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MUITO ALÉM DA MERENDA A coragem dos estudantes em defesa do ensino público

LENINE EM VERSO E PROSA A educacão é o caminho para salvar o homem de si mesmo

nº 117 maio/2016 www.redebrasilatual.com.br

Golpe quer impor projeto derrotado várias vezes nas urnas, com um governo de fichas-sujas em busca de impunidade. Direitos e avanços sociais estão em risco

ERA ISSO O QUE VOCÊ QUERIA?


98 9FM ,

GRANDE SÃO PAULO

As notícias que as outras não dão e as músicas que as outras não tocam. 24 horas no ar, todos os dias www.redebrasilatual.com.br/radio soundcloud.com/redebrasilatual

PROGRAMA NACIONAL BRASIL 7h às 10h, de segunda à sexta Jornal em rede nacional com as rádios da Empresa Brasil de Comunicação Sidney Resende (Rio de Janeiro)

Marilu Cabañas (São Paulo)

Walter Lima (Brasília)


CARTAS

ÍNDICE 4. Editorial

Mídia Há de se democratizar a mídia no Brasil. Caso contrário a nossa “democracia” estará sempre vulnerável aos interesses da família Marinho e de outros três ou quatro grupos que controlam a comunicação no país. (“Notícias do Brasil”, artigo de Lalo Leal, ed. 116) Dirceu Cateck

Impeachment sem crime engana os brasileiros e humilha o país

10. Brasil

Os riscos e os desafios das esquerdas no novo cenário

16. Atitude

As lições e a obstinação dos estudantes por uma escola melhor

22. Mauro Santayana

Democracia Briga de elite? Com quase todos os direitos trabalhistas ameaçados? (“Na hora da verdade”, ed. 116) Heloysa Dantas

Estado de direita mata o Estado de direito. O fascismo avança

26. Entrevista 1

O filósofo Renato Janine e os dilemas entre ética e jornalismo

Clima 10 anos com recordes sucessivos. Estamos indo para o décimo primeiro. Em estatística, uma sequência de seis ou mais recordes significa uma certeza de 99% de que algo esta agindo e está fora de controle. E vem o politiqueiro com ares de quem sabe que isso é passageiro. Quando derretermos a Groenlândia e os mares começarem a invadir as cidades costeiras, talvez acreditem que está havendo enchentes... pelo mar. E não estou falando de 50 anos como alguns gostam de dourar a pílula. (“No modelo econômico o planeta ferve”, ed. 116) Roberto Chiandotti

30. Memória

Criativa e corajosa. O jornal Exfez história em plena ditadura

34. Entrevista 2

Lenine: “Caminhamos para um futuro desesperançoso”

38. Tecnologia

Haverá robôs que interajam com o homem sem concorrer com ele?

42. Cidadania

ALBERTO CARDOSO

O Começo da Vida: filme estuda papel da infância em nosso futuro

Detalhe do Palacete São Cornélio

44. Cultura

O triste abandono dos tesouros históricos pelo Rio de Janeiro

Seções Na Rede Lalo Leal

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Legalidade Ética para esquerda. Petrobras para a direita. (“A nova rede da legalidade”, ed. 115) Antonio Paulo Costa Carvalho O objetivo do Aécio, FHC, Serra, A. Nunes, enfim, dos psdbistas, não é o poder e sim não serem investigados... O Janot que o diga!!! Por isso essa rota perdida após as eleições e esse monte de paspalhadas, pois não têm como objetivo traçado o poder e sim escaparem de investigações(...) Carlos Prado

Corrupção Os corruptores começaram a ser criminalizados em 2013!!! Isso demonstra o quanto estamos atrasados como Nação em matéria de combate à corrupção. De qualquer maneira, antes tarde do que nunca. (“Ética empresarial e a traição das elites”, de Marcio Pochmann, ed. 116) Luís Carbonário Ajuste Basta buscar junto aos devedores da Previdência o ressarcimento das dívidas que a situação se normalizará. Este debate não pode ser feito neste momento. (“Mais um alvo errado do ajuste”, ed. 115) Carlos C. Protagonistas Muito bom ver essa nova geração de negras brasileiras empoderadas. Maravilhosas! (“Protagonistas, sim!”, ed. 115) Atineli Chico Buarque Chico, um dos grandes artistas brasileiros. O festival de 1966 foi um daqueles momentos épicos da nossa MPB. A Banda do Chico e a Disparada do Vandré, na voz do inesquecível Jair Rodrigues! (“O disco do Chico”, ed. 115) Victorio Heróis Que o PhCôrtes continue nos mostrando mais heróis negros! Minha filha de 3 anos é fã dele, e todos nós aqui em casa também! (“Meus heróis são negros”, ed. 114) Luciana Bento

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Marcio Pochmann

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Emir Sader

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Curta essa Dica

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Crônica: Flávio Aguiar

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carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.

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MARCELLO CASAL JR/AGÊNCIA BRASIL

EDITORIAL

País enganado e humilhado Derrotados sucessivamente nas urnas e envolvidos em escândalos negligenciados pela mídia e pelo Judiciário, eles deram o golpe. E representam uma ameaça aos direitos trabalhistas e às políticas sociais 4

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ara o semanário alemão Die Zeit, o afastamento de Dilma Rousseff foi “declaração de falência do Brasil”. No mesmo país, o site do jornal Der Spiegel, sob a manchete “Um país perde”, observou que o drama em torno da presidenta “é um vexame”, e que os políticos brasileiros apresentaram um “espetáculo indigno a prejudicar de forma duradoura as instituições e a imagem do país”. No The Guardian, os ingleses leram, sobre Dilma: “Traída por seu companheiro de chapa, condenada por um Congresso contaminado por corrupção e insultada pelo abuso que sofreu como prisioneira da ditadura militar, sofreu um grande golpe”. O afastamento de um governo por meio de impeachment sem crime é apenas uma face do golpe que humilhou o Brasil. A outra será o pesadelo representado pelo “novo” governo. A temporada de terror com objetivo de inviabilizar o projeto eleito em 2014 começou ainda na eleição, acirrou-se durante os 131 dias

de segundo mandato e culminou com a imposição de um governo ilegítimo. Montada pelos partidos conservadores – sem voto para eleger presidente, mas com farto patrocínio para dominar o Legislativo – com a cumplicidade de setores do Judiciário, a aventura golpista impõe um programa derrotado. Com a tradicional parcialidade da imprensa comercial, o tema da corrupção em breve será esquecido tão logo se esgote a caça aos petistas. Antes de o golpe se consumar, pesquisas de opinião já apontavam grande rejeição a um comando de Temer. Não é para menos. Em outra investida da imprensa estrangeira, a britânica BBC levantou sua ficha. Foi citado por delatores da Lava Jato, que apontaram relações do ex-vice com pessoas e empresas que participaram do esquema de corrupção na Petrobras, como as empreiteiras OAS e Camargo­Corrêa. Nesta, aliás, segundo a BBC, a Polícia Federal encontrou em outra operação, Castelo de Areia, documentos que


citam 21 vezes o nome de Temer ao lado de quantias que somam US$ 345 mil. Nem esta operação valeu para o Superior Tribunal de Justiça, nem a Procuradoria-Geral da República pediu investigação ao Supremo Tribunal Federal. O Tribunal Superior Eleitoral também não admitiu incluí-lo nas quatro ações que o PSDB moveu para tentar cassar Dilma. Tampouco o ex-presidente da Câmara aceitou a cumplicidade do ex-vice nas “pedaladas” que assinou quando substituiu a titular. E nem mesmo a decisão do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo que o julgou ficha-suja por irregularidades que praticou em campanhas eleitorais de correligionários atrapalhou sua posse. A aliança formada para dar sustentação ao golpe também não é lá modelo de confiabilidade. Quase todos os partidos que infernizaram os governos Lula e Dilma por dentro, como integrantes da “base aliada”, indicaram nomes ao “novo” ministério e permanecem governistas. Com o agravante reforço da dupla PSDB-DEM, responsável pela cartilha neoliberal nos anos 1990. Assim, o que esperar de nomes como Alexandre de Moraes no Ministério da Justiça – e portanto no comando da Polícia Federal? Aos inimigos, perseguição; aos amigos, como Geraldo Alckmin, Aécio Neves, Beto Richa – que têm em comum a plumagem tucana e gestões envoltas em denúncias não investigadas de roubalheira –, blindagem. Na dúvida, falam por si sua atuação como secretário da Segurança Pública de Alckmin em São Paulo, estado onde o genocídio de jovens negros e pobres espanta o mundo e a repressão a movimentos sociais e da juventude lembra os piores momentos da ditadura. Ou como advogado de clientes que vão de membros do PCC a Eduardo Cunha. Além do fato de que 350 deputados, 60 senadores e seis integrantes da equipe ministerial de Temer têm o nome envolvido em alguma investigação, as figuras de ­José Serra no Ministério das Relações Exteriores, Henrique Meirelles na Fazenda e Romero Jucá no Planejamento não trazem bons presságios. O primeiro é um dos mentores das privatizações durante os governos de Fernando Henrique Car-

doso, e está presente em denúncias de negócios impuros jamais investigadas, reunidas a fundo no livro-reportagem A Privataria Tucana, de Amaury Ribeiro Júnior. Defensor da entrega do pré-sal a companhias estrangeiras, sua história o levou a perder duas eleições presidenciais, em 2002 e em 2010. Sua indicação significa distanciamento dos Brics, da América Latina e da África. E a volta à subordinação aos Estados Unidos. Meirelles comandou o Banco Central durante quase toda a era Lula. É adorado no mercado financeiro, recusou cargo no segundo governo Dilma (agora se sabe por quê) e deve começar a colher nos próximos meses os frutos do ajuste fiscal que minou a popularidade da presidenta afastada. Os primeiros deles, a queda da inflação e da taxa de juros. O banqueiro é quer reforma previdenciária que eleve o limite de idade, reforma trabalhista e não aprecia a política de valorização do salário mínimo. Jucá é referência da bancada ruralista. Foi líder do governo que traiu no Senado, tentou o quanto pôde alterar a conceituação de trabalho escravo e transferir do Executivo para o Legislativo a prerrogativa sobre demarcação de terras indígenas. Foi cúmplice das “pedaladas” que derrubaram Dilma e terá como colega na Esplanada o sojicultor e bilionário Blairo Maggi, ávido “ativista” pelo fim do licenciamento ambiental. Estão, enfim, recompostas as forças políticas que durante a era FHC fizeram do desemprego, do arrocho salarial e dos ataques aos direitos dos trabalhadores as âncoras da estabilidade econômica sem distribuição de renda e da política fiscal sem desenvolvimento. De volta ao poder, sem voto, e prontas para voltar à carga. O cenário exigirá dos movimentos sindical e sociais, e partidos ligados a causas populares, ampla unidade para organizar a resistência aos retrocessos. Estão aí os renovados movimentos da juventude por educação e cidadania a servir de exemplo. Sem perder de vista a mobilização da sociedade de ocupar todas as frentes de ação – no Parlamento, na Justiça e nas ruas – para que a ordem democrática se restabeleça nesses 180 dias derradeiros para que a presidenta eleita retome seu devido lugar.

www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza e Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gabriel Valery, Helder Lima, Hylda Cavalcanti, Rodrigo Gomes e Sarah Fernandes Arte Iconografia Leandro Siman Sônia Oddi Capa Fotos Romerio Cunha/VPR (Temer), Cacalos Garrastazu/Fotos Públicas (Serra), Isaac Amorim/MJ (Alexandre de Moraes), Fabio Rodrigues Pozzebom/ABr (Romero Jucá) e Valter Campanato/ABr (Henrique Meirelles) Mídia Ninja (Estudantes) Jailton Garcia/RBA (Lenine) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3046 8047 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 (Carla Gallani) Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes. Tiragem 120 mil exemplares

Conselho diretivo Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Antônio Laércio Andrade de Alencar, Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos Decourt Neto, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Douglas Izzo, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eliana Brasil Campos, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Glaucus José Bastos Lima, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, João Carlos de Rosis, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Raimundo Suzart, Raul Heller, Roberto von der Osten, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson Franca dos Santos. Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior REVISTA DO BRASIL

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redebrasilatual.com.br

Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

Crianças da ditadura O livro Depois da Rua TÂNIA RÊGO/AGÊNCIA BRASIL

FHC foi depor na Polícia Federal sem cobertura da imprensa

Gente diferenciada Não teve circo, jornalistas correndo atrás do carro, TVs ao vivo nem helicópteros. Quase passou despercebido o depoimento do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB) na Polícia Federal, em 29 de abril. Trata-se de inquérito para investigar suspeitas de crimes envolvendo o envio de dinheiro de FHC ao exterior para a jornalista Mirian Dutra, amante com quem ele teve um filho. A mesada seria paga por meio de “laranja”, a empresa Brasif Exportação e Importação. A assessoria da PF explicou que FHC desfrutou de discrição dada sua condição de ex-presidente. Bem diferente do espetáculo de 4 de março, quando policiais chegaram à casa de Lula às 6h, depois das equipes das tropas de reportagem. bit.ly/rba_fhc_na_pf

Tutoia, do jornalista Eduardo Reina, lança um pouco de luz em uma história comum a ditaduras latino-americanas, mas pouco falada no Brasil: o sequestro de bebês de perseguidos políticos durante o período autoritário. O autor questiona: por que houve tantos episódios dessa natureza em países vizinhos, como na Argentina, e praticamente nenhum no Brasil? A rua citada no título fica em São Paulo, e abrigou a Operação Bandeirante e o DOI-Codi, órgãos de repressão. “O país não se esforça. Desde o fim da ditadura, em 1985, nenhum presidente foi mais firme e determinou uma investigação mais aprofundada sobre esse tema”, diz Reina. bit.ly/rba_sequestros Mais 212.467 jovens eleitores somente neste ano

ROBERTO NAVARRO/ALESP

MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

Mauro Bragato: leite superfaturado também não repercutiu

Também não teve direito a espetáculo o processo sofrido pelo deputado estadual paulista Mauro Bragato (PSDB). Ex-prefeito de Presidente Prudente (1997-2000), no interior do estado, ele foi processado por superfaturar o preço do leite destinado pelo município a crianças carentes. Começou em 2002. Em 2004, virou secretário de Habitação de Geraldo Alckmin, e desde 2005 exerce mandato de deputado. No início de maio, teve a cassação determinada pela Justiça em última instância. Leite, merenda, tucano, corrupção, silêncio... Não soa familiar? bit.ly/rba_mauro_bragato 6

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Jovens eleitores

Campanha da Justiça Eleitoral, realizada entre o final de março e o início de abril, sensibilizou 212.467 jovens de 16 a 18 anos incompletos, que tiraram seu título. O total de eleitores com menos de 18 anos soma aproximadamente 1,5 milhão, para um total de 145 milhões. Quase um quarto (23,9%) tem de 45 a 59 anos, enquanto 22,7% estão na faixa de 25 a 34 anos. O primeiro turno das eleições municipais ocorre em 2 de outubro. Se necessário, o segundo está marcado para o dia 30. bit.ly/rba_eleitor


Dores sem fim

MARCELO CAMARGO/AGÊNCIA BRASIL

Moradores da zona sul de São Paulo participam da 18ª Caminhada pela Vida e pela Paz

Movimento Mães de Maio cobra a investigação de cerca de 600 mortes e desaparecimentos, a punição dos executores e a desmilitarização das polícias

Em outubro, a morte de Douglas Martins Rodrigues, de 17 anos, por um policial militar, completará três anos. E ainda tem desdobramentos. Um promotor requereu a devolução dos autos do Fórum de Santana (zona norte de São Paulo) à Justiça Militar. “Fiquei muito abalada, porque isso significa que o máximo que vai acontecer por ele ter matado meu filho é a perda da farda”, disse a mãe do jovem, alvejado com um tiro no peito. “Por que o senhor atirou em mim?”, frase dita ao policial, originou campanha contra a violência. “Uma punição severa poderia salvar outros jovens.” bit.ly/rba_douglas_sp Outro episódio de violência policial impune completou uma década. Entre 12 e 20 de maio de 2006, centenas de pessoas foram assassinadas durante ação para “restabelecimento da ordem” pelo estado de São Paulo, a pretexto de uma guerra contra o crime organizado. Desde então, familiares de vítimas, no movimento Mães de Maio, cobram a investigação de cerca de 600

mortes e desaparecimentos, a punição dos executores e a desmilitarização das polícias. “Em uma semana mataram mais do que em um ano inteiro”, afirma Débora Maria Silva. “Os crimes de maio deram certo. Por isso seguem ocorrendo.” bit.ly/rba_crimes_de_maio Depois de quatro décadas, o caso Vladimir Herzog chegou à Corte Interamericana de Direitos Humanos. A defesa do jornalista assassinado em 25 de outubro de 1975 no DOI-Codi paulista quer que o Estado apure efetivamente o que aconteceu, identifique e responsabilize os envolvidos. Ivo Herzog, filho de Vlado, espera que a repercussão internacional do caso ajude o Brasil a rever sua política de segurança pública e estimule um debate sério sobre o fim das polícias militares. “A segurança pública vem sendo tratada secularmente da mesma maneira, em que a população é inimiga da polícia. O que aconteceu 40 anos atrás continua acontecendo.” bit.ly/rba_herzog_cidh

PAULO PINTO/AGENCIA PT

Torcidas na democracia

Criminalizados pela mídia: ato da Democracia Corintiana contra o golpe

Para Chico Malfitani, um dos fundadores da Gaviões da Fiel, a intolerância e a perseguição contra as torcidas organizadas não são novidade, mas repetição de um processo histórico já vivenciado por ele há 47 anos, quando iniciou o movimento que daria origem à chamada Democracia Corintiana. “Em 1969 ou hoje é a mesma coisa: as torcidas organizadas e os movimentos de esquerda foram e continuam sendo criminalizados pela mídia”, diz. “A organização do povo incomoda. O futebol reúne muitas pessoas e por essa grandeza as torcidas estão sendo de novo criminalizadas. Nossa torcida nunca foi só para gritar pelo time, mas também para defender o interesse do povo.” bit.ly/rba_torcidas REVISTA DO BRASIL

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LALO LEAL

O jornalismo vive

Existem os que romperam com o sistema empresarial e foram buscar formas alternativas de exercer um jornalismo honesto, comprometido com os interesses mais amplos da sociedade

