófica frente à situação do país pelos meios de comunicação está, na avaliação dos organizadores do documento, longe de ser uma realidade – uma vez que o Brasil ostenta indicadores econômicos e sociais superiores aos de muitos países. Na avaliação do professo da Unicamp Pedro Rossi, esse trabalho é um contraponto a todos esses argumentos. “Principalmente entre 2005 e 2011, houve um aumento do mercado consumidor e da capacidade de oferta; o investimento também cresceu sistematicamente, não foi artificial”, defendeu, ressaltando que a taxa de investimento no país chegou a 19% do PIB em 2010. Mas ele admite que faltou sintonia entre a economia e o crédito, e que o padrão de consumo no país foi modernizado sem mudanças na infraestrutura da economia. Para Rossi, um dos erros fundamentais do primeiro mandato de Dilma Rousseff foi a ausência de contrapartida dos empresários em relação às desonerações oferecidas pelo governo. “Os empresários engordaram suas margens de lucro, mas não deram retorno. Seria mais importante ter um plano de gastos do que de desonerações”, afirmou. Segundo Rossi, o discurso da crise que se tornou dominante buscou instalar um clima de terrorismo fiscal já em 2014, quando ainda não havia nada que apontasse para uma crise grave. Sobre o resultado primário negativo no ano passado (-0,6%), depois de anos de resultados positivos, o professor afirma que foi um desempenho melhor do que em outros países. “Nossa dívida caiu e não estamos com o FMI na porta. Mas o ajuste está piorando as contas fiscais, estamos pior hoje do que em dezembro de 2014”, afirma. “Irresponsabilidade fiscal é jogar o país numa recessão.” 12

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Economia no Brasil e em países desenvolvidos Dados da macroeconomia mostram que os fundamentos do Brasil são melhores do que nos países europeus, mais Estados Unidos e Japão

Desemprego nos países desenvolvidos e no Brasil em 2014 (em % da População Economicamente Ativa – PEA) 25.3 24.6

Alemanha tem a taxa mais baixa de desemprego entre europeus 14.2 12.6 11.2

10 6.3

5.3

6.3

5.5 3.7

Irlanda

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Espanha

Portugal

Itália

Alemanha

França

Reino Unido

Estados Unidos

Japão

Brasil

Dívida pública (bruta) nos países desenvolvidos e no Brasil (média entre 2011-2014, em % do PIB)

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Irlanda, Grécia, Portugal, Itália, Estados Unidos e Japão têm dívida maior do que o PIB

169

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Irlanda

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Zona do Euro

Brasil

Resultado primário no Brasil (por ano, em % do PIB) 3.9 3.5 3.6 3.2

3.7

3.8

3.3

3.2

3.3

3.4

3.1 2.7

Resultado de 2014 é o único negativo desde 1999 2.4

2

1999

2000

2001

Média 1999-2003

2002

2003

3,5

2004

2005

2006

2007

2008

2009

1.9

2010

2011

2012

2011-2013 FONTE: FMI/IBGE – ELABORAÇÃO GOMES & CRUZ (2015)

2013

2014

3

2004-2013

2,5

-0.6


EMIR SADER

As armas do império No momento em que a América Latina avança em soluções pacíficas de seus conflitos, como aquele entre as Farc e o governo colombiano, os EUA aumentam a presença de suas tropas na região

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s negociações de paz na Colômbia entraram numa fase de não retorno, com as definições sobre os temas da Justiça. O processo entra numa fase final, com a desmobilização militar das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e a assinatura dos acordos definitivos de paz em março de 2016. A região confirma assim a sua caracterização com uma região livre de guerras. Enquanto em outras regiões do mundo se multiplicam focos de guerra, sem que nenhum processo de negociação pacífica dos conflitos se desenvolva – ao contrário, só se agudizam os conflitos e todas suas dramáticas consequências, mortos, feridos, exilados, entre outras. No entanto, no exato momento em que a América Latina avança em processos e resoluções pacíficas dos seus conflitos – não apenas aquele entre as Farc e o governo colombiano, mas entre este e o da Venezuela –, os Estados Unidos aumentam a presença de suas tropas na região. Isolado politicamente na América Latina como nunca na sua história, os Estados Unidos tiveram de sofrer a expulsão da sua base militar em Manta, no Equador. Assim que Rafael Correa foi eleito presidente, os norte-americanos se puseram a buscar outros países para acomodar suas tropas na região. Escolheram a Colômbia, quando tinham em Álvaro Uribe um aliado incondicional. Preparavam-se para instalar oito bases militares, no marco da Operação Colômbia, o que tornou o país o segundo destinatário de apoio militar dos Estados Unidos. Mas o Judiciário colombiano atendeu a demandas da inconstitucionalidade da instalação das bases e as vetou. Terminado o mandato de Uribe, o novo presidente, Juan Manuel Santos, não rejeitou

a decisão do Judiciário e frustrou assim essa tentativa norte-americana. O golpe branco contra o ex-presidente paraguaio Fernando Lugo – vítima de um processo de impea­ chment que durou um dia e meio – não demorou a revelar suas intenções, quando o Parlamento do Paraguai autorizou a instalação de tropas dos Estados Unidos no país, com todas as condições desejadas por Washington. A ausência de outros países e a localização do Paraguai – incrustado no cone sul e na tríplice fronteira, uma obsessão americana desde os atendados das Torres Gêmeas, em 2001, além dos recursos hídricos do Paraguai, – fizeram do país o centro das operações militares no norte da América do Sul. As alegações nunca são as reais: apoio em catástrofes naturais, na luta contra grupo armado que opera no país, adestramento de tropas etc. etc. Mas não há duvida de que o interesse é de caráter militar, numa região que tem políticas, inclusive de segurança, autônomas em relação aos norte-americanos. O mesmo interesse demonstrado em relação ao Peru, outro país em que chegaram tropas norte-americanas em quantidade. As alegações são parecidas, mas a localização econômica estratégica do território para as empresas estrangeiras, assim como a dos outros parceiros que assinaram Tratado de Livre Comércio com os Estados Unidos, fizeram recair ali a outra opção norte-americana na região. Os Estados Unidos estão assim na contramão da definição da América do Sul como região livre de conflitos bélicos, que não necessita da presença de tropas estrangeiras. A conduta contradiz as decisões da Unasul sobre as necessidades de políticas de paz e de cooperação, como as resoluções pacíficas dos conflitos recentes na região têm reafirmado. REVISTA DO BRASIL

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POLÍTICA

DE FRENTE PA Setores progressistas reagem às tentativas de golpe por um projeto maior que as eleições. Para eles, não está em jogo um mandato, mas a construção da soberania nacional Por Maurício Thuswohl

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e acordo o IBGE, cerca de um terço da população brasileira tem menos de 25 anos. Essa falta de memória prática em relação ao último período de ditadura no país, que só teve sua normalidade democrática restabelecida em 1989, talvez ajude a explicar por que a proposta de impeachment da presidenta Dilma Rousseff tenha prosperado no seio de alguns setores da população insatisfeitos com o governo ou que simplesmente querem ver o PT fora do poder. Fora isso, grande parte dos que viveram o autoritarismo não sabia exatamente de tudo o que ocorria porque o acesso à informação era um dos mais importantes direitos cerceados. Hoje, na ausência de censura, o processo de desinformação fica por conta dos próprios meios de comunicação. São eles os porta-vozes dos setores empresariais e financeiros que historicamente sempre tentaram se apropriar da política – como em 1954, no momento que levou ao suicídio de Vargas, ou em 1964, quando esses atores sociais batizados de “forças ocultas” pelo ex-presidente Jânio Quadros contaram com apoio militar para tomaram o poder. O longo período de ditadura coincidiu com o agravamento da concentração de renda, a obstrução dos direitos sociais, o sucateamento dos serviços públicos em benefício da expansão dos negócios privados – como na educação e na saúde. A reconstrução da democracia representou também a oportunidade de restauração dos direitos humanos, sociais, trabalhistas, de organização e de participação na vida política do país – a Constituição de 1988 é ponto emblemático do processo 14

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POLÍTICA

FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

ARA O BRASIL

de reconstrução nacional. Mas aquelas tais “forças ocultas”, novamente tendo como fio condutor os meios de comunicação, voltam à carga com a ameaça golpista, desta vez travestida de uma tentativa de impeachment sem nenhum amparo legal. Diante da ameaça, várias frentes têm sido criadas no Brasil para defender a democracia e buscar formas de dar fim a uma crise política que tem alguns elementos concretos – como a eleição de um Congresso de maioria conservadora e disposto a rever direitos sociais. E muitos elementos criados artificialmente pela narrativa em sintonia com o discurso oposicionista. É nesse cenário que foi lançada em setembro, num ato em Belo Horizonte, a Frente Brasil Popular. Na ocasião, a frente divulgou o Manifesto ao Povo Brasileiro, em que defende “ampliar a democracia e a participação popular nas decisões sobre o presente e o futuro do nosso país” e “lutar contra o golpismo – parlamentar, jurídico ou midiático – que ameaça a vontade expressa pelo povo nas urnas e as liberdades democráticas”. Já presente em 22 estados, a Frente é formada por organizações dos movimentos sociais e centrais sindicais, como CUT, UNE e MST, além de movimentos de negritude, LGBT e de mulheres, entre outros. Também integram o movimento militantes políticos e parlamentares de diversos partidos e intelectuais. Para o ex-ministro Roberto Amaral, recentemente rompido com o PSB e um dos articuladores da Frente Brasil Popular, o que está em questão é uma disputa entre o avanço e o retrocesso: “Há setores ávidos por impedir a defesa do direito dos trabalhadores, a política externa brasileira em defesa da soberania do país e a promoção das forças populares. A presidenta Dilma encarna tudo aquilo que a direita sempre detestou. A direita permite tudo na política brasileira, menos a ascensão das massas, menos o combate às desigualdades sociais”, diz. O presidente nacional da CUT, Vagner Freitas, considera que a derrubada da presidenta criaria espaço para que as forças conservadoras atacassem os direitos trabalhistas, as políticas públicas de distribuição de renda, criadas ao longo dos últimos 12 anos, os empregos. “A tentativa de golpe contra a presidenta não é motivada pelo combate à corrupção ou outras razões. Os setores que não respeitam o ­resultado das REVISTA DO BRASIL

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FABIO RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL

J R ROIZ/RAMARAL.ORG

ROGÉRIO TOMAZ JR./FLICKR/CC

POLÍTICA

Modesto da Silveira: “Estão querendo violar as regras constitucionais”

Roberto Amaral: “Há setores ávidos por impedir a defesa do direito dos trabalhadores”

Luciana Santos: “Temos de fazer a luta de conteúdo, defender imposto sobre fortunas”

urnas querem aprofundar um clima que facilite a retirada de direitos, o achatamento dos salários, criação da idade mínima para aposentadoria, terceirização sem limites. Basta observar as propostas que estão sendo defendidas no Congresso e por setores da mídia”, disse. “Ou você acredita que quem quer entrar no lugar da presidenta vai continuar se preocupando em manter programas sociais importantes criados pelo governo Lula e Dilma?”, questiona o presidente da CUT.

mo advogado se notabilizou pela defesa de políticos, sindicalistas e líderes rurais perseguidos pela ditadura militar brasileira, também ressalta a ilegalidade de um pedido de impeachment contra Dilma: “Tudo o que sai da regra constitucional de um país pode ser considerado golpismo. Está havendo essa tentativa agora, não de maneira violenta, como aconteceu em 1964. Estão querendo violar as regras constitucionais, o que pode criar graves problemas, inclusive um golpe violento, um antigolpe etc. Quando um presidente não se submete aos grandes interesses econômicos dos banqueiros e das grandes multinacionais, a tendência é desestabilizá-lo, derrubá-lo e, se necessário, até matá-lo. Aconteceu na história, em qualquer lugar do mundo”, alerta. Em 25 de setembro, Silveira participou no Rio de Janeiro do lançamento estadual­ de outra frente também constituída em defesa da democracia. O Fórum 21, já lançado em São Paulo, Porto Alegre e Brasília, conta com importante participação de intelectuais e representantes da imprensa alternativa na missão de produzir conteúdo para que organizações progressistas da sociedade civil possam elaborar saídas para a crise e deter a ofensiva da direita no país. “Mesmo nos piores momentos da vida brasileira, sob a repressão de um aparato ditatorial impiedoso e da censura mais esférica à opinião democrática e progressista, conseguimos reunir as reservas mo-

rais e intelectuais da nação para reagir. Felizmente, não vivemos hoje sob uma ditadura das armas. Mas, enfrentamos um compacto sistema de asfixia ideológica e financeira, talvez inédito na história nacional. Ele sonega à sociedade o debate desassombrado do passo seguinte do nosso desenvolvimento, em meio a um recrudescimento da crise mundial; interdita projetos alternativos ao receituário conservador e desqualifica a política, portanto, a democracia, como verdadeiro lócus de um futuro hoje capturado pela usurpação dos mercados”, diz em manifesto o Fórum 21, entidade que conta com a participação da Rede Brasil Atual. Parlamentares de esquerda que vivem a realidade da Câmara dos Deputados, acompanham o que chamam de manobras da direita: “Há um processo inequivocamente golpista. Desrespeita a Constituição, a lei, estamos vivendo um cenário de sério risco à democracia. Isso acontece na Câmara, e tem como protagonista seu atual presidente e partidos de oposição que, combinadamente, montam o cenário para transformar a Casa em um tribunal de exceção. A presidenta Dilma tem os seus defeitos, mas não é desonesta, ao contrário de boa parte daqueles que hoje subscrevem o pedido de impea­ chment”, diz o deputado Wadih Damous (PT-RJ), ex-presidente da OAB no Rio. O deputado Chico Alencar (Psol-RJ), que faz oposição ao governo, também

Manobra inconstitucional

Especialistas dizem que faltam bases jurídicas para que se inicie o processo. Carlos Ayres Brito, ex-ministro do Superior Tribunal Federal (STF), diz que para tanto seria preciso que a presidenta incorresse em crime de responsabilidade, cometido no atual mandato. De outra forma, diz o jurista, o pedido de im­ peachment é inconstitucional: “À luz da Constituição, os mandatos não se intercalam. O crime de responsabilidade incide a partir de atos atentatórios à Constituição, como diz o Artigo 85, na fluência do atual mandato”. Em entrevista à página 18, o jurista Dalmo Dallari também sustenta esse parecer: para que Dilma seja acusada de crime de responsabilidade, seria preciso provar que ela desrespeitou a Constituição, e no atual mandato, fato que não ocorreu. O jurista Modesto da Silveira, que co16

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ISIS MEDEIROS/BRASIL POPULAR

BRIZZA CAVALCANTE/AGÊNCIA CÂMARA

POLÍTICA

Vários setores progressistas se unem na defesa da soberania, da Petrobras e contra o golpismo: os movimentos sociais não estão desatentos às manobras da direita

alerta contra as pretensões golpistas em curso: “Nós, do Psol, temos muitas divergências com os caminhos que o governo Dilma tomou e está tomando, mas isso não significa que, por divergir de um governo, possa se considerar destituí-lo. A gênese de quem propõe o impeachment hoje é autoritária e tem um quê de golpista. Os principais proponentes não têm um histórico de luta pela reconquista da democracia no Brasil e, portanto, não têm a dimensão da importância do voto para eleger prefeito, governador, presidente”, diz. A deputada federal de Pernambuco Luciana Santos, presidente nacional do PCdoB, diz que os conservadores querem impor sua agenda ao governo, apesar de terem perdido a eleição. Segundo Luciana, a atual luta política é “adversa” para a esquerda. “Temos de fazer a luta de conteúdo, defender imposto sobre grandes fortunas, a repatriação de remessas feitas ao exterior e outras bandeiras progressistas. Mas, para isso, precisamos fazer a defesa do governo Dilma. Do contrário, não haverá alternativa à esquerda. Se hoje não está bom (se Dilma cair), ficará pior”, disse. A deputada afirma que o momento não é de críticas e diferenças entre membros da esquerda, incluindo Marina Silva (Rede) e Ciro Gomes (PDT). “São atores importantes. Ciro foi solidário a Lula no primeiro mandato, em 2005. É contra o golpe e contra o impeachment. Marina tem tido uma posição firme contra o impeachment.”

