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SÉRGIO VAZ E O PODER DA PERIFERIA A formação do orgulho passa pela cultura e o saber nº 121 setembro/2016 www.redebrasilatual.com.br

OS INFINITOS CONTRASTES DA ÍNDIA O país escancara verdades que o Ocidente prefere esquecer


DEIXE A PLAYLIST DE LADO. A ALEGRIA DE OUVIR RÁDIO ESTÁ DE VOLTA

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GRANDE S. PAULO

As notícias que as outras não dão e as músicas que as outras não tocam. 24 horas no ar, todos os dias

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ÍNDICE

EDITORIAL

8. Política

Por uma frente ampla em defesa do Brasil

14. Eleições

A importância de São Paulo para o Brasil

18. Saúde

A medicina privada avança sobre o SUS

22. História

Pequisa revela como a Volks ajudou a ditadura

26. Cinema

Tendler documenta influência do capital na política global

32. Entrevista

Sérgio Vaz, da Cooperifa, traduz a cultura da periferia

38. Cidadania

Areia Grande, no sertão da Bahia, contra os poderosos Há várias edições, a revista alerta sobre as consequências do golpe Índia: cultura rica; povo pobre

DANILO RAMOS

Estrada sinuosa

42. Viagem

Do mais lindo ao mais triste, a magia e os contrastes da Índia

Seções Cartas 4 Marcio Pochmann

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Destaque do mês

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Mauro Santayana

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Lalo Leal

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Emir Sader

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Curta essa dica

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Crônica: Ladislau Dowbor

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“P

obre e classe média defendendo o golpe faz lembrar aquele mascote da Sadia. Aquela ave feliz que fala bem da empresa que mata aves.” Esta frase, tirada de um desses “memes” que circulam nas redes sociais, é ilustrativa do processo de enganação a que foi submetida a população nos últimos tempos. Pessoas que vestiram amarelo para protestar contra a corrupção foram, em sua maioria, massa de manobra para dar suporte ao golpe. E com ele se impôs um governo fisiologista, carregado de denúncias de corrupção, do qual partirão ainda os ataques a direitos sociais e trabalhistas, que não escolherão suas vítimas pela cor da camisa. Todos serão afetados. A tática dos usurpadores foi encorpada pela violência típica das ditaduras. No dia em que São Paulo protagonizou uma gigantesca manifestação pela democracia, pelo “Fora, Temer” e por “Diretas já”, mais de 20 pessoas haviam sido detidas mesmo antes de o protesto começar. Entre elas, menores de idade sem direito a defesa. Atos dos dias anteriores também foram marcados pelo uso desmedido de tropas e armas. O enredo e os ingredientes se complementam: o poder econômico a sustentar políticos inescrupulosos, o poder da mídia a enganar a sociedade e a força das tropas a sufocar as vozes dissonantes. Sem que o povo seja convocado a decidir sobre o destino do país, nenhum governo terá legitimidade para evitar que mergulhemos numa crise ainda mais penosa – e a, pelo menos, mais dois anos de instabilidade política e social. A única certeza de agora é de que se não houver resistência, as pessoas sofrerão mais, a crise não terá hora para terminar e corre-se ainda o risco de o poder ser usurpado para além de 2018. Aos movimentos sociais e à sociedade organizada cabe dialogar muito com a população desorganizada e envolvê-la nessa batalha – política, jurídica, de informação e, sobretudo, nas ruas. REVISTA DO BRASIL

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CARTAS deles. Quem hoje pode negar, com base científica, a teoria de Darwin? Luiz Soares de Oliveira

www.redebrasilatual.com.br Coordenação de planejamento editorial Paulo Salvador e Valter Sanches Editores Paulo Donizetti de Souza Vander Fornazieri Editor Assistente Vitor Nuzzi Redação Cida de Oliveira, Evelyn Pedrozo, Eduardo Maretti, Fábio M. Michel, Gabriel Valery, Helder Lima, Hylda Cavalcanti, Rodrigo Gomes e Sarah Fernandes Arte Leandro Siman Iconografia Sônia Oddi Capa Tiago Macambira (protesto) Priscilla Vilariño/RBA (Sérgio Vaz) Danilo Ramos (Índia) Sede Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100 Tel. (11) 3295 2800 Comercial Sucesso Mídia (61) 3328 8046 Suporte, divulgação e adesões (11) 3295 2800 (Carla Gallani) Impressão Bangraf (11) 2940 6400 Simetal (11) 4341 5810 Distribuição Gratuita aos associados das entidades participantes Tiragem 120 mil exemplares

Conselho diretivo Adriana Magalhães, Almir Aguiar, Aloísio Alves da Silva, Amélia Fernandes Costa, Arcângelo Eustáquio Torres Queiroz, Carlos Decourt Neto, Carlos Eduardo Bezerra Marques, Cláudio de Souza Mello, Claudir Nespolo, Cleiton dos Santos Silva, Douglas Izzo, Edgar da Cunha Generoso, Edmar da Silva Feliciano, Eliana Brasil Campos, Eric Nilson, Fabiano Paulo da Silva Jr., Francisco Alano, Francisco Jr. Maciel da Silva, Genivaldo Marcos Ferreira, Gentil Teixeira de Freitas, Gervásio Foganholi, Glaucus José Bastos Lima, Isaac Jarbas do Carmo, Izídio de Brito Correia, João Carlos de Rosis, José Eloir do Nascimento, José Enoque da Costa Sousa, José Jonisete de Oliveira Silva, José Roberto Brasileiro, Juberlei Baes Bacelo, Luiz César de Freitas, Magna Vinhal, Marcos Aurélio Saraiva Holanda, Marcos Frederico Dias Breda, Maria Izabel Azevedo Noronha, Nilton Souza da Silva, Paulo César Borba Peres, Paulo João Estaúsia, Raimundo Suzart, Raul Heller, Roberto von der Osten, Rodrigo Lopes Britto, Rosilene Corrêa, Sérgio Goiana, Sonia Maria Peres de Oliveira, Vagner Freitas de Moraes, Valmir Marques da Silva, Wilson Franca dos Santos Diretores responsáveis Juvandia Moreira Rafael Marques Diretores financeiros Rita Berlofa Moisés Selerges Júnior

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Carlos Lessa Do jeito que a sociedade brasileira é desunida, eles venderão absolutamente tudo e nada acontecerá com eles, vide o tétrico caso da privataria. (Entrevista com Carlos Lessa, ed. 120) Alexandre Abreu Laura Tavares Só não entendi a omissão de ser enfermeira e sanitarista. Não sabia que a professora Laura Tavares havia resolvido ser também economista, como sua mãe Maria da Conceição Tavares, mas apagar uma história na enfermagem e na saúde pública. Até porque a ela, brilhante como é, conseguiu o ápice dentro de uma profissão tão aviltada e discriminada neste país. Quanto à entrevista foi brilhante e fruto da sabedoria de Laura Tavares, enfermeira, sanitarista e, também, economista. (“Muitos morrerão antes”, ed. 120) Marcos Brito Laura e a mordaça Gostaria de parabenizar pela excelente entrevista com Laura Tavares. Lembram-se do que dizia o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso? “O Brasil não aguenta salário mínimo de US$ 100...” Com o governo Lula, o salário mínimo chegou a bater em US$ 300 e o Brasil não somente aguentou como cresceu. Agora aquele neoliberalismo da época do FHC – se era tão bom, por que o Brasil vivia em recessão? – volta a bater à nossa porta. (Entrevista com Laura Tavares, “Muitos morrerão antes”, ed. 120). Gostaria de parabenizar também pela excelente reportagem “Pedagogia da mordaça” (na mesma edição). Em alguns estados americanos, é proibido o ensino da Teoria da Evolução nas escolas. Se eles querem viver na idade média, problema

Imprensa decadente Já deixei há muito tempo de assistir à TV Globo e as outras. Não compro nenhuma publicação que venha da Editora Globo ou da Abril. É uma quadrilha. E o poder judiciário se associou a elas. Que nenhum desses congressistas golpistas volte a repetir mandatos nas próximas eleições. E vamos trabalhar nas bases eleitorais desses deputados e senadores golpistas para lembrar ao povo que eles são os ladrões do Brasil. Roubaram o nosso bem precioso, o nosso voto, a nossa democracia, a nossa liberdade. Assassinaram a nossa Constituição. Tudo no Brasil merece ser repensado, a começar pelo STF, que tem uma minoria comprometida com a democracia. (“O jornalismo do colapso à fraude”, ed. 120) Willams Will O texto de Santayana aponta o caminho a seguir. Informar doutrinando, cada vez mais, cidadãos que se tornarão uma legião crescente de patriotas, solidários com a humanidade trabalhadora do país e dos demais países emergentes e periféricos. É preciso reverter esta tendência conservadora, golpista e autoritária. Nossos filhos e netos, enfim, as novas gerações não merecem um futuro de intolerância fascista. A Ponte para o Futuro de Temer, Cunha, Globo, Gilmar Mendes, Moro, Janot e Cia. deve ser detonada. (“O Brasil na camisa de Força”, ed. 119) Nelson Raimundo Braga

carta@revistadobrasil.net As mensagens para a Revista do Brasil podem ser enviadas para o e-mail acima ou para o seguinte endereço: Rua São Bento, 365, 19º andar, Centro, São Paulo, CEP 01011-100. Pede-se que a mensagem venha acompanhada de nome completo, telefone e e-mail.


MARCIO POCHMANN

Impedimento de Dilma e descrédito da política

Advento do governo Temer agrava o descrédito na política ao fazer valer o coronelismo da República Velha, segundo o qual tanto faz quem está de plantão no governo: os poderosos seguirão intocados

ROVENA ROSA/AGÊNCIA BRASIL

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os estertores do mês de agosto do ano de 2016, o processo de impedimento do governo da presidenta Dilma Rousseff, legítima e majoritariamente eleita em novembro de 2014, fez acender o alerta amarelo acerca da finalidade e da validade do regime democrático no Brasil. Por sua tradição autoritária, posto que sua experiência democrática representa apenas um quarto tempo da sua existência enquanto nação independente desde 1822, a perspectiva da disputa pelo poder por meio das eleições livres encontra-se novamente comprometida. Em síntese, a frustração da esperança de que as transformações significativas da realidade nacional frente a um capitalismo excludente e externamente dependente possam de fato vir a ocorrer. Consolida-se, assim, a máxima do conservadorismo das elites dirigentes de que o futuro possível é tão somente o congelamento do presente. Mesmo o reformismo corretivo de excessos numa sociedade tão desigual segue inaceitável pela elite dirigente, indicando o quanto inexiste marcha progressiva, tão pouco trajetória evolutiva na histórica da dominação brasileira. O que significa dizer que o estamento burocrático identificado por Raymundo Faoro (em seu clássico Os Donos do Poder) e por Florestan Fernandes (em A Revolução Burguesa no Brasil) permanece ativo e altivo no interior do aparelho de Estado ao longo do tempo. Não obstante evidências de modernização provocadas pela recente inserção passiva na globalização, as estruturas institucionais e políticas no país não se alteraram, apenas adaptaram-se aos esquemas de continuidade, cada vez mais complexo e sofisticado. Nesses termos, os vícios do patrimonialismo, com privilégios extra-econômicos garantidos aos estamentos burocráticos do Estado, seguem “imexíveis”, independentemente da vigência do regime democrático. Da mesma forma, o papel da comunicação na disputa e convencimento da direção moral, cultural e política da sociedade se mantém central. Certamente Antônio Gramsci (Cadernos do Cárcere) identificou e destacou como a organização da comunicação se apresenta comprometida com a manutenção e defesa da sustentação ideológica do bloco dinâmico do poder, dispensando a existência do regime democrático. Diante disso, a esquerda que se organizou em torno de parti-

Avenida Paulista, 31 de agosto de 2016

dos políticos desde a transição da ditadura civil-militar (1964-1985) para o regime democrático, acreditando que as eleições não eram apenas para valer, mas, sobretudo, para transformar a realidade, fragiliza o seu sentido material. O governo Temer, em suas consequências forjadas pela experiência da República Velha (1889-1930), aponta que tanto faz qual seja o partido de plantão no governo: os interesses do coletivo de ricos, poderosos e privilegiados seguirão intocados. Por isso, proclamam que a Constituição Federal de 1988 não cabe na economia brasileira de 2016 em diante. Se o regime político atual impossibilita a mudança democrática da realidade, qual o sentido prático de perseguir somente retórica, uma vez que a aliança conservadora entre o estamento burocrático e o poder das comunicações termina por bloquear a viabilidade da mudança prática? O descrédito atual da política no Brasil resulta justamente disso. Ou seja, a constatação acerca da lacuna entre o descompromisso das promessas com suas realizações possíveis. REVISTA DO BRASIL

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redebrasilatual.com.br

JAILTON GARCIA/RBA

Wilson Fernandes, contra a precarização de direitos

Informação diária no portal, no Twitter e no Facebook

Seduzir e precarizar

Eleito em agosto para a presidência do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT-2), o maior do país, Wilson Fernandes é crítico do discurso da pretensa “modernização” das relações do trabalho. Ele não vê relação direta entre flexibilização e criação de postos de trabalho e alerta que o “discurso sedutor” pode ser usado, na verdade, para simplesmente retirar direitos, em um momento de crise, em que o trabalhador mais precisa de proteção. O magistrado diverge do presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Ives Gandra Filho, que já manifestou apoio ao Projeto de Lei 4.962, de 2016, que trata da flexibilização. E também critica o PLC 30, que tramita no Senado, sobre terceirização. “Terceirizar a atividade-fim significa precarização de direitos.” Fernandes toma posse em outubro. bit.ly/rba_trt-2

A argentina radicada no Brasil Paola Carosella dispensa o título glamouroso de chef e vai direto ao ponto: “Sou cozinheira”. Conforme conta, na casa em que nasceu, nos arredores de Buenos Aires, havia uma horta. “Orgânico não era alternativo. Era a única coisa que existia. E não sou tão velha assim”, diz. “Hoje que sou conhecida e converso com as pessoas, digo que estamos comendo veneno; que estamos matando nossos filhos ao fazer um suco de laranja.” Ela lembra que há cerca de 500 feiras orgânicas catalogadas em todo o país. “É pouco. Eu e muita gente que conheço queremos comprar produtos 100% orgânicos e não temos como. Não tem carne orgânica.” Para ela, há uma série de coisas que devem ser mudadas. “Não vamos viver num mundo que não precisa de dinheiro, mas a ambição tem de ser menos desmedida. É possível fazer um suco sem espremer as pessoas junto.” Paola participou de audiência pública na comissão especial que analisa projeto de lei conhecido como “PL do veneno”, por revogar os principais pontos da Lei dos Agrotóxicos, facilitando o registro de novos agroquímicos e afrouxando regras e punições. bit.ly/rba_paola

Pesquisa ameaçada

FACEBOOK PAOLA CAROSELLA

Paola Carosella: “estamos comendo veneno”

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Uma lavoura de tomate orgânico produz em média de seis a oito quilos por metro quadrado. Essa produtividade, porém, pode ser 60% maior, chegando a render 9,5 quilos, com a utilização de um fungo chamado Trichoderma. O resultado é de grande relevância porque o tomate é dos alimentos mais consumidos e mais envenenados, segundo uma pesquisa da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). E porque derruba um dos principais argumentos da indústria de agrotóxicos, o de que só com uso de agroquímicos é possível aumentar a produção. O estudo é da Unidade de Pesquisa de Agricultura Ecológica de São Roque (SP), vinculada à Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios (Apta), órgão da Secretaria Estadual da Agricultura. Mas pesquisas de relevância semelhantes à de São Roque, desenvolvidas em 16 outras unidades da Apta, estão ameaçadas por um projeto do governo de Geraldo Alckmin (PSDB). O PL 328/2016 tramita em caráter de urgência e está para ser votado na Assembleia Legislativa. bit.ly/rba_apta

CEDIDO POR APTA

Menos veneno, mais saúde


Não é a escola

Durante duas semanas, a cada medalha conquistada ou perdida por atletas brasileiros na Olimpíada surgiam questionamentos das razões pelas quais o Brasil não consegue entrar no seleto grupo das potências esportivas. Com frequência, a escola passou a ser apontada como o caminho seguro para a redenção olímpica. Inclusive profissionais da imprensa esportiva apontaram a mesma solução. Para o professor Marcos Garcia Neira, da Faculdade de Educação da USP e coordenador do Grupo de Pesquisas em Educação Física Escolar, não é função da escola e dos professores de educação física a formação de atletas. Para ele, a solução é a criança, ou o jovem, se inserir num clube ou num centro de treinamento, em que a entidade seja federada da respectiva modalidade. “Não temos tradição nem conhecimento de formar pessoas para atuar no esporte de alto nível”, diz o professor. bit.ly/rba_esporte_escola

SATIRO SODRÉ/SSPRESS

REDEBRASILATUAL.COM.BR

Hugo Parisi, saltos ornamentais no parque aquático Maria Lenk nos Jogos Olimpicos Rio 2016

Fotógrafo Sérgio da Silva, recebeu bala de borracha no olho durante violência da PM contra manifestantes em 2013

GERARDO LAZZARI/RDB

Vidas poupadas No momento em que o Estatuto do Desarmamento está sob ameaça no Congresso Nacional, com iniciativas parlamentares que buscam revogá-lo, o Mapa da Violência 2016 – homicídios por armas de fogo no Brasil, divulgado na última quinta-feira (25), mostra justamente a importância do Estatuto na redução do número de mortes por arma de fogo no Brasil. Segundo o estudo, cerca de 133 mil vidas foram poupadas entre 2004 (o primeiro ano em vigor do Estatuto) e 2014. bit.ly/rba_desarma