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o acompanhar a mídia corporativa brasileira tem-se a impressão de que o jornalismo acabou, transformado em simples propaganda política. As reportagens aprofundadas, produzidas por equipes formadas por jornalistas tarimbados, foram substituídas por frases às vezes desconexas de entrevistados escolhidos a dedo ou pela simples transcrição de escutas fornecidas por autoridades policiais ou judiciárias. Esse é o cenário nacional formado por um número reduzido de empresas jornalísticas, todas alinhadas ideologicamente com os interesses das camadas dominantes da sociedade brasileira e internacional. O que não quer dizer que o espírito jornalístico da busca da verdade e da luta por transformações sociais tenha desaparecido. Dois filmes recentes mostram um pouco das tensões entre esse espírito e a realidade empresarial da mídia. Spotlight – Segredos Revelados, vencedor do Oscar deste ano, retrata a luta de um grupo de jornalistas para revelar os crimes de pedofilia cometidos por membros da igreja de Boston, nos Estados Unidos, que estavam sendo acobertados por seus dirigentes. A reportagem só pôde ser produzida e publicada graças ao apoio firme do editor do jornal, o Boston Globe, dando aos jornalistas a retaguarda necessária para seguir em frente, mesmo diante de ameaças e ataques. Já em Conspiração e Poder, uma outra investigação realizada por jornalistas da rede de televisão CBS, dos Estados Unidos, para um dos programas de maior audiência do país, o 60 Minutes, o desfecho é diferente. O trabalho revela a proteção dada aos filhos de famílias ricas para livrá-los da guerra do Vietnã, entre os quais estaria o futuro presidente George W. Bush. Em plena campanha eleitoral, a emissora sofre fortes pressões políticas e retira o apoio dado aos jornalistas, que acabam deixando a empresa. Revela-se, em ambos os casos, o espírito jornalístico no enfrentamento de interesses poderosos, tomando partido sem deixar de lado a objetividade. Por aqui, 8

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na mídia corporativa, isso acabou. Nem experiências abortadas, como a ocorrida na CBS, existem mais. Os jornalistas brasileiros hoje, diante do reduzido e concentrado mercado de trabalho, estão divididos em três “tipos ideais”, segundo a formulação weberiana: os sabujos, verbalizadores da ideologia dos seus patrões, recompensados geralmente com bons salários e com o sonho de pertencer à mesma casta de quem os paga. Os trabalhadores, um amplo contingente de profissionais necessitados dos seus empregos para sobreviver ainda que submetidos à duras condições de trabalho e sob forte controle ideológico. Merecem respeito, ainda mais quando se sabe que, muitos deles, de forma anônima, municiam com informações de suas redações a mídia independente. Fornecem, além disso, pautas importantes, de cunho político ou social, censuradas nos seus locais de trabalho. No terceiro tipo encontram-se os que romperam com o sistema empresarial e foram buscar formas alternativas de exercer um jornalismo honesto, comprometido com os interesses mais amplos da sociedade. Tendo muitas vezes que viver de outras fontes de renda, esses jornalistas montam sites e blogues, fundam revistas e formam coletivos capazes de ampliar, com muita competência, o restrito círculo de informações existente no país. Há muitos jovens entre eles, recém saídos das faculdades, renovando a certeza de que o jornalismo não acabou. São herdeiros da imprensa alternativa existente durante a última ditadura, com a vantagem de poder operar novas tecnologias, mais ágeis e mais baratas do que aquelas dos seus antecessores. Desses cabe lembrar a “turma do Ex-“, tema de recente tese de doutorado defendida por Dalva Silveira, na PUC de São Paulo (leia sobre esse tema nas páginas 30 a 33). É a história de um jornalismo ágil, dinâmico, atraente, comprometido com a luta por uma sociedade solidária e livre de tabus. Um espírito que está presente hoje na Mídia Ninja, nos Jornalistas Livres, na agência Pública, em vários sites e blogues e também nesta Revista do Brasil.


MÍDIA

O pulo da rádio A Rádio Nacional chega enfim a São Paulo. E a RBA alcança, enfim, o Brasil

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Marilu Cabañas

Sidney Rezende

Colibri Vitta

REGINA DE GRAMMONT/RBA

MAGNO ROMERO/EBC

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uarta-feira, 4 de maio, 7 da manhã. Naquele dia e horário, quem sintonizava a Rádio Brasil Atual, pelo dial ou pela internet, ouvia os primeiros sons de um novo jornal diário. Era a estreia do Nacional Brasil, programa da Rádio Nacional, comandado pelo jornalista Sidney Rezende. Uma das nove emissoras da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), a Nacional, com sede no Rio de Janeiro, padecia até então de um problema crônico: não tinha presença em São Paulo. Mas daquele dia em diante passou a ter, por meio da FM 98.9, da Rádio Brasil Atual, o canal de rádio da RBA. A parceria foi celebrada entre a EBC e a Fundação Sociedade Comunicação, Cultura e Trabalho, mantenedora da Rádio Brasil Atual. “A Rádio Nacional ganha espaço na praça de São Paulo, a RBA multiplica sua produção de conteúdo e o radiojornalismo brasileiro ganha fôlego, com pautas, diversidade e pluralidade que os ouvintes não encontram mais nas outras emissoras”, diz o diretor da RBA, Paulo Salvador. O noticioso Nacional Brasil vai ao ar de segunda a sexta-feira, das 7h às 10h. O programa é comandado dos estúdios do Rio por Rezende, dividido em blocos nacionais e locais. Em São Paulo, o noticiário é ancorado pela jornalista Marilu Cabañas, da RBA, e em Brasília, por Valter Lima, da EBC. Em seguida,­vai ao ar a renovada programação da RBA, em dois blocos que alternam notícias e programação musical – o primeiro entre 10h e 14h, comandado por Oswaldo Luiz Colibri

ANTONIO CRUZ/ABR

ARQUIVO PESSOAL

Valter Lima

Fabiana Ferraz

Vitta e Emerson Ramos, e o segundo, das 14h às 19h, por Fabiana Ferraz, também de segunda a sexta. A estreia da programação foi precedida por alterações estruturais que incluíram troca de antenas, transmissores mais abrangentes, links de internet, linhas de comunicação, “enfim, recursos que contribuem para a melhoria da qualidade técnica”, afirma Salvador. “A FM 98.9 está sintonizando melhor e, com a nova grade de programação, a tendência é elevar a audiência.” Para Colibri Vitta, diretor de programação, o novo momento da Rádio Brasil Atual permite a ampliação da grade com novidades para os ouvintes de to-

dos os horários, 24 horas por dia. “Há uma carência muito grande de credibilidade no noticiário e de música brasileira de qualidade. Vamos ocupar esse espaço. Ganhamos um noticioso altamente qualificado pela manhã. Uma combinação equilibrada­de música, notícia e bate-papo das 10h às 19h e opções de muito bom gosto de madrugada e nos fins de semana. Estamos dando um grande salto.” Além da região metropolitana da capital, na FM 98.9, os canais mantidos pela Fundação – iniciativa dos sindicatos dos Metalúrgicos do ABC e dos Bancários de São Paulo – alcançam o litoral paulista, pela FM 93.3, e o noroeste do estado, pela FM 102.7. REVISTA DO BRASIL

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São demais A derrubada do governo eleito em 2014 tem como objetivos abortar os avanços sociais e impõe aos movimentos populares o desafio de ampliar sua unidade. E de impedir que o país ande para trás

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esde pouco antes do meio-dia de 12 de maio – véspera de uma “13 sexta”, como muitos considerariam mais apropriado –, Michel Temer é o presidente interino do Brasil, no lugar da afastada Dilma Rousseff. Seus aliados esperam medidas urgentes, que incluirão boa dose de “sacrifício” pelo país. Os sacrificados podem e devem ser os de sempre, em termos históricos: trabalhadores e população de baixa renda. Um exemplo é a “solução” já admitida para combater o desemprego: ampliar a terceirização, aprovando um projeto cuja tramitação no Senado tende a se acelerar. “Ninguém vai para a mesa de cirurgia por gosto. O corte, o sacrifício, é para salvar o bem maior”, comentou o deputado, médico pediatra e vice-líder do partido na Câmara, Darcísio Perondi (PMDB-RS), conforme anotou o El País. O mesmo jornal lembrou que as insistentes investigações não conseguiram provar participação de Dilma em atos de corrupção. E fez ressalvas ao processo que culminou no impedimento. “Essa crise institucional coloca dúvidas mais do que razoáveis sobre a legitimidade que teria um novo presidente depois de um processo tão pouco habitual. O Brasil não pode se permitir semelhante espetáculo.” Mas o espetáculo foi montado. Na tarde do dia 12, Temer, o mesmo que dizia aguardar “respeitosamente” o desfecho da votação no Congresso, anunciava o ministério 10

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salvador, de perfil obviamente conservador, com destaque, entre outros, para Alexandre de Moraes na Justiça – o advogado era até então secretário da Segurança Pública de São Paulo, estado conhecido por sua relação pouco amistosa com movimentos sociais e manifestações públicas, pelo menos as identificadas com pautas progressistas. Outros nomes do “novo” governo são o senador Romero Jucá (PMDB-RR), no Planejamento, e de Geddel Vieira Lima (Secretaria de Governo). Jucá é relator do projeto que “flexibiliza” o conceito de trabalho escravo, enquanto Geddel é um dos citados na Operação Lava Jato. Tem ainda o ex-governador e senador José Serra (PSDB-SP, Relações Internacionais), que defende mudanças na regra do pré-sal em benefício de companhias estrangeiras. Os primeiros passos causam preocupação com a possível perda de conquistas importantes obtidas nos últimos anos, em que pese a crise do período mais recente e a dificuldade do governo agora derrubado de encampar reivindicações populares. “Dilma Rousseff errou muito. Mas nem a soma dos seus erros pode justificar a fúria incivilizada que Aécio Neves desfechou logo depois de derrotado pelas urnas, para derrubada do governo legítimo”, escreveu, na edição de 12 de maio da Folha de S. Paulo, o colunista Janio de Freitas. “A par dos erros, o governo Dilma levou a avanços significativos contra problemas sociais. Aí já se notam recuos deploráveis. Por efeito do quase ano e meio de degradação

DIREITOS RASGADOS Manifestantes no dia da saída de Dilma em 12 de maio: desrespeito à legalidade e receio de perder conquistas


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s os perigos econômica­desde o início do segundo mandato, com a ação destrutiva da oposição e a inoperância do governo, forçada em grande parte.” Em sua conclusão, o jornalista apontava motivações dos novamente donos do poder, lembrando ainda que mesmo os setores ricos nunca deixaram de ganhar, mesmo em tempos de redução da desigualdade: “Mas os que tomam o poder não trazem correções. São figurinhas fáceis. Vêm buscar o que deixaram de ter. E dar mais aos que não deixaram de ter mais mesmo nos governos de Lula e Dilma”. Ao sair do Palácio do Planalto, a própria Dilma­reconheceu que pode ter errado – mas reiterou a honestidade de sua biografia. “Não existe injustiça mais devastadora do que condenar um inocente. Esta farsa jurídica da qual estou sendo alvo é que nunca aceitei chantagem de qualquer natureza. Posso ter cometido erros, mas não cometi crimes. Estou sendo julgada por ter feito justamente tudo que a lei me autorizava fazer”, declarou. Pretexto para tirá-la da Presidência, as tais pedaladas são um recurso usado cotidianamente, inclusive pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Também é difícil acreditar que o combate à corrupção seja bandeira de quem retomou o poder em termos formais, ainda mais com vários investigados compondo a base de apoio de Temer.

SERGIO AMARAL/RBA

Renovar a esquerda

Um mês antes de o golpe ser consumado, durante debate na Universidade de São Paulo, o cientista político André Singer questionava o porquê de se derrubar um governo caracterizado pela conciliação. E concluía que se tratava de um “episódio maior” da luta de classes no Brasil. “O que se está tentando fazer é criminalizar o conjunto da alternativa popular no Brasil e tirá-la do cenário político talvez por muito tempo”, afirmou. O que fazer, então? “Estamos num processo pantanoso. A esquerda tem de rever tudo. Está sendo chamada a rever tudo, desde os ­paradigmas REVISTA DO BRASIL

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até sua atuação recente. Tem que rever métodos e formas de organização. Essa é a grande missão da Frente Brasil Popular”, diz o também cientista político Roberto Amaral, ex-presidente do PSB. “Não estou preocupado com os agentes, mas com a sobrevivência da esquerda.” No inesquecível 12 de maio, Amaral reforçou o papel da frente. “Vamos ampliá-la mais, e nesse movimento sair do isolamento para enfrentar o inimigo maior.” Também para o deputado federal Chico Alencar (Psol-RJ), de partido de oposição ao governo Dilma, mas que votou unanimemente contra o impeachment, as forças de esquerda precisam se ressignificar e se reciclar. “Em primeiro lugar, fazer uma profunda autocrítica e não se apegar ao autoengano.” Para Alencar, isso significa reconhecer erros políticos e de condução dos governos, desde Lula. Um desses erros, avalia, foi abandonar aos poucos a mobilização social e preferir os pactos, inclusive com forças conservadoras. “O fim do governo Dilma, mesmo para nós, do Psol, e olha que somos oposição, nos afeta. É preciso analisar por que, mais uma vez, na história da humanidade, um grupo mudancista com proposta de transformação social, quando chega ao poder do Estado, é transformado por ele e pelos mecanismos da dominação burguesa”, diz. Para a deputada federal Jandira Feghali (RJ), do PCdoB, partido que manteve postura aguerrida na base do governo, o sistema político é a verdadeira face da crise. “Quando a esquerda passa a participar do governo, parte dela se institucionaliza e parte se mantém ativa dentro do movimento social. E ao assumir um governo de coalizão, isso cria contradições. Como governo, tem que assumir muitas vezes posições de uma coalizão que não é majoritariamente de esquerda. O que está em crise é o presidencialismo de coalizão”, diz a parlamentar. Na opinião do coordenador em São Paulo da Central de Movimentos Populares (CMP), Raimundo Bonfim, foram o movimento social e os movimentos populares, e não os partidos, que assumiram um papel de protagonismo no processo de crise e golpe de Estado. Ele destaca que, independentemente do resultado institucional do embate político, a unidade foi e é fundamental. “A criação da Frente Brasil P ­ opular 12

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FUTURO AMEAÇADO Governo interino pode impor agenda de retrocesso, prejudicando os mais pobres


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SERGIO AMARAL/RBA

foi muito salutar, e os historiadores que haverão de estudar o período vão ter que citar o papel dos movimentos sociais no enfrentamento dessa conjuntura”, diz Raimundo. “Hoje é um período de resistência. Nesse momento, atuar para manter os nossos direitos já será uma grande vitória, para num segundo momento dar um passo a frente.” “Nós todos nos unificamos para defender a democracia porque sabemos que o golpe é contra a Dilma, contra o Lula, mas principalmente contra os trabalhadores, para retirar direitos, acabar com a CLT, com a política de valorização do salário mínimo, com os benefícios. O golpe é contra os direitos das mulheres, o direito à liberdade, dos jovens, dos negros, dos índios”, resume o presidente da CUT, Vagner Freitas. “São os Bolsonaros e os Felicianos da vida, e tantos mais, que querem impor uma agenda de retrocesso social e trabalhista no Brasil. Michel Temer é um golpista e entra uma agenda de quem o financiou: a Fiesp, a CNI, a CNA”, diz. “Os indicativos da Ponte para o Futuro (programa do PMDB) apontam para aquele período que nós derrotamos nas eleições, de privatização, congelamento salarial, fim das politicas públicas”, acrescenta o presidente da

CTB, Adilson Araújo. Para a presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região, Juvandia Moreira, “os empresários articulam um conjunto de medidas que vão contra tudo o que a gente defende”. “Eles vão mexer na Previdência para aumentar o tempo para a aposentadoria, medidas que pretendem aumentar a terceirização de forma generalizada. As pautas que estão no Congresso nacional são terríveis e, se aprovadas, acabam com categorias de luta e organizadas, que têm direitos. Todos esses direitos estão em risco.” Consolidado o golpe, o também cientista político Wanderley Guilherme dos Santos defende uma resistência sem tréguas contra o novo poder estabelecido. “Michel Temer é um usurpador e seu governo não deve ser obedecido”, escreveu em seu blog, dois dias antes de o afastamento ser aprovado. “Ou a sublevação social pela democracia é submetida pela força (e aí o golpe, finalmente, será vitorioso), ou a coerção servirá de combustível à sublevação. Então, de duas uma: ou Michel Temer renuncia e o STF convoca novas eleições ou as forças armadas intervirão.” Com reportagens de Anelize Moreira (Rádio Brasil Atual), Eduardo Maretti e Vitor Nuzzi

ALMOÇO CARO O PT não ousou aproveitar a popularidade recorde de Lula e das bem-sucedidas gestões de 2003 a 2010 para aprimorar sua política de alianças. Naquele ano, ao indicar Dilma para a sucessão, o partido apostou em privilegiar parceria que se revelou traiçoeira. Reportagem da RdB nº 45, de seis anos atrás, alertou REVISTA DO BRASIL

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No site da revista alemã Der Spiegel: “A insurreição dos hipócritas”

CNN 18/04/2016

Em abril, o insuspeito Joaquim Barbosa, ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, recomendou pelo Twitter que as pessoas assistissem à “excelente entrevista” do jornalista Glenn Greenwald, do The Intercept, a Christiane Amanpour, da CNN. E comentou: “Nesse vídeo você vai ver algo raro na imprensa brasileira hoje: informação objetiva, clara, sem viés politico”. Ali estão comentários que escasseiam nos meios tradicionais. A informação, por exemplo, de que mais de 350 deputados enfrentam acusações criminais. Ou a singela constatação de que, na sessão de 17 de abril, parlamentares envolvidos com a corrupção, a começar do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, aprovaram o processo de impeachment em nome do combate à corrupção – Greenwald lembrou que a própria Dilma não era acusada. A “coisa mais surreal” que ele já viu na profissão, conforme afirmou. Para o jornalista, embora o PT tenha se envolvido em casos de corrupção, como os demais partidos, o que acontecia no Brasil tinha outra explicação. “Os plutocratas, os ricos, sempre odiaram o PT”, disse. “Essa (impeachment) era a chance deles.” Mas afastar presidentes por serem impopulares ou por má gestão da economia é um risco para um país, lembrou. “É uma receita para coisas perigosas, quando você brinca com a democracia, especialmente em um país como o Brasil, que tem uma democracia muito frágil e jovem. É perturbador.” Com diferentes nuances, publicações estrangeiras também demonstraram preocupação com a situação política brasileira. A sessão da Câmara reforçou essa visão. O The New York Times observou que Dilma

DER SPIEGEL 18/04/2016

O Brasil surreal visto de fora

Na rede americana CNN: “Tempos de tumulto político no Brasil” e “Impeachment antidemocrático de Dilma”

– que não é acusada de se beneficiar financeiramente – seria derrubada por gente envolvida em corrupção, fraude eleitoral e violações de direitos humanos, “abrindo um debate nacional sobre a hipocrisia” entre os líderes políticos brasileiros. “A insurreição dos hipócritas”, definiu a revista alemã Der Spiegel. Para a publicação, a Câmara, usando meios questionáveis, pôs o Brasil em uma “robusta rota de direita”. O francês Le Monde, provocado por leitores, chegou a se questionar sobre um editorial publicado em 31 de março (no qual afirmava que o Brasil não vivia um golpe de Estado), por ter

omitido o envolvimento de defensores do impeachment com corrupção, incluindo Eduardo Cunha, e por não abordar com profundidade o papel da mídia brasileira. E citou um relatório de 2013 da ONG Repórteres sem Fronteiras, que chamou o Brasil de “país dos 30 Berlusconis” (referência ao ex-premiê e magnata italiano Silvio Berlusconi), pela concentração no mercado de mídia. Mesmo a revista norteamericana The Economist, crítica do governo e defensora da renúncia de Dilma, comentou que o impeachment era injustificado pela falta de provas de um crime, parecendo “apenas um

pretexto para expulsar um presidente impopular”. A publicação via um precedente preocupante basear o afastamento em protestos de rua. Ao comentar o iminente afastamento de Dilma, após a “inenarrável” sessão da Câmara, o diretor do jornal português Público Manuel Carvalho também tinha dificuldades de perceber legitimidade em Temer. “Com uma presidente afastada após ter recebido o mandato de 54 milhões de cidadãos há apenas um ano e meio, custa perceber como poderá ser substituída por um político que 90% dos brasileiros rejeitam e que, se fosse a eleições, obteria apenas 1% a 2% dos votos. Com a crise e o despautério dos políticos a acirrar a raiva, é difícil entender como poderá o Brasil aceitar ser governado por um ex-vice presidente que está envolvido até o tutano em suspeitas de corrupção”, escreveu o jornalista em 19 de abril. Ao constatar que a descrença na política alimenta a desesperança, ele lembrou que o novo inquilino do Palácio chegou lá com um “precioso empurrão” de Eduardo Cunha. E deu um diagnóstico duro: “Ao contrário do impeachment do presidente Fernando Collor de Mello, desta vez não há a fé numa redenção da democracia brasileira porque Dilma não está acusada de corrupção nem o vice que se prepara para substituir, Michel Temer, se compara ao estatuto moral de Itamar Franco”. Bem diferente da chamada de capa do jornal O Estado de S. Paulo em 12 de maio, para o qual um dos desafios de Temer seria “encerrar a era do PT no poder”. Alguns poderiam pensar que o desafio seria governar.


