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A COR DO CINEMA NACIONAL Renata Martins, de Empoderadas, chegou lá

AMEAÇAS E OUTRAS PRAGAS Famílias de São Paulo e Curitiba que ocuparam e venceram

nº 115 março/2016 www.redebrasilatual.com.br

A DEMOCRACIA SEQUESTRADA POR QUE QUEREM NOS CALAR

Mercado quer outro governo. Congresso ameaça direitos. Setores da mídia e do Judiciário ignoram Constituição. Nas ruas, movimentos prometem reagir


ÍNDICE

EDITORIAL

8. Mauro Santayana Entre o projeto nacionalista democrático e o quintal dos EUA

10. Política

Sequestradores da democracia partem para o tudo ou nada

16. Direitos humanos Avanços econômicos e sociais na agenda das Américas

ROBERTO PARIZOTTI/METALÚRGICOS ABC

Previna-se das armadilhas da desinformação. Acompanhe aqui a cobertura dos principais fatos no país e do mundo. E siga nas redes sociais nosso jornalismo crítico, cidadão e transformador

18. Trabalho

Idade mínima... Como se Dilma precisasse de inimigos

22. Ambiente

A maior tragédia ambiental da história ainda não acabou

28. Cidadania

Lula dá entrevista: “Quiseram matar a jararaca, mas acertaram o rabo. A jararaca está viva”

Experiências que fizeram história em Sampa e Curitiba

Constituição e democracia

34. Entrevista

O

Renata Martins e a nova geração de cineastas negras

38. Memória

Do estúdio da Paula Souza para a história, o primeiro disco do Chico

JESUS CARLOS/IMAGEMGLOBAL

Banda de Pífanos Zé do Estado

www.redebrasilatual.com.br

42. Cultura

De Caruaru para o mundo, os pífanos, patrimônio cultural

Seções Emir Sader Destaques do mês

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Lalo Leal

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Marcio Pochmann

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Curta essa dica

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Crônica: Mouzar Benedito

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Brasil saiu de uma ditadura e ingressou há apenas 30 anos num processo­ democrático com eleições gerais em todos os níveis. Há mais de 27 anos tem uma Constituição considerada “cidadã” e admirada em vários países. Vivemos dias que a democracia e a Constituição são postas em risco diariamente. Em 516 anos, uma minoria dominou os poderes, restringindo o acesso das maiorias aos avanços decorrentes da produção de riqueza, do crescimento tecnológico e científico. O Brasil experimentou um avanço da democracia a partir de 2003 com programas sociais e políticas de inclusão. Dentro do capitalismo, fez a “lição de casa”. Foram governos de coalizão e de conciliação de classes – o que levou a críticas de setores que esperavam mais ousadia –, com erros na condução da economia e a ausência de medidas estruturantes, sobretudo reformas do sistema político, tributária e de comunicações. Ainda assim, alcançou níveis de redução da pobreza, das desigualdades e de participação social nas decisões inéditos na história. Enfrentou uma crise mundial em 2008 com políticas anticíclicas e altivez, mas não conseguiu dar sustentabilidade ao crescimento. Enfrenta também uma crise política, em parte decorrente da econômica, em parte do Congresso mais conservador da história saído das urnas em 2014. O que assanha essa maioria conservadora a tentar emplacar leis que retrocedam nos avanços sociais e na soberania. E mais: a tentar interromper ou inviabilizar o mandato de Dilma. Os meios de comunicação tradicionais jogam junto esse jogo sujo, em conluio com p­ arte de Judiciário. Assim se processa o sequestro da democracia com o objetivo de abrir o Brasil no mercado de petróleo, desregulamentar as leis trabalhistas, manter o modelo de arrecadação de impostos que privilegia os mais ricos, acabar com os programas sociais inclusivos e disputar o orçamento do Estado em benefício próprio (por exemplo, com a reforma da Previdência). Felizmente, não são poucos os que sabem distinguir a crise conjuntural do projeto­ de nação e seguem com a Constituição e com a democracia. E prometem resistir ao retrocesso. REVISTA DO BRASIL

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O PRIMEIRO CANAL DE TV ABERTA DOS TRABALHADORES

EMIR SADER

Ela veio para ficar

www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Helder Lima, Hylda Cavalcanti, Rodrigo Gomes e Sarah Fernandes Arte Leandro Siman Iconografia Sônia Oddi Capa Foto de DElight/Getty Images. Marcia Minillo (Renata Martins). Danilo Ramos/RBA (ocupações). Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 (Carla Gallani) Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Tiragem 120 mil exemplares

Conselho diretivo Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Deusdete José das Virgens, Douglas Izzo, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eliana Brasil Campos, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Glaucus José Bastos Lima, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Raimundo Suzart, Raul Heller, Roberto von der Osten, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior

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A crise internacional iniciada em 2008 no centro do capitalismo não tem prazo para acabar. Dos Brics e novas forças da Europa pode surgir um horizonte de superação do longo ciclo recessivo

E ESTÁ TODO MUNDO FALANDO. VOCÊ PRECISA VER! Canal 8.1 HD digital em toda Grande São Paulo; Canal 12 da NET: Grande ABCD (24h); 13 da NET: Mogi das Cruzes (24h); Canal 2 da NET: São Paulo (19h às 20h30); Canal 26 da NET: Barueri, Santana do Parnaíba, Osasco, Vargem Grande Paulista, Taboão da Serra, Carapicuíba, Cotia, Embu, Itapecerica da Serra, Itapevi e Jandira (19h às 20h30); Canal 9 da NET: Brasília (19h às 20h30); Pela internet: tvt.org.br

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.

la causa desconcerto, taxas de juros negativas e estratosféricas, esgota argumentos e fórmulas – ninguém sabe mais como reagir, nada resolve. É como se a crise recessiva já estivesse naturalizada. Na verdade, não se trata de uma crise conjuntural, mesmo se prolongada, em que o próprio mercado, se depurando dos mais frágeis, recompusesse a economia para voltar a crescer. Trata-se de um ciclo longo recessivo em que o capitalismo internacional ingressou, quando se esgotou o ciclo longo expansivo do segundo pós-guerra, em torno das décadas de 1970/1980, no qual ela ainda segue. Além dos ciclos curtos, caracterizados por Marx como típicos do processo de acumulação de capital, o economista russo Nicolas Kondratieff agrupou esses ciclos em conjuntos, alguns com tendência expansiva, outros com tendência recessiva. O ciclo longo, do segundo pós-guerra até por volta dos anos 1970/1980 do século passado, foi expansivo, a idade de ouro do capitalismo, segundo Eric Hobsbawn. Cresciam virtuosamente todos os principais setores da economia mundial: Estados Unidos, Alemanha, Japão, América Latina (Argentina, Brasil, México, principalmente), o campo socialista. Foi um ciclo em que o setor hegemônico na economia foi o das grandes corporações industriais multinacionais, do qual a indústria automobilística foi o modelo mais típico. Quando este se esgotou, veio o debate sobre suas causas e como superá-las. Triunfou o diagnóstico neoliberal, com sua proposta de desregulamentação e de livre comércio, de menos Estado e mais mercado, de menos direitos e mais mercantilização. Como resultado, se deslocou o eixo do processo de acumulação para o capital financeiro, sob sua forma especulativa. Porque o capital busca se realizar onde tem mais lucros, em prazos mais curto e com menor tributação. O papel hegemônico do capital financeiro no novo período histórico explica porque se trata de um ciclo

longo recessivo, dado que especulação não produz nem bens, nem empregos, vive da compra e venda de papéis, do endividamento de governos, de empresas e de pessoas. A crise recessiva de dimensões globais pronunciada, iniciada em 2008, é apenas a expressão desses fatores. Desde que se iniciou o ciclo longo recessivo, quando as economias centrais do capitalismo crescem a níveis incomparavelmente mais baixos do que os do ciclo anterior. As economias que estão fora desse patamar são as da China, da Índia e dos países pós-neoliberais da América Latina, que ainda assim passaram a sofrer os efeitos da recessão internacional generalizada. É uma recessão estrutural, característica deste ciclo histórico e da qual não há prazos de saída. Ao contrário dos outros ciclos longos que, agrupados, tendiam a durar mais ou menos dois anos. Esta já caminha para durar uma década, e não se vislumbram elementos de sua superação. Uma vez estabelecida a desregulamentação e a livre circulação de capitais, não há forma de retornar a modalidades de regulação. É como se o conjunto do sistema fosse arrastado pela lógica da especulação financeira, sem formas de contê-la. Quando irrompeu a profunda e prolongada recessão atual, Obama afirmou que haveria de “salvar os bancos”, caso contrário o teto cairia na cabeça de todos. Os bancos foram salvos, estão mais fortes do que nunca, enquanto os países que quebraram – Grécia, Irlanda, Portugal, Espanha, Itália... É preciso, portanto, conviver com esse ciclo longo recessivo, buscando mediante mecanismos como os Brics e seu Banco de Desenvolvimento, formas de resistir às fortes tendências recessivas produzidas e reproduzidas no centro do sistema. Ao mesmo tempo em que na Europa começam a surgir forças que se oponham às políticas de austeridade. Da aliança entre os Brics – incluindo os governos progressistas da América Latina – e de forças novas da Europa é que pode surgir um horizonte político de superação do ciclo longo recessivo atual do capitalismo. REVISTA DO BRASIL

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Integrantes de movimentos sociais e estudantis protestam contra a violência

OSWALDO CORNETI/FOTOS PÚBLICAS

Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

JORNALISTAS LIVRES

redebrasilatual.com.br

O caso Manoel Fiel Filho é, talvez, menos conhecido ou menos falado que o de Vladimir Herzog, mas ambos se equivalem em tristeza e importância histórica. O metalúrgico e o jornalista morreram nas mãos dos torturadores do DOICodi paulista, com diferença de alguns meses – janeiro de 1976 e outubro de 1975. Em 17 de fevereiro, um ato marcou os 40 anos do assassinato de Manoel Fiel. Durante 40 dias, o maratonista e jornalista Rod­olfo Lucena percorreria vários locais para lembrar a trajetória do operário, cuja morte desencadeou uma crise interna no governo militar. bit.ly/rba_manoelfiel

Alckmin (cumprimentando Paulo Maluf): no vermelho

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ROVENA ROSA/AGÊNCIA BRASIL

Déficit tucano

Pelo quinto ano seguido, o governo do estado de São Paulo fechou com déficit orçamentário. Em 2015, as despesas superaram as receitas em R$ 1,38 bilhão, no pior rombo já registrado. A diferença aumentou 289% em relação ao ano anterior, mesmo com cortes em várias áreas. O governo tucano também reduziu investimentos. bit.ly/rba_tucano

negra e mora na periferia. bit.ly/rba_pm Ainda em São Paulo, o Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) vai apurar as circunstâncias da morte de 28 pessoas, cujos corpos foram encontrados em uma vala clandestina na região do Jardim Ângela, na zona sul. Há suspeita de que tenham sido vítimas de grupos de extermínio. bit.ly/rba_vala

Mais de 90% dos casos de morte provocadas por policiais em serviço – os chamados autos de resistência – são arquivados sem investigação pelo Ministério Público de São Paulo. A pesquisa foi divulgada pela Defensoria Pública. Segundo uma defensora, não é possível falar que a Justiça inocenta os policiais, porque nem sequer dá um veredito. A pesquisa confirma uma percepção: a maioria das vítimas é

Os donos da crise

Ives Gandra Filho citou encíclica papal e CLT

Sem excessos

Ainda que em taxas menores, o Brasil pode promover crescimento econômico com base em seu mercado interno, sustentado por investimento público e privado, diz o diretor técnico do Dieese, Clemente Ganz Lúcio, para quem a conjuntura brasileira reflete a situação mundial, especialmente da China. Especialistas veem no horizonte um novo “terromoto financeiro”, com efeitos semelhantes aos da crise de 2008. Para Clemente, essa crise está sendo recriada por agentes do mercado financeiro, área que continua sem regulação. bit.ly/rba_terremoto

O projeto de lei sobre terceirização, em tramitação no Senado, foi usado como exemplo pelo novo presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra da Silva Martins Filho, que falou em “excessos” no debate, que considera ideológico. O ministro também pregou entendimento e diálogo em um momento conturbado do país, e, no campo trabalhista, afirmou que o ponto de equilíbrio se atinge a partir da redução de expectativas. Uma das várias citações foi a da encíclica papal Rerum Novarum, de 1891, feita no contexto da Revolução Industrial e que rejeita a luta de classes. Gandra citou ainda um artigo da CLT, que fala em salário justo ao mesmo tempo em que defende “justa retribuição” às empresas. bit.ly/rba_tst

PREDRAG KEZIC/PIXABAY

A história de Manoel

A televisão fez o possível para não mostrar, mas em alguns jogos do Corinthians foi possível ver protestos da torcida Gaviões da Fiel contra preços dos ingressos, horários dos jogos e inclusive sobre o escândalo das merendas escolares em São Paulo: “Quem vai punir o ladrão de merenda?”, dizia uma das faixas. Segundo os presidentes da Gaviões (que dias depois seria agredido em um estacionamento) e da associação das torcidas organizadas, em que pese a rivalidade, elas planejam um esforço conjunto contra problemas que afetam, principalmente, aqueles que gostam de ver jogos no estádio. bit.ly/rba_futebol1 Um levantamento divulgado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) aponta para a concentração de renda também entre os atletas profissionais. Segundo os dados, 82% dos mais de 28 mil jogadores no país recebiam, em 2015, até R$ 1 mil. Uma parcela mínima ganhava valores acima de R$ 100 mil. bit.ly/rba_futebol2

Arquive-se, apure-se

VALTER CAMPANATO/AGÊNCIA BRASIL

Ao sol e à sombra

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MAURO SANTAYANA

MAURO SANTAYANA

Sob o domínio do atraso

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e olho na novela do impeachment e no julgamento pelo TSE da representação protocolada pelo PSDB contra a eleição de Dilma Rousseff e de Michel Temer, muitos têm deixado de perceber que a ofensiva do campo conservador tem ido muito além da tentativa de derrubar a presidente da República. Agora, à possibilidade que existe, também, de “sangrá-la” até o último dia de mandato, se agrega, a cada dia mais, um objetivo paralelo, uma terceira via, que tem avançado com incrível facilidade: a de impor a aprovação de uma agenda conservadora no Supremo Tribunal Federal e no Congresso, mantendo o governo, também ali, permanentemente nas cordas, a ponto de transformá-lo em cúmplice da implementação de medidas que teriam mais dificuldade de ser aprovadas se a oposição tivesse vencido as eleições. Esse é o caso, por exemplo, da aprovação de uma lei antiterrorista absolutamente inócua, ambígua, ­esdrúxula, anacrônica, desnecessária, antidemocrática – criticada pela própria ONU e pela OEA –, que, do ponto de vista de relações externas, pode vir a nos indispor com inimigos que nunca tivemos e, no âmbito interno, representa mais um passo na consolidação de um regime jurídico-policial de facto repressivo, injusto e arbitrário, e no estrangulamento do direito de opinião, de organização e de manifestação da população brasileira. Em outro gigantesco passo rumo à fascistização do país, o STF, em flagrante atentado à Constituição, aprovou a prisão de réus logo após a condenação em segunda instância, como se tivéssemos excesso de impunidade em um país no qual 40% da população carcerária se encontra, sem julgamento ou culpa formada, atrás das grades, e a cada três horas, em média, um cidadão morre abatido pela polícia. No mesmo caminho, o da radicalização de mecanismos de repressão e violência que mascaram a verdadeira natureza dos problemas e impedem a busca de soluções modernas, coletivas e racionais para eles, avança, 8

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no Congresso, a aprovação de lei que pretende, com o fim do Estatuto do Desarmamento, armar os “homens de bem” para “autodefesa”, atendendo aos interesses de empresas que financiaram as campanhas. Enquanto isso, controlar a altíssima remuneração, inconstitucional, de muitos juízes, funcionários do Congresso, promotores, deputados que juntam aos seus salários outros proventos públicos, ninguém quer. No Legislativo, se organizam grupos de deputados para impedir a aprovação do projeto de lei dos supersalários, que pretende acabar com a farra dos “penduricalhos” de setores que adoram se apresentar ao público como campeões dos bons costumes. No campo da economia, não satisfeitos com a aceitação, pelo Senado, da proposta que muda as regras do pré-sal, abrindo caminho para leilões de novos campos de petróleo e para a aprovação pela Câmara de projeto ainda mais vergonhoso, que prevê o fim do regime de partilha e a volta ao de concessão estabelecido nos “fantásticos” tempos de FHC, os privatistas trabalham para aprovar, em regime de urgência, sem ampla discussão com a sociedade, o Projeto de Lei do Senado (PLS) 555, que pretende entregar para o “mercado” empresas essenciais para a execução de qualquer projeto de desenvolvimento nacional, como BNDES, Caixa Econômica Federal, Embrapa, Correios, a parte ainda não privatizada da Petrobras etc., substituindo sua função estratégica e social pelo interesse de “investidores”. Acreditar, a priori – em um mundo em que poderosas empresas 100% estatais como a Chemchina, se lançam à compra, por dezenas de bilhões de dólares, de gigantes multinacionais como a Syngenta –, que o Estado não deve ter presença na economia é um raciocínio tão estúpido quanto achar que não deva existir iniciativa privada, só porque ela é particular, ou que se deva impedir que capitais estrangeiros não possam ter lugar dentro de fronteiras nacionais. I­ sso, desde que esses “capitais” aportem realmente alguma coisa ao país, e sejam controlados e limitados estrategicamente, segundo os interesses nacionais.