A culpa é da vítima

FABIO RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL

“Essa decisão judicial é o que costumo chamar de um segundo ato de violência. O primeiro foi a violência física praticada pela Polícia Militar, em 2013. O segundo é o juiz promovendo essa falácia, me condenando por estar ali fazendo meu trabalho, exercendo meu direito e a minha profissão”, diz o fotógrafo Sérgio Andrade da Silva, atingido no olho esquerdo por uma bala de borracha durante protesto contra o aumento da tarifa do transporte público, em junho de 2013, em São Paulo. Sérgio teve o pedido de indenização recusado pela Justiça de São Paulo. A sentença alegou que ele foi culpado pelo ocorrido, por se colocar na linha de tiro. “Essa minha indignação não é só pessoal. É uma indignação coletiva. Nas redes sociais dá para se ver muitas manifestações repudiando essa decisão. No Estado de direito, é um absurdo você pensar que uma pessoa que vá para um ato para trabalhar, fotografar, que seja culpada pela violência que sofre.” bit.ly/rba_culpa_da_vitima REVISTA DO BRASIL

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POLÍTICA NAS RUAS Paulista, 4 de setembro de 2016: mais de 100 mil por “Fora, Temer” e “Diretas Já”

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POLÍTICA

A vida após o

VITOR VOGEL

golpe Diante da agressão à democracia consumada em 31 de agosto de 2016, o campo progressista tem agora o desafio da união Por Eduardo Maretti

MARCIA MINILLO/RBA

A

s forças progressistas e democráticas do país têm diante de si uma tarefa que pode ser associada metaforicamente ao mito grego conhecido como Os Doze Trabalhos de Hércules. As dificuldades são imensas, em decorrência tanto de conhecidos erros políticos cometidos pelo PT no governo, quanto da sofisticação do golpe parlamentar consumado em 31 de agosto de 2016. Ainda é cedo para previsões confiáveis num cenário ainda nebuloso. “O horizonte de análise do cenário político ainda está muito curto. É como dirigir sob neblina, você não enxerga muito bem o que está à frente”, diz o cientista político Leonardo Barreto, da Universidade de Brasília (UnB). Nesse horizonte, uma das certezas é a necessidade de compreensão – por parte de democratas, movimentos sociais, partidos políticos progressistas, centrais sindicais populares e empresários preocupados com o futuro do Brasil – de que é urgente a união em torno do que o cientista político Roberto Amaral, um dos coordenadores da Frente Brasil Popular, vem defendendo muito antes do impeachment: uma “política de frente”. Essa união deve necessariamente incluir forças liberais progressistas, como afirmou o ex-ministro

Luiz Carlos Bresser-Pereira em várias ocasiões durante o processo político, para muitos, iniciado em 2013. Perdida a luta contra o impeachment, a reorganização não apenas da esquerda, mas de um espectro mais amplo, é condição necessária para o enfrentamento do que vem por aí. Porque, como diriam os mineiros, 2018 “está logo ali”, e as hesitações decorrentes da perplexidade instaurada com a vitória do golpe parlamentar podem custar muito mais caro, a partir de 2019, do que parece hoje. “Construir uma aliança contra a fascistização e o caos deve ser, daqui pra frente, a primeira missão dos que têm um mínimo de lucidez e informação – neste país assolado por ódio, mentira, hipocrisia e ignorância”, diz Mauro Santayana, em artigo nesta edição (leia na página 12). “É preciso costurar uma ampla aliança nacional, que parta, primeiramente, do centro nacionalista (se não existir, é preciso criar-se um).” Isso porque o alcance da vitória ultraconservadora que levou Michel Temer a assumir definitivamente o governo do Brasil é amplo, considerando que a grande derrotada é uma entidade que não se pode fulanizar, nem partidarizar: a Constituição Federal de 1988, que Ulysses Guimarães (1916-1992) ajudou a construir com sua extrema habilidade política após os anos de obscurantismo pós-1964. REVISTA DO BRASIL

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POLÍTICA

Fatura é cobrada

A afirmação de que o impeachment sem crime de responsabilidade “rasgou” a Constituição Cidadã não é mera retórica, usada por opositores de Temer. Com iniciativas emblematizadas pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 241, que congela gastos públicos em todas as esferas de governo por 20 anos, e suspende as vinculações constitucionais orçamentárias em educação e saúde, o governo “eleito” indiretamente pelo Congresso Nacional busca suprimir em nome do ajuste fiscal todo tipo de direitos conquistados pela cidadania, instituídos pela Carta de 1988. A proposta viola o inciso IV, parágrafo 4º do artigo 60 da Constituição, que proíbe emenda constitucional “tendente a abolir os direitos e garantias individuais”. Demole o artigo 5°, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, cujo caput é o abrangente “todos são iguais perante a lei”. Afronta os artigos 194 e 195 (que tratam da Seguridade Social), os artigos que tratam do Sistema Único de Saúde (SUS), de seguro-desemprego e da assistência social. “Essa PEC simplesmente enterra a Constituição de 1988 no que diz respeito aos direitos sociais. É simples assim”, afirma o economista Eduardo Fagnani, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Além disso, estão na iminência de se concretizar ameaças a direitos trabalhistas inscritos na Consolidação das Leis do Trabalho, o que nem mesmo Fernando Henrique Cardoso, que governou por oito anos (1995-2002), conseguiu fazer. E as entidades empresarias que patrocinaram a destituição da presidenta eleita já começam a cobrar a fatura. “Junto com a Frente Parlamentar da Indústria de Máquinas e Equipamentos, nós apoiamos a votação, o mais rápido possível, da PEC 241, da limitação dos gastos públicos, e incentivamos as reformas da Previdência e trabalhista”, afirmou em nota o presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos (Abimaq), José Velloso, no próprio dia 31. “É urgente fazermos a reforma da Previdência Social e modernizar a legislação trabalhista”, ecoou o presidente da Confederação Nacional da Indústria, Robson Braga de Andrade. As ameaças à Petrobras e às riquezas nacionais, não apenas o petróleo, mas também a água, entre outras, além dos direitos já mencionados, nunca estiveram tão perto de se concretizar. E é por isso que, segundo Roberto Amaral, o projeto de Temer “vai requerer repressão do movimento sindical em geral, em particular dos petroleiros, e dos movimentos do campo”. É nesse contexto, considerando a amplitude da derrota, que se insere a urgente necessidade de as forças democráticas, para além do PT, entenderem o tamanho da tarefa. “A derrota não é só da Dilma, nem do Lula, nem do PT. Não é nem da esquerda. É de todas as forças progressistas. A regressão do tipo que se abateu no país é uma derrota inclusive dos liberais e democratas. A corrupção venceu”, disse o sociólogo Laymert Garcia dos Santos no dia 31 de agosto.

O papel de Lula

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva dá sinais de compreender a importância de seu partido abandonar o apego a uma es10

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pécie de egocentrismo partidário e abraçar a causa de uma frente ampla e democrática. Inclusive porque, como observa André Singer no livro Os Sentidos do Lulismo, o ex-presidente não liderou um governo de oito anos propriamente de esquerda, mas de centro-esquerda. Reformista em alguns aspectos, e não de rompimento. Daí a perplexidade de muitos diante da ferocidade das forças retrógradas perante um grupo que, no poder, passou longe de propor qualquer solução mais radical, do tipo da implementada por Hugo Chávez (1954-2013) na Venezuela. Durante os anos em que governou, o PT sempre considerou oportunos os acordos e alianças, desde que ele próprio fosse sempre o cabeça de chapa. Com sua reconhecida capacidade política e de articulação, Lula continua sendo a principal força aglutinadora da centro-esquerda brasileira. Ele estaria considerando a possibilidade de que um candidato de outra legenda tenha o apoio de seu partido em 2018. Em resolução divulgada no dia 2 de setembro, com a presença de Lula, o PT demonstrou entender parcialmente a necessidade de uma frente ampla. O partido apontou para a necessidade de se “construir uma ação conjunta e iniciativas práticas com partidos e entidades populares, capazes de mobilizar e dar efetividade a este objetivo rumo à normalização democrática, como a Diretas Já”. Mencionou as frentes Brasil Popular e Povo sem Medo. Mas o entendimento soa parcial porque, embora tenha mencionado as Diretas Já na resolução, o partido parece se esquecer de que aquele movimento de 1984 era formado por uma frente muito mais ampla e envolvia mais do que partidos e movimentos de esquerda. Em dezembro de 2015, Roberto Amaral já afirmava o que considerava então a estratégia para evitar o golpe: “O pro-


POLÍTICA

ROBERTO PARIZOTTI/CUT (SÃO PAULO – 04/09/2016)

Resistência

FELIPE LAROZZA/VICE (SÃO PAULO – 01/09/2016)

FINAL PROGRAMADO Quando as “autoridades” acham que a manifestação foi longe e tem de acabar, a PM parte pra cima com cacetetes, balas de borracha e bombas de efeito moral

blema é ampliar nosso campo, atraindo para a defesa da legalidade os liberais e democratas”. Nesse sentido, movimentos de esquerda precisam compreender e ter humildade para aceitar dentro dessa frente ampla figuras do perfil dos senadores Kátia Abreu (PMDB-TO) e Armando Monteiro (PTB-PE), ex-ministros de Dilma Rousseff, ligados ao agronegócio e à indústria, respectivamente, mas fiéis à ex-presidente até o fim. Apesar da fidelidade a Dilma e de seu papel contundente na defesa da democracia, Kátia chegou a ser hostilizada em manifestações de esquerda.

Por outro lado, lideranças como o presidente da CUT, Vagner Freitas, e o coordenador da Frente Povo sem Medo, Guilherme Boulos, assumem de imediato a tarefa da resistência. “O golpe na democracia afetará profundamente a vida dos trabalhadores e trabalhadoras do campo e da cidade e dos brasileiros e brasileiras que mais precisam da manutenção e ampliação dos direitos e das políticas públicas, tanto hoje quanto no futuro. Não se trata de uma simples troca de comando e, sim, da usurpação dos destinos do Brasil por uma parcela da classe política, do judiciário e da imprensa que quer o poder a qualquer preço”, alertou o dirigente da CUT logo após a votação do impeachment. “Exerceremos resistência diária e aguerrida contra os inimigos da pátria. Não estamos sós, ocuparemos todos os espaços e, da mesma maneira que já fizemos antes, combateremos o arbítrio e a tirania, sempre em defesa da democracia, da participação popular, da distribuição de renda, justiça social e direitos da classe trabalhadora”, afirmou Vagner. Porém, dentro do ambiente obscuro que se instalou no país­, ainda é possível destacar pontos positivos. O principal talvez seja traduzido por uma metáfora: a semente. Existe expectativa de que as sementes plantadas durante os 13 anos de governo petista frutifiquem, apesar das justificadas críticas de lideranças e movimentos sociais aos governos de Lula e Dilma, de que não implementaram reformas estruturais, como a tributária, do sistema político, de comunicação e da educação, quando tinham apoio popular, e um Congresso menos hostil, para executá-las pelo menos em parte. No médio prazo, a ameaça concreta ou mesmo a confirmação da perda de direitos deve despertar parte da população paralisada pela guerra midiática para a compreensão do que realmente estava em jogo em 2016. “A gente tinha um projeto de ir mais longe, mas não fomos. Mas o pouco que se andou foi uma caminhada. E essa possibilidade de ir à universidade, apesar das condições em que ela está, da possibilidade do sonho da casa própria apesar de todos os problemas do Minha Casa Minha Vida, a gente experimentou uma vitória, tímida, da ideia de que a gente também tem direitos”, disse no dia 31 de agosto a ativista Jurema Werneck, da coordenação técnica da organização Criola, que defende e promove os direitos das mulheres negras. “Vamos sinalizar que, perdendo ou ganhando, eles não são donos. Eles estão em vantagem nesse momento, é verdade. Mas a luta para eleger Lula e Dilma é uma luta de décadas, em que vínhamos produzindo esse clima de insurgência e indignação, de necessidade de mudanças. Isso fica porque não acabou. A gente não desiste porque os fascistas, racistas, homofóbicos e sexistas estão vencendo neste momento”, acentua Jurema. Junto às necessidades de se construir uma frente unificadora das forças democráticas, progressistas e liberais, e de resistir à supressão de direitos, há finalmente outras exigências. A de que a esquerda, como um todo, e o PT, em particular, reavaliem seu papel, seus erros e acertos, no processo que levou ao golpe parlamentar de 2016, enquanto aos movimentos caberá lutar pela sua superação. REVISTA DO BRASIL

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MAURO SANTAYANA

O Brasil e o perigoso jogo da história Construir uma aliança contra a fascistização e o caos deve ser a primeira missão dos que têm um mínimo de lucidez e informação – neste país assolado por ódio, mentira, hipocrisia e ignorância

O

afastamento definitivo de Dilma Rousseff da presidência da República foi apenas mais uma etapa de um embate muito mais sofisticado e complexo, em que está em jogo o controle do país nos próximos anos. Desde que chegou ao poder, em 2003, o PT conseguiu a proeza de fazer tudo errado, fazendo, ao mesmo tempo, paradoxalmente, quase tudo certo. Livrou o país da dependência externa, pagando a dívida com o FMI, e acumulando US$ 370 bilhões em reservas internacionais, que transformaram nosso país no quarto maior credor individual externo dos Estados Unidos. E o fez sem aumentar a dívida pública. Mas isso não veio ao caso. Ajudou a criar 20 milhões de empregos, fez milhões de casas populares, criou Pronatec, ProUni, Ciência Sem Fronteiras e Fies, fez dezenas de universidades federais e promoveu extraordinários avanços sociais. Mas isso não veio ao caso. Voltou a produzir e a construir navios, ferrovias – a Norte-Sul já chegou a Anápolis (GO) – usinas hidrelétricas, plataformas e refinarias de petróleo, mísseis, tanques, belonaves, submarinos, rifles de assalto, multiplicou o valor do salário mínimo e da renda per capita em dólares. Mas isso não veio ao caso. Porque o PT foi extraordinariamente incompetente em explicar, para a opinião pública, o que fez. Se tinha um projeto para o país, e que medidas faziam – coordenadamente, na economia, nas relações exteriores, na infraestrutura e na defesa – parte desse projeto. Confiou mais na empatia e na intuição do que a informação e no planejamento. Chamou, para estabelecer sua linha de comunicação, “marqueteiros” sem afinidade com as causas defendidas pelo partido, e sem maior motivação do que a de acumular fortunas. O PT teve mais de uma década para explicar didaticamente à população as vantagens da democracia, seus defeitos e qualidades, e sua relação de custo-benefício para os povos e as nações. Teve o mesmo tempo para estabelecer uma linha de comunicação que explicasse a que tinha vindo, e os avanços e conquistas que obtinha para o país. O PT dividiu-se, e não estabeleceu uma estratégia clara, de longo prazo, que pudesse manter em andamento o projeto que pretendia implementar para o país. Suas lideranças foram reiteradamente advertidas de que ocorreria o que ocorreu – a presença aqui da mesma embaixadora norte-americana do golpe paraguaio era claramente indicativa disso. De nada adiantou. 12

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De que era preciso estabelecer uma defesa competente do governo e de seu projeto de país na internet – cujos principais portais foram desde 2013 praticamente abandonados à direita e à extrema-direita, enquanto a esquerda, sem energia para se mobilizar, se recolhia ao monólogo, à vitimização e à lamentação em grupos fechados e páginas do Facebook. Não deu combate às excrescências que sobraram do governo Fernando Henrique, justamente no campo da corrupção, com a investigação de uma infinidade de escândalos anteriores, que poderia ter levado à cadeia bandidos antigos como os envolvidos nos problemas da Petrobras. E cometeu erros táticos imperdoáveis. Não é possível que personagens como Dilma e Lindbergh continuem defendendo a Operação Lava Jato, de público, quando essa operação parcial e seletiva foi justamente o principal fator na derrubada da presidente da República. Desse processo, nasceram uma nova classe média e uma plutocracia egoístas, conservadoras e “meritocráticas”, entregues de mão beijada para adoção institucional pela direita. Ampliaram-se a autonomia, o poder e as contratações do Ministério Público e da Polícia Federal, medidas elogiáveis que poderiam em princípio funcionar bem em um país verdadeiramente democrático, mas que, no Brasil da desigualdade e da manipulação midiática, levaram à criação de uma nova casta de funcionários públicos formados em universidades privadas – alinhadas à direita – com financiamento do Fies e em cursinhos para concurseiros, que não têm nenhuma visão real do que é o país, a República ou a História, e acham, ao lado de jovens juízes, que devem mandar na Nação no lugar dos “políticos” e do povo que os elege. Como consequência disso, há, hoje, uma batalha jurídica sendo travada, principalmente, no âmbito do Congresso Nacional, voltada para a aprovação de leis fascistas – disfarçadas, como sempre ocorre historicamente, sob a bandeira da anticorrupção, pretende alterar a legislação e o código penal para restringir o direito à ampla defesa consubstanciado na Constituição, no sentido de se permitir a admissibilidade de provas ilícitas, de se restringir a possibilidade de se recorrer em liberdade, e de conspurcar os sagrados e civilizados princípios de que o ônus da prova cabe a quem acusa e de que todo ser humano será considerado inocente até inequívoca prova de sua culpa.