MARCIO POCHMANN

Um novo 1932

Não desejam, portanto, tributar o “andar de cima” da sociedade, praticamente isento, mas cortar parcela dos gastos públicos que se direciona ao “andar de baixo” do Brasil

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da sociedade, praticamente isento, mas cortar parcela dos gastos públicos que se direciona ao “andar de baixo” do Brasil. Um programa econômico e social como esse dificilmente teria apoio político para ser apresentado, por exemplo, no certame eleitoral. As derrotas aos defensores do neoliberalismo nas eleições passadas são exemplos constatados. Diante disso, somente com o ingresso de um governo sem voto popular, derivado do movimento golpista que reage contrariando a mudança da realidade brasileira, cujos sinais de diminuição da miséria e da inversão da curva da desigualdade eram inquestionáveis. Para seguir a ampliação das políticas de inclusão social, o gasto público não deveria ser contido, ao contrário do que os neoliberais apontam como desajuste fiscal. Nesse sentido, as proposições deles e o ajuste fiscal apontam, como também nos anos de 1990, para redução dos direitos sociais. Com isso, a desobrigação dos gastos nas áreas da educação, saúde, assistência e previdência social. Também como em 1932, a maior parcela dos brasileiros poderá se posicionar melhor, tendo em vista que as mobilizações observadas até o momento no Brasil de hoje concentram-se fundamentalmente na parte dos rendimentos intermediários para cima da pirâmide social. Novos eventos apontarão para isso.

WILSON DIAS/AGÊNCIA BRASIL

concretização do movimento golpista em curso de interrupção do governo Dilma, democraticamente eleito em 2014, aproxima-se, guardada a devida proporção, da reconhecida contrarrevolução ocorrida em 1932 (ou revolução constitucionalista). Naquela oportunidade, a aristocracia agrária posicionou-se como força principal do atraso, defendendo a volta da política econômica e social reinante durante a vigência da República Velha (1889-1930) e reagindo radicalmente ao novo agrupamento de classes sociais estabelecido pela ascensão de Getúlio Vargas, por meio da Revolução de 1930. Nos dias de hoje, a emergência de um governo ­Temer encontra-se ungido pelas mesmas forças políticas do atraso que foram derrotadas continuamente nas últimas quatro eleições presidenciais (2002, 2006, 2010 e 2014). As evidências do momento apontam para o interesse no retorno do acordo de classes sociais que governou o Brasil durante os anos de 1990, quando a política econômica e social em vigor era a do neoliberalismo. Em outras palavras, a fase dos lucros gordos e dos salários magros, da pobreza alta e consumo popular baixo, cuja liderança brasileira encontrava-se no ranking dos países de maior desigualdade do mundo. Em vez de o salário mínimo liderar o aumento real no conjunto das demais rendas verificado desde 2003, ele havia se transformado nos anos de 1990 na âncora do empobrecimento das massas trabalhadoras. Mas os neoliberais envolvidos no atual acordo com Temer querem mais. Sem segredos, eles revelam que não há mais condições de toda a população seguir no mesmo “ônibus” do orçamento público nacional, exigindo, por consequência, a realização de reformas (trabalhista, previdenciária, entre outras) que viabilizem o desembarque dos segmentos mais pobres das contas públicas. Dessa forma, mais recursos sobrariam para agradar, como sempre, aliás, os mais ricos. Não desejam, portanto, tributar o “andar de cima”

TEMPOS PASSADOS As evidências do momento apontam para o interesse no retorno do acordo de classes sociais que governou o Brasil durante os anos de 1990, a fase dos lucros gordos e dos salários magros REVISTA DO BRASIL

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Estudantes, coração e coragem Embora lutem por merenda decente, por investigação e punição a desvios de recursos, o que move os secundaristas é a batalha pela qualidade na educação. E eles começam a dar aula de política

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trégua que os estudantes deram ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin­ (PSDB), durou 99 dias. Começou em 19 de janeiro, quando deixaram a última das 213 escolas ocupadas em novembro – o movimento sem precedentes que atrapalhou os planos do tucano de fechar escolas e cortar a oferta de ensino médio. E terminou em 28 de abril, com a ocupação da sede 16

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do Centro Paula Souza (CPS), autarquia que administra o ensino técnico estadual. As principais reivindicações são fornecimento de merenda onde passam a maior parte do dia estudando, vales para custear­ o almoço enquanto forem equipadas cozinhas nas escolas técnicas do estado e instalação de Comissão Parlamentar de Inquérito na Assembleia Legislativa para apurar denúncias de corrupção na compra de merenda escolar.

Naquele mesmo 19 de janeiro, o Ministério Público (MP) e a Polícia Civil de São Paulo haviam deflagrado uma operação para investigar um esquema de superfaturamento em contratos da merenda. Entre os supostos recebedores de propinas há gente próxima de Alckmin: o presidente da Assembleia, Fernando Capez (PSDB), e o ex-chefe de Gabinete da Casa Civil Luiz Roberto dos Santos, o Moita. Outro fato pôs lenha nas brasas que ain-


FOTOS MÍDIA NINJA

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HISTÓRIA A Assembleia Legislativa de São Paulo, casa que protege os governos tucanos há 20 anos, foi ocupada com uma pauta clara: CPI da Merenda. Entusiasmados, os estudantes não se intimidaram com a reação do governo e fizeram festa na saída

da ardiam: Alckmin passou a promover uma “reorganização disfarçada”. Conforme denúncia do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial no Estado de São Paulo (Apeoesp) ao Tribunal de Justiça e ao MP, a Secretaria da Educação fechou mais de 1.600 turmas após o início do ano letivo. A juíza Carmen Oliveira, da 5ª Vara da Fazenda Pública do Tribunal de Justiça, afirmou haver indícios gravíssimos de que Alckmin descumpre a ordem judicial que vetou a reorganização. Os alunos das escolas técnicas estaduais­ (Etecs), muitos dos quais saíram em apoio aos da rede regular em 2015, também sofrem com superlotação, êxodo de professores, laboratórios e equipamentos sucateados e sem merenda, conforme denúncias do Sindicato dos Trabalhadores do Centro Paula Souza (Sinteps). “O Geraldo fala que as Etecs são a menina dos olhos do governo. Mas não faz nada pela gente”, disse uma aluna da Etec do Mandaqui, zona norte da capital. A queixa é antiga. Em março do ano passado, alunos de duas Etecs de Sorocaba, interior do estado, já protestavam. O tradicional arroz com feijão, salada e algum tipo de carne que recebiam foi substituído por barra de cereal e biscoito. Professores do Departamento de Nutrição da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) chegaram a publicar carta por uma merenda decente. No início de maio, as ocupações se espalharam. “O estopim são os problemas na merenda, mas há os cortes de 78% no orçamento das escolas técnicas, onde a situação é precária. Não temos quadra, cozinha para preparar refeições nem trabalhadores para servir o lanche”, afirmou uma aluna do terceiro ano da Etec de Pirituba, na capital.

Ocupação

Enquanto um grupo resistia a intimidações policiais no CPS, outro surpreendeu ao ocupar a Assembleia na tarde de 3 de maio, quando o pedido de abertura da CPI contava com a assinatura de 24 deputados, oito a menos do que o necessário (uma semana depois, o número chegava a 27). “A gente ocupou com uma pauta muito clara, a abertura imediata da CPI para investigar o roubo da merenda”, disse o presidente da União Paulista dos Estudantes Secundaristas (Upes), Emerson Santos, o Catatau. Naquela tarde, o plenário da Casa ganhou a cara do movimento secundarista, que reflete a diversidade da população. Meninos e meninas, negros, transexuais, moradores das periferias, alunos de escolas públicas, interessados em História e Arte e conectados às redes sociais tomaram os bancos – onde a maioria dos parlamentares há duas décadas blinda o Executivo –, entre cobertores, livros e bandeiras, prometendo resistir até conseguir a CPI. “A militância não se faz com medo, mas com noção de consequência. É preciso olhar para o amanhã e dizer ‘vou até o final’. Os jovens podem ter pouca voz, mas se nos unirmos conseguiremos alcançar nosso objetivo”, disse Edson, 18 anos, à reportagem da Rede Brasil Atual, que entrou na ocupação por convite dos mesmos estudantes que barraram a entrada da Globo. “Um amigo me escreveu: ‘Vamos fazer uma coisa revolucionária, se quiser participar, me chama inbox’. E aqui estamos fazendo essa coisa maravilhosa.” “Existe um discurso de combate à corrupção, mas quando você fala em ações práticas para resolver o problema, e vê que os deputados se negam a assinar a CPI, você pergunta: cadê a coerência?”, questionou Bianca, de 22 anos. “Pensar em ocupar a Assembleia Legislativa parecia impossível, mas nada é impossível para quem quer mudar a sociedade. Foi isso que me apaixonou no movimento social: não existem barreiras. Lutando, você pode conseguir o que quiser.” “Nós vamos estar nos livros de história no futuro. É a primeira vez que a Assembleia foi ocupada”, vibrou a estudante de Direito Maria Beatriz, de Sorocaba. “Podíamos estar em casa com a família, mas REVISTA DO BRASIL

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LUCAS DUARTE DE SOUZA/RBA

ROVENA ROSA/AGÊNCIA BRASIL

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CORAGEM O movimento dos estudantes foi mais uma vez alvo da PM paulista, mas dessa vez o exemplo já havia ganho o Brasil

estamos aqui, dormindo no chão e tomando esporro de policial porque acreditamos em um bem maior. Quando você vê a luta sendo travada não há como ficar de fora.”

Ressurreição

“Hoje esses jovens ressuscitaram a ­ ssembleia Legislativa, que estava morA ta”, avaliou o padre Júlio Lancellotti, da Pastoral do Povo de Rua, que na primeira noite da ocupação levou pães e chocolate quente preparados por pessoas em situação de rua. Em 5 de maio, em reação à reintegração de posse do CPS, marcada para o dia seguinte, e contra cortes e su-

cateamento da educação, os estudantes ocuparam a Diretoria Regional de Ensino Centro-Oeste, em Perdizes, na zona oeste da capital. “Não adianta tirar a gente do Paula Souza porque a luta é maior que isso”, afirmou o secundarista Cauê Borges. Duas conquistas, porém, já estavam praticamente certas no dia 6, quando o CPS e a Assembleia foram desocupados. O compromisso de uma CPI e a distribuição de refeição a todos os alunos de período integral de todas as Etecs sem cozinha a partir de agosto. Em 13 de maio, com violência e sem mandado judicial, a PM

desocupou todos os espaços. Para o escritor e humorista Gregório Duvivier, a mobilização que levou às ocupações na Assembleia e da sede administrativa do Centro Paula Souza é exemplo para a ação política frente ao grave momento político que o país enfrenta. “Os jovens estão ensinando a gente como se faz política”, disse. “Onde eu estava na compra da reeleição de Fernando Henrique Cardoso (em 1998)? Por que eu não estava ocupando nada?” Com reportagens de Cida de Oliveira, Gabriel Valery, Helder Lima e Sarah Fernandes

Ecos no Brasil e no Paraguai As vozes dos estudantes ecoam forte em várias regiões do país. E fora dele. Depois de alunos goianos ocuparem mais de 28 colégios contra a proposta do governador tucano Marconi Perillo de entregar a gestão para organizações sociais – que acabou suspensa por falta de entidades capacitadas –, o movimento chegou ao Rio de Janeiro em 21 de março. No começo de maio, eram 70 unidades ocupadas. “Faltou respeito aos 18

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alunos e aos professores no Rio de Janeiro. Há inicio de privatização do colégio que convive com salas superlotadas; 53 alunos onde cabem 35”, disse o estudante Michel Policeno da Silva em entrevista à Rádio Nacional. “Pela primeira vez, estamos com eles na luta, em vez de ficar em casa durante a greve.” Outros colégios começaram a se inflamar. “Depois das ocupações nos chamaram para conversar. Ocupar é o ato mais

extremo a que um estudante pode chegar.” No Ceará, o Centro de Atenção Integral à Criança e ao Adolescente Maria Alves Carioca, em Fortaleza, foi o primeiro a ser ocupado, em 28 de abril. Na sequência vieram mais quatro na capital e uma em Juazeiro do Norte. Até passarem de 40 na segunda quinzena. “A gente ocupou por melhoria da educação e do tratamento do governo com os alunos.” Em 11 de maio a Escola

Estadual Coronel Afonso Emílio Massot, em Porto Alegre foi acupada pelas mesmas razões. No Paraguai, onde o movimento continua por alimentação gratuita e distribuição de livros, as mais de 70 ocupações tiveram início em 3 de maio, pela renúncia da ministra da Educação e Cultura, Marta Lafuente. A ministra renunciou no dia 5, acusada de envolvimento em esquema de superfaturamento em contratos de água e alimentos.


VALTER CAMPANATO/ABR

AVISO Manifestantes cercam o Congresso em 17 de junho de 2013: reformas

Um ano que começou em 2013 Manifestações de três anos atrás têm consequências na atual situação política do país. E suas origens ainda são motivo de reflexão

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omeçaram relativamente tranquilas, alcançaram dimensões inimagináveis e tornaram-se o principal fato político de 2013. As manifestações de rua contra aumento de tarifas do transporte coletivo viraram um protesto generalizado contra o Estado, as autoridades e políticos tradicionais, cujas consequências são sentidas até hoje, inclusive em relação a suas motivações. Para o escritor Leonardo Boff, a crise financeira deixou diversas lições, uma das expressa por aqueles protestos. “As manifestações de 2013 e as atuais mostraram claramente: não queremos mais uma democracia de baixíssima intensidade, uma sociedade profundamente desigual e uma política de nego-

ciatas. Nas manifestações também os os políticos da oposição foram escorraçados. Igualmente movimentos sociais organizados. Queremos outro tipo de Brasil, diverso daquele que herdamos, que seja democrático, includente, justo e sustentável”, analisou, em artigo. Para Boff, é preciso cobrar uma democracia participativa, “construída de baixo para cima com forte presença da sociedade organizada, especialmente dos movimentos sociais”. E o Estado nacional deve ser reinventado. “Como foi montado historicamente, atendia as classes que detêm o ter, o poder, o saber e a comunicação dentro de uma política de conciliação entre as oligarquias, deixando sempre o povo de fora”, criticou, defendendo uma reforma política, “com nova constituição, fruto da representação nacional e não apenas partidária”. Para o ex-ministro Gilberto Carvalho, as manifestações de 2013 “foram um primeiro grito de insatisfação com o processo todo da política institucional”. Começaram de forma “autêntica e importante”, a partir do Movimento Passe Livre (MPL), “e depois naturalmente elas se configuraram em um outro processo com uma presença muito forte de classe média e um elemento REVISTA DO BRASIL

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DANILO RAMOS/RBA

ERRO DE ESTRATÉGIA Armando Boito Júnior: é fato que os protestos começaram por iniciativa de setores populares, organizados no MPL, com uma reivindicação também popular. “Mas, embora não seja frequente, não é de todo raro um movimento popular acabar sendo confiscado”

conservador, já emendando depois com a questão da Copa do Mundo”. Foi um grito de alerta, acredita Carvalho. “Deixava bem claro que era preciso que o governo mudasse sua atitude e ampliasse sua capacidade de escuta e levasse em conta os clamores da sociedade civil, particularmente no que diz respeito à vida urbana, ao estresse provocado pelo consumo, a necessidade de repensar a cidade, toda a mobilidade urbana, a ação política no sentido de um combate muito mais duro à corrupção”, avalia. Ele discorda da visão de muitos, dentro do governo, de que se tratava apenas de uma reação de uma “elite branca”, já que a campanha de ódio promovida pela mídia também chegava em setores populares. “Apesar da resposta que a presidenta procurou dar (com aquelas bandeiras da reforma política, mobilidade urbana, campanha contra a corrupção), foram respostas que não se concretizaram e não deram o resultado que nós esperávamos.” Não aconteceram, por um lado, por “certa arrogância dos políticos”, diz o ex-ministro. “As instituições, seja o Parlamento, o Executivo, o Judiciário, são muito autossuficientes e no nosso caso, especificamente no Executivo, faltou essa sensibilidade, essa percepção de que era preciso mudar radicalmente o nosso modo de agir.” O deputado federal Chico Alencar (Psol-RJ) usa uma imagem para analisar a evolução dos acontecimentos que se iniciaram em junho de 2013 e “desaguaram” nas eleições de 2014 e no segundo mandato de Dilma. “Em 2013 tudo foi contesta20

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do, inclusive a mídia hegemônica e a representação política em geral. Aquele grande rio das manifestações de 2013, a grande correnteza que arrastava tudo, em vez de desembocar num oceano, nas eleições de 2014, se dividiu em dois grandes afluentes que acabaram se traduzindo na disputa de segundo turno entre Dilma e Aécio. O impeachment é uma continuidade dessa grande torrente que se dividiu.” Na opinião do parlamentar, as motivações que desencadearam a mobilização da juventude, num primeiro momento simbolizadas no protesto contra o reajuste das tarifas de transporte, se mantêm em 2016, após a vitória da direita na votação da Câmara dos Deputados no dia 17 de abril. “O grande problema hoje é que a questão essencial, mudar a relação do Estado com a sociedade, para um Estado não privatizado, a serviço não de empreiteiras, mas da população, não está colocada pelo PMDB, pelo Michel Temer, e isso também não foi realizado efetivamente pelo segundo governo Dilma, que apresentou propostas regressivas de ajuste fiscal.” Seja como for, o deputado do Psol acredita que os acontecimentos que se precipitaram no contexto do golpe consumado, podem provocar o ressurgimento de grandes manifestações contra o estado de coisas a que o país chegou. Para ele, o “espetáculo” da votação de 17 de abril e seus desdobramentos no Senado tendem a “ampliar a negação do sistema político dominante”. “Não descarto a possibilidade de essas águas refluírem e logo, logo, voltarem em uma grande corrente de contestação de