TERCEIRA VIA Renan e Cunha: também no Congresso, governo permanece nas cordas

ANTONIO CRUZ/AGÊNCIA BRASIL

Agenda conservadora toma o país de assalto, e vivemos momento crucial. Recuar no campo estratégico e social e virar província norte-americana. Ou avançar em um projeto nacionalista e democrático

Este não é o caso de outro tema da agenda conservadora, o novo marco regulatório dos jogos no Brasil, que pretende entregar a empresas norte-americanas que sucederam a máfia em locais como Las Vegas e Reno, no estado de Nevada, nos Estados Unidos, um gigantesco “negócio”, que, se aprovado, irá movimentar dezenas de bilhões de dólares por ano. São representantes dessas empresas, como a Sands Corporation, que estão sendo ouvidos pela comissão especial que estuda o assunto, para dar, generosa, altruísta, “colaboração” e “aconselhamento”, para o estabelecimento da legislação pertinente ao tema, o que equivale mais ou menos a chamar um bando de raposas para assessorar no estabelecimento das regras da exploração futura de um galinheiro. E quem vai impedir os negócios paralelos, como corrupção – que normalmente se prevê nesse tipo de negócio –, lavagem de dinheiro, exploração da prostituição e do tráfico de drogas, que são de amplo conhecimento de qualquer um que já tenha pisado em Las Vegas? Se a intenção é criar empregos, como se alega, que se passe a futura administração dos cassinos e bingos, no Brasil, à Caixa Econômica Federal, que já administra as loterias, para que o faça com rigoroso controle do pessoal envolvido, devidamente concursado e contratado como funcionários públicos. Posto isso, voltemos à situação da Nação neste momento. Será que na luta fratricida pelo poder a qualquer preço – que inclui sobrevalorizada, cínica, manipulada campanha contra a corrupção – não se pode perceber que o estraçalhamento geral da atividade política e a destruição dos elementos estratégicos de desenvolvimento nacional, aí incluídas nossas maiores empresas privadas e públicas, equivale a jogar o bebê com a água do banho pela janela ou a matar os bois junto com os carrapatos, e só pode beneficiar a inimigos? A tudo isso, se contrapõe um quadro de total desorganização dos trabalhadores, dos nacionalistas, desenvolvimentistas, e de um capital nacional que não entende que, por trás do discurso de uma mídia majoritariamente entreguista e antibrasileira, não se encontra mais do que o germe de sua destruição e desnacionalização no horizonte próximo. Onde está a Frente Parlamentar Nacionalista? O que pretendemos fazer com este país neste século? Recuar, de maneira medieval, no campo estratégico e social, transformando-nos na vanguarda do atraso messiânico, conservador e fundamentalista da América Latina, em uma província norte-americana que entrega seu patrimônio e seu mercado e copia o que sua adorada matriz tem de pior, abrindo mão de toda possibilidade de ser uma nação de alguma importância entre seus pares do mundo, apesar de termos recebido daqueles que nos antecederam a bênção da quinta maior nação do planeta, forjada no suor e no sangue de nossos antepassados? Ou vamos, como a Rússia, a Índia, a China, nossos sócios nos Brics, investir no nacionalismo, na união e no desenvolvimento, como fulcro de um projeto nacional que reúna o país em torno de objetivos perenes de fortalecimento geopolítico, consolidação e valorização da liberdade e da democracia, e a busca constante do progresso econômico e social, combatendo a miséria não com um 38 na mão, mas com mais educação, pesquisa, ­tecnologia, amor ao Brasil e inteligência estratégica? REVISTA DO BRASIL

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A nova rede da legalidade Interesses ideológicos, econômicos e de mercado operam para derrubar Dilma, inviabilizar Lula e calar os movimentos. A resistência da democracia, dos trabalhadores e dos avanços sociais será nas ruas

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RICARDO STUCKERT/INSTITUTO LULA

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o final da noite de 4 de março, ao discursar na quadra do Sindicato dos Bancários de São Paulo, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltou a afirmar que, no governo, é a economia que tem de estar subordinada à política, e não o contrário. Também tornou a dizer que não adianta fazer ações apenas com o objetivo de agradar o mercado financeiro. De fato, os recados dados pelo “mercado” têm demonstrado que o poder econômico, definitivamente, entrou em cena para influir no processo político, o que inclui derrubar a presidenta reeleita em 2014, Dilma Rousseff. Três dias depois, o jornal Valor Econômico escancarou em manchete: “Mercado já opera com mudança de governo”. Ou com o vice, Michel Temer, ou com um presidente escolhido em nova eleição, caso Temer seja também impedido. “Isso possibilitaria a inauguração de uma política econômica centrada no enfrenta-

mento da crise fiscal, porém, com ganhos de credibilidade que permitissem antecipar os benefícios”, diz o Valor – admitindo, assim, a elevada dose de política na parte econômica da crise. “O comportamento dos mercados reforça essa expectativa”, acrescenta o periódico, ao mencionar que uma possível mudança de governo estaria “animando” a Bolsa e

valorizando o real – na semana de 4 de março, o Ibovespa, índice da bolsa de São Paulo, teve valorização de 18%, a maior alta semanal desde outubro de 2008, e o dólar recuou quase 6%. O presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo­ Skaf, reuniu-se com diversas entidades no dia 7, entre as quais o Movimento Brasil

Livre e o Vem pra Rua, assumidamente a favor do impeachment. Para Skaf, com presença declarada no protesto de 13 de março na Avenida Paulista, tirar Dilma da Presidência da República é mais urgente do que apear Eduardo Cunha do comando da Câmara dos Deputados. A aposta do mercado é evidenciada em um relatório divulgado pela Nova Futura

Lula: no governo, é a economia que tem de estar subordinada à política, e não o contrário

Corretora, para a qual o dia da deflagração da Operação Atheneia teve o “pregão mais otimista dos últimos tempos”, não só no Brasil. “A forte alta da confiança dos mercados impulsionou os preços dos ativos brasileiros, que estavam muito deprimidos desde que os agentes de mercado se desanimaram com a tese de impeachment.”(...) “A delação de Delcídio (referência à delação não confirmada pelo próprio autor, senador Delcídio do Amaral) e a ‘condução coercitiva’ de Lula jogaram muito ânimo em apostas que estavam à míngua.” A corretora vê exagero em todo esse otimismo, já que os fundamentos econômicos continuam ruins. Mas constata que, no mercado interno, as ações passaram a subir devido à possibilidade de “virada de jogo” na política. O “fenômeno” não é exclusivo no Brasil. “O mais estranho nesses últimos dias de delações vazadas e a nova fase da Operação Lava Jato foi a gigantesca alta das ações da Petrobras no mercado americano: 30% em dois dias”, diz o Jornal do Brasil. “Isso representa um ganho absurdo do mercado financeiro, que pode estar por trás dessa especulação toda sobre impeachment, sobre a queda de Dilma e a prisão de Lula.” Em um portal de linha editorial antigoverno, um analista foi mais do que explícito ao comentar o otimismo dos agentes com os acontecimentos políticos: “O mercado reage assim à medida que aumenta a possibilidade de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Desde a época da eleição o mercado torce pela troca de governo”, disse Vitor Miziara, sócio da Criteria Investimentos. São vozes do poder econômico globalizado que dita (ou tenta ditar) os rumos das economias do mundo. É a turma da desregulamentação, da flexibilização das leis trabalhistas, da terceirização sem freio. E que não quer esperar 2018 para voltar confrontar projetos e voltar ao poder pelo voto. A operação “de volta para os anos 1990” é para agora. Para tanto, contam com os poderes atribuídos a uma parte do Judiciário, do Ministério Público, da Polícia Federal – tendo como principal frente de batalha os meios de comunicação. REVISTA DO BRASIL

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E quais seriam essas batalhas para restabelecer a supremacia do mercado sobre a política brasileira? Fragilizar o governo Dilma e, se possível antecipar seu fim. Desconstruir Lula, inviabilizar sua candidatura em 2018 ou, se não for possível, criminalizá-lo a ponto de evitar sua reeleição. Acuar, por meio da imprensa comercial e de aparatos judiciais, os movimentos mais fortes na resistência a essas operações, como os sindicatos de trabalhadores, e os veículos de comunicação que remam contra a corrente da mídia subordinada ao mercado e ao conservadorismo. “Temos de mobilizar todos os que têm o Brasil no coração para quebrar a hegemonia da direita. Temos de sustentar com mobilização e pressão nas ruas”, disse o senador Roberto Requião (PMDB-PR), que em 7 de março participou de ato realizado no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo – com jornalistas, parlamentares, lideranças políticas e movimentos sociais – em solidariedade a jornalistas independentes, como Fernando Brito, do blog Tijolaço, Helena Sthephanowitz, da RBA, e Miguel do Rosário, de O Cafezinho, entre outros, que foram notificados pela emissora carioca para retirar do ar ou modificar reportagens investigativas sobre de uma casa luxuosa em Paraty (RJ), cuja construção irregular – em área de preservação da praia Santa Rita – expõe indícios de ligação entra a família Marinho e a empresa especializada em atuar em paraísos fiscais Mossack Fonseca, investigada na Lava Jato. Em “notificação” enviada por e-mails, João Roberto Marinho negou ligação com a propriedade ou a empresa. Ao associar as “operações casadas” entre os agentes da Lava Jato, a imprensa e as forças políticas e econômicas interessadas no fim do governo, Requião destacou que há “alguma coisa no ar” além dos direitos inscritos na Constituição, que foram arrasados na “prisão” de Lula. E identificou a questão de base da luta política como um ataque no mundo pelo poder do dinheiro. “A pressão pela privatização do petróleo vem dos países ricos e fortes que querem o domínio das reservas. As Sete Irmãs (empresas que de12

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têm o monopólio do petróleo no mundo) não vão investir sem essa pressão. Depois que os E ­ stados Unidos inventaram o shale gas (gás de xisto), isso ocorreu na busca do domínio das reservas. O petróleo não é só o combustível que move 95% dos transportes no mundo, mas tem mais de 3 mil derivados, que influenciam a indústria”, afirmou Requião. Para o senador, a alternativa de direita só deixa ao Brasil a privatização e a globalização “por tolice ou entreguismo comprado”. O senador lembrou o caso do WikiLeaks, que denunciou conversa do senador José Serra (PSDB-SP) com executivos da Chevron, assumindo o compromisso de entregar o pré-sal. E também não se poupou de criticar a mídia tradicional: “O que nós vemos é a imprensa fazendo a crítica da Petrobras, e não dos ladrões da Petrobras. O que querem é entregar a Petrobras a um dos sete bandidos, das Sete Irmãs”, afirmou. “A mídia é instrumento de precarização do Estado, do Congresso e das leis trabalhistas.” Requião não é voz isolada na interpretação de que a judicialização da perseguição ao PT e suas principais lideranças é movida a violações da Constituição. Muitos juristas se levantaram contra o que consideram o clímax de um processo permeado por violações sistemáticas desde o início da operação há dois anos, em 17 de março de 2014. O advogado e deputado federal Wadih Damous (PT-RJ) foi o primeiro a usar um termo que se alastrou na internet: “Não houve condução coercitiva. Houve, na verdade, um sequestro”. O jurista e constitucionalista Celso Antônio Bandeira de Mello demonstrou preocupação com o perigo de estarmos “sinalizando o fim da democracia”. E condenou a operação contra Lula do ponto de vista do Direito: “A condução coercitiva do Lula, juridicamente, não passa de um absurdo. Porque quem não se recusa a depor, quem não resiste a colaborar com a autoridade, não pode receber nenhuma condução coercitiva”. O advogado Pedro Serrano afirmou que “o país está sem lei”. “O que aconteceu hoje (4 de março) é inaceitável do ponto de vista constitucional e dos direitos democráticos.”

CHAMAMENTO Roberto Requião: “Temos de mobilizar todos os que têm o Brasil no coração para quebrar a hegemonia da direita. Temos de sustentar com mobilização e pressão nas ruas”

PÚBLICO X PRIVADO Manifestantes passam o dia na praia Santa Rita, em Paraty (RJ), diante do imóvel que seria dos Marinhos

ANTONIO CRUZ/AGÊNCIA BRASIL

Desconstrução trabalhista

A VOZ DO MERCADO Para Skaf, da Fiesp, tirar Dilma da Presidência da República é mais urgente do que apear Eduardo Cunha do comando da Câmara dos Deputados

HELENA FONSECA RODRIGUES/FUTURA PRESS/FOLHAPRESS

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EDRO FRANÇA/ AGÊNCIA SENADO

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Mas essa opinião não foi apenas a de juristas, advogados e operadores do Direito chamados de progressistas por sua atua­ção histórica. O ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, tem a mesma análise. O magistrado da mais alta Corte do país foi contundente no programa Canal Livre, da Bandeirantes, exibido dois dias depois. “Que nós estamos com uma generalização de atos extravagantes, estamos”, disse. “Nada justifica uma condução coercitiva sem que antes o cidadão tenha sido intimado mediante mandado e tenha deixado de atender ao chamamento judicial.” Antes, à rádio CBN, o magistrado expressou preocupação não apenas com a “terrível” repercussão para a imagem do Brasil no mundo como também com o próprio Estado de Direito: “Se ocorre com um ex-presidente da República algo tão extremado, imagina o que pode ocorrer com um cidadão comum”, aler-

tou. “Para a Justiça ninguém deve ser intocável, mas não podemos voltar à Idade Média. E essa história de que (a condução coercitiva) servia para garantir a proteção dele eu apenas anuncio: eu não gostaria de ter esse tipo de proteção”, ironizou. Outro que está longe de ser um simpatizante dos governos do PT, José Gregori, ex-ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso, também apontou a distorção da operação: “Na realidade o que parece é que esse juiz (Sérgio Moro) queria era prender o Lula. Não teve a ousadia de fazê-lo e saiu pela tangente”, declarou. Manifestações se armaram espontaneamente a favor do ex-presidente da República. Ainda na mesma alucinante sexta-feira 4 de março, Lula participou à noite de um evento na lotada quadra do Sindicato dos Bancários, em São Paulo. Dizendo-se provocado, não se declarou candidato, mas voltou a dizer que só po-

de ser derrotado “nas ruas”. E acrescentou às milhares de pessoas que acompanharam seu discurso de uma hora e 20 minutos: “Se vocês estão precisando de alguém para animar essa tropa, o animador está aqui”.

Jararaca viva

À tarde, em entrevista coletiva, o ex-presidente já havia reagido com indignação: “Quiseram matar a jararaca, mas acertaram o rabo. A jararaca está viva. No 8 de março, em manifestações pelo Dia Internacional da Mulher, um meme com o chamado “Agora somos todas jararacas” correu as redes sociais. As intenções políticas da Operação Lava Jato e dos oposicionistas que a ela se agarram com esperança de vencer o “terceiro turno” são claras, de acordo com inúmeras análises. Disse o mesmo Bandeira de Mello: “A condução coercitiva (de Lula) é um ato que equivale a uma REVISTA DO BRASIL

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LALO LEAL

confissão de medo, de pavor. Eles têm medo que o Lula venha a ser candidato e ganhe a eleição”. Na véspera da operação contra Lula, uma edição do Jornal Nacional, da TV Globo – tida como principal incentivadora da ofensiva destinada a inviabilizar o governo petista e eventual candidatura de Lula em 2018 –, dedicou longa reportagem tendo como base a suposta delação do senador Delcídio do Amaral (PT-MS), com acusações contra a presidenta e o ex-presidente. A matéria foi vista por alguns como ensaio geral para o desfecho da operação e como combustível para as manifestações direitistas do 13 de março. “Estou muito preocupada, porque não acho que o cerco vá diminuir. Naquela

sexta-feira, a Folha de S.Paulo já estava em São Bernardo do Campo antes de a polícia chegar”, afirmou a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB-RJ). “Na edição do Jornal Nacional da véspera já estava nítido que ia acontecer alguma coisa. Nós precisamos botar muito mais gente nas ruas.” As apostas da queda do governo voltam a se dividir em duas frentes: o impeachment contra Dilma, no Congresso Nacional, e o julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (sem data prevista), no qual vai-se decidir sobre quatro ações em que o PSDB pede a cassação da chapa de Dilma e do vice, Michel Temer. Ambas as teses foram revigoradas com os acontecimentos de março. O ambiente levou o economista Mar-

cio Pochmann, colunista da Revista do Brasil, a comparar a reação popular à operação com a chamada campanha da legalidade, comandada em 1961 pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, para garantir a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio Quadros. “Houve atos de solidariedade e luta contra o arbítrio das forças do atraso em quase 1.500 mil cidades do país e a participação de cerca de 500 mil pessoas, bem como a adesão de cerca de 2 mil novas filiações ao Partido dos Trabalhadores, sobretudo de jovens,” escreveu. Com reportagens de Eduardo Maretti, Helder Lima, Paulo Donizetti de Souza e Vitor Nuzzi

Liberdade de imprensa x Liberdade de empresa FOI-SE O TREM Os 260 km de vias da CPTM poderiam ajudar a desafogar SP

SAÚDE NA ROÇA Agroecologia, modelo de segurança alimentar e de negócio

nº 109 agosto/2015 www.redebrasilatual.com.br

Metalúrgico Danilo Leite, demitido da Mercedes, protesta em Brasília contra overdose de ajuste

EMPREGOS EM JOGO Ajuste fiscal já compromete uma das principais conquistas dos últimos 12 anos, e trabalhadores cobram do governo correção de rota