FERNANDO FRAZÃO/AGÊNCIA BRASIL

PROTESTOS Em várias cidades manifestantes vão às ruas contra posse do interino e afastamento definitivo de Dilma

Enquanto isso, aguerrida, organizada, fartamente financiada por fontes brasileiras e do exterior, a direita – “apolítica”, “apartidária”, fascista, violenta, hipócrita – deu um show de mobilização. Estabeleceu seu domínio sobre os espaços de comentários dos grandes portais e redes sociais – em um verdadeiro massacre midiático, uma espécie de discurso único, imposto como sagrada verdade para parte da população. Entre as principais lições dos últimos anos, vai ficar a de que a História é um perigoso jogo que não permite a presença de amadores. Enganam-se aqueles que acham que o confronto expõe apenas a direita e a esquerda. Mais grave é a guerra que se desenha, e que já começou, entre os que atacam a política, os “políticos”, a democracia e o presidencialismo de coalizão contra os que serão chamados a mobilizar-se para defendê-los daqui até 2018 e além. O futuro da República e da Nação será definido por esse embate. E é o conjunto de erros e circunstâncias que vivemos até agora, e o que faremos a partir de agora, que poderá levar, ou não, para o Palácio do Planalto e o Parlamento, um governo fascista e autoritário em 2019. A judicialização da política, a ascensão da antipolítica e de uma plutocracia que acredita que não precisa de votos nem de maior legitimação do que sua condição de concursada para “consertar” o país e punir vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores, presidentes da República, em defesa de “homens de bem” que desfilam com as cores da bandeira e com uniformes negros de inspiração nazista, ajudará a sepultar o regime presidencialista anteriormente vigente, e introduzirá um novo elemento, ilegítimo e espúrio, no universo político brasileiro, transformando-se em permanente ameaça para o funcionamento e a essência da democracia. Infelizmente, para o país e para a República, a permanência de Dilma tornou-se insustentável. Caminhamos para uma situação de confronto em que o fascismo já está ficando com todas as armas, e a esquerda com todas as vítimas. Nações e pessoas

precisam aprender que, às vezes, é preciso saber dar um passo para trás para depois avançar de novo. É preciso resistir, mas com um projeto claro para o país. A corajosa defesa do governo Dilma por parte de grandes lideranças da agricultura e da indústria, como os senadores Kátia Abreu e Armando Monteiro, mostram que não é impossível sonhar com uma aliança que una empresários e trabalhadores nacionalistas em torno de um projeto vigoroso e coordenado de desenvolvimento. Que possa promover o fortalecimento do país, do ponto de vista econômico, militar e geopolítico e evitar, ao mesmo tempo, a abjeta entrega de nossas riquezas, como os principais poços do pré-sal aos estrangeiros. A costura de uma aliança que evite a subordinação e a fascistização do país deveria ser, daqui pra frente, a primeira missão de todo cidadão brasileiro – ou ao menos daqueles que tenham um mínimo de consciência e de informação – neste país assolado pelo ódio e pela mentira, a hipocrisia e a ignorância. A divisão da Nação, a crescente radicalização e o isolamento das forças democráticas – que devem combater esse isolamento também internamente e rapidamente se organizar sob outras legendas e outras condições; a fratura da sociedade nacional; a desqualificação da política e da democracia; só interessam àqueles que pretendem consolidar seu domínio sobre o nosso país. É preciso costurar uma ampla aliança nacional, que parta, primeiramente, do centro nacionalista (se não existir, é preciso criar-se um), suprapartidária, politicamente inclusiva, equilibrada e conciliatória, que una militares nacionalistas da reserva – e eles existem, vide o Almirante Othon, por exemplo –, empresários, técnicos e engenheiros desenvolvimentistas, grandes empresas de capital majoritariamente nacional e os trabalhadores em torno de um projeto que possa evitar o estupro das liberdades democráticas e dos direitos individuais e a entrega de nossas riquezas e de nosso futuro aos ditames internacionais. Vamos fazê-lo? REVISTA DO BRASIL

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ELEIÇÕES

O FUTURO DE Cabe aos cidadãos entender seu papel na democracia, e o da democracia em suas vidas, para que o golpe que abalou o Brasil não abale, na mesma intensidade, o lugar onde vivem. Sobretudo na maior metrópole do país Por Helder Lima

O

dia 16 de agosto marcou o início da corrida eleitoral nos 5.570 municípios do país. A campanha traz novidades. Vai durar pouco, 45 dias, e deve diminuir também o volume de recursos, com a proibição das doações de empresas a candidatos e partidos. E com a audiência da TV aberta em queda, o horário eleitoral obrigatório tende a ter sua influência reduzida. Crescerá a importância do tradicional corpo a corpo e da presença inteligente nas redes sociais. Mas não são apenas as formas de campanhas que afetarão as eleições nas cidades. Além da mudança de regras, a crise política e a economia em recessão pesarão sobre o conteúdo. Projetos de aperto fiscal e ataques a direitos, a consolidação do impeachment de Dilma Rousseff, a incapacidade do governo federal de emplacar uma retomada do crescimento na economia exigirão muita competência dos candidatos em mostrar do que serão capazes. E como se não bastasse a crise prolongada pelo golpe parlamentar, há 14

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ainda o descontentamento popular com política e o descrédito geral nos políticos – massificado com a ajuda dos meios de comunicação. “Nessa disputa, mais do que nunca, o debate sobre o destino das cidades e de questões específicas e locais deve ser ofuscado, já que o ambiente eleitoral está profundamente contaminado pela crise política que vive o país. Estão no centro dessa crise, inclusive, o próprio modelo político-eleitoral, a representatividade e a forma como os partidos se estruturaram e cresceram”, escreveu em seu blog a urbanista Raquel Rolnik, professora da Universidade de São Paulo. A ocasião, no entanto, pode ser uma oportunidade para se discutir o resgate

da democracia a partir das cidades. É o que acredita a também urbanista e professora da USP Erminia Maricato. “Do meu ponto de vista, podemos reinventar o processo democrático no país a partir das eleições municipais. Isso porque nós conseguimos construir um período de governo democrático que distribuiu renda por meio dos governos municipais”, afirmou. “Precisamos recuperar a importância da descentralização das decisões do poder local, a democracia direta, especialmente o orçamento participativo, especialmente o favela-bairro. Transformar as favelas e bairros periféricos em áreas saneadas, em bairros dignos, com todos os equipamentos de infraestrutura”, diz Erminia.


ELEIÇÕES

LEON RODRIGUES/SECOM/PREFEITURA - SP

SÃO PAULO por denúncias de irregularidades. E, com outras palavras e estilo, mas idêntico na essência antipetista, apresenta como objetivos desfazer realizações da gestão de Haddad, elogiadas internacionalmente. Revogar a redução do limite de velocidade que mitigou os acidentes de trânsito e melhorou a fluidez nas ruas, desvalorizar a cultura cicloviária, interromper a expansão das faixas exclusivas de ônibus para introduzir um formato privatizado de corredores estão entre seus objetivos. Quem também não aprecia reconhecer algo de positivo na gestão Haddad é a candidata do PMDB, Marta Suplicy. Marta é a outra ponta do racha tucano. Adversário de Alckmin no ninho, com vistas à disputa regional e nacional de 2018, José Serra preferia indicar Andrea Matarazzo. Perdeu, e fez de Matarazzo vice da ex-petista, com apoio de Gilberto Kassab. A ex-prefeita, depois de perder para os inimigos em 2004 (para Serra) e em 2008 (para Kassab), juntou-se a eles. Deixou o antigo partido para se filiar ao PMDB de Michel Temer e se associar ao golpe parlamentar que derrubou Dilma ­Rousseff. Em São Paulo, porém, levanta como prin-

cipais bandeiras ações de seus tempos de PT, como os Centros de Educação Unificados (CEU). As unidades de educação integral abertas às comunidades dos bairros onde estão instaladas foram marca do programa que comandou na condição de petista na gestão 2001-2004. Acabaram abandonadas pelas gestões de Serra e Kassab (2005 a 2012) e só foram retomadas por Haddad na atual gestão, ganhando inclusive cursos noturnos gratuitos de extensão universitária para educadores. A eleição traz ainda como novidade a presença de Luiza Erundina concorrendo pelo Psol. Como Fernando Haddad, mas com menos estrutura partidária e tempo de rádio e TV, a primeira prefeita mulher da maior cidade do p­ aís (1989-1992) entra no debate eleitoral como reforço do campo democrático e – apesar dos 81 anos bem vividos – como alternativa de renovação, fiel aos mecanismos de democracia participativa e a uma visão de planejamento urbano voltada a corrigir, no futuro, aberrações do crescimento desordenado. A Fernando Haddad, por sua vez, mesmo exercendo na prática essa gestão baseada no esforço de longo prazo para solu-

HADDAD EM HELIÓPOLIS Um dos bairros beneficiados com iluminação com lâmpadas de LED. Tem gente que ainda acha que é obra da Eletropaulo

A cidade de São Paulo, por sua dimensão para o cenário nacional, é especialmente mais contaminada pela crise política. Como em quase todas as eleições, há sempre um candidato cujo objetivo de alimentar o ódio ao PT parece sempre maior do que convencer os eleitores a votar nele, como Major Olímpio (SD). De novidade, há o racha no PSDB. Para conseguir sua indicação, com apoio de Geraldo Alckmin, o empresário João Doria Júnior superou uma convenção partidária contaminada

ANANDA BORGES/CÂMARA DOS DEPUTADOS

Ricos, famosos... e os projetos?

PRIMEIRA PREFEITA Apesar dos 81 anos, Erundina aparece como alternativa de renovação REVISTA DO BRASIL

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CIETE SILVERIO/A2D

JEFFERSON RUDY/AGÊNCIA SENADO

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NINHO DIVIDIDO Marta aderiu aos golpistas do PMDB e tem o apoio do tucano José Serra. Alckmin lançou João Doria, pelo PSDB

cionar os maiores problemas da metrópole, não faltam adversidades. Sua administração sofre com o ódio promovido pelos principais meios de comunicação ao PT . Ele próprio reconhece ter falhado na comunicação, a ponto de a população não conseguir associar avanços à sua gestão. Por exemplo, a redução do tempo de percurso para quem vive em bairros mais periféricos e trabalha longe. Ou a instalação de iluminação de LED em bairros habituados à escuridão. “A nova iluminação está resgatando a sensação de segurança, pessoas estão voltando até a pôr a cadeira na calçada para conversar à noite. Mas tem gente que acha que isso é coisa da Eletropaulo, não sabe que é da prefeitura”, diz o secretário de Governo, Chico Macena. A não-novidade do pleito é a presença do deputado federal Celso Russomanno (PRB). Inexpressivo no Congresso Nacional, Russomanno se vale da popularidade conquistada como apresentador de TV. E que atingiu seu ápice na eleição de 2012, quando ficou fora do segundo turno na reta final. Na ocasião, caiu em desgraça quando sinalizou impor tarifas diferenciadas de ônibus conforme a distância percorrida pelo usuário. Pouco inteligente, numa cidade com as dimensões de São Paulo. Mas graças a essa popularidade, e não à defesa de algum projeto específico, ele voltou a começar a disputa na liderança. Não se sabe como irá terminar. 16

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Cidades engessadas

Um dos principais desafios de quem quiser levar a campanha e o futuro da cidade a sério, portanto, será conviver com menos recursos e pouco tempo para se comunicar. Ainda assim, a sucessão municipal é grande oportunidade de discussão sobre o modelo de cidade que se deseja para o futuro. Se uma cidade que seja espaço de humanização e resistência à mercantilização e inclusiva, ou voltada aos interesses do capital, como historicamente esteve marcada em seu crescimento. “É o desempenho que eles (candidatos) tiverem nos próximos debates e nas pesquisas eleitorais que vai determinar se um ou outro vai falar de questões mais propositivas ou vai privilegiar o ataque ao adversário”, afirma o cientista político Pedro Fassoni Arruda, professor da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP). “A crise política não vai sair do debate, mas as questões da cidade serão colocadas na medida em que os eleitores começarem a cobrar dos candidatos”, diz Arruda. No primeiro embate televisivo entre os candidatos houve tensão. Excluída por uma regra da minirreforma, que exige da legenda nove ou mais representantes na Câmara Federal para que o candidato participe, Luiza Erundina ficou de fora. Poderia ter participado se houvesse concordância de dois terços dos demais debatedores. Haddad e Russomanno aceita-

ram, mas Marta e Doria Júnior vetaram. Erundina foi com a militância à porta da emissora, no Morumbi, zona sul de São Paulo para protestar. Somente depois de o debate acontecer o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou a inconstitucionalidade da restrição. “A Band antecipou o debate antes da decisão do STF porque quis me excluir, porque eu defendo a democratização dos meios de comunicação”, disse. Não bastasse o imbróglio jurídico alimentado pela minirreforma, as medidas de ajuste fiscal de grande alcance pretendidas pelo governo de Michel Temer fazem com que os prefeitos e candidatos olhem para as cidades preocupados com o futuro. Sobretudo diante da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241. A proposta quebra as exigências de empenho mínimo com Saúde e Educação. Para o prefeito Fernando Haddad, os efeitos da PEC vão se tornar agudos na organização territorial da cidade e provocar a disputa da sociedade pelo orçamento público. Haddad lembrou que o poder público é atuante em frentes como saneamento, habitação e mobilidade. “Se não tiver o poder público, como fazer?”, indagou Haddad. “Congelar a capacidade de responder a isso vai causar que tipo de conflito? Não sou capaz de responder qual o significado social e político, como os governos progressistas vão se colocar diante dessa configuração.”


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Segundo o candidato à reeleição, a Constituição de 1988 significou um processo de fortalecimento dos municípios, pelo fato de ter descentralizado recursos. “Cada partido criou um modo de governar, nasceram experiências diferentes a partir de uma base constitucional que criava condições inéditas para os prefeitos”, defende, lamentando os retrocessos em curso no país, com a agenda de Michel Temer e um Congresso Nacional de conservadorismo sem precedentes.

Mais humana

LALO DE ALMEIDA / FOLHAPRESS

O economista Marcio Pochmann, candidato à prefeitura de Campinas (SP), disse que o risco de esvaziamento do debate sobre as cidades nas eleições deste ano ocorre graças ao papel da mídia. “Rui Barbosa dizia que a imprensa são os olhos e ouvidos da sociedade, mas não hoje”, afirma. Durante o debate com o tema “A cidade que você não vê na mídia”, promovido pelo Centro Barão de Itararé no final de agosto, Pochmann disse que a realidade das cidades não é o que se vê por meio da imprensa. Não bastasse a democracia sob ataque, a capacidade de o processo eleitoral aprofundar a busca de soluções para os problemas de mobilidade, moradia, saúde e educação é limitada pela falta de uma gestão

metropolitana. Como diz a urbanista Erminia Maricato, São Paulo são os 39 municípios que compõem o conglomerado urbano ao seu redor, onde vivem mais de 20 milhões de pessoas. Para a professora da USP, falta uma orquestração das gestões municipais. “Na nossa cidade, se você pegar o problema da mobilidade, vai ver que 70% do emprego fica no centro expandido do município e grande parte dos trabalhadores não mora no município”, observa ela, para quem é impossível resolver o problema de mobilidade da metrópole só com política municipal. A professora chega a dizer que o maior desafio do próximo prefeito da capital será mostrar que os problemas são mais metropolitanos. “Não dá para resolver o problema da moradia dentro do município de São Paulo, nem o problema do meio ambiente. O prefeito de São Paulo é cobrado por coisas que não são dele. Às vezes vem um morador de Osasco ou de Guarulhos cobrar o prefeito de São Paulo por alguma coisa que não é responsabilidade dele”, defende. A urbanista alerta ainda para a concentração de renda. “Alguns anos atrás, constatei que 23% dos chefes de família do Brasil todo que ganhavam mais de dez salários mínimos moravam no município. É uma concentração de renda forte, é uma popu-

A NÃO-NOVIDADE Russomanno caiu em desgraça nas eleições de 2012 ao propor tarifas de ônibus diferenciadas, mais caras conforme a distância percorrida

lação que mora em condomínios e muito ligada à demanda de privilégios. Historicamente, é uma população acostumada a negar o problema da pobreza e da desigualdade – é uma população muito voltada para o próprio umbigo”, diz. Erminia, no entanto, pondera: “Mas não é toda essa classe média que é assim. Hoje você tem jovens da classe média, razoavelmente bem situados em termos de renda, que estão aí defendendo a humanização da cidade, a abertura da Avenida Paulista, as ciclovias, a prioridade para o transporte público”, destaca, reconhecendo um movimento maior em defesa de uma cidade mais humana. O professor da PUC-SP Pedro Fassoni Arruda lembra que existem alguns déficits na cidade que têm relação com a própria administração municipal. Ele também diz que houve avanços com a gestão de Haddad, mas como a professora Erminia, Fassoni destaca que na questão das linhas e corredores de ônibus, nem tudo é responsabilidade do governo municipal. “Enquanto a tarifa de ônibus é determinada pela prefeitura, a de trens e metrô é do governo estadual – assim como os ônibus intermunicipais.” Ele também diz que a prefeitura tem uma parcela de responsabilidade com a segurança pública, com a guarda civil, mas que a essência da segurança cabe ao governo estadual. “Houve melhorias, como o menor tempo para trabalhadores e estudantes chegarem ao trabalho, e a tarifa subiu abaixo da inflação do período. Saúde e educação deixam a desejar, mas houve melhorias graduais, com a construção de postos de saúde, escolas municipais, contratação de professores”, afirma. Indagado se a depender do candidato vitorioso a cidade pode perder conquistas, Fassoni diz acreditar que sim. A população da cidade de São Paulo, como a das demais 38 cidades que formam a região metropolitana, tem pouco tempo para decidir se caminhará em direção a um futuro mais civilizado, ou se permitirá um retrocesso amargo ao passado, como ao que está sendo submetido o país: o de entregar a máquina pública a grupos interessados em satisfazer interesses privados. REVISTA DO BRASIL

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SAÚDE MARCOS CORRÊA/PR

Entre o remédio e o

ENTREGA Governo e planos de saúde: a conta vai para os mais pobres

veneno R Arquitetada por operadoras e seguradoras privadas com aval do governo, a proposta dos “planos acessíveis” aponta para retrocesso nas regras do setor e o desmonte da rede de atendimento básico gratuito Por Cida de Oliveira 18

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eunidos desde o início de agosto, representantes do governo de Michel Temer e de planos e seguros de saúde finalizam proposta do setor para revigorar sua saúde financeira. A ideia é criar planos de saúde “acessíveis”, uma espécie de proposta pronta, que o ministro da Saúde, Ricardo Barros, defende desde que tomou posse, junto com o então governo interino de Michel Temer, em 12 de maio. A proposta soa também como mirabolante. Afinal, é apresentada como solução para o SUS, que só neste ano viu seu orçamento perder R$ 12 bilhões. No enredo desses planos, segundo o ministro, os mais pobres poderiam aderir e aliviar as filas do sistema público. Só falta ele traduzir: o governo quer resolver o financiamento do setor

enviando a conta para os mais pobres. “Será um tiro no pé dado pelo governo ao tentar tirar do bolso da população mais essa despesa”, diz o presidente do Conselho Nacional de Saúde (CNS), Ronald Santos. Famoso por suas pérolas machistas e sexistas que encobrem sua falta de intimidade com assuntos da pasta, Barros apregoa que convênios baratos para a população vão salvar as contas ao injetar de R$ 20 bilhões a R$ 30 bilhões por ano na saúde pública. No entanto, faltam estudos a respeito. “Os números, mágicos, só podem ter saído da cartola. Tudo indica o contrário. É um grande negócio para as operadoras”, contesta o economista Carlos Ocké, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e presidente da Associação Brasileira de Economia em Saúde.