DANILO RAMOS/RBA MEMÓRIA EBC

CARONA Direita e mídia foram para as ruas introduzindo outras reivindicações. A PEC 37, que regulamentaria o Ministério Público, foi retirada da pauta do Congresso como resultado das manifestações

tudo. O núcleo do sistema vai ser atacado brevemente. Ele está se disfarçando numa moldura de mudança que é um engodo e a correnteza pode voltar forte.” Ele lembra que a aceitação de Michel Temer pela população é “mínima”. Para Armando Boito Júnior, professor de Ciência Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), as manifestações de junho de 2013 “foram confiscadas pela direita e fortaleceram o campo neoliberal ortodoxo”. Segundo o professor, é fato que os protestos começaram por iniciativa de setores po-

pulares, organizados no MPL, com uma reivindicação também popular, a redução da tarifa dos transportes. “Mas, embora não seja frequente, não é de todo raro, na história, um movimento popular, com reivindicação popular, acabar sendo confiscado”, diz. Ele cita a revolta da Vendeia (1793), após a Revolução Francesa, como exemplo. Segundo ele, os manifestantes e o MPL “cultuavam o espontaneísmo”, eram contrários aos chamados verticalismo e centralismo e defendiam que as decisões deveriam ser o mais horizontalizadas possível. “Junto com esse espontaneísmo vinha uma indefinição programática e organizativa. Um movimento que faz esse culto do espontaneísmo é vulnerável à operação política de ‘confisco’. Se as reivindicações não estão claras, já que a única clara era a suspensão da tarifa, não havia um programa que definisse o movimento com objetivo progressista claro, de esquerda.” Outro dado relevante, para o professor, é que, à medida que o movimento espontâneo cresceu, junto com a negação da política e dos partidos tradicionais, as agremiações de esquerda acabaram sendo os alvos, já que as outras não insistiram em se apresentar com suas bandeiras e camisas. “Como os únicos partidos que queriam marcar presença nas manifestações eram de esquerda, o discurso e a ação contra os partidos em geral significou, na verdade e na prática, apenas o discurso e a ação contra os partidos de esquerda.” Nesse contexto, a direita percebeu uma brecha para entrar. “E entrou”, diz Boito. A direita e a mídia entraram no contexto e foram para as ruas introduzindo outras reivindicações, como a luta contra a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 37, que regulamentaria o Ministério Público e depois foi retirada da pauta do Congresso como resultado das manifestações. A mídia tradicional, então, passou “a oferecer ao movimento uma palavra de ordem, ‘mais saúde, mais educação’, muito genérica”. “São palavras de ordem que não significam absolutamente nada colocadas nesse nível de generalidade. Se fosse, por exemplo, por aumento do orçamento do Estado para educação pública, eu queria ver se a Globo iria divulgar como palavra de ordem. Então a grande mídia, principalmente a Globo, ofereceram essa palavra de ordem e foram desviando o movimento. A narrativa que a TV apresentava passou a ser a da insatisfação e a da crítica ao governo. Feitas as ressalvas – e a principal é que a revolta da tarifa teve perfil popular – podemos dizer que 2015 (com o crescimento das manifestações da direita) tem raízes em 2013.” Para Gilberto Carvalho, a Operação Lava Jato de início se revelou com grande potencial de revelar aquilo a corrupção endêmica e histórica. Mas posteriormente a operação tornou-se “partidarizada” e passou a ter caráter de perseguição. “Mas diante disso tudo era mais do que importante que a gente mudasse a nossa posição. A sociedade tem de vir para dentro do poder, nós temos de ouvir mais e estão surgindo novas energias que merecem ter essa escuta, e levar em conta suas posições também”, diz o ex-ministro. Com reportagens de Eduardo Maretti e Helder Lima REVISTA DO BRASIL

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MAURO SANTAYANA

O que fazer com o fascismo

Nesse absurdo país em que o Estado de Direito foi substituído pelo Estado de Direita, e não se pode ter mais liberdade de expressão ou de opinião, o que irrita não é o ódio, mas a inação

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uerendo ou não, o voto do Sr. Jair Bolsonaro no plenário da Câmara, homenageando, aos gritos, o golpismo, a tortura, e fazendo alusão ao sofrimento físico e ao terror sofridos por Dilma Roussef quando de sua prisão – ilegal, por ilegal ser o regime – à época do regime militar, foi o ápice emblemático, o marco, o símbolo, a evidência, de uma situação histórica cristalina e incontornável. Descarado, despudorado, estúpido, violento, irracional, com centenas de milhares de votos e milhões de simpatizantes, muitos deles organizados em uma miríade de grupos que vai de saudosistas e apologistas da tortura e dos assassinatos de opositores políticos a fundamentalistas religiosos corruptos, nascidos da exploração da fé, do voto e do bolso da parte mais pobre e menos informada da população – sem oposição, sem controle por parte do Judiciário, que a ele se alia por numerosos braços, e da polícia, que lhe fornece candidatos e simpatizantes – o fascismo veio para ficar e ocupa já um espaço próprio na sociedade brasileira, desafiando abertamente a Democracia e o que ela tem de mais importante, essencial, libertário, humanístico, civilizatório. A questão inadiável, que se coloca, para agora e os anos de eventual pós-petismo, é a seguinte: o que fazer com o fascismo? Denunciá-lo e isolá-lo, como a absurda excrescência que é em nosso modo de vida e no nosso espectro político? Tentar articular uma frente possível, para enfrentá-lo? Ou permitir que se instale, como legado do nosso passado colonialista e escravagista, “normalmente”, na vida do país, e que abra caminho para o poder, ajudando a isolar e a desconstruir, institucionalmente, as forças socialistas e nacionalistas, sabotando-as, e destruindo-as, e eliminando-as, praticamente, institucionalmente, da vida nacional? Por que se chegou a esse ponto de escancarado desafio às instituições e ao Estado de Direito – com 22

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o beneplácito de uma mídia parcial e partidária, e o silêncio e a omissão do Legislativo e do Judiciário, aí incluído o Supremo Tribunal Federal, que não disse “gato” a respeito da fala de Bolsonaro? É fácil procurar culpados no campo dos inimigos da Democracia, como a velha mídia entreguista, “elitista”, venal e reacionária, que estereotipa o negro, o gay e a mulher que diz defender, em suas novelas e programas de televisão. Também é cômodo atribuir esse estado de coisas ao próprio fascismo e a seus expoentes surgidos nos últimos anos do ventre de um anticomunismo tosco, ignorante, imbecil que vão, do que há de mais abjeto na imprensa brasileira a filósofos de bolso, cantores de rock e astrólogos, passando por pastores caçadores de passarinhos e sacerdotes católicos fundamentalistas, com ligações com o exterior. Mas isso equivaleria a culpar uma hiena por ser uma hiena, um abutre por ser um abutre, um escorpião por ser um escorpião. O fascismo não é razoável, nem cordato, nem racional. Com ele, não há como ceder ou negociar. Se o fosse, não seria fascismo. A culpa pela irresistível ascensão da extrema direita – e não há outro termo, nos aspectos quantitativo e qualitativo, que possa descrever com mais propriedade o atual processo – deve ser procurada entre aqueles que deveriam, por natureza, ter – mais que vocação – a necessidade de defender a Democracia e aqueles que, no poder, tinham a obrigação, a responsabilidade histórica e ideológica, de combatê-lo, evitando que as coisas chegassem aonde estão. Tendo enfrentado o regime militar e procurado negociar o seu fim, com o movimento das Diretas Já e a eleição de Tancredo Neves para a Presidência da República, cabia às lideranças e partidos que conduziram esse processo ter promovido a defesa, didática, permanente, verdadeira, racional, dos valores democráticos junto à população, buscando também a renovação que fosse possível nos meios de comu-


WILSON DIAS/AGÊNCIA BRASIL

MAURO SANTAYANA

O PIOR DOS PIORES A absurda fala de Jair Bolsonaro na votação do impeachment equivaleu a um histórico show de strip-tease moral por parte da Câmara dos Deputados

nicação de massa - que desde antes dos governos militares, continuam basicamente os mesmos e são controlados pelas mesmas famílias – em benefício da pluralidade de opinião e da amplitude de informação, evitando que se instalasse no país um senso comum medíocre, rasteiro e estúpido, ditatorial. Mas não o fizeram. O Sr. Fernando Henrique Cardoso, que agora declarou que a fala do Sr. Jair Bolsonaro em defesa de um torturador ofende o país, não procurou contar, em seu governo, às novas gerações, o papel – a serviço também de interesses estrangeiros – do golpismo e do fascismo, pragas permanentes na história brasileira, no suicídio de Getúlio Vargas, na sabotagem e nas tentativas de golpe contra Juscelino ­Kubitscheck durante todo o seu mandato, na constante pressão contra Jango, até derrubá-lo, pela força das armas, em 1964. Assim como não o fez o PT. Nos 22 anos dos governos tucanos e petistas, nem sequer um miserável Dia da Democracia foi incluído

no calendário oficial, com direito a feriado, e, depois da sua instituição pela ONU, em 2007, para ser comemorado todos os dias 15 de setembro, sua existência sequer foi lembrada, em uma prosaica campanha do Tribunal Superior Eleitoral. Nesse absurdo país em que estamos vivendo, em que o Estado de Direito foi substituído pelo Estado de Direita, e não se pode ter mais liberdade de expressão ou de opinião, o que irrita não é o ódio irracional, sádico e sombrio dos apologistas do pensamento único, dos assassinatos e da tortura, mas a inação, a incompetência tática e a falta de visão estratégica – que nesse aspecto caracterizaram os últimos anos – daqueles que deveriam dar-lhe combate. A esquerda errou quando fingiu que não viu o que estava ocorrendo já na véspera da Copa do Mundo. Errou quando não reagiu aos insultos, aos atentados verbais, às calúnias, judicialmente. Errou quando entregou a internet à direita e à extrema-direita, permitindo que esta última a usasse como um fantástico instrumento de mobilização, mas também abandonando os portais de maior audiência, para que o fascismo, por meio de seus trolls, conquistasse para seus argumentos e mentirosos paradigmas, milhões de brasileiros que estavam começando a se “politizar” justamente naquele momento – com o acesso à internet – devido à inclusão social e digital promovida pelo próprio governo. Errou quando não compilou suas conquistas, com dados numéricos, incontestáveis – como o crescimento do PIB e da renda per capita ou a diminuição da dívida líquida de 2002 a 2014 – fazendo delas a base de um discurso e de um plano coerente de governo, que cobrisse, institucionalmente, a economia, a soberania, o desenvolvimento e a defesa. Errou quando não fez uma reforma política, digna desse nome, quando tinha poder e popularidade para isso, preferindo adotar, como governos passados, o fisiologismo, no convívio com o tipo de escolhos políticos que se viu na televisão no dia da votação do impeachment. E continua errando quando quer misturar alhos e bugalhos no mesmo saco de gatos e sair atirando como uma metralhadora giratória contra tudo e contra todos, em um momento em que já ninguém quer lhe dar a mão, e taticamente, há muito pouco a fazer para reverter a situação em que se encontra. Ao fazer isso, a esquerda – e o governo – está pedindo para ser isolada ainda e cada vez mais dos demais partidos e parte expressiva da “opinião pública”. E está fazendo exatamente o que dela esperam seus inimigos. Dando murro em ponta de faca. Deixando-se provocar e pautar, o tempo todo, pelos adversários e pelas circunstâncias. REVISTA DO BRASIL

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ROVENA ROSA/AGÊNCIA BRASIL

MAURO SANTAYANA

PERIGO NA ESQUINA O que nos preocupa, no risco que corre o país, não são os palhaços loucos, sempre subestimados e ridicularizados no início, como Hitler ou Mussolini, e seus genéricos locais, mas os psicopatas que medram à sua sombra, que os veem como líderes e exemplo messiânico, e acreditam piamente neles

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Estamos à vontade para criticar, porque cansamo-nos de alertar, nos últimos anos, insistentemente, em artigos como “O PT, o PSDB e a arte de cevar os urubus”, “Os Pilares da Estupidez”, e “De Golpes e de Labaredas”, para o que estava ocorrendo, do ponto de vista da degradação e da expansão geométrica dos ataques repetidos, premeditados, intencionais, contra a Democracia brasileira. É preciso denunciar o golpe institucional em curso? Sim. Mas não se pode simplesmente colocar trava na porta depois da casa arrombada e tentar fazer na saída do poder o que não se fez em anos em que se estava nele, do ponto de vista da defesa da Democracia, quando se viu calmamente, da janela, de braços cruzados, que a boiada estava indo, rês a rês, inexoravelmente, para o brejo. Tão prioritário quanto, senão muitíssimo mais importante do ponto de vista histórico e estratégico, é trabalhar com firmeza para não se isolar, perecendo, politicamente – o que seriampéssimo para a democracia brasileira – e tentar, em contraposição, ir isolando o fascismo com relação ao resto da sociedade, para evitar que Bolsonaro e, eventualmente, certo juiz de Curitiba – que tem sido incensado permanentemente pelos Estados Unidos – triunfem, direta ou indiretamente – transformando-se, na oposição ou no governo, em fiel da balança eleitoral e em um elemento de permanente chantagem e desestabilização, para qualquer um que venha a vencer as eleições presidenciais – agora, antecipadamente – ou em 2018. O que nos preocupa, no risco que corre o país, não são os palhaços loucos, sempre subestimados e ridicularizados no início, como Hitler ou Mussolini, e seus genéricos locais, mas os psicopatas que medram à sua sombra, que os veem como líderes e exemplo messiânico, e acreditam piamente neles.

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Esses se transformam na alma e no sustentáculo do totalitarismo, praticando os piores crimes, usando o discurso ideológico como desculpa para idolatrar o mal e desatar, doentiamente, o seu ódio, a sua devoção pela injustiça, pela dor e pela destruição de outros seres humanos. São eles, não em troca de voto, mas por acreditar apaixonadamente nas mentiras e mitos mais absurdos, que defendem a tortura e dizem que poderiam espancar, arrebentar e matar, como reles assassinos, em seus comentários nos portais e redes sociais. São eles que – não se iludam – poderiam tranquila e alegremente sujar suas mãos com o sangue de pessoas desarmadas porque elas pensam de forma diferente, ou de mulheres grávidas ou crianças indefesas, por serem filhos de seus adversários políticos, caso lhes dessem uma arma, um uniforme, um porrete, uma máquina de dar choque, uma carteira com o seu retrato e um emblema. Caberá à atitude dos grandes partidos, e das forças políticas, principalmente a esquerda, e de organizações da sociedade civil, como a OAB e a Igreja, determinar se a absurda fala de Jair Bolsonaro na votação do impeachment – que equivaleu a um histórico show de strip-tease moral por parte da Câmara dos Deputados – será vista, no futuro, como um marco fundamental para a ascensão política do que existe de pior na população brasileira, ou como o ponto de inflexão que provocou a reação da sociedade contra o avanço, até agora, paulatino, inconteste, inexorável, da fascistização do país. Mais do que quem vai “governar” a nação nos próximos meses – entre aspas mesmo, porque há cada vez menos condições de se administrar este país, ainda mais sob condições de pressão e chantagem permanentes – é isto que está em jogo neste momento.


EMIR SADER

Por que o Congresso brasileiro é tão ruim?

Não se poderá avançar sem desarticular a maioria de direita existente hoje e sem eleger uma maioria parlamentar progressista e a promiscuidade com os fatores de poder da direita – grandes empresas, mídia, associações como a Fiesp, a OAB. E a partir da utilização dos seus próprios mandatos, se reelegem de forma quase infinita. O objetivo maior de um parlamentar, uma vez eleito, é se reeleger. Do lado do movimento popular, que representa a imensa maioria da população, não há a tradição de eleger suas bancadas. Nem do lado sindical, nem do setor público, nem mesmo dos trabalhadores rurais. É como se a esquerda se acostumasse que o Congresso é ruim, que o espaço parlamentar é o da direita, no máximo de alianças que cooptem alguns setores. Mas agora que se viu a dimensão dos obstáculos que um Congresso conservador pode impor – desde atacar os direitos sociais dos trabalhadores, passando pela diminuição da maioridade penal, a avançar sobre os direitos das mulheres, além do risco de avançar sobre a Petrobras e o pré-sal, chegando até ao golpe branco –, os movimentos populares e sociais não podem mais seguir abandonando a disputa parlamentar para a direita. GUSTAVO LIMA/CÂMARA DEPUTADOS

O

s Congressos brasileiros nunca tiveram boa fama com o povo. A própria mídia, responsável pela eleição de Congressos ruins, se encarrega de desmoralizá-los, assim como a politica, o Estado e os governos. Quanto mais fracos, mais força terá o mercado e a própria mídia, como tutores dos governos. As estruturas politicas tradicionais no Brasil sempre se apoiaram nos parlamentares eleitos nos seus estados por meio de ações despolitizadas, de distribuição de benesses, de formação de associações fajutas, de cooptação de lideranças locais, de organização de redes de apoio baseadas nas vantagens materiais. Suas lideranças são locais, a partir das quais se elegem para os parlamentos estaduais ou nacionais, onde se perpetuam, em partidos sem identidade ou naqueles que vivem de negociar seu apoio aos governos, de que o PMDB é o exemplo clássico. Uma análise da composição do Congresso demonstra que eles são exatamente o oposto do que deveriam ser: enquanto o Executivo é eleito pelo ­voto majoritário, quem ganha, mesmo que por uma diferença pequena, vence, os Legislativos deveriam representar uma fotografia da sociedade, em toda a sua diversidade, tanto regional quanto social, étnica, etária. Mas ele tem sido o seu contrário. Quantos empresários compõem o Congresso e quantos trabalhadores? Estão no Congresso na proporção exatamente oposta em que existem na sociedade. Da mesma forma que a proporção do lobby do agronegócio por um lado e a presença dos trabalhadores rurais por outro. Ou dos representantes dos planos privados de saúde e os da educação privada por um lado, e os da saúde e da educação pública. Ou os homens adultos brancos, em proporção ao que são na sociedade, de forma amplamente majoritária, os jovens, as mulheres, os negros. As elites conservadoras captaram os mecanismos de eleição – em grande parte pelo financiamento privado, que deixará de existir a partir das eleições deste ano –

O BRASIL DE PONTA-CABEÇA No Congresso, existem muito mais representantes do agronegócio, como o senador Ronaldo Caiado (foto), do que de trabalhadores rurais

Não se poderá avançar no Brasil sem desarticular a maioria de direita existente hoje no Congresso e sem eleger uma maioria parlamentar progressista ou mesmo diretamente de esquerda, que reflita a sociedade realmente existente. Só com a participação ­ativa dos movimentos organizados e sua militância será possível reverter essa situação. Só quando tivermos uma grande bancada de sindicalistas, de mulheres, de negros, de jovens da periferia, de tantos setores que agora saíram para as ruas, se poderá avançar na democratização do Estado brasileiro. REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

É fofoca ou informação? Professor e ex-ministro Renato Janine Ribeiro reflete sobre os dilemas éticos vividos pelos jornalistas em seu cotidiano. E identifica pouca atenção da mídia à educação brasileira Por Vitor Nuzzi 26

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rofessor de Ética e Filosofia Política na Universidade de São Paulo, Renato Janine Ribeiro tem há muitos anos contato frequente com jornalistas. Durante cinco meses, em 2015, ele experimentou essa convivência sob outra ótica, como ministro da Educação. Antes disso, de 2011 a 2013, Janine ministrou curso de ética na imprensa na pós-graduação da Escola Superior de Propaganda e Marketing, e acumulou reflexões sobre esse universo, que começou a conhecer de casa: seu pai, Benedicto Ribeiro, foi presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo entre 1959 e 1961. A experiência no curso resultou no recém-lançado livro A Imprensa entreAntígonaeMaquiavel–Aéticajornalísticanavidarealdasredações. Organizada por Janine, a obra traz trabalhos selecionados entre os alunos, com abordagens sobre dilemas cotidianos do exercício da profissão.


