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ELZA SOARES, SAMBA E PUNK Cantora do milênio, a força, o ritmo, a raça

OUTRAS POSSIBILIDADES Mundo novo do audiovisual põe em xeque as novelas e a TV

nº 114 fevereiro/2016 www.redebrasilatual.com.br

Soldado inspeciona reservatório de água que pode conter larvas do Aedes aegypti

ZIKA

UMA GUERRA

DE TODOS Combate ao mosquito da dengue e seus males une países, governos, ciência e população


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ÍNDICE

EDITORIAL

8. Política

Os interesses por trás da caça a Lula e do bloqueio a Dilma

12. Saúde

Luta contra o Aedes une países, governos, ciência e populações

18. Trabalho

O esforço global para que ações anti-escravidão não retrocedam

20. Mobilidade

Redução de velocidade: um trânsito menos letal é possível

26. Ciência

IEC/FLICKR

Marco civil da inovação, mais pesquisa e menos burocracia

32. Entrevista

Pesquisadores do Instituto Evandro Chagas identificaram elo entre o zika e a microcefalia

Elza Soares, voz do milênio: mulher, negra e livre

Quanto melhor, melhor

36. Música

A

DIVULGAÇÃO

A qualidade e o “sabor” dos discos de vinil

Cena de Paraisópolis

42. Cultura

Ou as novelas e a própria TV se reinventam, ou acabam

46. Cidadania

Um conteúdo na cabeça e uma ferramenta na mão

Seções Cartas Na Rede

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Mauro Santayana

10

Marcio Pochmann

29

Emir Sader

30

Lalo Leal

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Curta essa dica

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Atitude

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lguns aspectos chamam a atenção nas operações de enfrentamento ao Aedes aegypti e aos males por ele propagados. O primeiro é o papel dos sistemas de saúde pública na descoberta da ligação do mosquito da dengue e da chikungunya com a transmissão do vírus zika. Foi um órgão público, o Instituto Evandro Chagas, vinculado ao Ministério da Saúde, o primeiro a encontrar a presença de zika em amostras de tecidos e sangue de um bebê com microcefalia que morreu pouco depois do nascimento, no Ceará. São centros públicos de pesquisas, em diferentes instâncias – como Fiocruz, ­Butantan, Unicamp – os mais adiantados em experimentos visando, no médio prazo, à descoberta de vacinas, e no curto prazo, à aceleração de diagnósticos. E tem cabido a autoridades públicas – federais, estaduais e municipais – conduzir o envolvimento da população na “guerra” ao mosquito. Trata-se de uma intervenção ilustrativa do papel do Estado na defesa do interesse coletivo. É sabido que o paladar do Aedes, hoje, é menos exigente e mais democrático. Já não faz questão de água limpa e gosta de toda gente, sem distinção de classe. Ricos e pobres estão sujeitos a permitir a desova do mosquito e a se expor a sua picada. E estão todos chamados à responsabilidade de participar da batalha. Mas se sabe também que o inseto encontrou ambiente propício para se desenvolver em climas tropicais e lugares descuidados de saneamento básico. O Brasil tenta tirar esse atraso. Desde 1990, passou de 70% para 82% o contingente de brasileiros com acesso a água tratada. Os investimentos federais em ampliação da oferta de água e tratamento de esgoto somaram R$ 104 bilhões entre 2007 e 2015. Mas o fato de o ­Estado durante décadas não ter olhado para essas carências faz com que 35 milhões de brasileiros ainda não tenham acesso a água e outros 100 milhões, a coleta de esgoto. É longo, ainda, o caminho a percorrer, e espaço para críticas não falta. O país, no entanto, vive um raro momento de comunhão de esforços e de divisão de responsabilidades. Que esse momento seja valorizado e sirva de referência para que a classe política aprenda a travar suas disputas e divergências civilizadamente, sem pôr em risco o funcionamento do Estado, dos poderes – e da democracia. O “quanto pior, melhor” não é melhor para ninguém. REVISTA DO BRASIL

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CARTAS www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Helder Lima, Hylda Cavalcanti, Rodrigo Gomes e Sarah Fernandes Arte Leandro Siman Iconografia Sônia Oddi Capa Foto de Mario Tama/Getty Images. Luisa Santosa/RBA (Elza Soares) Divulgação (novela). Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 (Carla Gallani) Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Tiragem 120 mil exemplares

Conselho diretivo Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Douglas Izzo, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eliana Brasil Campos, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Glaucus José Bastos Lima, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Raimundo Suzart, Raul Heller, Roberto von der Osten, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior

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Democracia Os delegados da PF, procuradores do MPF e o juiz abusam das prerrogativas dos cargos. O Brasil perde grande chance de sanear a política e o próprio país, quando a Operação Lava Jato se torna partidária, tendenciosa, com tratamentos seletivos, transformando tudo num gigantesco nefasto “BBB”. Se a Justiça não promover mudança nesta equivocada orientação, a operação fracassará. Uma investigação não pode prejudicar a vida de uma nação e a economia de um país. Tem algo de muito errado nisso (“O caminho é o da mudança”, ed. 113). Mario Jardim Reorganização escolar O projeto tucano de “reorganização” não consta do Plano Estadual de Educação de São Paulo, em tramitação na Assembleia Legislativa. Foi tirado da cartola menos de dois meses depois de o Tribunal de Contas do Estado apontar ressalvas às contas do governador. Pelo quarto ano seguido, os conselheiros apontaram déficit orçamentário. Só no ano passado, os gastos superaram as receitas em R$ 355 milhões. Em 2013, R$ 994 milhões; em 2012, R$ 982 milhões; em 2011, R$ 1 bilhão. O tesouro estadual viu seu cofre minguar de R$ 7,9 bilhões, em 2012, para R$ 1,8 bilhão no ano passado. Caiu também a arrecadação estadual, de R$ 136,2 bilhões para R$ 131,5 bilhões (“A escola é nossa”, ed. 112). Cesar Augusto Duarte

Na época da reorganização feita pelo Mario Covas eu estava em transição da 7ª para a 8ª série, quando fui transferido de uma escola de comportamento padrão (Monsenhor Passalacqua), na qual havia uma única inspetora de alunos no intervalo que acabava ajudando na cantina, já que qualquer tipo de ocorrência ou desordem era rara, para uma outra (Dom João Maria Ogno) claramente despreparada para a mudança, e como forma de controle dos alunos a cada ano aumentava o número de grades. Como o histórico escolar citava apenas os locais de conclusão (antigas 8ª série e 3º colegial), eu nem sequer tive citada no histórico a escola onde passei 8 dos 12 anos de educação. A escola que foi fechada hoje, é uma secretaria de Estado da Educação. Triste passar por ela e ver os antigos pátios e quadra ocupados por tantos carros. A escola Dom João Maria ­Ogno obteve algumas melhoras em estrutura, não mais que isso. Eduardo Anik Nenhuma escola será fechada. As escolas ociosas serão usadas para novas creches, Etecs e Fatecs. A separação por ciclos vai melhorar a qualidade da educação. Os alunos terão material, mobiliário e atendimento voltados a sua idade. Nenhum aluno ficará a mais de 1,5 quilômetro de sua casa. As escolas já separadas por ciclos apresentam rendimento superior às demais. A Apeoesp sempre será contra qualquer proposta do governo de SP. Eles não defendem a educação, o que eles defendem são os interesses do PT. Welbi Maia Brito

Grande Sertão Tomara que essa comissão siga até o final, retome as terras usurpadas e as devolva aos verdadeiros guardiões (“A verdade no grande sertão”, ed. 113). Luís Carbonário

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


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Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

MARCOS SANTOS/USP IMAGENS

Refúgio na campeã

Uma das atrações esperadas para este carnaval foi o desfile de crianças refugiadas acolhidas pelo Brasil na Mangueira do Amanhã, ligada à tradicional escola verderosa. A ideia partiu da cantora Maria Bethânia, homenageada neste ano pela Mangueira. Participariam crianças de sete países (Angola, Congo, Jordânia, Líbia, Palestina, Síria e Sudão), que vivem no Brasil com familiares. bit.ly/rba_mangueira

Desde janeiro, com reajuste de 11,67%, o salário mínimo passou a valer R$ 880, o que representa ganho real (acima da inflação) de 77,3% desde 2002, segundo o Dieese. Também terá o maior poder de compra desde 1979. O instituto calcula que o novo mínimo representará a entrada de R$ 57 bilhões na economia, com impacto de R$ 30,7 bilhões na arrecadação de impostos. O mínimo corresponde a 2,14 vezes o valor da cesta básica calculado pelo Dieese – em 1995, início do governo Fernando Henrique Cardoso, essa proporção era a metade (1,02). bit.ly/rba_mínimo

ROVENA ROSA/AGÊNCIA BRASIL

MARCOS SANTOS/USP IMAGENS

Mais que o mínimo

Por que aumentou? Depois do anúncio de reajuste nas tarifas de transporte coletivo em São Paulo, em janeiro, várias organizações da sociedade se mobilizaram em protesto contra o aumento. Algumas manifestações foram marcadas, mais uma vez, por violência policial. O reajuste não foi revogado, como queriam entidades como o Movimento Passe Livre (MPL), mas o debate segue em aberto. bit.ly/rba_tarifa1 REVISTA DO BRASIL

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REDEBRASILATUAL.COM.BR

A cultura sobrevive

Para o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, a crescente influência do capital sobre a política é um aspecto fundamental da crise da chamada democracia representativa. Em debate no Fórum Social Mundial, realizado em Porto Alegre, ele citou ataques do neoliberalismo aos Estados, ameaçando processos de distribuição de renda e políticas sociais. E pediu união da esquerda. bit.ly/rba_boaventura

Mentalidade encarceradora

ROVENA ROSA/AGÊNCIA BRASIL

A cultura sofreu duros golpes nos primeiros dois meses do ano, com incêndios que atingiram o Museu da Língua Portuguesa e a Cinemateca Brasileira, ambos na cidade de São Paulo – bit.ly/ rba_cinequeima. No primeiro caso, o fogo parece ter causado mais danos físicos, embora o acervo possa ser preservado, por causa da existência de cópias virtuais. Na Cinemateca, mil rolos de filme foram atingidos, mas a maior parte também tem cópia. Mas nem tudo é má notícia. A Cinemateca Popular Brasileira tem 1.235 filmes nacionais disponíveis no Youtube. A lista é atualizada todos os anos. bit.ly/rba_cinepopular

Recuperação do Museu da Língua Portuguesa já começou

O poder do capital

Kenarik Boujikian

Está nas mãos de 28 magistrados do Tribunal de Justiça de São Paulo o futuro da desembargadora Kenarik Boujikian. Ela é alvo de representação por parte de um “colega”, Amaro José Thomé Filho, por ter expedido alvarás de soltura para dez réus presos preventivamente há mais tempo do que a pena estabelecida na sentença. Conhecida por sua atuação na defesa dos direitos humanos e por ser uma das fundadoras da Associação Juízes para a Democracia, a magistrada foi acusada, ao cumprir a lei, de “usurpar a competência do juízo” e de “violar o princípio da colegialidade”. Se a representação for aceita (Kenarik tem um voto favorável e o julgamento foi suspenso no final de janeiro por pedidos de vista), será aberto procedimento disciplinar por delito funcional contra a desembargadora, que passaria a estar sujeita a punições que vão de advertência a aposentadoria compulsória. “Tudo indica que as decisões de Kenarik, questionadas na Corregedoria, embora legais e justas, confrontam-se com a mentalidade punitivista e encarceradora de outros membros do Tribunal de Justiça de São Paulo – infelizmente, muito presente em todo o nosso sistema de justiça criminal”, afirma em nota a Pastoral Carcerária. bit.ly/rba_kenarik

Nova política para a saúde mental A nomeação de Valencius Wurch Duarte Filho para a área de saúde mental do Ministério da Saúde provocou reação negativa entre ativistas do setor, que passaram a protestar e a procurar representantes do governo para pedir sua saída. Para várias entidades, a “postura conservadora” do novo coordenador pode representar retrocesso. Em 1995, Wurch criticou um projeto de lei que daria origem ao atual marco regulatório para uma política nacional de saúde mental. Ele também dirigiu uma casa de saúde na Baixada Fluminense, onde, conforme relatório da Comissão de Direitos Humanos da Câmara, eram cometidas graves violações aos direitos humanos. bit.ly/rba_mental 6

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PAULO LIEBERT/AE

MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

Boaventura: união da esquerda


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DANILO RAMOS/RBA

Levantamento parcial aponta mais de 900 classes fechadas neste ano

Drible na Justiça e na educação Apesar de a Justiça impedir a execução do projeto de reorganização das escolas estaduais de São Paulo, que previa o fechamento de prédios e a transferência de alunos de forma compulsória, o governo Geraldo Alckmin tem aplicado parte da proposta de forma velada, com o fechamento de salas de aulas, em várias regiões do estado. A Apeoesp, sindicato dos professores da rede pública estadual, tem feito levantamentos em suas 93 subsedes sobre fechamento de classes, séries/ anos e turnos, transferências compulsórias de estudantes, negativas de matrículas e outras ocorrências. Até o fechamento desta edição, a entidade apurou o fechamento de pelo menos 1.112 classes, em 47 regiões.

Como ainda faltavam informações de outras 54 regiões, o número pode ser consideravelmente maior. Além disso, algumas regiões informaram o fechamento de turnos, sem quantificar o número de classes fechadas. Para a Apeoesp, essas medidas configuram uma “reorganização disfarçada” das escolas estaduais e um desacato a decisão Judicial. Em nota, a entidade ressalta: “Também é preciso considerar que em 2015 contabilizamos o fechamento de 3.390 classes que, somadas às que já foram fechadas até o momento, dão a dimensão do enxugamento que o governo vem fazendo, provocando, ao mesmo tempo, a superlotação das salas de aulas”. bit.ly/radio_reorganizacao

Alunos que entraram neste ano pelo sistema de cotas na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) obtiveram notas melhores que os não cotistas no último vestibular, em 2013. Depois daquele ano, a seleção passou a usar exclusivamente o Sistema de Seleção Unificado (Sisu). No curso de Medicina, o mais concorrido, os cotistas tiveram de alcançar a nota mínima de 750 pontos para garantir uma vaga. Em 2013, os demais alunos tiveram pontuação de 685,3. Esse foi o primeiro ano em que 50% das vagas foram reservadas para o sistema de cotas, como prevê a lei. bit.ly/tvt_ufmg

DIVULGAÇÃO

Cotas de sabedoria

Cotistas tiveram melhor desempenho no Sisu para Medicina REVISTA DO BRASIL

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POLÍTICA

CASA-GRANDE INCOMODADA Sob o mandato de Lula, a Petrobras se transformou numa das maiores empresas do mundo

Interesses por trás do ataque As ferozes tentativas de ligar o ex-presidente Lula a ilegalidades e de impedir Dilma Rousseff de governar revelam interesses presentes na história brasileira desde Getúlio Vargas Por Eduardo Maretti

O

ano de 2016 não começou com a calmaria típica do mês de janeiro, quando normalmente a imprensa carece de notícias. Ao contrário, as manchetes foram fartas, com o recrudescimento feroz das tentativas de ligar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a ilegalidades. Embora não haja nenhum indício concreto, muito menos 8

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provas contra Lula, as insinuações de que as investigações “se aproximam” do líder metalúrgico que governou o Brasil por oito anos com maior índice de aprovação popular proliferaram nas primeiras semanas do ano. Enquanto isso, as violações a direitos constitucionais básicos pela Operação Lava Jato continuam, segundo operadores do Direito. Na sexta-feira 15 de janei-

RICARDO STUCKERT/ PR (02/09/2008)

ro, 105 advogados e juristas divulgaram “carta aberta” na qual acusam a operação baseada em Curitiba de violar diversas garantias fundamentais da Constituição. “O que se tem visto nos últimos tempos é uma espécie de inquisição (ou neoinquisição), em que já se sabe, antes mesmo de começarem os processos, qual será o seu resultado”, afirmaram os signatários. O documento lembrou a parceria entre os grandes veículos de comunicação e parcela do sistema judiciário do país, em vigor desde 2005, quando explodiu o chamado “mensalão”. Sem essa parceria – fundada na produção sistemática de manchetes e notícias que alimentam processos judiciais e vice-versa –, a Lava Jato não teria o alcance que atingiu. Em referência a uma das revistas semanais brasileiras, a carta aberta dos advogados afirma: “Numa atitude inconstitucional, ignominiosa e tipicamente sensacionalista, fotografias de alguns dos réus (extraídas indevidamente de seus prontuários na unidade prisional em que aguardam julgamento) foram estampadas de forma vil e espetaculosa, com o


POLÍTICA

do petróleo. No âmbito político, o vazamento das delações premiadas têm atingido principalmente o PT, ainda que não esteja neste partido a maior parte dos políticos mencionados nas delações”. “No âmbito social, tem contribuído para acirrar os ânimos e a criar situações de grande hostilidade, intimidação e risco para indivíduos. No âmbito jurídico, o modo como tem sido conduzida a operação deve causar preocupação a todos os que consideram fundamental a democracia e os direitos de cada cidadão perante o Judiciário, o Ministério Público, a polícia e os meios de comunicação”, acrescenta Guimarães. O objetivo final é o de sufocar o Estado que as forças que governaram o país no passado chamam de “intervencionista”, termo com que tentam caracterizar pejorativamente o papel do Estado sob as gestões de Lula e Dilma. A Petrobras é a grande líder do setor de petróleo e gás no país, responsável por 13% do PIB nacional. A ideia para se chegar ao objetivo é desmoralizar a Petrobras, usando para isso o princípio liberal de que Estado é sinônimo de corrupção. Uma vez desmoralizada e economicamente inviabilizada, a companhia poderia ser privatizada mais facilmente, num eventual governo futuro, talvez a “preço de banana”, como aconteceu com a Vale em 1997, sob a ges-