Mórbida semelhança

Segundo os analistas, os atores sociais que hoje tentam desestabilizar o governo são parecidos com seus “antecedentes” políticos em outros momentos da história: “Em 1954 estava se montando um golpe profundo para as instituições. Esse movimento foi retido pelo suicídio de Vargas, que adiou esse golpe por dez anos. Os personagens do golpe de 1954 estavam todos na tentativa de impedir a posse de Juscelino em 1955, todos na tentativa de impedir João Goulart em 1961 e todos na instalação da ditadura em 1964. São as mesmas forças, a mesma oligarquia, o mesmo capital financeiro”, diz Roberto Amaral. As diferenças, é claro, também existem: “Os atores são similares, usam métodos parecidos de manipulação da imprensa, de tentar dividir e inviabilizar o país. O que muda é que, com exceção dos fascistas e débeis mentais que pedem intervenção militar, não se trata mais de pedir esse tipo de modelo. O modelo agora é manipular o que está na Constituição, interpretar à maneira golpista o que está na Constituição”, diz Wadih Damous. Para Modesto da Silveira, embora as semelhanças entre os períodos históricos “não apareçam de maneira visível e muito clara”, a motivação de entregar as riquezas nacionais – no caso atual, o pré-sal – aos interesses das economias mais ricas permanece a mesma: “Não aceitam o vice-presidente Michel Temer, que não é da total

Chico Alencar: “Talvez exista uma visão de querer chegar ao poder por vias tortas”

confiança deles. Para cumprir essa missão, querem colocar o Aécio Neves, aliado do grande capital e dos grandes grupos econômicos. Será o maior crime que o Brasil poderá ter cometido contra si mesmo se tolerar essa tentativa de entregar a Petrobras a interesses privados. A Petrobras tem a perspectiva de ser um dos maiores produtores de petróleo do mundo, portanto, ela se tornou extremamente importante neste momento para os traidores da pátria, os brasileiros a serviço de interesses estrangeiros. Esse é o golpismo atual”. Para Chico Alencar, que também é professor de História, esta não se repete: “O contexto é outro e a conjunção de forças é outra. Talvez o espírito de revanche ou uma visão de querer chegar ao poder por vias tortas que não tenham como base a manifestação livre da população seja um elemento comum. Mas, fora disso, eu não acho que seja igual, até porque o processo nem começou de verdade, são as primeiras movimentações. Do ponto de vista do poder econômico, do PIB, o governo Dilma não tem nenhuma contradição maior com as oligarquias agrárias, o setor financeiro e o grande capital. Então, não vejo contexto semelhante ao de 1964, quando havia um governo comprometido com reformas de base, ou com o Getúlio, que tinha elementos como a nacionalização e a Guerra Fria. Agora, o contexto internacional e brasileiro é outro”, diz. REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

A Constituição prevalecerá Dalmo Dallari vê processo de impeachment contra Dilma como manobra fantasiosa que não vai prosperar. Para ele, a maioria do STF é séria; e o povo também aprendeu a exigir seus direitos

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os 83 anos, Dalmo Dallari não se cansa de exercer o ofício que escolheu desde muito jovem: o estudo e a defesa do Direito, como ferramenta de promoção da justiça social e da cidadania. O jurista, respeitado no Brasil e internacionalmente, faz questão de contar sua origem modesta e os esforços que empreendeu antes de chegar à cadeira de titular da Faculdade de Direito da USP. É uma forma de estimular os mais jovens a não desistir de seus sonhos, argumenta. Ele nasceu em Serra Negra (SP), filho e neto de sapateiros. Com 14 anos foi morar na capital. Foi office boy de uma indústria, e nunca parou de ler e estudar. Conseguiu concluir o ciclo fundamental e médio de ensino por meio do antigo Madureza, espécie de “intensivão” para dar conta das exigências curriculares. Passou no vestibular na faculdade onde cursou Direito, lecionou e se aposentou, e jamais abandonou a atividade acadêmica. Até hoje atende a convites pelo país afora, e sempre leva consigo um conselho aos ouvintes: “Tenha sempre consigo um exemplar da Constituição. É muito importante”. Ele diz já ter ouvido em muitos países que a Carta Magna brasileira é uma das mais democráticas do mundo, por ter sido construída com intensa participação da sociedade e, por isso, refletir conquistas importantes da humanidade, que estão na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Segundo Dallari, esta mesma Constituição precisaria ser estrondosamente violada para que algum dos setores que hoje tentam emplacar um pedido de impeachment de Dilma Rousseff levem adiante suas manobras, que chama de “fantasiosas”. É o que ele afirma categoricamente em entrevista concedida ao programa de webTV Contraponto, produzido pelo Sindicato dos Bancários de São Paulo e o Centro de Estudos de Mídia Barão de Itararé, do qual destacam-se a seguir os principais trechos. 18

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Qual a possibilidade de um impeachment contra a presidenta Dilma se materializar?

Vivi antes de 1964 e percebi o que levou ao golpe. Havia uma exploração muito grande de uma situa­ ção nova decorrente da Segunda Guerra, da afirmação dos direitos humanos, inclusive dos direitos sociais, e entre nós houve uma associação – e tem se falado muito pouco disso – de empresários com militares. O golpe foi civil-militar. Vi claramente essa interferência do empresariado no golpe que foi apresentado como militar. Há elementos hoje que comprovam isso. Empresários deram dinheiro para contratar professores de tortura. Para contratar máquinas de torturar. Eram duas grandes forças que tinham interesses coincidentes. Queriam de qualquer maneira impedir o avanço dos direitos sociais. Havia sindicatos organizados, muita conscientização dos direitos sociais, e as elites ricas e a igreja católica mais reacionária ficaram com medo desses avanços. Inventaram a tese do “perigo comunista”. Ninguém estava querendo comunismo no Brasil, apenas uma sociedade mais justa. O dado essencial é que grupos poderosos tinham naquele momento interesses coincidentes. Se fizermos o exame dos grupos que existem hoje no Brasil, não há essa coincidência. Há uma multiplicidade de pequenos grupos, de pequenas forças. Não há um grande líder. Não há um grande partido, não há uma grande força política. Mas o processo é político, dispensa provas. E se o Congresso tomasse essa atitude?

A Constituição estabelece que a última instância é o Supremo Tribunal Federal. Então não importa se o Congresso admita “ah, vamos fazer”. Tudo fica sujeito à decisão em última instância do STF. E o STF, acompanho muito de perto, na sua maioria se orienta efetivamente pela Constituição. Eu circulo muito pelo Brasil a convite de estudantes e professores, advoga-


ENTREVISTA

GUSTAVO BEZERRA/ PT NA CÂMARA

O senhor, em 2002, escreveu um artigo que até hoje repercute alertando para o risco de se ter alguém como o ministro Gilmar Mendes no STF...

Qualquer pessoa que pega um jornal vê quantas vezes aparece o “supõe-se que... teria feito... haveria ... ganharia”. Quando sabe-se que o delator só quer tirar proveito pessoal dos, promotores, recomendando que as pessoas tenham em casa um exemplar da Constituição. É importante. A Constituição diz no artigo 85: são crimes de responsabilidade (e o impeachment tomaria por base a acusação de um crime de responsabilidade) os atos do presidente da República que atentem contra a Constituição. “Atos do presidente”, dois pontos importantes: primeiro que sejam atos do presidente, e tem gente falando em atos da Petrobras, das subsidiárias, dos ministros e não sei quem, então não são atos do presidente; mais adiante, o artigo 86 diz que o presidente da República, “na vigência de seu mandato” não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções (tem de haver um “ato do presidente” que fira a Constituição e “no exercício”, no caso, do atual mandato). Então, isso não se aplica. O Supremo barraria esse processo?

Eu tenho absoluta convicção. Eu sinto que a maioria dos ministros do STF se orienta efetivamente pela Constituição. Tem, sim, ministro que despreza a Constituição, não leva a sério. Mas nessa decisão recente a respeito da ilegalidade do financiamento eleitoral por empresas ficou evidente. A maioria se orientou pela Constituição. Por isso, essa aparência de risco de impea­ chment é uma grande fantasia. A grande imprensa explora, faz disso um escândalo, porque ainda está em campanha eleitoral. Está totalmente envolvida nesta campanha e explora fraquezas, inclusive a vaidade de alguns que querem aparecer. Alguns até do Judiciário, que não resistem a uma manchete.

Realmente, o ministro Gilmar não é um respeitador da Constituição, e ele está jogando politicamente. Basta lembrar o que aconteceu com o processo de financiamento eleitoral por empresas. O ministro segurou durante um ano e meio esse processo, de maneira absurda e irracional. Mas a possibilidade dele de interferir, de influir, de atrapalhar é limitada. Ele não vai conseguir impor ao Supremo sua orientação. Essa decisão a respeito do financiamento eleitoral por empresas deixou isso mais do que evidente. A maioria dos ministros do Supremo respeita a Constituição. E essa Constituição, eu tenho ouvido isso em vários países, é das mais democráticas do mundo, porque foi feita com muita participação popular. Tem um conteúdo humanista. Consagrou direitos tradicionais, civis e políticos, e também direitos econômicos, sociais e culturais. Por que razão os tribunais de maneira geral estão abarrotados de processos? É porque ficou muito mais fácil ir ao Judiciário. Há vários anos, na periferia de São Paulo, logo depois que saiu a Constituição de 88, eu falava nos direitos fundamentais, nos direitos humanos, nos direitos sociais, e lá no fundo uma mulher levantou a mão e disse: “Tudo isso que o senhor disse é muito bonito, mas não é para nós”. Os brasileiros mais pobres não acreditavam que tivessem direitos, e agora acreditam. Agora temos também o povo defendendo a Constituição; é um dado novo na história brasileira e extremamente importante. O senhor poderia citar algum episódio em que o ministro Gilmar atropelou a Constituição?

Isso vem de muito longe, mas eu citaria como evento uma situação muito expressiva. O ministro Gilmar Mendes é do Mato Grosso, de família de grandes proprietários de terras, e eu há muito anos sou advogado de índios – aliás, eu não pareço, mas sou índio de quatro tribos, porque as defendi, ganhei e me deram o título. Meu primeiro enfrentamento com o Gilmar Mendes foi exatamente na questão indígena. Ele defendia invasores de terras indígenas e eu defendia os direitos constitucionais dos índios, e lá ficou muito evidente que a posição dele não era determinada pela Constituição, pelo direito e pela Justiça, mas pelas conveniências, e isso realmente não era atitude de jurista. Depois se somaram outros elementos, houve uma acusação a ele, que não fui eu que fiz, mas uma grande revista da época. Ele era advogado-geral da União, e ao mesmo tempo era empresário da educação, proprietário de escola, e ele matriculou auxiliares na sua escola, mesmo que não frequentassem. Por isso a revista publicou um reportagem “Os dois lados do balcão”. O juiz Sérgio Moro não teria uma postura de promotor, mais do que juiz?

O juiz Moro de fato tem exagerado, tem agido como delegado de polícia, como Ministério Público e juiz. A minha avaliação é que houve um certo deslumbramento, a imprensa deu muita ênfase, foi uma glorificação. Ele é um ser humano e eu tenho dito: não perca de vista que os juízes são seres humanos. Eu REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

sempre fui contra a transmissão das decisões, acho um absurdo, porque o juiz sabe que está sendo visto por milhões e pode ser influenciado. Por mais que queira se ater ao Direito, é ser humano, tem vaidade. Acho que isso pesou no juiz Sérgio Moro, pelo enorme espaço dado pela imprensa. A Operação Lava Jato trabalha com informações sobre o papel importante das empreiteiras nos bastidores da política brasileira. O que o senhor pensa da operação como um todo?

A apuração de ilegalidades sempre é boa, apenas a exploração dos fatos é que é, até diria, desonesta, porque dá a impressão que começou isso agora no Brasil e, no entanto, empreiteiras e grandes empresas sempre usaram caminhos subterrâneos para obter proveito. O fato negativo é apresentar isso como fato novo no Brasil, quando não é. E não há dúvida que na imprensa há uma obsessão anti-Lula e anti-PT. Quero deixar isto muito claro: eu nunca fui do PT e desde que optei por ser professor imediatamente também decidi que jamais me envolveria com partidos políticos. Mas evidentemente a imprensa tem um antilulismo obsessivo, e é uma pena, porque distorce o noticiário, grande parte é fantasiosa. Qualquer pessoa que pegar um grande jornal vai verificar quantas vezes aparece o “supõe-se que... teria feito... haveria ... ganharia”, tudo na condicional. Não se afirma nada, se insinua, “ele teria sido beneficiado... poderia ser... supõe-se que”. E isso não é fato, isso não é notícia. Infelizmente, é uma linguagem na nossa imprensa diária. Tivemos lá atrás o domínio do fato, e agora os processos e sentenças baseados nas delações premiadas...

Ainda se fala muito no político ficha suja, mas infelizmente tem o eleitor ficha suja, que vende seu voto, troca voto por favores. Então, é preciso um trabalho de reeducação cívica 20

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Eu tenho seríssimas restrições à delação premiada. É de origem italiana o conceito do arrependido, que trai para ganhar algum benefício. Mas não se perca de vista que o delator é, antes, um criminoso. Ele é endeusado pela imprensa porque faz acusações, mas se esquecem disso, é um criminoso confesso. A delação premiada tem valor muito baixo, é imoral, essencialmente imoral, e duvidosa do ponto de vista jurídico, porque muitas afirmações são mentirosas e esse é um dos casos em que aparece o “teria feito, ganharia isso, seria isso e mais aquilo” sem comprovação. Sabe-se que o delator está procurando proveito pessoal, reduzir a sua pena, ganhar liberdade, então realmente não é confiável.

Algumas pessoas acham que as apurações reforçam a República, outros acham que não. Qual a sua opinião sobre isso?