SAÚDE

A proposta é uma das faturas cobrada por um setor que encolhe. De agosto de 2014 para cá, passou de 50 milhões de beneficiários – os titulares de planos, que podem ter vários dependentes – para 48,3 milhões. É 1,7 milhão de contratos a menos, segundo a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). Entre os motivos, mensalidades reajustadas acima da inflação e o sucateamento da rede, lotada, com espera semelhante à do serviço público, e problemas de gestão, como no caso da Unimed Paulistana, quebrada há um ano.

Só no SUS

Por essas razões, há mais de dois anos a artista gráfica Michaella Pivetti, 47 anos, de São Paulo, fez carteirinhas do SUS para ela e as duas filhas, de 7 e 13 anos. Consultas com pediatra, clínico geral, ginecologista e outras especialidades, exames e outros procedimentos, só na rede pública. “Ainda não passamos por situação de

emergência, mas nossa experiência tem sido boa. Há demora para alguns agendamentos e os postos estão cheios. Mas é assim também nos convênios particulares, cada vez mais caros e de menor qualidade”, diz Michaella. Nascida na Itália, ela compara o SUS ao sistema do seu país. “Serviço público é para atender bem dentro de estruturas básicas. Um serviço para tanta gente é assim em todo mundo, sem luxo. Precisamos de mais recursos para aperfeiçoar o SUS, e não acabar com ele”. A diarista Maria Zenilda Duarte Cabral, de São Paulo, foi para o SUS há quase sete anos, depois do nascimento de seu filho Lucas. “Fui muito bem atendida no pré-natal e no parto em hospital particular, mas ficava caro incluir o Lucas. Como eu usava pouco, preferi parar de pagar”, conta. Lucas é acompanhado pela mesma pediatra, que atende a caçula Isabella, de 5 anos. “Fiz pré-natal e parto pelo SUS, com atendimento igual no particular. O

médico do pré-natal é meu ginecologista até hoje.” Ela conta que os filhos fizeram cirurgias para retirada de adenoide e pequenas cirurgias e que não pretende voltar a pagar convênio. A saúde da população, porém, não deverá ser melhor com os planos de Barros. Para Ronald Santos, do CNS, os planos não serão baratos e nem para todos. “Esses planos de faz-de-conta vão excluir os idosos e quem tem doenças crônicas, que necessitam dos serviços com mais frequência”, diz. Santos teme também pelo desmonte da estrutura atual, com fechamento de unidades de UBS e UPA e demissão de trabalhadores, colocando em risco programas de saúde da família e outras políticas preventivas. O governo não deu detalhes, mas planos baratos não são novidade. Segundo a ANS, há 2.414 planos ambulatoriais já comercializados, sendo 908 familiares ou individuais, 1.038 coletivos ou empresaPRISCILLA VILARIÑO/RBA

TUDO PODE MUDAR Maria Zenilda e seus filhos Lucas e Isabella usam o SUS há sete anos: confiança e bom atendimento

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Negócios

Carlos Ocké, do Ipea, vê outra intenção por trás dos planos populares: a “financeirização” da saúde, já que o grupo de trabalho do Ministério da Saúde inclui representantes da Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNSeg). “Como o ministro vem dando pistas de que pretende mexer no plano de saúde individual e empresarial, provavelmente o individua­l vai ser ambulatorial com cobertura reduzida. Embora o foco esteja no plano popular, desconfiamos que haja mudanças nos plano empresariais, com a adoção da ideia do VGBL na saúde”, diz, citando a sigla para Vida Gerador de Benefícios Livres, um seguro de vida com cláusula de cobertura à saúde. Segundo Ocké, a ideia de uma nova categoria de plano que una assistência médica e previdência privada já vem sendo anunciada pela ANS desde 2011. Seria uma forma de um fundo de capitalização individual que, em tese, ajudaria a custear os gastos com saúde na velhice. “Isso vai pressupor recursos públicos, por meio de renúncia fiscal, num mix de poupança financeira com assistência médica atrativo num primeiro momento pela suposta vantagem de uma poupança que será sacada só em caso e doença. Mas como a probabilidade de um idoso ficar doente é grande, quando precisar de certos procedimentos vai ter que pagar do seu bolso porque o rol é muito limitado e terá franquia por uso”, explica. Embora atenda um quarto da população, o setor privado concentra 53% de todos os recursos. Vende a ideia de melhor atendimento – um sonho de consumo de muita gente e item da pauta de sindicatos – graças aos subsídios públicos diretos e indiretos. É a sociedade pagando esse benefício que os empregadores dão aos seus trabalhadores, e ao subsídio fiscal, em que pessoas física e jurídica abatem seus gastos com saúde no imposto de renda. São recursos que o Estado poderia arrecadar e não arrecada. Os planos ganham também ao não ressarcir o SUS pelo atendimento prestado a seus clientes. Um levantamento recente da Folha de

PRISCILLA VILARIÑO/RBA

riais e 464 por adesão. Outros quatro não são identificados pela agência. Há ainda planos em regime de adesão a uma entidade que assina o contrato com a operadora. No começo são baratos, e como têm reajuste fora de regulação, muitas vezes são reajustados pelo dobro da inflação e a operadora pode aumentar o valor quando os usuários passam a usar muito a rede credenciada, por exemplo. No começo, chegam a custar 40% menos e depois chegam a ter mais de 100% de aumento. Sem poder pagar, o cliente encerra o contrato. “Em geral oferecem consultas e exames simples, ao custo médio de R$ 100 mensais para a faixa etária em torno dos 35 anos, que exige menos acompanhamento do que na terceira idade. As pessoas não compram porque sabem que não cobrem nada e vão ter de acabar indo pro SUS”, diz o professor da Faculdade de Medicina da USP e vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Mário Scheffer.­A Abrasco, aliás, juntamente com o Conselho Federal de Medicina (CFM), a Sociedade Brasileira de Pediatria e o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), além de outras entidades, pretendem ir à Justiça contra o governo caso a proposta vingue. Causa preocupação, segundo Scheffer, a “ponte para o passado” embutida na proposta, mais especificamente aos anos 1990, antes da regulação do setor. “A cobertura era mínima, praticamente ambulatorial. Excluía tratamentos caros, como atendimento a doentes de câncer e de aids, e até aqueles mais baratos, como fisioterapia”, lembra. A regulamentação veio com a Lei 9.656/1998, em vigor desde 2 de janeiro de 1999, que garante o tratamento de todas as doenças listadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) na Classificação Internacional de Doenças (CID), inclusive quimioterapia, hemodiálise e transplantes. Mas a legislação praticamente foi revogada com a criação da ANS, em janeiro de 2000, que introduziu o conceito de rol de procedimentos obrigatórios. A cada “ampliação”, já há a falsa ideia de mais cobertura. Para o Idec, o rol é ilegal por restringir direitos garantidos em lei vigente.

S.Paulo mostrou que 30% das operadoras ainda não pagaram nem 1% do valor da dívida com o SUS. De 2001 para cá, deveriam ter sido ressarcidos R$ 2,1 bilhões. No entanto, 40% do valor não foi pago e nem parcelado para recebimento futuro, um valor estimado em R$ 826 milhões. Com 47% dos recursos, o SUS é o plano de saúde da Michaella, Maria Zenilda, seus filhos e outros milhões de brasileiros, que têm promoção da saúde, prevenção de doenças, vacinas, vigilância sanitária, SAMU, atendimento a doenças médias e complexas, como cirurgias de grande porte, transplantes. Essa desproporção explica a dificuldade de acesso ao sistema e a qualidade baixa dos serviços muitas vezes com demora na realização


SAÚDE

UM FUTURO MELHOR A má qualidade do convênio particular fez com que Michaella migrasse para o SUS: “Precisamos de mais recursos para aperfeiçoar o SUS, e não acabar com ele”

de consultas, exames e cirurgias que acabam capitalizadas como propaganda em prol do setor privado. Um quadro que tende a piorar na perspectiva de arrocho com a PEC 241. A previsão é congelar os investimentos por 20 anos, a partir de 2017, admitindo somente correção pela inflação do ano anterior. Ou seja, em 2036 a despesa da União deverá ser a mesma do mínimo constitucional fixado para 2016. Conforme o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), as aplicações mínimas de recursos destinados a ações e serviços públicos em saúde, atualmente regidos pela Emenda Constitucional 86, têm destinação cres-

cente e escalonada dos recursos, calculados em percentuais de arrecadação da Receita Corrente Líquida, que no exercício de 2016 é de 13,2%. Segundo as entidades, a EC 86, que substitui regra que vigorava desde 2000, a Emenda 29, reduziu os recursos da Saúde em 2016, com perdas da ordem de R$ 17 bilhões, se atualizados pelo IPCA. Além disso, a nova metodologia proposta pelo governo federal irá agravar o histórico subfinanciamento do setor. E mesmo que a arrecadação tributária aumente nos próximos anos, novos recursos financeiros não serão destinados necessariamente às áreas sociais. A regra, desde 2000, é que estados apliquem 12% e municípios, 15%. Municí-

pios, os que menos arrecadam, e estados respondem por 58% do total de gasto público em saúde, aplicando percentuais bem acima do que manda a Constituição. Em 2015 aplicaram, respectivamente, R$ 25 bilhões e R$ 6,4 bilhões além. “Para continuar oferecendo os serviços de atenção básica, temos aplicado 32% da nossa receita própria, mais que o dobro dos 15% que a Constituição determina”, diz o secretário municipal de Saúde de Osasco (SP), José Amando Mota. “Com os cortes no primeiro quadrimestre, posso dizer que não temos expectativa de executar o orçamento e nos manter no patamar de execução de 2015. Nosso teto financeiro vem sem correção há algum tempo.” REVISTA DO BRASIL

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HISTÓRIA ARQUIVO/ESTADÃO CONTEÚDO/AE (1974)

FUSCAS E PANCADAS Nos anos 1970 e 1980 a Volks manteve um rígido esquema de segurança em sua unidade de São Bernardo

Memórias Ministério Público investiga denúncia sobre participação da Volkswagen no aparato repressivo da ditadura, um capítulo histórico ainda obscuro Por Vitor Nuzzi 22

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ivulgado há quase dois anos, o relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) destinou um capítulo aos trabalhadores e ao movimento sindical. Entre as investigações que ficaram pendentes, está a participação de empresas em atividades da ditadura. E o caso da Volkswagen, entre outros, pode mostrar avanços em prazo mais curto: a pedido de várias entidades, o Ministério Público investiga, desde o final de 2015, possível colaboração da montadora com órgãos de repressão e violações de direitos humanos. A atuação é conjunta – envolve MP federal, estadual e do Trabalho. “O MPF recebeu da Comissão da Verdade documentos que comprovam o envolvimento da empresa no fornecimento de dados dos trabalhadores de suas fábricas ao Dops (um dos órgãos responsáveis pelas prisões e torturas do período), na orga-

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nização de um sistema próprio de vigilância e monitoramento do movimento sindical e do envolvimento direto na prisão e na tortura de seus empregados dentro do ambiente da empresa”, diz comunicado. Na representação encaminhada ao procurador regional dos Direitos do Cidadão do Estado de São Paulo, Pedro Antônio de Oliveira Machado, as várias entidades – entre as quais dez centrais sindicais, além de pesquisadores, ativistas e ex-funcionários – ressaltam a necessidade de esclarecimento de episódios daquele período histórico. E fazem referência à “obscuridade que ainda faz transbordar a ignorância e a superficialidade de tratamento do tema da complicidade do empresariado” com o regime autoritário. O documento também é assinado pela advogada Rosa Cardoso, que coordenou o grupo de trabalho do movimento sindical e a própria CNV, pelo ex-deputado Adriano


HISTÓRIA

Diogo, presidente da Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa paulista, e por Cezar Britto, ex-presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), entre outros. A Volks passou a negociar uma reparação judicial. Um diretor da matriz alemã, Manfred Grieger, veio ao Brasil em 2015 e reuniu-se com representantes do Ministério Público, inclusive com Machado, que falou sobre um possível termo de ajustamento de conduta (TAC). “Foi o início de uma discussão sobre como chegar a um acordo a respeito dessa questão”, afirmou na ocasião ao jornal O Estado de S. Paulo. Procurado para comentar o atual estágio das conversas, o executivo não respondeu ao pedido de informações. A empresa também não se manifestou. Ex-integrante do grupo de trabalho do movimento sindical na CNV, Sebastião Neto, coordenador do Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas (IIEP),

diz que o mais importante é estabelecer a cadeia de comando que existia na empresa. “Queremos chamar as pessoas a que ele(coronelAdhemarRudge,responsável pelo setor de segurança industrial da empresa) se reportava.” Segundo Neto, não existe nenhuma “Volksfobia” – mas a documentação que envolve o caso é extensa. A empresa demonstra relação próxima com o Dops. Neto afirma que a proposta de Grieger é de fazer reparações individuais, o que ele não considera interessante. “Nós queremos discutir reparação coletiva”, diz, citando possíveis ações, como projetos de educação e um memorial.

Responsabilidade

Vice-presidente do Comitê Mundial dos Trabalhadores na Volks, Reinado Marques da Silva, o Frangão, funcionário da empresa na unidade de São Bernardo do Campo, no ABC paulista, esteve com

Grieger na Alemanha. O executivo também se reuniu, em São Bernardo, com o presidente e o secretário-geral do Sindicato dos Metalúrgicos, Rafael Marques e Wagner Santana, respectivamente. Segundo ele, a montadora mostra disposição de fornecer documentos e assumir responsabilidades pelo ocorrido no Brasil, conforme o que for decidido pela Justiça, deixando claro que essa não é a prática do grupo. “O que eles colocam é: vamos arcar com tudo que for de minha responsabilidade sobre gestão de pessoas ligadas à empresa. Eles repudiam esse processo”, diz Frangão. À empresa de comunicação DW Brasil, também em 2015, Grieger afirmou ainda que a montadora iria investigar “todos os indícios” de participação da funcionários da empresa em violações de direitos humanos. “A Volkswagen lamenta muito que pessoas tenham sofrido ou tenham sido prejudicadas economicamente durante a ditadura militar, eventualmente, por

JESUS CARLOS/IMAGEMGLOBAL

da fábrica CLIMA DE GUERRA Armada com fuzis, a PM acompanha a movimentação dos grevistas na porta da Volks em 1979

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Violência

Em relação à Volks do Brasil, o relatório da CNV identifica “uma profusão de documentos” que, segundo o colegia-

DOCUMENTAÇÃO EXTENSA Sebastião Neto: “A empresa demonstra relação próxima com o Dops”

CÂMARA MUNICIPAL DE MOGI DAS CRUZES, SP

meio da participação de funcionários da Volkswagen do Brasil”, declarou. O caso da montadora instalada no Brasil nos anos 1950 (a fábrica do ABC começou a funcionar em 1959) pode ser emblemático, mas não é o único. Os relatos apontam colaboração de dezenas de empresas com a repressão. O relatório da CNV aponta “situação inédita” em 1964. “Na Primeira República, a fábrica era domínio privado do patronato e o Estado permanecia ausente. Com a criação da legislação trabalhista, a partir do Estado Novo, o espaço fabril tornou-se terreno de disputa, mediada pela virtual presença do Estado, e os conflitos se fizeram públicos.” Já na ditadura, acrescenta, “o Estado estará presente nas fábricas, não como árbitro, mas como ‘agente patronal’.”