AGÊNCIA PETROBRAS

claro intento de promover-lhes o enxovalhamento e instigar a execração pública”. Mas, para além dos objetivos mais visíveis, como simplesmente inviabilizar a volta do metalúrgico à Presidência da República em 2018 ou levar pessoas às masmorras sem direito ao contraditório, tudo em nome do combate à corrupção, há interesses menos aparentes. Não é mera coincidência que a Petrobras “está no centro” das investigações da Lava Jato, como destaca a mídia tradicional desde o início da operação, desencadeada em 17 de março de 2014. Não por acaso, o impacto negativo da Lava Jato na economia brasileira chegou a 2,5% no Produto Interno Bruto, num quadro em que a queda do PIB é estimada em cerca de 3,5% em 2015. Ao defender a divulgação da carta dos advogados, o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães assim resumiu seus motivos: “A Operação Lava Jato está tendo um impacto econômico, político, social e jurídico muito importante. No âmbito econômico, as investigações estão atingindo algumas das principais empresas de capital brasileiro com capacidade de competir internacionalmente. No mesmo âmbito, têm atingido as atividades da Petrobras, que é a maior empresa brasileira, com graves repercussões sobre as empresas que integram a cadeia produtiva

O PETRÓLEO É NOSSO Vargas assina Lei 2.004, em 3 de outubro de 1953, que criou a Petrobras

tão Fernando Henrique Cardoso. Diversos economistas ouvidos pela Rede Brasil Atual desde 2014 já alertavam para uma distorção intrínseca à operação: a de que se estava confundindo pessoas com instituições e combate à corrupção com desmantelamento de empresas fundamentais à economia do país. “Estou observando uma tendência na sociedade brasileira de achar que não tem importância em destruir a Petrobras e as empreiteiras. Só que elas são responsáveis por uma parcela muito importante do investimento no país”, afirmou, por exemplo, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo. “Na Lava Jato, vemos um protagonismo absurdo de algumas pessoas, por parte do Judiciário. Não se separam as pes­soas das empresas, como deveria ser feito. É totalmente incompatível com qualquer projeto de nação. Você destrói o que existe de capacidade produtiva no país”, disse, por sua vez, Giorgio ­Romano Schutte, professor de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC. Apesar de tudo, as distorções dos setores do Judiciário – com a cumplicidade da mídia – são passíveis de correção. O jurista Pedro Serrano defende que o país tenha novas leis para proteger direitos hoje ameaçados e corrigir o que chama de “Estado autoritário no interior da democracia”. Entre outras medidas, Serrano propõe que seja corrigida uma lacuna legislativa, que manteve órgãos como Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Polícia Federal e Conselho Nacional do Ministério Público (CNPM) distantes de um controle externo por representantes da sociedade. A guerra contra a Petrobras como símbolo do Estado brasileiro não é nova. “Quis criar liberdade nacional na potencialização das nossas riquezas através da Petrobras e, mal começa esta a funcionar, a onda de agitação se avoluma”, escreveu Getúlio Vargas em sua carta-testamento em 1954, menos de um ano depois da criação da estatal. Não foi por acaso que Dilma afirmou mais de uma vez: “Eu não sou Getúlio, não sou Jango, não sou Collor. Não vou me suicidar, não faço acordo, não renuncio”. REVISTA DO BRASIL

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MAURO SANTAYANA

Caminho é aumentar a força da Petrobras Petroleiros e sociedade civil têm de se organizar para evitar o desmonte, o esquartejamento e a venda atabalhoada de ativos – enfim, a entrega da companhia a preço de banana, como querem alguns

U

ma das principais frentes da campanha atual contra a Petrobras está no discurso de entrega aos gringos de várias porções da empresa, tanto por meio da venda de ativos como de mudanças nas regras que garantem a continuidade de seu papel de operadora nos poços da camada pré-sal, a maior descoberta da indústria do petróleo do último meio século. Embalados pelas acusações de desvios e prejuízos na empresa – já passou da hora de os petroleiros interpelarem a diretoria e eventualmente, a PricewaterhouseCoopers, para que provem os “desvios” de R$ 6 bilhões incorporados ao balanço do início do ano passado –, os entreguistas de sempre continuam a dizer que os estrangeiros não investem no setor do petróleo no Brasil por causa das regras do pré-sal, da lei de conteúdo nacional, do Marco Regulatório do Petróleo e da excessiva intervenção do governo. Esse discurso não passa de grosseira manipulação e de uma tentativa rasteira de se enganar desinformados e de se alimentar os trolls antinacionais em seus raivosos ataques na internet. Com os preços atuais, as grandes empresas multinacionais de petróleo não entrariam no mercado brasileiro nem na exploração, nem na operação, mesmo que as reservas que ainda não estão em fase de exploração lhes fossem entregues de graça. Em primeiro lugar, porque não dominam, a exemplo da Petrobras, o conhecimento que permite extrair o petróleo do pré-sal a preço competitivo, mesmo com um preço internacional de US$ 30 o barril. E, depois, porque com o preço lá em baixo a ordem é enxugar a oferta para ver se a cotação volta a subir no futuro. Essa é a tese do diretor da Agência Internacional de Energia, Fatih Birol, entrevistado por um jornal brasileiro, no mês passado, no Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça. Birol afirmou que, embora haja expectativas “muito positivas” com relação ao aumento da produção do Campo de Lula pela Pe10

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trobras, não há espaço para a entrada de empresas estrangeiras no Brasil, em projetos futuros, até que haja uma eventual recuperação dos preços. Levantamento feito pela consultoria britânica especializada em petróleo Wood Mackenzie, reproduzido pelo Wall Street Journal, também no início do ano, mostra que as multinacionais ocidentais estão tão propensas a investir que estão cortando 68 grandes projetos no mundo. Isso em lugares onde já estavam instaladas, contando, ao contrário do Brasil, com ampla liberdade de ação. Em 2015, a redução de custos do setor, que inclui investimentos, foi de US$ 380 bilhões. Apenas na segunda metade do ano passado, 22 projetos foram interrompidos, relativos à produção futura de 7 bilhões de barris de petróleo e gás equivalente. A grande maioria deles fica em águas profundas – como o pré-sal – e localizada nos Estados Unidos, Canadá, Moçambique, Angola, Cazaquistão e outros países.

Do poço à bomba

Em um cenário como esse como alguém pode falar, em sã consciência, em “abrir” o setor aos estrangeiros? O maior ativo da Petrobras não é o pré-sal. O seu principal diferencial estratégico – o que ela tem que suas concorrentes estrangeiras não têm – é o mercado brasileiro. Nenhuma outra grande empresa de petróleo possui, com o país de origem, a ligação e as possibilidades que a Petrobras tem com a quinta maior nação do planeta em população, e a oitava maior economia do mundo. Essa é uma situação que lhe permitiria ampliar, com a adoção de um amplo cronograma coordenado, articulado, sua margem de ganho, sem aumentar o preço para o consumidor. Mas como fazê-lo? Com certeza, não vai ser com a venda atabalhoada de ativos a preço de banana, como querem alguns, principalmente o filé do negócio, situado na ponta da comercialização, como a Gaspetro.


MAURO SANTAYANA

culpa na Petrobras e no governo. Em Brasília, segundo recente levantamento, postos cartelizados ganham R$ 0,64 por litro de gasolina ou de etanol comercializado. Quantos clientes param para calcular quantos litros de combustível são vendidos por hora no posto em que abastecem? De quantas horas de funcionamento um desses postos de gasolina precisa, para pagar, com folga, com uma margem de lucro dessas, os salários de seus funcionários? O descaramento dos cartéis é tão grande – e eles se repetem em várias metrópoles brasileiras – que depois de reiteradas denúncias o Conselho Administrativo de Defesa Econômica interveio no setor, no Distrito Federal. Com as reservas do pré-sal consolidadas e a produção em franco crescimento, a Petrobras deve se voltar agora para o seu objetivo final, o consumidor interno, investindo na compra de distribuidoras e postos próprios de gasolina. A Petrobras aumentou em 5% a sua produção no ano passado. Os preços do petróleo tendem a se recuperar com o recuo da produção, em países onde é mais caro extraí-lo, como os Estados Unidos, um dos principais mercados consumidores do mundo. Os petroleiros – e os setores mais importantes da sociedade civil – têm de se organizar para evitar o desmonte, o esquartejamento e a entrega da Petrobras a qualquer preço. O governo precisa voltar a analisar a possibilidade de capitalização da empresa, com a ampliação da participação pública, aproveitando o atual preço das ações. É preciso aproveitar que os gigantes do petróleo não podem investir em produção neste momento e nem querem dar ouvidos aos entreguistas – deixando-os latindo ao vento – para consolidar, e não diminuir, o fortalecimento da Petrobras no mercado nacional, em benefício do país e da população brasileira.

RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL

Nem, muito menos, com o seu esquartejamento (já vimos esse filme com a Telebras), como já começam a sugerir alguns espertinhos, omitindo, como se imbecis fôssemos, que esse é, na verdade, o primeiro e quase que imprescindível passo para a total privatização da empresa. A Petrobras já está cortando 30% de seus cargos gerenciais e extinguindo diretorias, como a de gás, mas não basta trabalhar com cortes de custos – que devem ser feitos com cuidado para não afetar o desenvolvimento de tecnologia e a sua capacidade operacional. O momento também não aconselha a venda de ativos na área petroquímica, como a participação na Braskem, que produz em mercados como o México, que só agora está se estruturando nessa área e que era atendido basicamente por importações. A venda da participação na BR Distribuidora também pode ser um tiro no pé, principalmente se for feita em um momento como este. Depois da queda no preço de suas ações, em janeiro, o valor da Petrobras tende a se recuperar, já que está extraordinariamente baixo com relação aos seus ativos. Para a maior empresa brasileira, o melhor caminho para enfrentar com sucesso a crise internacional que o setor de petróleo está vivendo neste momento pode ser, invertendo o raciocínio, investir na verticalização, aprofundando-a do “poço ao posto”, eliminando o que puder ser eliminado em custos e em intermediários, na cadeia que leva da produção à venda de combustíveis e lubrificantes para o consumidor final, para maximizar – sem aumentar o preço na bomba – seus ganhos. No Brasil, a margem de lucro dos donos de postos de gasolina é absurda, embora todo mundo – muitos por razões que não têm nada a ver com o interesse dos consumidores – ponha a

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SAÚDE

O fenômeno

ZIKA Elo entre vírus transmitido pelo Aedes aegypti e avanço global dos casos de microcefalia põem o mundo em alerta, unem governos e cientistas e invocam responsabilidade cidadã no combate ao mosquito Por Cida de Oliveira 12

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operação é de guerra. Na noite de 3 de fevereiro, em cadeia nacional, a presidenta Dilma Rousseff conclamou o povo brasileiro a se unir contra o mosquito Aedes aegipty. Não bastasse carregar os vírus da dengue e da febre chikungunya, transmite ainda o zika – que passou de pesadelo distante a ameaça real pelas fortes evidências de causar microcefalia, anomalia até então rara, caracterizada pelo tamanho da cabeça e do cérebro menor que o normal para a idade e sexo do bebê. Entre as consequências, estão problemas neurológicos, musculares e cognitivos. Estudos realizados no Brasil, nos Estados Unidos e na Europa identificaram a presença do vírus no cérebro de bebês que nas-


GABRIEL JABUR/AGÊNCIA BRASÍLIA

DE PORTA EM PORTA Com apoio de Exército, Marinha e Aeronáutica, cada local que pode ser um potencial criadouro das larvas do Aedes aegipty é vasculhado

MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

CRISTINA REIS/PMJ

SAÚDE

SECRETARIA DE SAÚDE DO RECIFE

ceram com microcefalia, bem como na placenta. Foi um órgão público, o Instituto Evandro Chagas, vinculado ao Ministério da Saúde, o primeiro a encontrar a presença de zika em amostras de tecidos e sangue de um bebê morto minutos após o nascimento, com microcefalia, no Ceará. A descoberta evidenciou o elo, observado depois em outros estudos. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês), do governo dos Estados Unidos, analisou amostras de tecidos de bebês que morreram horas depois de nascer, com a mesma anomalia. Os pesquisadores encontraram anticorpos para zika em amostras de tecidos do cérebro e também na placenta. O mesmo Instituto Evandro Chagas constatou que o vírus REVISTA DO BRASIL

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MARIO TAMA/GETTY IMAGES

SAÚDE

MALFORMAÇÃO DO EMBRIÃO Diante do que pode ser um surto, a ONU recomenda inclusão da microcefalia como critério para o aborto legal

causou a morte de um homem de 35 anos em 2015, sugerindo as possibilidades de alcance do zika. Com a ajuda de estados, o Ministério da Saúde investiga 3.670 casos suspeitos de microcefalia – 76,7% das notificações. Desse total, 404 são mesmo de microcefalia e/ou outras alterações cerebrais, apenas 17 relacionados ao vírus. Ao todo, 4.783 suspeitas de microcefalia foram notificadas até 30 de janeiro. Em meio às fortes evidências dessa relação, ressurgiu o debate sobre a inclusão da anomalia entre os critérios para o aborto legal – medida recomendada pela Organização das Nações Unidas (ONU). Como ainda não existe uma vacina ou tratamento específico que anule os sérios efeitos dessa infecção às gestantes, a prevenção é o melhor remédio. E, nesse caso, prevenir significa combater o mosquito transmissor, que já havia sido erradicado na década de 1950 e que voltou 30 anos depois para tirar o sossego de governos, autoridades de saúde e populações. “O único jeito é não deixar o mosquito nascer”, reforçou a presidenta.

Ambiente favorável

“Estamos num país tropical muito favorável à proliferação desse mosquito e à consequente circulação desses vírus. Para 14

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complicar, 80% dos focos estão dentro das residências”, diz o presidente do Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Mauro Junqueira. Gestor municipal na prefeitura de São Lourenço (MG), Junqueira chama a atenção para o aspecto “democrático” do inseto, que não escolhe suas vítimas conforme sexo, raça, idade, profissão ou classe social. Tampouco o padrão das residências e os bairros, pobres ou ricos, onde as fêmeas encontram as condições ideais para colocar seus ovos. “A fêmea gosta de água parada. Antes, preferia água limpa. Agora, está aproveitando até água suja. Então, onde tiver água parada, terá mosquito depositando ovos: piscinas, utensílios que acumulam água, o lixo comum e até garrafas de bebidas, normalmente acumuladas em finais de semana, depois de festas em famílias de todas as classes sociais”, completa Junqueira. Para ele, esse aspecto aumenta o desafio. “O mosquito gosta de gente, seja da classe que for. A população precisa se conscientizar da gravidade do zika e de sua responsabilidade nessa luta de combate ao transmissor. Temos de manter vigília constante, não deixar nenhum criadouro prosperar. E entender que uma possível vacina contra a dengue, ainda em estudos, não substitui o combate ao vetor.” Na guerra ao Aedes, o governo colocou, em 13 de fevereiro, 220


ALEXANDRE CARVALHO/DIVULGAÇÃO

SAÚDE

DÚVIDA No ano passado, a Oxitec soltou – com alarde – o Aedes geneticamente modificado em Piracicaba (SP) sem aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária

mil militares da Marinha, do Exército e da Aeronáutica – 60% do efetivo – em ruas, residências, escolas e outros estabelecimentos de 356 municípios, das capitais e de outras 115 cidades consideradas endêmicas, distribuindo material informativo e conscientizando a população para a necessidade de eliminar potenciais criadouros do mosquito. Até o presidente do Banco Central, Alexandre Tombini, e o chefe da Controladoria-Geral da União, Carlos Higino, estiveram entre os mais de 30 ministros e autoridades escalados para compor a força-tarefa em diferentes municípios.

Em outra frente, o governo brasileiro se reuniu com autoridades de saúde dos países vizinhos para reforçar a vigilância, acompanhar o comportamento do vírus e propor medidas de proteção à população. Uma cooperação que envolve os institutos públicos de saúde brasileiros no treinamento de técnicos – para a realização de testes para a detecção do zika – de Paraguai, Peru, Uruguai e Equador, além de protocolos de atendimento às gestantes e bebês com microcefalia e o de estimulação precoce, lançados assim que foi decretada emergência em saúde. Além de conclamar os brasileiros e pedir “sensibilidade à gravidade da situação” aos parlamentares em pronunciamento na abertura do ano legislativo, Dilma conversou com o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama. Fechou parceria com o governo norte-americano para protocolos de identificação do zika e dos casos de microcefalia, e para pesquisa de vacina. Por aqui, o ministro da Saúde, Marcelo Castro, visitou institutos públicos para discutir parcerias para o desenvolvimento de um imunizante. No caso do Butantan, vinculado à Secretaria Estadual da Saúde de São Paulo, aproveitou para saber mais sobre os atrasos na vacina contra a dengue – que, mesmo que tudo dê certo, não deverá estar pronta antes de 2021.

Correndo atrás

A resposta do governo brasileiro, elogiada pela ONU e pela Organização Mundial da Saúde (OMS), é reconhecida também no Brasil. “É muito importante avisar a população sobre os riscos”, disse o médico sanitarista Gastão Wagner de S­ ousa Cam-

Epidemia questionada Nordeste pode ser explicado pela busca ativa de todo e qualquer caso de microcefalia após o início do rumor, à imprecisão na definição de microcefalia, agora mais ampla que o usual, erros de medição e possível aumento de um ou de vários fatores causais para a anomalia, como prematuridade, infecções virais, parasitárias, bacterianas e uso de álcool durante o primeiro trimestre da gestação. “Deveríamos ter tido 90% das gestantes expostas ao vírus para explicar 45 casos por essa causa”, diz a professora. “O exercício de calcular o número de casos esperados de microcefalia neste momento, no Brasil, perde a utilidade quando existem evidências de um excessivo número de casos diagnosticados que não correspondem à realidade.”