Capas de junho/2006 e outubro/2010: posição clara e com jornalismo

Fevereiro/2009, abril/2013 e agosto/2015: críticas duras à política econômica

Julho/2013: entre as ruas e os aliados duvidosos

toque de suspeição, criminalizador. Como se a Exame, para ficar A ofensiva recente da Globo e de agentes da Lava Jato sobre no mesmo exemplo, também não recebesse publicidade estatal, sites de blogs de esquerda não são uma novidade. A Revista do em decorrência de sua audiência, e não de sua linha editorial. Brasil já foi alvo de tentativa de censura por parte da coligação “A ligação com o PT é outra falácia com que os veículos PSDB-DEM por expressar, com transparência e fatos jornalísticos, incomodados com a imprensa popular tentam desqualificáa preferência pelas candidaturas de Lula (2006) e de Dilma (2010). la. Não se trata de PT, mas de projetos de país em disputa. O Da mesma forma como a revista Exame, por exemplo, defendeu país subordinado aos interesses do mercado versus o país em várias capas os candidatos que representavam os interesses que luta para se emancipar do capital, a RdB nasceu para corrigir suas graves para interpretar os fatos desigualdades. Nossa afinidade sob o ponto de vista de sua é com o movimento sindical, importância para o futuro dos com os movimentos sociais, e trabalhadores. não foram poucas as edições Outra forma de tentar em que brigamos com o intimidar a RdB e a Rede Brasil governo, tanto de Lula quanto Atual é a repetição recorrente de Dilma, por momentos em de notícias de que a forçaque se desviaram desses -tarefa da Lava Jato pediu princípios, como ocorre “explicações” ao governo sobre atualmente”, diz o diretor da anúncios publicitários nos RBA, Paulo Salvador. veículos. Impondo à notícia um A propaganda que passa por jornalismo e não tem censura 14

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Leitores cansados, jornais decadentes Repetição insistente de assuntos, partidarização editorial, erros recorrentes. A queda de qualidade e de credibilidade derruba o interesse dos leitores e a audiência dos jornais

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ó pode ser desespero. As manchetes diárias dos jornalões brasileiros revelam o estado de ânimo das elites temerosas de que tenhamos, a partir de 2018, mais oito anos de governos populares no Brasil. Levaram um ano tentando organizar a oposição partidária e influenciar as esferas judiciais na tentativa de depor a presidenta Dilma Rousseff. Diante da dificuldade legal de levar à frente o intento, voltaram as baterias para o ex-presidente Lula, na tentativa de tirá-lo da próxima disputa presidencial. Nessa tarefa deixaram de terceirizar o ridículo, como vinham fazendo anteriormente ao dar voz a personagens esdrúxulos que chegavam até a pedir uma “intervenção militar”. Era uma forma de tentar manter um resquício de seriedade não assumindo diretamente essas estripulias. Mas bateu o desespero e mandaram às favas seus pruridos senhoriais. Diante do pesadelo de uma quinta derrota eleitoral, partiram para o tudo ou nada. Assumem o ridículo para si e colocam palavras como “nota fiscal” em manchete de primeira página, algo inédito na imprensa brasileira, talvez em todo o mundo. E vão rolando por água abaixo. O ex-presidente Lula é apontado como criminoso por ter iniciado a compra de um apartamento e depois desistido. Essa acusação ocupou muitas páginas dos jornais durante alguns meses no lugar do impeachment frustrado. Mas teve de ser também esquecida. Primeiro pela fragilidade da acusação, e depois por levar a caminhos que não interessam aos donos da mídia. Descobriu-se, na Operação Lava Jato, que vários apartamentos do edifício Solaris, no Guarujá, onde se localizava a unidade que Lula não comprou, pertencem a holding panamenha Mossack Fonseca. Ela seria controladora da empresa que tem registrada em seu nome uma mansão numa ilha do litoral fluminense, cuja propriedade real é da família Marinho, dona das Organizações Globo. Por isso, o famoso “tríplex do Lula” no Guarujá su-

miu. Como a pré-campanha eleitoral de 2018 não podia parar, o espaço do suntuoso apartamento foi substituído pelo “sítio de Atibaia”. Aí os últimos resquícios de seriedade que porventura ainda perduravam nos jornalões sucumbiram. Barco de R$ 4 mil, plantação de hortaliças, uma antena de telefonia celular e até uns pedalinhos passaram a ocupar o noticiário, como se nada de mais importante estivesse ocorrendo no mundo. Mas como diz o velho refrão, cantado nas ruas contra a Rede Globo, e que vale para todo esse tipo de mídia, “o povo não é bobo”. Estão aí os dados de venda dos jornais confirmando essa afirmação, e não vale dizer que a causa é a migração para a internet. O acesso às edições digitais também caiu. Segundo o Instituto Verificador de Circulação (IVC, entidade mantida pelo meio publicitário para medir audiências da mídia) entre janeiro e dezembro do ano passado a Folha de S.Paulo caiu 14,1% no impresso e 16,3% no digital. O Estado de S. Paulo caiu 6% no impresso e 14,4% no digital. Apenas O Globo subiu um pouquinho no digital (0,5%), mas caiu 9,1% no impresso. A repetição incansável dos mesmos assuntos e a partidarização editorial cada vez mais escancarada cansam o leitor, o que pode explicar os números apresentados pelo IVC. A essas razões junte-se a queda de qualidade, tanto nas pautas quanto na edição dos jornais. Reportagens rarefeitas, muitas sem sustentação lógica, são editadas com erros grotescos. Supostas denúncias transformam-se em textos jornalísticos muitas vezes na base do “ouvi dizer” e várias delas são redigidas com informações do tipo “a praia da Boa Viagem, em Fortaleza” ou para dizer que alguém mudou de posição, escreve-se que “fulano deu um giro de 360 graus”. A paciência do leitor se esgota. Seguindo nessa linha de estreiteza política e enxugamento das redações, implicando na queda de qualidade dos seus produtos, as empresas jornalísticas caminham para o abismo. E parecem não perceber que estão cavando a própria ruína. REVISTA DO BRASIL

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DIREITOS HUMANOS

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Caminho com pedras

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Brasileiro assume presidência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e propõe nova pauta, incluindo direitos econômicos e sociais

Abrão diz ter “alta expectativa” em relação à gestão da Caldas na corte. “Trata-se de um jurista forjado nas hostes dos direitos laborais. Tenho defendido que a crise no mundo do trabalho afeta toda uma estrutura social que acaba por impactar em situações de vulnerabilidade aos direitos humanos e da condição cidadã”, afirma.

Por Vitor Nuzzi

Caldas: falta de conhecimento na região

aos Desc, pelo princípio da razoabilizade jurídica. Um país, por exemplo, não pode ser condenado por ter analfabetos. Mas pode-se buscar um avanço progressivo dessa e de outras deficiências. Nesse sentido, Vannuchi tem buscado estimular a participação de movimentos sociais, como o sindical e o estudantil, na OEA. O secretário-executivo do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul, Paulo Abrão, ex-secretário nacional de Justiça, destaca a importância do momento, não só no Brasil. “Apesar de muitos ainda conceberem os direitos humanos como temas sensíveis ou complicados, a verdade é que é um campo com linguagem universal estabelecida e uma institucionalidade crescente. A perspectativa brasileira de construção de políticas públicas com participação e com enfoque em políticas sociais aponta um caminho duradouro para solucionar aspectos centrais dessas crises.”

Para o secretário especial de Direitos Humanos no Brasil, Rogério Sottili, além do mérito pessoal, a chegada de Caldas reflete a força do Brasil a partir do processo de redemocratização e, particularmente, com a chegada do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao governo – com ações como o combate à fome, o Plano Nacional de Direitos Humanos e a Comissão Nacional da Verdade. “Evidentemente que o Brasil, junto com outros países, passa por momentos delicados. O mundo está passando por um período de muita turbulência”, diz Sottili, citando a atuação de grupos conservadores e uma crise econômica que ameaça restringir direitos sociais e econômicos, além de levar “a um questionamento das agendas de direitos humanos”. Abrão e Sottili citam outro desafio, que é o dos limites de orçamento. “É preciso reconhecer que o Brasil tem mantido uma política de afirmação dos direitos humanos, e para isso deve priorizar o pagamento de suas contribuições aos organismos internacionais nesta área”, afirma o diretor do instituto do Mercosul. Roberto Caldas, em seu discurso inicial, destacou o “pequeno orçamento” da CIDH e a necessidade de buscar contribuições voluntárias e recursos via projetos. Em entrevista ao site jurídico Jota, ele informou que de um orçamento anual total de US$ 5,7 milhões, aproximadamente US$ 3 milhões vêm de acordos de cooperação internacional, principalmente europeus, e os demais US$ 2,7 milhões, da OEA. A própria organização tem atrasados a receber dos Estados-membros.

DANIEL CARON/FAS

Turbulência mundial

AGÊNCIA BRASIL

N

a abertura do ano judicial interamericano, na Costa Rica, o brasileiro Roberto Caldas, novo presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), destacou a tendência “impostergável” de inclusão, na área jurídica, de temas econômicos, sociais, culturais e ambientais, em nível coletivo. Algo importante, lembrou, “porque permite o enfrentamento judicial das desigualdades profundas da mais desigual das regiões do mundo, que é o nosso continente”. A chegada de Caldas­ ao comando da corte é vista como uma sinalização importante, ainda mais em tempos de avanço do pensamento conservador. “Sem igualdade não há democracia, sem democracia não há justiça e sem justiça não há paz”, acrescentou o ex-advogado trabalhista Caldas, cuja posse fugiu do padrão moderado da instituição, reunindo, entre outros, o presidente da Costa Rica, Luis Guillermo Solís, e o secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), Luis Almagro Lemes. Um aspecto a se observar é a ênfase dada aos direitos econômicos, sociais e culturais, conhecidos pela sigla Desc. É, talvez, um lado menos conhecido dos direitos humanos, pouco explorado, e que o próprio Caldas acredita que se tornará uma tendência crescente. Membro da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, Paulo Vannuchi, ex-ministro da área no Brasil, observa que a própria Convenção Interamericana de Direitos Humanos – firmada em 1969 e em vigor desde 1978 – tem apenas um artigo, de um total de 82, sobre esses direitos. A CIDH ainda não decidiu um caso relativo a um desses temas, mas é um debate em ascensão. Trata-se de direitos como educação, habitação, saúde, alimentação e trabalho. “O desafio que temos é implementar o que as leis asseguram”, observa Vannuchi. Ele lembra que há ainda uma dificuldade histórica em relação

DESAFIOS Preconceito contra índios e negros, questões econômicas e sociais fazem parte da pauta da Corte Interamericana

O valor é de aproximadamente US$ 24 milhões, a maior parte do Brasil. Segundo o novo presidente, também falta aos países da região conhecimento sobre o papel da Corte Interamericana. “Às vezes nos dá a impressão de que é mais conhecida em alguns países europeus do que em alguns países americanos”, afirmou, na mesma entrevista. Se falta conhecimento no próprio meio jurídico, imagine-se, então, entre as populações. À CIDH cabe analisar graves violações aos direitos humanos, conforme a jurisprudência internacional, depois de esgotados os recursos internos. E aos Estados cabe investigar casos de desrespeito à Convenção Interamericana de Direitos Humanos. Um processo que requer, lembra Paulo Vannuchi, paciência e diplomacia. Os países signatários da convenção são obrigados a cumprir as decisões, mas isso nem sempre acontece. E um terço dos países não aceita a competência conten-

ciosa (de solução de conflitos) da Corte Interamericana.

Comprometimento

A Lei Maria da Penha (Lei 10.886, de 2004), por exemplo, é reflexo de pressão internacional após decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. A Corte Interamericana, por sua vez, já condenou o Estado brasileiro pelo caso Araguaia, durante a ditadura. Criada em 1959, a Comissão é um órgão consultivo, mas também tem papel jurídico e político. Já a Corte, de 1979, é um dos três tribunais regionais que zelam pela proteção aos direitos humanos – os outros são os da Europa e da África. Sottili avalia que Roberto Caldas tem compreensão do papel conquistado pelo Brasil nos últimos anos, “em que pese o processo de violações que ainda existe no Brasil”. Inclusive relativas a trabalho análogo ao escravo, uma área em que o país conseguiu avançar por meio de polí-

ticas públicas. As mudanças, afirma, partem do reconhecimento do problema. O importante é saber se o Estado brasileiro está comprometido com essas mudanças. A visão da CIDH difere da do Supremo Tribunal Federal (STF) brasileiro, que em julgamento de 2010 considerou a Lei da Anistia compatível com a Constituição. Paulo Abrão acredita que a chegada de Caldas à presidência da Corte pode influir para uma revisão da lei. “Já acumulamos o suficiente para alinhar o país aos preceitos e tratados internacionais que afirmam os crimes contra a humanidade como imprescritíveis e impassíveis de anistia, como foram as violações sistemáticas e dirigidas da ditadura brasileira contra a resistência”, afirma. “Depois de 20 anos de Comissão de Mortos e Desaparecidos, 15 anos de Comissão de Anistia, dois anos de Comissão da Verdade e com a condenação internacional do Brasil no caso Araguaia, só resta ao STF atender aos reclamos de justiça das vítimas e seus familiares.” REVISTA DO BRASIL

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sabemos que a mulher tem uma jornada tripla, reunindo tarefas de casa e trabalho. Em segundo lugar, qualquer alteração que atrapalhe os que começaram a trabalhar mais cedo vai ser vista por nós como uma distorção”, disse Freitas, que defende um debate global sobre todo o sistema de seguridade social e suas formas de funcionamento e financiamento – e sem atropelos. Dias antes, na reunião de retomada do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), os trabalhadores já haviam refutado o tema. “O problema que estamos vivendo hoje não é a Previdência, é a economia, a ausência de crescimento, o desemprego que vem como consequência disso. Essa que tem de ser a agenda a ser combatida. A Previdência tem um fórum e todas as questões precisam ser tratadas nesse outro fórum, e debatidas profundamente com a sociedade, garantindo todos os direitos. Então essa, a nosso ver, não tem de ser uma prioridade porque não vai resolver o problema do Brasil agora”, afirmou presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Juvandia Moreira, também integrante do chamado conselhão.

Apesar da má repercussão entre os trabalhadores, o governo segue no propósito de debater a reforma previdenciária, a única de caráter estrutural entre as ações que o Executivo trabalha para este ano. O Planalto quer até o mês de abril as propostas a serem discutidas, que levam em conta sete itens: demografia e idade média das aposentadorias; financiamento da Previdência Social: receitas, renúncias e recuperação de créditos; diferença de regras entre homens e mulheres; pensões por morte; previdência rural (com financiamento e regras de acesso); regimes próprios de previdência; e convergência dos sistemas previdenciários.

Com tranquilidade

O tema tem sido recorrente nas entrevistas da presidenta Dilma Rousseff. No final de fevereiro, ao falar com jornalistas durante visita ao Chile, ela partiu da necessidade de ajuste fiscal para atrair os investimentos necessários à retomada do crescimento. Ao mesmo tempo, tentou tranquilizar os trabalhadores: “Nós podemos fazer uma reforma com tranquilidade, com um período longo de transição, em que você absorva todas as

expectativas de direito, mas que reconheça uma realidade, que é o fato muito bom, que a nossa expectativa de vida aumentou”, observou. “Aqueles que trabalham vão ter de progressivamente sustentar a parte maior da população, que é a que não trabalha, quais sejam, os que se aposentam, e as crianças e os jovens.” Uma semana depois, Dilma passou a admitir a possibilidade de transferir a discussão para o segundo semestre. Mas se os resultados da desejada reforma vão surgir somente a longo prazo, por que afinal o governo insiste em discutir o tema agora – no contexto do ajuste fiscal e de uma crise política que exige o apoio de sua base social, e não o contrário? “Os efeitos vão ser sentidos lá no futuro, daqui a 10, 20 anos. Mas promover a reforma agora já tem um impacto positivo imediato para a economia brasileira. Possibilita estabilizar o câmbio e reduzir as taxas de juros de longo prazo. É um sinal positivo de sustentabilidade da Previdência Social e da dívida pública”, disse o ministro do Planejamento, Nelson Barbosa, durante o anúncio da programação orçamentária para 2016, confirmando a análise dos críticos da desejada reforma, que veem em

Governo pauta discussão sobre Previdência, fala em adoção de idade mínima e flerta com agenda conservadora. Para trabalhadores, prioridade é retomar crescimento Por Helder Lima e Paulo Donizetti de Souza 18

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esde que o governo introduziu na agenda política a reforma da Previdência Social, no fim do ano passado, centrais sindicais e demais representantes dos trabalhadores têm se manifestado contra a ideia. Sob pressão das forças de mercado, que desejam cada vez mais ver o contingenciamento dos gastos sociais no país, o governo argumenta que a reforma é necessária para dar conta do aumento da expectativa de vida dos brasileiros, o que permitirá garantir a sustentabilidade financeira do sistema para as futuras gerações. O tema foi mal recebido pelos representantes dos trabalhadores na segunda

reunião do Fórum de Debates sobre Políticas de Trabalho, Emprego, Renda e Previdência Social, no mês passado, na qual a expectativa era discutir projetos para a retomada do crescimento, da renda e do emprego. Ao fim da reunião, o presidente da CUT, Vagner Freitas, afirmou refutar no mínimo dois itens citados como tema de debate: a equiparação da idade para aposentadoria entre homem e mulher e a instituição de uma idade mínima, que seria prejudicial aos brasileiros que começam a trabalhar cedo. “Em primeiro lugar, é uma injustiça com as mulheres e um retrocesso a direitos já conquistados por elas e pelos trabalhadores de um modo geral, pois todos

LULA MARQUES/AGÊNCIA PT

Mais um alvo errado do ajuste D RETROCESSO Vagner Freitas na reunião (mais à dir.) em fórum de debates com o governo: “Qualquer alteração que atrapalhe os que começaram a trabalhar mais cedo vai ser vista por nós como uma distorção”

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TRABALHO

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seu cerne um novo ataque neoliberal ao sistema de proteção social no país, um dos mais avançados do mundo e referência entre os países da América Latina. Uma das críticas à reforma recai justamente sobre o seu ponto central, que é a adoção de uma idade mínima para o direito à aposentadoria. A economista Rosa Maria Marques, professora da Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, confronta essa ideia com

as realidades tão diferentes existentes no país para destacar que não se pode criar uma idade mínima de referência em um país tão desigual. “Seria consagrar a desigualdade”, diz.