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Acho bom que haja um despertar de consciência, que muita gente perceba que existe corrupção, sim, que é importante ficar contra a corrupção. É um caminho meio tortuoso, mas é um caminho de despertar a consciência. Tenho um livrinho, Direi­ tos Humanos e Cidadania, que fala muito da necessidade de criar a consciência cidadã, que cada um perceba que tem direitos, e também responsabilidade. Ainda se fala muito no político ficha suja, mas infelizmente tem o eleitor ficha suja, que vende seu voto, troca voto por favores. Então, é preciso um trabalho de reeducação cívica, de conscientização, para que a pessoa perceba que tem direitos e ­responsabilidades. O senhor é a favor de uma nova constituinte?

Não, não. Eu circulo muito pelo Brasil e outros países e já ouvi afirmação de que o Brasil tem uma das constituições mais democráticas do mundo, porque realmente ela reflete conquistas importantes da humanidade, conquistas que estão na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Primeiro, a Constituição de 1988 foi feita com intensa participação popular. Criamos em São Paulo – e o principal criador nem era da área jurídica, era um engenheiro, Francisco Whitaker – um movimento pela participação popular, e ali se criou a Iniciativa Popular, o direito do povo de propor leis. Só para ter exemplo do que isso significa, a Lei Maria da Penha não foi iniciativa de nenhum parlamentar, foi do povo. A Lei da Ficha Limpa também. Então, avançamos muito e o que há por fazer é aplicar a Constituição. O senhor escrevia num grande jornal e depois deixou de escrever. Como foi essa história?

Eu realmente escrevia num grande jornal (Folha de S.Paulo) e um dia me chamaram lá e disseram: “Olha, infelizmente não vai mais dar para continuar publicando os seus artigos. Gente da indústria, do setor automobilístico, disse que se continuarmos a publicar seus artigos vai ser cortada toda a publicidade”. Vou contar o personagem, que até já morreu: Wolfgang Sauer, da Volkswagem, e presidente Associação Nacional da Indústria Automobilística (Anfavea). Eu escrevia sobre direitos sociais, isso era considerado indesejado. Mas eu nunca preguei violência, sempre falei nos caminhos da Constituição, da Justiça, mas isso era considerado uma agressão. E perdi meu espaço na grande imprensa. A íntegra do programa Contraponto, com participação dos jornalistas Kiko Nogueira, Luiz Carlos Azenha, o blogueiro Eduardo Guimarães e o diretor da RBA, Paulo Salvador, pode ser acessada no Youtube por este atalho: bit.ly/contraponto_dallari


ENTREVISTA

Não é bom, Gilmar

A decisão é irreversível mesmo?

A proclamação foi nesse sentido, e evidentemente a eficácia não é retroativa. Aplica-se às eleições de 2016. É bom que realmente seja. Vamos ver se barateamos as campanhas e, em vez de marketing apenas se tenha a revelação do perfil dos candidatos, que é o que interessa à sociedade. A premissa do tribunal é que o poder de eleger é do cidadão, não é de segmentos econômicos, porque, quem deve estar representado no Congresso e nas casas legislativas, nos executivos, é o povo, é o cidadão, é o eleitor.

Apesar de um membro do STF ter agido para que o dinheiro empresarial em eleições fosse legalizado, a corte votou com a Constituição. Para o ministro Marco Aurélio Mello, foi um passo contra a corrupção

O STF estaria hoje preenchendo um vácuo do Legislativo e do Executivo?

O Supremo, como poder moderador, acaba atuando nesses espaços que ficam abertos. Agora, tarda uma reforma política maior.

Como o senhor vê as movimentações pelo impeachment da presidenta Dilma Rousseff?

De início o processo de impeachment é um processo político. O contexto é péssimo porque o Executivo nacional hoje está muito desgastado. Temos de aguardar. Agora, a ordem natural das coisas direciona no sentido de a presidente terminar o mandato. O impeachment é uma exceção, e como exceção, tem de estar respaldada em aspectos concretos. Vamos aguardar para ver o que ocorre.

Ministro Marco Aurélio Mello

O jurista Dalmo Dallari criticou o ministro Gilmar Mendes e disse que o tribunal está em alguns momentos tendo posturas políticas...

O que se espera de quem tem essa missão sublime de julgar é uma equidistância maior. Nós não podemos desconhecer que a tônica do ministro tem sido uma tônica muito ácida em termos de crítica ao PT e ao próprio governo. Agora, o Supremo

tem atuado e decidido com equidistância (...) Eu, por exemplo, fico triste, porque o ministro Gilmar Mendes tem uma bagagem jurídica constitucional invejável, e acaba praticamente se desgastando com certas colocações. Não é bom. Vários juristas temem ameaças a garantias constitucionais, a direitos individuais, com abuso de prisões preventivas, uso indiscriminado de delação premiada como prova, na Operação Lava Jato.

CARLOS HUMBERTO/SCO/STF

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oi do ministro Marco Aurélio Mello um dos oito votos do Supremo Tribunal Federal pela ilegalidade das doações empresarias em eleições. O processo ficou um ano e meio parado numa gaveta. O ministro Gilmar Mendes pediu vista com o objetivo de ganhar tempo para que o Congresso legalizasse a ilegalidade. Segundo Mello, isso não será possível. “A decisão da corte tem eficácia imediata e irreversível”, disse, em entrevista ao repórter da RBA Eduardo Maretti.

Há algo que causa perplexidade. Primeiro, ter-se a generalização das prisões preventivas. É algo que não entra na minha cabeça, invertendo-se portanto a ordem natural, que direciona você a apurar para, selada a culpa, prender em execução da pena. Em segundo lugar, ressoa a prisão preventiva como uma forma de fragilizar o preso, aquele que está sob a custódia, e ele partir para a delação. Nós precisamos realmente preservar princípios. (...) Não estou criticando a Polícia Federal, o Ministério Público, muito menos o colega Sérgio Moro. Mas em Direito, você não pode potencializar o fim e colocar em segundo plano o meio, que é o que está assentado nas normas jurídicas. O senhor disse que não queria estar na pele da presidenta Dilma?

Eu acho que ela está realmente encurralada, está num período em que a legitimidade é questionada, porque as colocações que ela tem que fazer não logram a ressonância desejável, principalmente considerada uma crise, que é a crise maior no Brasil, que é econômica, financeira, e evidentemente isso desgasta a pessoa. Ela é um ser humano, e deve a certa altura se questionar sobre a cadeira ocupada e sobre qual a ressonância que os atos praticados a partir dessa cadeira estão tendo. Leia a íntegra em bit.ly/rba_perplexidade REVISTA DO BRASIL

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SAÚDE

O Ã Ç A L U G RE R A L U G E R R I Caso Unimed Paulistana expõe ilegalidades, omissões e conflitos de interesse na ANS, agência criada para regular os planos de saúde e defender o interesse público Por Cida de Oliveira

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transferência compulsória dos 744 mil usuários da Unimed Paulistana para outras operadoras, decretada pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) na manhã de 2 de setembro, pegou desprevenidos milhares deles, principalmente 22

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aqueles em tratamento médico, com indicação cirúrgica e gestantes. A comerciante Evelyn Casolato Felipe, 28 anos, grávida de 36 semanas do primeiro filho, fazia pré-natal pela Unimed Guarulhos, que atendia a clientes da Paulistana. O atendimento foi suspenso. “Não estão atendendo consultas nem

exames. Procurei a maternidade da Unimed Guarulhos e informaram que serei atendida só se o parto for de urgência, e com médico plantonista. Procurei o hospital Santa Helena (na capital paulista), da Unimed Paulistana. Está sobrecarregado”, diz. “Na ANS me disseram que não há negativa de atendimento na re-


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ceu em um hospital público em São Miguel Paulista apesar de pagarmos convênio particular. E agora a história parece se repetir”, relata. No mesmo 2 de setembro em que a ANS escancarou a situação da Unimed Paulistana, a dona de casa Vania Nogueira, do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, recebeu um telefonema do hospital Central Towers, onde seria submetida a cirurgia bariátrica autorizada um mês antes. A cirurgia para a qual ela se preparava havia cinco meses seria realizada dali a alguns dias, mas foi cancelada. “Fiquei arrasada. Durante uma semana só chorava e mal dormia. Passei a viver em função de uma solução para o meu caso”, conta, com inúmeros protocolos do serviço de atendimento da própria Unimed Paulistana, da Fundação Procon de São Paulo e da ANS. Até o final de setembro, Vania não obteve resposta. Entrou na Justiça com pedido de liminar para a realização da cirurgia. E mesmo que a decisão seja favorável, seu médico não deverá operá-la. De tudo que ouviu dos serviços ao consumidor, causou revolta o atendimento da ANS, de que teria de esperar porque seu caso não era de urgência. “Há 13 anos luto para melhorar a minha saúde. Tenho problemas de coluna, IMC (índice de massa corporal) elevado e corro risco de doença cardíaca. A cirurgia foi recomendada porque outros tratamentos falharam. Nesses meses, gastei dinheiro com psicóloga e nutricionista e mobilizei familiares para virem cuidar do meu filho enquanto me recupero. A ANS não regula os planos e agora é essa a resposta que tem?”, desabafa. Vania faz parte de um gruSOCORRO! po em uma rede social em que Evelyn: “Procurei a mais de 20 mulheres compartimaternidade da Unimed Guarulhos e informaram que lham as angústias e frustrações serei atendida só se o parto de um sonho que virou pesafor de urgência, e com médico delo. “Quem vai pagar por isplantonista” so?” Para completar, seu plano de em São Paulo e é familiar por adesão, contraque a de Guarulhos não tem obrigação tado há 16 anos. Nele estão incluídos o de me atender. Meu medo é não ter onde pai, de 77 anos, a mãe, de 78 – que a cada fazer o parto. Será que os outros planos dez anos tem de trocar uma válvula no vão realmente me aceitar?” O temor faz coração –, e o filho de 1 ano e 3 meses. O sentido. A mãe de Evelyn estava grávida custo total mensal é de R$ 1.700. Porém, quando a Golden Cross enfrentou crise recebeu da administradora Qualicorp a no final dos anos 1990. “Minha irmã nas- proposta de um plano ligeiramente infe-

rior e bem mais caro: R$ 2.400. “Não tem como pagar para todos. Deveremos manter minha mãe, que já passou por quatro cirurgias cardíacas. E iremos para o SUS”, diz Vania.

Anomalia

De acordo com a ANS, a transferência obrigatória da carteira de clientes, tecnicamente chamada de alienação compulsória, foi determinada para garantir o atendimento aos usuários da Unimed Paulistana. Segundo a agência, desde 2009 foram instaurados quatro regimes especiais de direção fiscal e dois de direção técnica, espécie de intervenção, por causa dos persistentes problemas administrativos e financeiros que foram levando hospitais, clínicas e laboratórios conveniados a suspender o atendimento. O aumento do número de reclamações resultou na proibição da venda de várias modalidades de planos da operadora. Em 2013, foi imposto um programa de recuperação financeira da ordem de R$ 64 milhões. Em uma assembleia suspeita de irregularidades, foi criado um fundo cobrando dos médicos cooperados e diretores contribuições desproporcionais. Mais de 300 médicos entraram com ações, que ainda tramitam na Justiça, questionando a legalidade do fundo. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) entende que as medidas foram insuficientes para proteger o consumidor. Para a advogada e pesquisadora do órgão, Joana Cruz, o processo de alienação compulsória – ou quebra, como diz – já deveria ter sido aberto quando os problemas se agravaram. “A portabilidade para outros planos, sem carência, poderia ser feita antes, com mais tranquilidade. Por que fazer todo mundo esperar?”, questiona. Mais do que expor a doença crônica da maior cooperativa de serviços médicos do país, o episódio evidenciou a saúde frágil de uma agência reguladora criada em janeiro de 2000 para estabelecer normas, controlar e fiscalizar o setor em defesa do interesse público. Entre outras atividades, cabe à ANS criar critérios para a concessão, manutenção e cancelamento de funcionamento de empresas do setor, REVISTA DO BRASIL

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VINICIUS ANDRADE/ABRASCO

A ANS foi moldada como uma instituição ambígua, ora se comporta como mercado, ora como Estado, como se a ambiguidade fosse uma defesa, um ponto de apoio e não um problema em si Ligia Bahia

Joana destaca ainda que os bancos de dados da Justiça mostram casos de reajustes altíssimos, com índices de até 100%. Outros, menos frequentes, são de consumidores que apelam contra planos que rescindiram seus contratos, à revelia, em momentos em que mais precisam, como durante uma internação ou mesmo cirurgia, quando passam a representar prejuízo. “Sem respaldo da agência, o consumidor vai à Justiça, que dá ganho de causa. E mesmo assim a ANS não muda sua conduta. Pelo contrário. Assinou cooperação com o Tribunal de Justiça de São Paulo para dar pareceres técnicos aos juízes.”

Conflitos de interesse

A professora Ligia Bahia, do Instituto de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), entende que a ANS até que adota medidas regulatórias e de controle. Porém, ex-post facto. “Ou seja, só depois que o caldo entornou, que a empresa está insolvente, é punida pela fiscalização com ações de proteção aos seus clientes.” No entanto, deixa de lado funções primordiais, como a produção e difusão de informações sobre coberturas e preços, assegurando que o mercado seja de fato competitivo. “Isso acontece por razões diversas e complexas, da confusão entre público e privado, mercado e Estado, capitalismo e saúde pública. A ANS foi moldada como uma instituição am-

SYLVIA MASINI/DIVULGAÇÃO

monitorar e controlar o acesso e qualidade dos serviços e a evolução dos preços, além de critérios para garantir o equilíbrio econômico-financeiro dos planos e, se for o caso, liquidar extrajudicialmente a operadora, requerendo sua falência ou insolvência. Isso tudo para que as pessoas­ que pagam pela saúde privada tenham, no mínimo, consultas, exames, cirurgias, tratamento e ações preventivas. Um dos mais graves males que acomete a agência é o desrespeito às leis. Segundo Joana Cruz, há descumprimento da Lei 9.656/98 (Lei dos Planos de Saúde) e do Código de Defesa do Consumidor, que obrigam a cobertura integral à saúde do cliente. “Em vez de cobrar, a ANS criou uma lista de procedimentos de cobertura obrigatória, editada bem depois dessas legislações, que deixa de fora a maioria dos direitos assegurados em lei. Só isso já configura a regulação ilegal da agência”, afirma. A ANS afronta a Justiça também ao ­ignorar as determinações dos juízes. Processos movidos por consumidores por negativa de atendimento normalmente são acolhidos pelos magistrados, confirmando esse direito à cobertura integral. “São decisões que já estão sumuladas, reiterando o entendimento dos tribunais quanto a essa obrigação dos planos de cobrir todos os exames e procedimentos, e não apenas aqueles mais baratos ou que dão lucro”, diz. “Diante da complacência da agência reguladora, os planos seguem descumprindo a lei e não cobrem os que não interessam economicamente.” A advogada do Idec assinala ainda como anomalia um dogma criado pela ANS, sem base legal, de que está fora das suas responsabilidades a regulação de reajustes de planos coletivos empresariais ou por adesão, que acabam sendo negociados entre as partes, sem critérios objetivos. “A agência entende que este papel não consta da lei que a criou, numa interpretação em desacordo com outros princípios de eficiência, transparência e moralidade de uma agência reguladora que não regula 80% do mercado de plano de saúde e se limita a monitorar. Acompanha, fica sabendo qual foi o novo valor e não interfere, quando deveria estabelecer um teto para os reajustes.”