WILSON DIAS/AGÊNCIA BRASIL

HISTÓRIA

VEIA MILITAR O coronel Adhemar Rudge chefiou o setor de segurança industrial da Volks de 1969 a 1991

do, comprovam a cooperação da empresa com órgãos como o Dops. Cita o caso do hoje aposentado Lúcio Bellentani, no ABC – funcionário no setor de Ferramentaria, foi preso na própria fábrica, durante o trabalho, em 1972, por dois homens, um deles portando metralhadora. “Na hora em que cheguei à sala de segurança da Volkswagen já começou a tortura, já co-

mecei a apanhar ali, comecei a levar tapa, soco”, relatou Bellentani em depoimento. O grupo de trabalho do movimento sindical na Comissão da Verdade cita ainda a formação, em 1983, do Centro Comunitário de Segurança (Cecose) no Vale do Paraíba, interior de São Paulo. “Esse centro operava no compartilhamento de informações sobre as atividades dos trabalhadores, sobretudo, dos dirigentes sindicais, por meio de reuniõe­s mensais nas dependências das fábricas, hotéis ou pousadas da região, com a presença de representantes empresariais”, afirmam os representantes do grupo. A Volks tem uma unidade na região, em Taubaté. “Nos documentos obtidos a respeito do funcionamento do centro, localizou-se um, datado de 18 de julho de 1983, no qual se registra, textualmente, que o representante da empresa Volkswagen expôs os assuntos mais importantes em reunião, apresentando anotações, em forma de ‘lembretes’.” Novas informações foram

Um resgate necessário

WIKIPEDIA.ORG

Também na casa legislativa paulistana, Comissão Em 11 de agosto, o frei dominicano Tito de da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, Alencar Lima, morto em 1974, na França, tornou-se instalada pelo prefeito Fernando Haddad em cidadão paulistano, após aprovação de projeto do setembro de 2014, deu mais um passo no sentido vereador Toninho Vespoli (Psol), há quase um ano. de aprofundar a participação do mundo empresarial Na cerimônia em homenagem a Tito, na Câmara em ações de repressão da ditadura. No último dia Municipal, representantes de movimentos do 15 de agosto, o pesquisador Paulo Fontes foi ouvido passado e do presente se reuniram para discutir pelo colegiado sobre o papel da indústria Nitro problemas que ainda persistem na sociedade Química na perseguição a militantes operários. brasileira, como a violência policial e a tortura. Por Fontes é coordenador do Laboratório de Estudos isso, estavam presentes ao evento representantes do Mundo do Trabalho e dos Movimentos Sociais dos estudantes e do movimento Mães de Maio. (LEMT) do Centro de Pesquisa e Documentação de “Apesar de não realizarmos todos os sonhos que História Contemporânea do Brasil (CPDoc/FGV-RJ). nós tínhamos, tem outras pessoas gerando novos Frei Tito foi militante Seu livro Um Nordeste em São Paulo: Trabalhadores sonhos que dão sentido à morte e à vida continuada estudantil. Preso em Migrantes em São Miguel Paulista: 1945-66, lançado de Tito”, afirmou frei João Xerri, ao ligar fatos 1968, foi torturado em 2012, recupera a saga dos trabalhadores que históricos que resultaram no suicídio do dominicano no Dops e depois deixaram o Nordeste para serem operários da à atuação de grupos, na atualidade, por justiça e na Oban companhia, criada em 1935 pelo empresário José democracia. Ermírio de Moraes, pai de Antônio Ermírio, morto há Três dias depois do evento na Câmara, uma 2 anos, do Grupo Votorantim. caminhada pelo centro de São Paulo lembrou do ex-presidente O autor observa que as relações entre o aparato repressivo João Goulart. O elevado conhecido como Minhocão passou a e os empresários, que são bem anteriores a 1964, estão levar o nome de Jango, em lugar de Arthur Costa e Silva, um dos muito presentes no caso da Nitro Química. Ele ressalta que os generais-presidente do período autoritário – a partir de outro trabalhadores e os impactos diretos dos regimes autoritários à projeto, do vereador Eliseu Gabriel (PSB), sancionado pelo prefeito vida pessoal e ao mundo do trabalho não são estudados como Fernando Haddad (PT). “É muito importante, neste momento deveriam. “Embora a maioria dos mortos e desaparecidos seja político, em que se debate abertamente o retrocesso, rememorar de trabalhadores ou pessoas com origem nas classes populares, Jango”, disse João Vicente, filho de Goulart. eles sempre foram negligenciados entre as vítimas da ditadura. A Câmara discute outro projeto emblemático. A ideia é dar É preciso trazer à tona essa discussão sobre a relação entre o nome de Frei Tito a uma rua que hoje lembra um de seus sindicalistas e ativistas que são esquecidos na história.” algozes, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do Dops. 24

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JESUS CARLOS/IMAGEMGLOBAL (1981)

HISTÓRIA

obtidas recentemente, após a representação encaminhada ao Ministério Público. Um documento do Setor de Análise, Operações e Informações do Dops relata, por exemplo, “comício” realizado em 26 de março de 1980 na portaria da Volks no ABC, citando um “resumo” feito pela segurança da própria Volks sobre a atuação do então Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e Diadema, à época presidido por Luiz Inácio Lula da Silva. Na ocasião, Lula falava justamente sobre o monitoramento que os operários sofriam na fábrica, citando o coronel Adhemar Rudge. Na representação ao MPF, as entidades afirmam que ele era “amigo notório” do coronel Erasmo Dias, ex-secretário estadual de Segurança Pública em São Paulo. Em 23 de junho último, o MPF convocou Rudge para depoimento. De acordo com o Ministério Público, com passagem pelo Ministério da Justiça e pela Polícia Federal da Guanabara, ele passou a chefiar a segurança industrial da Volks em 1969. Permaneceu lá até novembro de 1991, quando se aposentou – completará 90

ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

RELAÇÕES ESTREITAS A própria Volks se encarregou de passar ao Dops um resumo do “comício” feito por Lula na porta da montadora

LINHA DURA Lúcio Bellentani foi preso em 1972 enquanto trabalhava. Começou a apanhar na sala de segurança da Volks

anos em outubro. Ao MPF, Rudge negou as acusações sobre perseguição e disse que seu setor se limitava a cuidar do patrimônio da empresa. Naquele mesmo dia, outro ex-funcionário da Volks, João Batista Lemos, declarou que “a própria Volks me entregou para o Dops”. Hoje diretor executivo da CTB, Batista foi anistiado em 2013. Para Frangão, o processo é importante também para a geração atual. “Isso reforça ainda mais que a democracia, por mais difícil que seja, é a melhor forma de a gente

lidar com os problemas e as adversidades.” Existem muitos relatos de parcerias empresariais com a ditadura. A Comissão da Verdade da Assembleia Legislativa paulista cita também a Operação Bandeirante (Oban), que teve financiamento de indústrias paulistas, mas lembra que a participação patronal na manutenção do sistema de repressão da ditadura não se limitou a São Paulo. Entre suas recomendações, o grupo dos trabalhadores na CNV propôs “investigar, denunciar e punir empresários, bem como empresas privadas e estatais, que participaram material, financeira e ideologicamente para a estruturação e consolidação do golpe e do regime militar”. Sebastião Neto lembra que a proposta não foi incluída no relatório final. A coordenadora do grupo de trabalho, Rosa Cardoso, afirmou em sua apresentação que o golpe de 1964 e a consequente ditadura “foram um empreeendimento civil e militar”. Sem o projeto empresarial, que buscava mudar o modelo econômico no Brasil, teria havido “um mero levante”. REVISTA DO BRASIL

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CINEMA

Silvio Tendler: “Acho que o mundo pode mudar, e mudar para melhor. Eu sou otimista.”

VITOR VOGEL/RBA

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IMAGENS ACERVO CALIBAN

COM O DE NUN CIA

ART E

CINEMA

Silvio Tendler prepara filme sobre a força do capital financeiro na economia mundial. “Transferimos todas as decisões para um lugar sem controle nem transparência. O mundo não aprendeu com 2008” Por Vitor Nuzzi

N

o site da sua produtora, a Caliban – referência a personagem de Shakespeare na peça A Tempestade, um símbolo de resistência –, Silvio Tendler é apresentado como tendo 48 anos de cinema. Ele mesmo contesta suavemente a informação. “A gente estreia quando vai pela primeira vez”, afirma, contando que na infância os pais o levavam aos cinemas perto de casa, em Copacabana, no Rio de Janeiro. “Era minha principal diversão desde os 5 anos de idade”, diz Tendler, que por essa conta conclui ter 61 anos de cinema – nasceu em março de 1950, no bairro da Tijuca, zona norte do Rio. O marco zero, ao menos formal, é o curta Fantasia para Ator e TV, de 1968, dirigido por Paulo Alberto Monteiro de Barros, em que Tendler aparece como assistente de direção. São décadas de produção contínua e múltipla, já que o diretor costuma se envolver com vários projetos simultaneamente. No ano passado, por exemplo, lançou dois filmes, Parir é Natural e Haroldo Costa – O nosso Orfeu, além de uma série (Há Muitas Noites na Noite). Em 2016, produz mais séries e projetos de três curtas e três longas. Entre os trabalhos em curso, está um filme sobre a influência do capital na política. Tem o nome provisório de Dedo na Ferida. “É uma crítica à política dominada pelo sistema financeiro. Você não discute mais o dinheiro a serviço da produção”, diz Tendler, lembrando que se trata de um fenômeno mundial. “Acho que é a primeira vez que vamos discutir com profundidade a força do sistema financeiro na economia.” Segundo a apresentação do filme, que fala em “ciclo de submissão”, a ideia é su-

gerir “o fortalecimento da democracia como resistência à ideologia da economia privada”. O trabalho deverá estar concluído até o fim do ano, com pelo menos 30 entrevistas. Dedo na Ferida é feito em parceria com o Sindicato dos Engenheiros (Senge) do Estado do Rio de Janeiro e com a federação interestadual da categoria (Fisenge). Para Tendler, isso ajuda a “devolver para a sociedade civil o protagonismo das ações transformadoras”. Em julho, ele esteve na França – onde morou durante quatro anos, na década de 1970 –, para conversar com o diretor grego Costa-Gavras, autor de clássicos como Z, Estado de Sítio e Missing, e de obras que também tratam do tema abordado pelo cineasta brasileiro, como O Corte (2005) e O Capital (2012). No primeiro, um engenheiro perde o emprego e, desesperado, se torna um assassino. No longa mais recente, Gavras conta a história de um jovem executivo que chega à direção de um banco europeu com a missão de levar adiante um plano de demissões em massa, e a rede de intrigas formada nesse “jogo planetário”. Uma frase do filme, pronunciada pelo protagonista: “Os americanos querem que eu demita. Os franceses, que eu fracasse. E minha equipe quer me apunhalar”.

Austeridade

Silvio Tendler também já conversou sobre a situação da Grécia com a espanhola María José Fariñas Dulce, professora de Filosofia REVISTA DO BRASIL

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CINEMA

PROCESSO HISTÓRICO Tendler e a equipe de Jango, filmado em 1984

PLENA ATIVIDADE Diretor de clássicos como Z, O Corte e O Capital, Costa-Gavras é um dos entrevistados de Tendler para seu próximo filme, Dedo na Ferida

do Direito na Universidade Carlos III, de Madri. “Não é nenhuma radical”, observa. Ela foi uma das integrantes de um tribunal internacional organizado no Brasil em julho, para “julgar” – e condenar – o processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff. E considerou a situação política brasileira parte de uma “contrarrevolução neoliberal” também vivida na Europa. “Ela falou, por exemplo, que a Grécia está empenhada aos bancos”, diz o cineasta. A lista de entrevistados inclui ainda Yanis Varoufakis. Trata-se do economista e ex-ministro de Finanças da Grécia, contestador dos regimes de austeridade e crítico da chamada Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional). Em entrevista ao El País em fevereiro, ele defendeu uma Constituição europeia “redigida pelos cidadãos e não pelas corporações”, pedindo transparência. “A intenção (da União Europeia) é democrática, mas transferimos todas as decisões para um lugar sobre o qual não existe nenhum tipo de controle nem transparência...” O cineasta brasileiro acredita que o mundo não “aprendeu” com a crise financeira deflagrada em 2008, que chegou a pôr os mercados financeiros em xeque. “Olha a situação do Brasil hoje e me 28

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diz se alguma coisa mudou. Só tiraram o bode da sala”, diz. Segundo ele ouve dos entrevistados, a globalização é irreversível. Também está em curso um processo de diminuição do papel do Estado, que muitos veem ainda como uma força reguladora na economia. “É uma posição que eu também defendo, mas que está bastante fragilizada. A economia está muito mais dominada pelas empresas. Os Estados são reféns.”

Reformas

Com 14 anos completados 20 dias antes do golpe de 1964, o cineasta é de uma geração que discutiu e vivenciou momentos de industrialização do Brasil, de expansão de sua economia, e lutou pelas chamadas reformas de base. Expressou e expôs o processo histórico brasileiro em várias de suas dezenas de obras, como Os Anos JK – Uma Trajetória Política (1980), Jango (1984), A Era JK – Saudades do Brasil (1992) e Tancredo, a Travessia (2011). Seu acervo particular compreende mais de 80 mil títulos sobre história do país e do mundo. “Antes de Juscelino e Jango, temos de pensar que o Brasil de Vargas era outro. Antes de 1930, o Brasil não era industrializado, era um grande cafezal. Vargas desenvolveu o capitalismo e a presença do Estado na economia”, observa Tendler, ci-

tando empresas como a Fábrica Nacional de Motores e a Companhia Siderúrgica Nacional e lembrando das hoje chamadas parceria público-privadas. “Isso foi inventado por Juscelino nos anos 50. O Jango não teve tempo, ele foi sabotado. Se o Brasil tivesse feito a reforma agrária que o Jango pretendia, não estaríamos vivendo essa situação de caos econômico. Seria outro país.” Ele não se considera um nacionalista. “Sou uma pessoa que pensa nos interesses do povo. Se isso é ser nacionalista...”, afirma, para em seguida, como exemplo, chamar de “crime” o que ocorreu com uma das empresas símbolo do país: “Criar a Vale, vender por um valor


CINEMA

Jards Macalé em Sonhos Interrompidos

Parir é Natural

IMAGENS ACERVO CALIBAN

O Caçador de Brasis

inferior a uma jazida e achar que isso é modernidade”. Para Tendler, o enfraquecimento do Estado e o domínio do capital podem levar o mundo a uma tragédia. Seu filme “serve como alerta a situações que têm de mudar”, diz. “Acredito muito na força do cinema para a transformação da sociedade”, acrescenta o autor do documentário O Veneno está na Mesa, sobre a presença de agrotóxicos na alimentação. Ele cita trabalhos que, pelo nomes, mostram um pouco de seu pensamento: Fio da Meada (“Sobre saberes ancestrais”), Sonhos Interrompidos e Caçador de Brasis. “Todos dialogam entre si. São uma descoberta do mundo em que a gente vive e

o que queremos. Acho que pode mudar, e mudar para melhor. Eu sou otimista.” Otimista, mas preocupado. Por isso, considera seu filme um “grito universal” à sociedade. “Temos de mudar o nosso projeto de desenvolvimento”, afirma. Para Tendler, as pessoas mostram incapacidade de discutir questões cotidianas. “Estão em seus casulos, com seus pontos de vista fechados.” Ele considerou, por exemplo, “deprimente” a sessão da comissão especial do Senado, em 4 de agosto, que aprovou um relatório favorável ao impeachment de Dilma Rousseff sem entrar no cerne da questão, se houve mesmo as tais pedaladas. “Não existe mais a defesa de um pro-

jeto de nação”, afirma. Mas o diretor acredita que, se confirmado, Michel Temer terá os mesmos problemas que Dilma teve de enfrentar. “Com esse Congresso aí não vamos ter tranquilidade nenhuma”, diz, apontando para a “gula” dos deputados. “A minha esperança é de uma nova eleição (em 2018)’’, acrescenta, ainda sem saber qual seria a sua opção política. Ao pensar na Olimpíada recentemente disputada no Rio, Tendler vê aumentar a importância do debate sobre a influência do poder financeiro. “Virou um evento comercial, onde os grandes atletas têm seus patrocinadores, o doping é um problema universal – não é só dos russos – e o espírito olímpico é pecuniário.” REVISTA DO BRASIL

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QUEM NÃO DEVE NÃO TEMER Protesto em Cannes deixou o governo interino furioso

Aquarius contra os vilões urbanos

Depois do ótimo O Som ao Redor, novo filme de Kleber Mendonça vai ao âmago da degradação civilizatória promovida pela especulação imobiliária. Um filme corajoso e incômodo – como seu elenco

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lguns parlamentares – como o senador Cristovam Buarque – só tremem diante da repercussão internacional do golpe perpetrado contra a presidenta Dilma Rousseff. No mais estão tranquilos, sabendo que a mídia brasileira se perfila ao lado deles, sem nenhum pudor. Mas o calo internacional não para de doer. E foi justamente no exterior que o diretor e o elenco do filme Aquarius resolveram denunciar o golpe, ainda em maio, em pleno tapete vermelho do Festival de Cannes, diante de câmeras e microfones de todo o mundo. Levantaram cartazes em inglês e francês afirmando que “um golpe de Estado havia ocorrido no Brasil” e que “o mundo não deveria aceitar esse governo ilegítimo”. Provocaram a ira dos golpistas e sofreram retaliações mesquinhas. O filme foi classificado para maiores de 18 anos pelo 30

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Ministério da Justiça, numa forma peculiar de censura (depois reclassificado para maiores de 16 anos) e um dos escolhidos pelo governo para a comissão que irá definir o candidato brasileiro ao Oscar de melhor filme estrangeiro em 2017 é Marcus Petrucelli, jornalista da Globo, inimigo declarado do diretor de Aquarius, Kleber Mendonça. O filme, em si, é ótimo – e nem toca na crise política. Vai ao âmago de uma das maiores tragédias nacionais: a especulação imobiliária que corrói o Brasil de alto a baixo, destrói riquezas materiais e simbólicas irreparáveis. Rouba o sol das praias, como no caso das tardes em Boa Viagem, em Recife, ou o que resta de verde no centro de São Paulo, com o projeto de espigões sobre o que poderia ser o Parque Augusta. E contribui ainda para congestionamentos gigantescos ao colocar centenas, ou até