Impactos

Além disso, o impacto da adoção de uma idade mínima não seria expressivo, conforme dados da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal

Mais do que discutir idade mínima ou outra proposta que altere o andamento da seguridade social no país, governo e forças representativas da sociedade precisam se entender quanto aos números da Previdência. “Tem sido dito que a idade em que as pessoas se aposentam, em média, aos 56 anos, mais a estrutura de indexação dos benefícios ao salário mínimo, têm produzido um rombo que no ano passado foi estimado em R$ 88 bi-

do Brasil (Anfip). Segundo o presidente da entidade, Vilson Antonio Romero, a Previdência paga atualmente 32 milhões de benefícios por mês, como aposentadorias por idade, invalidez, por tempo de contribuição, pensão por morte e auxílio-reclusão, entre outros. Desse total, apenas 5 milhões, ou 16%, são por tempo de contribuição e representam o alvo do governo com a ideia da redução da idade mínima.

lhões e que deve projetar R$ 140 bilhões neste ano, mas isso tudo é uma falácia”, diz Romero. O orçamento da seguridade social nos últimos 15 anos foi superavitário, observa o presidente da Anfip, citando dados do Sistema Integrado de Administração Financeira da União (Siafi). “No último número que temos do balanço da União, houve um superávit em 2014 da ordem de R$ 54 bilhões”, afir-

ma. As receitas da seguridade no país incluem a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), a contribuição previdenciária, a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), mais o PIS/Pasep, além de outras receitas adicionais. As despesas incluem a Previdência, a saúde e a assistência social. Nesta última categoria estão o programa Bolsa Família e o seguro-desemprego.

O capital financeiro tem de pagar

E

specialista em sistemas públicos de saúde e de previdência, a economista Rosa Maria Marques, professora da PUC-SP, considera que a sustentabilidade da seguridade social é assunto muito sério para ser tratado em meio a uma crise política e econômica. É necessária uma reforma? “Sim e não”, diz Rosa. Ela observa que a expectativa de vida no Brasil está aumentando a ponto de, em um futuro breve, correr-se o risco de uma pessoa passar mais tempo aposentada do que na ativa, e que isso exige rediscussão do modelo de financiamento. Mas não autoriza o governo a precipitar o debate pela idade mínima. Para Rosa, o aumento da expectativa de vida é uma conquista dos brasileiros a ser celebrada. “Viver mais é uma coisa boa.” O discurso apresentado, porém, de tratar isso como problema, adota o raciocínio do programa do PSDB e da ala conservadora do PMDB e contraria a base social do governo, avalia a economista. Para ela, o futuro do custeio da seguridade social passa por uma taxação maior do capital financeiro – setor que mais lucra e menos paga impostos na economia global. Neste momento, Rosa não vê uma correlação de forças favorável a essa discussão. O que leva o governo a trazer para o debate a idade mínima para aposentadorias? O porquê dessa discussão é mais político do que qualquer outra coisa. Na verdade, está presente desde os anos 1990. Desde a Constituição de 1988, antes mesmo de ser promulgada, o Sarney foi à TV dizendo que os novos direitos levariam o país à falência. A partir dos anos 1990, ao mesmo tempo em que o Collor encaminhava ou aprovava os projetos de lei que regulamentavam os direitos da Constituição, encaminhava uma série de projetos com propostas de reforma na área previdenciária, da saúde e outras. Então, essa discussão é antiga. Discutir a Previdência tem como pano de fundo a ideia de que ela é deficitária. Mas o déficit é responsabilidade mais da elevação dos juros do que do gasto público. O gasto da Previdência é 20

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grande, porque nós temos, provavelmente, o maior sistema previdenciário do mundo, muito embora a gente só cubra a metade da força de trabalho – o resto está na informalidade. O peso desse gasto é grande, mas é menor que o peso dos juros. Agora, tem de se fazer alguma reforma? Sim e não. Uma coisa a gente tem de reconhecer: a população brasileira está envelhecendo, e numa velocidade muito rápida. Está se vivendo mais. Dadas as condições atuais, aquele que se aposenta hoje permanece por mais tempo no sistema e, muitas vezes, poderá até receber por mais tempo como aposentado do que o tempo da ativa. Quando se fala em envelhecimento, tecnicamente, é aumento da expectativa de vida ao nascer? São duas coisas. Uma é a expectativa ao nascer, outra é a expectativa de vida no momento da aposentadoria. O que acontece é que a nossa sociedade é absolutamente desigual. Então aqueles que mais morrem nos primeiros anos de vida são os mais pobres, com menos condições, menos renda. Passada essa fase, começa a se aproximar dessa expectativa de vida maior. Se você passou o período em que a pobreza te pega e, ainda mais, se você passou pela adolescência, onde principalmente a morte de jovens homens é enorme – a ponto de a curva demográfica ter uma “barriga” –, passado isso, vingou. Em resumo, uma pessoa de 70 anos de idade, independentemente da renda, não tem diferença de sobrevida. Tem no início. Então, é uma realidade. Estamos vivendo mais, e isso é uma coisa boa! E se é uma coisa boa, e a sociedade está mudando, isso significa que nós temos de fazer novos pactos para o financiamento da Previdência. Mas aí começam os problemas. Quais? Primeiro problema: a existência do déficit previdenciário está situada na reforma de 1998. A reforma previdenciária de 1998 se soma à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), que passa a entender a Previdência nela mesma, e não vinculada à seguridade social. Quando os constituintes introduziram a seguridade social – previdência, saúde, assistência social, segurodesemprego –, colocaram uma série de recursos, que são as contribuições sociais, e pensaram esse conjunto de contribuições para a seguridade social. A partir de 1998, e antes, com a LRF, examinou-se a Previdência nela mesma – quanto entrou de contribuição e quanto saiu. “Ah, tá faltando, então preciso usar a contribuição da Cofins, disso e daquilo. Logo, tenho o déficit.” Agora, se se somar todos os recursos da seguridade e, do outro lado, todas as despesas da seguridade, ela é superavitária.

JAILTON GARCIA/RBA

Para a economista Rosa Maria Marques, professora da PUC-SP, discutir reforma e idade mínima no meio da crise traz o risco de consagrar desigualdades

Rosa Marques

O sistema tributário é sobre salário, sobre faturamento, sobre fatos geradores de renda. Tem de taxar o capital financeiro, porque ele não cria nem renda, nem emprego

A segunda questão é que não é verdade que o critério de idade não seja reconhecido. O fator previdenciário já leva em consideração a sobrevida do indivíduo. Ou seja, se está considerando a idade da pessoa no momento da aposentadoria e a sobrevida. Dependendo de como isso se forma, ele tem um redutor. E passou a valer, desde o ano passado, a fórmula 85/95, que é a combinação do tempo de contribuição com a idade. Então, a exigência de idade já é contemplada. Mas eles querem colocar a idade mínima. Quem são “eles”? É a classe dominante, de maneira genérica. Se tu pegas o programa do PMDB – “Ponte para o Futuro” –, ou o que escrevem nos jornais os economistas ligados ao PSDB, isso é colocado claramente. Mas é um problema introduzir idade mínima única em um país absolutamente desigual. Porque os setores que começam a trabalhar muito cedo, os mais pobres, que começam aos 15, vão ter maior tempo de contribuição, combinado à idade, do que o cara da classe média alta, que começou a trabalhar aos 25. Isso contempla desigualdades. Esse é, de certa forma, o pacto negociado na Constituição de 1988, no princípio das obrigações do Estado em relação à seguridade. Mas não se pactuaram novas formas de financiamento.

Por que não alterar as fórmulas de financiamento? Por que não se ter uma contribuição sobre o capital financeiro? Não estou falando da CPMF, que é sobre a transação financeira. Estou falando do capital, propriamente dito, que é aquele que comanda a realidade capitalista contemporânea. Quando se olha o sistema tributário, ele é sobre salário, sobre faturamento, sobre fatos geradores de renda. O que estou dizendo é: tem de taxar o capital financeiro, porque ele não cria nem renda, nem emprego, só lucro para quem o detém. Essa discussão devia ser introduzida. Claro que isso só pode ser discutido e concretizado se houver uma alteração da correlação de forças, o que não é fácil, ainda mais num mundo como o de hoje. Existe uma terceira discussão: quando se examina as contas da Previdência, se tem o setor rural financiado pelo urbano? Foi um grande avanço da Constituição de 1988 estender os benefícios aos rurais. Acontece que os rurais não têm capacidade de arrecadação, então são financiados pelas contribuições urbanas, de trabalhador e empregador. Isso não é novidade. É assim no mundo inteiro. Quando é um trabalhador assalariado é fácil, porque ele contribui diretamente na folha e o empregador com os outros 20%. Mas para o resto dos trabalhadores, em geral, como se vai arrecadar? Como isso é resolvido em outros países? Há um aporte do Estado. E aí se liga à primeira discussão: precisa sobrar dinheiro para o superávit primário, que serve à dívida. Fizeram a escolha: em primeiro lugar, honrar os contratos e pagar o serviço da dívida. Para isso, só tem um jeito: tem que sobrar recursos. Agora, tem um problema: no Brasil o público (com os gastos sociais) ainda financia o privado (com as injustiças tributárias). Quando você faz a declaração do Imposto de Renda, coloca lá a previdência privada, os gastos com médicos e planos de saúde, e isso é deduzido do seu imposto a pagar. Você pode aplicar 22% da sua renda anual numa modalidade de previdência privada! No caso da saúde também, é simplesmente deduzir do seu imposto. A escola também. O Estado está renunciando àquela arrecadação. O volume de renúncia é enorme, principalmente, quando a gente soma o que a Dilma fez (as desonerações em folhas de pagamento), que foi uma loucura. Na esperança de que se ia aumentar a competitividade dos nossos produtos no mercado internacional, detonou as contribuições com as desonerações. A leitura disso é o público financiando o privado. Leia entrevista completa no site: bit.ly/rba_rosa_marques REVISTA DO BRASIL

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FERNANDO MADEIRA/A GAZETA

acidente ainda não acabou”, diz o coordenador de Atendimento a Emergências Ambientais do Ibama, Marcelo Amorim, sobre o rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco, controlada pela brasileira Vale e pela australiana BHP Billiton. O fato ocorreu em 5 de novembro, em Mariana (MG), quando a barragem de Fundão liberou cerca de 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minério de ferro. A lama provocou a mortandade de peixes e outras espécies aquáticas. O mesmo aconteceu com diversos animais marinhos, assim que a mancha marrom invadiu o oceano. Os sedimentos carregados para o leito dos rios modificaram a vegetação. Estudos colocam em xeque a qualidade da água para o consumo animal, o abastecimento humano e o trabalho produtivo. Apesar de considerada a maior tragédia ambiental da história, o retorno das ações de reparação está abaixo das expectativas. Em novembro, a Advocacia-Geral da União ajuizou ação civil pública que prevê a criação de um fundo de R$ 20 bilhões destinados exclusivamente à recuperação ambiental da bacia do Rio Doce. A Samarco pagará R$ 4,4 bilhões nos próximos três anos, após acordo com a União e estados envolvidos. Recentemente, a Polícia Civil chegou a pedir prisão preventiva de sete pessoas, entre elas o presidente afastado da Samarco, Ricardo Vescovi, pelos crimes de homicídio qualificado das 19 vítimas da tragédia (duas seguem desaparecidas), de inundação e de poluição de água potável.

Tragédia

sem fim

Meses após rompimento da barragem de rejeitos da Samarco, ações para contenção dos danos à vida seguem como emergenciais. Enquanto populações vivem incerteza, concentração do poder da Samarco nas ações reparatórias é criticada

Natureza morta

Um dos efeitos imediatos do acidente foi o tapete de peixes mortos. “Tenho um vídeo da lama chegando com uns peixes gigantes, todos mortos. Foi triste ver como a lama arrasou a vida do rio”, diz a bióloga Talita Silva, do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Segundo dados do Ibama, foram recolhidas cerca de 9 toneladas de peixes mortos ao longo dos 90 quilômetros de extensão. “A lama densa levou o oxigênio da água a zero. É impossível que qualquer animal aquático que precise de oxigênio sobreviva a uma densidade dessas”, afirma Marcelo Amorim. Frente à possibilidade de perder grande parte da fauna do Rio Doce, pescadores do Espírito Santo convocaram um mutirão de resgate, conhecido como Operação Arca de Noé, no dia 13 de novembro, em cidades onde a lama ainda não havia chegado. Além de salvar dourados, surubins, tucunarés e outros peixes abundantes na região, a operação garantiu a preservação de espécies endêmicas e ameaçadas de extinção, como o surubim-do-doce, o andirá e o curimbá. Os mais de 150 mil peixes salvos foram levados a lagoas não contaminadas. Não há clareza sobre a quantidade de animais mortos da fauna silvestre. “Era recorrente ver um animal atolar na lama ao tentar beber água do rio”, conta Marcelo. Segundo ele, o Ibama realizou um trabalho de distribuição de água para que os animais não precisassem chegar ao leito. Segundo dados da Samarco, 3 mil animais, de várias espécies, foram resgatados das áreas afe-

Por Juliana Afonso

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DOUGLAS MAGNO/AFP/GETTY IMAGES

AS VÁRIAS FORMAS DE MATAR Na foz do Rio Doce não há mais pesca nem turismo. A atividade econômica está paralisada

UMA DÉCADA Laudo do Ibama aponta fragmentação de habitats, destruição de áreas de preservação permanente e vegetação nativa, mortandade de animais e impacto à produção rural e ao turismo. Segundo o instituto, a reparação dos danos pode durar dez anos REVISTA DO BRASIL

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AMBIENTE 2016 PLANET LABS INC

se tipo de tratamento. Entretanto, o produto vem sendo utilizado em quantidade superior ao recomendado pela própria fabricante.

MAR LARANJA No encontro com o mar, o Rio Doce tinge as águas da costa norte do Espírito Santo

Vida em risco

CORPO DE BOMEBIROS DE MINAS GERAIS

Regência

MAIS QUE LAMA O rompimento da barragem jogou sobre os habitantes de Bento Rodrigues (distrito de Mariana, MG) e na bacia do Rio Doce 62 milhões de metros cúbicos de rejeitos de mineração de ferro. Nas amostras coletadas, foram encontrados níveis elevados de arsênio e manganês. A Fundação SOS Mata Atlântica divulgou laudo no qual 16 dos 18 pontos de coleta apresentaram péssima qualidade da água

SOLUÇÃO DISTANTE A lama da barragem continua a fluir e contaminar o ambiente. A Samarco culpa as chuvas pelo atraso nas obras de contenção dos rejeitos

tadas. Eles vêm recebendo atendimento médico veterinário e alimentação. A Samarco foi autuada com uma multa de R$ 250 milhões, proposta pelo Ibama, e outra de R$ 112 milhões, pela Subsecretaria Estadual de Fiscalização de Meio Ambiente. A empresa recorreu e ainda não houve decisão final. Ruim para os animais, ruim para o ser humano. A água ficou imprópria para consumo. Entre as cidades mais afetadas, estão Governador Valadares (MG) e Colatina (ES), onde o abastecimento depende totalmente do Rio Doce. A interrupção no bombeamento de água para Valadares foi feita em 9 de dezembro, quando a lama alcançou a cidade e provocou desabastecimento para cerca de 280 mil pessoas. No início, os reservatórios ainda conseguiam levar água à população. “O pessoal sentiu na pele quando começou a faltar na torneira”, conta Talita Silva, que mora na cidade. Nesse período, houve uma série de mobilizações, desde pessoas rezando pela recuperação do rio até o bloqueio de estradas pela população. A Samarco se responsabilizou por providenciar o abastecimento por meio de caminhões-pipa. O primeiro carregamen-

Ministério Público do Espírito Santo, Isabela de Deus Cordeiro. A empresa tentou interromper o abastecimento alguns dias depois. “A Samarco entendeu que só deveria fornecer água enquanto houvesse a interrupção da captação do Rio Doce e por isso cessou a distribuição, no dia 21 de novembro. Mas a água do rio traz um nível de incerteza muito grande, não há segurança de que pode ser consumida”, afirma Isabela. Com esse argumento, o Ministério Público capixaba ajuizou ação civil pública com o pedido de permanência do serviço. A Samarco anunciou, novamente, o fim da distribuição em 24 de janeiro, mas perdeu o processo mais uma vez. O vaivém na obrigatoriedade da distribuição de água tem sua razão de ser. O tratamento da água do Rio Doce voltou a funcionar uma semana após a lama contaminada ter chegado a Colatina. Para tanto, vem sendo utilizado o Tanfloc, polímero da acácia negra. A substância acelera o processo de decantação da lama presente na água. A tecnologia, desenvolvida pela empresa gaúcha Tanac, não contém metais em sua fórmula e, por isso, apresenta uma série de vantagens com relação a substâncias comumente usadas para es-

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to precisou ser descartado em razão de contaminação da água por querosene presente no veículo. A distribuição em Governador Valadares foi feita até 22 de janeiro, apesar das tentativas da empresa de interromper o serviço. Os pontos de entrega, porém, eram poucos e as reclamações dos cidadãos, que tinham de esperar em filas enormes embaixo do sol, eram recorrentes. Em 18 de novembro, a lama chegou a Colatina, que também teve o abastecimento de água interrompido, prejudicando 122 mil pessoas. Ali, a desorganização no processo de distribuição de água potável, de responsabilidade da Samarco, foi motivo de brigas e agressões entre os cidadãos que esperavam na fila. A distribuição de água mineral em Colatina ficou assegurada por um Termo de Compromisso Socioambiental assinado dois dias antes de a lama chegar à cidade. Nele, a Samarco se responsabilizou em garantir sua distribuição nos municípios de Baixo Guandu, Colatina, Marilândia e Linhares. “Também está obrigada a apresentar um plano emergencial de contenção, prevenção e mitigação dos impactos ambientais e sociais”, afirma a coordenadora do Centro de Apoio do Meio Ambiente do