ENTREVISTA

Como ministro, Janine diz não ter queixas dos jornalistas com quem conversava, mas constata que a educação não costuma ser prioridade para a mídia, com poucas exceções. Assim, em vez de discutir questões como base curricular, a imprensa parece preferir uma boa fofoca.

Um problema que ficou agudo é a escassez de reportagens que cubram efetivamente o que acontece no país. Hoje, os grandes jornais têm um grande desconhecimento do que está acontecendo no Brasil

JOSÉ CRUZ/AGÊNCIA BRASIL

Logo no início do livro, o sr. escreve: “Não é fácil ser ético no jornalismo”. Por que isso acontece? O jornalista perdeu uma certa “consciência cidadã”, ou foi pela fragilização como categoria?

“O objetivo dos trabalhos, que eu pedi aos alunos, é o que coloca você em xeque eticamente. Pode ser uma ordem que o jornalista recebeu que vai contra a verdade dos fatos, pode ser uma situação imprevista, o caso de uma jornalista que descobre uma mãe de rua que está proibida pela Justiça de ter contato com o filho, que já venceu as drogas, e quer ter contato”, diz Janine. “O que eu queria fazer com os alunos, e acho que eles corresponderam muito bem a isso, era desafiá-los para além das regras burocráticas.” O jornalista lida o tempo todo com a questão ética, lembra o professor. “Não dá para você pensar a ética sem Antígona”, afirma, em referência à personagem de Sófocles que reage a uma determinação do rei que considera injusta e morre por causa disso. “Uma pessoa que viola a lei conscientemente, que corre riscos.” No caso de Maquiavel – também um pensador ético, observa Janine –, a importância está em pensar nas consequências de seus atos.

São as condições de trabalho do jornalista que acabam colocando, a meu ver, duas questões muito conflituosas entre si: por um lado, o jornalista está o tempo todo, ao narrar suas histórias, suas reportagens, exprimindo valores. Sobretudo hoje no Brasil, quando é muito difícil os jornais separarem a parte de cobertura das notícias e a parte de opinião editorial, o que é uma falha monumental do jornalismo. Mesmo que a rigor seja impossível separar radicalmente juízo de valor e relato do que aconteceu, porque a própria escolha do que você vai relatar já é um juízo de valor, apesar disso você tem de fazer o possível para separar. Costumo dizer que o jornalismo é uma missão impossível: você nao vai conseguir fazer separação radical, mas tem de lutar com todas as forças para efetuá-la. E o jornalismo brasileiro não faz isso, mistura o valor no relato dos fatos, mistura opinião nas notícias, e com isso foge à missão dele. Quando você é jornalista, a sua ética se expressa nas minúcias do seu trabalho. Por outro lado, para esse jornalista que está exprimindo juízo, você tem uma pressão muito forte das empresas, sobretudo quando no nosso país elas decidiram tomar uma determinada posição política em relação ao próprio governo. Isso torna a questão da cobertura jornalística muito delicada. (A jornalista) Barbara Gancia disse há poucos dias que na Band foi proibida ou dissuadida de criticar o presidente da Câmara dos Deputados. Isso é algo incompatível com o jornalismo. Passamos a ter agendas nos jornais que não são do bom jornalismo. O livro trata de casos...

No livro que organizei, com trabalhos de um curso de ética para estudantes de jornalismo, você tem relatos complicados. Por exemplo, a cidade onde apareceu um outdoor homófobo, os jornalistas querem criticar, mas o outdoor é de uma seita religiosa que tem negócios com o dono do jornal, que não quer que seja criticada uma flagrante violação dos direitos humanos. Você tem outra história, de uma jornalista que vai a uma praia no Guarujá, onde o acesso ao mar é fechado, e essa praia tem ilustres figuras da República no período Fernando Henrique. Nesse segundo caso, o jornal publica, e a matéria tem repercussões positivas, tanto que o próprio Ministério Público tomou iniciativas visando a abrir o acesso à praia. Mas muitas vezes o jornalista tem de dizer aquilo com que ele não concorda, tem de assumir a camisa do jornal. Quer dizer, você tem duas situações, ele dizer aquilo que não é opinião dele, mas assinando, porque se tornou praxe assinar matéria, então ele assume responsabilidades por algo que não é a convicção dele, e por outro lado você tem também uma dificuldade grande da independência jornalística de apurar os fatos, doa a quem doer. REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

Isso não é 100%, mas é frequente. Você tem exceções, que são importantes. Você tem jornalistas, mesmo dentro de jornais conservadores, que fazem uma pauta mais independente. Mas a maior parte dos jornalistas promovidos é dos que se identificam com a linha editorial do jornal. Isso causa um problema. Outro problema é que os jornais foram dando muita importância a colunistas. Em tese, isso é muito bom, porque são vozes diferentes, independentes, às vezes especializadas nos assuntos. Ter um colunista como Drauzio Varella, por exemplo, é um ­luxo. Mas você tem um volume de colunistas que repetem toda semana a mesma coisa. E tem outro problema que ficou agudo, que é a escassez de reportagens, poucas que cubram efetivamente o que acontece no país, na sociedade. Hoje, os grandes jornais têm um grande desconhecimento do que está acontecendo no Brasil. Com exceção do Valor e em menor medida do Globo, você não tem uma cobertura detalhada, uma rede de correspondentes vasta. O Globo tem, cobre melhor o Brasil como um todo, o Valor manda fazer reportagens específicas, como uma sobre educação no Ceará, faz uns quatro anos, que são notáveis, porque permitem conhecer o que de resto não saberíamos. Há um caso famoso de um colunista da Folha que, de férias no Nordeste, depara com um ônibus em que estava escrito alguma coisa como transporte escolar para a zona rural. Isso era uma novidade criada pelo ministro Haddad. Milhões de crianças transportadas todos os dias nesses veículos, e o jornal não sabia. É muito grave você ter um jornal que não sabe o que está acontecendo na educação brasileira, ou na saúde. Quando você vê a discussão de politicas públicas, essa discussão muitas vezes pega uma questão totalmente secundária. Por exemplo...

A questão da base curricular, que eu lancei. Tinha uma deficiência séria em História que eu tentei corrigir. A área de H ­ istória foi absolutamente impermeável, fez um projeto, a meu ver, errado. Mas a maior parte da discussão foi sobre isso, excetuando mais uma vez o Globo, que dá uma importância grande à educação. Mas, de modo geral, a educação não é uma prioridade dos jornais. Então, acaba sendo mais interessante, mais divertido você fazer uma fofoca, especular, por exemplo, se o ministro vai continuar ou não, se viajou ou não com a presidente Dilma, acaba se tornando quase mais importante do que entrar na discussão de quais são as metas que a educação deve ter. Você tem pouca discussão sobre educação, a não ser quando a discussão já é ideológica. Por exemplo, existe uma tese de que os livros didáticos visam a formar opiniões mais de esquerda... Essa tese é bastante equivocada, até porque o livro mais criticado, mais atacado por isso, foi distribuído pelo governo Fernando Henrique e não pelos governos petistas. Mas essa é uma discussão que acaba ficando mais atraente do que discutir, por exemplo, que tipo de formação você quer do aluno de 8, 9, 10 anos, o que 28

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LULA MARQUES/AGÊNCIA PT

Havia um pouco mais de contestação dentro da redação contra as ordens do que se chamava de aquário. Hoje, além dessa dificuldade que ele tem, às vezes o jornalista não está mais identificado com o ponto de vista do dono?

De modo geral, a educação não é uma prioridade dos jornais. Então, acaba sendo mais interessante, mais divertido você fazer uma fofoca, especular, do que entrar na discussão sobre as metas da educação você quer de Matemática, Química, Biologia, História, Geografia, que é a discussão da base curricular, que é muito importante. Significa discutir o que você quer que a criança saiba do mundo, em que universo ela está. Como professor, intelectual, o sr. tem contato frequente com jornalistas, em outro tipo de abordagem. Como ministro, o sr. se espantou com o que saía após conversar com jornalistas?

Eu me surpreendia com o que saía na imprensa, não por força de conversas, mas pelo que a imprensa relatava. As conversas que eu tive foram praticamente todas tratadas com fidelidade. Eu tenho muito pouca queixa do jornalismo. Agora, quando você não é da carreira política e assume um cargo de ministro, ou um cargo desses, em que se torna vidraça, gigantesca, você tem uma suscetibilidade maior que um político de carreira, que está acostumado a ser atacado e depois fazer as pazes e se aliar com quem o atacou. Uma pessoa que não é político de carreira, sobretudo um intelectual, leva um choque diante de uma mentira. Então, a mentira assume uma dimensão gigantesca. No meu primeiro fim de semana como ministro, eu vim a São Paulo no começo da sexta-feira para uma agenda de trabalho, e saiu matéria na Folha de S.Paulo dizendo que eu tinha violado uma regra recém-editada pela presidente, que proibia uso de jatinho para voltar para casa. Bom, eu tinha vindo para trabalho. E a notícia acrescentava que não tinham conseguido contato com o ministro. A Folha tem meus telefones, e-mail, há 30 anos ou mais. Então, a notícia


ENTREVISTA

era duplamente mentirosa. Nós nos queixamos, eles mantiveram que tinham tentado contato. Fizeram o seguinte: o repórter de Belém, não sei o que ele tinha a ver com Brasília, São Paulo, deve ter telefonado para o MEC, era um sábado, não tinha ninguém, não olhou o site para ver que tinha lá o celular da assessora de imprensa, que está sempre disponível, então, o resultado disso tudo é um absurdo. Você diz uma mentira e fica por isso mesmo. Esse é um caso pequeno, mas me causou um choque. Um ministro político nem dá bola para isso, desmente e sabe que o jornal vai embrulhar peixe. Agora, quando você vem do mundo acadêmico, a mentira, a imprecisão, a deformação da notícia causam um incômodo muito maior. Mais grave do que isso é a experiência do descaso com a informação, mais uma vez com exceção do Globo. Você pode fazer muitas críticas ao império Globo... Não estou falando da TV, mas o veículo impresso e a Fundação Roberto Marinho têm compromisso com a educação. Do ponto de vista político, a sua passagem pelo ministério, relativamente curta, deixou frustração?

Claro que deixou. Eu assumi sem ter recursos, numa fase de cortes constantes, com pouco apoio do governo. Apesar de a presidente ter falado em Pátria Educadora, não houve um fortalecimento do MEC. Isso criou uma situação difícil de trabalho. E há outro lado que afetaria qualquer pessoa que chegasse lá: foi o momento em que a prosperidade de 12 anos, graças ao boom das commodities etc. chegou ao fim, a um fim brutal. Durante 12 anos, o Brasil teve recursos bem mais fartos, usou bem os recursos, em educação, saúde, desenvolvimento social, e de repente esse dinheiro estancou, acabou. Essa é uma hora muito difícil, porque as pessoas estão acostumadas a gastar mais e mais, fazer projetos o tempo todo, sem pensar no rendimento, na qualidade, no desperdício, que são inevitáveis quando você está em plena expansão. Quando você tem de dar essa volta, a própria base do governo fica contra. Você tem criação de quase 20 universidades federais, mais de 100 campi, uma série de projetos, alguns já em andamento, de construção de campi universitários às vezes em cidades muito pequenas. E de repente nada disso pode ser feito. E aí quando você percebe que não tem como fazer, começa a discutir os critérios e vê que às vezes um passo foi dado sem o passo anterior estar assegurado. Um exemplo: em 2014, ano da campanha eleitoral, teve 730 mil financiamentos do Fies, mas não houve um critério para quais áreas, quais regiões, ou qual qualidade de curso. Essa foi uma das coisas que consegui fazer, e não foi fácil. Eu coloquei como critério o tipo de curso. Tí-

nhamos 16% de financiamentos para Direito, caiu para menos de 10%. Fortaleci Engenharia, saúde e professorado. Não havia critério de notas de curso. Fortaleci os cursos de nota mais alta, 5 e 4. E ­regiões, também fortaleci as menos desenvolvidas. Não havia esses critérios. Desse jeito, com menos vagas, a gente conseguiu dar um preenchimento mais justo. Para o sr., que é professor de Ética, não é um paradoxo, ou uma ironia, termos um Conselho de Ética da Câmara dos Deputados que não conseguiu punir um deputado que inclusive é réu no Supremo Tribunal Federal? Por que o Conselho não funciona nesse caso?

O Conselho de Ética tenta funcionar, é que constantentemente o presidente Cunha intervém. Agora, por que o Cunha está forte? Porque o Executivo se enfraqueceu muito. Ele adquiriu um protagonismo enorme, com uma pauta que não tem nada de bom para o Brasil. A maior parte dos projetos agrava a crise ou recua na tolerância à diferença. Agora, ele conseguiu isso porque o Executivo está fraco. E como essa pauta dele é poderosa só na aparência, porque não está caminhando para resolver nada no Brasil, o Executivo e o Legislativo ficam fracos, e quem se fortalece é o Judiciário. Nós estamos vivendo um momento em que o Judiciário, especificamente o juiz Sérgio Moro, a Polícia Federal, a Procuradoria-Geral da República estão ocupando um espaço que foi abandonado pelo Executivo e pelo Legislativo. Os dois poderes democraticamente eleitos não estão cumprindo o seu papel, e o poder que não é eleito – faz parte do nosso sistema, tem toda legitimidade – está avançando em prerrogativas que são dos poderes eleitos. Nós temos uma situação muito delicada do ponto de vista democrático. Questões que deveriam ser resolvidas pelo voto popular estão sendo encaminhadas para decisão tribunalícia. O sr. considera esses meios ditos alternativos de comunicação, como sites e blogs, uma alternativa importante de consumo de informação, em um setor tão concentrado (em termos empresariais)?

Considero. Permitem visões diferentes das que eram, e ainda são, predominantes. Contudo, os blogs de esquerda são ainda muito dependentes da grande mídia. Reproduzem e comentam notícias dela. ­Geram pouquíssimo conteúdo próprio. Por isso, estão muito longe de constituir um “quarto poder” alternativo. Leia a íntegra da entrevista no site da Rede Brasil Atual

bit.by/rba_janine

Executivo e Legislativo não estão cumprindo o seu papel, e o Poder Judiciário, que não é eleito está avançando em prerrogativas que são dos poderes eleitos

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MEMÓRIA

Livres, idealista Tese sobre o Ex-, que circulou nos anos 1970, mostra atualidade do jornal em relação aos veículos alternativos de agora Por Vitor Nuzzi

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EX- 1, NOVEMBRO 1973

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Ex-17 vai ser um presente de grego: 60 páginas, 10 contos. (...) Nós sabemos que o bolso da cambada amiga dói com uma facada dessas, mas lembre-se de nós nesse Natal. (...) Venha de lá um pedacinho do seu 13º, prá gente botar na rua nosso 18º mais aliviados. E, se for possível, um Feliz Natal prá todos nós.” Não teve a edição 17 do Ex-. O número 16, que fazia o anúncio irônico, foi o último, publicado em novembro de 1975, com uma tiragem inicial de 50 mil exemplares esgotada e uma extra de 20 mil. O tema da capa era corajoso, ousado para aqueles dias em que o desaparecimento de pessoas era um fato comum: o assassinato de Vladimir Herzog, o Vlado, diretor de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo. O editorial era o Hino da República, com seu refrão “Liberdade! Liberdade! Abre as asas sobre nós”. Era a manchete da primeira página. Na página 2, na seção de cartas, o intelectual francês Michel Foucault manifestava solidariedade a estudantes e professores da Universidade de São Paulo presos pela ditadura. “Uma universidade que não é plenamente livre não passa de uma empresa de servilidade. Não dá para lecionar sob o facão de botas, não dá para falar diante do muro das prisões; não dá para estudar quando as armas ameaçam. A liberdade de expressão e de pesquisa são sinais de garantia de liberdade dos povos”, escreveu Foucault, que suspendeu o curso que ministrava na USP. Foi a última edição regular do Ex-, jornal que sobreviveu durante dois anos e se tornou marco da imprensa alternativa. Com ousadias como a de noticiar a morte trágica de Vlado, em reportagem de oito páginas, ou publicar trechos do futuro livro de Fernando Morais sobre Cuba (A Ilha), com Fidel Castro na capa e entrevista do jornalista a Hamilton Almeida Filho e Mylton Severiano da Silva, o Myltainho, em agosto de 1975. A publicação foi tema de uma tese de doutorado em Ciências Sociais, da pesquisadora mineira Dalva Silveira, aprovada em 15 de abril na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. Integrante da banca, o professor Laurindo Leal Filho ressaltou a atualidade do jornal, ainda mais em um tempo de momento turbulento da política brasileira (leia a coluna de Lalo Leal na

CRÍTICA E DEBOCHE No Ex-, imagens e textos debochados se juntavam a reportagens sobre a contaminação por mercúrio no Japão ou sobre dom Pedro Casaldáliga

página 5 desta edição). “O legado está no trabalho que muitos jornalistas ainda conseguem fazer neste país”, afirmou. “O Exmanteve viva, a duras penas, essa ideia de jornalismo como instrumento de transformação da sociedade.” Ele destacou que a tese era defendida “às vésperas de um golpe parlamentar que atropela todo o arcabouço institucional bra-


MEMÓRIA

EX- 12, 1975

EX- 13, AGOSTO 1975

as e rebeldes

PELÉ PELADO E VANDRÉ Em meados de 1975, o Ex- trouxe reportagem sobre Geraldo Vandré, baseada nas visitas do artista à redação, já que ele não aceitou dar entrevista

OUSADIA Na edição nº 13, de agosto de 1975, auge do período autoritário, o jornal publicou trechos do futuro livro de Fernando Morais sobre Cuba (A Ilha), com Fidel Castro na capa

sileiro”, em referência à sessão da Câmara que aprovou a continuidade do processo de impeachment, agora no Senado (leia mais nas páginas 10 a 14). Pela redação do jornal passaram nomes como Sérgio de Souza, Hamilton de Almeida Filho, Narciso Kalili, Marcos Faerman, Mylton Severiano da Silva, Dacio Nitrini, Palmério