Medição da circunferência do crânio de recém-nascido pode detectar a microcefalia

LEO RAMIREZ/AFP/GETTY IMAGES

Especialista em epidemiologia de malformações, a professora Ieda Maria Orioli, do Instituto de Biologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), questiona a explosão no número de registros de microcefalia. Ao analisar dados do Sistema de Informação sobre Nascidos Vivos e do Estudo Colaborativo Latino-Americano de Malformações Congênitas – estes coletados desde 1967 –, ela é categórica ao afirmar que a notificação dos casos está acima do real. Em Pernambuco, segundo Ieda, eram esperados 45 casos, mas foram registrados 26 vezes mais. A média histórica da prevalência de microcefalia no Brasil é de 2 casos a cada 10 mil nascimentos. O número de registros além do esperado em seis dos nove estados do

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pos, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). A entidade, porém, faz ressalvas ao modelo de combate ao mosquito e defende investimentos imediatos na sustentabilidade das cidades. Em carta divulgada recentemente, a associação destaca a urgência da articulação entre vigilância sanitária, promoção da saúde, desenvolvimento social e educação popular em saúde no controle do vetor. Em resumo, saneamento básico, esgotamento sanitário, coleta de lixo inclusive nos espaços públicos e particulares e principalmente ao fornecimento de água de maneira apropriada e regular, para que a população não tenha de armazená-la muitas vezes de maneira inadequada, multiplicando os criadouros. Não é à toa, segundo o documento, que os casos ou suspeitas de microcefalia têm maior incidência nas áreas mais pobres, onde esses problemas se acumulam e se somam à falta de ações de vigilância à saúde pela falta de integração entre municípios, estados e União no financiamento e gestão do SUS. Nessa perspectiva, o controle da infestação do Aedes pela destruição de criadouros se daria pela imediata melhoria, de forma contínua e sistemática, das condições socioambientais urbanas. Ainda conforme o documento, essas medidas devem ser acompanhadas de cuidado preventivo e atenção à saúde das pessoas expostas ao risco e infectadas, a partir de uma política pública perene, com especial atenção ao pré-natal. E em médio prazo, devem ser apoiadas pesquisas para produção de vacinas,

estudos sobre a epidemia, seus modos de transmissão e danos ao sistema nervoso, além de testes clínicos. O posicionamento da Abrasco encontra respaldo entre os gestores municipais de saúde, muitos dos quais não deram trégua em ações de prevenção durante o carnaval. “Porém, suas recomendações se aplicam no longo prazo, com planejamento e vontade política”, opina Mauro Junqueira, do Conasems. “Infelizmente não se muda a estrutura de um dia para o outro. Temos de iniciar lá na educação. O primeiro passo é envolver a comunidade, formar pessoas com outra mentalidade, preparar a classe política para esse enfrentamento. É um processo de construção para que a gente não siga apagando incêndio, como fazemos, enxugando gelo”, diz. “O que é possível fazer neste momento é seguir mobilizando a população porque o risco é muito grande. E precisamos de respostas rápidas. São mais de 4 mil casos suspeitos de microcefalia, 10% confirmados. E os 90%? O que são? Estamos demorando um pouco. É tudo muito novo. Estamos demorando para desenvolver kits para fechar o diagnóstico. Com a parceria e o dinheiro dos Estados Unidos vamos acelerar a pesquisa”, acredita o presidente do Conasems.

Dúvidas não faltam

Epidemia da vez, a infecção pelo zika tem repercussão mundial comparável ao surto de H1N1, em 2009. Assim como a gripe suína, ocupa as manchetes e desafia o poder público desde que o Instituto Evandro Chagas confirmou a relação entre o vírus e

A 350 quilômetros da capital paulista, na região de Ribeirão Preto, a pequena Cássia dos Coqueiros, com 2.700 habitantes, é referência para o Ministério da Saúde no combate ao Aedes. Não tem nenhum caso confirmado de dengue ou outras viroses associadas ao mosquito. O tema está nas ruas, nas escolas, nas conversas entre vizinhos. Ainda assim, agentes de saúde visitam as casas e distribuem panfletos. “A cidade comprova que quando o povo aprende, jamais esquece”, afirma o professor José Carvalheiro, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP-USP). Nos anos 1960, ele especializou-se em epidemiologia ao estudar o impacto econômico da Doença de Chagas e auxiliou seu orientador, José Lima 16

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Pedreira de Freitas (19171966), no desenvolvimento de um método para acabar com o barbeiro, inseto transmissor do protozoário causador do mal, em Cássia. “O método chamado ‘expurgo seletivo’ inovou também ao ensinar a população a usar os inseticidas de maneira seletiva, somente nos lugares de infestação”, conta o professor. “Até então, o uso era generalizado, afetando a saúde da população e meio ambiente com venenos tóxicos.” Nos anos 1980, a prática tornou-se padrão no país, inspirando outros governos latino-americanos. No Piauí, Água Branca, a 97 quilômetros de Teresina, transformou em lei municipal um projeto contra a dengue. Com isso, a prevenção passa a ser obrigação na cidade.

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DIVULGAÇÃO/PREFEITURA DE ÁGUA BRANCA

Quando o povo aprende, não esquece

SELO VERDE Água Branca, no Piauí, envolveu a população na luta contra o Aedes

A iniciativa, apresentada ao Ministério da Saúde, consiste em visitas sistemáticas às residências para identificar possíveis focos de desenvolvimento do mosquito. Um selo verde, para casas livres de criadouros,

virou alvo de disputa entre vizinhos. A população acabou se esmerando para mudar a cor de seu selo até que todas obtiveram o verde – a cidade reduziu o número de casos de dengue e ainda previne o vírus zika e a chikungunya.


DIVULGAÇÃO/PREFEITURA DE JUNDIAÍ

ROOSEWELT PINHEIRO/AGÊNCIA BRASIL

CARLOS BASSAN/PREFEITURA DE CAMPINAS

SAÚDE

PRECARIEDADE Falta de esgotamento sanitário e coleta de lixo nos espaços públicos e particulares multiplicam os criadouros

CONVITE O abastecimento irregular de água faz surgir reservatórios precários, que também se transformam em focos de proliferação

o surto de microcefalia na região Nordeste, no final de novembro. O achado, até então inédito na pesquisa científica mundial, chegou a alimentar especulações a respeito da fabricação do zika em laboratório, com interesses econômicos. No final de janeiro, circularam nas redes sociais materiais divulgados por sites estrangeiros associando o epicentro do surgimento da epidemia de microcefalia, no Nordeste, à proximidade com as cidades de Jacobina (PE) e Juazeiro (BA), onde a empresa de origem britânica Oxitec fez os testes com os Aedes transgênicos. Os insetos geneticamente modificados para cruzar com fêmeas e gerar filhos com uma proteína que vai matá-los antes da fase adulta, foram soltos ano passado em Piracicaba (SP), mesmo sem a aprovação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. “Isso é até possível, mas ainda não há estudos que possam comprovar a relação entre as experiências e o surgimento do zika”, diz o professor José Maria Gusman Ferraz, da Pós-Graduação em Agroecologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Ainda não se sabe como o vírus atua no organismo e o período de maior vulnerabilidade para a gestante. Apesar das evidências da sua participação na malformação, os especialistas são caute-

losos. A começar pela diretora-geral da OMS, Margaret Chan, sem repetir o tom alarmista da epidemia de H1N1, que acabou marcada por suspeitas de conflitos de interesse entre diretores da agência e a indústria de vacinas. A união de forças nessa guerra afinou o discurso de gestores de bandeiras e ideologias opostas. Os infectologistas David Uip, secretário da Saúde de Geraldo Alckmin (PSDB), e Alexandre Padilha, ex-ministro da Saúde e atual secretário de Saúde do prefeito paulistano, Fernando Haddad (PT), reconhecem as fartas evidências, mas recomendam toda cautela. “Ainda não temos exames para comprovar a relação. Estamos como no tempo em que surgiu a aids. Por anos e anos ficamos sem saber se era vírus e qual a forma de transmissão. Precisamos ser cuidadosos”, diz Uip, destacando outras causas infecciosas da microcefalia, como sífilis congênita, que está aumentando no país, rubéola, citomegalovírus, treponema, toxoplasmose, e as não-infecciosas, como as síndromes e intoxicações por excesso de álcool, tabaco e drogas. “Todas as evidências reforçam claramente a relação, algo que nunca tinha sido visto. Mas é importante buscar outras causas, dar conta dos desafios, obter testes mais apropriados”, afirma Padilha. REVISTA DO BRASIL

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TRABALHO

REPÓRTER BRASIL/2013

FLAGRANTE Trabalho análogo à escravidão é realidade também no setor urbano

Paz e educação contra a

escravidão Comissão contra trabalho escravo e Ministério Público fazem ofensiva para barrar mudanças conservadoras na legislação Por Vitor Nuzzi

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rática ainda recorrente no Brasil, o trabalho escravo é um dos temas que, pode-se dizer, se tornou política de Estado, indepe­ndentemente de partido. O combate sistemático a essa prática atravessou cinco mandatos, os dois de Fernando Henrique Cardoso, os dois de Luiz Inácio Lula da Silva e o primeiro de Dilma Rousseff, e se man18

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tém. Desde 1995, quando foram criados, os grupos móveis de fiscalização foram responsáveis por quase 2 mil operações e pelo resgate de aproximadamente 50 mil trabalhadores em situações análogas às de escravidão. Mas se há uma ação efetiva de repressão a esse crime, existem também as reações para “flexibilizar” a ação pública, que tem sido apontada como modelo internacional.

O avanço conservador voltou também seus olhos para a legislação que rege o combate ao trabalho escravo no país, baseada no Artigo 149 do Código Penal, que define as situações em que se reduz alguém à condição análoga à de escravo. Uma lei de 2003 (10.803) passou a identificar “condições degradantes de trabalho” e “jornada exaustiva” como algumas dessas situações previstas no código. Um projeto em tramitação no Senado (PLS 432, de 2013), que trata da expropriação de propriedades (urbanas e rurais) onde se constata a prática de trabalho escravo – uma questão que adormecia nos gabinetes do Congresso –, retira justamente esses dois itens, o que é interpretado por ativistas, autoridades e procuradores como uma tentativa, possivelmente com dedos ruralistas, de retrocesso em uma legislação considerada avançada. Esses grupos se organizaram e, no final de janeiro, lançaram a campanha Somos Livres, que prevê uma ofensiva no Con-


TRABALHO

gresso para barrar qualquer mudança no conceito de trabalho escravo. E contaram com um reforço internacional: o indiano Kailash Satyarthi, prêmio Nobel da Paz em 2014, conhecido pelo resgate de dezenas de milhares de crianças em seu país de situções de trabalho degradante. Ele veio ao Brasil para o lançamento da campanha e participou de atividade com estudantes, organizada pela Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Kailashi considera a educação “o direito humano fundamental”.

Dignidade humana

JOSÉ CRUZ/AGÊNCIA SENADO (2013)

O indiano também fez referência às iniciativas brasileiras de combate ao trabalho escravo e às ações para alterar a lei. “A percepção sobre um mal, sobre um crime, é o começo da mudança e de uma compreensão mais profunda sobre esse mal”, afirmou, criticando os que exploram mão de obra para obter ganhos. “Mudanças na economia que afetam a dignidade humana vão contra o desenvolvimento e a civilização. O crescimento da economia não pode se basear na

Satyarthi : “Mudanças na economia que afetam a dignidade humana vão contra o desenvolvimento e a civilização”

servidão humana. Fico contente de saber que a legislação no Brasil é uma das mais progressistas do mundo, que define o trabalho escravo em todos os seus aspectos.” “Não é uma campanha contra o trabalho escravo, mas a favor da liberdade”, observa a procuradora Christiane Nogueira, do Ministério Público do Trabalho (MPT) em São Paulo, citando a poetisa Cecília Meireles (“Liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta”). Ela acrescenta que isso acontece em um momento político importante, de risco de retrocesso, representado pela tentativa de mudança do conceito legal. E observa que o trabalho escravo contemporâneo tem outras características: “Não se restringe à violação da liberdade, mas da dignidade”. E tendo como situações mais comuns a jornada exaustiva e, principalmente, as condições degradantes de trabalho. Com engajamento de artistas como Camila Pitanga (que preside a ONG Movimento Humanos Direitos) e Wagner Moura (“embaixador” da Organização Internacional do Trabalho), a campanha visa, também, a aumentar o nível de informação sobre o tema. “A sociedade sabe que existe trabalho escravo, mas o confunde com irregularidades trabalhistas simples”, afirma a procuradora. Segundo pesquisa da Ipsos para a organização Repórter Brasil, divulgada no lançamento da campanha (www.somoslivres.org), 70% acreditam que ainda existe trabalho escravo, 17% não acreditam e 12% não souberam responder – outro 1% não respondeu. No geral, 27% disseram não saber do que se tratava, 24% citaram remuneração baixa e 19%, horas extras, situações comuns no mercado de trabalho, mas não relacionadas a escravidão. Só 8% falaram em condições degradantes e 1% em jornada exaustiva. Foram ouvidas 1.200 pessoas em 72 municípios.

Crime rentável

O trabalho escravo é um crime rentável, afirma o coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Forçado da OIT no Brasil, Luiz Antonio Machado. Segundo a OIT, a “receita” mundial com essa prática atinge US$ 150 bilhões. “O que move o trabalho escravo é também a ga-

nância, a busca por lucro incessante.” Ainda de acordo com a organização, há 21 milhões de pessoas submetidas a trabalho forçado, sendo 1,8 milhão na América Latina e no Caribe. Ele observa que muitas entidades consideram “conservadoras” as estimativas oficiais. Coordenada pela Comissão Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae) e pelo MPT, a campanha foi lançada em 28 de janeiro, Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo. A data homenageia os quatro servidores do Ministério do Trabalho assassinados em 2004, em Unaí (MG). No ano passado, mandantes e intermediários foram julgados e condenados a penas que vão a quase 100 anos de prisão, mas estão recorrendo em liberdade. Além das operações de fiscalização, também se busca combater o problema em outras frentes. De acordo com levantamento do MPT em 19 estados, o número de ações civis públicas por trabalho escravo aumentou de 54, em 2012, para 95 no ano passado. Mas os desafios crescem na mesma medida, como a tentativa de mudar a lei, o crescimento de casos em áreas urbanas e o bloqueio, via judicial, da chamada “lista suja” divulgada pelo Ministério do Trabalho, com empregadores usuários de mão de obra em situações análogas às de escravidão. Para o secretário especial de Direitos Humanos e presidente da Conatrae, ­Rogério Sottili, o desafio é justamente “manter o país como exemplo de combate ao trabalho escravo e de legislação avançada”. Ao mesmo tempo em que vê possibilidade de retrocesso, ele identifica muitos parlamentares comprometidos com a agenda dos direitos humanos – e, por extensão, com a democracia. Para Sottili, os meios de comunicação desempenham papel crucial nesse processo. Mas é preciso investir também em educação e formação. “As histórias são contadas pelos dominadores.” “Conhecimento é poder”, diz o indiano Kailash, para quem “a busca pela liberdade motiva a história humana”. E é preciso insistir, lembra. “Desde a minha infância, eu me recuso a aceitar o pessimismo e a passividade.” REVISTA DO BRASIL

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MOBILIDADE OSWALDO CORNETI/FOTOS PÚBLICAS

Devagar e mais rápido Menos acidentes, mais fluidez e menor emissão de poluentes promovem um novo debate a partir da redução de velocidade nas vias de cidades como São Paulo. Em discussão, a cultura do automóvel Por Helder Lima 20

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redução de velocidade nas marginais e outras vias estruturais da cidade de São Paulo provocou debate entre candidatos a prefeito neste ano. Mas segundo técnicos e especialistas, dificilmente algum candidato encontrará argumentos ou informações para sustentar o retorno às velocidades mais altas. O pré-candidato do PSDB João Doria Júnior andou se pautando por essa promessa como primeira medida de governo. Segundo o coordenador do Laboratório de Gestão da Inovação (LGI) da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP), Mario Sergio Salerno, a promessa do empresário tucano não


RIVALDO GOMES/FOLHAPRESS

FERNANDA CARVALHO/FOTOS PÚBLICAS

RAFAEL NEDDERMEYER/ FOTOS PÚBLICAS

MOBILIDADE

NOVOS TEMPOS Em São Paulo, o carro perdeu espaço e velocidade. Ônibus e bicicletas estão em alta em corredores e ciclovias

tem fundamento. “Esses caras que são pseudotecnocratas ficam reclamando de políticos, mas na hora de pensar uma medida pensa por ele, que quer pegar o carro e andar mais rápido. Se for assim, eu gostaria de ter um helicóptero e não tenho. Não faz sentido.” A redução vem sendo acompanhada de bons resultados em diferentes cidades no mundo, não apenas com menos acidentes e maior fluidez, mas também na questão ambiental, com menos emissão de poluentes. Salerno lembra que em Paris há vias importantes que admitem a velocidade de até 30 quilômetros por hora, e que em algumas a prefeitura fez mudanças de sentido justamente para dificultar

o trânsito de automóveis. “São mudanças que dizem claramente para o cidadão não usar o carro.” Em São Paulo, o número de acidentes registrados em outubro de 2015 diminuiu em 36% na comparação com igual mês no ano anterior. E os congestionamentos, em 10%. Os debates na corrida eleitoral, no entanto, acabam confrontando culturas. Sobretudo em relação ao conceito tradicional do uso do automóvel – ao mesmo tempo um objeto de desejo, que teve a cidade construída em função dele desde meados no século passado, mas com o fluxo a cada ano mais difícil em razão do excesso de veículos. “As mudanças com os corredores e

faixas de ônibus, a construção de ciclovias e toda essa estrutura vão chamar a atenção para a melhoria da qualidade do transporte. A cultura do automóvel vem se perdendo mundialmente”, afirma o consultor em planejamento de transporte Marcelo Blumenfeld, doutorando da Universidade de Birmingham, na Inglaterra. Para ele, é expressivo o fato de parte da classe média paulistana já ter deixado o carro em casa para se deslocar por outra opção, como o metrô, conforme mostrou em setembro último a 9ª Pesquisa sobre Mobilidade Urbana, feita pelo Ibope. O percentual de motoristas que têm carros e os usam todos os dias caiu de 56% para 45% de 2014 para 2015. REVISTA DO BRASIL