Desde que aconteceu o rompimento das barragens, foram realizados diversos laudos ambientais. O Serviço Geológico do Brasil (CPRM) e a Agência Nacional de Águas (ANA) analisaram uma série de amostras e concluíram que a água do rio Doce está dentro dos padrões estabelecidos pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente. “Se esse não fosse o nosso entendimento, estaríamos causando um problema de segurança pública”, afirma Marcelo Amorim, do Ibama. Outros laudos, porém, apresentam resultados diferentes. Nas amostras coletadas pelo Grupo Independente de Análise de Impacto Ambiental (Giaia) e publicadas em 15 de dezembro, foram encontrados níveis elevados de arsênio e manganês. Já a Fundação SOS Mata Atlântica divulgou laudo técnico em 26 de janeiro no qual 16 dos 18 pontos de coleta apresentaram Índice de Qualidade da Água (IQA) péssimo. “O Ministério Público pressionou a empresa, mas a Justiça Federal entendeu que a água poderia ser distribuída por estar dentro dos padrões de normalidade”, afirma o promotor Marcelo Volpato. A lama alcançou o mar em 21 de dezembro. Regência, distrito de Linhares (ES) de 1.200 habitantes e uma das joias do litoral do Espírito Santo, que mistura rio, mar e mangue, é também umas das regiões mais importantes do Brasil para a desova das tartarugas marinhas. Pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Tartarugas Marinhas (Tamar) tiveram de antecipar a última etapa do nascimento das tartarugas, já que cerca de 100 filhotes corriam o risco de nadar em direção à lama. Elas foram levadas a uma praia a 20 quilômetros ao sul da vila. As expectativas indicavam que a lama seria levada pelas correntes marítimas até o arquipélago de Abrolhos (BA), onde se registra a maior concentração de vida marinha do Atlântico Sul. O arquipélago é conhecido por ser a principal região de reprodução das baleias jubarte. Expedições científicas coordenadas pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), entre janeiro e fevereiro, coletaram amostras de sedimentos, microorganismos e diversas espécies aquáticas para analisar as condições da água e dos animais. As análises ainda não foram publicadas. Todas as medidas ambientais adotadas até o momento são apenas emergenciais. “Para nós, do Ibama, o acidente só vai acabar quando cessar a fonte. Enquanto a lama continuar descendo, carreando resíduos, nosso trabalho está em vigor. Por isso ainda tem um caráter emergencial”, diz Marcelo Amorim. A expectativa era de que a fonte de resíduos parasse em fevereiro, após a conclusão de quatro diques de retenção, o que não aconteceu. Só com o fim do carreamento de rejeitos será possível pensar em um projeto de recuperação da bacia do Rio Doce. A elaboração do plano exige um trabalho de levantamento de tudo o que já foi estudado sobre a região e, em um segundo momento, da verificação de tudo que sofreu impacto. O Ibama rejeitou o Plano de Recuperação Ambiental apresentado pela Samarco em 18 REVISTA DO BRASIL

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MARCIO POCHMANN

de janeiro. Segundo nota divulgada pelo instituto, o diagnóstico dos danos ambientais era “extremamente superficial” e não apresentava os impactos sociais, levantamento das espécies afetadas, detalhamento das ações a longo prazo, entre outras questões. Um mês depois, novo documento foi entregue pela mineradora. Além dos problemas ambientais e sociais, a população de toda a bacia do Rio Doce sofre com a falta de informações. Isso ficou claro para o engenheiro civil e permacultor Felipe Pinheiro, um dos membros da Expedição Rio Doce Vivo, que foi de Mariana até Regência com o objetivo de registrar a r­ ealidade dos habitantes e oferecer oficinas de permacultura – método de planejamento preservacionista que leva em conta a integridade e importância mútua de todos os componentes de um ecossistema. “Em todos os lugares que a gente passou a realidade é de extrema fragilidade e zero informação. Eles não têm a quem recorrer, estão abandonados”, conta. Felipe critica o fato de não haver nenhuma orien-

tação para que os cidadãos tomem suas decisões. “As pessoas não sabem se a água do abastecimento pode ser ingerida ou não.” Os moradores seguem ainda inseguros quanto à estabilidade das outras barragens. A Germano, maior do complexo minerador de Mariana, apresenta uma fissura em uma de suas três camadas. O prefeito de Mariana, Duarte Júnior, afirma que à época da tragédia havia 22% de risco de rompimento. “Não houve nenhuma dilatação desde então”, acrescenta. Em 17 de janeiro, uma reportagem do programa Fantástico apresentou documentos alegando que a empresa sabia que a barragem do Fundão corria riscos desde 2013. A Samarco foi contatada pela redação e disse repudiar qualquer especulação sobre conhecimento prévio do risco iminente de ruptura na Barragem de Fundão. As operações nas unidades de Germano (MG) e Ubu (ES) seguem paralisadas, mas a Samarco estuda alternativas para a retomada da produção.

A busca por assegurar os direitos dos atingidos pela tragédia é dura tarefa. O Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) proposto pelo Ministério Público de Minas Gerais foi assinado no último dia 3 de março. Prevê a criação do fundo de R$ 20 bilhões em 15 anos para ações reparatórias, mais R$ 4,1 bilhões em ações compensatórias. Até março de 2018, a Samarco deverá ter depositado R$ 4,4 bilhões desse montante. As principais ações buscarão a recuperação da biodiversidade, manejo e dragagem dos rejeitos, tratamento dos rios e criação de uma Área de Proteção Ambiental da Foz do Rio Doce. Serão nove programas reparatórios e nove compensatórios. Está prevista a recuperação de 5 mil nascentes em dez anos. Serão destinados R$ 500 milhões para reabilitar ações de coleta e tratamento de esgoto, erradicar lixões e implementar aterros sanitários em 39 cidades afetadas. O MP e especialistas criticam o fato de o TAC concentrar poderes à Samarco. “É totalmente absurdo imaginar que a empresa é a única a controlar a implementação das reparações. É ela que vai fazer o planejamento das ações, decidir quem será indenizado, quando e como. Não há nenhuma estrutura em que os atingidos possam participar. É possível que os atingidos venham a contestar o acordo”, diz a urbanista Raquel Rolnik. Antes de se chegar ao TAC, a empresa havia pedido a liberação de R$ 300 milhões bloqueados judicialmente e discordava de sua abrangência, uma vez que o termo contempla também cidadãos afetados de forma indireta. 26

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REPRODUÇÃO

Imagem e direitos

ENQUANTO ISSO... Ao mesmo tempo em que relutava em pagar por estragos, empresa gastou em propaganda na TV

O gesto havia levado o MP a entrar com ação civil pública em 10 de dezembro contra a firma. Requereu realocação dos atingidos em moradias alugadas, pagamento de verba mensal aos desabrigados no valor de um salário mínimo, mais 20% por dependente, além de cesta básica, assistência médica, psicológica e garantia de acesso à educação. E também pagamento de R$ 20 mil para cada família que perdeu sua moradia e a fixação de uma primeira parcela de indenização no valor de R$ 100 mil para aqueles que perderam parentes. “A mineradora vai pagar ainda um salário mínimo acrescido de 20% por dependente e uma cesta básica para todos os pescadores e trabalhadores ribeirinhos que dependiam do Rio Doce para conseguir sua renda”, diz o procurador Estanislau Tallon Bozi, do Ministério Público do Trabalho do Espírito Santo. Foram catalogados 11 mil beneficiados.

O próximo passo é trabalhar no processo de reconstrução dos distritos. As comissões dos atingidos das cidades de Bento Rodrigues e Paracatu se reúnem semanalmente com promotores, prefeituras e a Samarco para planejar a obra. O presidente da Associação Comunitária de Bento Rodrigues, José Nascimento de Jesus, 70 anos, lista alguns dos 17 critérios estabelecidos. “Pedimos um terreno que ofereça opções hídricas e não tenha uma topografia acidentada. A distância máxima do novo distrito até Mariana deve ser de 24 quilômetros.” No final de fevereiro, os moradores de Bento Rodrigues visitaram o terreno onde deverá ser construído o novo distrito. A Samarco, apesar de estar por trás da maior tragédia ambiental do país, e de contestar valores estimados para começar a reparar os estragos, investiu pesado em publicidade. A campanha que tenta reverter imagem negativa adota tom “humanizado”, com frases como “de repente a gente amanheceu com essa missão de ajudar as pessoas”, dita por uma funcionária em vídeo que chegou a ser exibido entre o Jornal Nacional e a novela das 21h, da TV Globo. O MPF oficiou a empresa – que havia alegado dificuldades financeiras – a esclarecer quanto gastou. E a opinião pública, pelas redes sociais durante e após a exibição da peça, teve reação negativa. Internautas questionaram como uma empresa que teve os bens bloqueados pela Justiça e se recusou a pagar indenizações aos atingidos pela tragédia gasta recursos com um comercial em horário nobre.

O teste das eleições municipais de 2016 Este ano traz a novidade da proibição do financiamento empresarial nas campanhas. Com isso, espera-se descontaminar a força do poder econômico na determinação dos resultados eleitorais

N

este ano, o Brasil realizará a nona eleição municipal desde a transição da ditadura (1964-1985). Ainda que em 1985 as eleições tenham ocorrido em somente 201 municípios que estavam até então impedidos pelo autoritarismo por serem considerados áreas de segurança nacional (capitais de estados ou territórios e estâncias hidrominerais), eles passaram a ser um marco na trajetória democrática nacional. Aliás, um sistema eleitoral que se encontra atualmente em descrédito profundo, alimentado por sua incapacidade de se reinventar frente ao afastamento crescente da política tal com ela se apresenta para o conjunto da população. Apesar disso, o processo eleitoral em 5.570 municípios brasileiros contém uma novidade importante, associada à proibição do financiamento empresarial nas campanhas eleitorais. Com isso, a Justiça Eleitoral espera descontaminar a força do poder econômico na determinação dos resultados eleitorais. Nada simples, sem que o financiamento dos partidos seja fundamentalmente público, conforme a experiência dos países de ­democracia madura. Nos 34 países que fazem parte da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o financiamento público dos partidos é majoritário, com exceção de Holanda e Inglaterra, com dois terços dos recursos provenientes do setor privado. Nos países escandinavos, por exemplo, os recursos públicos cobrem 80% do financiamento partidário, alcançando 85% na Bélgica e 90% na Turquia e na Grécia. Para mais de 70% dos países da OCDE, a repartição dos recursos públicos ocorre em conformidade com a proporcionalidade dos votos obtida na última eleição. Dessa forma, o sistema eleitoral termina

fortalecendo a existência de menor quantidade de partidos participantes dos certames eleitorais, impedindo a presença de doações anônimas que escondam a real e original fonte do recurso. Ao contrário da experiência das eleições nos países de democracia consolidada, o Brasil expressou a força dos financiamentos privados, sobretudo empresariais. Segundo informações oficiais, 95% do financiamento da campanha eleitoral de 2014 teve origem privada, sendo 2% de pessoas físicas e 93% de empresas, e somente 5% de recursos públicos. Como o exercício da democracia pressupõe, em qualquer país, a existência de dinheiro para atender ao seu funcionamento, cabe toda a preocupação para que isso não venha a perverter a expressão das vontades populares. Isso porque o financiamento empresarial tende a enviesar o resultado eleitoral, ao mesmo tempo em que leva aos eleitos serem cooptados pelos objetivos de quem os financiou. Diante disso, o certame eleitoral de 2016 constitui-se laboratório de avaliação da experiência inovadora para o Brasil, permitindo uso legal somente do dinheiro derivado do Fundo Partidário e das doações de pessoas físicas. Além disso, a própria Justiça Eleitoral estabelecerá o limite máximo de gastos para candidatos aos postos do Executivo (prefeito) e do Legislativo (vereadores), não podendo as doações de pessoas físicas superar 10% de sua renda bruta do ano anterior. Diante dessas novas regras eleitorais, cabe saber se elas se estabeleceram real e plenamente, ou se o uso de subterfúgios contábeis continuará permanecendo em vigor. Esse teste parece fundamental como saída para o impasse político sobre as eleições no Brasil, assim como a oferta de outro caminho para a vigência decente da democracia no país. REVISTA DO BRASIL

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Após anos de acampamento e de resistência a reintegrações de posse, famílias de Curitiba e São Paulo conquistam propriedade de imóveis ocupados. “É superação e vitória”, resume moradora

ORGULHO Denise, do Prestes Maia: “Agora, depois de tanta luta, fica a satisfação de alcançar o direito que temos”

iriam para onde? Não somos invasores nem estávamos roubando, estávamos lutando pelo nosso direito. Agora, depois de tanta luta, fica a satisfação de alcançar o direito que temos”, resume Denise.

Do brejo à casa própria

Por Sarah Fernandes Fotos de Danilo Ramos/RBA

Contra o frio, os escorpiões e o

DESCASO D

urante vários meses de 1988, voltar para casa não era algo exatamente prazeroso para a bordadeira I­racema dos Santos Silveira, de 59 anos. O retorno para o lar significava enfrentar horas e horas de trajeto e entrar em uma barraca de lona construída no meio de um brejo, na ocupação do ­Xapinhal, no bairro Sítio Cercado, periferia de 28

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Curitiba. “Era muita cobra, muito sapo e muito escorpião. Nove companheiros morreram por causa de picadas”, conta. O terreno, de 350 mil metros quadrados, foi ocupado naquele ano por 400 famílias que já não conseguiam mais bancar os preços dos aluguéis. A 450 quilômetros dali, na cidade mais rica do país, a atendente Denise Cristina­ Marques de Oliveira, de 27 anos, ainda

vivencia situação parecida: moradora da ocupação do edifício Prestes Maia, no centro de São Paulo, ela enfrenta sete lances de escada para chegar ao seu pequeno apartamento, já todo mobiliado, onde mora com o filho. O prédio tem 22 andares e é compartilhado por 470 famílias, que dividem banheiros e corredores ainda com problemas elétricos e hidráulicos. Apesar de viver a quilômetros de dis-

MUITO A FAZER O edifício Prestes Maia, em São Paulo, tem 22 andares e é compartilhado por 470 famílias. Os elevadores não funcionam e há problemas elétricos e hidráulicos

tância e serem de gerações diferentes, Denise e Iracema têm em comum a trajetória de luta por moradia, que inclui viver em condições de conforto e segurança muitas vezes consideradas precárias, enfrentar processos e reintegrações de posse e passar dias de frio e chuva em manifestações – mesmo a moradia sendo reconhecida como um direito humano fundamental desde 1948, com a Decla-

ração Universal dos Direitos Humanos. Em breve, no entanto, elas terão algo mais em comum: ambas receberão o título de propriedade dos seus imóveis, resultado de uma vida inteira de coragem e batalhas. “Não foi fácil e ainda não é. Foram muitas tentativas de reintegração de posse e muitas noites dormidas na frente da prefeitura. Sempre dissemos que não íamos sair. Nossos filhos e nossos idosos

O ano era 1988, mais precisamente a madrugada de 9 de outubro. Em Curitiba, 400 famílias subiam em um caminhão e seguiam no escuro para um terreno particular na zona sul da capital paranaense, até então uma região pouco urbanizada e sem infraestrutura. “Eles fizeram acampamentos como depois se veria os sem-terra fazerem: era lona, madeira, corda, sempre na resistência”, lembra a vice-prefeita de Curitiba, Mirian Gonçalves, advogada das famílias à época. “O inverno de Curitiba era muito frio. Aquelas pessoas ficaram morando em uma área descampada, em baixo de lonas, com muitas crianças. Faltava tudo para eles. Era muito difícil.” Célio Joacir Ripetski, um dos líderes do movimento, observa que em poucos dias já havia milhares de pessoas no local. “Nós nos organizávamos desde 1986, reunindo famílias e tentando negociar com órgãos oficiais para que pudéssemos comprar aquela área. Porém, todo esse processo veio por água abaixo porque estávamos em um período de muita carestia, com inflação de 100% ao mês. Os aluguéis subiam de uma maneira que as famílias não conseguiam mais pagar. O REVISTA DO BRASIL

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As ocupações do Prestes Maia último recurso foi a ocupação, não havia outra escolha. Subimos no caminhão e fomos, com a cara e a coragem”, lembra. “Eu trabalhava em casa de família, não tinha estudo e ganhava muito pouco. Não tinha mais condições de pagar aluguel. Eu queria o terreno para viver com a minha família. Foi muita luta. Quando eu achava que ia ficar tranquila, vinha mais briga”, diz Iracema. Nesse processo, 3.200 famílias resistiram e continuaram na ocupação. Treze crianças morreram nos primeiros anos devido a problemas de saúde desencadeados pela falta de saneamento básico. As famílias se mantinham organizadas, denunciando a situação ao poder público. Foram diversas manifestações na cidade e táticas de resistência às constantes ameaças de reintegração de posse. “Eu me lembro quando subi no caminhão e vim para cá, com meus 11 filhos, porque não conseguíamos mais pagar o aluguel. Nós dormíamos no chão. Já aconteceu de acordarmos com uma cobra no tra30

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Icônico na capital paulista, o Edifício Prestes Maia foi ocupado pela primeira vez em 3 de novembro de 2002. Uma série de conflitos e entraves jurídicos fez com que as então 300 famílias que viviam no local acabassem aceitando um acordo e desocupando o prédio. Elas foram atendidas por um programa de habitação estadual na zona leste da cidade. Outras foram contempladas com uma carta de crédito do governo federal. “De um lado tínhamos um processo de reintegração de posse e um imóvel todo enrolado juridicamente, de outro tínhamos a necessidade das famílias. Aí optamos por batalhar para atendê-las naquele momento, mas sem esquecer do que significa a Prestes Maia”, conta a coordenadora Ivonete Araújo. O tempo passou e a resposta do poder público não veio a contento. “Já era 2010 e víamos que nada era feito com aquele imóvel. Ele estava sem morto, escuro, servindo para a especulação imobiliária. Precisava de vida. Então, ocupamos de novo”, diz. “Passamos por várias ameaças, várias noites em vigília, com medo de sermos pegos de surpresa. Depois de tudo, não tínhamos como ficar quietos.”

vesseiro”, conta a aposentada Aparecida Perduiguez, de 79 anos. “Meu marido ia trabalhar e eu ficava sozinha no barraco com as crianças. Era todo dia com medo. Muitas pessoas morreram aqui, lutando pela moradia.” A professora de educação infantil ­Luciana de Fátima Carvalho chegou à ocupação no primeiro dia e ajudou a subir os barracos de lona. “A primeira visão era terrível. Era só barraca uma em

cima da outra em um lamaçal. Ficamos muito tempo em uma situação precária, sem saneamento básico, sem condição de moradia e sem alimentação adequada, vivíamos basicamente de doações”, lembra. “Já éramos 8 mil pessoas. Como a prefeitura ia dar as costas para tudo isso? Então eles sempre recebiam a gente, mas não se resolvia nada. Nas eleições municipais, conseguimos o compromisso dos candidatos com a manutenção das famílias no

SEGURANÇA Elis: “Só de saber que não vamos ter que dormir na rua, sair da nossa casa, sofrer reintegração de posse, já é uma alegria”

Xapinhal, como uma forma de pressionar. Até o próprio Lula, em 1989, foi na porta da ocupação. Já não era mais possível virar as costas para a gente”, conta Célio. Apenas uma torneira abastecia toda a comunidade. A comunicação era feita por meio de uma rádio comunitária que funcionava com alto-falantes instalados na sede da associação de moradores, onde hoje está montado o Museu da Periferia (Mupe). Por segurança, as lideranças nunca eram tratadas por nome, mas por apelidos, como Cabelo, Bigode, Sabiazinho, Cigana. Depois de muita pressão e de nove meses em baixo de barracas de lona, os moradores conseguiram fechar um acordo com a Companhia de Habitação Popular (Cohab) de Curitiba, que garantiu a eles a permanência no local. A área foi loteada pela primeira vez, e as famílias puderam construir barracões de madeira de 3 por 6 metros, o que acabou por melhorar um pouco a condição de habitação.