Dória. Alguns tocam suas pautas até hoje. “Quero trabalhar aquilo que está escondido, que não pode ser esquecido”, diz Dalva Silveira, que se interessou pela trajetória do Ex- durante pesquisa para mestrado em Ciências Sociais sobre o cantor e compositor Geraldo Vandré, tema de seu livro A Vida não se Resume em Festivais. REVISTA DO BRASIL

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EX- 2, DEZEMBRO 1973

MEMÓRIA

PRISÕES E ESCRACHO Na edição que trazia uma ilustração do “desbunde” do ex-secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, o Ex- publicou entrevistas com José Celso Martinez e Caetano Veloso, ambos na mira da censura do regime

Na edição 12, de meados de 1975, o Ex- trouxe uma reportagem sobre Vandré, baseada nas visitas do artista à redação, já que ele não aceitou dar entrevista. A primeira sobre ele depois de sua volta ao Brasil, em 1973. “Considero a matéria mais completa que eu encontrei”, conta Dalva. “Em sua análise, chamou minha atenção sobretudo o seu tom libertário e o fato de apresentar, naquele momento de censura, a denúncia da interferência da política ditatorial na carreira do compositor. O contato com o exemplar motivou a leitura de outras edições do jornal e a posterior investigação do periódico em seu conjunto.” Ali começava a se esboçar a tese que ela defenderia perante a banca: “Como explicar o fato de um jornal que apresentou matérias sobre Vandré e Herzog ter sido considerado despolitizado pela esquerda ortodoxa?” E a hipótese a ser investigada: “No Brasil, a repressão pós-AI-5 tornou possível que jornalistas adeptos da contracultura e portanto apartidários – caso da ‘turma do Ex-’ – mesclassem em seus trabalhos a crítica comportamental à constante produção de matérias que faziam resistência ao governo ditatorial”. A pesquisadora passou a investigar outros periódicos criados pelo que ela chama de “turma do Ex-”. Publicações como Realidade, Novidades Fotóptica, Revista de Fotografia, Bondinho, Grilo, Jornalivro, Foto-Choq, Repórter Três e, mais recentemente, Caros Amigos. “Importante ressaltar que o grupo também contou com a participação de jornalistas de outras publicações, como do Jornal da Tarde e da revista Veja. Através da análise dos expedientes dos exemplares do jornal Ex-, constatei que, 32

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apesar de existir um núcleo central de profissionais que atuaram em todas ou quase todas as edições do periódico, no curso de sua existência, o Ex- apresenta o total de 125 profissionais.” Uma mistura de resistência política e crítica de costumes caracterizava a publicação. Imagens e textos debochados se juntavam a reportagens sobre a contaminação por mercúrio no Japão ou sobre dom Pedro Casaldáliga, “o primeiro bispo ameaçado de ser expulso do país”, em São Félix do Araguaia, com fotos e texto de Alex Solnik. Ou entrevistas com o escritor Eduardo Galeano e o diretor de teatro José Celso Martinez Corrêa, um texto de Gabriel García Márquez sobre o Chile de Salvador Allende e até uma fotonovela tendo operários paulistas como personagens (Indústria de Sonhos).

Asterix

Para Palmério Dória, há certa procedência na fama atribuída ao Ex-, onde ele trabalhou do primeiro ao último número. “A nossa turma passou a se associar mais com o chamado desbunde do que com aquela imprensa política, engajada”, observa. Mas ele considera importante dividir a história do jornal em diversas fases. “Houve o Ex- do Sérgio de Souza, era uma redação dispersa, as pessoas chegavam com suas pautas, os diretores de arte com suas histórias em quadrinhos. As matérias que predominavam na primeira fase vinham da revista Rolling Stone.” Depois veio a fase da casa na Lapa, zona oeste de São Paulo, onde alguns dos jornalistas moravam em comunidade. “Nós nos considerávamos gauleses”, diz Palmério, lembrando de Asterix,


MEMÓRIA

Na maior parte do tempo, foram tempos de dureza. Na época da Lapa, só Palmério e Myltainho tinham emprego fixo. “Dinheiro não existia”, diz Palmério. Nem telefone. Todos andavam com fichas telefônicas no bolso, e o telefone da redação era um orelhão. O jornalista considera o Ex- um “fruto” da Realidade. “Não à toa, em 1978 foi criada na Editora Três a revista Repórter Três, que era uma tentativa de recriar a Realidade. É uma turma interligadíssima. Quase uma tessitura.”

EX- 16, NOVEMBRO 1975

Jocoso e picante

ÚLTIMA EDIÇÃO REGULAR O número 16 foi o último, publicado em novembro de 1975, com uma tiragem inicial de 50 mil exemplares esgotada e uma extra de 20 mil. O tema da capa era corajoso, ousado para aqueles dias em que o desaparecimento de pessoas era um fato comum: o assassinato de Vladimir Herzog

personagem de quadrinhos cuja aldeia resistia ao Império Romano. Dali, na sala com um pneu e um piano, saíram entrevistas como a feita com Zé Celso. “Nossa vida era a pauta do jornal.” Por fim, na Bela Vista, bairro na região central conhecido como Bixiga, se instalou o “melhor jornal da Rua Santo Antônio”, quando apareceu alguma “injeção de capital” com a entrada de Paulo Patarra, vindo da Editora Abril. “A gente se tornou um jornal mais ligado à realidade brasileira e mais político, sem perder o desbunde.”

Além de suas 16 edições regulares, o Ex- lançou quatro extras, com reportagens especiais. Em 2010, o Instituto Vladimir Herzog e a Imprensa Oficial lançaram, em parceria, uma coleção com 19 edições em fac-símile. “Infelizmente, a morte de Vlado também custou a vida do Ex-. Naquele momento o jornalismo brasileiro também viu morrer aos poucos o seu lado jocoso e picante”, diz o instituto. Outro examinador da tese, o professor Marco Antônio de Almeida, da USP, destacou a linguagem “mais diversificada” do Ex-, inclusive no aspecto estético, em contraponto a jornais alternativos mais “pesados” em conteúdo e forma. Também identifica ali tópicos que passariam a ser mais discutidos pela esquerda apenas nos anos 1980, relacionados ao comportamento, além de um “legado temático” – retrocesso político, direitos civis – com elementos em disputa ainda hoje. “Nem sempre, a prática do jornalismo contracultural brasileiro se mostrou alienada do combate à política do regime militar”, diz Dalva. “Isso significa que, a despeito da crítica apresentada pela esquerda ortodoxa, devido à repressão imposta pela ditadura, foi possível que jornalistas desse tipo de imprensa e, portanto, apartidários, mesclassem matérias cujo foco era a revolução dos costumes com um número significativo de reportagens denunciativas desse governo, apresentando uma incisiva postura de resistência política.” Palmério Dória observa que, naquela época, mais de 100 jornais alternativos atuavam no Brasil, no que hoje em alguma medida talvez possa ser comparado às redes sociais. “Havia colaboração entre eles. Cumpriam o papel da internet, de certa forma.” Do outro lado, acrescenta, “a imprensa dos donos da mídia continua fazendo o que fazia naquela época”. E foi preciso aparecer um jornalista de fora, no caso o norte-americano Glenn Greenwald, para “arrombar a festa”, diz Palmério. “Estourou o mocó da grande imprensa.” O jornalista fala com satisfação da reportagem sobre Vlado e do papel histórico do Ex-. “Foi a melhor coisa... Tenho a impressão de que o jornal foi criado para isso. Nós éramos bois de piranha, testávamos limites”, afirma, lembrando de ter ouvido exatamente isso de Ricardo Kotscho, que pouco tempo depois, no Estadão, faria uma matéria sobre mordomias no setor público: “Vocês ampliaram os nossos limites. Ninguém faria se não fosse o Ex-. Éramos duríssimos e orgulhosíssimos”. Todo o acervo do Ex- também pode ser visto no site www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

Canções de Lenine revelam preocupação com o ambiente, o planeta que é um útero e com a formação de “gente que pensa” Por Vitor Nuzzi

Música é

educação

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ENTREVISTA

“N

ão cheguei sozinho”, canta Lenine na música Castanho, faixa inicial do CD mais recente, Carbono (2015), e também a primeira a ser tocada na apresentação da atual temporada, na mistura de sons e ritmos que caracteriza a sua obra. “Recifense-carioca, brasileiro do mundo”, como se apresenta no site oficial, Oswaldo Lenine Macedo Pimentel completou 57 anos em fevereiro, 33 de carreira e 12 discos. As influências de Lenine sempre foram múltiplas, como as parcerias e os interesses. Chegou a iniciar o curso universitário de Engenharia Química, mas aos 20 anos largou tudo para ir morar no Rio de Janeiro, de onde não saiu mais. Lançou o primeiro disco em 1983, e o segundo, apenas dez anos depois, para então enfileirar trabalhos e hits. No início de abril, uma arritmia causou susto e levou ao cancelamento de uma apresentação, mas ele conta que agora está tudo bem. “Dá sempre uma fragilidade quando você depara com a falibilidade das coisas”, comenta, tranquilo, pouco antes de um show que faria no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. “Mas assim que é, a vida é isso, a gente tem de ter isso no pé do ouvido o tempo todo.” Conhecido por cultivar plantas, Lenine conta que as orquídeas foram basicamente uma porta de entrada. “Tudo me fascina, as trepadeiras, as helicônias, os filodendros”, diz o artista. “Digamos que no universo do banco genético brasileiro a gente está falando em 2.500 espécies, eu tenho umas 1.600. Significa dizer que você tem mais de cinco matrizes de cada espécie.” É um estímulo que se relaciona com a música, já que em cada turnê ele vai conhecer outros “orquidólatras”. “O cara é que tem as plantas do lugar, o endemismo, que é o que me interessa. A música também é generosa nesse sentido, permite mapear os lugares onde vou através das plantas... Cada planta ganha um catálogo, a espécie, onde ocorre, a época de floração, onde eu ganhei, de quem eu ganhei. Virou também um banco de memórias associados também à música, aos trajetos que eu faço pela música.” Nesses trajetos, sempre esteve clara a preocupação com o ambiente e o destino do planeta, que Lenine imagina como um útero, lamentando a “atrocidade predatória” do ser humano. Ele critica também a insistência em uma política oligárquica, como uma “velha tribo”, espantado com a presença do presidente da Câmara dos Deputados,­Eduardo Cunha, na liderança do processo de impeachment. Para o “cantautor” – outra definição sua –, qualquer solução passa por um caminho: “A educação é fundamental para a gente quebrar com esses paradigmas, com essa perpetuação no poder”. Hoje (22 de abril), Dia da Terra, foi assinado na ONU aquele acordo para combater o aquecimento global, a emissão de gases. Tem compromisso aqui no Brasil, há uma série de metas. Para você, uma pessoa atenta a essa questão, esse acordo traz algum alento ou prefere aguardar?

Eu realmente prefiro aguardar, porque a história tem dado exemplos seguidos da falibilidade das coisas. Sou da época da Eco’92. Lembro que ali foi estabelecida uma recuperação da Baía da Guanabara, que houve investimento japonês, inclusive, uma série de projetos, e grande parte nunca saiu da prancheta. Estou esperando, torcendo.

JAILTON GARCIA/RBA

Em seu último disco a música, Quede Água? tem uma letra contundente. Fala de mobilidade urbana, da dificuldade dos grandes centros do Sudeste e em “ações tardias”. As autoridades demoraram a agir, houve descaso com o planeta?

Primeiro, eu tenho de dizer que a canção a que você se refere, Quede Água?, é uma parceria com Carlos Rennó. A poesia é do Rennó. O texto inicial era maior, passava por outras questões de muita relevância e importância. No meio de uma apropriação de minha parte para fazer a canção, eu cortei algumas coisas. Mas acho muito perspicaz. Nos pareceu o quanto era oportuno que naquele momento era o apogeu da crise, São Paulo sem água, todo canto, sofríamos por tudo, houve realmente um momento crítico e não chovia, começou o racionamento... Uma questão que é anterior ao Quede Água?, mas que sempre esteve em toda a minha discografia, é essa preocupação ou essa visão mais holística, mais global, do que é este planeta, e imaginá-lo como um útero. Quando a ­gente ­tem essa c­ onvicção de imaginar o planeta como um único útero, encerrado em ­­ REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

É o modelo que está todo errado? Nessa mesma música, você fala do lucro no curto prazo, do “agrotóxiconegócio”, essa voracidade de ganhar rapidamente...

Isso, avidamente, a qualquer preço. Não tem como mensurar o grau de interferência que estamos impondo a esse útero. Mesmo as expectativas mais nefastas do que seria um futuro possível daqui a 50 anos não dá para confiar. Fica evidente que não é uma progressão aritmética. É geométrica. O volume disso, e a velocidade com que está acontecendo, a gente é incapaz de mensurar. Isso tudo me preocupa muito, ainda mais que tenho filhos, agora netos. Que herança a gente deixa? Então, acho que está muito presente em todo o meu trabalho essa necessidade que o ser humano tem de perceber o planeta como uma única coisa. A seca avança em Minas, Rio, São Paulo. O Nordeste é aqui, agora. No tráfego parado onde me enjaulo, vejo o tempo que evapora. (...) A grana a qualquer preço, o corte raso, o agrotóxiconegócio; A grana a qualquer preço, o petrogaso-carbocombustível fóssil. (Trecho de Quede Água?) Como surge, de onde vem essa consciência ambiental?

Acho que é minha formação em casa, socialista cristã, franciscana (risos). Meu pai (José Geraldo) foi o primeiro cara que disse pra mim: a diferença entre socialista e cristão é só a morte. Como assim? O cristão está trabalhando aqui para depois da morte chegar no paraíso, socialistas estão querendo esse paraíso antes de morrer (risos). É simplista, mas é bonita a maneira de ver, a preocupação humanitária que as duas vertentes têm, uma pelo dogma da fé e tudo, outro, da razão, da percepção cartesiana das coisas. No meu pai, essas duas coisas se equilibravam, até morrer, há pouco tempo, não tem um ano, aos 93, dormindo... 36

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JAILTON GARCIA/RBA

si,­­é difícil ­você não perceber a atrocidade predatória que o ser humano está impondo ao planeta. Acho que as equações mudaram todas, e a culpa disso é a própria interferência desse ser humano. Pela primeira vez na história do planeta, uma única espécie está fazendo a balança pender para um lado. Tem uma série de questões que mesmo a nossa matemática, as nossas leis que regem meteorologia, geografia, estão passíveis de mudança, porque a gente não tem mais como escalonar. A interferência está sendo tamanha que os ventos estão mudando, a umidade está indo bater em outros lugares, tudo que é agricultura, que depende desse manancial de água, vai mudar, e quem sofre com isso é a própria população. Esse arrodeio todo que eu dei com você, só porque você me perguntou sobre Quede Água?, mostra o quanto disso está presente em tudo o que faço, essa percepção de que a gente está perdendo um tempo gigantesco e estamos rumando para um futuro cada vez mais desesperançoso.

Quando a gente tem essa convicção de imaginar o planeta como um único útero, encerrado em si, é difícil você não perceber a atrocidade predatória que o ser humano está impondo ao planeta

Você falou que ele era socialista e foi trabalhar na Bolsa da Valores...

Isso! Os paradoxos são incríveis... Ele dividiu com minha mãe (Dayse) essa coisa de pôr nome nos filhos. Então, nos filhos homens ele que pôs o nome. Um foi Renan e o outro, Lenine. E aí mamãe botou duas santas, Maria Teresa e Maria das Graças. Eles tinham isso, dividiam mesmo. O lado cristão de minha mãe no almoço era sagrado, ela rezava e ele respeitava. A gente ia jantar, nas plenárias... Discutíamos tudo. E ele, de alguma maneira, ritualizou, divinizou a conversa, a troca de informações. Acho que herdo isso muito do berço, essa visão mais h ­ umanista das coisas. Tem um Tolstoi na sua banda (JR Tolstoi, músico e coprodutor), um requinte...

Também, é... Mas tem Bruno (Giorgi)... Que é homenagem a Giordano Bruno (risos). Então, estou bem cercado. E o seu apoio à campanha pela música na educação? Você também já se chamou de educador...

Minha questão é maior... Sou completamente a favor da educação. Essa crise política toda no país está intimamente ligada à educação, não houve investimento na formação de pessoas, de gente que pensa, que sabe em quem vota e foge dos currais eleitorais que se perpetuam. Não tem outro caminho. Mas você está falando a questão da educação musical retornar às escolas, e isso já fez parte do currículo. Mas antes de ser a favor da educação na escola, sou a favor de uma educação mais ampla, mais profunda, e isso não se faz. Esse tipo de investimento que requer a espera de uma geração, pelo menos, ninguém fez até agora.


ENTREVISTA

Sobre essa questão do voto e falando de educação, o que você achou daquele sessão de domingo (17 de abril), quando a gente viu ­exposto o nosso Congresso?

Eu acho que por um lado é muito bom, que mostra o quão diverso a gente é. Agora, me preocupa muito o nível dele. Porque aí, no final das contas, não interessa, é aquilo ali que o povo elegeu. É só uma constatação que eu posso fazer, do quanto falta educação. Então, voltando à sua pergunta anterior, do quanto a educação é fundamental para a gente quebrar com esses paradigmas, com essa perpetuação no poder, de uma velha tribo. É uma oligarquia. Imagine como deva ser para os senadores que recebem um documento da Câmara, assinado por Eduardo Cunha (enfatiza o “u” no sobrenome), essa pessoa que está assinando... Ele assinou isso, esse impeachment! Quer dizer, isso tudo como uma forma de retaliação que a gente sabe, quem acompanha um pouco essa história recente, esse caos que a gente está vivendo. Você vê a ironia de tudo isso. Eu tenho muito vergonha, principalmente eu, que a música me conduziu a transitar por fora do país­ também. Tenho muitos amigos por esse planeta de meu Deus, tenho lugar pra cair em qualquer lugar deste planeta. Justamente nesta hora em que deparo com outro de outro lugar, é a hora que dói mais. Que você se vê de outra maneira, de alguma maneira você se vê de fora. Você vê a coisa pequena que se transformou, e dualista, que ou é contra ou a favor, é coxinha ou é petralha, como se essa confusão não fosse infinitamente maior, e tem a ver realmente com algumas instituições que estão podendo trabalhar e abrir um buraco que é gigante, de institucionalização da corrupção, e a gente está só no início desse processo... Querendo ou não, a gente está pela primeira vez levantando o tapete, ou não? Não sei até que ponto, mas se levantou. Talvez essa fratura exposta seja um benefício civilizatório pra gente, ou exorcizar de alguma maneira, ou realmente isso ser uma coisa de conduta. Gente, chega de hipocrisia! Tu fala uma coisa e faz outra. Esse impeachment está sendo feito e e as pessoas têm de receber com Eduardo Cunha réu? Mentiu, é um mentiroso, essa cara que tá assinando... É muita ironia histórica. Voltando à música, lembro que você falou que sempre perseguia uma certa estranheza...