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MOBILIDADE

Integrante desse grupo que trocou o automóvel pelo transporte público, o administrador de empresas Michel Thalenberg, 53 anos, diz que inicialmente foi motivado por questão econômica. Thalenberg mora no bairro do Paraíso (zona sul), a 500 metros da estação Brigadeiro do metrô, e trabalha no Pari, região central. “O valor do estacionamento perto do trabalho aumenta todo ano em novembro, em taxa sempre superior ao meu aumento salarial”, afirma. Ao mesmo tempo em que se viu pressionado por esse custo, o administrador percebeu que poderia compor o metrô com caminhadas para se deslocar ao trabalho, e que isso representaria um hábito mais saudável para sua rotina. Desde novembro de 2014, Thalenberg caminha dez quilômetros por dia entre ir e voltar do trabalho, e desembarca do metrô ou na estação Vergueiro ou na estação Consolação para cumprir sua meta. Sempre monitorado por um aplicativo contador de passos, ele conta que já perdeu sete quilos, e que se sente melhor longe do estresse dos congestionamentos e, mais recentemente, “da frustração de ter de andar a 50 por hora”, ironiza, defendendo que o padrão de velocidade poderia ser de 60 quilômetros. “Em todas as grandes cidades no mundo que têm passado por um processo não só de controle do limite de velocidade, mas de sua redução, essas medidas causaram um choque cultural muito profundo, sobretudo no pressuposto que as pessoas sempre tiveram de que as vias da cidade são para os veículos circularem”, diz o sociólogo Eduardo Biavati, consultor em segurança no trânsito, destacando que segundo a visão tradicional é papel do poder público garantir que essas vias sejam as mais perfeitas, livres, para que o trânsito possa fluir no menor tempo possível. “E isso implicava a visão de que quanto mais livres as vias, maior a velocidade também.” Durante décadas, a expectativa dos cidadãos motorizados era de que o poder público, recolhendo os impostos, tinha por obrigação garantir a fluidez a quem comprou seu carro. “E quando hoje as prefeituras falam que o carro não vai poder 22

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OSWALDO CORNETI/FOTOS PÚBLICAS

Longo caminho

MESMO LOTADO Segundo pesquisa, parte da classe média paulistana já tem preferido o metrô

andar a qualquer velocidade, e também não vai poder ser estacionado nas ruas da cidade, isso é um choque, porque não era assim. Você comprava um carro, e era supernatural que você pudesse estacioná-lo ao longo do meio-fio para ir a uma loja, por exemplo. Ninguém questionava que isso era um direito. E ninguém questionava que o carro estacionado ocupa uma via que é de todos”, diz Biavati. O motorista de táxi Marco Antonio da Cruz, de 50 anos e há 18 trabalhando no setor de transporte, afirma que a prefeitura de São Paulo deveria adotar uma velocidade só, de 50 quilômetros por hora, para toda a cidade, com exceção das vias expressas das marginais. “Entendo que a medida reduziu os acidentes, mas a velocidade poderia ser maior nas vias expressas”, diz Marco Antonio. Ele também afirma que os passageiros têm reclamado bastante da medi-

da da prefeitura, mas ele próprio pondera que isso é mais um desabafo impensado dos clientes, “que estão sempre atrasados”, do que um raciocínio lógico. O motorista destaca que não chegou a perceber uma mudança sensível no seu dia a dia, mas que alguns companheiros de profissão, “já com a paciência esgotada quanto aos congestionamentos”, têm preferido partir para outros ramos de atividade. “O fato é que tem gente percebendo que a paixão pelo automóvel é perda de tempo e perda monetária. Isso, no entanto, não impede que o carro mantenha usos específicos, pois há momentos ou situações em que ele é a melhor opção”, pondera Blumenfeld, para quem a percepção das mudanças do conceito de mobilidade pela indústria automobilística são essenciais para sua sobrevivência. “As campanhas publicitárias se tornam cada vez


PAULO PEPE/RBA

MOBILIDADE

NOVA ROTINA Michel Thalenberg combina dez quilômetros de caminhada por dia com as viagens de metrô para ir e voltar do trabalho

mais enfáticas porque é um grito de desespero”, afirma. Além disso, Blumenfeld diz que as constantes pressões da indústria sobre o governo para reduzir o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) “são sinal de que existe essa mudança cultural em curso”. Para responder a isso, acrescenta, “a indústria vem fazendo projetos que procuram trazer mais sustentabilidade ao automóvel”. Quanto mais as pessoas ficam alertas sobre os malefícios do carro, a indústria vai mudando os modelos, que ficam mais leves, menores, destaca Blumenfeld. “Há também a questão dos automóveis compartilhados, mas a verdade é que ou eles mudam, ou eles morrem, apesar de o carro se manter como um modal de transporte. Eu não sou contra o automóvel, mas dentro da cidade seu uso está ficando complicado.”

Novas tecnologias

Uma das mudanças mais radicais que o mundo do automóvel promete para as próximas décadas é a tecnologia de automatização da direção, que dispensa o motorista. Não é apenas o Google que atua nessa corrida, embora seus protótipos sejam os mais conhecidos. Há pouco tempo, a General Motors reforçou seu protagonismo nessa área, e anunciou investimento de US$ 500 milhões em uma empresa chamada Lyft, voltada ao compartilhamento de veículos, para desenvolver uma alternativa de veículo autônomo. Blumenfeld faz uma analogia com os computadores para explicar o desenvolvimento do veículo autônomo, em que cada empresa desenvolve sua solução, mas todas têm de conversar entre si, observando os mesmos parâmetros de se-

gurança. Ele diz também que os sistemas já podem ser considerados robustos, mas reconhece que ainda há desafios nessa ideia que surgiu nos anos 1970. Um desses desafios está em viabilizar a convivência, nas ruas, entre os carros autônomos e os tradicionais. “A interação fica complexa porque o carro automatizado é mais seguro e responde melhor”, diz. Outro desafio, segundo o pesquisador, está nas tecnologias de sensores para o reconhecimento de obstáculos ao longo da via. “Esses carros reconhecem os outros carros, mas nem sempre reconhecem todos os obstáculos, e alguns ainda não reconhecem as bicicletas”, afirma, destacando que o reconhecimento de todo o cenário envolvido em um deslocamento compõe um ambiente complexo que ainda desafia a tecnologia. Já para o professor Salerno, da PoliREVISTA DO BRASIL

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GOOGLE/DIVULGAÇÃO

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EVOLUÇÃO Carro sem motorista da Google: muitos quilômetros pela frente até ser confiável e poder conviver com os obstáculos

Vilão não é o carro, é a concentração Apesar do trânsito caótico decorrente da falta de espaço para tantos veículos trafegarem ao mesmo tempo, o carro não deve ser visto como o maior vilão da mobilidade urbana. A opinião é do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Rafael Marques, para quem a indústria automobilística ainda tem muito espaço para crescer no Brasil. Rafael observa que mais da metade dos domicílios do país não têm automóvel, enquanto na Alemanha a relação é um por um, e não se tem notícias de graves problemas de mobilidade. O sindicalista considera que a longevidade do mercado em torno do setor automobilístico passa por uma política de renovação da frota de veículos – a exemplo do que ocorre em países como Estados Unidos e Japão – e pela continuidade das políticas de distribuição de renda e de inclusão social, para que o carro comece a chegar aonde não chegou. Ele cita pesquisas em que 83% dos brasileiros 24

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têm o carro como objeto de desejo, considera que soluções para a mobilidade devem ter como objetivo contemplar a liberdade das pessoas de escolher como se deslocar e defende medidas mais efetivas nos “arcos de desenvolvimento” nas regiões periféricas, para que as pessoas encontrem condições de trabalhar e estudar mais perto de onde vivem. Leia trechos da entrevista. A versão completa está no site: bit.ly/ rba_rafael. Em metrópoles com tráfego caótico, o automóvel se torna o vilão da mobilidade. Como caminhar para um mundo menos dependente do carro? Acho que “vilanizar” o carro não é o caso. O que deve prevalecer sempre é a liberdade das pessoas de tomar a decisão sobre que meio de transporte usar. É papel do poder público é organizar a mobilidade, criar instrumentos de humanizar a

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cidade de modo que o espaço urbano seja um espaço onde as pessoas sejam o elemento mais importante. São Paulo tem uma característica própria, é parte de uma região metropolitana em que o governo do estado deveria liderar a construção de políticas integradas, mas mesmo após uma sequência de 22 anos no poder os governos do PSDB nunca fizeram. Temos problemas reais, mas o carro não desaparece nesse contexto, porque não desaparece a intenção da pessoa de ir ao trabalho com ele, ou ir à escola, ou deixá-lo na garagem, se estiver bem servida do transporte público. Então existe potencial de crescimento para esse mercado? O Brasil ainda é um país em que 47% dos lares não têm um carro. E tem o desejo das pessoas: 83% querem ter um. É um país muito desigual. Alguns tem três, quatro carros na garagem, e driblam

qualquer restrição – fazem rodízio na sua garagem. É fato: as pessoas precisam de transporte público de qualidade, temos ainda muita necessidade de investimento em mobilidade urbana. Mas isso não rivaliza com o carro. O Brasil ainda tem potencial para levar a indústria automotiva a ser muito forte e presente. Quando a gente faz relação carro/habitante, ainda estamos atrás dos principais países da Europa e da América do Norte. E temos ainda uma frota superestimada, pois parte da que está catalogada não circula mais. Estamos retomando a discussão da renovação da frota de veículos, para tirar veículos velhos de circulação e, com isso, definir uma política clara de baixa e destruição cuja circulação seja inviável. É um problema que envolve também a redução de emissão de poluentes e de consumo de combustível. Exatamente. Quando se


tira um ônibus velho, um caminhão velho, uma moto ou um carro velho, melhora a qualidade do ar. O Brasil se consolidou como um polo muito forte no mundo, mas ainda temos problemas que não deviam existir. Uma política de renovação da frota seria uma forma de resolver esse e outros problemas. É um assunto que vem desde 1990. Mas agora amadureceu bem. Está amadurecendo o momento de o programa sair. A economia mundial ainda precisa do automóvel como puxador do PIB. No caso dos Estados Unidos, representa 11%. Aqui, é 5%. Se pegar os dados do nosso PIB industrial, é quase um quarto. A mais longa cadeia produtiva é a automotiva. Daí o fato de haver em todo o mundo programas de incentivo à renovação. Aconteceu nos Estados Unidos, na Alemanha, no Japão... No Japão, o carro não fica dez anos circulando. Quando se compra um carro, você já

móvel é a tecnologia com mais integração de informações, internet das coisas, e também se vai vingar o motor elétrico ou não. O produto carro vai ser uma coisa muito mais conectada, com comando de voz, com essa integração pela internet, você pode buscar destinos em interação com a rede. Por exemplo, se quero comprar uma TV, peço ao veículo para indicar onde tem aquela TV mais barata, mas a concepção básica do automóvel ainda vai permanecer por muito tempo. Não vejo no horizonte o abandono do transporte individual de pequena capacidade. O que eu vejo é uma menor utilização diurna dos automóveis em grandes metrópoles”, afirma Salerno. Para o consultor Eduardo Biavati, “o que está cada vez mais claro para o mundo é que as montadoras vão se tornar provedoras de serviços, mesmo que sejam menos veículos vendidos. Essa é uma das

questões em discussão, mas ninguém sabe ainda para onde vai isso, se vai ser realmente bom ou não, mas (do ponto de vista mecânico) os carros devem ser mais simples, ter menos componentes, como o carro elétrico, mas ao mesmo tempo os veículos vão prestar mais serviços. É mais ou menos como a Apple fez com os computadores. As máquinas são caras, mas os aplicativos continuam sendo muito baratos. Então, a Apple vende serviços por meio dos aparelhos que fabrica. É uma mudança de padrão tecnológico gigantesca, que está em torno de uma grande disputa. A indústria de software, a indústria automotiva mundial, as companhias telefônicas, provedores de dados, na verdade, não estarão tão interessados que você compre o carro, mas querem saber por onde cada um anda, querem ter acesso integral ao volume de dados que você vai produzir usando um carro.”

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técnica da USP, o custo do carro sem motorista é proibitivo. Ele também não acredita que o automóvel ficará muito diferente do que é hoje pelas próximas duas ou três décadas. “Eu não vejo mudança enquanto a minha neta estiver viva, ou seja, não é algo para as próximas décadas. Mesmo a experiência de veículos como o do Google ainda são muito limitadas. A solução é caríssima, pode até ter caído um pouco o preço, mas o sensor de posicionamento dele custava US$ 100 mil. Tudo bem que é legal para você desenvolver tecnologia, mas não é um produto de massa”, diz. Mas antes da popularização da tecnologia de deslocamento autônomo, o carro tende a se tornar uma plataforma de convergência de tecnologia digital, o que é uma mudança considerável em relação ao conceito atual, pode ensejar diferentes usos. “O que muda no auto-

A economia mundial ainda precisa do automóvel como puxador do PIB. No caso dos Estados Unidos, representa 11%. Aqui, é 5% paga uma taxa pela logística reversa. Eles têm uma boa rede de transporte, e mesmo assim vendem 5,5 milhões de automóveis por ano. O fato de se ter o transporte bem feito, tudo funcionando, não inviabiliza o mercado. Na Alemanha, a relação carro/habitante é quase um para um, e eles continuam vendendo carro. O transporte é só um dos aspectos da mercadoria automóvel, que

passa também por sensações de status, desejo, liberdade. Parte da solução para a mobilidade seria o deslocamento das atividades econômicas para as regiões onde as pessoas vivem? Muitos países se organizaram tendo o carro como o principal meio de transporte, mesmo os que têm sistemas de metrô e ônibus

muito antigos. O problema, aqui, é um histórico de desenvolvimento concentrador. Daí porque Cidade Tiradentes, no extremo leste da capital (paulista), não tem metrô até hoje. O Brasil concentrou riqueza, concentrou as decisões e afastou as periferias. Na zona sul não tem opção de transporte nem opção de trabalho. Isso é uma característica do Brasil e, muito fortemente, no nosso estado. O Arco do Desenvolvimento, como o prefeito (de São Paulo) Fernando Haddad propõe, é uma das questões fundamentais: levar a atividade econômica para as regiões e começar a reverter essa tendência de que todos se dirijam ao centro. Até mesmo nos casos em que as pessoas têm acesso a transporte razoável, com um trem do centro até Guaianases, elas perdem mais de uma hora no deslocamento. Essa é uma coisa que precisa resolver. O maior nó, na verdade. Por Paulo Donizetti de Souza

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CIÊNCIA

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Novo marco na pesquisa

Reivindicação antiga de cientistas, um regime diferenciado de contratações de serviços e o fim da burocracia em importações estão no código sancionado por Dilma Por Cida de Oliveira 26

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ssencial para a visualização de moléculas de células vivas no diagnóstico de doenças e com aplicação em todo o campo científico, o microscópio de f­luorescência não é fabricado no Brasil. Sua importação pode levar mais de oito meses, atrasando o trabalho de médicos, biólogos, físicos, geólogos e outros especialistas. A demora entre a compra e o recebimento é um problema grave porque praticamente todos os insumos e equipamentos usados nos nossos laboratórios são importados. Isso explica, em parte, o pequeno avanço da pesquisa nacional no desenvolvimento de produtos para melhorar a vida das pessoas, como os medicamentos. Pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro, feita em 2010, mostrava que 46% dos pesquisadores já perderam material retido em meio à papelada da alfândega, que 95% já deixaram de fazer ou alteram estudo por problemas na importação e que 51% já modificaram pesquisas por não obter substâncias controladas. Não é de hoje que os cientistas reivindicam a desburocratização do setor. Na última Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, em 2010, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências


(ABC) reiteraram a necessidade de um regime jurídico diferenciado de compras, contratações, parcerias e importação de insumos para a pesquisa. Algo semelhante ao que seria feito mais tarde, por ocasião da Copa do Mundo de 2014, com obras atrasadas. No Brasil, mais de 80% da pesquisa é realizada por universidades públicas, especialmente as federais. Pela Constituição, os órgãos públicos só podem fazer suas compras mediante licitação, submetidas ao controle dos tribunais de contas e do Judiciário. A rigidez e conservadorismo na interpretação do direito dessas instituições, com tendência a dar como irregulares os atos praticados, segundo a SBPC e a ABC, são incompatíveis com a dinâmica das atividades do setor.

Para o presidente da Federação de Sindicatos de Professores e Professoras de Instituições Federais de Ensino Superior e de Ensino Básico Técnico e Tecnológico (Proifes), Eduardo Rolim de Oliveira, o marco legal acaba com o “falso moralismo” da lei de licitações. “Licitação não significa necessariamente transparência nas compras, tampouco economia de recursos. Ao contrário, prevê uma série de amarras que acabam burladas. Há exigência de três orçamentos, que não podem diferir em 30%. Se a tomada for de três preços altos, vai sair caro. A lei é tudo, menos transparente e econômica. O que o pesquisador tem de comprovar não é preço, e sim a qualidade técnica do que está sendo comprado, se determinado produto atende mais à sua necessidade.”

Unificar regras

Público e privado

Ainda segundo essas entidades, a importação de insumos, equipamentos e materiais para a pesquisa é alvo de portarias, convênios e instruções normativas da Receita Federal, Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e outros órgãos vinculados ao Executivo federal, que se sobrepõem entre si. O ideal, para os pesquisadores, é unificar definições e regras de procedimentos e instâncias de fiscalização e distribuir as competências entre os agentes de forma clara e precisa, além de reduzir a exigência de documentos repetidos nas diversas etapas da compra no exterior. “Quando a pesquisa é financiada por agências fomentadoras federais, como Finep e CNPq, até que é possível dispensar a licitação. Com recursos do Tesouro, não”, diz o presidente do Fórum de Pró-Reitores de Pesquisa e Pós-Graduação (Foprop), Isac Almeida de Medeiros, da Universidade Federal da Paraíba. A entidade congrega mais de 200 instituições de ensino superior federais, estaduais e municipais. “Problema é quando há necessidade de licitação internacional. Há empresa que se nega a participar de processo licitatório. Se não houver interessados em três desses processos, a conduta é justificar junto à Advocacia-Geral da União e pedir a dispensa da licitação. Mas até aí já se perderam seis, oito meses.” O que se espera é que os percalços de quem faz pesquisa no Brasil comecem a ser superados com a regulamentação do chamado Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação que a presidenta Dilma Rousseff sancionou em 11 de janeiro – Lei 13.243. Com origem em projeto de lei da Câmara, aprovado por unanimidade pelos senadores em dezembro após tramitar por cinco anos, o marco permite a dispensa de licitação nas contratações de serviços ou produtos inovadores de empresas de micro, pequeno e médio porte.