Abrahão: antes de ser diretor-presidente da ANS, entrou na Justiça contra a agência e o ressarcimento dos convênios ao SUS

bígua, ora se comporta como mercado, ora como Estado, como se a ambiguidade fosse uma defesa, um ponto de apoio e não um problema em si.” É a famosa porta giratória da ANS, expressão que define a presença de executivos das empresas de planos de saúde ou


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profissionais que prestam serviços às empresas reguladas na direção da agência – a raposa tomando conta do galinheiro. Eles saem do mercado para a agência e findo o mandato, para lá voltam. O caso mais conhecido é o do advogado Elano Figueiredo, que renunciou ao cargo em outubro de 2013, dois meses depois de tomar posse. Entidades como o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes), Idec, Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e Associação Brasileira de Economia da Saúde (Abres) denunciaram que por dez anos ele foi diretor jurídico da operadora de saúde privada HapVida, que atua no Nordeste, além de advogado da Unimed de Mossoró (RN),

belecimentos e Serviços (CNS), entidade sindical que representa estabelecimentos de serviços de saúde no país. E comandou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) da CNS contra a obrigação de ressarcimento ao SUS pelas operadoras, conforme determina a Lei de Planos de Saúde. Abrahão chegou a se manifestar publicamente contra o ressarcimento, mas foi mantido no cargo da agência vinculada ao Ministério da Saúde. Outro exemplo é o médico Maurício Ceschin, diretor-presidente da ANS entre 2009 e 2012, que dirigiu a Medial Saúde (hoje Amil) e o Hospital Sírio-Libanês. Foi ainda vice-presidente da Associação Nacional de Hospitais Privados (ANAHP) e entre 2008 e 2009 presidiu o Grupo Qualicorp, maior administradora de planos de saúde do país. “O calote dos planos de saúde ao SUS é incalculável: toda urgência e emergência, tratamentos de câncer, transplantes, hemodiálise, que os planos negam cobertura e o SUS acaba fazendo. Desde 2009 a ANS descumpre determinação do Tribunal de Contas da Uniãs (TCU) sobre o ressarcimento desses atendimentos. Os valores que o SUS recebe correspondem a 25% do total devido. E dessa parte, 20% se perde com recursos na Justiça, tramitação, prescrição”, ENFRENTAMENTO diz o professor Mário Scheffer, Vania: “A ANS não do Departamento de Medicina regula os planos. Passei a viver em função de Preventiva da Faculdade de Meuma solução para o dicina da USP. meu caso” Como ele costuma dizer, “a tendo assinado diverANS foi capturada pelos planos sas ações contra a ANS. privados de saúde e o SUS é que sai perA Comissão de Ética da Presidência da dendo”. Pela chamada teoria da captura, os República recomendou a destituição de reguladores são dominados pelo setor que Figueiredo por ter omitido tais informa- regulam, buscando maximizar benefícios ções de seu currículo, e não por ter essas políticos, financiamento de campanhas, ligações com o mercado. votos, cargos ou acumulação de poder. O atual diretor-presidente e diretor de A captura explica também as vistas Normas e Habilitação de Produtos, o mé- grossas da agência à regulação dos maiodico José Carlos de Souza Abrahão, teve res do setor. E numa situação de insolsua indicação pela Presidência da Repú- vência como a da Unimed Paulistana e blica, e sua aprovação pelo Senado, repu- de outras que estão por vir, a liquidação diadas. Para as entidades de saúde, ficou das operadoras vai favorecer os mais forclaro o conflito de interesses, que coloca tes – em condições de absorver a clienteem risco os princípios éticos e do interes- la desses planos ou a melhor parte dela. se público. Abrahão presidiu a Confede- E prejudicar os prestadores sem capaciração Nacional de Saúde, Hospitais, Esta- dade de barganha e os consumidores. REVISTA DO BRASIL

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Não é mágica. É o Mote do kirchnerismo nas eleições de 25 de outubro expõe diferença entre o governo e seus opositores. É a política que conduz a economia; e para mudar a vida das pessoas, o Estado tem de agir Por Erika Morhy, em Buenos Aires

“N

ão entendo muito de política, sou uma trabalhadora.” As palavras da chilena Elizabeth del Carmen Calderón, de 61 anos, soam algo familiar. Muitas pessoas se mostram avessas a comentar política. Mas basta esticar a conversa para perceber que elas sabem, sim, reconhecer o que querem para elas e o que não querem. Bety vive na Patagônia argentina desde a década de 1970. Casou-se, teve três filhos e se dedicou ao trabalho em casas de família. “Passamos momentos difíceis, criei meus filhos dentro do possível e hoje desfruto minha aposentadoria e meus netos”, diz. Puxa na memória momentos difíceis dessas quatro décadas e compara com o momento político decisivo do país.

FOCO NA CIDANIA Outdoor destaca programa que acolhe aposentados e pensionistas, antes privatizado, agora de volta às mãos do Estado. À esquerda, Cristina e Daniel Scioli, o candidato apoiado pela presidenta, que tem grande chance de levar no primeiro turno

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“O segredo da presidenta Cristina Kirchner é ser uma mulher segura, trabalhar bastante, cuidar de sua saúde, dedicar-se ao conhecimento e ser honesta”, define, ao explicar o favoritismo do candidato Daniel Scioli – apoiado por Cristina – na eleição presidencial de 25 de outubro. Radicada no país, Bety está entre os cerca de 32 milhões de pessoas que vão às urnas. O sistema eleitoral argentino prevê, antes da votação decisiva, as Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso). A primária foi adotada após uma reforma eleitoral em 2009. Participam da eleição geral candidatos que tenham alcançado pelo menos 1,5% dos votos na primária. Pelo filtro das prévias de 9 de agosto passou em primeiro Daniel Scioli, governador da província de Buenos Aires. O candidato da Frente para a Vitória (FpV)

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alcançou 8,5 milhões de votos (38,5%). Em segundo ficou Mauricio Macri, prefeito da cidade de Buenos Aires e ex-presidente do Clube Atlético Boca Juniors, apoiado pelas principais forças de oposição ao atual governo. A coligação Cambiemos obteve 5,4 milhões de votos para Macri e 1,3 milhão para os outros dois candidatos, somando 30,1% do total. Se as eleições oficiais fossem naquele dia, Scioli ficaria a apenas 1,5 ponto percentual de liquidar a fatura em turno único, direito conferido ao mais votado


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o Estado, hermano

que abre 10 pontos percentuais sobre o segundo colocado. A chapa Unidos por uma Nova Argentina (UNA), do ex-deputado kichnerista Sergio Massa, em terceiro com 20% da totalização, pode ser o fiel da balança neste outubro – ou em 22 de novembro, se houver segundo turno. Qualquer que seja o vencedor, dará início a uma nova fase, depois de 12 anos de Néstor e Cristina Kirchner. Cristina assumiu depois da morte do marido, em 2007. Néstor havia chegado à Casa Rosada em 2003, inaugurando um novo período de

estabilidade política e econômica. O resultado favorável nas Paso confere legitimidade à hipótese de vitória de Scioli em primeiro turno.

Legado pós-neoliberal

O cientista político e professor da Universidade de Buenos Aires (UBA) Sergio De Piero, de 46 anos, acredita que a votação que faltou ao candidato oficial não é um objetivo muito difícil, mas que somente o início de outubro trará elementos para uma compreensão exata do ce-

nário. De Piero explica que os problemas com a inflação e outros próprios de 12 anos de uma mesma força no governo poderiam fazer crer que a FpV teria mais dificuldades eleitorais. “O fato, entretanto, é que nunca se registrou um crescimento notável dos candidatos da oposição. E quando começou mesmo a campanha eleitoral os atuais ocupantes da Casa Rosada demonstraram superioridade sobre a agenda política. Os temas que a sociedade mais discute são os que o oficialismo tem proposto”, avalia o cientista. REVISTA DO BRASIL

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LEMBRANÇAS DA ERA MENEM Mauricio Macri, prefeito da cidade de Buenos Aires e expresidente do Clube Atlético Boca Juniors, é apoiado pelas principais forças de oposição

quenos computadores, ferramenta de inserção social e ao mundo da informação. E enfatiza: “Anos de conquistas dos trabalhadores foram destruídos em poucos meses pelo neoliberalismo. Carlos Menem cavou a fossa e o (Fernando) De La Rúa nos enterrou”, lembra, referindo-se ao sucessor de Menem, que renunciaria dois anos depois, em dezembro de 2001. O sobrinho de Pablo, Hernan Urra, de 18 anos, tem uma bolsa mensal do governo para se dedicar ao esporte paraolímpico. Viaja uma vez por mês mais de mil quilômetros desde a cidade natal, Cinco Saltos, na província de Rio Negro, até a capital argentina, onde treina no Centro Nacional de Alto Rendimento Desportivo. Já conquistou medalhas nacionais e internacionais. “Se não houvesse esse estímulo, seriam muitos talentos como o dele desperdiçados”, garante o tio, saindo da densa análise política para o arroz-com-feijão.

ARQUIVO PESSOAL

O professor de Filosofia Miguel Núñez Cortés, de 73 anos, tem visão semelhante. Cortés começou a militância sindical aos 17 anos, na Unión Obrera Metalúrgica (UOM) e teve atuação sabotada pelos golpes de Estado de 1966 e de 1976. Atualmente, leciona na Universidade Del Salvador (Usal), a mais antiga instituição privada do país. Segundo ele, o cenário se tornou mais favorável ao kirchnerismo quando ficou visível o projeto de mudança levado a cabo pelo atual governo, em vultoso contraste com o discurso da oposição. Por mudança, neste caso, assinala o professor, entenda-se o rompimento com o pensamento neoliberal que levou o país a “condições trágicas”. A era de Carlos Menem começou em 1989 com promessas de prosperidade. Menem ancorou o peso ao dólar, como um dos alicerces de combate à hiperinflação – qualquer semelhança com o que o Brasil faria cinco anos depois não seria coincidência. A paridade causou na classe média a sensação de poder aquisitivo forte. Atraiu monstruoso investimento estrangeiro, em meio a um radical programa de reforma do Estado e de privatizações de serviços públicos, da saúde às aposentadorias, das companhias de petróleo e gás às ferrovias, dos correios à telefonia, da geração e distribuição de energia à água. A presença do capital externo privado ajudou no controle da inflação num primeiro momento. Mas a economia dolarizada não teve lastro para não afundar após as crises do México, da Ásia e da Rússia. O país destruiu sua força produtiva e os preços mais altos da aventura neoliberal foram pagos pela população, com desemprego acima de 20% e empobrecimento brutal. Aos 36 anos, Pablo Urra, filho caçula de dona Bety, firmou-se na atividade de tatuador. E carrega discurso mais engajado no trato da política. “A diferença entre os últimos governos e as alternativas liberais é clara. Ficou demonstrado que os lucros não são importantes para serviços e bens públicos. Este governo recuperou empresas nacionais, criou novos serviços, investe nos estudantes. Há uma melhora notória”, acredita. Pablo conta que seus sobrinhos receberam na escola pe-

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Papel do Estado

“Não foi mágica”, chancelam as propagandas governamentais. Segundo Miguel Cortés, essas são palavras significativas. “Isso coloca o preto no branco, chama à consciência e à memória. A oposição, em

ENGAJAMENTO Pablo: “Este governo recuperou empresas nacionais, criou novos serviços, investe nos estudantes. Há uma melhora notória”


ARQUIVO CTA

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IMPORTÂNCIA NO CONE SUL Fito: “A Argentina é um país rico, assim como o Brasil. Temos de potencializar a vida democrática tanto com o voto como no cotidiano”

uma cegueira política, responde aos interesses internacionais, entre eles os fundos abutres”, avalia. “A população não é boba e tem memória.” O professor de Filosofia observa ainda a longevidade da combinação de avanços sociais com estabilidade institucional. Para ele, economia estável, distribuição de renda e consolidação democrática são faces bem-sucedidas de um mesmo projeto. “O modelo eleitoral, que inclui as Paso, é uma demonstração disso. A celebração de acordos coletivos de trabalho

e sindicalização (CCT) – foram mais de 1.500 ante 200 há 12 anos – também. A valorização do salário mínimo em mais de 1.300%, idem”, diz. “A recuperação dos fundos dos aposentados e pensionistas se viu reafirmada quando se decidiu restaurar a administração dos recursos dos trabalhadores que estavam em mãos do setor privado.” O noticiário transpira o ambiente eleitoral. A mídia portenha mergulha na disputa. Há denúncias, críticas ou exaltação a favor ou contra qualquer candidato, de

acordo com a afinidade editorial do grupo de comunicação. Miguel Cortés não estranha que os grandes grupos de comunicação procurem desconstruir o peronismo em sua faceta atual e dominante, o kirchnerismo, e se alinhe com “as correntes neoliberais que assolam o mundo”. Para ele, esse “oposicionismo onipresente no que ainda chamam de jornalismo” é que faz com que a vantagem da candidatura oficial não seja maior e mantenha a imprevisibilidade do que sairá das urnas. Mais consumidor do que analista de notícias, Pablo Urra receia que “os meios dominantes”, no momento decisivo das eleições, convençam muita gente. “Nunca vi tanta falta de respeito a uma figura presidencial, como fazem com Cristina Kirchner. Boa parte da população ainda é muito vulnerável. Escrachos e acusações pessoais aos membros da Casa Rosada são constantes, inclusive feitos por profissionais da imprensa. Mas eles mesmos acabam sendo alvo de processos judiciais e desmentidos – em algumas situações, em menos de 24 horas.” Segundo Pablo, a oposição consegue propagar discursos “cruéis” com objetivo de dividir a população entre “os que merecem e os que não merecem” políticas públicas. Técnico administrativo da Universidade Nacional de Mar Del Plata, Gabriel Alberto Esain concorda com o poder de fogo da aliança imprensa-oposição, mas o minimiza. “Houve um nível de mudança favorável, dado pela veemência fraudu-

FOTOS: TÉLAM

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Muito se fez. Muito tem de ser feito

Os fundos dos aposentados e pensionistas foram recuperados das mãos do setor privado

Governo fechou acordo com empresa chinesa para compra de equipamento e construção de novos trens

Por lei, os meios de comunicação argentinos foram regulamentados e democratizados. Deu-se voz para todos os segmentos da população

Campanha nacional de vacinação: mesmo os apoiadores do governo concordam que há muita coisa a ser feita na área de saúde

Prateleira de supermercado exibe a indicação de que o produto faz parte da lista da cesta básica. São produtos mais baratos, não podem ser inflacionados

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TURBULÊNCIA Depois do governo ultraliberal de Carlos Menem, nos anos 1990 e 2000, a Argentina passou por longo período de tensão social. Nenhuma política econômica vingava

O cientista político Sergio De Piero acrescenta que a incapacidade da oposição de inserir novos temas para o debate chega a facilitar a campanha da Frente para a Vitória. “Todos os candidatos têm defendido maior presença do Estado, inclusive na empresa petroleira; expressam concordância com a Casa Rosada em relação a políticas sociais voltadas a setores mais pobres etc. Falam, finalmente, mais de continuidade do que de mudança, exceto quando estão em conferências fechadas a seus grupos, onde aí sim se referem a ajustes.”