Não era nem eu que perseguia, a senhora estranheza sempre esteve do meu lado aqui mandando uns “agá”, eu dou ouvidos a ela, dou. Ela me trouxe aqui, isso eu não posso negar. Esse estado de procurar uma certa estranheza a ponto de levar um pou-

quinho além, sem descolar da realidade, mas tendo uma autoralidade, eu devo à senhora estranheza. Foi ela que buzinou no meu ouvido: “Já fizeram, você não vai levar um pouquinho além, não?” Perguntei porque agora você fala “dessa tal simplicidade” (referência à canção Simples Assim, do novo CD)...

É, mas é estranha! A simplicidade é muito estranha, e talvez seja mais difícil de chegar, quando você tem esse acúmulo de informação. Você tem parcerias com todo tipo de gente, gosta desse trabalho coletivo. Incomoda quando você é apresentado como “cantor pernambucano”, como se tentassem catalogar em um regionalismo?

Mas fica mais fácil dizer o pernambucano Lenine. Só acho estranho não dizer isso com o paulista Arnaldo­ (Antunes) ou a carioca Fernandinha Abreu. Você entende? E eu que tenho uma sensação de ­expatriamento, porque fui muito cedo para o Rio. A minha formação musical, meu profissionalismo, a opção de viver de música foi no Rio. Todos os discos eu fiz no Rio, meus filhos todos são cariocas. Mas é o pernambucano Lenine, veja bem, com muito orgulho! Porque realmente estou impregnado daquela cultura. A formação do ser humano vai até os 17, 18 anos, o resto eu acho que é um aprimoramento, uma lapidação. Mas o grosso do caráter, da personalidade, é feito ali até 17, 18, 19 anos... Acho que a geração de hoje é diferente. Não ouso falar sobre a geração de hoje, ­sujeita a esse bombardeamento de informações a toda hora. Mas na minha época, estou com 57 anos, posso dizer isso. Isso aconteceu pra mim onde? Em Recife, cara. É natural que eu esteja impregnado da picardia de Recife, do trava-língua, do trocadilho, do repente, da coisa junina, da melancolia árabe, moura, que você encontra no Dominguinhos ou no Djavan... Isso tudo tem a ver com Nordeste, que também estou completamente inserido nele. E essa turma nova de autores?

Gosto de muita gente. É difícil dizer um nome só, porque vou cometer um pecado. O meu trabalho tem essa reverberação em quem cria. Isso faz com que chegue muito a mim, trabalhos autorais, independentes. Então, recebo mensalmente, velho, 30, 40 projetos. E, olha, o nível é lá em cima. O que é difícil, da maneira que está pulverizado hoje em dia, é chamar a atenção para uma ou para outra. Mas recebo muita coisa bacana, espalhada por todo o Brasil. Nunca se ouviu, se consumiu e se praticou tanta música.

Essa crise política toda no país está intimamente ligada à educação. Não houve investimento na formação de pessoas, de gente que pensa, que sabe em quem vota e foge dos currais eleitorais que se perpetuam

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TECNOLOGIA

Craques do Robôs estão sendo preparados para enfrentar a melhor seleção de futebol do mundo de 2050. Independentemente do placar, ciência e educação já saem ganhando Por Cida de Oliveira

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meta é ambiciosa: desenvolver um time de robôs humanoides capazes de enfrentar – e ganhar – da melhor seleção mundial de futebol de 2050 num jogo dentro dos padrões da Fifa. Tamanho desafio está por trás do trabalho de professores, pesquisadores e alunos de universidades de todo o mundo que disputam a RoboCup, competição internacional criada em 1997 para difusão da robótica, dos avanços em inteligência artificial e da educação científica e tecnológica. Entre as ligas, a mais famosa é a de futebol de robôs. No Centro Universitário da FEI (criado em 2002 a partir da antiga Faculdade de Engenharia Industrial), em São Bernardo do Campo, no ABC paulista, o objetivo promete ir bem além. “Não é só ganhar dos humanos, e sim ter uns robôs do nosso tamanho, poder sentá-los no anfiteatro para ver os jogos da Alemanha, discutir com eles as jogadas, entregar passagem de avião para cada um viajar, jogar, ganhar e ainda trazer o caneco. Eles vão pegar táxi, fazer tudo sozinhos. Difícil vai ser passar no raio-X do aeroporto: vão achar que eles carregam facas, mas é o braço”, diz, entusiasmado, o professor de Ciência da Computação Flavio Tonidandel, coordenador do projeto de robótica. Segundo ele, não se sabe quando tudo isso será realidade. “Porém, um robô que saiba interagir com o ser humano, tomar as suas decisões de maneira au38

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tônoma, é o objetivo da pesquisa que a gente faz aqui”, afirma. Para isso, professores e alunos da graduação e da pós-graduação, no mestrado e doutorado, se debruçam sobre estudos para aperfeiçoar as duas seleções de robôs da instituição que todo ano participam dos jogos nacionais e internacionais da RoboCup. A equipe mais antiga e tradicional, hexacampeã brasileira e latino-americana, é formada pelos mais baixinhos – mas em nada lembram Diego Maradona, Lionel Messi ou Zico. Craques da categoria Small Size Soccer, também conhecida como Robo-

TOMAR DECISÕES Flavio: o objetivo é interagir com o ser humano

Cup F-180, não passam de 15 centímetros de altura e são bem gordinhos: 18 centímetros de diâmetro. São programados para tocar a bola, driblar e até lançar para o companheiro por cima do adversário. E se estiver por perto, para chutar para dentro do gol. Sem rede, ainda. Se o goleiro espalmar, tem escanteio – e assim o jogo vai. Em campo, são seis contra seis. “A gente só aperta a tecla enter do computador e fica assistindo, torcendo. Mero torcedor. O sistema analisa a posição do jogador, como estão os adversários, e então toma as decisões. Não sabemos o que vai acontecer e ficamos na torcida para que o jogador tome a decisão certa”, conta Flavio. Na concentração da FEI, ou melhor, no laboratório em que os alunos vão além dos conteúdos de engenharia elétrica e mecânica, automação, ciência da computação e inteligência artificial, o que chama mais a atenção são os robôs humanoides. Com cabeça, tronco e membros, são os futuros craques ainda na infância. Pesados e desengonçados, deslizam vagarosamente pelo campo para manter o domínio da bola e seguir em direção ao gol. O mais comum é tropeçar nos fios fofos da grama sintética. Mas apesar da dificuldade pela lentidão dos movimentos, conseguem se levantar. Com pouco mais de três quilos, eles vêm se desenvolvendo ao longo de três


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FOTOS GERARDO LAZZARI/RBA

o futuro

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GERARDO LAZZARI/RBA

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AUTÔNOMO Isaac e Danilo: O sistema desenvolvido na FEI analisa a posição do jogador, como estão os adversários, e então toma as decisões

anos para perder peso e ganhar agilidade e resistência. Por meio de avanços na impressão 3D, capaz de “imprimir” peças em plástico, muitos metais estão sendo substituídos. Como a equipe médica e física de um time, professores e alunos trabalham praticamente o dia todo. Os mestrandos desenvolvem tecnologia para melhorar o equilíbrio desses jogadores para não cair ao levantar um das pernas – o que não acontece com os da outra categoria, com rodinhas. Os doutorandos têm como desafio aguçar a percepção da posição dos companheiros e também dos adversários. A expectativa é que em poucos anos sejam capazes de fazer o que se espera de todo craque: os básicos passes. Só então serão desenvolvidos robôs maiores. É exatamente nisso que trabalha o doutorando Danilo Perico, da área de inteligência artificial. “O objetivo é incrementar o raciocínio, para maior au40

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tonomia e velocidade de jogo. Sem isso, é impossível que eles possam jogar em 2050”, conta o estudante, que passa o dia todo na faculdade, dividindo-se entre a sala de aula e o laboratório. Conforme destaca, a equipe na qual trabalha compete atualmente em pé de igualdade com muitos times do mundo. “É o trabalho de um time, um desenvolvimento, em que todos ganham.” Insatisfeito em apenas programar robôs da linha de produção de montadoras e indústria de autopeças, o engenheiro elétrico Isaac Jesus da Silva voltou para a universidade. Colega de Danilo no doutorado, é um entusiasta. “Como aconteceu com a informática, a robótica passa por um processo de expansão e sai dos laboratórios. Chegou à indústria e chega ao usuário comum. Já temos robôs que fazem limpeza, que facilitam a vida dentro e fora de casa. Mas temos de aprimorá-los e reduzir seu custo”, diz.

Em todo o mundo, a robótica tem entre os desafios a interação com o ser humano, que guarda diversas sutilezas. É como ensinar ao robô fazer rir as pessoas tristes e ele querer fazer piada em um velório por não poder discernir as causas dos sentimentos e emoções. Mas esbarra ainda em problemas limitações mais operacionais, como o energético. Ao contrário dos humanos, que podem passar até dias sem comer, robôs necessitam de baterias, que se esgotam em pouco tempo. Em repouso, um robô humanoide da FEI consome a carga de uma bateria equivalente à de um notebook em uma hora. Se estiver jogando, acaba em 20 minutos. As pesquisas para baterias capazes de durar muito mais estão hoje voltadas aos celulares. Embora possa pegar carona nessa tecnologia em andamento, a robótica precisa ainda de motores menores, mais baratos, para fazer as vezes da musculatura humana que permite tan-


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tos movimentos, como saltar, quando os dois pés ficam sem apoio. “Para complicar, não temos no Brasil os materiais hoje mais modernos, como metais leves, baterias, que vêm do Japão, da Europa, Estados Unidos. Caros, demoram mais de seis meses para chegar”, diz Flavio Toridantes. Paixão mundial, o futebol está longe de ser o fim dessas pesquisas na FEI e nas dezenas de universidades federais, estaduais e demais instituições privadas do Brasil e do mundo filiadas à RoboCup – a Fifa do setor, que tem japoneses, norte-

-americanos e alemães nos primeiros lugares de seu ranking. As técnicas, teorias e análises desemvolvidas são compartilhadas com a comunidade científica de todo o mundo por meio da publicação de trabalhos, participação em congressos nacionais e estrangeiros, beneficiando principalmente a pesquisa de robôs colaborativos. om isso, mesmo que em 2050 não se tenha ainda a seleção humanoide em campo contra os campeões da Fifa, haverá robôs muito melhores e melhor treinados

para resgatar vítimas de terremotos, desmoronamentos, incêndios, realizar cirurgias cada vez mais complexas, cuidar de pessoas idosas ou com necessidades especiais, encarar atividades arriscadas ou repetitivas do dia a dia ou simplesmente ir até a geladeira, pegar uma cerveja, abrir, colocar no copo e trazer a bebida a quem não quer perder um lance sequer do jogo que assiste pela TV. Problema vai ser quando essas máquinas, de tão aprimoradas, resolverem tomar a cerveja no meio do caminho.

Para alunos da rede de ensino fundamental e médio de todo o país, a robótica não é mais ficção científica de um futuro distante. Ao contrário, está revolucionando a escola e ajudando a reduzir as desigualdades regionais em educação. “A tecnologia é uma ferramenta que permite e estimula o aprendizado de todos os conteúdos da matriz curricular de maneira criativa e divertida”, conta a professora de Ciências da Computação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenadora da Olimpíada Brasileira de Robótica (OBR), Esther Luna Colombini. Conforme destaca, vem do Nordeste quase metade da participação das escolas públicas – e o Ceará ganha a maioria das medalhas na modalidade teórica da olimpíada. “São estados que têm investido mais em políticas voltadas para a educação em nível fundamental e médio, inclusive com incentivo ao ensino de robótica. Não posso dizer o mesmo de São Paulo, onde a maior parte das escolas participantes é da rede privada ou do Sistema S”, afirma. Segundo ela, faltam pesquisas mais apuradas sobre o impacto da disciplina na melhoria do ensino como um todo e na redução das desigualdades regionais presentes também no setor.

ALYNE PINHEIRO/SECOM-PE

A robótica vai à escola

MODELO DE ENSINO Turma de Pernambuco na OBR: escolas do Nordeste predominam na competição

O Acre, por exemplo, tem mais participação na olimpíada que o Distrito Federal. “É a divulgação científica como instrumento de inclusão e redução da desigualdade, estimulando o aluno a se interessar por ciências e buscar carreiras tecnológicas.” Em sua décima edição, a OBR deste ano reúne 100 mil alunos de todos os estados, que participam das modalidades práticas e teóricas. A cada ano, a participação aumenta em cerca de 40%. Os ganhadores em nível nacional representam o Brasil na RoboCup, que

neste ano será em Leipzig, na Alemanha, de 30 de junho a 4 de julho. Maior seletiva em todo o mundo para a competição internacional, o Brasil tem tudo para se tornar o país da robótica – e não só do futebol. “Com raras exceções, e apesar da falta de material didático e livros, temos aqui uma forte política educacional pública voltada para o setor. Os governos estão entendendo que a robótica melhora o ensino na prática, desperta o interesse pela ciência e tecnologia e por essas carreiras”, diz Esther.

Segundo ela, a OBR tem contribuído também para reduzir a evasão no ensino superior. Um levantamento mostra que mais de 70% dos estudantes de graduação de áreas científicas e tecnológicas afirmam que a participação na olimpíada foi decisiva na escolha da faculdade e da carreira profissional. “Além disso, já entram na universidade com conhecimento a propósito daquilo que querem seguir. Tanto que muitos que participaram estão hoje cursando graduação e pós-graduação na área.” REVISTA DO BRASIL

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CIDADANIA

A história toda muda se mudar no

COMEÇO Documentário trata da importância dos primeiros anos de vida das crianças para o futuro da humanidade Por Xandra Stefanel

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sociedade, em geral, tem cuidado bem dos primeiros anos de vida das pessoas? Esta é a questão central do documentário O Começo da Vida, que tem estreia prevista para 5 de maio nos cinemas brasileiros e exibições gratuitas pela plataforma on-line VideoCamp. Dirigido pela cineasta ­Estela Renner, o longa-metragem investiga vários temas ligados à primeira infância, a partir das recentes constatações científicas de que os bebês se desenvolvem a partir da combinação entre a sua carga genética e as relações com as pessoas que os rodeiam. O filme poderia ser apenas um apanhado de depoimentos de especialistas gabaritados nesta área, mas o que Estela consegue é permear as entrevistas com estudiosos e profissionais de várias partes do mundo com o encantamento típico da infância. Ela visita famílias de diferentes culturas, etnias e classes sociais no Brasil, na Argentina, nos Estados Unidos, no Canadá, na Índia, China, Itália, França e no Quênia e trata sobre diferentes questões que dizem respeito ao começo da vida. A diretora incita uma profunda reflexão sobre que futuro a sociedade quer. “O objetivo do filme, ou talvez o meu sonho, é em primeira instância trazer para o conhecimento de todos – e para o coração de todos também – a importância dos primeiros anos da vida de uma pes42

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soa. Mas gostaríamos de acreditar que um dia este filme se torne uma referência na formação para pais, educadores, profissionais de saúde, gestores, dentre outros. Gostaríamos que este filme fosse indicado por ginecologistas, pediatras, psicólogos, pedagogos, amigos e amigas”, afirma Estela. Segundo ela, a ideia para o longa-metragem surgiu a partir dos resultados dos filmes Muito Além do Peso, Criança, a Alma do Negócio e Tarja Branca (todos disponíveis gratuitamente em www.videocamp.com). Sua intenção em conhecer a realidade da primeira infância em vários países era apresentar laços de humanidade que unem as pessoas. “Apesar de ter estado em lugares geograficamente distantes, o que estávamos buscando é o que nos une. E o amor que temos pelos nossos filhos e o que sonhamos pra eles é um laço que nos costura enquanto humanidade”, diz a diretora. “Ouvimos desejos idênticos de pais e mães com relação ao seus filhos, mesmo separados por continentes e classes sociais. Aliás, o que nos une é o que desejamos para nossos filhos. E o que nos separa é a condição que o ambiente nos dá para proporcionar ou não isso para eles.” O maior desejo de Estela é fazer com que O Começo da Vida seja um agente de transformações sociais. “Gostaríamos que este filme fosse assistido e se tornasse ferramenta de transformação social

CENAS DE O COMEÇO DA VIDA Crianças não são ajudadas por programas, mas por pessoas


Gostaríamos de acreditar que um dia este filme se torne uma referência na formação para pais, educadores, profissionais de saúde, gestores, dentre outros. Gostaríamos que este filme fosse indicado por ginecologistas, pediatras, psicólogos, pedagogos, amigos e amigas Estela Renner

IMAGENS DIVULGAÇÃO

CIDADANIA

p­ ara lideranças políticas, para lideranças empresariais, sociedade civil, amigos e amigas. Enfim, gostaríamos que os conceitos impressos no filme – criatividade, afeto, empatia, direitos humanos, licença parental, parceria, a importância dos relacionamentos com os outros, com a natureza, a beleza, ética e moral, a importância do brincar – fizessem parte da formação de nossa sociedade”, resume. Um dos temas presentes no longa é a desigualdade social. Leah Ambwaya, ativista pelos direitos das crianças e presidenta da Fundação Terry Children, no Quênia, afirma que “a pobreza nega às crianças muitos dos seus direitos”. O médico Jack Shonkoff, do Centro de Desenvolvimento da Criança da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, declara que não se pode ajudá-las sem ajudar os adultos que cuidam delas. “Crianças não são ajudadas por programas, mas por pessoas. As consequências de não darmos às criancas o que elas precisam custam muito caro para a sociedade”, enfatiza o também professor. A médica brasileira Vera Cordeiro, fundadora da Fundação Saúde Criança, deixa uma pergunta para reflexão. “Este mundo investe em satélite, em diversas áreas, para conhecer novos planetas e ir para Marte, para a Lua, para Urano… A gente não vai investir na condição humana, na humanidade que está nascendo? Como a gente pode pensar em um mundo de paz, de colaboração, de bem-aventurança onde o começo da vida não é levado em conta?”, questiona. Em três anos de trabalho, Estela afirma que encontrou em cada bebê a possibilidade de uma nova humanidade. Apesar de O Começo da Vida ser um longa sobre os primeiros anos da infâcia, ele trata sobretudo de afeto, diálogo, aprendizado, empatia, solidariedade, colaboração, criatividade, direitos humanos. E também sobre a importância da brincadeira, o espírito de comunidade, a quebra de papéis de gênero na maternidade e fora dela, sobre como é fundamental incentivar verdadeiramente a amamentação por meio de políticas públicas. É, enfim, uma espécie de chamada global por um futuro mais inclusivo e mais gentil com todos. REVISTA DO BRASIL

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CULTURA VITOR MARIGO / TYBA

Déficit cultural Em crise, Rio de Janeiro abandona seus bens históricos. Pelo menos 40 estão em situação de abandono Por Maurício Thuswohl 44

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O conjunto arquitetônico do Largo do Boticário, no Cosme Velho, é particular e foi posto à venda

A estátua de João Caetano, no Largo de São Francisco, já foi atacada diversas vezes


O Solar dos Abacaxis, no Cosme Velho, é um dos mais importantes edifícios neoclássicos da cidade

LEO LADEIRA

CULTURA

nados. De um levantamento sugerido pelo grupo surgiu a lista inicial com 40 monumentos da capital e do interior que necessitam de cuidados imediatos. A lista foi entregue em abril do ano passado ao deputado estadual Zaqueu Teixeira (PDT), presidente da Comissão de Cultura. Nela estão itens de grande importância histórica, como o Convento do Carmo, o Museu do Primeiro Reinado e o Museu da Cidade, além de conjuntos arquitetônicos como o Largo do Boticário e o Campo de Santana, entre outros. O Grupo de Trabalho sobre Patrimônio Cultural formado na Assembleia tem a participação de representantes do Ministério da Cultura e da Secretaria Estadual de Cultura, além de órgãos como o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (ligado à prefeitura), o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e a Fundação Parques e Jardins. De julho a novembro de 2015 foram realizadas cinco reuniões, e a lista de bens abandonados já ultrapassa 200 itens. Existe a previsão de que no segundo semestre sejam retomados os trabalhos para concluir as propostas levantadas pelo GT, com posterior realização de uma audiência pública. Mas, diante da crise financeira e da falta de empenho dos órgãos responsáveis, a expectativa de que alguma melhoria aconteça de fato é praticamente nula.