O código avança também sobre uma questão polêmica no meio universitário: a aproximação entre universidade pública e empresas. O Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN) classifica a novidade como mais um passo na abertura do fundo público para o setor privado. Para o vice-presidente da entidade, Epitácio Macário, há retrocesso. “O código permite o compartilhamento da infraestrutura física e pessoal das universidades públicas com organizações sociais e empresas privadas da área científica, e a produção do conhecimento poderá vir a ser patenteada e controlada por instituições privadas”, diz Macário, lamentando a dificuldade de reversão do processo. Para ele, a contratação de professores e pesquisadores, por meio de concursos, e o regime de dedicação exclusiva correm risco, já que a lei permite ao professor concursado criar, gerir ou participar das instituições de ciência e tecnologia, sendo liberado das suas atividades para atuar no âmbito das instituições privadas. Já a professora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo (USP) S­ uzana Lannes, presidenta da Sociedade Brasileira de Ciência e Tecnologia de Alimentos, vê a medida como positiva. “Na área de alimentos isso é importante. A universidade faz a pesquisa básica e aplicada, mas há o entrave da comercialização. O marco regula e facilita a negociação desses produtos gerados pela pesquisa com as empresas. Com isso, vamos ter alimentos de mais qualidade, com benefícios à saúde, com produção sustentável”, acredita. Mas ela ressalva o cuidado a ser tomado na regulamentação, para que os incentivos à indústria não prejudiquem a universidade pública. “Caso contrário, nos tornaremos concorrentes e não parceiros.” Medeiros, do Foprop, entende que a função da uni-

PROIFES.ORG.BR

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Licitação não significa necessariamente transparência nas compras, tampouco economia de recursos. Ao contrário, prevê uma série de amarras que acabam burladas Eduardo Rolim de Oliveira

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CIÊNCIA

UNIR FORÇAS Entre os pesquisadores, há a expectativa de que a maior interação entre universidade e indústria estimule o setor produtivo a sair da sombra do Estado e passar a investir mais em pesquisa

versidade – fazer pesquisa, e não produtos – não será prejudicada. “Com o marco, passamos a ter um ambiente jurídico propício e seguro para trabalhar. Não é ‘vender a universidade’, mas resguardar a soberania e a autonomia das instituições”, diz, lembrando a posição do Brasil no ranking dos que mais investem em pesquisa. “Estamos na 13ª posição. Porém, caímos para as posições de número 70, 71 na lista de geração de patentes. Temos massa crítica, mas não estamos transferindo para a sociedade esse conhecimento produzido na universidade”, acrescenta.

Conhecimento é risco

Entre os pesquisadores, há a expectativa de que a maior interação entre universidade e indústria estimule o setor produtivo a sair da sombra do Estado e passar a investir mais em pesquisa. “O empresariado brasileiro precisa entender que vale a pena investir no risco. Ciência, tecnologia e inovação são riscos. O conhecimento é risco. E quanto maior o enrosco burocrático, mais problemas nós temos. Ao desburocratizar esse processo, o avanço é enorme”, diz a professora titular do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara Vanderlan Bolzani. O marco legal, entretanto, não basta. É preciso, 28

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segundo os cientistas, que ele seja regulamentado e efetivamente implementado, consolidando-se como política de Estado – e não de governo. “Apesar do histórico subfinanciamento da ciência e tecnologia, o ambiente científico construído a partir da criação do CNPq e da Capes, bem como do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, nos últimos 35 anos, mostram que a ciência brasileira avançou”, afirma Vanderlan. De acordo com ela, as chamadas commodities, que respondem pela maioria da pauta de exportações, agregam muita ciência brasileira. Nesse grupo estão pesquisas da agrônoma tcheca radicada no Brasil Johanna Döbereiner (19242000), pouco conhecida por aqui. Seus trabalhos em órgãos como a Embrapa resultaram na fixação do nitrogênio por meio de bactérias. Indicada ao prêmio Nobel de Química em 1997, Johanna não levou, mas o adubo natural que ela desenvolveu permitiu a cultura de alimentos mais baratos e saudáveis. “Mas commodity é commodity. Você manda toneladas de soja para comprar alguns chips ou alguns produtos hospitalares, o que é um problema sério para o país”, diz Vanderlan Bolzani. “O país que almeja soberania internacional tem de ser forte e robusto nessas áreas. Pessoas educadas sabem o que é o melhor para o país.”


MARCIO POCHMANN

Estados Unidos, China e a economia mundial Se a principal economia do mundo não oferece horizonte sustentável à expansão do capitalismo mundial, por que concentrar razões do mal-estar atual aos chineses?

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em sido comum nas avaliações recentes depositar responsabilidade superior à China diante da trajetória descendente da economia mundial. Deve ser um desvio ideológico grave, pois embora tenha reduzido o ritmo de crescimento a China segue sendo uma das economias mais dinâmicas do mundo. O mesmo não se pode observar no desempenho dos Estados Unidos, cada vez mais identificado ao quadro de estagnação secular. No ano de 2015, por exemplo, a China cresceu 6,9%, com a força do dinamismo industrial e, cada vez mais, do setor de serviços, que ultrapassou os 50% do Produto Interno Bruto do país. Ao mesmo tempo, a China converte-se da economia de base exportadora para ficar cada vez mais assentada na expansão do seu mercado interno. Por outro lado, a fraqueza econômica estadunidense aparece a olhos nus, aprofundando ano após ano a tendência regressiva do subdesenvolvimento. Não apenas o baixo dinamismo do seu sistema econômico, mas a decadência dos investimentos, sobretudo os industriais, que se encontram rebaixados para menos de 10% do produto. Se a principal economia do mundo não oferece horizonte sustentável à expansão do capitalismo mundial, por que concentrar razões do mal-estar atual à China? O problema são os Estados Unidos enquanto central da difusão dos gastos militares e da reprodução do improdutivismo pelas altas finanças e dominância de Wall Street. Recentemente, a Associação dos Engenheiros Civis dos Estados Unidos divulgou relatório sobre a trágica situação da infraestrutura naquele país (­Report Card, da Asce). De acordo com os oito critérios adotados (capacidade, condição de financiamento, necessidades futuras, operação e manutenção, segurança pública, resiliência e inovação) e as cinco classificações possíveis (A = Excepcional; B

= Bom; C = Medíocre; D = Pobre; E = Reprovado), a nota geral desde 1998 tem sido a D (infraestrutura pobre). No quesito meio ambiente, por exemplo, o risco é elevado e crescente para as mais de 84 mil barragens do país, cuja idade média é de 52 anos. Da mesma forma, a infraestrutura de água potável está chegando ao fim de sua vida útil, com mais de 240 mil quebras principais de água por ano nos Estados Unidos. Se considerar a presença de resíduos perigosos, a situação é preocupante, no mínimo. Pela Agência de Proteção Ambiental, cerca de um em cada quatro estadunidenses vive dentro de um perímetro de cinco quilômetros contendo um depósito de resíduos perigosos. Na temática dos transportes, registra-se, por exemplo, que as mais de 200 milhões de viagens realizadas diariamente nas 102 maiores regiões metropolitanas ocorrem nos Estados Unidos sobre pontes cada vez mais deficientes. Uma a cada nove pontes são classificadas como estruturalmente deficientes, enquanto a idade média das mais de 607 mil pontes é de 42 anos. Ao contrário do conjunto da infraestrutura dos Estados Unidos, o sistema de trânsito não é abrangente. Parcela significativa tem níveis de serviço inadequados. O efeito dominó da deterioração da infraestrutura sobre o conjunto da economia parece inegável. Para recuperar o padrão de infraestrutura de um país desenvolvido, os Estados Unidos precisariam de mais de US$ 3,1 trilhões de investimentos. Em consequência, a possibilidade de geração de 3,1 milhões de novos empregos, de ampliação de US$ 2,4 trilhões gastos pelas famílias e de elevação dos gastos em US$ 1 trilhão nos setores de comércio e serviços. Sem a retomada consistente dos investimentos nos Estados Unidos, salvo nos mercados especulativos, a trajetória do subdesenvolvimento segue intacta. REVISTA DO BRASIL

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EMIR SADER

Seguem as disputas latino-americanas Disputas de 2015 ainda ressoam na região, e calendário de eleições e referendos já agita o continente

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s ecos das disputas de 2015 ainda ressoam na América Latina – especialmente na Argentina e na Venezuela – e o calendário eleitoral e de referendos de 2016 já agita o continente. O ano tem eleições presidenciais no Peru, locais no México, referendo na Bolívia e, eventualmente, na Venezuela. Além da assinatura e começo da vigência dos acordos de paz na Colômbia. O ano começa politicamente, em 20 de fevereiro, com o referendo sobre a possibilidade de Evo ­Morales e Álvaro Garcia Linera se candidatarem a um novo mandato em 2020. A Constituição não previa essa possibilidade, mas o Congresso aprovou a reforma, que agora é submetida a consulta popular. A aprovação do governo é alta, os eventuais candidatos à presidência da oposição – os mesmos de sempre – tem muito pouco apoio, mas a nova eleição de Evo encontra dificuldades. O contexto internacional mudou, com as derrotas de Cristina Kirchner e Nicolás Maduro e com a decisão de Rafael Correa de não concorrer a uma nova reeleição, diante dos duros ataques e mobilizações contra ele por parte da oposição. Além do que, no plano interno, a revelação de casos de corrupção no Fundo Indígena, envolvendo inclusive lideres próximos a Evo – alguns já presos, outros processados – representam um desgaste de que se vale a oposição para a campanha do não. As pesquisas, que davam um resultado equilibrado no início, passaram a dar vantagens para a oposição, mas posteriormente o governo voltou a aparecer como favorito. As eleições presidenciais no Peru reforçam a tendência do país nas últimas décadas: governos eleitos que se desgastam rapidamente por não alterar substancialmente as péssimas condições sociais da massa da população são sucedidos pelo retorno de antigos dirigentes ou candidatos. Desta vez, o fracasso de Ollanta Humala (2011-2016) – que sucede os fracassos de Alberto Fujimori (1990-2000), de Alejandro Toledo (2001-2006) e de Alan García 30

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(2006-2011) – recoloca o nome da filha de Fujimori, Keiko, como favorita – ela foi derrotada por estreita margem por Humala em 2011. São candidatos, entre tantos outros, Alejandro Toledo e Alan García. A esquerda, que tinha se comprometido com Humala, sai uma vez mais enfraquecida e não tem candidatos com força. A oposição venezuelana promete tentar substituir a Nicolás Maduro na presidência, o que teria de ser feito pela convocação do referendo revocatório, mediante a assinatura de 20% dos eleitores inscritos. A dificuldade vem de que o término do mandato do presidente só poderia ser conseguido com uma votação superior à que ele teve quando foi eleito, cifra muito alta. Mas pode se colocar a questão na metade do mandato de Maduro. As eleições locais no México podem dar uma ideia da força dos partidos, depois que as eleições para governador mostraram um PRI enfraquecido, mas ainda o mais forte no plano nacional, um PAN muito debilitado, assim como o PRD, e a ascensão, ainda que pequena, do Morena, o partido de López Obrador. Finalmente, a conclusão dos acordos de paz na Colômbia pode ser submetida a referendo nacional, ao que se opõem as Farc, mas que o governo de Juan Manuel Santos já encaminhou ao Congresso e deve ser aprovado. Além da finalização dos detalhes e do começo de sua implementação, assim como o avanço nas negociações de paz também com o ELN. Mas o clima político deve continuar aquecido na Argentina (pelos choques entre o governo Macri e a oposição), no Brasil (pela crise econômica e também política) e no Equador, pelas mobilizações da oposição contra o governo e pela escolha pela Aliança País do candidato à sucessão de Rafael Correa. A recessão internacional fará com que as economias do continente fiquem estagnadas, com pequeno crescimento de países da América Central e da Bolívia.


LALO LEAL

Ataques à liberdade de expressão na Argentina Desprezo com diversidade de vozes vem de cima, de uma política de governo que tem no presidente da República seu principal ideólogo

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novo presidente da Argentina, Mauricio Macri, tem mostrado a que veio desde o dia de sua posse. Tenta governar por meio de decretos, chamados de DNU (Decreto de Necessidade e Urgência). Tem usado esse recurso para pôr fim aos avanços populares obtidos durante os governos de Néstor e Cristina Kirchner. Até a liberdade de expressão está ameaçada por um DNU editado para eliminar artigos importantes da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, também conhecida como Lei de Meios, gestada por mais de uma década, aprovada pelo Parlamento e confirmada pela Justiça. Ao que tudo indica, a necessidade e a urgência, nesse caso, são do grupo Clarín, ansioso por recuperar o monopólio do rádio e da televisão. O decreto foi suspenso liminarmente – por ser inconstitucional –, mas nada indica que o governo não buscará outras vias para restringir a liberdade de expressão. Tanto é que vem despedindo funcionários dos meios públicos de comunicação, acabando com programas de TV – como o 6,7,8, que fazia diariamente a crítica da mídia – e exercendo pressões sobre os meios privados para despedir profissionais não alinhados com o governo. Foi o caso do jornalista e radialista Vitor Hugo Morales, um dos mais conhecidos da Argentina, que ao chegar para trabalhar na Rádio Continental (do grupo espanhol Prisa), em uma segunda-feira pela manhã, foi informado de sua dispensa. Teve tempo apenas de entrar no estúdio e dizer aos ouvintes que estava despedido, deixando a emissora onde trabalhava há quase 30 anos. Ao sair, afirmou tratar-se de “uma demissão política, na mesma linha dos ataques ao Congresso e às leis votadas democraticamente”. E foi direto ao ponto: “A liberdade de expressão está sendo atacada”. Dois dias depois, cerca de 30 mil pessoas foram à Praça de Maio, em Buenos Aires, onde fica a sede do governo argentino, para protestar contra a demissão do jornalista. Macri, ao que tudo indica, não terá vida fácil.

Curioso é que o atual chefe do Sistema Nacional de Meios Públicos, Hernán Lombardi, em entrevista ao próprio Vitor Hugo Morales, em dezembro, tenha declarado que o novo governo veio “para garantir a liberdade e a presença de todas as vozes”. Não é o que se vê pelo país. Em Mendoza, toda a equipe do programa El Candil, há 20 anos no ar na rádio pública local, não teve seu contrato renovado. E até uma emissora pública dirigida aos jovens, a FM Nacional Rock 93.7, teve a sua programação suspensa após a posse do novo governo. Foi o fim de uma rica experiência radiofônica que colocou no ar músicas e ritmos excluídos das emissoras comerciais, mas de grande aceitação entre o público jovem. O desprezo com a diversidade de vozes e opiniões vem de cima. Trata-se de uma política de governo que tem no presidente da República seu principal ideólogo. Isso ficou claro quando, ao entrar no hotel em que se hospedava na Suíça, onde participaria do Foro de Davos, foi abordado pelo repórter A ­ lejandro Bercovich, do jornal BAE Negócios, do grupo argentino Crónica. Baseado num informe da Anistia Internacional que comparava a prisão da líder comunitária argentina Milagro Sala com a do oposicionista venezuelano L ­ eopoldo López, tão criticada por Macri, o repórter quis saber a opinião do presidente a respeito. A resposta: “Você não pode estar falando sério. O pobre Leopoldo López não fez nada de mal para que você o compare com Milagro Sala”. Acabou com a entrevista, virou as costas e subiu para o seu apartamento. É bom lembrar que López foi condenado pela Justiça da Venezuela por instigar ações contra o governo responsáveis pela morte de 43 pessoas. Sala é deputada no Parlasur e dirige a organização Tupac Amaru, que há quase uma década constrói habitações populares e urbaniza áreas pobres no estado de Jujuy. A entidade teve seu registro público cancelado pelo governo local, aliado de Macri, e pode fechar. Ela foi presa por protestar contra essa decisão. REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

Os poderes de

Elza

LUISA SANTOSA/RBA

Protagonista de uma história de sobrevivência, Elza Soares sustenta em sua voz a força para construção de um mundo sem machismo e sem racismo Por Maitê Freitas

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ENTREVISTA

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o ano passado, o Brasil e as redes sociais se viram pautados por movimentos afrofeministas: de vlogueiras às blogueiras, de debates à Marcha das Mulheres Negras, eventos fizeram a sociedade repensar a invisibilidade da mulher negra, o machismo e o racismo. Nas espirais desses movimentos, Elza Soares fez surgir do centro de sua voz vulcânica A Mulher do Fim do Mundo. O disco, lançado há poucos meses, nasceu histórico e a levou a ser conclamada cantora do milênio. Neste mês de fevereiro, Elza foi homenageada no carnaval de rua de São Paulo pelas 350 percussionistas do bloco Ilu Obá de Min. Quando o assunto é poder, superação e luta, Elza é fonte fértil de inspiração às mulheres e feministas negras. Aos 85 anos, a dama do samba não teme e se reinventa. Vai do jazz ao blues, do samba ao tango e une todos esses estilos no “samba-punk”. Quando criança, sonhava ser gente, e hoje é estrela no mundo. Aos 13 anos, enfrentou olhares racistas e machistas no programa de Ary Barroso, na Rádio T­upi. Diante daquela menina mirrada, o autor de Aquarela do Brasil perguntou de que planeta ela vinha. E Elza respondeu: “Do planeta Fome, seu Ary”. Ela cantou, e no mesmo instante Ary Barroso proclamou: “Senhoras e senhores, nasce uma estrela!”. A estrela, filha do operário Gomes Soares e da lavadeira R­osária Maria Gomes, já era nascida. Subia o morro com lata d’água e trouxa de roupas na cabeça. Do som da água batendo na lata, da brincadeira de criar sons e timbres, descobriu seu som gutural. Ao cantar, evoca as vozes emudecidas da profundeza do planeta Fome. Elza cantou blues e jazz num tempo em que ninguém falava disso. Seu canto se fez sobrevivência e sustento. Viu sua mãe morrer num acidente de carro. Viu Mané Garrincha, com quem foi casada por 17 anos, lutar contra o alcoolismo. Foi xingada, perseguida pela ditadura, pela sociedade e por meios de comunicação. Virou referência para gerações. “A gente sabe o quanto é difícil para um negro conseguir caminhar. Eu venci e estou aqui representando a mulher negra. Eu sou negra!” O disco A Mulher do Fim do Mundo reúne as bandeiras que você levantou ao longo da carreira e, musicalmente, integra os caminhos sonoros do Cóccix ao Pescoço e de todos os seus outros discos. Você já foi tantas, quem é esta Elza?