“Era muito perigoso. Eu morria de medo da polícia, de bandidos, de animais. Mas tinha uma esperança muito grande de melhorar de vida”, lembra Iracema, emocionada. Com a parceria com a Cohab, vias se abriram no local. Lotes foram organizados. Também melhorou a infraestrutura, com creche, escola e posto de saúde. Com o tempo e o incremento financeiro na renda das famílias, as casas passaram por reformas e foram construídas em alvenaria. Nos últimos dez anos, ganharam garagens, fachadas reformadas e eletrodomésticos modernos. “Aqui era tudo um grande brejo até a chegada da Cohab. Fui eu mesma que abri a vala para passar a rede de água em casa”, diz Luciana. A vitória mesmo, no entanto, só veio em 17 de outubro do ano passado, quando o prefeito Gustavo Fruet (PDT) assinou o decreto que aprova o loteamento da Vila Xapinhal, regulariza a área e põe fim aos 27 anos de espera pela escritura

de propriedade dos lotes. Ao final, 1.738 famílias que construíram suas vidas no Xapinhal conquistaram a propriedade do terreno. “Essa é a vitória de uma vida. Nunca vamos esquecer, não tem como. Foi o terreno que ocupei, que meus amigos ocuparam. Nos envolvemos na luta e amanhã meus filhos terão essa propriedade. É uma história e uma conquista que vão permanecer por muitas gerações”, afirma Célio. “Tenho muito orgulho de ter conquistado tudo o que conquistei. Não é um bairro qualquer, como os outros. É um lugar que existe por causa de muita luta. Você não consegue imaginar a minha alegria em dizer: essa casa é minha. Ninguém me toma mais ela”, diz Iracema. No último dia 29, Fruet iniciou a entrega das primeiras escrituras para moradores da Vila Xapinhal. Algumas poucas famílias já haviam pago o terreno em prestações à Cohab. A maioria começará o processo agora, dividindo o valor em parcelas REVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

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FELICIDADE Maria Silas: “Cheguei no primeiro dia, porque não tinha condições de pagar aluguel. Trabalhei, lutei e chorei muito aqui”

até alcançar o total, que varia entre R$ 20 mil e R$ 30 mil. “Cheguei no primeiro dia, porque não tinha a menor condições de pagar aluguel. O que eu ganhava só dava para alimentar meu filho. Trabalhei, lutei e chorei muito aqui. Agora é só felicidade”, diz a dona de casa Maria Silas Cruz, do Conselho da Associação de Moradores do Xapinhal. “Vencemos. Agora ninguém mais nos tira daqui.”

Maior do continente

O endereço é Avenida Prestes Maia, 911. Na movimentada via de São Paulo, que faz a ligação entre as zonas norte e sul, famílias dividem o espaço, que já foi ocupado por duas vezes e sofreu diversas tentativas de reintegração de posse. O prédio é muito organizado e limpo, mas faltam elevadores e ajustes hidráulicos e elétricos. Após 14 anos, as famílias do Prestes Maia conseguiram da prefeitura a garantia de que o imóvel será desapropriado e destinado ao programa Minha Casa, 32

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Minha Vida Entidades, por meio do qual será todo reformado. O anúncio foi feito pelo prefeito Fernando Haddad (PT) em outubro do ano passado, logo após as famílias sofrerem a última tentativa de reintegração de posse, que acabou suspensa pela Justiça, por considerar que já havia negociações avançadas para desapropriar o prédio. “É uma vitória, mas ela só vai estar completa quando cada um pegar a sua chave e dizer: ‘Valeu a pena’”, diz uma das coordenadoras da ocupação, Ivonete­ Araújo. “Isso nos mostra que sem luta não se consegue nada e que é muito importante o movimento se manter unido em prol do nosso direito à moradia. Se tiver organização e se for persistente as coisas mudam, de uma forma ou de outra.” Atualmente, a prefeitura faz o terceiro chamamento das entidades ligadas à ocupação para que levem documentos e comprovem o vínculo. A expectativa da coordenação é que em seis meses esse processo

seja finalizado e comece a retirada das famílias para a reforma. O projeto deve ser finalizado em dois anos. “Temos ainda o receio de tirar as famílias e não conseguir que elas voltem. Por isso, precisamos da garantia da posse e de todo o processo documentado”, defende Ivonete. “Só de saber que não vamos ter que dormir na rua, sair da nossa casa, sofrer reintegração de posse, já é uma alegria”, diz a vendedora e dona de casa Elis-Sarai Duarte dos Santos, de 46 anos, cinco dos quais em diversas ocupações da cidade. “Eu não tinha mais condições de pagar aluguel, mas agora vamos poder ficar tranquilos porque vamos conquistar nossa casa.” O vizinho Lorivaldo Ribeiro, que trabalha como vigilante, concorda. “Foi muita luta nestes cinco anos e meio em que estou aqui. Nós íamos inclusive ajudar o pessoal de outras ocupações. Sempre me lembro de uma reintegração de posse de um prédio na Avenida São João

DIAS DIFÍCEIS Iracema: “Eu trabalhava em casa de família e ganhava muito pouco. Queria o terreno para viver com a minha família”

e de ver as crianças e os idosos chorando, sendo retirados pela Polícia Militar com toda as suas coisas, sem dó nem perdão”, diz, entre lágrimas. “Aqui também lutamos muito. Foram dias de acampamento em frente à prefeitura e resistência às reintegrações de posse, com muito medo. Se esse povo saísse daqui, para onde iria?” Ao todo, serão 300 unidades habitacionais, com banheiros individuais.

Apenas as lavanderias devem ser coletivas. O movimento reivindica agora que na parte térrea do prédio sejam construí­ das uma creche e uma unidade básica de saúde. “Ficamos com uma diferença de 170 famílias que vamos continuar reivindicando moradia no entorno. A seleção será feita pela participação na luta”, conta Ivonete. “Algumas pessoas me dizem: ‘Eu queria só uma casinha, nem que fosse lá

As mulheres do Xapinhal Ao percorrer a vila e conversar com os mais antigos, percebe-se facilmente a opinião unânime: se os moradores chegaram aonde chegaram, os louros da vitória vão principalmente para elas, as mulheres do Xapinhal. Na maioria, eram os homens que saíam para trabalhar durante o dia. As mulheres ficavam nas barracas com as crianças. Era justamente nesse horário que os interessados em forçar as reintegrações de posse vinham ao local, julgando erroneamente que encontrariam menor resistência. “Eu e as mulheres íamos para linha de frente, acreditando muito no que fazíamos. Se alguém colocava as coisas das famílias em caminhões, éramos nós mesmas que tirávamos”, lembra a vice-prefeita de Curitiba, Mirian Gonçalves.

longe, só com um banheirinho’. Eu falo: ‘Essa fase do banheirinho já acabou. Você está aqui reivindicando um direito e merece coisa grande’.” De acordo com a Secretaria Municipal de Habitação, o imóvel está em processo de desapropriação pela Cohab de São Paulo. Já foi estabelecido um acordo para a conclusão desse processo, e os valores referentes a compra do prédio já foram depositados. O acordo aguarda homologação para ser encaminhado para a Justiça que, por sua vez, concederá a posse do imóvel às famílias. “Quando eu cheguei aqui, não tinha consciência do meu direito por moradia, tinha parado de estudar e não trabalhava. O Prestes Maia me deu muito mais que habitação, me deu cidadania, me mostrou que tenho direito a casa e educação e saúde pública de qualidade”, diz Denise Cristina, há seis anos na ocupação, que já chegou a ser a maior da América Latina. “É luta, superação e vitória”, resume. REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

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Protagonistas,

sim! Há não muito tempo, profissionais negros estavam à margem da produção cinematográfica. “Com políticas afirmativas e editais específicos, surge uma nova geração”, afirma a cineasta Renata Martins Por Xandra Stefanel

A

té o começo dos anos 2000, Renata Martins achava que se tornar cineasta era sonho impossível. Um ano depois do lançamento do Programa Universidade para Todos (ProUni, em 2005), ela conquistou vaga em uma faculdade particular na cidade de São Paulo. O sonho estava se tornando realidade, e as mudanças pelas quais o país começava a passar dariam frutos. Sua carreira e a crescente produção cinematográfica entre mulheres negras são prova disso. Aos 38 anos, Renata traz no currículo várias produções: é diretora e roteirista do curta-metragem Aquém das Nuvens, foi roteirista da série Pedro & Bianca, que ganhou o Prêmio Emmy Kids Internacional, em 2014, e tem vários projetos em desenvolvimento, entre os quais a segunda temporada de uma série feita por e para mulheres negras. “Empoderadas (exibida em um canal no Youtube) traz no conteúdo e na forma essa tentativa de mostrar à sociedade que há muitas mulheres negras fazendo muitas coisas maravilhosas, inclusive na produção audiovisual, desde o princípio até a finalização.” Apesar de se dizer esperançosa, ela conta que ainda há muito caminho a ser desbravado em direção ao aumento do número de profissionais negros, ao acesso ao financiamento e à quebra dos estereótipos. MARCIA MINILLO/RBA

Como você decidiu que queria ser cineasta?

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O cinema começou como um desejo que, dez anos atrás, era quase impossível. A gente só tinha em duas universidades curso de Cinema aqui em São Paulo, a ECA (Escola da Comunicações e Artes, da Universidade de São Paulo) e a Faap (Fundação Armando­Álvares Penteado) – uma que tem uma tradição para

entrar e outra muito cara. Desencanei. Comecei a estudar para prestar vestibular para Geografia. Nessa época, surgiram as políticas afirmativas, e em 2005 foi o primeiro ano em que a faculdade Anhembi Morumbi teve a política de cotas, por onde eu entrei. Cinema sempre foi um curso extremamente elitizado. Eu teria de ter tido acesso a uma educação mais fortalecida para poder ter acesso a uma vaga. Fiz cursinho popular, mas ainda assim era cursinho e trabalho, não pude ter aquela dedicação full time. Está feliz com a escolha?

Tem sido bacana. Logo que eu saí da faculdade, fui contemplada com um edital do Prêmio Estímulo para desenvolver um curta, Aquém das Nuvens, quando dirigi e roteirizei meu primeiro trabalho. Paralelo a isso, eu trabalhava muito com arte-educação, e nesse período também surgiu o convite para trabalhar na equipe de roteiristas da série Pedro & Bianca (da TV Cultura). A série foi premiada, ganhou Emmy. No ano seguinte, o Renato Candido de Lima, que me convidou para participar de Pedro & Bianca, me convidou para desenvolver outro projeto de série com ele, o Rua 9. Ele foi contemplado pela prefeitura e a gente desenvolveu, em 2014, uma série para a TV cuja temática é o universo dos anos 1990 e o rap como um despertar desse jovem negro da periferia como sujeito. Agora, ele está em fase de captação de recursos para a produção do piloto. Todos esses projetos têm presente a questão racial e periférica? Quando ficou claro para você que essa temática teria um peso importante na sua obra?

Na verdade, o Aquém das Nuvens em especial não tinha uma preocupação racial. Era o meu universo: trata de uma mulher negra e a minha família é negra. Ele não nasceu como filme político. Eu simplesmente atribuí o protagonismo que poderia ser de qualquer outra pessoa a personagens negros. Minha proximidade com essa questão de que o audiovisual e o cinema podem ser ferramentas poderosas na construção de identidade se deu durante a universidade. Era um espaço em que eu não estava inserida. Eu era uma das poucas alunas negras e periféricas. Alguma coisa ali não se encaixava. Paralelamente, tive a oportunidade de trabalhar com a companhia Os Crespos, um grupo de teatro de São Paulo que há dez anos lida com pesquisas voltadas a questões raciais. Acho que foi nesse período que a chave de fato virou, porque eu sei que fui chamada para o Pedro & Bianca porque a Bianca era uma protagonista negra. Provavelmente, se fosse outro tipo de série, as pessoas não teriam me chamado. Ainda tem essa tentativa de definir lugares… Como assim?

Tenho percebido que alguns trabalhos surgem porque sou uma mulher negra que trabalha com cinema. Mas eu não seria chamada para uma construção onde não há o protagonismo ­negro. É como se a gente não servisse ou fosse apto para escrever sobre outros personagens. Foi com Os Crespos que surgiu de forma mais latente essa questão da importância da arte como instrumento político. REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

ENTREVISTA

rência, de troca e de ampliação de informação. É um espaço de viralização e construção de conteúdo e de valorização da mulher negra. A primeira temporada do Empoderadas encerrou em novembro, e estamos em processo de produção da segunda, que vai ser itinerante, com mulheres de alguns estados do Brasil.

Como você analisa a presença de pessoas negras no mercado cinematográfico? Ainda é uma elite branca?

Opa! Certamente. Acho que isso ainda vai existir por um bom tempo porque a gente produz muito pouco. Então, a partir do momento em que nós, profissionais negros, produzimos pouco e a linguagem é experimento, a gente tem dificuldade de ampliar a quantidade de profissionais. Por exemplo, a Bianca: é uma personagem negra que foi construída por um universo de pessoas brancas. A gente tem uma ausência significativa tanto de escritores, quanto de diretores, produtores e técnicos de audiovisual negros. Mas sinto que, com as políticas afirmativas e os editais específicos, a gente tem tido possibilidade de criar uma geração de profissionais negros.

Como você financia seus projetos?

Eu acho que sim. Estou fazendo uma curadoria de um festival que tem um recorte étnico e de gênero, o Fespacine, que acontece pelo segundo ano na zona leste de São Paulo. Tenho visto muitos filmes de cineastas negras, um universo que há dez anos era invisível. Eu tenho uma perspectiva positiva das situações como um todo, por causa dessa transformação político-econômica que ocorreu em dez anos. A partir do momento em que você está construindo personagens e narrativas, é muito difícil que reproduza estereótipos que foram apontados ao longo da história do cinema. Não basta que sejamos negros produzindo, é importante que sejamos negros e conhecedores da nossa trajetória e conscientes da nossa história, porque se nosso discurso ainda estiver colonizado, nossas produções assim serão também.

MARCIA MINILLO/RBA

Então existe uma perspectiva de melhora nesse cenário?

Ao longo da história, tivemos pouco apoio de homens brancos, de mulheres brancas e de homens negros. A gente sempre teve de se virar. Isso reverbera em nossos trabalhos

Tem o filme O Tempo dos Orixás, da Eliciana Nascimento, uma cineasta da Bahia que foi fazer mestrado nos Estados ­Unidos, muito bem realizado. Tem também o da Yasmin Thayná, o Kbela, uma experiência audiovisual sobre esse processo do tornar-se mulher e sobre o entendimento da mulher a partir da estética, um filme que tem tido uma vida grande em festivais e tem mobilizado um determinado setor da sociedade – porque ela se propôs a fazer um filme de forma coletiva, com influências de artistas negras. Eu acho que a gente tem entendido que sozinho fica mais difícil de produzir.

A cada dia eu tenho assistido menos TV. No cinema, tem uma pesquisa da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) que diz que nos últimos 12 anos, além de não ter nenhuma mulher negra produzindo audiovisual como diretora ou roteirista, as mulheres ocupavam 4% desse espaço de representação. E ela ainda vinha em um lugar muito caricato, como objeto de desejo.­E agora nós estamos tomando mais conhecimento sobre a questão do colorismo: quanto mais clara a pele da mulher negra, mais chances de ela abocanhar mais papéis. As mulheres negras de pele escura continuam sendo empregadas domésticas, continuam nesses lugares sociais que lhes foram estipulados e nos estereótipos.

Há um movimento de cineastas negras no Brasil?

Seu trabalho como cineasta contribui para isso mudar.

E quanto à presença de mulheres nesse mercado?