C

om déficit de R$ 19 bilhões previsto pelo governo para 2016 e em meio a uma crise financeira que culminou com o não pagamento dos salários de 137 mil aposentados e pensionistas do estado em abril, o Rio de Janeiro não tem tempo nem dinheiro para cuidar de seus bens culturais e históricos. Passado um ano desde a formação, pela Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa (Alerj), de um grupo de trabalho que reúne órgãos do governo estadual e de outros setores para discutir e propor soluções, ainda não foi executado um único projeto de restauração e preservação em 40 bens que foram identificados em situação de abandono parcial ou total pelo poder público. Tampouco há previsão orçamentária para levar adiante essa tarefa, em uma gestão que acaba de aprovar dotação suplementar de R$ 900 milhões para as obras de construção da Linha 4 do metrô. A discussão sobre a degradação dos bens culturais e históricos fluminenses veio à tona após a criação, por meio de uma página na rede social Facebook, do movimento S.O.S. Patrimônio, que reúne museólogos, historiadores, arquitetos e artistas, além de outros interessados na restauração dos equipamentos abando-

ALBERTO CARDOSO

Água abaixo

“A formação do grupo de trabalho foi uma grande perda de tempo, não foi à frente, não deu em nada. Na prática, nenhum órgão de nenhuma instância se mexeu, não houve nenhum esforço. A Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana), que seria responsável pela limpeza dos equipamentos, e o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que seria responsável pela restauração, nem sequer compareceram às reuniões. Isso é uma grande tragédia cultural, pois estamos perdendo nossa riqueza, nossa história está indo por água abaixo. É muito triste”, afirma o guia de turismo Alberto Cardoso, integrante do S.O.S. Patrimônio e um dos responsáveis pela elaboração da lista de bens abandonados. Na avaliação de Zaqueu Teixeira, a crise financeira vivida pelo estado e a decorrente imobilidade dos órgãos executivos explicam o insucesso da iniciativa. “As ações de preservação do patrimônio estadual fazem parte dos recursos disponibilizados para a Secretaria de Estado de Cultura, que tiveram cortes em torno de 42% desde o início de 2016, dentro do já parco recurso. Parte das ações é articulada com o governo federal, que também passa por limitações de apoio. Logo, o quadro para o ano de 2016 é complexo”, diz o deputado. A Assembleia, segundo Zaqueu, procurou fazer a sua parte. “O trabalho do Legislativo consiste na elaboração e melhoria das legislações e dispositivos legais e na fiscalização das ações do Executivo. O Inepac, no entanto, nos apresentou um quadro do seu funcionamento que é de poucos técnicos, apesar do excesso de vontade”, diz. Já a Secretaria de Cultura tem outra explicação para a falta de resultados do Grupo de Trabalho. “Até agora, o Inepac não recebeu nenhum projeto por parte do GT REVISTA DO BRASIL

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CULTURA ALBERTO CARDOSO

Em ruínas, o Solar do Visconde de São Lourenço, na rua do Riachuelo, foi interditado

da Alerj”, afirma a secretária Eva Doris Rosental, por intermédio de sua assessoria. Assessora especial da Comissão de Cultura, Morgana Eneile aponta a falta de eficiência dos órgãos estaduais como um problema que dificulta a preservação dos bens culturais no Rio de Janeiro. “Uma conclusão a que se chegou no GT é que precisa haver um canal de denúncia que não passe só pelo Inepac. O governo estadual se envolveu, foi a todas as reuniões. Só que o Inepac nem é um instituto de fato, é uma superintendência, não tem uma estrutura própria separada.” Outro problema, diz Morgana, é a falta de recursos. “O ­Legislativo não pode demandar nada que traga custos para o Executivo. Um projeto de lei que passa, por exemplo, por aumento da estrutura não pode ser iniciativa nossa, tem que ser do Executivo. Ao mesmo tempo, como o Executivo pode demandar a criação de um cargo, um único que seja, para a área do patrimônio numa crise em que ele não consegue sequer pagar os salários dos servidores de carreira?”, questiona. O S.O.S. Patrimônio, no entanto, considera que o abandono dos bens históricos e culturais do Rio vem de muito antes da crise atual. “O problema não é o déficit, é a falta de vontade pura 46

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e simples, é o desprezo pela história e pela cultura”, diz Alberto Cardoso. “Isso é um traço de política de Estado porque a cultura não é contemplada pelo governo. Se a educação, a saúde e o saneamento não são contemplados, a cultura é que não iria ser. No campo cultural o Brasil só não deve ficar atrás do Estado Islâmico. Só eles devem tratar pior os monumentos.”

Novas leis

Considerada fundamental, a adoção de uma nova legislação para garantir uma melhor preservação dos bens culturais e históricos também não prosperou. “Tínhamos a esperança de que, a partir dos trabalhos do GT, saísse um projeto de lei que criasse uma brigada do patrimônio”, acrescenta Cardoso. Este conceito já existe em outros países e funciona como uma brigada de incêndio de uma empresa. “São pessoas que passam por um treinamento básico e técnico sobre o patrimônio histórico, ministrado pelos órgãos que cuidam dos bens, e que têm a permissão de fazer intervenções imediatas. Se, por exemplo, existe um patrimônio em risco iminente de desabar, a brigada pode atuar com respaldo legal”, compara. “Hoje em dia, quem limpar um monumento do patrimônio histórico no Rio é incurso


CULTURA

sar possibilidades de dar visibilidade ao patrimônio e também fazer a revisão das leis existentes. Foi iniciado um debate sobre a revisão da legislação atual, que data da década de 1970, e cogitada a abertura de novas ações, como a intervenção da sociedade civil no cuidado com o patrimônio e na fiscalização deste.”

Pessimismo

FOTOS ALBERTO CARDOSO

O Palacete São Cornélio, na Glória, corre risco de perder todo seu interior

Para Morgana Eneile, “os resultados não se deram necessariamente em relação a um monumento restaurado” porque é preciso uma política pública com a participação efetiva dos diversos atores envolvidos. “Não basta o desejo de um patrimônio público por parte de quem o valoriza. Por isso, o trabalho do GT acabou se tornando tão complexo de resolver. Listamos um conjunto de ações, mas nenhuma delas se tornou concreta não porque não tenha como ser concretizada, mas porque são coisas difíceis de serem resolvidas do ponto de vista orgânico. Isso é um trabalho que vai levar tempo, não vai ser executado no tempo que a gente gostaria”, afirma. O pessimismo dos envolvidos pode ser medido pelas palavras de Alberto Cardoso. “Desde o início, eu sabia que não seria feito nada. A realidade no Rio é uma tragédia, ninguém se sensibiliza. Uma cidade que constrói uma ciclovia por R$ 45 milhões que mais parece uma pinguela e cai em três meses matando gente mostra o desprezo pelas leis, pela ética, pela vida humana. Nesse contexto, nosso passado não vale nada, a cultura não vale nada. Estão deixando tudo ser destruído porque as verbas públicas vão todas para o lazer e o esporte, mais nada. Quando chegar a Olimpíada, o que nós teremos para mostrar aos estrangeiros em termos de cuidado com o nosso patrimônio?”, indaga.

Exemplos do abandono

no crime de dano ao patrimônio, o que é um absurdo. Então, ninguém cuida, porque se cuidar vai preso. O que a gente está tentando é normatizar essa lei. Essa seria uma vitória, mas para isso é preciso que a Assembleia Legislativa se mexa, e a ­Assembleia não se mexe. No atual momento político, a cultura foi totalmente relegada.” Uma nova lei geral do patrimônio é outro sonho distante. “Não conseguimos consolidar um projeto de lei. Chegamos ao final do ano passado com a possibilidade de ter um novo texto de legislação patrimonial, mas o Estado foi contra. Isso acabou tomando muito tempo. De certa forma a gente parou no meio do caminho após compilar tudo e atualizar as questões que foram demandadas em uma nova lei do patrimônio”, diz Morgana Eneile. Enquanto a lei não sai, avalia a assessora da Comissão de Cultura, alguns paliativos podem ser adotados. “Um dos resultados que esperamos do GT é aprovar já na próxima reunião um projeto de lei que seja uma espécie de disque-denúncia do patrimônio.” Segundo o deputado Zaqueu Teixeira, a busca por uma nova legislação prossegue em 2016. “O Grupo de Trabalho se pautou por soluções para além das ações do Executivo, buscando anali-

Cardoso dá alguns exemplos de como a situação de abandono dos bens históricos e culturais do Rio de Janeiro se agravou nos últimos meses, apesar da criação do Grupo de Trabalho para tratar desse tema na Assembleia Legislativa. “Um dos objetos que nós tanto queríamos preservar – o Palacete São Cornélio, no Catete – está num estado pior do que estava há um ano. Foi invadido, arrancaram as calhas pluviais. O imóvel está hoje em uma situação que, se chover, vai perder totalmente seu interior. Está de pé por um milagre.” “O Convento do Carmo, na Praça XV, construído por Dom João VI, está com as janelas abertas desde um ano atrás”, acrescenta. “Nós pedimos ao governo para entrarmos no prédio ou para pagarmos alguém para ao menos fechar as janelas, mas o pedido foi negado. Já fizemos um estudo, houve um compromisso pela restauração, mas as janelas continuam abertas. O vento, as chuvas e os animais estão deteriorando o único prédio joanino da cidade.” “O monumento ao General Osório, também na Praça XV, está sendo dilapidado vagarosamente”, completa o ativista. “Já arrancaram o gradil, as letras de bronze, a espada do general, as balas de canhão. Já tentaram roubar até os painéis laterais, e nada foi feito pelo poder público.” REVISTA DO BRASIL

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curtaessadica

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

Perspectivas feiras de ilusões. 1969

LEON RODRIGUES/ SECOM

FOTOS: PAULO SCHLICK/DIVULGAÇÃO

La manana llego. 1968

Por Xandra Stefanel

Arte para não esquecer A exposição Antonio Benetazzo, Permanências do Sensível apresenta ao público 90 obras do ex-dirigente do Movimento de Libertação Popular (Molipo), morto por agentes da ditadura brasileira em 1972. Suas obras, até então inéditas, estavam espalhadas em casas de amigos e familiares e foram garimpadas durante mais de dois anos. “Estamos diante de uma bela obra, a transitar por diferentes estilos e a propor olhares ainda desconhecidos

Triste animação A dura realidade das crianças e adolescentes que fogem da guerra são o tema da campanha internacional Contos Desencantados, do Unicef. Em formato de contos de fadas, três animações apresentam histórias reais de quem já cedo teve de escapar do horror e da morte. O objetivo da iniciativa é fomentar atitudes positivas em relação às crianças que se deslocam em diversas partes do mundo. “As histórias dessas três crianças não são incomuns. Em todo o mundo, pelo menos 65 milhões de crianças e jovens estão em movimento – fugindo de conflitos, pobreza ou climas extremos – em busca de uma vida mais estável e de um lugar que possam chamar de lar”, afirma Paloma Escudero, diretora global de comunicação da entidade. No Brasil, até o momento, Malak e o Barco – Uma Viagem da Síria e Mustafá sai para uma Caminhada – Uma Jornada da Síria receberam legendas em português. Os vídeos podem ser assistidos no canal do Unicef Brasil no YouTube. 48

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sobre o Brasil do regime militar. É imprescindível destacar que ele foi um grande artista, autor de um projeto estético singular”, afirma o curador da exposição, Reinaldo Cardenuto. A mostra fica em cartaz até 29 de maio no Centro Cultural São Paulo, de terça a sexta-feira, das 10h às 20h, e aos sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h, na Rua Vergueiro, 1.000, em São Paulo. Mais informações: (11) 3397-4002. Grátis.

Malak e o Barco – Uma Viagem da Síria

Mustafá sai para uma Caminhada – Uma Jornada da Síria


DIVULGAÇÃO

A arte da empatia Em cartaz até 30 de outubro no Museu Histórico Nacional, no centro do Rio de Janeiro, a exposição Diálogo no Escuro mostra como é o mundo sem o sentido da visão. Em salas totalmente escuras e conduzido por guias com deficiência visual, o visitante se depara com ambientes que representam características de ruas, parques, comércios e praias: cheiros, sons, temperaturas, texturas e ventos estimulam os outros quatro sentidos. A mostra, que já passou por mais de 140

cidades de 40 países, tem o objetivo de promover reflexões sobre deficiência, diversidade, empatia e tolerância. Os organizadores advertem: “O passeio em si dura pouco mais de uma hora, mas os efeitos podem durar uma vida”. De terça a sexta-feira, das 10h às 17h30 (R$ 6 e R$ 12), e aos sábados e domingos, das 10h às 18h (R$ 10 e R$ 20), na Praça Marechal Câmara, s/n, Rio. Bilhetes à venda no site do Ingresso Rápido.

Nordeste de Alceu

Brasil místico

O cantor e compositor Alceu Valença se aventurou pelos caminhos do cinema e dirigiu o longametragem A Luneta do Tempo, que estreou em março. Mas não é porque estava atrás das câmeras que Alceu deixou a música de lado: ele compôs toda a trilha sonora do filme pela qual acabou ganhando prêmios nos festivais de Gramado e Aruanda. As 28 faixas compõem um CD duplo homônimo, recentemente lançado pela gravadora Deck. A maioria das músicas é instrumental e todas refletem a rica sonoridade da obra de Alceu. Forrós, maracatus e baiões casam perfeitamente com o filme que se passa no sertão de Lampião e Maria Bonita, ao ritmo de tambores, flautas e triângulos. O disco pode ser ouvido e comprado no site http://deckdisc.com.br. A trilha do filme está também disponível em formato físico e custa R$ 50,90.

Depois de uma separação difícil, a artista sérvia Marina Abramović decidiu fazer uma jornada espiritual pelo Brasil em busca da cura e de inspiração artística. É este percurso que apresenta o documentário Espaço Além – Marina Abramović e o Brasil (foto), de Marco Del Fiol. A artista acompanha os tratamentos de cura do médium João de Deus, em Abadiânia (GO), incorporações no Vale do Amanhecer, no Distrito Federal, e práticas xamânicas, em Curitiba, e conhece o Santo Daime e o chá de ayahuasca, na Chapada Diamantina, na Bahia. “Eu senti uma necessidade pessoal de fazer essa viagem ao Brasil em um momento em que eu passava por problemas emocionais e pessoais. Esta viagem deveria ser como um processo de cura”, afirma Abramović no documentário, que tem estreia prevista para 19 de maio nos cinemas brasileiros.

MARCO ANELLI/DIVULGAÇÃO

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FLÁVIO AGUIAR

A hora da ira

N

aquele dia 17 de abril, atravessando­a madruga em Berlim, devido ao fuso horário, assistindo ao deprimente espetáculo que a Câmara de Deputados proporcionou – não a mim, ao mundo inteiro –, me surgiu a lembrança de Castro Alves, no poema Navio Negreiro – Tragédia no Mar: Existe um povo que a bandeira empresta P’ra cobrir tanta infâmia e cobardia!… … Meu Deus! Meu Deus! mas que bandeira é esta, Que imprudente na gávea tripudia? … Auri-verde pendão da minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra E as divinas promessas da esperança… Tu, que da liberdade após a guerra, Foste hasteado dos heróis à lança, Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!

Não sei o que aquela escória comandada pelo presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), está pensando. Em termos éticos, não importa. Eles arrastaram o Brasil à vergonha universal. Não tenhamos ilusões: somos motivos de chacota pelo mundo inteiro, inclusive nas imagens das vivandeiras de ocasião, lavando lágrimas de crocodilo na nossa bandeira, que percorrem as primeiras páginas de todo o mundo. O que importa é pensar no que está por trás disso. Não me refiro à mídia golpista. Ora, ora, ela cospe­todo santo dia na bandeira brasileira. Não me refiro à legião de gângsteres que invocavam o nome de filhos, mamães, papais, médicos, para cometer o ato assassino de condenar uma presidenta honesta. Eles cospem na própria memória todo santo dia. Também não me refiro aos capitalistas malignos (porque, apesar de tudo, há os que não são), que esfregam as mãos pensando no quanto mais vão arrancar do nosso povo – classe média iludida aí dentro. 50

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O que me vem à mente é a corriola de idiotas que a face empresta para cobrir aquela infâmia ocorrida­, sob as mais variadas máscaras. As máscaras corporativas, as máscaras supostamente éticas que, em nome de arrepiar a corrupção, convivem com os Al Capones do Congresso como se isto fosse o normal da vida. Em nome de apresentar uma fachada de probidade, admitem chafurdar no pântano das falsidades. Preferem isso a botar em risco os seus privilégios, que pensam ser direitos in natura, como se direitos não fossem universais, mas atestados de nascença reservados em cartório. Fico pensando onde essa gente estará. Pode ser no círculo infernal de Dante destinado aos hipócritas. Vestem roupas de cores brilhantes e bonitas, mas que pesam como chumbo, e que os impedem de se movimentar. Ou quem sabe estarão no círculo onde os condenados têm a cabeça voltada para trás, não conseguindo nunca olhar para frente, o que os faz contundir-se constantemente. Ou ainda podem estar no círculo dos corruptos, mergulhados no piche fervente, ou na própria merda­: se levantam a cabeça, são impiedosamente espancados pelos demônios, para que mergulhem de novo no poço ignominioso de sua submissão. Ou então, e muitos estarão neste plano, ficam detidos no portal do Inferno, perseguidos por mutucas e vespas implacáveis. São os que não pecaram por serem tão covardes que nem a isso tiveram coragem de chegar: são os omissos, os “deixa pra lá”, os “isto não é comigo”, que tanta alegria fizeram aos Hitlers, Stalins, McCarthys e – por que não dizer – aos pequenos Cunhas da vida. Que a terra não lhes seja leve, nem o pó do esquecimento os perdoe.


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