É uma Elza Soares que caminhou do cóccix ao pescoço para chegar ao fim do mundo. É uma Elza que traz essa mistura forte, que integrou essas forças e formou um corpo só. Um corpo só que não pode ser dividido. Para carregar as bandeiras que eu carrego é preciso força e ser uma só.

Eu carrego a bandeira da mulher negra, da mulher que luta e sobrevive ao machismo, ao racismo e a essa guerra diária. O Cóccix foi um trabalho forte, e agora no Fim do Mundo reunimos essas forças. As pessoas estão gostando. Estou muito feliz. Essa mulher do fim do mundo representa uma mulher de um novo mundo, uma nova mulher?

Sim. Hoje temos poder, voz. Ainda existem mulheres caladas, submissas, reprimidas e é para essas mulheres que eu falo. Não podemos nos calar. Precisamos gritar quando algo ruim acontece contra nós, mulheres. Não podemos ter medo. Quando nos encorajamos, fortalecemos as que estão enfraquecidas. Através do canto, você encontrou um jeito de se impor diante das coisas a que tentaram submetê-la. Que poder é esse que a voz tem?

Esse poder eu não sei explicar, mas existe. A minha voz é uma voz que não é submissa, existe para gritar e para fazer força.

Em tempos de tanta intolerância religiosa, qual o papel da espiritualidade na sua vida? Você tem uma reza?

Eu sempre rezo, eu tenho fé. Rezo um Pai Nosso, uma Ave Maria, peço licença e proteção aos meus orixás, aos seres de luz. Rezo todo dia, sou uma mulher de fé. Estão faltando amor e fé no mundo. O planeta Fome mudou?

O planeta Fome teve uma virada. Ele ainda existe. Hoje em dia, você vê que as pessoas têm um pouco de qualidade de vida. Você passa na favela e vê que as coisas mudaram um pouco. Mas ainda há muito para mudar. Quando você canta A Carne, Haiti ou Maria da Vila Matilde acontece uma catarse, o público se comove, se arrepia. Como você sente essas músicas?

Eu abro o coração e encontrei uma voz de oração para cantar essas canções, são músicas que exigem muito de mim, exigem entrega. Eu me entrego cantando A Carne, o Haiti. Quando eu canto Maria da Vila Matilde é um momento de explosão, deixo que as pessoas cantem, gritem e liberem a raiva, a indignação. Eu acho lindo, é como se abrisse uma porta e as mulheres entrassem falando “você vai se arrepender de levantar a mão para mim”, os homens ficam incomodados, é um momento forte onde muitas vozes se encontram e fica uma voz só: a voz das mulheres. As mulheres se libertam, cantam, e eu canto com elas. REVISTA DO BRASIL

Hoje temos poder, voz. Ainda existem mulheres caladas, submissas, reprimidas e é para essas mulheres que eu falo. Não podemos nos calar. Precisamos gritar quando algo ruim acontece contra nós FEVEREIRO 2016

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ENTREVISTA

Neste ano você foi homenageada pelo bloco afrofeminino Ilu Obá de Min, 350 mulheres tocando percussão, cantando e a saudando.

É uma loucura... Eu me sinto pequenininha diante dessas coisas gigantes que acontecem e aparecem na minha vida. Eu me encolho, fico pequena para receber. Somos nada diante dessa coisa tão grande que é esse reconhecimento.

Ano passado, teve a Marcha das Mulheres Negras em Brasília. Na mesma época, a rede britânica BBC atribuiu-lhe o título de “Cantora do Milênio”. Você é porta-voz do movimento feminino negro?

Os artistas negros fizeram história na música e na cultura, mas poucos receberam homenagens quando estavam vivos. Ser homenageada e viver tudo isso é um sinal de que estão aprendendo a respeitar?

Pois é... Isso é sinal de que estão me enxergando. Isso é muito bom. Mas não adianta me enxergar e não me dar espaço para falar. Tem que me enxergar e me deixar falar. Esta Elza fala.

As mulheres negras hoje estão se reunindo em grupos, em produções e em movimentos para restaurar a autoestima. Como foi o seu processo?

Tudo o que eu fiz foi para sobreviver, não passei por cima de ninguém. Recebo todo esse reconhecimento me encolhendo, mas na hora de lutar eu luto, eu cresço. Sempre foi assim, lutei sozinha. Me empoderei sozinha. Na época das manifestações em 2013, eu fui a primeira a cantar “20 centavos eu não pago não”. Eu sempre me coloco e estou à disposição para qualquer movimento que queira vir lutar comigo.

Em seus discos, o samba está sempre presente, e você ainda diz ter vontade de gravar um CD apenas de samba. Por que ainda não gravou?

Ainda não chegou o momento. O mercado está sempre aberto, mas o que define isso é ter um bom samba, com boas letras, bons arranjos. Não dá para ser qualquer coisa, sem qualidade, como vemos por ai. Você costuma dizer que A Mulher do Fim do Mundo é um disco de samba-punk. Como pode o samba dialogar com tantos estilos?

O samba é muito poderoso, ele faz comigo o que ele quer e eu levo ele aonde eu quiser. Eu levo e ele vem. Tem que ter coragem para fazer isso com o samba: misturar, buscar o novo. Eu tenho, misturo e fica lindo, reúno pessoas diferentes, gerações diferentes. Precisa ser e ter algum louco para fazer o que eu faço. 34

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LUISA SANTOSA/RBA

Eu sou. A mulher negra continua sendo mulher negra, não somos apenas mulheres, somos negras. Sofremos com o machismo e com o racismo, não temos liberdade de apenas ser mulher. Quando eu vejo as mulheres negras reunidas num movimento como a Marcha, vejo que não tem nada que nos limite, que a liberdade existe, que podemos abrir a boca aos quatro ventos.

Somos todos humanos e essas diferenças não deveriam existir. Existe muito ódio colocado sobre o negro

Acha que tentam marginalizar o funk tal como fizeram e ainda fazem com o samba, por ser música de origem negra e periférica?

Eu não sou contra, é um movimento. É um movimento que pode passar. Eu gosto, acho bonito, é lindo ver os meninos dançando o passinho. Tentam marginalizar. Dizem que não presta. A gente precisa ter cuidado com essa nova geração que está chegando. Não há nada que faça com que ela se identifique e se veja como negra. Na televisão você não vê apresentadores negros, essa criança negra que nasce e cresce hoje não se vê. Como ela vai se sentir? Branca. Não há nada que a identifique e que faça ela se sentir bem, bonita e valorizada por ser negra. Não temos negros na primeira escala social, isso precisa mudar. Eu assisto televisão, e se tem algo que me incomoda é que só tem programa de esportes, e você não vê uma apresentadora negra. Por quê? Você liga a televisão e não vê um canal de música, um canal de arte. Não existe um programa que entreviste as cantoras e os cantores e que fale o que está acontecendo. Falta na TV aberta espaço para arte, são sempre as mesmas cantoras e os mesmos cantores que estão lá. Quero ver o dia em que eu vou assistir a uma mulher negra bonita falando de esportes, de arte e de cultura. Em novembro do ano passado, o assassinato de cinco jovens pela polícia carioca acabou ganhando repercussão, o que geralmente não ocorre. Como você vê esse genocídio da juventude negra?


ENTREVISTA

Eu me arrepio sempre que penso nisso. Sou mãe, sou mulher, vim do morro. Quando vi aquele pai chorando e tendo que explicar aquela coisa horrível que fizeram com o filho dele, tive vontade de abraçar ele. Um pai chorando e tentando entender o porque do filho dele ter sido covardemente assassinado... A vida é uma coisa muito gozada, um misto de amor e ódio. Somos todos humanos e essas diferenças não deveriam existir. Existe muito ódio colocado sobre o negro. Esse ódio precisa acabar, para a igualdade poder existir. É com amor que vamos mudar as coisas. Sua história é de muita superação e você sempre fala em amor...

Amor e superação são palavras que me definem.

Historicamente, a mulher negra é marginalizada na vida afetiva. Essa solidão é imposta? Amor e ser amada é direito ou privilégio?

O amor e o amar são um direito e são um privilégio. Todos merecem amar e ser amados. Tem muito amor por aí e também existe uma solidão. Nós, mulheres, precisamos aprender com essa solidão, ela não é má. A solidão nos faz pensar, nos ensina a ter amor-próprio, protege, faz crescer. Para quem sabe conviver com a solidão, ela traz poder, traz força. Você sempre fala que a favela está dentro de você. Que favela é essa que a habita?

Nasci num bairro pobre, cresci no morro. Meu pai era pedreiro, construía casas e morávamos no morro. Tudo foi muito difícil, mas eu nunca tive medo. Essa favela que me habita me dá coragem e força, me dá chão. Nada me dá medo. Tudo que existe é para ser encarado. Quem tem medo retrocede, você precisa ter respeito por tudo. Não medo. Você é o que você quis ser ou tem uma Elza Soares que você gostaria de ter sido e não foi?

Eu sou o que eu gostaria de ser. Desde criança eu sonhava em ser cantora, em ser gente. Me diz, como pode uma pessoa sonhar em ser gente? Eu sonhava em ser gente! Minha mãe lavava roupa para fora e nas casas onde trabalhava todo mundo era gente, “senhor, senhora”. Existia um tratamento diferente, eu ficava só olhando, a minha mãe de cócoras, pegando as roupas sujas para lavar e dizendo “sim senhora, madame”, era dolorido. Eu canto para me vingar de tudo que eu passei e vi fazerem com a minha mãe, comigo. Eu vingo as mulheres negras que são discriminadas. Elas me veem e sabem que podem chegar em algum lugar diferente desse em que tentam colocá-la. Sou correta, ando direito porque sei que elas me fazem de exemplo. Mas não sou boba, não sou boazinha.

Existe algo que esta mulher do fim do mundo ainda não expurgou? Que ainda precise dizer?

A mulher do fim do mundo tem que lutar. Lutar. Gritar. Se ela não gritar, ela não vai se libertar desse espaço pequeno. O jogo não está ganho. A luta não está ganha. Ainda há muita coisa para ser feita, muito chão para correr. É como a Folia de Reis: você precisa sair batendo de porta em porta, eu me sinto como um palhaço da Folia, vou pedindo licença e quebrando essas maldições impostas às mulheres, à mulher negra. O que precisa morrer?

O desrespeito. Essa falta de união, essa falta de fé. Acabou o respeito. Acabou a fé. Quando não se tem respeito, não se tem fé...O que mais pode ter? Nada. Se eu pudesse, eu tiraria um dia no mês para me reunir com outras mulheres negras e rezar pelo planeta. Você viveu mais de 15 anos ao lado de um dos ícones do futebol, o Garrincha...

Esse mundo que vendem do futebol é de ilusão. Tem meninos por aí com muito talento que ganham um salário mínimo e outros que ganham milhões... Não pode ser assim. Divulgam como se fosse o melhor mundo, e isso tudo é uma mentira. Garrincha foi uma das maiores estrelas do futebol, nenhum jogador chegou aos pés dele. Adoeceu, foi marginalizado, esse mundo do futebol é cruel com esses meninos. Há alguma mulher que a inspire, empodere?

Elza Soares. Minha caminhada foi muito sozinha... Vindo para cá (a entrevista foi realizada em Santos, em 28 de janeiro), eu pensei: “Meu Deus, como esses pés já andaram...”. Existe algum lugar que você gostaria de conhecer, de cantar?

Não... Eu vou aonde me chamam, se me chamar eu vou. Eu não tenho essa ambição... Se quiserem a minha arte, eu vou. Eu nunca fui à África. Dentro de mim mora uma África negra linda, maravilhosa, alegre... Uma África-Brasil. Embora não queiram que o Brasil seja uma África, nós somos parte dela. O Brasil é africano. O Paulinho da Viola compôs Meu Mundo é ­Hoje, é uma canção que te traduz...

Eu amo o Paulinho, e não sei o motivo de ele ter escrito esse samba, mas eu me vejo nele, foi feita para eu cantar: “Meu mundo é hoje, não existe amanhã para mim”. Eu sou o agora, neste exato momento eu sei que eu sou. Não tenho nenhuma ilusão do futuro, estou trabalhando hoje. Se o futuro chegar, vai chegar porque eu trabalhei. REVISTA DO BRASIL

Nós, mulheres, precisamos aprender com essa solidão, ela não é má. A solidão nos faz pensar, nos ensina a ter amorpróprio, protege, faz crescer. Para quem sabe conviver com a solidão, ela traz poder, traz força FEVEREIRO 2016

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MÚSICA

Os sentidos na ponta da agulha A reconquista de público reafirma o lugar dos discos de vinil ao lado dos apaixonados por uma experiência musical completa Por Gabriel Valery

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MÚSICA

GERARDO LAZZARI/RBA

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o final dos anos 1940, nos Estados Unidos, uma novidade chegava ao universo da música: os discos de 33 rotações, de vinil, mais leves que os antigos 78, de acetato, e com mais qualidade sonora. Um som marcado para sempre pelo chiado nas caixas acústicas, enquanto a agulha desliza firme na ranhura. “Som com textura”, defendem os entusiastas do disco de vinil, que a partir da década de 1980 perdeu espaço para outras mídias. Mas estatísticas recentes apontam para significativo crescimento nas vendas, trazendo as velhas “bolachas” de volta. No mercado norte-americano, já representam 9% de todas as vendas de mídias físicas. O restante fica por conta dos compact discs, os CDs, que vêm observando quedas vertiginosas em suas vendas. O vinil resistiu. Para muitos apreciadores, a audição dos discos ultrapassa a relação com a música. Os sons deixam de ser complemento a alguma atividade, ou uma trilha sonora enquanto se passeia ou viaja. Com o vinil, defendem, ouvir música assume outra importância no momento da execução, um ritual que começa a partir do gesto simples de mover o “braço” da vitrola em direção ao LP (iniciais de Long Play, como os discos foram batizados em 1948). A cerimônia envolve outros sentidos e se completa com a arte da capa, o encarte, a descoberta dos lados A e B, que não existem em um CD. O operador de som Émerson da Costa Ramos, da Rádio Brasil Atual, ajuda a entender a qualidade sonora, reivindicada pelos defensores do vinil. “Fisicamente, na hora em que você coloca a agulha, ela extrai a informação daquela ranhura para propagá-la até o módulo amplificador do toca-discos, e enfim para a caixa. No espectro sonoro, ele vai compreender todas as amplitudes do som. Isso significa que graves, médios e todas as coisas que o ouvido, por vezes, não pode captar são sentidas pelo corpo”, descreve. O DJ e produtor musical Felipe Del Pezzo concorda. “Mesmo nos discos novos tudo sempre vai ser digital. Porém, com amplificadores em estúdios modernos, ao prensar o disco, ao garantir a textura para ele, isso ganha qualidade e amplitude sonora, transmitida via agulha”, afirma. A diferença aparece: “Não é a mesma coisa do que um CD. Isso é nítido”. Del Pezzo ressalva a importância da qualidade da agulha, do amplificador como essencial para definir essa nitidez, e transmitir o som para as caixas com mais fidelidade. Mesmo transformando algo físico (a textura do disco) em algo eletrônico após a captação pela agulha, a riqueza de sons – graves e agudos – é maior, se captada em um bom aparelho, com boas caixas. Além do fator sonoro, a criação artística envolvida em um disco é um diferencial. O formato da mídia exige preocupação estética com os desenhos das capas e dos encartes. Muitos entraram para a história. Dificilmente alguém ligado à música não reproduz instantaneamente em sua memória o prisma da capa do álbum The Dark Side of the Moon, do grupo Pink Floyd (1973). Ou mesmo os quatro homens de Liverpool atravessando a Abbey Road na capa do disco homônimo dos Beatles (1969). As capas, como os cartazes de cinema, ganharam ar independente de obras de arte. O artista plástico Andy Warhol, papa da contracultura, chegou a desenhar uma de suas gravuras mais famosas – uma banana – na capa de Velvet Underground & Nico, da banda de mesmo nome. É possível que tenha assim contribuído para eternizar REVISTA DO BRASIL

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MÚSICA

o álbum, de 1967, entre os mais míticos do rock. A capa do primeiro LP do grupo Secos & Molhados, em 1973, está entre as melhores da história, com suas cabeças pintadas servidas à mesa relembrando a antropofagia modernista. Nesta época, já havia departamentos de criação gráfica voltados para discos. Capas viraram parte fundamental do produto. Em seu livro Do Vinil ao Download, André Midani afirma que as primeiras capas de discos brasileiros eram “monstruosas de feias”. Isso começou a mudar na segunda metade dos anos 1950: o executivo cita capas como as dos discos Caymmi e o Mar (1957) e o clássico Chega de Saudade, de João Gilberto (1958), entre outras.

Mercado e história

Com a chegada dos CDs na década de 1980, a produção dos LPs, começou a virar coisa do passado. Vitrolas passaram a se tornar escassas, assim como sua manutenção. As mídias se tornaram menores, as músicas tiveram a amplitude de suas ondas

espremidas em arquivos digitais. O popular MP3, por exemplo, causa discórdia. “O algoritmo de compressão mais conhecido, o MP3, exclui tudo o que o ouvido não capta. Geralmente, quem é mais ligado a música odeia a compressão pela perda de detalhes”, diz o operador de som Émerson. Contudo, é notável a expansão contínua das mídias digitais. De acordo com dados de uma pesquisa da empresa de informação global Nielsen, feita em julho de 2014, nos Estados Unidos, até igual mês de 2015, o serviço de música por streaming teve aumento de 92,4% nas reproduções. Nesse modelo, o ouvinte não possui as músicas nem sequer em um arquivo – um servidor armazena determinadas composições, e o consumidor o acessa remotamente via internet. Para exemplificar, é possível citar o Youtube, o Deezer, o Spotfy, entre outros, alguns gratuitos, outros pagos. Já as vendas de discos cresceram a ordem de 38%. É algo a se levar em conta, visto que houve queda de 10% nas vendas dos CD no mesmo período.