O pulo do gato

O secretário de Relações Internacionais da Central de Trabalhadores da Argentina (CTA), Adolfo Aguirre, valoriza os avanços sociais em seu país, mas pondera: “Ainda existem muitos níveis de pobreza e muita gente sem acesso a direitos fundamentais, como habitação digna, saúde e educação públicas e gratuitas que precisam expandir”. O sindicalista acredita também que o próprio governo divide as organizações sindicais no país, por não respeitar as decisões dos trabalhadores­sobre como se organizar.

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lenta posta em agredir o oficialismo. Só que a realidade superou a ficção”, acredita. A população assume também o papel de comunicadora ao ocupar as ruas com cartazes, pinturas e mensagens de diferentes teores. E se coloca como contraponto para identificar questões sociais que não estejam na pauta midiática. O governo de Cristina Kirchner captou essa demanda e estrategicamente estreitou a proximidade com os grupos sociais críticos ao neoliberalismo, como aponta Miguel Cortés. “Simplesmente se iniciou uma campanha de difusão do que o governo estava fazendo, como testemunho de uma tarefa ocultada pelos meios de comunicação hegemônicos.” Pablo Urra é categórico: não se deve dar o braço a torcer. “O modelo que temos hoje não necessita ser destruído, e isso está evidente que o fará Macri. Ele é um privatizador compulsivo e isso não é teoria, basta olhar a capital argentina.” O filho de dona Bety resume como a era Menem se refletiu em sua vida. “A destruição da minha família se deu nos anos 1990. Meu pai perdeu o trabalho, perdemos a casa e tudo conspirou para a separação dos meus pais”, lembra. Fazem parte dessa época o abandono dos estudos e o início de atividades alternativas para garantir seu sustento, como desenhar, pintar, tocar pistão. “Trabalho desde os 14 anos. Acredito que hoje um garoto dessa idade tenha melhores oportunidades do que as que eu tive, sem precisar se sacrificar. Só pude voltar a estudar em 2001, numa universidade privada”, conta Pablo. Miguel Cortés vê em seu país uma completa ausência de qualidade política entre os que assumiram o lugar de opositores. E, para ele, a oposição jamais vai carecer de um projeto político, uma vez que se sustenta sob o discurso predominante no mundo neoliberal, tendo sua faceta mais visível na Europa. “Mas outra coisa é como mostram o que vendem. Aí está radicada sua falha: a inabilidade política, apesar do extraordinário respaldo interno e externo que recebe.” Gabriel Esain também não acredita que falte projeto por parte da oposição. “O que existe é um projeto que não seduz o povo, e por isso a oposição prefere nem apresentá-lo.”

ENRIQUE GARCIA MEDINA/TÉLAM/2001

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INSUSTENTÁVEL O sucessor de Menem, Fernando de La Rúa, durou dois anos no cargo


PAULO FRIDMAN/CORBIS/LATINSTOCK/2001

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FALTAVA COMIDA Considerada uma cidade europeia em plena América Latina, Buenos Aires viu a famílias se destruírem pelo desemprego, a fome e a violência

Ele considera, entretanto, que o sistema democrático é o espaço mais apropriado para se avançar nas demandas do mundo do trabalho. “Estamos vivendo o período mais longo de democracia no nosso país. E isso significa que reafirmamos a importância do voto popular para melhorar as condições de quem busca trabalho, de quem trabalha e de quem já trabalhou. Os trabalhadores protagonizaram a construção da democracia”, defende. Fito, como é conhecido, ressalta ainda que a CTA apresentou aos candidatos as demandas dos trabalhadores para os próximos anos, e que não têm relação apenas com o sistema laboral, mas com a qualidade de vida das pessoas. “A Argentina é um país rico e tem grande importância no Cone Sul, assim como o Brasil. Temos de potencializar a vida democrática tanto com o voto como no cotidiano”, explica, defendendo o diálogo entre governos e atores sociais como prática imprescindível para a definição de um ambiente pós-neoliberal sustentável política, social e economicamente. A central enfatiza a ne-

cessidade de se avançar na integração do continente, para além do Mercosul. “Não adianta ganhar reconhecimento internacional sobre possíveis mudanças no modo de como pagar as dívidas, porque não é justo que o povo pague dívidas imorais e ilegítimas”, diz. Miguel Cortés acredita que esse entendimento está presente no kirchnerismo. “Enquanto o mundo ocidental seguia na direção de sua autodestruição social e política, a Argentina, pela voz de Cristina Kirchner, viu no G20 a necessidade de consolidar o nosso mercado interno”, explica. “Para isso, criou fundos contracíclicos e apoiou de imediato as pequenas e médias empresas, como garantia de oferta de mão de obra, com salários orientados a proporcionar uma vida digna às famílias dos trabalhadores e à classe média nas áreas de serviço e intermediação produtiva.” Cortés diz ainda que, como parte desta estratégia, foi impulsionada uma maior participação de bancos privados na concessão de crédito a essas empresas que quisessem

investir e a pessoas físicas. “A política industrial propiciou tanto a fabricação de materiais e ferramentas quanto a necessidade de mão de obra intensiva e especializada”, avalia. O professor menciona, nessa direção, a recente aprovação pela Organização das Nações Unidas (ONU) de uma iniciativa proposta pela Argentina a partir da guerra­com os fundos abutres, que operaram para inviabilizar um acordo de refinaciamento da dívida pública e carimbar no país o rótulo de caloteiro – o que num mundo dominado pelo sistema financeiro e as agências de classificação de risco poderia arrasar qualquer política de investimentos. “Os fundos converteram o país em referência na luta contra a financeirização imposta pelos centros mundiais de poder hegemônico”, diz. Resolução aprovada pela ONU estabeleceu princípios básicos para guiar a reestruturação de dívidas soberanas, resultado de mais de um ano de atuação diplomática. Ainda no campo da política externa, Cortés cita como “histórica” a liderança dos governos pós-neoliberais do continente na criação da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), surgida de maneira incipiente desde a década passada, e que em dezembro do ano passado inaugurou sua sede em Quito, no Equador. O bloco regional havia perdido vigor nos últimos tempos, mas voltou a ganhar impulso tendo como proposta a consolidação de um parlamento continental, instalado em Cochabamba, Bolívia, e um banco de fomento, o Banco do Sul, com sede em Caracas. “Trata-se de um movimento na direção de uma cidadania sul-americana para 400 milhões de pessoas. Isso inclui direito a passaporte único, a trabalho, a homologação de títulos universitários, e a proteção jurídica”, destaca o professor. “Enquanto a política tiver domínio sobre a economia, existem possibilidades de inserir aspectos que promovam a evolução e o crescimento democrático das nações. Quando é a economia que governa, tudo se subjuga a ela – é assim, por exemplo, com o caso dos imigrantes, seres humanos que são coisificados e tratados como um contingente.” REVISTA DO BRASIL

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A beleza do eterno aprendiz

Cantor e compositor carioca, de personalidade enigmática, ficou conhecido pela originalidade, autenticidade e por não fazer questão de agradar nem público nem crítica Por Danilo Di Giorgi

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ANTONIO NERY/AGÊNCIA O GLOBO

WILTON MOTENEGRO/DIVULGAÇÃO

LUIZ PINTO/AGÊNCIA O GLOBO/1971

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angado, divertido. Amargo, amoroso. Mal-humorado, brincalhão, fechado, delicado, antipático. Adjetivos tão díspares ainda hoje são citados para definir uma das mais enigmáticas personalidades da MPB: Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, o Gonzaguinha, que teria completado 70 anos em setembro. O cantor e compositor carioca criou canções poderosas que marcaram os anos 1970 e 1980, daquelas que todo mundo sabe cantar quando lembradas em uma roda de violão. Algumas celebrizadas em vozes como as de Maria Bethânia (Grito de Alerta, Explode Coração), outras imortalizadas por ele próprio (É, Com a Perna no Mundo, Sangrando, O Que é, O Que é, Começaria Tudo Outra Vez). Mas, afinal, quem era aquela figura mirrada, com seus 56 quilos distribuídos em 1,76 metro de altura, morta prematuramente em um acidente automobilístico aos 45 anos? Ainda que fosse autor de canções ásperas, como Piada Infeliz e Erva, como imaginar “azedo” o autor de odes à alegria, como A Felicidade Bate à sua Porta e Feijão Maravilha, sucessos em versões dançantes de As Frenéticas? “Para saber do Gonzaga você precisa ouvir seus amigos mais próximos. Esses vão falar da pessoa maravilhosa que ele era, brincalhão, bem-humorado, uma pessoa boníssima, que sempre ajudava os outros”, defende a viúva Louise Margarete Martins, a Lelete, casada com o artista de 1980 até o acidente fatídico. “Era uma mala sem alça e sem rodinha”, brinca, carinhoso, o filho Daniel Gonzaga. O compositor e cantor Daniel e a cantora Fernanda Gonzaga são seus filhos mais velhos, do primeiro casamento. “Ele era muito autêntico, verdadeiro e transparente. É engraçado que as pessoas sempre buscam clareza e autenticidade, mas quando encontram se assustam”, diz Fernanda, prestes a finalizar a gravação de uma série de inéditas do pai. Lelete concorda: “As pessoas têm medo de conviver com a verdade, e ele era muito verdadeiro, não criava situações folclóricas pelo fato de ser famoso. Hoje ele se daria melhor com aquele jeitão dele”, afirma. “O ser artista compreende muitas vezes estar do lado oposto do público. Mas meu pai sempre teve uma política diferente. Ele não se distanciava do povo, ele gostava de estar perto do povo. Isso fazia ele estar em qualquer lugar e ser a pessoa Gonzaguinha”, diz Daniel. A jornalista Regina Echeverria conheceu o músico em 1979, ano em que o artista se consolidava sucesso nacional. Regina havia sido escalada para fazer uma reportagem para uma revista semanal. E nasceu uma amizade que resultou na biografia Gonzaguinha e Gonzagão – Uma História Brasileira, publicada somente em 2012. “Cheguei na casa de shows para a entrevista e pediram para esperar. Vi uma pessoa que parecia ser ele no meio dos trabalhadores carregando caixas, e fiquei em dúvida se aquela pessoa simples era mesmo a grande estrela da MPB”, relata a jornalista. “Era uma figura única, detestava dar autógrafo, achava um absurdo a pessoa querer levar um papel assinado. Mas não negava simplesmente o autógrafo, ficava ali conversando com o fã, explicando que valia mais a pena conversar um pouco e levar um pouco da pessoa dele. Ele era meio doutrinador”, conta, aos risos.

DNA Com o pai Gonzagão: aproximação tardia

Paternidade

É certo que Luiz Gonzaga Júnior nasceu em 1945 no Rio de Janeiro. E que sua mãe se chamava Odaléia Guedes dos Santos, cantora da boate Dancing Brasil. E que ela e Gonzagão, este ainda em início de carreira, apaixonaram-se e tiveram um relacionamento amoroso. É de conhecimento também que Odaléia morreu de tuberculose quando o menino tinha 2 anos. A partir desse ponto, as versões divergem. Muitos afirmam que Odaléia já estava grávida quando

FÉ NA MOÇADA “Ele gostava de estar perto do povo. Isso fazia ele estar em qualquer lugar e ser a pessoa Gonzaguinha” Daniel Gonzaga REVISTA DO BRASIL

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MÚSICA

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POPULAR Público acompanha Gonzaguinha no Parque do Ibirapuera, na capital paulista

FOTOS GERALDO GUIMARÃES/AGÊNCIA ESTADO/1980

conheceu aquele que viria a ser o Rei do Baião; outros sustentam que o filho é de Gonzagão. “Sempre houve desconfiança em relação à paternidade biológica. E eu não tinha nenhuma prova concreta, já que os dois, em vida, não quiseram fazer o teste de DNA”, afirma a biógrafa. Gonzagão separou-se de Odaléia logo depois do nascimento do menino. Depois viveu com Helena Cavalcanti até o final de seus dias e não teve com ela filhos biológicos. Lelete acredita que a infertilidade não seria problema de Gonzagão e sim de Helena, que nunca aceitou Gonzaguinha. A madrasta teria inventado ou estimulado a versão que ficou para a história para prejudicar a relação entre pai e filho. “Seria estranho que um nordestino tradicional e conservador como meu sogro colocasse seu nome em um filho que não era seu, você não acha? Eu tenho certeza de que o Gonzaga era filho biológico do Gonzagão”, afirma Lelete, lembrando que sua filha Mariana é a cara do avô. “Ele fez uma música para a neta, e sempre falava que a boca dela tinha o mesmo formato e a mesma cor da boca dele”, diz. O fato é que Gonzaguinha cresceu longe do pai – por conta da morte da mãe, da rejeição da madrasta e das turnês em que Gonzagão passava longos períodos longe. “Imagina a situação dele, crescendo no morro, por vezes com restrições materiais e longe do pai. Ninguém acreditava quando ele falava que era filho do Rei do Baião. Ele teve motivos para colocar uma parede entre ele o mundo. Mas por trás dessa parede havia essa pessoa maravilhosa e muito sensível”, diz Regina Echeverria. Com seus pais adotivos Leopoldina de Castro Xavier e Hen-


MÚSICA

dele, mais reservado, mas também porque ele era muito bom tanto na composição quanto nas letras, escrevia extraordinariamente bem”, diz Ivan, padrinho de Daniel.