Eu não sei se existe um movimento institucional, mas existe um movimento individual que leva ao coletivo. A gente tem entendido que, ao longo da história, tivemos pouco apoio de homens brancos, de mulheres brancas e dos homens negros. Então, teoricamente, a gente sempre teve de se virar sozinha. Isso também reverbera nos nossos trabalhos. É um processo de irmandade. Agora eu consigo me conectar com uma garota que produz na Amazônia e em outros estados, coisa que anteriormente a gente não tinha. Qual é a representação da mulher negra no cinema e TV brasileiros? 36

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Eu gostaria muito que, de fato, ele tivesse essa capacidade de transformação. Os meios de produção sempre estiveram nas mãos das mesmas pessoas. A partir do momento que eles são minimamente mais democratizados, a gente precisa falar desse lugar. É esse o objetivo da série Empoderadas?

É deslocar lugares. Empoderadas traz tanto no conteúdo quanto na forma essa tentativa de mostrar para a sociedade que há muitas mulheres negras fazendo coisas maravilhosas na produção audiovisual, do princípio até a finalização. A gente começou o ano passado, fizemos 14 episódios, que estão na nossa página (do Facebook), que também é um espaço de refe-

A primeira temporada de Empoderadas não teve financiamento. Alguns amigos emprestaram equipamentos, amigas foram parceiras e tiraram dinheiro do bolso para o transporte e a alimentação… Eu fiz a primeira temporada com a Joyce (Prado), também cineasta negra, e os custos foram nossos. Ao longo da temporada, muitos frutos foram surgindo: palestras, exibições, o Sesc Pompeia fez festival chamado ­Empoderadas, com uma série de palestras com pensadoras negras... Parte desse dinheiro de exibição estou investindo na segunda temporada, mas é pouco. No ano passado, a gente também ganhou um fundo de investimento social, o Elas, de desenvolvimento para o fortalecimento de mulheres. Paralelamente à segunda temporada, vai ser desenvolvido um processo de capacitação com meninas de colégios públicos. Serão quatro meses de discussões e reflexões com mulheres negras que a gente considera que podem auxiliar nesse processo histórico no que diz respeito ao feminismo e às questões raciais. Depois, vai ter uma formação técnica com outras profissionais e a gente vai filmar quatro episódios com mulheres inseridas na tecnologia. Se fosse programa feito por essa “elite branca”, teria acesso mais fácil a financiamento?

Acho que sim. Vou dar um exemplo: um dos nossos episódios teve quase um milhão de visualizações, que foi o da MC Soffia. Lembro que alguns anos atrás rolou um viral do Tapa na Pantera, feito pelo Esmir Filho com a Maria Alice Vergueiro. Esse menino não ficou uma semana sem trampo ou sem alguém acreditar que ele era genial pra ele poder fazer outras coisas, saca? A gente não teve nenhuma proposta direta de venda da temporada ou de patrocínio. De qualquer forma, eu não gostaria que o ­Empoderadas fosse um projeto só para virar grana… A gente vai ver se tem alguns editais abertos, pensou em fazer uma loja virtual para gerar uma receita. Até porque eu quero pagar essa galera. Não quero ninguém trabalhando de graça comigo a vida inteira, não faz sentido. A gente fala de empoderamento e remuneração também é empoderar, né? O Ministério da Cultura e outros órgãos têm lançado editais voltados para criadores e produtores negros. Qual é sua opinião sobre eles?

Tem o Curta Afirmativo, que está na segunda edição, e que é muito importante. Mas eu fico pensando nessa cilada dos editais: foram 15 projetos contemplados e mais de 400 inscritos. Então, existe uma demanda voltada para temáticas negras. Essas 385 pessoas não acessam os outros editais! Quando a gente olha os resultados do Prêmio Estímulo,­ do Fundo Setorial e outros tantos, às vezes – ou quase nunca – você tem um projeto apresentado por profissionais ou produtores negros. Mas há um movimento. Ainda tem pessoas que acham os editais específicos, como as cotas, são privilégios.

Pois é! Um direito se torna privilégio na cabeça de quem não precisa disso, né? Quando você está fazendo qualquer coisa e ninguém te questiona, te importuna e o seu conhecimento é único e válido, aí vem uma geração de pessoas questionando esses lugares e essas formas. A real é que você vai perder o privilégio de fazer o que quiser, como quiser e de falar o que quiser. Se você está acostumado desde criança a estar em uma sala onde só tem iguais, quando vir duas ou três meninas cotistas que questionam esses discursos elitistas, é um choque! É o medo claro de perder privilégios. Isso não é só no Brasil. Basta ver a polêmica do Oscar, que nas duas últimas edições não teve nenhum negro entre os atores indicados.

E com a justificativa de que os atores e atrizes não são bons! Daí você pensa que o David Oyelowo, que fez o Martin Luther King, não foi indicado no ano passado mesmo com uma atuação maravilhosa… Você analisa as edições anteriores e vê que tem um monte de atores não negros medíocres que foram indicados… E percebe que não tem justificativa: é racismo.

Com tudo isso, você ainda vê a situação de forma positiva?

Sim. Eu tinha um professor de História que dizia que a gente tinha de ser positivo. A gente levanta todo dia da cama e vai pra luta. É mais do que querer, tem de acreditar.

Como você define sua luta como cineasta e como cidadã?

Ela passa pela valorização das pessoas que, ao longo da história, foram tornadas invisíveis. Tem um pouco esse desejo de dizer que a “história oficial” não é tão oficial. Há tantas outras que não foram contadas ainda. Eu não sou a única nem serei a última a fazer isso, mas é o que me move.

O filme O Tempo dos Orixás, da Eliciana Nascimento, é muito bem realizado. O Kbela, da Yasmin Thayná, sobre o entendimento da mulher a partir da estética, tem tido uma vida grande em festivais

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MEMÓRIA

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m prédio pouco convidativo na Rua Paula Souza, na região central de São Paulo, não difere de tantos outros pela conservação ruim e na oferta de bijuterias, malas e bolsas, algo comum por ali, além de equipamentos para bares, restaurantes e hotéis. Fica perto do Mercado Municipal, o conhecido Mercadão, e faz esquina com a 25 de Março, famosa rua de comércio popular. Cinquenta anos atrás, em um domingo, dia incomum para isso, um grupo de músicos e técnicos se reunia ali para dar início à gravação do primeiro LP de um compositor que já era mais do que uma promessa: Chico Buarque de Hollanda. Celebrado em documentário recentemente em cartaz e hostilizado na rua por rapazes que pouco ou nada sabem sobre

Manoel Barenbein conta que a gravação inicial estava marcada para as 14h. Seriam as duas primeiras canções: A Rita e Juca. Mas o compositor, à época no Rio de Janeiro, não chegava. “Estávamos apreensivos. Naquela época, era inimaginável trabalhar no domingo. Ele não tinha outro dia para vir”, lembra Barenbein, acrescentando que Chico teve um problema qualquer no embarque. “E não tinha celular...” Impacientes, todos os envolvidos na gravação – técnicos, músicos – esperaram quase duas horas, até que desistiram. Já estavam chegando à rua, quando um esbaforido Chico desceu do táxi, pedindo desculpas pelo atraso.

Mudanças

me era brando. Há até “historiador” com espaço na mídia para quem nem ditadura havia. Mas em fevereiro de 1966, o governo imposto em 1964 baixava o Ato Institucional número 3 (AI-3), estabelecendo eleições indiretas para governador e nomeação de prefeitos das capitais. Em outubro, mês do famoso festival de A Banda e Disparada, o marechal Arthur da Costa e Silva, da linha-dura do regime, ganhava a eleição – indireta – para a Presidência da República. Seria o segundo presidente do ciclo militar, responsável pela edição do AI-5, dali a pouco mais de dois anos. O Brasil que retrocedia politicamente também passava por importantes mudanças na economia. Até o começo dos anos 1960, a maior parte da população vivia em áreas rurais, mas essa realidade se alterou com o intenso processo de in-

ARQUIVO/ESTADÃO CONTEÚDO/AE

O disco do Chico 38

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sua trajetória – o chamaram de “um m...” por suas posições políticas –, Chico era um rapazinho desconhecido até meados de 1966. Aos 22 anos, estourou com A Banda, canção vencedora do Festival da Record – ao lado de Disparada, de Geraldo Vandré e Theo de Barros – e que anos depois o ajudaria até em shows obscuros na Itália, já na fase do exílio, tamanha a repercussão. Apesar da fama nacional, até quase fins daquele ano ele era um sucesso sem LP. E a RGE apressou-se a organizar as gravações. O estúdio ficava no segundo andar daquele prédio da Paula Souza, onde atualmente se vendem bijuterias. No quarto, hoje disponível para aluguel, estava a Rádio Bandeirantes. Já era fim de ano, um domingo à tarde. O produtor

Para o jornal Folha de S.Paulo, o regi-

dustrialização iniciado na década anterior. A cidade de São Paulo, por exemplo, que tinha 2,1 milhões de habitantes em 1950, em duas décadas atingiu 5,9 milhões – quase o triplo. Chico chegou a ser “acusado” de ter feito A Banda sem nunca ter visto uma banda, já que morava em cidade grande. O que ele contestou, em depoimento dado ao Museu da Imagem e do Som (MIS) em 11 de novembro de 1966. Ele morou na Rua Haddock Lobo, em São Paulo, e nos fundos havia um terreno baldio, já na Rua Augusta. Ali se instalavam circos e parques de diversões, com suas bandinhas. Quando ele estudou em um internato em Cataguases (MG), também havia bandas por lá. Chico lembra ainda de ter visto, na Europa, banda de escoceses. Ou seja, o que não faltou foi banda para compor.

Primeiro LP do compositor, feito às pressas e sob o sucesso de A Banda, completa 50 anos Por Vitor Nuzzi

EMPATE Antes de ser gravada, A Banda venceu o Festival da TV Record de 1966, na voz de Nara Leão. Chico fez questão de dividir as honrarias com Disparada, de Geraldo Vandré e Theo de Barros, interpretada por Jair Rodrigues REVISTA DO BRASIL

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MEMÓRIA

MEMÓRIA

Mas a música, feita em julho, saiu em outras condições. “Eu lembro que fiz até na hora do almoço, não tinha nada a ver com banda, estava com fome, esperando o almoço”, disse Chico ao MIS. “Eu tive a ideia da imagem da banda passando e vi várias coisas acontecendo. Logo eu tive várias imagens: a moça que vai para a janela, o cara contando o dinheiro. Aí peguei o violão e saiu.” E saiu quase “inteira de estalo”, segundo ele. “O único problema que ficou foi de mandar a banda embora. Aquele final todo foi posterior. Não queria deixar a banda tocando para sempre na rua,

porque eu gosto de deixar as coisas mais reais”, contou o compositor, que também naquele 1966 havia se destacado com a trilha sonora de Morte e Vida Severina, em versão teatral para o poema de João Cabral de Melo Neto – o Teatro da Universidade Católica (Tuca), de São Paulo, foi premiado na França pela montagem.

Moldura

Na época, Chico só queria compor. “Ele ainda não era um cantor. Tinha o conhecimento, mas não a experiência. Fui uma espécie de chato para ele cantar”, lembra Barenbein. Segundo ele, o primeiro LP

foi concluído em quatro ou cinco sessões. “Trabalhar com o Chico era muito fácil. E não eram composições complicadas, que exigiam muitos arranjos. A melodia era fantástica. O grande segredo estava no texto. Na realidade, a gente criava uma trilha para emoldurar a melodia e o texto dele.” Cantar era mesmo um problema, recorda o músico Luiz Loy, na época à frente de um quinteto que gravou algumas das primeiras obras de Chico. Eles haviam se conhecido ainda em 1965, na TV Record. “Ele não falava. Ficava lá, num cantinho, com o violãozinho dele, esperando a gente chamar.”

Trabalhar com o Chico era muito fácil. E não eram composições complicadas, que exigiam muitos arranjos. A melodia era fantástica. O grande segredo estava no texto. Na realidade, a gente criava uma trilha para emoldurar a melodia e o texto dele

JAILTON GARCIA/RBA

Manoel Barenbein

Um dia, o diretor artístico Júlio Nagib (que morreu em 1983) procurou Loy e disse: “Tem um garoto novo pra gravar, mas não tem dinheiro. Veja o que você pode fazer”. O grupo, então, fez o acompanhamento de duas músicas – Olê, Olá e Meu Refrão – pelo preço de uma. Essas canções foram gravadas em 1965, para um compacto simples, e incluídas posteriormente no LP. “Não sinto muito prazer em cantar, para falar a verdade não gosto muito”, disse Chico ao MIS em 1966. “Ele estava tão nervoso, a mão tremia, não conseguia tocar”, lembra Loy, sobre a gravação do compacto. O jeito foi chamar Toquinho, o violonista, amigo de Chico e presente no estúdio – que não era o da RGE. “No compacto, o violão é do Toquinho.” No encontro para a gravação do LP, já era um Chico menos acanhado. “Aí ele já tinha participado do festival, estava um pouco melhor.” O Luiz Loy Quinteto gravou Ela e Sua Janela e Amanhã, Ninguém Sabe, respondendo também pelos arranjos. O músico lembra do estúdio, onde chegou a trabalhar com outros nomes, como Elizeth Cardoso e Elis Regina. “Eu gravava muito lá, jingles... Só que os jingles eram gravados na parte da manhã. Eram dois canais, tinha de gravar junto com o cantor.” O maestro, arranjador e tecladista também se recorda de uma vez em que Elizeth repetiu várias vezes uma gravação, o que cansou sobretudo os músicos de sopro. Ficou decidido que o grupo deixaria pronta a base, para juntar depois com a voz d’A Divina, como era conhecida. Em 1967, o quinteto de Loy gravaria um LP instrumental apenas com obras de Chico Buarque, autor de um texto na contracapa. Ele considera Chico um dos grandes compositores brasileiros, citando a música Construção, de 1971. “É uma loucura.”

Limão e foto

Naquele primeiro e longínquo disco de 1966, estavam, além de A Banda – que abre o LP –, outro sucesso da fase inicial do compositor, como Pedro Pedreiro. E também Tem Mais Samba, de 1964. Foi feita, em cima da hora, para um musical (Balanço de Orfeu), e é considerado o “marco zero” de sua obra. 40

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A última das 12 faixas, todas de autoria de Chico Buarque, é Sonho de um Carnaval, que marcou a estreia do compositor em festivais, ainda em 1965, na TV Excelsior – com interpretação de Vandré. Duas músicas estavam prontas, mas entraram apenas no segundo disco, em 1967: Será que Cristina Volta? e Morena dos Olhos d’Água. “De algumas canções desses dois primeiros álbuns – A Televisão, por exemplo –, ele se sente muito distante. Outras, como Pedro Pedreiro e Olê, Olá, lhe parecem merecedoras de certa indulgência, por conta de juventude. E há uma, A Rita, que Chico ainda canta com prazer”, diz o

Quarenta anos de alucinação

O hoje sumido Belchior foi responsável por alguns discos marcantes na década de 1970, como Alucinação, cujo lançamento está completando 40 anos. Foi o seu segundo LP. O crítico Mauro Ferreira lembra que o LP “abriu as portas das rádios e do sucesso popular” para o cantor cearense, que se projetou em 1972 a partir da gravação de Mucuripe (dele e de Fagner) por Elis Regina. Alucinação começa com três dos maiores sucessos de Belchior: Apenas um Rapaz Latino-Americano, Velha Roupa Colorida e Como Nossos Pais. As duas últimas ficaram marcadas pela interpretação de Elis no LP Falso Brilhante, também em 1976. Mas também estão lá faixas como Sujeito de Sorte, Como o Diabo Gosta e A Palo Seco.

site oficial do compositor. No texto de apresentação do primeiro disco, Chico afirma que o LP resumia três anos de música. Comentava que o samba chegava “por caminhos longos e estranhos, sem maiores explicações”. “A música talvez já estivesse nos balões de junho, no canto da lavadeira, no futebol de rua...” Ele destaca a importância do limão galego “para a voz rouca de cigarros, preocupações e gols do Fluminense”. Conta que só parou de chupar limão para tirar a fotografia que foi para a capa. Na verdade, duas. Uma sorridente e outra sério. Uma capa que, nos dias de hoje, virou meme nas redes sociais. “No disco, tem esses dois lados (sorrindo e sério)”, observa Barenbein, que não tem ideia de como foram feitas as fotos. “A capa é um trabalho à parte. Só ia ver depois. A capa de Tropicália (disco de Caetano Veloso, de 1967), por exemplo, só fui ver quando o Rogério Duarte veio com a arte pronta.” O autor das imagens da capa do LP de Chico, e do leiaute, é Dirceu Côrte-Real, que morreu há alguns anos. Para o produtor, o disco saiu como se esperava. “Ali tem obras-primas. Eu tinha certeza de que ali tinha um criador para ser trabalhado. Não se pensava em descartável, tinha de ter conteúdo para ter uma carreira longa.” Ao MIS, em 1966, Chico disse ter “um medo de morrer danado”. No documentário de Miguel Faria Jr., de 2015, fala com serenidade e humor sobre o tema. Nas duas ocasiões, mostra visão semelhante sobre o que pretende fazer. “Eu estou sempre procurando novos caminhos. Eu não quero repetir o que está feito, então eu tenho que descobrir outras formas de dizer outras coisas”, declarou no depoimento ao museu. Em 1980, a Som Livre adquiriu o catálogo da RGE. Daquela região de onde saiu o primeiro LP, o que permanece – no térreo de um casarão – é um restaurante, o Expoente, aberto em 1944, justamente o ano em que Chico nasceu. E a obra nascida no predinho da Paula Souza deu frutos e ramificou. Estão ali o lúdico, o lírico e o social, características de seu trabalho, que 50 anos depois alguns aparentemente não conhecem. REVISTA DO BRASIL

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CULTURA PATRIMÔNIO IMATERIAL Banda de Pífanos São Cristóvão, de Panelas, no agreste pernambucano

Pífanos a busca do reconhecimento As bandas que são um dos mais tradicionais retratos da identidade musical do Nordeste estão perto de alcançar o título de Patrimônio Imaterial da cultura brasileira Por Amaro Filho. Fotos de Jesus Carlos/Imagemglobal 42

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ífano, pífaro, pife. Instrumento de influência indígena feito de taboca ou taquara com sete orifícios, um para soprar e seis para dedilhar. Também confeccionados em tubos de PVC ou de metal. É difícil acreditar como um instrumento aparentemente tão simples e feito artesanalmente é capaz de produzir uma música tão rica e bela, animar festas, procissões e ainda ser o sustento de muitos músicos em várias regiões do Brasil. É no Nordeste que se concentra a maior tradição e profusão das bandas de pífano, mas a sonoridade se espalhou pelo ­país. Essa forma de expressão pode ser encontrada em todas as regiões, no Sudeste (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais), no Sul (Santa Catarina), no Centro-Oeste

(Distrito Federal) e no Norte, em tribos do Alto Xingu. Conhecidas também como zabumba, cabaçal, esquenta mulher, terno de pífanos, entre outras denominações, elas são formadas por músicos intuitivos – geralmente os pifeiros fazem seus próprios instrumentos, e também os vendem. “Eu faço pife, toco pife, vendo pife, como o dinheiro do pife e depois de velho fico pifado”, brinca João do Pife, da banda Dois Irmãos. João é um ícone das bandas de pífanos no Brasil, já tocou em mais de 20 países. Segundo ele diz, o músico de pife, para se tornar um mestre, tem de fazer, tocar e ensinar tudo sobre o instrumento. A famosa Feira de Caruaru, em Pernambuco, can-

tada por Luiz Gonzaga, e Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro, continua sendo uma vitrine para as bandas da região, e também mercado para a compra dos pífanos. Lá se encontra a Banda de Pífanos São Cristóvão, de Panelas, no agreste do estado. Dizia o sanfoneiro Dominguinhos: “De tanto ver as bandinhas de pife, seu Luiz Gonzaga se inspirou para criar essa formação do forró pé de serra, ou seja, sanfona, zabumba e triângulo”. O som desses instrumentos também influenciou compositores e arranjadores brasileiros como Quinteto Violado, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Geraldo Azevedo, Naná Vasconcelos, Quinteto Armorial, Carlos Malta e o Pife Muderno.