No Brasil, a Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABPD) não contabiliza as vendas de discos de vinil em seus relatórios. Para a entidade, as vendas ainda são pequenas comparadas ao mercado de CDs e – especialmente – o streaming. “As vendas estão crescendo nos últimos anos, mas ainda são pequenas comparadas com o mercado de CD e streaming. Não acho que chegarão a ser expressivas”, acredita Edna Calheiros, assessora da associação, para quem o espaço do digital manterá o crescimento. A única fábrica de discos da América Latina, a Polysom, sediada no Rio de Janeiro desde 2009, fruto de aquisições, ainda na década de 1990, de máquinas adquiridas das antigas Polygram e Continental, aposta na ampliação dos lançamentos. Para seu fundador, João Augusto, apesar de vantagens como a portabilidade e maior capacidade de armazenagem dos meios digitais, os discos possuem seu espaço pela “experiência tátil, visual e ­auditiva”. Eis novamente os sentidos a

O primeiro bolachão não se esquece Com 10 mil discos na estante, Zuza é enfático ao falar sobre a qualidade dos LPs. E destaca também o “lado lúdico” do disco O pesquisador e escritor Zuza Homem de Mello lembra bem do dia em que comprou o seu primeiro LP, nos anos 1950. Foi na antiga loja Sears, onde hoje funciona um shopping center, no bairro do Paraíso, zona sul de São Paulo. “Eu morava a meia quadra. No subsolo tinha uma loja de discos.” E o disco era Sinfonia do Rio de Janeiro, um 10 polegadas, com regência do maestro Radamés Gnatalli. Mas Zuza demorou a ouvir. “Eu não tinha o player ainda”, conta. Esse disco não faz mais parte da coleção de 10 mil que ele preserva em sua casa. Com as mudanças de endereço, a obra de Tom Jobim e Billy Blanco se perdeu, mas Zuza preserva ainda muitos 38

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trabalhos da fase inicial do LP. E é enfático. “O vinil é comprovadamente o que tem melhor qualidade sonora entre todas as modalidades que surgiram na gravação. É infinitamente superior ao 78 rotações, ao CD e também ao MP3. Isso é comprovado.” Ele explica: há alguns anos, o escritor participou de uma prova, com outros convidados, ouvindo canções de diferentes gêneros e em modalidades diversas, sem saber a origem do som. Todos atestaram que o vinil tinha mais qualidade. “O que é preciso considerar é que o LP sofre o desgaste físico quando usado”, lembra, acrescentando que uma boa manutenção garante a longevidade. “O LP possibilitou a criação

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de uma arte, que é a arte da capa, que não existia no 78 e morreu com os CDs. Começa basicamente nos anos 50 e vai até 1982. Ou seja, mais de 30 anos de domínio absoluto e de evolução”, afirma Zuza, dando como exemplos, além da capa, a passagem do 10 para o 12 polegadas e do som mono para o estereofônico. Discos são sua ferramenta de trabalho. Em dezembro, por exemplo, ele estava debruçado sobre boleros, ouvindo obras de Elvira Rios e Pedro Vargas, entre outros, para um capítulo de um livro sobre samba-canção. Mas Zuza também gosta de simplesmente manuseá-los. “O LP tem esse lado lúdico, que também foi perdido com o CD. Você fica admirando a capa, lendo o texto da contracapa. É quase um contrassenso aquela coisa miúda (referindo-se aos CDs), parece coisa de

anãozinho. É ridículo comparar. Tem encartes de LP que eram verdadeiros pôsteres, obras de arte.” Para ele, esse “retorno” do LP pode ser atribuído, em parte, ao universo dos DJs, que usam o disco, em parte a saudosismo. E é para ficar. “Alguns empresários buscaram máquinas que estavam encostadas, os discos voltaram a ser fabricados. Com isso, deixa de ser modismo e passa a ser uma vertente. Quem compra um LP é porque tem picape. E as fábricas voltaram a fabricar picapes. Esse movimento na indústria não é à toa. Acho que isso tende a permanecer”, diz, avisando que seguirá saboreando seus vinis. “O que eu tenho em casa de LP que não saiu em CD e nunca sairá é uma preciosidade”, afirma o pesquisador, pensando em Duke Ellington. (Por Vitor Nuzzi)


MÚSICA

Disco 78 rpm (1895) Feito de goma-laca, ampliou drasticamente o consumo de música no mundo. Reproduzidos por gramofones, sua superfície de 25 centímetros, que girava 78 vezes por minuto, continha apenas uma música de cada lado. Vinil (1948) Com 33 rotações por minuto e 30 centímetros, manteve hegemonia na indústria fonográfica por grande período. As ranhuras em sua superfície produzem som considerado de qualidade superior ainda hoje. Fita K7 (1963) Possui a vantagem de ser portátil e resistente. Conviveu durante bom tempo com o vinil. Apesar de sua qualidade inferior, com informações magnetizadas em uma fita enrolada entre dois carretéis, foi o formato que lançou a maior parte das grandes bandas de rock dos anos 1970 e 1980 com suas famosas “demos”.

CD (1979) Desenvolvido inicialmente pela holandesa Philips, o compact disc ganhou hegemonia no fim dos anos 1980. Com boa durabilidade e alta capacidade de armazenagem, ainda perdura como a principal mídia do mercado, apesar de apresentar números decrescentes. MP3 (1991) Este modelo de compressão de dados seleciona apenas a informação da música que é captada pela audição humana. Alcançou sucesso nos anos 2000, com a evolução da internet e de programas de compartilhamento de arquivos. O mais notório, o Napster, mudou para sempre a indústria fonográfica. Compartilhar músicas acabou se tornando o padrão que originou o streaming. Streaming (1995) Utiliza arquivos multimídia, como o MP3, armazenados em servidores espalhados pelo planeta. Nesse tipo de mídia não é necessário possuir, e sim ter acesso aos arquivos.

QUALIDADE ACIMA DE TUDO Zuza e sua coleção de 10 mil discos: ferramenta de trabalho

JAILTON GARCIA/RBA

FOTOS: FREEIMAGES (EMILIANO SPADA, PETR KOVAR, EDUARDO SCHÄFER, ULF HINZE, IGOR PABLO AUGUSTO E RADEK LESZ)

Muito além do LP

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fazer com que, na visão de João Augusto, o vinil se torne “um objeto de desejo”. Augusto reforça opinião do operador de som da Rádio Brasil Atual, e diz que, “basicamente, o som do vinil tem mais profundidade, além das possibilidades gráficas das capas”. Apesar dos maiores gastos, o empreendedor da Polysom aposta na ampliação do mercado. “A música ganha níveis tão elevados que até um dinheiro a mais passa a valer a pena”, afirma. Mesmo com a recente ascensão e retomada do mercado, o espaço das “bolachas” sempre esteve garantido ao lado dos saudosos colecionadores. Filho de Felipe Del Pezzo, Lorenzo, de apenas 1 ano, começa a criar sua identidade sensorial a partir da música. Cercado de instrumentos e aparelhos sonoros, o pequeno sorri quando o som toma conta do ambiente. Para ele, a música parece ser natural e confortável, talvez por ter aprendido isso com seus pais. Felipe conta que sua conexão com a música começou ce-

GERARDO LAZZARI/RBA

MÚSICA

Coleção e manutenção Nos últimos anos, lojas de departamentos vêm assimilando a presença do vinil no mercado e oferecendo novos aparelhos com toca-discos. Alguns mesclam MP3, múltiplos CDs e vinil, mas podem apresentar mau funcionamento. O preço de um disco novo gira em torno dos R$ 70, podendo alcançar até R$ 300 em edições limitadas. Uma das marcas de aparelhos clássicos, reconhecida pela qualidade, a Technics, vai retomar a produção de vitrolas. A parceria com a Panasonic foi divulgada no ano passado, com os dizeres: “O tempo passou, você cresceu, mas a profunda paixão continua em você”. Picapes profissionais, utilizadas por Djs, podem chegar a R$ 10 mil. Mas é possível encontrar aparelhos usados, ou até mesmo consertar algum que esteja no fundo do armário. A Rua dos Andradas, na região da Santa Ifigênia, centro de São Paulo, concentra um número considerável de lojas de aparelhos antigos que também realizam manutenção técnica. Já comprar discos é tarefa mais fácil. Apesar do aumento nos valores das “bolachas” nos últimos anos, garimpar em sebos pode render achados. No centro, há uma concentração de lojas com LPs selecionados e alta qualidade. Muitos sebos ainda compram discos usados, e os valores variam conforme a raridade e qualidade. Para quem deseja começar, ampliar a sua coleção ou comprar um bom toca-discos, a reportagem selecionou algumas opções, em São Paulo (todas na região central) e outras cidades. 40

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CIONADOR DJ E COLE família: a m co e Felip a vinil veio d opção pelo a ur lt cu a d essência

SÃO PAULO DISCOS VITROLAS Audio Line Rua dos Andradas, 433, Santa Ifigênia. Com um grande número de vitrolas antigas e boas opções para caixas de som. Os valores começam a partir de R$ 400, por um toca-discos funcionando e já com agulha. J&J Áudio e Vídeo Rua dos Gusmões, 282, esquina com Rua dos Andradas. Vende aparelhos de R$ 850 até profissionais, ou com design mais rebuscado, por R$ 5.500 e faz manutenção geral de vitrolas. Catodi, Casa dos Toca Discos Rua Santa Ifigênia, 398. Serviços em assistência técnica, venda de peças, como agulhas, que variam de R$ 50 a R$ 150. A loja ainda oferece vitrolas novas importadas e modelos reformados.

Big Papa Records Galeria Nova Barão, loja 30, Rua 7 de Abril, 154, República. O segundo andar da galeria é repleto de lojas com discos selecionados. A Big Papa, por exemplo, é especializada em jazz, black e rock. Baratos e Afins Galeria do Rock, lojas 314 e 318, Avenida São João, 439. Fundada em 1978, é uma das lojas mais tradicionais da cidade. Funciona também como produtora independente, parceria do dono Luiz Calanca com o exMutantes Arnaldo Baptista. Casarão do Vinil Rua dos Trilhos, 1.219, Mooca. Ao lado do centro, a casa acaba de promover discos de vinil icônicos do


MÚSICA

Capas que fizeram história

Velvet Underground & Nico (1967)

The Dark Side of the Moon, Pink Floyd (1973)

do. “Sempre tive essa ligação. Meu pai toca teclado desde os 6 anos. Então, vem de berço.” Tal identidade levou o DJ a iniciar uma coleção com a mãe de Lorenzo, Marta ­Roldan, com 300 álbuns de rock, disco music, jazz, música clássica e MPB. “Minha opção pelo vinil veio da essência da cultura. A qualidade, a capa. Sempre digo que quem coleciona está preservando a cultura”, diz, nostálgico de épocas que não viveu.

Abbey Road, Beatles (1969)

Felipe é de outra geração. Tem 28 anos. Nascido em 1987, nem de longe viveu o auge do vinil. Mas sabe do que está falando, ao lembrar a trajetória do disco nos anos 1960. “Se observar a história dele, o músico tinha apenas um rolo para gravar e passar para o disco. Ele não podia errar. É um grande trabalho”, afirma. Hoje, o casal colecionador passa horas li-

Secos & Molhados (1973)

vres mantendo viva essa história, passada adiante para Lorenzo, que apesar de pronunciar poucas palavras já sente os efeitos da música.

rock nacional que completaram 30 anos em 2015, como Cazuza, Ira!, Kid Abelha, Titãs. O espaço informa ter mais de 700 mil discos de vinil em acervo. Extreme Noise Discos Galeria Nova Barão, loja 36. Coleciona raridades, com forte no hardcore, punk, trash, grindcore, noise, entre outros gêneros mais barulhentos. Garimpo Cultural Galeria Nova Barão, loja 35. Com grande coleção de discos, ótimo lugar para garimpar, além de discos, livros e quadrinhos. Sebo do Messias Praça João Mendes, 140, centro. Aberto desde 1970, este sebo se vangloria de ser o maior da capital. Com grande acervo de livros, as páginas dividem o espaço com discos variados, alguns raros e de qualidade para quem gosta de garimpar.

Curitiba O blog De Volta para o Vinil oferece um ampla lista com mais de 30 pontos de venda de discos, uma dezena de casas de peças e manutenção de aparelhos e até do bom e velho plástico para proteger o bolachão. bit.ly/rba_vinil_curitiba Rio de Janeiro O engenheiro de softwares Cristiano Grimaldi, que se define como “colecionador aficcionado” de discos, elaborou uma lista de 19 pontos de venda na capital fluminense, dos mais diversos gêneros. bit.ly/rba_vinil_rj Belo Horizonte O site Bazar em BH tem um seção de indicações de lojas e sebos que trabalham com os mais diversos estilos musicais, predominantemente antigos e usados. A página é repleta de links de anúncios no decorrer do texto que atrasam a vida do leitor. Melhor passar batido pelos links e ir direto à lista de lojas. bit.ly/rba_vinil_bh

Brasília A Musical Center tem acervo de 8 mil discos (215 norte, bloco C, loja 34, 61 3274-0763). A Acervo, também na Asa Norte (215N, bloco B, loja 9, 61 3033-7808) trabalha com raridades, inclusive de bandas do DF. Lojas da Livraria Cultura dos shoppings Casapark (Guará) e Iguatemi (Lago Norte) têm lançamentos. A Pro Vinil (Setor de Diversões Sul, Edifício Miguel Badya, loja 35, 61 3224-3599) é especializada em hip hop e rap. Recife O site do Diário de Pernambuco tem uma lista detalhada com uma dezena de lojas que trabalham com antigos, raridade e lançamentos. bit.ly/rba_vinil_recife

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OUTROS ESTADOS


CULTURA

Cenas dos próximos capítulos

Os Dez Mandamentos

As novelas mantêm interesse, mas perderam hegemonia e audiência nos últimos Babilônia anos. O último grande sucesso de público, Avenida Brasil, foi há mais de três anos. E o gênero tenta se reinventar para não acabar Por Luciana Ackermann Caminho das Índias

Verdades Secretas

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CULTURA

P

or muitos anos, as novelas ditaram modas e costumes. Era comum se evitar compromissos sociais para não perder a sequência da trama, ou programar a gravação para recuperar depois. Nada parecia abalar o domínio da teledramaturgia, e a alta fidelidade do telespectador. Mas os tempos mudaram. Na disputa pelos espectadores estão os canais a cabo, a explosão das séries acessadas pela internet e uma profusão de conteúdos gratuitos independentes de audiovisual. O avanço da tecnologia deu fim até à necessidade de baixar as imagens e armazená-las. Em 2011, chegou ao país a Netflix, serviço de streaming que oferece filmes e séries em ritmo de assine, clique e assista – inclusive sem necessidade de computador. Canais a cabo passaram a oferecer programação na qual o cliente assiste ao que quiser, quando e como, a chamada opção on demand. Não demorou muito para surgirem alguns “piratas” como o Popcorn Time, que se autodefine como grupo de nerds que oferece séries e filmes legendados de graça. A Regra do Jogo

Segundo a professora Esther Hamburger, do Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), e autora do livro O Brasil Antenado: A Sociedade da Novela, está em curso a diversificação de meios e as formas de recepção. E dificilmente as novelas terão o mesmo papel e lugar que tiveram nos anos 1970 e 1980, quando atraíam públicos de diferentes sexos, idades, regiões e classes sociais. “Parece ter ainda um público cativo, menos heterogêneo. E creio que há um círculo vicioso: quanto mais homogêneo o público, menos interessantes são as novelas, pois as produções parecem se orientar por estereótipos que subestimam certos segmentos da sociedade, especialmente o espectador cativo de novela”, analisa Esther. Mesmo diante da perda da relevância, a professora não enxerga um fim próximo para a teledramaturgia. “Apesar de haver tantas opções que não existiam antes, o sucesso de Avenida Brasil (2012) mostrou a resistência de um gênero profundamente enraizado. As novelas continuam a pautar as principais emissoras de televisão no Brasil. A competição entre canais ainda acontece via novelas”, observa. Para Esther, a televisão sofrerá profundas transformações com o advento da multiplicidade de canais no YouTube ou fora dele, assim como aconteceu com a indústria fonográfica, há alguns anos. “Isso quer dizer o fim da TV? Talvez o fim da TV como a conhecemos hoje. O cinema, que perdeu já há mais de 50 anos a sua exclusividade audiovisual para a TV, mudou de caráter, mas continua existindo.”

Poder

Paraisópolis

O aparelho de tevê da arquiteta Marina Leal Mendonça, de 27 anos, quebrou. E ela não tem interesse em adquirir um novo, apesar dos apelos da faxineira. “Não assistia mais à TV aberta, odeio a Globo. Por algum tempo, gostei do CQC (programa que surgiu como novidade no Brasil em 2008, baseado em um modelo argentino de 1995, e que permaneceu na grade da Bandeirantes até 2015). Prefiro ouvir música, ler ou assistir a séries e filmes pelo computador. Novela é maluquice. Não gosto, não faço questão de ver. Fiquei hipnotizada quando vi a novela do Comendador, Império. Mas é muita perda de tempo, não quero isso para mim”, afirma. Para o publicitário Matheus Grossi, de 31 anos, as novelas ficaram muito repetitivas, sempre repletas de personagens caricatos. “Assistia desde criança. Sinto saudades de obras como Tieta, havia sarcasmo, humor escrachado. O politicamente correto e a necessidade de agradar o senso comum com final feliz acabam com a criatividade dos autores”, diz Grossi, que no horário dos folhetins tem preferido ler, fazer cursos ou assistir a séries da Netflix. “Assisti a Narcos e achei muito boa. Também gosto de acompanhar os conteúdos audiovisuais de blogs de viagens, de moda, que estão cada vez mais profissionais e com qualidade.” Mas há quem defenda que o poder de atração da teledramaturgia brasileira segue numa escala cada vez maior. O pesquisador Mauro Alencar, doutor em Teledramaturgia Brasileira e Latino-Americana pela USP e autor de A Hollywood Brasileira – REVISTA DO BRASIL

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DIVULGAÇÃO

CULTURA

RESISTÊNCIA O sucesso de Avenida Brasil, de 2012, mostrou que a novela segue sendo um gênero enraizado na sociedade

Panorama daTelenovela no Brasil e da coleção Grandes Novelas, diz que o gênero ultrapassa a tela da TV e se amplia para todas as mídias e plataformas. “A telenovela, em especial, é uma arena artística que sintetiza todas as nuances de nossa sociedade. Da padaria que frequento em São Paulo, costumo ouvir acaloradas discussões sobre o comportamento dos personagens de A Regra do Jogo, por exemplo, passando pela complexidade psicológica de atração e repulsa que existia em Verdades Secretas. As novelas continuam a alimentar o cotidiano e a ser escritas ao sabor da contemporaneidade”, diz Alencar. O autor ressalta que o gênero faz parte do ideário latino-americano – está diretamente ligado à constituição psicossocial de nosso povo. “Se assim não fosse, Gabriel García Márquez não teria impulsionado de maneira tão intensa os estudos da telenovela na renomada Escola Internacional de Cinema e Televisão San António de los Baños, em Cuba.” Dentro de uma linhagem histórica, particularmente a partir da década de 1970, com o processo de modernização e industrialização da telenovela, segundo Alencar, o gênero passou a acompanhar, no tempo e no espaço, os caminhos de nossa sociedade sem perder de vista o caráter ficcional e lúdico. “Basta 44

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observar com acuidade os efeitos sociais de I Love Paraisópolis ao mostrar com a leveza do horário das 19 horas os contrastes econômicos dos personagens, ou o que a personagem Atena, de Giovanna Antonelli (de A Regra do Jogo), provoca nas consumidoras para compreendermos que a novela segue o curso natural da história”, observa Alencar.