JORGE GONTIJO/EM/D.A PRESS/1984

Do MAU

DO LADO ESQUERDO DO PEITO Ao lado de Wagner Tiso, Milton Nascimento e Tancredo Neves na campanha das Diretas

rique Xavier (o Baiano do Violão), o menino cresceu no Morro de São Carlos, uma das mais antigas favelas cariocas e um dos berços do samba, onde foi fundada a primeira escola de samba da cidade, a Deixa Falar. Nomes como Luiz Melodia, Ângela Maria, Grande Otelo, Madame Satã e Aldir Blanc têm sua história ligada ao morro. Baiano do Violão tocava na Rádio Tamoio e foi quem ensinou ao filho adotivo os primeiros acordes. Gonzagão era pouco presente. “De tempos em tempos ele vinha me visitar, ia me levar pra comprar uma roupa. Geralmente aparecia e eu não estava em casa”, disse Gonzaguinha em uma entrevista de 1979. Quando tinha 16 anos, apesar dos desentendimentos com a madrasta, resolveu mudar para a casa do pai, na Ilha do Governador. “Ele não acreditava em mim pela minha formação, não tinha domínio sobre mim, temia que eu não virasse boa coisa.” O filho vivia trancado no quarto com o violão, não respeitava a rotina da casa nem interagia com a família. Discussões eram comuns e o rapaz não tinha medo de se expressar. O pai acabou levando o jovem para um colégio interno. Não se sabe ao certo por que Gonzaguinha resolveu estudar Economia, se por desejo pessoal ou insistência do pai, que fazia questão que o filho tivesse “anel no dedo”. Ingressou em 1967 na Faculdade Cândido Mendes e nessa época a divergência entre ele e o pai chegou ao campo da política. Ele se engajou em movimentos estudantis contra o golpe de 1964, mas Gonzagão tinha visão conservadora. “Meu sogro tinha fotos do Geisel e do Médici na parede de casa. Era a referência que ele tinha de política do sertão, onde as coisas eram diferentes”, afirma Lelete. As diferenças só vieram a ser resolvidas no início dos anos 1980, com a turnê Vida de Viajante, que percorreu o Brasil por quase um ano com os dois lado a lado no palco. “Esse reencontro com o pai foi maravilhoso para ele. Ele se tornou uma pessoa menos zangada, mais alegre, mais feliz, perdeu aquele hermetismo, se abriu para o mundo. O pai finalmente o reconheceu como um grande músico. Era o que ele queria”, conta o amigo íntimo, o cantor e compositor Ivan Lins. “Compusemos Debruçado nas escadas da casa da Rua Jaceguai. Aliás, eu fui o único com quem ele fez parceria. Isso era em parte pelo jeito

A casa da Rua Jaceguai era a residência do psiquiatra Aluízio Porto Carrero, na Tijuca, berço do Movimento Artístico Universitário (MAU). Aluízio fora instrumentista do Cassino da Urca e gostava de reunir amigos para conversas, jogos de cartas e rodas de violão. Entre os presentes sempre estavam Gonzaguinha, Ivan Lins, Aldir Blanc, Paulo Emílio e César Costa Filho. Servia-se durante os encontros, com concha de sopa, uma lendária batida de maracujá preparada dentro de uma grande panela. Os violões passavam de mão em mão e as pessoas cantavam em coro. Foi lá que Gonzaguinha conheceu Ângela, sua primeira mulher e filha de Aluízio. “Éramos um grupo com pretensões de romper as barreiras do mercado de trabalho, com a consciência de que os festivais não projetavam ninguém”, diz Ivan Lins. O MAU acabaria sugado pela TV Globo, que em 1971 lançava o programa Som Livre Expor­ tação, o que provocou desentendimentos entre os membros do grupo. Em 1973, Gonzaguinha participou do programa de Flávio Cavalcanti, apresentando a música Comportamento Geral. Os jurados ficaram apavorados com a letra: “Você deve aprender a baixar a cabeça e dizer sempre muito obrigado/ São palavras que ainda te deixam dizer por ser homem bem disciplinado/ Deve pois só fazer pelo bem da Nação tudo aquilo o que for ordenado”. O evento o projetou e chamou atenção da censura. Das 72 canções apresentadas aos censores antes de gravar seu primeiro disco, 54 foram barradas. Sua postura pouco dócil aos olhos dos meios de comunicação custaram-lhe naquele início de carreira o apelido de “cantor rancor”. Com a abertura política na segunda metade dos anos 1970, começou a modificar o discurso e a compor canções mais profundas e menos políticas. Em 1975, dispensou empresários e se tornou artista independente. Em 1986 criou o selo Moleque, pelo qual chegou a lançar dois discos. Gonzaguinha passou os últimos 12 anos de vida colecionando sucessos e vivendo de forma tranquila com a família em Belo Horizonte. O músico dedicava-se a pesquisar novos sons e raramente passava longos períodos longe de casa. O acidente que tirou sua vida aconteceu na manhã do dia 29 de abril de 1991. Gonzaguinha seguia a Foz do Iguaçu (PR), de onde tomaria um avião com destino a Florianópolis. Um ano e meio antes, em agosto de 1989, havia partido Gonzagão, aos 76 anos, vítima de uma parada cardiorrespiratória. “Eu acho que estou aprendendo aos poucos. Eu espero que agora eu agrida menos as pessoas do que há alguns anos. Quanto menos eu agredir as pessoas no futuro, para mim é melhor. Eu ainda tenho muita coisa pra aprender, devagar e tal. Mas um dia, quem sabe, eu chego lá. Eu tenho paciência pra aprender.” Essa declaração, feita pelo artista em dezembro de 1990, talvez responda à questão apresentada no início deste texto: Gonzaguinha era apenas autêntico e verdadeiro, em busca permanente e sincera de se tornar um homem e um artista melhor a cada dia. Como a vida devia ser. REVISTA DO BRASIL

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HISTÓRIA

DO CÉU PARA A SUCATA A Panair dominou a navegação aérea brasileira até 1965, quando teve a licença cassada pelo primeiro governo militar, por inspirações duvidosas Por Vitor Nuzzi

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ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO/DIVULGAÇÃO

HISTÓRIA

CHOQUE No Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, aeromoças angustiadas acompanham a situação da companhia após a paralisação determinada pelo governo

FOLHAPRESS/1957

E

m novembro de 1973, os ­últimos lotes de bens da massa falida da Panair do Brasil foram vendidos em leilão, no Aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. “Panair acaba em leilão arrematada como sucata”, noticiou o Jor­ nal do Brasil. Não foi o fim em termos formais, porque os representantes da companhia aérea ainda levariam adiante uma briga judicial de certa forma vitoriosa ao seu final, pelo reconhecimento de uma injustiça histórica. Nos anos 1960, a Panair era uma empresa consolidada, forte no mercado doméstico e internacional. Tinha seus problemas financeiros, como qualquer companhia aérea, mas nada que justificasse um despacho presidencial que, do dia para a noite, pôs a Panair no chão. Em 10 de fevereiro de 1965, o presidente Castello Branco, o primeiro do ciclo militar que perduraria mais 20 anos, simplesmente determinou a suspensão “a título precário” de todas as linhas nacionais e internacionais concedidas à empresa, que foram transferidas para a Varig. O tempo demonstraria que o precário seria definitivo. Todas as tentativas para

retomar o controle da companhia foram inúteis, muitas vezes com comportamentos pouco comuns no Judiciário. Representantes da companhia não têm dúvida de que se tratou de um caso de perseguição. Em seu relatório final, a Comissão Nacional da Verdade destacou o caso Panair como “exemplar”, no sentido de perseguição a empresários que “não compactuaram com a conspiração e o golpe, defenderam a Constituição e foram perseguidos e punidos pelo regime ditatorial”.

Violência

Autor do livro Pouso Forçado – que acaba de ser relançado, dez anos depois da primeira edição –, o jornalista Daniel Leb Sasaki considera o episódio da P ­ anair “o maior e mais emblemático” exemplo de violência econômica e jurídica. “A Panair do Brasil era uma empresa nacional de grande porte. Funcionava em quatro continentes e possuía um patrimônio material e técnico que nenhuma concorrente brasileira jamais acumulou. Era tão importante para o funcionamento da aviação, comercial e civil, que os militares chegaram ao ponto de criar leis REVISTA DO BRASIL

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HISTÓRIA

Ataque

A Panair tinha dois acionistas majoritários, Celso Rocha Miranda e Mario Wallace Simonsen. O primeiro, dono da Ajax, maior seguradora da América Latina, e amigo íntimo do ex-presidente Juscelino Kubitschek, provável candidato às 38

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CELMA Ocupada por soldados

ACAMPAMENTO Pressionar o governo

PIONEIROS Aviões modernos para sua época são amontoados no pátio do Galeão, onde enferrujam

eleições presidenciais de 1965, que não aconteceram – os brasileiros só voltariam a escolher um presidente em 1989. Simonsen tinha participação em mais de 30 empresas. Era dono de uma exportadora de café (Comal), carro-chefe do grupo Simonsen, uma das maiores multinacionais brasileiras, com subsidiárias operando em 53 países, conforme anota Sasaki. Também foi acionista da TV Excelsior e criador do Sirva-se, o primeiro supermercado brasileiro. “É importante destacar que Mario Wallace Simonsen já estava sob ataque midiático alimentado por inimigos políticos e concorrentes poderosos desde

FOTOS: ACERVO CORREIO DA MANHÃ/ARQUIVO NACIONAL

específicas para desapropriar parcelas inteiras do ativo e para garantir que a companhia ficasse no chão para sempre, mesmo após pagar todos os seus credores”, afirma, lembrando que parte do ativo ainda existe. Caso da oficina de revisão de motores Celma (Companhia Eletromecânica), em Petrópolis (RJ), desnacionalizada em 1991 e hoje pertencente à GE. Pouco tempo depois do anúncio da suspensão das concessões, a Celma foi ocupada por soldados. O motivo alegado para cassar as suspensões foi uma suposta dificuldade financeira da Panair. Havia acusações de má gestão, que apontavam para um quadro sem recuperação. Daniel Sasaki contesta. O livro traz em detalhes as arbitrariedades cometidas na Justiça, desde o primeiro momento, quando a Panair tentou pedir concordata e não conseguiu, passando por um decreto-lei da ditadura feito justamente para impedir o levantamento da falência da Panair, que não tinha mais dívidas. “Nenhuma acusação levantada por civis ou militares contra os acionistas, diretores e a própria Panair se comprovou”, diz o jornalista. “Ao longo do processo, os réus provaram sua inocência em sentenças finais e irrecorridas – em plena Justiça da ditadura. Conseguiram provar também que documentos e informações falsos foram utilizados para subsidiar as denúncias, com o objetivo definido de desmoralizar a companhia e seus representantes perante o mercado e a opinião pública. Não há dúvida, no Judiciário, de que houve ali distorções graves. Note que em 1978, 13 anos após o fechamento da empresa, a própria assessoria jurídica da Aeronáutica recomendou o arquivamento dos processos criminais, por basearem-se em ‘vagas alegações’ versus a vastidão de esclarecimentos técnicos apresentados pela defesa. Assim foi feito.”

1963, portanto, antes mesmo do golpe”, ressalta Daniel. “Os testemunhos deixados pelos seus advogados em uma série de documentos enviados ao antigo Tribunal Federal de Recursos apontam que esses adversários, daqui e lá de fora, aproveitaram-se da tomada de poder pelos militares e da patologia do Judiciário para destruí-lo, associando-o, principalmente, ao governo deposto, de João Goulart. Conseguiram relativamente rápido.” Uma CPI com vários documentos falsos ajudou a derrubar o empresário, que teve todos os bens sequestrados apenas um mês depois do fechamento da companhia. Simonsen teve um colapso


TRIBUNA DA IMPRENSA/DIVULGAÇÃO

ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO/DIVULGAÇÃO

HISTÓRIA

“PODEMOS SALVAR A PANAIR” Funcionários acompanham a missa oficiada pelo padre Goés no hangar do Aeroporto Santos Dumont. A campanha pela revogação do ato que tirou dos céus as asas da Panair, um dos mais raivosos da ditadura, foi abafada

cardíaco e morreu em março de 1965, na França, onde morava, dois meses depois da suspensão das linhas de voo da Panair. Outro fato que pôs Simonsen na mira foi o auxílio para o então vice-presidente João Goulart retornar ao Brasil em 1961, depois da renúncia de Jânio Quadros. “Isso foi muito explorado contra ele”, diz Daniel. “De fato, Simonsen se colocou a favor da legalidade. Na viagem de volta da China, Jango foi hospedado em Paris por Max Rechulsky, diretor do Grupo Simonsen na Europa, que também ofereceu a estrutura de comunicações da Wasim (subsidiária do setor de café) para que o presidente pudesse se comunicar com o Brasil. Depois, Rechulsky acionou diversas empresas áereas para facilitar a viagem de retorno – que foi feita via Estados Unidos, por companhias estrangeiras, e não em rota direta, da Panair.” A Varig acabou sendo a única beneficiada pelo fechamento da Panair, constata Daniel. A empresa ficou com as linhas mais rentáveis, as da Europa, com os aviões­de maior porte, hangares no Galeão e parte das agências instaladas no exterior. O fatiamento da Panair e a transferência de bens da companhia é um dos vários trechos que chamam a atenção no

livro. No caso da Varig, o representante da massa falida agradeceu, nos autos do processo, à diretoria da empresa pelas acomodações em que ficou na Europa e até pela consultoria jurídica prestada pela interessada no patrimônio do rival. Quarenta anos depois, a Varig quebraria.

Perdas

Para o autor, o Brasil perdeu, à medida que o Estado – “cujos agentes fabricaram dados para acusar a Panair de drenar recursos públicos” – teve de gastar mais por causa da falência que impôs à companhia. Também teve de assumir encargos previdenciários, pagamento de salários e custos com investimentos e manutenção. “A União abriu, ainda, as portas para que a empresa entrasse com ações judiciais, exigindo o pagamento de indenizações espetaculares: por perdas e danos, pela expropriação da Celma e das Comunicações (outra área da Panair) a preços irrisórios, pela ocupação irregular de patrimônio em aeroportos e instalações, entre outras. Algumas já foram ganhas. Falta pagar. A conta é alta.” Perderam, sobretudo, os 5 mil funcionários da Panair, que trabalhavam em uma companhia prestigiada e de uma ho-

ra para outra ficaram sem nada. Durante muito tempo, muitos deles fizeram campanhas pela reabertura da companhia e tiveram apoio popular. Ainda hoje, remanescentes se reúnem todos os anos para lembrar daqueles tempos. Que ficaram marcados também na memória de dois garotos, Milton Nascimento e Fernando Brant, autores de Saudades dos Aviões da Panair, gravada nos anos 1970 por Elis Regina originalmente como Conversando no Bar, por receio da censura. “A gente estava com um grilo (em relação ao título)... Porque a gente não podia ter saudade de nada que fosse bom”, contou Milton no documentário Panair do Brasil, dirigido por Marco Altberg, de 2007. No mesmo filme, Brant conta que foi relembrando “minhas viagens de pequeno” e pensando na realidade de todos os brasileiros, “que víamos em pleno voo, em plena maravilha, um projeto e uma empresa como a Panair ser desmontada”. “O Fernando mandou a letra para Nova York, eu aí li aquilo tudo, cantei, gravei e mandei para a Elis.” Um verso embutia um pequeno e marcante protesto simbólico: “Descobri que minha arma é o que a memória guarda/Dos tempos da Panair”. REVISTA DO BRASIL

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CINEMA

As rebeldes e as ditadoras

Documentário Atrás de Portas Fechadas retrata mulheres que atuaram em organizações de esquerda e mulheres de direita que contribuíram com os golpistas e seus crimes Por Xandra Stefanel