MATHILDE PETIT/FDC

LALO LEAL


DIVULGAÇÃO

LALO LEAL

SÍMBOLO DE NOSSO TEMPO Clara, personagem vivido por Sonia Braga, não se dobra às investidas de uma construtora, ávida por demolir o pequeno prédio onde mora

milhares de pessoas com seus automóveis, para morar em ruas antes habitadas por poucas famílias. Clara, personagem vivido de forma brilhante por Sonia Braga, é uma jornalista e escritora aposentada que não se dobra às investidas de uma construtora, ávida por demolir o pequeno prédio onde mora, chamado Aquarius. Todos os seus vizinhos venderam os apartamentos mas ela resiste bravamente e sua resistência conduz a narrativa do filme. A violência dos especuladores é assustadora mas não irreal. Vai das propostas financeiras apresentadas entre sorrisos melífluos e aparentemente cordiais a ações agressivas buscando desestabilizá-la emocionalmente. Quem já passou por essas situações sabe a extensão do drama. Mas em meio a tudo isso Clara vai a festas, cuida do neto, tem desejos sexuais, nada na praia, não abre mão do seu vinho. Ouve boa música, dança. Ao mesmo tempo enfrenta com altivez seus inimigos. Os reduz à sua insignificância mercantil. Em seu primeiro longa, O Som ao Redor, o diretor Kleber Mendonça Filho, ex-jornalista, já havia ironizado a imprensa marrom ao colocar na boca de uma dondoca, em reunião de condomínio, uma reclamação contra o zelador do prédio porque a sua Veja chegava com o envelope de plástico aberto. Uma rara crítica ne-

gativa ao filme veio justamente dessa revista, curioso não? Agora ele vai mais fundo e mostra a falta de preparo de jovens repórteres ao entrevistar Clara, personagem com história de vida riquíssima, reduzida no jornal a uma usuária do MP3 e das demais mídias digitais. Além de mostrar a promiscuidade das relações familiares existentes entre os donos de um grande jornal e a construtora algoz de Clara. Um deles, no filme, chega a dizer que só permanece no ramo porque sabe de muita coisa que obviamente não publica. Nada muito diferente da vida real. Basta ver o grande número de páginas ocupadas nos jornalões por anúncios de empreendimentos imobiliários. A contrapartida, pode-se deduzir, é a ausência de matérias mais aprofundadas sobre os males causados pela especulação imobiliária ao urbanismo brasileiro. Resta-nos o cinema, que no caso de Aquarius vai além do drama urbano. Pode ser visto também como uma alegoria à truculência que hoje nos cerca, com a imposição ao país de um programa de governo que não foi escolhido pelos eleitores. A arrogância dos empreiteiros do filme é a mesma dos políticos sem voto que querem nos governar. Não é por acaso que, no Festival de Gramado e na pré-estreia em São Paulo, os gritos de “fora, Temer” ecoaram pelas salas de projeção. REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

A periferia 32

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ENTREVISTA

O

poeta Sérgio Vaz lançou em junho Flores de Alvenaria (Editora Global, 184 págs.), livro em que declama sobre a vida ao seu redor: “Eu sou o oprimido que vive na periferia e que acompanha de perto o racismo e a fome, seria até um pecado eu não escrever sobre isso”, diz Vaz, autor de outros sete livros e fundador do Sarau da Cooperifa. O já tradicional ponto de encontro e de ativismo cultural há 12 anos se reúne toda quarta-feira à noite no Bar do Zé Batidão, no Jardim São Luís, zona sul de São Paulo. Foi nesse mesmo bar que o poeta recebeu em agosto o título de Cidadão Paulistano, honraria concedida pela Câmara Municipal a personalidades não nascidas na cidade, mas que de alguma forma têm atuação destacada para o seu “engrandecimento” em alguma área. Ele nasceu em Ladainha (MG), em 1964, e mora no município de Taboão da Serra, região oeste da Grande São Paulo. “A grande novidade é que a gente começou a consumir o que a gente produz e não a levar nossa produção para o outro lado da cidade. O que estamos fazendo agora é dar nosso charme, nossa visão sobre as coisas”, diz Sérgio, para quem os movimentos de cultura da periferia vivem hoje sua “bossa nova”. “Nossa arte vem da rua, das ruas que os anjos não frequentam. Vem da dor. Ela não fala dos negros, fala pelos negros, com os negros. Não fala dos pobres, fala com eles e por eles”, diz. Nesta entrevista, o poeta­comenta políticas públicas de incentivo para os grupos culturais das bordas da cidade: “Seguimos uma filosofia de vida que é: a gente quer ser feliz também. Antes a gente só queria, mas agora estamos sonhando com as mãos”, observa. “Estamos em um momento em que precisamos começar a nos reconhecer como humano. Morrer 12 jovens em um bairro de periferia é estatística. Nós precisamos chorar essas 12 mortes.” Leia a seguir os principais trechos e a íntegra na página da RBA na internet.

Qual a temática de Flores de Alvenaria?

É o dia a dia. Sou oprimido, como cidadão que vive na periferia, que acompanha de perto o racismo e a fome. Seria até um pecado eu não escrever sobre isso. Sou um poeta que escreve sobre o que acontece ao meu redor. Gostaria de escrever sobre a Via Láctea, mas no momento preciso escrever sobre racismo, empoderamento das mulheres negras, saraus, a luta diária para o trabalho. É hora de a caça contar um pouco da história. Como você define a periferia?

É um lugar para trabalhadores e trabalhadoras viverem. Mas não é fácil viver na periferia. Não é indigno, mas é difícil, lutar contra tudo, acordar de manhã, pegar ônibus e trem lotado para ganhar salário mínimo, ficar três dias na fila para arrumar vaga na creche e não conseguir, frequentar escola pública ruim, não conseguir fazer exame médico em menos de três meses. Ainda assim é um povo que quer ser feliz. Em agosto foi publicado o edital de Fomento à Periferia, lei proposta por coletivos culturais, sancionada pelo prefeito Fernando Haddad. Esse tipo de ação tem potencial para fortalecer a cultura e manter esses grupos produtivos?

Acho uma grande vitória das pessoas que lutaram por isso, até porque é função do Estado gerir a cultura. Vai ajudar, assim como o VAI (Programa de Valorização de Iniciativas Culturais) ajudou a democratizar um pouco a cultura na periferia. A Lei Rouanet, por exemplo, é democrática só até a página dois, porque você pode até fazer um projeto, captar, mas ninguém quer investir, porque você é da periferia. A lei de fomento vem para preencher esse vazio, sem preconceito. Quem são os maiores arrecadadores? Os grandes produtores. E quando vai ser a nossa vez? A Lei de Fomento à Periferia resolve essas coisas.

PRISCILLA VILARIÑO/RBA

é um país

Para o poeta Sérgio Vaz, criador da Cooperifa, a cultura serve para sabermos de onde viemos e para onde vamos. “Se a primeira coisa que Temer fez foi acabar com a cultura, isso é muito representativo” Por Sarah Fernandes REVISTA DO BRASIL

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ENTREVISTA

A lei de fomento prevê financiamento de até 24 meses para os coletivos. Qual a efetividade de editais mais curtos, como o VAI ou o Proac (programa estadual de incentivo), para as demandas da periferia?

O VAI é mais democrático, porque circula mais e a grana é menor, então não interessa a muita gente. Ajudou a dar um pouco mais de voz à periferia. Eu não sou contra a Lei Rouanet. Acho que tem de ter pra todos, inclusive para a gente, mas será que as outras classes sociais entendem dessa forma? Eu entendo assim, afinal, como eu sofro preconceito eu não reproduzo. Eu acho que essas leis são necessárias neste momento e dou parabéns para o Haddad por ter sancionado, até porque é impopular neste país reacionário. Qualquer medida que seja para o povo é impopular (para os meios comerciais de comunicação). PRISCILLA VILARIÑO/RBA

Essa visão preconceituosa ganhou força mesmo na área da cultura, onde a periferia tem se destacado tanto?

Agora está mais forte ainda. Nós vemos o crescimento do fascismo. Há uns dois ou três anos eles tinham vergonha, mas agora têm orgulho de ser racistas. Nós temos líderes espirituais pregando o racismo e a homofobia. Que momento vive hoje a produção cultural da periferia?

Estamos vivendo nossa Bossa Nova, nossa Tropicália, nossa Primavera de Praga. A cultura na periferia sempre existiu, mas a partir do ano 2000 surgiu como um movimento. Sempre se fez cultura, mas antes era de uma forma isolada. É quando vem o hip hop que a periferia dá um grito de independência: “Eu posso! Eu sou da periferia, e daí?” É aí que vem o orgulho de ser negro, de ser da periferia e o respeito por quem mora na favela. Antes fazíamos cultura para nos apresentar para a classe média e hoje fazemos para nós. Estamos fazendo e consumindo cultura. Sempre existiu público para essa arte?

Sempre existiu. Quando você começa a assumir a periferia você se assume como patriota também, como alguém que respeita seu país, porque, para nós, a periferia é um país. Agora eu vou fazer poesia para o meu vizinho. As pessoas começaram a entender que nós precisamos formar leitores e público. A Cooperifa tem o Cinema na Laje, Cine Becos, Cine Quebrada, Cine Botecos, tem teatros para fazer na periferia. A gente fortaleceu a antropofagia periférica: pegamos toda essa cultura que vem do centro, mastigamos e entregamos de forma periférica. Damos nosso charme, nossa visão sobre as coisas. Queremos mostrar a poesia negra como ela é, a literatura periférica como ela é. Nosso teatro se comunica de outra forma, que não é nem melhor nem pior, é a nossa forma. A literatura periférica é melhor do que a universal? Não, ela apenas nos representa. Essa identificação permite atrair um público maior?

Sim, porque as pessoas se reconhecem na sua arte. Elas começam a entender que o teatrão não vai chegar na periferia, que o Paulo Coelho não vai dar palestra na escola pública. O que temos é isso aí: não veio goela abaixo, feito pela Globo ou pela revista. 34

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Um sujeito me disse que o povo da periferia está alienado com o golpe. Eu falei: ‘É da classe média que veio o golpe’. Não tem preto na Lava Jato, não tem pobre na Petrobras e ainda é o pobre que é alienado

É o cara que surge daqui. A pessoa vai ter orgulho de dizer: eu conheço ele, não pela televisão, mas pessoalmente. Antigamente, a gente ia lá, fazia sucesso e depois era reconhecido na comunidade. Você diz que a produção artística da periferia não é nem melhor nem pior que a do centro. Como você a define?

O grande barato do que estamos fazendo é não ser a arte pela arte. É uma arte solidária e cidadã. Quando você pega a Ivete Sangalo, ela faz uma música de manhã e à tarde ela já está sendo usada para vender Miojo, macarrão, xampu. Já o que a gente faz dói. Nossa arte sangra, sua, chora. Quando alguém escreve que está tomando um tiro você escuta o barulho da bala, sente o sangue escorrer pela página. Quando a pessoa faz um teatro ela está invocando seus ancestrais, porque naquele momento ela está dando voz a todo um passado e a toda uma trajetória de que foi difícil chegar ali. A gente coloca força, para que seja escutado. Quando eu faço uma poesia, quando alguém faz peça de teatro não está falando só por si, mas por muita gente. Essa arte é diferente da do Paulo Coelho, que pode usufruir das benesses do prazer enquanto a gente ainda está lutando para ter o direito a ser cidadão, a participar da civilização. Ouvi de um produtor cultural que os grandes filósofos da atualidade estão nas periferias...


ENTREVISTA

Milton Santos também disse que a revolução iria vir da periferia. Estou começando a acreditar. Nós temos os nossos pensadores, os nossos filósofos. Eu cresci estudando em um lugar onde a maioria dos professores era de classe média. Hoje os professores que estão aqui são daqui, moram no mesmo bairro, isso ajuda a gente a pensar, além dos artistas que ficam e de alguns políticos que surgem dos movimentos populares, por exemplo. Começamos a criar um orgulho periférico, uma forma de pensar. Quando você lê (Karl) Marx, tem de contextualizar para a periferia. Quando lê Charles Baudelaire ele tem que se parecer com o Mano Brown. É isso que a gente está fazendo. Seguimos uma filosofia que é: a gente quer ser feliz também. Antes só queria, mas agora estamos sonhando com as mãos, construindo. A produção cultural tem também o potencial de ser uma alternativa de renda?

Sim, principalmente com a economia solidária. Quando você faz um evento tem de pagar os artistas, pagar produção, no entorno se montam as barracas onde se vendem bebidas... Mexe com toda a infraestrutura e altera a paisagem, com um perfil de resistência. É o empoderamento, palavra de ordem agora. A cultura serve para a gente não enlouquecer, para sabermos de onde viemos e para onde vamos. Tanto que a primeira coisa que Temer fez foi acabar com o Ministério da Cultura; isso é muito representativo. Por que nos é negada a cultura? Porqu­e cultura nos faz pensar, nos faz sentir humanos. A cultura tem um poder de humanizar as pessoas. Quanto menos cultura, mais bruto a gente é. Algumas pessoas que tinham parado de estudar voltaram por causa dos saraus, pessoas que tinham trancado a faculdade hoje fazem teses falando sobre os saraus. Quem é o artista da periferia?

O que a gente faz é para que o pobre não seja cordial. A gente quer que a pessoa saia fora da caixa, que seja mais combativa. Tem gente que me pergunta: mas vocês tiram as pessoas das ruas e das drogas? Esse não é o propósito, eu não sou assistente social. A gente faz cultura e arte é rebeldia. Se não é rebelde não é arte, se não transgride, não é arte. Por isso que as pessoas gostam, porque eu gostaria de estar falando o que aquele artista está. Esse é o poder do artista. Ele é o cara que está com uma lanterna na mão. Por isso, eu acho que a arte não pode vir da mão de quem escraviza. A nossa arte vem da rua, das ruas que os anjos não frequentam. É lá que se escreve. Nossa arte vem da dor. Ela não fala dos negros, ela fala pelos negros, com os negros. Não fala dos pobres, fala com eles e por eles, junto.

É uma arte de denúncia?

Também, mas só fazer arte na periferia já é algo subversivo. O jovem que faz um funk tinha tudo para ser outra coisa e ele ainda faz música. Ele está subvertendo. As pessoas nos querem presos, algemados, implorando cesta básica ou só trabalhando. Fazer arte neste país já é um ato político. E nós fazemos arte pela literatura, que é sagrado, o pão do privilégio. E nós, arrogantemente, usamos a literatura para construir pessoas que constroem poemas. Eu não preciso falar que é uma denúncia. Quando um negro escreve um poema já é uma denúncia, quando uma mulher negra está em uma peça de teatro já é uma denúncia. Há resistência ao golpe na periferia?

Muita. A periferia sempre se manifesta, o problema é que não chega na grande mídia. Quando tocam fogo em um ônibus porque um jovem foi assassinado pelas costas é uma manifestação, mas o que chega lá é que são bárbaros, mas na Paulista são todos inteligentes. Fizemos vários eventos “Fora, Temer”, mas onde apareceu? Três pessoas fecharam a Paulista pelo “Fora, Dilma” e deu em todos os lugares. Eu encontrei um sujeito esses dias que me disse: “Precisamos fazer palestras porque o povo da periferia está alienado com o golpe”. Eu falei: “Ora, por que você não faz isso na classe média? É de lá que veio o golpe”. Não tem preto na Lava Jato, não tem pobre na Petrobras e ainda é culpa do pobre que é alienado. Você acha que pode cobrar da população uma posição política estudando em uma escola como a que o Alckmin nos dá, onde se rouba a merenda? Qual a perspectiva para a cultura na periferia com Temer?

Sobreviveremos, porque a gente nunca viveu com muito. Sempre nos autogerimos, por isso, talvez sejamos até arrogantes. Vamos continuar lutando, porque nossa vida é lutar desde sempre. Está difícil, mas sempre esteve. Quando a gente sai de casa, a gente sai para virar o jogo, porque a gente já sai sempre perdendo. Por isso, a gente precisa jogar melhor, correr mais, lutar mais. O que eu quero dizer é que isso não altera muita coisa, porque a ditadura acabou para algumas pessoas, mas para nós ainda não. As pessoas reclamam até de registrar empregada doméstica. Com Dilma e Lula, as demandas da classe trabalhadora na cultura eram correspondidas?

Sempre existiram contradições, mas entendemos que com Dilma era uma coisa e com Temer será outra. Mesmo com a crítica, com todos os defeitos, você tinha diálogo com a periferia. Com Temer não tem, é tudo de cima para baixo. Acabaram com a Secretaria

Cresci estudando onde a maioria dos professores era de classe média. Hoje os professores são daqui, isso ajuda a gente a pensar. Começamos a criar um orgulho periférico, uma forma de pensar. Quando você lê Baudelaire, ele tem de parecer com Mano Brown. É isso que a gente está fazendo

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ENTREVISTA

E por que não conseguimos quebrar esse preconceito, sobretudo o de classes?

Durante muito tempo a gente fingia que fazia parte disso. No Rio de Janeiro, o cara que mora na favela vai na mesma praia do rico e acha que aquilo é democrático, acha que está sendo aceito, mas não. Nós não estamos lutando na luta de classes, estamos sendo massacrados. Nós não temos armas para lutar. É como enfrentar o Mike Tyson e tentar ficar em cima da lona o máximo de tempo possível, apanhando, caindo, tentando dar um soco... Essa é nossa vida e quando a gente grita somos arrogantes. Eu lembro do Bolsa Família e das pessoas falando que estavam sustentando pobres. Mas você que faz três refeições por dia não quer que a outra pessoa faça também? O Paulo Maluf nos roubou a vida inteira e isso não é um absurdo. Por que é absurdo que se repasse dinheiro para comer? De onde vem essa lógica? Aceita-se tudo da Lava Jato. Aceita-se R$ 23 milhões desviados pelo José Serra, mas e se fosse o Lula? Aos amigos tudo, aos inimigos a lei. E mesmo aqui na periferia está cheio de coxinha, que eu chamo de “simpatizante”, porque não tem dinheiro para ser coxinha. É aquele que não vai ser convidado para a festa. Faltou formação para os trabalhadores se identificarem como classe?