Outra fase

São recorrentes as notícias de que as novelas das 21 horas da Globo não atingem mais os índices de audiência de outrora. Nos últimos meses, mesmo com a dobradinha criadora do fenômeno Avenida Brasil – o autor João Emanuel Carneiro e a diretora Amora Mautner –, a emissora não repete o feito em A Regra do Jogo. Na disputa, os frequentes registros de liderança da megaprodução da Record Os Dez Mandamentos várias vezes chegaram a ser celebrados nas redes sociais. A novela anterior da Globo também teve problemas de rejeição e pagou um preço por apresentar, logo no primeiro capítulo, um beijo na boca das personagens Fernanda Montenegro e Nathalia Thimberg. Mesmo com elenco repleto de estrelas, Babilônia teve problemas de audiência.


FOTOS LUCIANA WHITAKER/RBA

CULTURA

ANTENADOS Marina diz que odeia a Globo e que não vai repor a TV quebrada. Matheus prefere os livros e assiste a filmes no Netflix

Segundo o médico e psicanalista Francisco Daudt da Veiga, a rejeição à trama não ocorreu devido ao conservadorismo do público. “Foi por causa da forçação de barra fora de contexto da novela. As mulheres mais velhas se beijando não seriam rejeitadas se o fizessem depois de um conhecimento e envolvimento emocional, como foi o caso dos personagens de Mateus Solano e Thiago Fragoso”, argumenta Veiga, em referência a cena protagonizada pelos atores em Amor à Vida, exibida entre 2013 e 2014. Quanto à influência dos folhetins no comportamento das pessoas, o psicanalista reforça que, em certos casos, a TV vem a reboque dos costumes, em outros, vem à frente. Para ele, as novelas tiveram um papel essencial na diminuição da taxa de fertilidade brasileira. “Os espectadores só viam casais com dois filhos no máximo. Acharam bacana e começaram a imitar. Hoje a taxa de nascimentos por mulher está em 2,6, enquanto em 1980 era de 4,2 e em 1950 era de seis”, acredita ele. De acordo com Veiga, a teledramaturgia vem mesmo passando por uma crise existencial, mas em nada difere das mudanças que o mundo vive desde o aparecimento da internet e de seu “fluxo avassalador” de informação e de intercomunicação.

“Os telefones fixos não tocam mais, cada vez menos os celulares servem para falar, a comunicação digitada e as redes sociais se tornam hegemônicas.” Mas a estrutura de folhetim ainda tem um apelo à curiosidade e à fantasia humana inesgotável, afirma Veiga, que também o compara ao sucesso das séries estrangeiras, gênero que segue a mesma linha. “Nada mais são do que folhetins com linguagem de cinema, sobretudo com roteiristas que nos matam de inveja pela qualidade e criatividade, coisa que os roteiristas argentinos fazem também. As próprias séries estrangeiras vêm se reinventando. Os Sopranos, produção do canal HBO, inaugurou um estilo que tocou profundamente o coração contemporâneo, e vem se aprimorando no mesmo registro desde então.” Em 2014, a direção da Globo criou um fórum para planejar o rumo da dramaturgia. Umas das tendências, conforme defende o autor João Emanuel Carneiro, é diminuir o tamanho das novelas, que chegam a 200 capítulos. “Pode ser que a teledramaturgia comece a reinventar, seguindo o lema do comediante falecido José Vasconcellos: ‘Renovar ou morrer... Vamos renovar!’ Trata-se de um problema de ressintonizar”, afirma Veiga. REVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

Meus heróis são negros O adolescente PhCôrtes criou um quadro em seu canal no YouTube para celebrar personalidades negras brasileiras Por Xandra Stefanel

N

ada de skate, bicicleta ou aparelho eletrônico. O que Pedro Henrique Côrtes ganhou de presente no Dia da Criança em 2014 trouxe mudanças muito mais profundas em sua vida do que um simples objeto seria capaz de promover: o bilhete para assistir ao espetáculo O Topo da Montanha, que faz alusão ao último discurso de Martin Luther King, um dos mais importantes líderes do movimento pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Em cartaz no Brasil desde o início de outubro, a peça protagonizada e produzida por Lázaro Ramos e Taís Araújo encantou o adolescente e despertou nele o desejo de conhecer mais profundamente histórias de pessoas negras que fizeram a diferença no mundo. “Fiquei muito tocado e no dia seguinte pedi para minha mãe que meu presente de Natal fossem as biografias de M ­ andela, Luther King e Malcom X. Ela se comprometeu a me dar com uma condição: de que eu fosse pesquisar sobre os nossos heróis negros brasileiros. Foi aí que descobri muitos heróis. Como queria fazer um vídeo para o Dia da Consciên­cia Negra, minha mãe me sugeriu que eu fizesse um vídeo sobre esses heróis, mas como eram muitos anunciei a ela que iria fazer um quadro e a cada vídeo falaria de um herói”, afirma Pedro Henrique, mais conhecido como PhCôrtes. 46

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Bonito e expressivo em frente à câmera, o garoto afirma se sentir inspirado por tantos homens e mulheres que, negros como ele, foram brilhantes em ­suas lutas: “Se eu fico assim tão inspirado, compartilhar me dá a esperança de incentivar outros também… Depois que falo a história deles, eu sempre tenho uma reflexão final, porque é isso que acontece comigo, esses heróis me fazem repensar tudo, e me dão ânimo pra buscar meus sonhos. Acredito de verdade que mostrá-los à nova geração mudará uma mentalidade, dará força para a juventude lutar pelos seus sonhos”. Em menos de três meses, o canal de PhCôrtes no YouTube passou de 156 inscritos para quase 7 mil, uma visibilidade que superou suas expectativas. “Quando comecei esse quadro, imaginei, sim, que teria visibilidade, mas não nessa proporção! Tem sido uma experiência muito boa e me estimula a cada vez pesquisar e gravar mais”, diz, animado. O primeiro clipe da série Meus Heróis Negros Brasileiros contou a história de Zumbi dos Palmares. Lançado em 23 de novembro do ano passado, o primeiro episódio tinha alcançado, até meados de janeiro, mais de 22 mil visualizações. PhCôrtes começa o vídeo explicando porque decidiu criar este quadro: “Eu acho que nós, brasileiros, conhecemos muitas coisas sobre o mundo, mas não conhecemos coisas sobre nós mesmos,

sobre a nossa cultura”. Ao final, ensina: “Zumbi não morreu. Zumbi é o morto que reviveu. Ele está em cada um que luta pelos seus direitos, que não esquece de suas origens, em todos os lutadores que acreditam e que lutam pelo o que acreditam. Se você é uma dessas pessoas, Zumbi está em você. Zumbi está em mim. Zumbi está em todos esses heróis negros do Brasil que eu vou citar durante este quadro”. Além da história do líder do Quilombo dos Palmares, o quadro de Pedro Henrique já apresentou a trajetória e a importância do escritor Machado de Assis, do líder abolicionista Luiz Gama e, no primeiro vídeo lançado em 2016, o ­almirante negro João Cândido. O garoto anunciou que também trataria das heroínas negras brasileiras. “No quilombo,


CIDADANIA

ela plantava como todos, trabalhava na produção de farinha de mandioca, empunhava armas e liderou as falanges feministas do exército do quilombo, derrubando mais uma vez esse mimimi de que ‘mulher é o sexo frágil’”, narra o youtuber ao apresentar a guerreira Dandara, mulher de Zumbi e também líder do Quilombo dos Palmares.

Sonho possível

JORGE BISPO/DIVULGAÇÃO

JALTON GARCIA/RBA

PARA A NOVA GERAÇÃO Eloquente e simpático, PhCôrtes comanda seu canal com o pequeno computador direto de seu quarto

REFERÊNCIA Cena de O Topo da Montanha, com Lázaro Ramos e Taís Araújo: inspiração

Para PhCôrtes, o quadro é uma forma de combater o preconceito, do qual ele já foi vítima. “Eu estava voltando do inglês para a minha casa e percebi que um senhor que estava à minha frente ficou preocupado, colocou a mão no bolso e começou a caminhar apressadamente. Aí corri para ficar à frente dele, para que ele percebesse que eu não tinha intenção de fazer nenhum mal a ele. Cheguei em casa um pouco triste e depois deletei”, lembra. Seus vídeos pretendem mostrar que os “negros foram e são tão importantes e célebres quanto outros povos que aqui se estabeleceram”. Meus Heróis Negros Brasileiros pretende fazer com que a sociedade reflita sobre a questão do preconceito. Mas o impacto desses vídeos vão além do social. Segundo Egnalda Côrtes, mãe de Pedro Henrique, o canal também o tem ajudado a superar a timidez. “Esse trabalho é expressivo e importante não somente para a comunidade negra, mas para todo o povo brasileiro que pouco conhece sobre sua própria história. É algo novo. Ele é um garoto tímido, o canal foi uma forma de extravasar sua criatividade e de se mostrar mais como pessoa, com suas descobertas e reflexões. O novo por vezes o assusta, mas também o motiva”, afirma a ex-executiva de operações de call center. Com apenas 13 anos, Pedro Henrique já está se esforçando para realizar um ­ideal. “Meu grande sonho é de que no Youtube os negros ganhem a visibilidade e importância que não têm na TV e nem em campanhas publicitárias.” Para assistir aos vídeos do quadro Meus Heróis Negros Brasileiros, acesse www.youtube.com/user/Phcortesmotta1 REVISTA DO BRASIL

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curtaessadica

Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

FOTOS GABRIEL CARDOSO/PINACOTECA DO ESTADO DE SÃO PAULO

Abusos

Fotografia para sentir De agosto a outubro de 2015, dez alunos com diferentes graus de deficiência visual fizeram um curso de fotografia coordenado por João Kulcsár no Núcleo de Ação Educativa da Pinacoteca do Estado, em São Paulo. O resultado das aulas pode ser conferido até 3 de abril na exposição Transver – Fotografias Feitas por Pessoas com Deficiência Visual. A mostra apresenta dez imagens feitas pelos alunos e também oferece recursos de acessibilidade, como pranchas táteis, audiodescrição e textos em Braille. Por meio de um código, os visitantes podem assistir aos depoimentos gravados pelos fotógrafos. De quarta a segunda, das 10h às 18h, na Praça da Luz, 2, em São Paulo. R$ 3, R$ 6 e grátis aos sábados. Mais informações: (11) 3335-4990. 48

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Autor do best-seller O Menino do Pijama Listrado, John Boyne lançou em janeiro no Brasil o livro Uma História de Solidão (Cia. das Letras, 416 págs.), que aborda os casos de abuso sexual na Igreja Católica na Irlanda. A ficção conta a história de Odran Yates, o primogênito de um lar disfuncional que, aos 17 anos, vai estudar em um seminário que prepara garotos para a vida eclesiástica. Já padre, Odran percebe que era inocente demais para compreender o que acontecia ao seu redor e tenta acertar as contas com sua consciência. O autor apresenta uma Irlanda bem diferente da do senso comum, com viciados em drogas, perdedores e pedófilos, e onde pais biológicos batem em seus filhos e pais espirituais lhes estupram. Preços sugeridos: R$ 44,90 e R$ 29,90 (e-book).

Conhecimento contra o machismo

A Biblioteca Feminista oferece acesso livre e gratuito a documentos, textos e livros que abordam temas ligados ao feminismo e à equidade de gênero. Trata-se de um centro de documentação e de ideias organizado pela Universidade Livre Feminista, um projeto cujo objetivo é “congregar, catalisar e fomentar ações educativas, culturais, artísticas; de produção de conhecimento e compartilhamento de saberes acadêmicos, populares e ancestrais, numa perspectiva contracultural feminista, antirracista e anticapitalista”. O site www.bibliotecafeminista.org.br oferece materiais que discutem democracia e participação, direitos humanos, igualdade racial, movimentos sociais, sindicatos e partidos, entre outros temas.


DIVULGAÇÃO

Arta Dobroshi e Jérémie Renier em cena de O Silêncio de Lorna

Humanismo nas telas Considerados mestres do drama social, os diretores, roteiristas e produtores belgas Luc Dardenne e Jean-Pierre Dardenne ganham em fevereiro (de 10 a 29) uma retrospectiva no Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília, e a partir do dia 17 nas unidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. Com curadoria da cineasta Caru Alves de Souza, a mostra Cinema Humanista – Irmãos Dardenne vai exibir 22 filmes, entre os quais os que consagraram a dupla, como La Promesse, Rosetta, O Filho, O Silêncio de Lorna e O Garoto de Bicicleta, assim como a produção documental dos irmãos Dardenne, de rara circulação no Brasil. Entre os temas abordados nos longas, estão a vida de exilados, lembranças de uma greve geral e as rádios livres na Europa. R$ 2 e R$ 4. Confira a programação completa no site do CCBB: http://culturabancodobrasil.com.br.

Pense e dance Leitura cidadã Para comemorar o aniversário de 20 anos, a Editora Boitempo lançou um selo infantil que pretende explicar política para crianças. Os primeiros livros da Boitatá fazem parte da Coleção Livros para o Amanhã, lançada originalmente em 1977 pela extinta editora catalã La Gaya Ciencia. A Democracia Pode Ser Assim e A Ditadura é Assim são as primeiras obras do novo selo. Até o fim do primeiro semestre, estão previstos os lançamentos de As Mulheres e Os Homens, que trata sobre questões de gênero por um viés de igualdade e respeito à pluralidade, e O Que São Classes Sociais?, sobre a complexidade das dinâmicas sociais. A intenção é oferecer obras que promovam, além do aprendizado, o questionamento e a formação cidadã. R$ 42, em média.

Rap, música de terreiro, MPB, funk, black music. A banda Aláfia (caminhos abertos, em Iorubá) lançou Corpura, um álbum dançante que mistura influências dos blocos afro com funk americano e brasileiro, a sonoridade do candomblé e letras que questionam a sociedade e denunciam o racismo. Depois do álbum Aláfia, de 2013, a banda composta por 11 músicos reafirma seu compromisso com a ancestralidade e com as matrizes afrobrasileiras. O som de Corpura faz dançar na mesma medida que as letras das 11 canções fazem refletir. O álbum pode ser ouvido e comprado no site da banda: www.alafia.art.br. R$ 25, em média. REVISTA DO BRASIL

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ATITUDE

Letras da periferia Geladeira Cultural integra arte e literatura em comunidades carentes de Pernambuco Por Arthur Maciel. Fotos Jesus Carlos/Imagemglobal

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eriferia. Cidadania. Movimento. Some as palavras que conhecer, os adjetivos e substantivos, verbos e pronomes. Some as línguas e linguagens, escritas, sonoras e visuais, também as táteis e as sensoriais. Está tudo na cultura. É costume, é arte, é saber. É cotidiano. Bem-vindo à Geladeira Cultural de Pernambuco. O equipamento é um produto do Movimento Social Periferia & Cidadania, uma das ações de maior penetração nas periferias de Recife, Olinda e Jaboatão, presente em 35 centros sociais e culturais, associações de bairro, grupo de capoeira e escolas dessas cidades. A Geladeira Cultural parte do objetivo simples de levar literatura às crianças e jovens das periferias. Várias são as cidades do Brasil que não têm uma biblioteca pública, e Pernambuco não é exceção. Agora, escola sem biblioteca pode parecer raro, mas nas comunidades periféricas não faltam somente bibliotecas. Não há praças, não há campos ou quadras de futebol. “O que é que um jovem vai fazer numa situação dessa? Que saída ele tem? Que tipo de ocupação ele vai desenvolver?”, questiona Sérgio Santos, criador e coordenador do projeto. 50

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As geladeiras vêm de oficinas, ferros velhos, na maioria das vezes são compradas, algumas são doadas por moradores dos bairros onde Sérgio mantém algum tipo de trabalho social. Os livros vêm de doações. Transformadas em bibliotecas, levam cultura e lições de cidadania para as periferias do Grande Recife. De posse da geladeira, o primeiro passo é mobilizar os jovens da localidade para a confecção e montagem do equipamento. Sprays de tinta são as primeiras armas utilizadas. De posse dos tubos de tinta, os jovens vão tecendo cores por todos os cantos da nova biblioteca. “Isso faz com que eles se identifiquem com o bem, que cuidem e valorizem o equipamento”, observa Santos. Grafites feitos, tinta seca, todos juntos conduzem a Geladeira Cultural para o local onde será instalada, e entre 120 e 150 títulos são dispostos nas prateleiras e compartimentos. “De tempos em tempos fazemos um rodízio de acervo entre cada Geladeira Cultural instalada”, destaca o autor do projeto. E o mais importante: muitas outras atividades culturais vão surgindo em torno do novo bem público. https://www.facebook.com/geladeiracultural/


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