“O

que ocorre na vida privada que determina as escolhas na vida pública?” Esta questão foi um dos fios condutores para as jornalistas Danielle Gaspar e Krishna Tavares na produção do documentário Atrás de Portas Fechadas, que será lançado no festival Cine Direitos Humanos, no final de outubro. O longa-metragem traz entrevistas com mulheres que atuaram em organizações de esquerda e de direita durante a ditadura no Brasil (1964-1985). As diretoras investigaram fatores determinantes para a construção das convicções político-ideológicas de mulheres naquela época: enquanto uma parte delas lutava pela participação política, democrática e contra a repressão, outras deixavam brevemente o conforto do lar para defendê-lo do que chamavam de “ameaça comunista”. Mas por que colocar no mesmo filme pessoas que lutaram pela democracia e pela manutenção da ditadura? “Acho que existe uma questão histórica com relação às lutas políticas e ideológicas no Brasil, que precisamos resgatar para responder essa pergunta. Em vários momentos na história dos movimentos de esquerda, no Brasil e na América Latina, vivemos a expectativa de mudanças sociais e políticas significativas que na maioria das vezes não se efetivou”, diz Krishna Tavares. Para a documentarista e pesquisadora, a análise de todos 40

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esses momentos levanta a impressão que sempre o discurso e as ações daqueles que se opõem às mudanças – ou seja, o pensamento ideológico de direita – foram subestimados. “Além disso, historicamente, a esquerda latino-americana se fragmenta em dissidências, se fragiliza. Entender e escutar o outro, que é ideologicamente contrário ou igual, faz-se necessário na medida em que se pretende refletir sobre esses processos históricos de forma mais orgânica.” De um lado estão mulheres que sobreviveram a torturas e humilhações das quais não podem nem lembrar, como é o caso de Jovelina: “Eu sempre falava para minha sogra: ‘Se eles pegarem meu filho e judiarem dele, eu vou falar de todo mundo’. Minha sogra falava: ‘Você não fala’. E foi impressionante, porque aí você sabe quem é o inimigo porque eles são tão brutos! Como dedar um companheiro, que é uma pessoa agradável e uma pessoa que está correta, e entregá-lo para uma pessoa tão bruta e estúpida que nem sabe por que está te batendo?”, relembra. Do outro lado, o discurso da proteção da família, com argumentos de difícil digestão. Em especial os de Maria Helena: “Eu tinha três filhos – acabei tendo cinco filhos – e dizia ‘Que Brasil é este que nós vamos ter?’ Nós já tínhamos o exemplo de Cuba, do Che Guevara fazendo aquela desordem toda das quais tínhamos notícias constantes... E eu estava vendo o Brasil ir pelo mesmo caminho. Então, aquilo me deixava muito


CINEMA

Jovelina: “Brutos”

necessidades básicas não é uma questão ideológica para elas, mas uma questão de competência. Essa concepção fundamenta historicamente a luta de classes na América Latina. Tenho convicção de que elas têm consciência de que tais reflexos perversos na sociedade brasileira ocorrem não porque são consequências da ditadura, mas porque se fazem necessários para manter a ordem que defendem”, observa Krishna. O filme estreia às 11h, no dia 24 de outubro, no Cine Direitos Humanos, no Espaço Itaú de Cinema do Shopping Frei Caneca, em São Paulo.

IMAGENS: DIVULGAÇÃO

preocupada. Aí eu entrei na União Cívica Feminina (UCF) diretamente e fortemente, para fazer tudo o que fosse possível”, ela declara no início do filme. E foi o que fez. Além de participar da organização de passeatas e das marchas da família, Maria Helena ajudava o Departamento de Ordem de Política e Social (Dops) a identificar militantes de esquerda. “Eu sabia que na Operação Bandeirantes eles tinham um trabalho muito grande de desbaratar aparelhos, que eram as células comunistas que se reuniam. Como nós fazíamos nossas reuniões, eles também faziam. Nós fazíamos as nossas porque eles faziam as deles. Então eu me ofereci e disse: ‘Vocês me liguem quando tiverem alguma denúncia que eu vou guardar na minha memória visual chapas de carros para passar para vocês, para desbaratar aparelhos’. Assim, eu consegui desbaratar muitos aparelhos”, afirma, orgulhosa. Ao final, Atrás de Portas Fechadas declara sua posição com a frase: “A impunidade dos crimes políticos perpetua-se nas mortes cotidianas, por meio das chacinas, massacres e outras arbitrariedades cometidas por policiais, grupos de extermínio e seus mandantes”. Mas será que as “distintas” senhoras de direita têm consciência de que a ditadura que apoiaram traz ainda hoje reflexos perversos na sociedade brasileira? “Não fizemos essas considerações com as entrevistadas da UCF, pois essas mulheres têm convicção ideológica no que dizem e, sobretudo, no que fazem. Ou seja, defender o modo como vivem e apoiar um regime político e econômico que legitime e mantenha uma estrutura social que beneficia poucos e mantém a maioria fora da conquista das

Maria Helena: “Nós já tínhamos o exemplo de Cuba, do Che Guevara fazendo aquela desordem toda”

Krishna Tavares e Danielle Gaspar: “Existe uma questão histórica com relação às lutas políticas e ideológicas no Brasil, que precisamos resgatar” REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM

PARELHEIROS É LOGO ALI Polo de ecoturismo junto à selva de pedra paulistana tem cachoeiras e patrimônio histórico. Área rural e de preservação oferece opções de lazer e desenvolvimento sustentável Por Gisele Brito

O

barulho da queda d’água fica cada vez mais forte conforme se avança pela trilha. Para chegar, é preciso atravessar uma ponte rústica que inspira cuidados, apesar de nova. Foi construída depois de uma forte chuva levar, em março, a antiga instalação rio abaixo. Foram 30 anos servindo

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a população. O destino compensa o esforço. A cachoeira tem vários pontos de acesso, e a água, limpa e calma na piscina formada pela queda, convida. Durante o percurso, a expectativa é avistar algum tucano-de-bico-verde ou uma anta. Almas-de-gato e soldados, pássaros de cores exuberantes, são comuns. Para os paulistanos imersos na dinâmi-

ca apressada a ideia de acampar à beira de uma cachoeira, ou de comprar hortaliças diretamente no rancho, ou ainda avistar animais silvestres, parece um convite para pegar um carro, pagar alguns pedágios e partir para outro lugar. Qualquer outro lugar. Mas é possível fazer tudo isso, quem sabe vislumbrar uma onça, dentro dos limites da cidade.


VIAGEM

FOTOS DANILO RAMOS/RBA

Cachoeira do Jamil

SOLO SAGRADO Espaço ecumênico da igreja Messiânica

DANILO RAMOS/RBA

ULRICH PETERS/FLICKR/CC

PRODUÇÃO LOCAL Seu Augusto foi agricultor durante toda a vida e há duas décadas planta suas hortaliças em Parelheiros. A produção é consumida e vendida para os vizinhos

Na região sul de São Paulo é possível fazer roteiros que incluem meio ambiente, agricultura orgânica e patrimônio geológico e histórico. O Polo de Ecoturismo de São Paulo foi oficializado na zona sul em 2014, justamente para canalizar investimentos públicos e privados e dar mais visibilidade às belezas da região de Parelheiros, Marsilac e

Colônia. A ação também tem o intuito de proteger a Mata Atlântica, intocada em alguns trechos, e a fauna que habita as duas Áreas de Proteção Ambiental (APA) que compõem o polo e, juntas, correspondem a um quinto do território da cidade. Entre as estratégias está o fortalecimento do ecoturismo e da agricultura orgânica.

Áreas protegidas

A APA Colônia é assim chamada porque o bairro que deu nome à área foi originalmente criado em 1828 para abrigar colonos alemães. Há vários resquícios dessa presença: até hoje, muitas famílias da região levam nomes alemães e realizam festas típicas. Igrejas e cemitérios construídos na época ainda estão de pé. REVISTA DO BRASIL

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VIAGEM

Depois dos alemães, os japoneses chegaram a partir do início dos anos 1900 e dinamizaram a agricultura. Atualmente, a cultura orgânica se fortalece e se torna uma alternativa econômica e social, e ambientalmente sustentável. Na APA Capivari-Monos, a cachoeira visitada pela Revista do Brasil é conhecida como do Jamil ou do Evangelista, no bairro Barragem, dentro de um sítio particular desprovido de luz, internet e água encanada. “A gente quer investir. Meu pai quer colocar luz solar, arrumar a estrada. Mas também, se o pessoal que vier não cuidar da natureza, não adianta”, afirma Said Saade, de 23 anos. Ele e a mulher, Cintia Rodrigues, 21 anos, são responsáveis pela propriedade desde o começo do ano. O potencial turístico do lugar foi notado pelo patriarca, Jamil Saade, há mais de 20 anos, mas as condições financeiras e a baixa procura nunca permitiram grandes investimentos e, às vezes, nem mesmo a manutenção do sítio, onde é possível encontrar casarios em ruínas. “Eu sempre sonhei em trabalhar com turismo. Então, ter conhecido ele, sem saber que tinha esse sítio aqui, e ter vindo para cá foi uma bênção”, conta Cintia. “Sempre estou de olho, agora, nos cursos

JOSÉ CORDEIRO/SPTURIS

Cachoeira Marsilac

FUTURO PRESERVADO Área de Proteção Ambiental (APA) em Parelheiros: fontes de água

da prefeitura que têm a ver com guia turístico.” Enquanto o jovem casal pensa na integração com o turismo, há quem esteja feliz com a vida tranquila em meio à floresta. Seu Augusto (que não quis dizer o sobrenome) completou 80 anos no dia da visita da reportagem à sua propriedade,

25 de agosto. Foi agricultor durante toda a vida e há duas décadas planta ali suas hortaliças. A pequena produção é consumida e vendida para os vizinhos. Quando há muito excedente, ele leva para uma feira da região. “Não tem ganância. Eu vendo isso aqui para comprar meu fumo, que eu gosto de um tabaquinho. Mas não ven-

A outra São Paulo 1. Cachoeira do Jamil Fica em sítio particular, onde ocorre o encontro dos rios Capivari e Momos. R$ 10 para entrar. Há opção de hospedagem, mas não há luz elétrica. A partir do bairro de Colônia, há placas sinalizando o caminho, mas o ideal é procurar guias locais. Contato: Selva SP, (11) 94727-4296 / 99503-5616 / 5926-7261 ou 99885-5352 (Lucas) 2. Poço das Virgens A Cachoeira Poço das Virgens é acessada por meio de trilha na Mata Atlântica a partir do Sítio do Bambu e tem uma pequena queda d’água. Boa para nadar. Há estacionamento e área para piquenique. Contatos: Giuliano, gilselvasp@gmail.com, (11) 94727-4296 / 99503-5616. Oswaldo, lineaventura@hotmail.com, (11) 947285809. Erley, erleyjc@ig.com.br, (11) 5920-8949 / 99795-5340 3. Cachoeira Marsilac A seis quilômetros do centro de Marsilac, último bairro ao sul da capital paulista. Considerada de fácil acesso, fica cheia nos fins de semana de calor. Há placas a partir da Estrada de Marsilac e também guias locais. É ótima para banho 44

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4. Borboletário Águias da Serra O espaço abriga 3 mil borboletas de 27 espécies e é o primeiro da cidade. O passeio é todo pensado para ser um show de beleza e informação. Indicado para crianças. Não abre em dias de chuva. Consulte preço para visitação. Estrada da Ponte Alta, 4.300. (11) 5660-6102, reservas@borboletarioaguiasdaserra.com.br 5. Mirante da Serra do Mar e Núcleo Curucutu Do alto da serra é possível avistar Itanhaém e Mongaguá em dias com céu aberto. É preciso agendar e ter acompanhamento de guia, a trilha tem dificuldade média. Com sorte, também é possível, avistar animais silvestres, como antas e lobos-guará. O parque estadual protege quase metade do que resta de Mata


VIAGEM

do pra ninguém revender não. Eles compram de você a ‘maçaroca’ por R$ 0,50 e vendem por R$ 1,50. Eu não estou aqui pra trabalhar pros outros não.” Para a urbanista Ermínia Maricato, integrante do Conselho da Cidade de São Paulo, atrair visitantes pelas belezas naturais da região é uma forma de preservá-la e proteger a fauna e as nascentes de rios. “Precisamos dar uma vocação econômica para que não vire um depósito de gente impedida de viver em outros lugares”, afirma. Mas para isso é preciso planejamento e incentivos, permitindo que o desenvolvimento ocorra de maneira correta, em interação com a população local e garantindo a preservação. “São Paulo é tão gigantesca que pode colocar tudo em risco se for uma avalanche de gente. É importante fazer a divulgação para que ocorram iniciativas para se criar infraestrutura e impedir ocupações predatórias”, pondera.

que mais para a frente alimentarão as represas Billings e Guarapiranga, também na zona sul, impressiona. Dentro do sítio ocorre o encontro de dois cursos d’água: o Capivari e o Monos, que dão nome a uma das APA e são hoje os únicos rios limpos da cidade de São Paulo. O verde da região tem, na verdade, uma história de recuperação. A antiga colônia de alemães e japoneses foi um polo de extração de carvão vegetal, alimentando com madeira da Mata Atlântica a indústria da São Paulo do final do século

19 e os motores de trens que ainda passam nas proximidades. Diversas áreas devastadas foram recuperadas com pinus e outras plantas exóticas, mas a vegetação originária vem naturalmente reocupando espaço. No caminho para a cachoeira, há diversos resquícios da história ferroviária da região. Ainda hoje, o tráfego de vagões de carga indo e vindo do litoral é intenso. No entorno da estação Evangelista de Souza, ainda sobrevivem poucas casas da antiga vila de trabalhadores da linha do

ZONA NORTE

Reocupação vegetal

No domingo anterior à incursão da reportagem a região recebeu 160 visitantes, número expressivo para a baixa temporada. Said atribui o recente aumento da procura por lazer nas matas de seu sítio à crise hídrica e a recentes reportagens na imprensa. De fato, o volume das águas

Atlântica no Brasil. Além da trilha do Mirante, há outras duas que levam a nascentes de rios. Contato: pesm.curucutu@fflorestal.sp.gov.br R. da Bela Vista, 7.090, Emburá do Alto, (11) 5975-2000. Terça a domingo, 8h30 às 16h30

ZONA OESTE

ZONA SUL

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6. Mirante da Cratera A Cratera do Colônia foi formada pelo impacto de um meteoro há 20 milhões de anos. É o lar de centenas de famílias. Ainda é possível observar as alterações na topografia do bairro a partir de pontos altos de Vargem Grande e do próprio Colônia. 7. Solo Sagrado Construído para ser um protótipo do paraíso por seguidores da igreja Messiânica, é considerado espaço ecumênico. A proposta é curtir a natureza e ter momentos de paz. Há lanchonetes e cursos no local. Av. Prof. Hermann Von Ihering, 6.567, Jardim Casa Grande, (11) 5970-1000, secom@ solosagrado.org.br

CENTRO

Grajaú APA Bororé-Colônia 6 9

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PARELHEIROS APA Capivari-Monos 3