Faltou comunicação, formação política... Conheço gente que pegou ProUni e é contra o programa. Conheço gente que comprou casa pelo Minha Casa Minha Vida e está pedindo “Fora, Dilma”. A revista Veja está em todas as escolas, em qualquer sala de espera está passando a Globo... É o grande irmão, todo dia e toda hora. Não sei onde nos perdemos, mas nos perdemos. Qualquer coisa que eu posto no Facebook me mandam para Cuba, me chamam de petralha. Como? Se eu não sou filiado a nenhum partido. Esse preconceito se manifesta também contra a produção cultural da periferia? 36

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de Igualdade Racial, isso quer dizer muita coisa. Está entendendo o que estamos vivendo? É assustador. É absurdo. Você tem o (deputado) Marco Feliciano que vai defender o racismo baseado na Bíblia. Um cara que agora está sendo acusado de estupro. Você tem uma pessoa que vota a favor do impeachment em nome de Deus e da sua cidade, e no dia seguinte vai presa. Estamos vivendo uma grande depressão, mas talvez seja um dos momentos mais importantes na história do país. O Brasil precisa reconhecer o que somos e talvez daí comece a mudar. Somos um povo racista. O Estado quer controlar o corpo da mulher. Está escancarado o quão reacionário somos. Mostramos que somos governados pela grande mídia, eles dizem o que pode e o que não pode. Caiu a máscara. Talvez a partir daí a gente comece a melhorar. É quando me reconheço escravo que luto pela minha liberdade. É quando me reconheço que começo a mudar. Cresci ouvindo que o sistema é ruim, mas quem é esse sistema? São os iluminados tupiniquins: os donos dos jornais, da televisão, meia dúzia de pessoas. Agora sabemos que a elite não gosta de pobre e de negro. Agora a gente pode lutar. Jogaram-se as fichas.

O que a gente faz é para que o pobre não seja cordial. A gente quer que a pessoa seja mais combativa. A gente faz cultura, e arte é rebeldia. Se não é rebelde não é arte

Sim. O funk, por exemplo, não é mal visto pela música, mas porque é feito por negros. A música em si diz a mesma coisa que o sertanejo universitário, feito por brancos. Eu não sou do funk, mas respeito: alguém que não teve nada ainda quer cantar. E o funk não está enriquecendo ninguém além do cantor, porque ele mesmo faz a mídia e vende na quebrada dele, sem passar por gravadora. Por que o rap foi perseguido? Porque tinha rádio comunitária, fazia sua própria roupa... O mundo foi feito para poucos. Existe um pensamento único e quem sai dele é pederasta, terrorista, bêbado, maconheiro. Porque o status quo diz que você deve assistir TV, ir ao cinema, ao shopping, fazer academia, ir ao barzinho, ler os mesmos livros. Aí você fala que não quer e te segregam, ou pior, te matam. Mas sabe o que eu queria dizer? O quê?

Eu acho que nos devíamos estar em busca de resgatar a humanidade de cada um. Estamos em um momento que precisamos começar a nos reconhecer como humanos, a reconectar. Precisamos de gente que entenda a dor do outro, com empatia. Parece que a gente perdeu essa capacidade de ser humano e viramos um produto. Nós somos um produto... Aquela pessoa dormindo na calçada é uma estatística. Morrer 12 jovens em um bairro de periferia é estatística. Nós precisamos sofrer essas 12 mortes, chorar cada uma delas. A vida precisa voltar a ter valor. A gente precisa se indignar.


EMIR SADER

2003-2016 – A luta contra a desigualdade

Fecha-se o período mais virtuoso da história, o mais democrático, em que os governos tiveram o maior apoio popular, em que o Estado recuperou legitimidade. Um período a ser retomado

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período histórico iniciado pela primeira vitória de Lula e concluído com o golpe branco representa um momento extraordinário na história brasileira. Pela primeira vez a luta contra a maior marca negativa do país – a desigualdade social – foi combatida como objetivo central dos governos. O Brasil, o país mais desigual do continente mais desigual, realizou, em poucos anos, seu maior processo de democratização social. Saiu da ditadura mediante um processo limitado de democratização política, pelo predomínio das correntes liberais na oposição à ditadura, depois da derrota dos movimentos clandestinos. A isso se acrescentou a derrota da campanha das diretas, o que levou a sucessão ao Colégio Eleitoral construído seletivamente pela ditadura. Como uma de suas consequências, o candidato da oposição não foi Ulysses Guimaraes, seu dirigente mais importante, mas Tancredo Neves, mais moderado, cuja morte levou, paradoxalmente, a que o primeiro presidente civil depois da ditadura fosse José Sarney, ex-presidente da Arena, partido da ditadura, que havia dirigido a campanha contra as eleições diretas. A transição à democracia foi, assim, um compromisso entre o velho e o novo, políticos da oposição e outros da própria ditadura. O governo Sarney não promoveu nada além da institucionalização da democracia previamente existente. Não houve democratização da propriedade da terra, nem do sistema bancário, nem dos meios de comunicação. Em suma, não houve democratização econômica, nem social, nem cultural. Democrático, o Brasil seguiu sendo o mais desigual do continente mais desigual do mundo. A década neoliberal, com os governos de Collor, Itamar e FHC, aprofundou a desigualdade e ainda jogou o Brasil na mais prolongada recessão econômica da sua história. Foi com a vitória de Lula, em 2003, que as prioridades começaram a ser mudadas e a luta contra as desigualdades ganhou o lugar central na ação dos governos.

Foram anos em que a maioria da população, sempre postergada, passou a ser incluída, seus direitos fundamentais passaram a ser reconhecidos. A geração de mais de 20 milhões de empregos com carteira assinada reverteu a tendência de várias décadas de aumento do número de pessoas sem trabalho, os com empregos precários e ou informais. Junto com a elevação do poder aquisitivo do salário mínimo em 70% acima da inflação, representou o maior mecanismo de distribuição de renda. Ao lado disso, as políticas sociais diminuíram a desigualdade aos menores níveis da nossa história. Entre tantos outros avanços nesses anos, esse foi o mais importante, o mais marcante, pelo peso negativo que a desigualdade sempre teve na nossa sociedade. Foram essas políticas que permitiram as vitórias eleitorais seguintes, completando quatro eleições em que os brasileiros decidiram, pelo voto democrático, sua preferência pelo modelo de desenvolvimento econômico com distribuição de renda. Foram essas derrotas da direita e a expectativa segura de que elas seguirão, ainda mais com a candidatura do Lula, que a levou a buscar o atalho do golpe, para tirar do governo o partido que o povo tinha escolhido e reiterado que deseja que governe o país. Fechou-se assim o período mais virtuoso da história, porque o mais democrático, aquele em que os governos tiveram o maior apoio popular, em que o Estado recuperou sua legitimidade, em que se consagrou a liderança do Lula. Um período que pode ser retomado, porque as necessidades da população por políticas sociais aumentam ainda mais, com as políticas antipopulares do governo golpista, e porque a liderança do Lula é reiterada como a única com grande respaldo popular. Porém, ela exige grande processo de politização popular, que só pode se dar com novos objetivos de futuro, que deem continuidade, mas de forma distinta à do passado, àquele momento vitorioso de conquistas democráticas e populares, de política externa soberana, e de maior autoestima que os brasileiros já viveram. REVISTA DO BRASIL

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Olhos gordos em Areia Grande Agruras vividas por comunidades tradicionais do sertão da Bahia começaram com a construção da barragem de Sobradinho, nos anos 1970. A longa saga de luta e resistência que dura até hoje Por José Paulo Borges 38

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CIDADANIA

de Areia Grande. Isso acontece, segundo ele, porque o trabalho numa terra compartilhada acaba criando laços de parentesco e compadrio muito fortes entre os moradores, além de desenvolver um senso muito consistente de coletividade e solidariedade. O dia a dia é de trabalho duro no fundo de pasto de Areia Grande. Os animais são soltos logo cedo para se alimentarem nas terras comunitárias, e recolhidos aos currais de cada morador quando anoitece. Um sino amarrado no pescoço de alguns, cujo som os donos identificam de longe, ajuda na tarefa de recolher a criação. Como os animais vivem misturados no campo aberto, os pastores e vaqueiros se revezam nos cuidados do rebanho de toda a coletividade. Se alguém observa algum animal doente – com “bicheira”, por exemplo, provocada por moscas varejeiras, o que pode ser fatal – mesmo que não seja dele, imediatamente amarra o bicho em algum lugar e logo avisa o dono.

Escândalo da mandioca

Quando não há trabalho haja festa em Areia Grande. A agenda cultural e religiosa é movimentada. Em janeiro acontece um Reisado na comunidade de Jurema. São José é comemorado por todos com procissões e novenas no mês de março. Em maio, Riacho Grande homenageia a padroeira, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. E forró pé de serra não falta na festa da mandioca de Melancia, em outubro. Uma das principais plantações do fundo de pasto de Areia Grande é a mandioca, transformada em farinha e ta-

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á mais de 150 anos, os moradores de Areia Grande cultivam uma maneira de viver transmitida de geração em geração, conhecida como fundo de pasto. Os rebanhos de cabras e bodes, principalmente, e também as ovelhas e o gado das cerca de 400 famílias são criados soltos na caatinga, numa área de uso coletivo de 26 mil hectares. Esses animais, rústicos e muito resistentes às estiagens comuns na região, se alimentam livremente nas pastagens nativas. O distrito fica numa área de dunas do Rio São Francisco, formada pelas comunidades de Jurema, Riacho Grande, Melancia e Salina da Brinca, no município de Casa Nova, norte da Bahia. Não existem cercas indicando os limites de um fundo de pasto. As únicas áreas cercadas são os roçados ao redor das casas, onde os moradores criam pequenos animais e praticam agricultura de subsistência. Como as terras coletivas onde os animais maiores são soltos para pastar ficam atrás desses roçados, a tradição se encarregou de batizá-las de “fundo de pasto” – no Cerrado, são “fecho de pasto”. As raízes do sistema de fundo de pasto remontam ao Brasil Colônia. Quem cuidava nos confins do sertão do gado dos grandes criadores, que preferiam viver no litoral, eram os vaqueiros – homens rudes e livres que recebiam filhotes como pagamento por seus serviços. “Aqui todo mundo ou é parente ou é compadre de todo mundo”, brinca Joaquim Pereira da Rocha, o Quinquim, 76 anos, um dos moradores mais antigos

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TERRAS COMUNITÁRIAS O dia a dia é de trabalho duro no fundo de pasto de Areia Grande. Os animais são soltos logo cedo para se alimentarem e recolhidos aos currais de cada morador quando anoitece REVISTA DO BRASIL

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USO COLETIVO Os rebanhos de cabras e bodes, principalmente, e também as ovelhas e o gado das cerca de 400 famílias são criados soltos na caatinga, numa área de 26 mil hectares

pioca (comida de origem indígena), afamadas pela qualidade. As casas de mandioca até hoje utilizam métodos tradicionais desconhecidos na cidade grande. Atividade mais recente é a apicultura. Existem milhares de colmeias espalhadas na região. Um dos primeiros habitantes de Areia Grande foi Manoel Pereira da Silva, o Manoel Pracatão (consta que era chamado assim por causa das alpercatas, muito grandes, que usava). Pracatão chegou, segundo velhos registros, em 1860, fugindo de uma seca brava que castigou a cidade de Crato, no Ceará. Na nova terra, casou-se com Cipriana, com quem teve muitos filhos. Joaquim Ferreira da Rocha, o Quinquim, é dessa estirpe. Quinquim pode ficar horas contando as histórias sobre coisas antigas de Areia Grande, passadas por sua mãe, Honorina. “Não existe caatinga como a nossa. Mesmo sem chuva, nunca falta folha verde por aqui. Acho que é por isso que os gananciosos sempre cresceram os olhos pra cima da gente”, matuta o velho vaqueiro. Pois são justamente esses “olhos grandes”, segundo Quinquim­, os responsáveis pelas agruras que Areia Grande vem passando há mais de 40 anos. Começou com a construção da barragem de Sobradinho, nos anos 1970. A obra do regime militar não 40

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fez o sertão virar mar, mas transformou a vida de milhares de sertanejos num inferno. Por imposição do governo, muita gente teve de abandonar suas casas, sepultadas pelas águas, e obrigada a morar em agrovilas distantes até 700 quilômetros da beira do São Francisco, onde sempre viveram. Areia Branca, porém, fincou o pé. Os moradores não abandonaram o lugar deles. Foi o começo de uma longa saga de luta e resistência que dura até hoje. Em 1979, assentada a poeira levantada pela construção da barragem, Areia Grande sofreu outro duro golpe. Na época, a empresa Agroindustrial Camaragibe, com apoio da oligarquia local, instalou no fundo de pasto um empreendimento destinado a produção de biodiesel e álcool a partir da mandioca, financiado com recurso do Proálcool. Mais tarde, descobriu-se que os títulos de posse das terras tomadas dos moradores tradicionais eram fraudulentos, fruto de grilagem. A posse era ilegal porque as terras, historicamente reconhecidas como públicas devolutas, têm seu uso garantido pela comunidade. Não demorou muito e a Camaragibe abandonou o projeto, deixando atrás uma dívida milionária, que estourou no chamado Escândalo­da Mandioca de desvio de dinheiro público.


CIDADANIA

FOTOS JOSÉ PAULO BORGES

JOSÉ PAULO BORGES

A fraude provocou imensos danos ambientais hoje está pendurado um calendário que parou no que até hoje não foram reparados na caatinga. De ano de 2009. Na parede ao lado, o gibão e a perneira de couro do vaqueiro se esgarçam sob a ação do acordo com laudo técnico produzido pela empresa Consultoria e Assessoria em Agropecuária Ortempo. O inquérito sobre a morte de Zé de Antero gânica (Agrorgan), a Camaragibe devastou uma nunca foi concluído. Moradores de Areia Grande área de 1.945 hectares de caatinga, para plantação afirmam em coro não ter dúvidas de que o companheiro foi assassinado covardemente a mando de de mandioca. “O uso agrícola intensivo realizado pessoas e grupos que querem as terras. Para prepela Camaragibe resultou em perda total de resiliência e consequente inexorabilidade da degradaservar a memória do vaqueiro assassinado, todos ção daquela parcela de dunas. A reversão de tais os anos, em fevereiro, o povo local reza um terço processos requer grandes investimentos financeiao pé de uma cruz feita de cacuricabra – madeira ros”, atesta o relatório. nobre do sertão – fincada no alto de uma duna, “Muitas espécies de abelhas nativas desapare- LÍDER ASSASSINADO nas proximidades do local onde o corpo de Zé de ceram. Também não se veem mais por aqui ani- O Gibão e perneira do Antero foi encontrado. vaqueiro José Campos mais e aves como o tamanduá, o gambá, a cotia, Braga – o Zé de Antero, O conflito persiste nos dias de hoje. A comunidade permanece firme e não abre mão de seu o juriti e a asa branca”, lamenta Quinquim. O va- que não se intimidou queiro também acusa a Camaragibe pela perda por ameaças modo de vida. “Volta e meia, somos surpreendidos por novas ameaças”, atesta o líder comunitáde espécies vegetais da caatinga, como a resineira – fonte de renda para a comunidade, que extraía e vendia o rio Zacarias Rocha. Segundo ele, as pressões atuais partem de látex usado na calefação de cascos de embarcações. A resineira poderosos grupos empresariais que querem instalar na região e outras árvores sertanejas viraram cinzas e hoje jazem entre as projetos de produção de energia eólica e de mineração. Esses ruínas da empresa. grupos, conta Zacarias, muitas vezes têm o respaldo de decisões judiciais controvertidas, que ignoram os direitos adquiriO gibão e a perneira dos pela população local ao longo de mais de 100 anos. “Além Mas a luta dos sertanejos de Areia Grande pela preservação de passar por cima dos nossos direitos, ignoram que ninguém de seu modo de vida não parou por ali. Outro momento ten- sabe cuidar e preservar a caatinga melhor do que nós.” so do conflito agrário aconteceu no dia 6 de março de 2008, A tormenta mais recente no fundo de pasto de Areia Grande durante o cumprimento de um mandado de imissão de posse desabou no último mês de julho. Uma sentença proferida pelo concedido pela Justiça de Casa Nova a dois empresários que se juiz de Casa Nova, Eduardo Padilha, colocou as 400 famílias do apresentaram como supostos proprietários das terras. Eram 5h território sob o risco de despejo. O despacho autoriza, inclusida manhã, quando policiais civis e militares, sob a supervisão ve, o uso de força policial. Na comunidade, o receio de que o de um oficial de justiça, tentaram expulsar as famílias a força terror vivido em 2008 e uma tragédia como a de 2009 se repida área em disputa. Cercados, chiqueiros, incontáveis caixas de tam é grande. “Estamos unidos. Não será essa decisão arbitrária mel e algumas casas foram derrubadas por tratores. Uma dessas que fará com que entreguemos nossas terras”, afirma Zacarias. casas era de José Campos Braga, conhecido como Zé de Ante- O cego Gerônimo Fernandes Braga, 94 anos, e sua mulher, Maro, uma referência na comunidade. Vaqueiro de mão cheia, 56 ria Zulmira Gomes, 91, moradores mais antigos, indagam: “Se anos na época, Zé de Antero não se intimidou. Foi morar de- nos tirarem daqui, onde vamos morar?” O futuro do morador baixo de lona, sob um juazeiro, enquanto erguia uma nova casa. mais novo, Gabriel Silva da Rocha, que nasceu no último dia No final da tarde de 4 de fevereiro de 2009, Zé de Antero foi 15 de maio, também é incerto. A Comissão Pastoral da Terra encontrado morto com um tiro de espingarda, numa duna a uns de Juazeiro e outras entidades da sociedade civil estão contes800 metros de distância da residência inacabada. Na parede até tando a decisão.