TRADIÇÃO A Banda de Pífanos Zé do Estado, de Caruaru, usa o chapéu de couro estilizado como se usava no cangaço. Na foto de baixo, a Casa do Pife, que ocupa a antiga estação ferroviária de Caruaru

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local. “Hoje a banda da cidade (filarmônica) está tomando o lugar da banda de pífano, mas acho que tem lugar pras duas, um dia toca uma, no outro toca a outra”, diz Lindolfo Liberal, da banda de pífanos São José, de Ingazeira, vizinha a Tabira. Se um dia a Igreja Católica resolver dispensar as bandas de tocar nas novenas, há um risco muito grande de se acabar a tradição, principalmente na zona rural do Nordeste. O visual sempre foi um diferencial das bandas de pífano – principalmente das nordestinas, que sempre procuraram ressaltar a identidade regional em suas vestimentas. Hoje, principalmente no agreste, é possível ver bandas usando o chapéu de couro estilizado como se usava no cangaço – é o caso da Banda de Pífanos Zé do Estado de Caruaru.

Patrimônio

Eu faço pife, toco pife, vendo pife, como o dinheiro do pife e depois de velho fico pifado João do Pife

Mas foram as pesquisas tropicalistas de Gilberto Gil que deram visibilidade nacional às bandas de pífano, em particular à de Caruaru, denominada em seu primeiro LP, no início dos anos 1970, como Banda de Pífano Zabumba Caruaru. A lendária orquestra, atualmente com todos os músicos residindo em São Paulo, fez história na música popular brasileira, e o próprio Gil já falou que o movimento tropicalista teve influência das bandas de pífanos. Em 1972, a banda aparece no LP Expresso 2222, de Gil, tocando Pipoca Moderna, primeira faixa do disco.

Novenas

Há uma relação de afinidade e dependência entre as bandas de pífanos e ritos católicos, principalmente em época de novenas – encontro para orações, realizado durante o período de nove dias, em devoção à Santíssima Trindade, à Virgem Maria, a anjos ou santos. No Nordeste, novenas ocorrem praticamente durante todo o ano. Entre os mais festejados, estão São Sebastião, São José, Santo Antô44

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nio, Santa Luzia, Nossa Senhora de Lourdes. O repertório tocado são os benditos, as rezas, muitas vezes acompanhando por beatas e devotos cantando em latim. Nas novenas a banda é de grande importância – desde o momento da abertura, na colocação do mastro da bandeira, até o final dos nove dias. As festas religiosas ajudam na salvaguarda das bandas de pífanos e no orçamento familiar dos músicos. “Uma novena sem banda de pife é quase um velório”, diz José Cesário, da banda Frei Damião, de Tabira, no sertão, a 400 quilômetros de Recife. São nove dias tocando pela manhã bem cedinho, depois ao meio-dia, e finalizando às 19h com outra reza. Depois sai o lado religioso e começa o forró. Músicos tradicionais já observam, porém, algumas mudanças nas conduções das novenas por parte de alguns párocos, que às vezes pechincham no ínfimo cachê recebido pelos músicos e chegam a colocar o CD da banda de pífanos para tocar no carro de som, em vez de contratá-la. Também já se veem filarmônicas nas festas, geralmente oferecidas por um p­ olítico

Ao longo de décadas, várias atividades direcionadas para a catalogação, preservação e salvaguarda das bandas de pífanos vêm sendo desenvolvidas por profissionais de diversos estados e até do exterior. São ações significativas, como: Tocando Pífanos, encontro nacional de bandas, atualmente em sua quinta edição; Pífanos e Mamulengos, ciclo itinerante de apresentações musicais e oficinas de confecção de pífanos já realizadas no Distrito Federal, Bahia, Minas Gerais, Alagoas, Sergipe e Pernambuco; Eu Toco­Pife, programa de apresentações musicais e oficinas de confecções de pífanos nos estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Paraná, Distrito Federal e Ceará; Pífanos nas Escolas, oficina de confecção de pífanos na rede pública de Recife e outras regiões de Pernambuco; e a gravação do CD João do Pife e Banda Dois Irmãos de Caruaru. João e banda chegaram a participar de shows, oficinas e palestras no festival Sous-Fifres de Garonne, na cidade francesa de Saint Pierre D’Aurillac. O festival reúne músicos de várias partes do mundo, com foco no pífano. O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan, ligado ao Ministério da Cultura), apoiou uma pesquisa com a finalidade de mapear e

catalogar as bandas de pífanos do agreste e sertão, em regiões de Moxotó, Pajeú e Central de Pernambuco. O objetivo foi subsidiar o registro do instrumento como Patrimônio Cultural Imaterial brasileiro. A partir dessas atividades se constituiu um acervo importante e rico, composto de CDs, fotos, vídeos, instrumentos, livros, sites, e formou-se uma rede de informações fundamentais para a manutenção da tradição musical e troca de novos conhecimentos sobre o tema. No mais recente Tocando Pífanos, encontro de bandas realizado em outubro, em Olinda, para estabelecer uma nova forma de difusão dos grupos de pífanos, ficou demonstrado que, apesar de um aparente esquecimento nos últimos anos, as bandas de pífanos permanecem sólidas e com profunda empatia junto ao público. O encontro de bandas de origens, musicalidades, performances e características diferentes, com acesso gratuito à população, foi um dos mais importantes do gênero no país, aliando apresentações musicais com debates, palestras, lançamento de livros, CDs e DVDs e venda de produtos afins. A partir do evento e do mapeamento e pesquisa dos pífanos de Pernambuco, ficou evidente que já era o momento de solicitar ao Iphan o pedido de registro das bandas de pífanos como Patrimônio Imaterial. O tocador Sebastião Biano, de 96 anos, líder da Banda de Pífanos de Caruaru, disse que foi dado um grande passo para a preservação dessa cultura no Brasil. Espera-se que o reconhecimento como patrimônio – processo que deve levar ainda pouco mais de um ano para se concretizar – repercuta no interesse pela difusão e aprendizado da expressão musical pelos mais jovens, fazendo com que a tradição não desapareça. E que as bandas tenham atenção especial dos órgãos de cultura, nos incentivos para projetos de salvaguarda. Um exemplo dessa necessidade da formação está na Banda de Pífanos Vitoriano Jovem, de Caruaru. Incentivada pelo mestre Marcos do Pífano, a banda estuda semanalmente no terraço da casa do próprio Marcos e já formou 15 jovens, de 8 a 16 anos.

LEGADO A Banda de Pífanos Vitoriano Jovem já formou cerca de 15 jovens, de 8 a 16 anos REVISTA DO BRASIL

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Manifesto humanista 46

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urante um ano e meio, o fotógrafo Araquém Alcântara percorreu 39 municípios de 18 estados brasileiros acompanhando alguns dos 18 mil profissionais do programa Mais Médicos. O resultado dessa viagem aos rincões do país é o livro Mais Médicos, que, em 219 páginas, ilustra atendimentos onde antes o acesso a tratamentos não existia ou era escasso. Araquém, um dos principais fotógrafos de natureza do Brasil e do mundo, afirma que o livro é uma espécie de manifesto humanista: “O programa é uma mudança de paradigma. Um velhinho vê o médico passar

na rua, conversa com ele e diz que o remédio está fazendo bem. Ele sabe que ali tem um porto seguro”. Com curadoria de Eder Chiodetto e textos de Marcelo Delduque e Xavier Bartaburu, o livro foi feito com apoio institucional do Ministério da Saúde e teve distribuição inicial voltada para entidades da área. Araquém prevê que a obra deve chegar às livrarias na primeira quinzena de março. Também estão previstas exposições em cidades como São Paulo, Brasília e Genebra, além de Cuba. Por Xandra Stefanel REVISTA DO BRASIL

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curtaessadica

Deep Gold, de Julian Rosefeldt

Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Bia e Juju

Protagonistas: pensando e agindo

Dicas de leitura

Meninas superpoderosas

Magia musical

Cena do documentário Yorimatã

Luhli e Lucila traduziram a liberdade para a linguagem musical. Juntas, as cantoras e multi-instrumentistas fizeram mais 800 composições, que foram regravadas por importantes nomes da MPB, como Ney Matogrosso, Nana Caymmi, Tetê Espíndola e Zélia Duncan, entre outros. O documentário Yorimatã conta a fascinante história da dupla: da intensa conexão com a natureza e seus mistérios, a inspiração vinda da umbanda, a vivência hippie, a construção dos próprios instrumentos musicais e o preconceito que sofreram por terem formado, com o fotógrafo Luiz Fernando Borges da Fonseca, uma família considerada, na época, fora dos padrões. Com previsão de estreia em 31 de março em São Paulo e no Rio de Janeiro, o filme de Rafael Saar resgata toda a magia e a coragem de duas talentosas mulheres à frente de seu tempo 48

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LUIZ FERNANDO BORGES DA FONSECA

Muitos desafios permeiam o cotidiano de milhares de meninas pelo mundo todo. No minidocumentário Essa é a Minha Vez!, nove garotas brasileiras de 14 a 19 anos dividem histórias de violência, racismo, preconceito, desigualdade de gênero e pobreza. Longe de serem vítimas, elas contam como estão se tornando protagonistas de suas próprias histórias e como têm influenciado suas comunidades com ações que combatem o preconceito, seja de gênero, cor ou de situação social. O filme é resultado das ações do projeto homônimo, da ONG Plan International Brasil. A iniciativa, que teve início em 2015, visa ao envolvimento e à visibilidade do papel das meninas no contexto dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável, firmados na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas. Com entrevistas das jovens e dos organizadores do projeto, o curta compõe um emocionante retrato e prova que existem muitas meninas em todos os cantos do país, pensando e agindo. Assista ao filme completo em http://bit.ly/essa_e_a_minha_vez.

As irmãs Beatriz e Juliana do Canto e Mello adoram ler. E decidiram criar o canal Dicas da Bia e da Juju no YouTube, com sugestões sobre os livros que mais gostaram. A brincadeira começou em setembro do ano passado, com Como se Fosse Dinheiro, da escritora Ruth Rocha. Desde então, elas não pararam mais: Rolim, de Ziraldo, Turma da Mônica em Contos de Andersen, Grimm e Perrault, de Mauricio de Sousa, e Acorda Rubião! Tem Fantasma no Porão!, de Lilian Sypriano, são algumas das sugestões das meninas. Elas fazem curtas resenhas sobre as obras, leem uma página ou outra e criam um suspense para instigar a curiosidade de seus espectadores-mirins: “Se você quer saber mais sobre a história, tem que ler o livro”.

A cara de uma época Uma cidade marcada por duas guerras e dividida por um muro durante quase três décadas, Berlim, a capital da Alemanha, acabou se transformando em uma das mais respeitadas comunidades artísticas do mundo. A exposição Zeitgeist – A Arte da Nova Berlim, em cartaz até 4 de abril no Centro Cultural Banco do Brasil Rio, apresenta fotografias, pinturas, videoarte, performances e instalações de 29 artistas contemporâneos lá radicados. Com curadoria de Alfons

Hug, a mostra propõe “trilhas” conceituais que abordam questões ligadas ao tempo, a busca da beleza na destruição, a eterna construção e demolição que perpassam o cotidiano da cidade, a ocupação (muitas vezes ilegal) de espaços baldios, a cultura underground e a cartografia de Berlim depois da queda do Muro. De quarta a segunda, das 9h às 21h, na Rua 1º de Março, 66, centro, Rio de Janeiro. Mais informações: (21) 3808-2020. Grátis.

Viva Carolina! A professora de Língua Portuguesa e doutoranda em Educação Sirlene Barbosa percebeu que, em seu ambiente escolar, poucos conheciam a história e a obra da escritora Carolina de Jesus, autora de Quarto de Despejo e Diário de Bitita, entre outros. Sirlene se juntou ao artista plástico e quadrinista João Pinheiro para fazer o livro Carolina em HQ, que deve ser lançado em maio pela editora Veneta. Com mais de 70% do livro pronto, os autores criaram uma página na internet para dividir o processo de produção

do livro: http://carolinaemhq.tumblr.com. “A importância fundamental desse projeto, no nosso ponto de vista, é trazer à tona a história de uma mulher, negra, mãe de três filhos e chefe de família que, apesar de todos os problemas sociais que poderiam deixá-la à margem da vida, utilizou pontas de lápis, pedaços de papéis, cadernos velhos, enfim, de objetos que a auxiliassem a escrever, para arrombar a porta da literatura brasileira: estreita, branca e, basicamente, da elite”, afirma João, responsável pela ilustração da obra. REVISTA DO BRASIL

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MOUZAR BENEDITO

Frases de defeito, quem nunca cometeu?

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uem está na chuva é para se queimar”, dizia Vicente Matheus, folclórico presidente do Corinthians nos anos 1970. Suas frases ficaram célebres. Por exemplo: quando times queriam tirar o jogador Sócrates do Corinthians, dizia: “O Sócrates é invendável e imprestável”. Em outra ocasião, passou-se a exigir que defensores fossem bons como atacantes e vice-versa: “Jogador atual tem de ser igual pato, que é ao mesmo tempo aquático e gramático”. Mas muitas frases atribuídas a ele são de autoria de outras celebridades futebolísticas. Por exemplo, a famosa “agradeço à Antártica pelas Brahmas que ela me deu” foi dita na verdade pelo ponta Valdomiro, do Internacional, após receber prêmio de melhor em campo em um Grenal. Lembro de um jogador português que chutava bem com o pé direito, mas o esquerdo só servia para andar. Um dia definiu o jogo com um golaço de canhota e depois declarou: “Chutei com o pé que estava mais à mão”. E não é só do futebol – nem só da TV, como a personagem Magda, de Marisa Orth – que saem essas besteiras. Lá pelo final do milênio passado, funcionários da Assembleia Legislativa de São Paulo coletaram um monte de frases publicadas em jornais e revistas e outras ditas por gente dali e de fora, inclusive por um assessor parlamentar muito bem pago, autor de joias. E tudo circulou pela internet, com o título “frases de defeito”. A coletânea é muito extensa e tem coisas como armário enrustido, fratura do cartão de crédito, adoçar o cheque, a pessoa entrou de chupetão, a verdade veio à tônica, chupar o pau da barraca, vestir como manda o frigorífico, projétil de lei... Para dizer a verdade, o hábito é antigo. Em 1968, até nas muitas assembleias estudantis feitas na Rua Maria Antônia, em frente ao prédio da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da USP. Qualquer um podia chegar lá, pedir a palavra e discursar. Um estudante do Mackenzie – onde a maioria era desafeta dos da USP – subia de vez em quando ao palanque para pedir moderação. E tentava mostrar otimismo. Fingia que não havia ditadura. Uma vez, para falar que era preciso acreditar mais no Brasil e no governo, tascou: “Gente, o Brasil é tão grande que vai de norte a sul e de leste a oeste”. Outra história curiosa aconteceu em visita da rainha E ­ lizabeth ao Brasil. O presidente-general Costa e Silva tomou umas e, num brinde, mandou: “God… (não se lembrava do “save” e sapecou) God, God, the queen!”. Na época do “milagre brasileiro”, a classe média começou a 50

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viajar mais para o exterior. Todos os dias aconteciam coisas muito “interessantes”. Uma brasileira foi à França, conheceu algumas pessoas em Paris e quis fazer um doce brasileiro para elas. Acho que arroz-doce. Precisava de canela, procurou na cozinha e não tinha. Resolveu ir comprar na farmácia (!). Achava que para ser entendida era só colocar um acento no final das palavras, transformando-as em oxítonas. Pediu “canelá”. O homem não entendia e ela repetia “canelá, canelá”. Continuava não entendendo. Para “facilitar” o entendimento dele, ela passou a bater com o nó de um dedo na sua própria canela e continuou falando repetidamente “canelá…” Texto original publicado no Blog da Boitempo. bit.ly/mouzar_boitempo

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