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Marsilac 4

8

Parque Estadual da Serra do Mar

1

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ZONA LESTE

8. Vila Ferroviária A vila Evangelista de Souza, fundada em 1935, é tombada como patrimônio histórico da cidade, mas resta pouco dela. Algumas famílias ocupam casas do conjunto. Até 1997, o trem transportava passageiros, mas hoje, apenas vagões de carga, indo e vindo do litoral, param na estação. Acesso a pé à Cachoeira do Jamil. É fundamental consultar um guia para se chegar à vila. 9. Aldeias Guarani Duas aldeias guarani na região, Tenondé Porã e Krukutu, permitem contato com a cultura das etnias, danças e rituais tradicionais, comprar artesanato e livros de escritores locais. O guarani é falado fluentemente. É preciso agendar a visita. Aldeia Krukutu: (11) 5978-4225. Aldeia Tenondé Porã: (11) 5977-3689 / 99848-2812 – tenonde@gmail.com REVISTA DO BRASIL

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JOSÉ CORDEIRO/SPTURIS

trem. Algumas delas foram ocupadas recentemente por moradores, mas outras estão totalmente depredadas. A estação atendia a passageiros até o final dos anos 1990 e hoje serve como pátio de manobra de cargueiros. O trajeto inclui a passagem pelos territórios indígenas das aldeias Tenondé-porã e Krukutu, que abrigam falantes da língua guarani. Eles produzem artesanato e recebem visitas pré-agendadas para quem quiser conhecer a cultura e os hábitos de quem vive ali. Na Krukutu, também é possível encontrar obras do escritor Olívio Jekupé, autor de livros de histórias tradicionais. Membro do conselho popular da região, Fernando de Souza, o Fernando Bike, acredita que a crescente popularidade das matas da região tenha também influên­cia das placas de sinalização instaladas pela prefeitura desde a Avenida Teotônio Vilela, em Interlagos. “É um investimento simples e dá resultado”, avalia. De fato, seguindo as placas é possível chegar aos principais pontos de interesse da região. Mas há pegadinhas: a estrada apontada para ir à cachoeira do Jamil, por 46

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exemplo, fica inacessível depois de chuvas – há rotas não sinalizadas que são as de fato usadas por quem é dali. É o caso de Fernando. A prática de mountain bike proporcionou experiência para conduzir grupos em passeios turísticos na região da mata. Ele mora há 20 anos no centro da Cratera do Colônia, resultado do impacto de um asteroide que sacudiu o que viria a ser São Paulo milhões de anos depois. A cratera também pode virar uma atração, que ajudaria a preservar a área de mata que ainda resta no bairro superpovoado de Vargem Grande. Nas bordas do imenso buraco, há pontos de observação privilegiados do acidente geológico e da floresta do entorno. “Toda essa região tem muito potencial. Mas para que os moradores se sintam mais seguros para investir em infraestrutura, a prefeitura precisa fazer a regularização fundiária dos imóveis”, afirma Fernando Bike. A região tem cerca de 140 mil habitantes, a maioria pessoas de baixa renda que se instalam por lá sem alternativa de moradia em áreas com infraestrutura.

DANILO RAMOS/RBA

CAIXA D’ÁGUA Ao contrário das outras regiões da cidade de São Paulo, a Sul, onde está Parelheiros, surpreende pelo volume de água

“A GENTE QUER INVESTIR” Said e Cintia Rodrigues querem explorar o potencial turístico do local


LALO LEAL

A barbárie no ar “Então, a praga acabou de ser grampeada... Passa logo fogo num cara desse aí... É uma pena que ele não reagiu, porque a rapaziada passaria fogo nele de uma vez e tava tudo certo”

E

xatamente 1.936 violações de direitos são cometidas em um mês no rádio e na TV, por apenas 30 programas. Os autores dessa façanha não são os personagens, geralmente negros e pobres, apresentados com estardalhaço diariamente pelos programas policialescos. São os próprios apresentadores, em conluio com repórteres e produtores – a autoridades –, sob o comando dos dirigentes das emissoras que abrem espaços para essas aberrações. A constatação está numa pesquisa realizada pela Andi – Comunicação e Direitos, uma organização social que há 21 anos trabalha para dar visibilidade na mídia a questões relacionadas aos direitos das crianças e dos adolescentes. Entre outras ações, criou o projeto Jornalista Amigo das Crianças, que já reconheceu com essa qualidade 392 profissionais em atuação no país. Os chamados programas policialescos entraram na mira da Andi diante das seguidas violações cometidas contra a infância e adolescência. A pesquisa constatou que as violações, em nove categorias de direitos, vão muito além dessas faixas e atingem toda a sociedade. Exemplos não faltam. A presunção de inocência, uma das categorias selecionadas pela pesquisa, é constantemente violada. No programa Balanço Geral, da TV Record, uma chamada diz “Pai abandona filho em estrada do RS” e o apresentador acrescenta: “Um pai abandonou uma criança nas margens de uma rodovia? Fez!” Apesar do desmentido do pai, a acusação constitui um claro desrespeito à presunção de inocência, garantida no artigo 5º da Constituição brasileira. O estímulo à violência como forma de resolver conflitos é outra marca desses programas. Como nesse exemplo pinçado pela pesquisa na Rádio Barra do Pirai AM, programa Repórter Policial. Uma pessoa acaba de ser presa pela polícia e o apresentador anuncia: “Então, a praga acabou de ser grampeada. Não seria o caso, né? Passa logo fogo num cara desse aí! (...) É uma pena que ele não reagiu, porque a rapaziada passaria fogo nele de uma vez e tava tudo certo”. Só nesse caso são violadas cinco leis brasileiras, cinco

acordos internacionais firmados pelo Brasil e um código de ética profissional. Entre eles a Constituição Federal, o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão (é considerada infração ao regulamento “incitar a desobediência às leis ou às decisões judiciárias” e “criar situação que possa resultar em perigo de vida”) e o Código de Ética dos Jornalistas Profissionais (jornalista não pode usar o jornalismo para incitar a violência, a intolerância, o arbítrio e o crime). Outra categoria: discurso de ódio e preconceito. No programa Brasil Urgente, da TV Bandeirantes, o apresentador José Luiz Datena faz enquete para saber quem acredita em Deus e diz: “...ateu eu não quero assistindo o meu programa. ‘Ah, mas você não é democrático.’ Nessa questão não sou não, porque um sujeito que é ateu, na minha modesta opinião, não tem limites, é por isso que a gente tem esses crimes por aí...” Só com essas frases o apresentador violou seis leis brasileiras, três pactos multilaterais firmados pelo Brasil e mais uma vez o Código de Ética dos Jornalistas, além de desrespeitar princípios e declarações internacionais de defesa da liberdade de expressão. E ainda ignorar os muitos crimes de Estado, guerras e outras violências que foram cometidos ao longo da história, e ainda o são, em nome de supostas causas religiosas. O fato de se apresentarem como “jornalísticos” faz com que esses programas escapem da classificação indicativa de horários para determinadas faixas etárias do público telespectador. Passam a qualquer hora oferecendo às crianças e jovens esse festival de ódio e violência. Mas de jornalismo têm pouco. São programas de variedades, espetacularizando fatos dramáticos da vida real com tentativas até de fazer um tipo grotesco de humor. Numa edição gaúcha do programa Balanço Geral, por exemplo, o apresentador Alexandre Mota, ao narrar a morte de um suspeito pela polícia, fingia chorar copiosamente clamando de forma irônica pela vinda dos defensores dos direitos humanos. Em seguida, estimulado por uma repórter, passa a sambar alegremente diante das câmeras. REVISTA DO BRASIL

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Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

AZMINA.COM.BR

O Rio de Evandro Teixeira

Feminina e feminista

Lançada on-line e com conteúdo aberto, AzMina é uma revista mensal, sem fins lucrativos, que pretende construir um novo senso de beleza e dar ferramentas para as mulheres reafirmarem seu poder. A publicação traz reportagens, ensaios de moda que contemplam corpos reais, sugestões de looks que cabem no bolso, textos de colunistas travestis e modelos transexuais. Na edição de setembro, por exemplo, AzMina trouxe um beabá da legislação da violência doméstica contra a mulher, reportagem sobre Sochua, uma ativista que elegeu 900 mulheres no Camboja, e fala sobre as dores das mães de travestis, patrões abusivos, entre outros temas. Grátis. 48

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O trabalho do fotógrafo Evandro Teixeira confunde-se com o imaginário carioca: é ele o autor da famosa foto da Passeata dos 100 mil, com milhares de rostos, e o cartaz “Abaixo a Ditadura – povo no poder” e de muitas outras imagens que atravessam aspectos diversos da Cidade Maravilhosa. E sua obra vai além do Rio de Janeiro. A exposição Evandro Teixeira: A Constituição do Mundo, em cartaz até 31 de janeiro de 2016 no Museu de Arte do Rio (MAR), resgata seus quase 60 anos de fotojornalismo e apresenta ensaios documentais sobre a região de Canudos e uma série dedicada à morte de Pablo Neruda e às circunstâncias políticas no Chile. De terça a domingo, das 10h às 17h, na Praça Mauá, 5, no Centro do Rio de Janeiro. R$ 4 e R$ 8. Grátis às terças.

FOTOS: EVANDRO TEIXEIRA/DIVULGAÇÃO

curtaessadica


TRABALHO

Infâncias brasileiras Entre 2013 e 2015, a escritora, arquiteta e designer gráfica Roberta Asse viajou pelo país em busca de histórias sobre o cotidiano de crianças de diferentes estados brasileiros. Ela passou por cidadezinhas de Minas Gerais, Bahia, Tocantins, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Mato Grosso e Pará, onde conheceu diversas infâncias, tão diferentes e ao mesmo tempo tão iguais. Foi assim que nasceu a Coleção das Crianças Daqui,, da Editora Criadeira. “Para conhecer maneiras diferentes ou parecidas de brincar, cantar, fazer e aprender, viajei pelo Brasil e fui recebida por uma criançada generosa, que me ensinou tanta coisa e me deu inspiração para inventar essas histórias. Bom é conhecer nosso país e se encantar. Aqui é por meio da literatura, esta mágica humana de acesso aos universos mais diversos e transformadores”, afirma a autora. Com textos e ilustrações de Roberta Asse, a coleção valoriza a cultura e os aspectos linguísticos de cada local visitado. A autora reproduziu em suas histórias expressões de oralidade e regionalismos que ouviu das crianças. Ao todo, oito livros compõem a Coleção Crianças Daqui: Pé de Uva, Mão de Menino (Vale dos Vinhedos, RS), Conto de Desencontro (Trancoso, BA), Conversa de Viola e Memória (Vale do Mucuri, MG), Sementes de Cuidado e Capim Dourado (Mumbuca, Parque Estadual do Jalapão, TO),

Escrita Secreta de Montanha e Giz (Vale do Matutu, MG), Pedro Pio na Margem do Rio (ilhas fluviais de Abaetetuba, PA), O Caso do Tuiuiú (Cuiabá Mirim, MT) e A Travessia de Marina Menina (Saco do Mamanguá, RJ). Cada edição custa R$ 28, uma caixa com quatro livros sai por R$ 98, e a coleção completa, por R$ 188. À venda no site www.criadeira.com.br.

Cinema em sintonia

Rap que reconecta

Acaba de ser lançado em DVD o longa-metragem O Lucro Acima da Vida, uma ficção baseada em fatos reais sobre a história de contaminação por agrotóxicos dos trabalhadores da fábrica da Shell/Basf em Paulínia, no interior de São Paulo. O filme, que custa R$ 25, pode ser comprado pelo link http://temporarioglobocine.lojaintegrada. com.br/dvd-o-lucro-acima-da-vida. O valor arrecadado com as vendas servirá para financiar parte da produção de outro longa, também dirigido por Nic Nilson. Corações Marginais, escrito pela atriz Mônica Carvalho e por Nilson, pretende contar a história de uma mãe que age fora da lei para testar a substância subtraída da maconha, o canabidiol, para salvar a vida do filho que nasceu com a síndrome de Gravet.

Em março deste ano, o rapper Emicida fez uma viagem rumo às suas raízes. Os 20 dias que passou no continente africano resultaram no álbum Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, disco que traz 14 faixas recheadas de rajadas contra o racismo. Além de Boa Esperança, rap sobre uma rebelião de empregados negros que ganhou clipe e curta-metragem dirigido por Katia Lund e João Wainer, o álbum tem ainda Mufete, uma homenagem às quebradas de Cabo Verde e Luanda, a participação de Vanessa da Mata, em Passarinhos, e de Caetano Veloso, na balada Baianas. O segundo álbum de Emicida cria uma ponte com conexão direta para a África para que ninguém nunca se esqueça desta atrocidade chamada escravidão, que ainda traz reflexos perversos na sociedade brasileira. Mas mais que protesto, há nas canções a beleza e a sonoridade que conecta os dois continentes. REVISTA DO BRASIL

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ATITUDE

Por Rodrigo Gomes

Fala mansa e teimosa

DANILO RAMOS/RBA

Depois de perder sua casa, Gerôncio, morador do Jardim Edite, foi à Justiça e conquistou moradia para mais 251 famÌlias

D

e fala mansa e firme, Gerôncio Henrique Neto ensinou como a teimosia de uma comunidade – e a dele mesmo – conseguiu transformar em realidade o conjunto habitacional Jardim Edite, na zona sul de São Paulo. Bem no lugar da favela hostilizada pelos prédios que ocuparam ostensivamente o entorno da Avenida Luís Carlos Berrini. Gerôncio se viu líder comunitário “no tempo do Maluf ”. De onde vem a persistência? – Vim para São Paulo fugindo da seca e da fome. E para me tratar de um problema no estômago. Aqui no Edite eu perdi dois filhos. Um morto pela polícia, outro, por bandidos. Mas nunca perdi a fé na justiça. É isso que me move – contou, certa vez. Durante três décadas, 252 famílias viveram na várzea do córrego Água Espraiada. Suportaram pressões, ameaças, manobras políticas, tentativas de cooptação, incêndio. Em permanente batalha. Até se tornarem moradoras do conjunto erguido na confluência das avenidas Luís Carlos Berrini, Jornalista Roberto Marinho e Chucri Zaidan. – Há 50 anos, isso aqui era lugar que ninguém queria saber. 50

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Mato e enchente. A Berrini se chamava Marginal e corria à beira de um riacho que saía do Água Espraiada – lembrava Gerôncio Henrique Neto, quando recebeu a reportagem da RBA, em novembro de 2013, então com 70 anos. Os primeiros 150 apartamentos foram entregues em dezembro de 2012. Os últimos, em maio do ano seguinte. Quem observa as pessoas entrando e saindo, as crianças indo e vindo da escola, pode não ter ideia dos anos de incerteza e resistência que essas famílias viveram. Uma prosa no pequeno jardim do prédio é um caminho para reconstruir essa história. Gerôncio foi uma dessas boas prosas. Ele partiu dia 17 de setembro, depois de sofrer um atropelamento. Deixou no conjunto habitacional Jardim Edite sua lição de fé na justiça. No apartamento 81 do prédio Edite 1, sua mulher, dona Corália, vive com a neta de 20 anos. Uma filha é vizinha no mesmo andar, outra, no 12º e um filho, no 6º. Tem ainda um menino que foi para Votorantim, interior paulista, e outro para o Capão Redondo, periferia da capital. Gerôncio se foi, mas os frutos de sua teimosia ainda moram ali.


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