MEDO E DESAMPARO Uma sentença proferida pelo juiz de Casa Nova, Eduardo Padilha, colocou as 400 famílias do território sob o risco de despejo. O despacho autoriza, inclusive, o uso de força policial. Na comunidade, o receio de uma nova tragédia é grande REVISTA DO BRASIL

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CAMINHANTE DO DESERTO Homem descansa depois de cruzar o deserto de Thar, à noite, com suas cabras. A prática é comum devido ao clima mais ameno e por conhecerem de memória toda a região

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VIAGEM

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chegada certamente é um dos momentos mais difíceis, sobretudo se o primeiro destino não for uma das grandes e cosmopolitas cidades da Índia. De repente, você se vê sem referências: nos letreiros e placas não há sequer uma letra conhecida, as pessoas que ocupam os espaços não se parecem com alguém que você reconheça, ninguém veste uma camiseta de uma banda familiar, nenhuma palavra é inteligível. Essas percepções pesam tanto quanto a mochila nas costas, em meio à missão impossível de encontrar o hotel. Varanasi, uma das cidades sagradas do hinduísmo, fica às margens do Rio Ganges, é organizada em vielas sem nome e grandes escadarias, ou ghats, que levam ao rio. Nas ruas estreitas o passo é obrigatoriamente lento. É necessário dar passagem para motos, vacas, macacos e desviar constantemente de montanhas de lixo e de crianças jogando críquete. Entre casas, lojas de seda e empórios de temperos e chás, o transeunte encontra templos e pequenas oferendas deixadas no caminho para algum dos 330 milhões de deuses do país, que sob o guarda-chuva de “hinduísmo”, se dividem em centenas de outras crenças. Na caminhada, o desavisado chegará com facilidade a Manikarnika Ghat onde, 24 horas por dia, todos os dias do ano, corpos dos mortos de todas as partes da Índia são cremados – acredita-se que morrer em Varanasi libera o indivíduo de suas encarnações cármicas. Não é necessário mais do que isso para descobrir o segredo para os próximos dias: desapego. Não apenas aquele em voga na classe média urbana do Ocidente, que prega a fluidez de pessoas e coisas que não acrescentam mais. A Índia pede mais. Você precisa desapegar da forma como aprendeu a viver. A morte? Também pode ter algo de alegre. Casamento arranjado? Quem disse que é necessariamente ruim e que as pessoas não querem? Garfo, faca e colher? Não, não. Bastam as mãos.

da Índia O país-continente reúne maravilhas arquitetônicas, naturais e humanas. É uma montanha russa de emoções: em minutos você vai do mais lindo que já viu ao mais triste. Ali vive um terço dos pobres do mundo Por Sarah Fernandes. Fotos de Danilo Ramos

Trinta dias e nove cidades depois – a maioria delas no Rajastão, estado famoso pelos Marajás, fortes seculares, elefantes e encantadores de serpentes –, você confirma: nada na Índia é pequeno ou discreto. São muitas cores contrastadas nas construções, nas roupas e nas paisagens; muitos sabores nas comidas, nos temperos e nas frutas; muitos cheiros, em uma mistura constante de especiarias, incenso e banheiro pouco limpo; e muitos sons, da música sempre presente, das celebrações religiosas e das buzinas insistentes de um trânsito caótico, onde a única regra parece ser exatamente fazer barulho. É como se todos os sentidos estivessem aguçados, em um looping que vai do deslumbramento à saturação.

Viver com menos de US$ 1 por dia

A Índia é o segundo país mais populoso do mundo, com 1,2 bilhão de habitantes, atrás apenas da China (1,3 bilhão). Apesar do acelerado crescimento econômico do país nos últimos 20 anos, lá está um terço da população mundial em situação de extrema pobreza. Pelo menos 400 milhões de indianos vivem com menos de US$ 1 por dia, o que delimita a linha de miséria, segundo organismos internacionais. Em Mumbai, maior cidade do país, com arquitetura ímpar, misturando fachadas inglesas com traços orientais, quase seis em cada dez moradores vivem em favelas. Só na maior delas, Dharavi, famosa depois de ambientar o filme Quem Quer ser um Milionário?, estão 1 milhão de pessoas, em uma condição de miséria que chega a chocar mesmo quem vem de um país tão desigual quanto o Brasil. Os dados oficiais ganham nome e rosto nas casas das famílias, como na do jovem Laura Rajak, de 15 anos. “Meu irmão trabalha como faxineiro em um escritório de turismo e ganha 3 mil rupias por mês (o equivalente a US$ 45). Uma mixaria para cá”, diz, sobre a cidade de Kajuraho, conhecida pelos templos milenares, que exibem imagens de sexo. “Eu trabalho em uma loja

FORA DA ORDEM Trabalho infantil em Sarnath: situação comum em todo o país

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300 MILHÕES DE DEUSES Sacerdote durante o Puja, ritual religioso celebrado diariamente nos Ghats de Varanasi, cidade sagrada para o hinduismo

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CORES E ALEGRIA Kalbelia, a dança tipica do Rajastao, região fronteira com o Paquistão

ESPORTE NACIONAL Crianças jogam críquete numa viela de Varanasi

de produtos da Caxemira, mas só recebo a comissão quando há alguma venda”, conta sentado na única cama da casa de dois cômodos, sem banheiro e sem água encanada, enquanto toma um chai, tradicional bebida que mistura chá preto, temperos e leite. Desde 2009, quando seu pai morreu, a escola deixou ser a prioridade e ele passou a ser o responsável por sustentar a casa, fazendo pequenos bicos. Não à toa a religião é tão forte no dia a dia dos indianos. É um refúgio em uma sociedade marcada por tanta desigualdade. O sistema de castas, por exemplo, ainda existe (apesar de ser proibido pela Constituição) e congela possibilidades de ascensão social. “Somos de uma casta muito pobre, de fazendeiros”, diz Laura, em uma tentativa de explicar, talvez para si próprio, por que precisa lutar com tanta dificuldade apesar de ser tão jovem. São quatro as principais castas na Índia, que se subdividem em outras: os brâmanes, composta pelos sacerdotes; xátrias, dos militares; vaixias dos fazendeiros e comerciantes; e os sudras, que devem servir as castas superiores. Diferentemente do cristianismo, em que a concepção do tempo é linear, no hinduísmo ela é cíclica: a vida nunca acaba. Na trilogia hindu, o deus Brahma criou o universo e fez com que os REVISTA DO BRASIL

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IMPACTO CULTURAL Na India hindu, animais como a vaca, o macaco e o rato são sagrados e dividem espaço nas ruas com automóveis e motocicletas

LIBERTANDO AS ENCARNAÇÕES CÁRMICAS O crematório Manikarnika Ghat funciona 24 horas por dia, todos os dias do ano

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BANHO NO GANGES Deuses, carma, sagrado, profano: a grande preocupação dos indianos hoje é a fome


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O MODERNO E O MISERÁVEL Mahalaxmi, a maior lavanderia a céu aberto do mundo, em Mumbai: cerca de mil pessoas lavam roupa manualmente para clientes de toda a cidade

seres humanos tomassem consciência da sua existência, o deus Vishinu mantém a criação e o deus Shiva a destrói. Nenhum é mais importante ou mais bondoso que o outro, de forma que o término das coisas é tão importante quanto o começo. O fim dos ciclos, das fases, dos projetos, dos relacionamentos e até da própria vida não é algo necessariamente ruim e também deve ser celebrado. “Na verdade aqui não ligamos mais tanto para essa história de carma. Nós temos é fome”, resumiu o tratador de camelos Kamal, de 28 anos, na cidade de Jaisalmer, quase fronteira com o Paquistão. Ele nunca frequentou a escola e trabalha desde os 12 anos com camelos. A história se repete a 1.200 quilômetros dali, em Mumbai, com um lavadeiro de 23 anos que não disse seu nome. Ele vive em Mahalaxmi Dhobi Ghat, maior lavanderia a céu aberto do mundo, onde pelo menos mil pessoas podem lavar roupa ao mesmo tempo e nas mesmas condições precárias de trabalho de quando foi inaugurada, há 140 anos. “Cresci aqui trabalhando com lavagem de roupas, casei e hoje moro aqui e continuo o trabalho”, conta.

Fazer da viagem para a Índia um passeio plenamente feliz exige algum esforço. A magnitude do Taj Mahal é pelo menos um pouco ofuscada quando a 100 metros da saída você depara com uma criança usando uma vala na rua como banheiro. As cores e aromas dos mercados do Oriente ou o charme das viagens de trem perdem um pouco do brilho quando você percebe que é a única mulher no local, até onde os olhos alcançam. A comida, de uma dieta estritamente vegetariana, a base de queijo, leite e grãos, perde um pouco o sabor quando é uma criança que serve à mesa. É uma montanha russa de emoções: em minutos você vai do mais lindo que já viu ao mais triste. A Índia escancara uma verdade que nós, ocidentais urbanos, às vezes esquecemos: grande parte das pessoas do mundo são pobres – 2,2 bilhões, segundo dados das Nações Unidas. O cidadão do mundo é um sujeito asiático que não tem água potável, não foi para a escola o tempo necessário e que carrega o semblante sério de quem começou a trabalhar muito cedo. Ele mora em uma casa pouco arejada, tem pelo menos quatro irmãos e tem fome. REVISTA DO BRASIL

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Por Xandra Stefanel

Preços, horários e duração de temporadas são informados pelos responsáveis pelas obras e eventos. É aconselhável confirmar antes de se programar

EDUARDO ORTEGA/DIVULGAÇÃO

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Trabalhadores no Masp

EDOUARD FRAIPONT/DIVULGAÇÃO

A exposição Trabalho, de Thiago Honório, em cartaz até 29 de janeiro de 2017 no Museu de Arte de São Paulo (Masp), exibe instrumentos e ferramentas de pedreiros e mestres de obra que foram utilizadas no restauro de uma antiga estação de fornecimento de energia da empresa Light, no centro da capital paulista. Thiago negociou com os trabalhadores a troca ou doação de seus instrumentos: pás, talhadeiras, escadas, picaretas, enxadas, marretas, desempoladeiras, serrotes, foices, roçadeiras, rolos, pincéis, espátulas e outros materiais que dialogam perfeitamente com a arquitetura brutalista do prédio do museu, sem revestimentos ou acabamentos luxuosos, um dos principais pontos de encontro de manifestações sociais da cidade e do país. De terça a domingo, das 10h às 18h, e às quintas-feiras, das 10h às 20h. Avenida Paulista, 1578, São Paulo, (11) 3149-5959. R$ 12 (meia entrada), R$ 25 (inteira) e grátis às terças-feiras.

Morte e vida

A jornalista e professora paraibana Denise Santana Fon lançou em agosto o livro Contos Para Falar de Morte e Vida (Ilelis Editora/Fundação Perseu Abramo), sobre os crimes cometidos pela ditadura militar. Com prefácio do escritor, poeta e ex-preso político Pedro Tierra, a obra traz contos que resgatam, de forma poética, atrocidades que não podem ser esquecidas: “É muito importante abordar de forma literária o tema, para falar da realidade e transmitir com ternura para as pessoas. É necessário criar figuras de linguagem para fugir da realidade”, afirmou Denise, em entrevista à Rádio Brasil Atual. O livro pode ser comprado pelo site www.ilelis.com.br (R$ 22). 48

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FOTOS DIVULGAÇÃO

Samba no feminino Toda primeira sexta-feira de cada mês, a partir das 18h, mulheres se

reúnem no Centro de Cultura Tendal da Lapa para compartilhar experiências de si e do mundo por meio de suas músicas e composições. O projeto Mulher Escrita, idealizado por Camila Midori e Carol Nascimento, nasceu do questionamento a respeito da participação feminina em espaços musicais e manifestações populares. “Se as mulheres sempre estiveram presentes na história da música, porque é tão incomum vê-las como protagonistas?” Além de promover as sambistas paulistanas, a ideia desses encontros é entender e explorar as relações entre a mulher e a música, em especial com a arte de compor. Na Rua Guaicurus, 1100, Lapa, em São Paulo. Grátis.

Nuances das opressões

Encantos e encantações

A cantora, compositora, rabequeira e atriz Renata Rosa traz em seu terceiro álbum uma refrescante enxurrada de graça e brasilidade. Encantações é repleto de influências de maracatu rural, coco, cirandas e cavalo-marinho, com canções que esbarram no jazz e em sonoridades do Oriente Médio. Entre as faixas, destaque para a Marcha do Donzel, parceria entre Renata e o escritor Ariano Suassuna; Imbarabaô, dela e Hugo Linns; e Roda do Vento. Além de Hugo Linns no contrabaixo e violão, Pepe na viola de dez cordas e bandola e Helder Amendoim e Gilu Amaral nas percussões, o disco traz participações de Cema, Eberú, Yara, Suíra e Noraia Suíra, índias kariri-xocó, nos vocais. Preço sob consulta. Ouça no soundcloud.com/renata-rosa.

Chega às livrarias em setembro a primeira edição brasileira de Mulheres, Raça e Classe (Boitempo Editorial, 248 págs.), da intelectual norte-americana Angela Davis, que fez parte do movimento Panteras Negras, do Partido Comunista dos Estados Unidos e da luta por direitos civis, entre outros. A obra traça um panorama histórico e crítico das imbricações entre as lutas anticapitalista, feminista, antirracista e a luta antiescravagista, sem deixar de lado o movimento sufragista e os dilemas contemporâneos da mulher. Um marco da literatura sobre questões de raça e gênero que evidencia o modo pelo qual as opressões estruturam a sociedade. “Mulher, Raça e Classe é uma obra fundamental para se entender as nuances das opressões. Começar o livro tratando da escravidão e de seus efeitos, da forma pela qual a mulher negra foi desumanizada, nos dá a dimensão da impossibilidade de se pensar um projeto de nação que desconsidere a centralidade da questão racial, já que as sociedades escravocratas foram fundadas no racismo”, escreve a filósofa e feminista Djamila Ribeiro no prefácio. R$ 54.

Lobo bobo

Ele já causou muito medo em várias histórias: assoprou forte a casa dos três porquinhos, comeu a vovó da Chapeuzinho Vermelho e aterrorizou muitos contos. No livro infantil Este é o Lobo (Editora DCL, 56 págs.), escrito e ricamente ilustrado por Alexandre Rampazo, descobrimos uma das faces desse animal que, nesse caso, é o personagem principal. A história provoca boas reflexões já que acaba revelando muito mais sobre nós mesmos do que sobre o lobo. R$ 27. REVISTA DO BRASIL

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LADISLAU DOWBOR

Um punhado de otários consumistas

E

u costumava jogar futebol bem, e ia com meu pai ver o Corinthians jogar no estádio do Pacaembu, em São Paulo. Mas, principalmente, brincávamos entre nós, onde e quando podíamos, com bolas improvisadas ou reais. Isso não é nostalgia dos bons tempos, mas um sentimento confuso de que quando o esporte foi reduzido a ver grandes caras fazendo grandes coisas na TV, enquanto a gente mastiga alguma coisa e bebe uma cerveja, não é o esporte, mas a cultura no seu sentido mais amplo, que se transformou numa questão de produção e consumo. Não em alguma coisa que nós próprios criamos. Em Toronto, fiquei pasmo ao ver tanta gente brincando em tantos lugares, crianças e gente idosa, porque espaços públicos ao ar livre podem ser encontrados em todo canto. Aparentemente, eles sobrevivem divertindo-se juntos. Mas isso não é o mainstream, obviamente. A indústria de entretenimento penetrou em cada moradia, em todo computador, todo telefone celular, sala de espera, ônibus. Somos um terminal, em um estranho e gigante bate-papo global, com evidentes exceções, financiado pela publicidade. A enorme indústria de publicidade é por sua vez financiada por uma meia dúzia de corporações gigantes cuja estratégia de sobrevivência e expansão é baseada na transformação das pessoas em consumidores. O sistema funciona porque adotamos, docilmente, comportamentos consumistas obsessivos, em vez de fazer música, pintar uma paisagem, cantar com um grupo de amigos, jogar futebol ou nadar numa piscina com nossas crianças. Que monte de idiotas consumistas nós somos, com nossos apartamentos de dois ou três quartos, sofá, TV, computador e telefone celular, assistindo o que outras pessoas fazem. Quem precisa de uma família? No Brasil o casamento dura 14 anos e está diminuindo, nossa média é de 3,1 pessoas por moradia. Na Europa são 2,4. Nos Estados Unidos, 25% das moradias têm um casal com crianças. O mesmo na Suécia. A obesidade prospera, graças ao sofá, a geladeira, o aparelho de TV e as guloseimas. Prosperam também as cirurgias infantis de obesidade. E você pode comprar um relógio de pulso que pode dizer quão rápido seu coração está batendo depois de andar dois quarteirões. E uma mensagem já foi enviada ao seu médico. O que tudo isso significa? Entendo cultura como a maneira pela qual organizamos nossas vidas. Família, trabalho, esportes, música, dança, tudo o que torna minha vida digna de ser vivida. Leio livros, e tiro um co-

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chilo depois do almoço, como todo ser humano deveria fazer. Todos os mamíferos dormem depois de comer, somos os únicos ridículos bípedes que correm para o trabalho. Claro, há esse terrível negócio do PIB. Todas as coisas prazerosas que mencionei não aumentam o PIB – muito menos minha sesta na rede. Elas apenas melhoram nossa qualidade de vida. E o PIB é tão importante que o Reino Unido incluiu estimativas sobre prostituição e venda de drogas para aumentar as taxas de crescimento. Necessitamos de um choque de realidade. A desventura da Terra não vai desaparecer, levantar paredes e cercas não vai resolver nada, o desastre climático não vai ser interrompido (a não ser se alterarmos nosso mix de tecnologia e energia), o dinheiro não vai fluir aonde deveria (a não ser que o regulemos), as pessoas não criarão uma força política forte o suficiente para apoiar as mudanças necessárias (a não ser que estejam efetivamente informadas sobre nossos desafios estruturais). Enquanto isso, Olimpíadas e MSN (Messi, Suárez, Neymar para os analfabetos) nos mantêm ocupados em nossos sofás. Como ficará, com toda a franqueza, o autor destas linhas. Sursum corda. Ladislau Dowbor é professor nas pós-graduações em Economia e em Administração da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e consultor das Nações Unidas. Este texto é trecho de “Crônica em meio à crise global”, cuja íntegra está no site Outras Palavras. bit.ly/cronica_dowbor


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