Memórias de 486, contos e crônicas de Leandro Malósi Dóro

Page 1

MEMÓRIA DE 486

Contos e crônicas de Leandro Malósi Dóro


Para que essa naba? O objetivo deste ebook é reunir crônicas e contos que escrevi ao longo do tempo com memórias de juventude e diversas fase da minha vida. A ideia é fazer algo bem simples, sem sumário e nem sumérios, mas somente para guardar aquilo que vivi ao longo desses tempos selvagens. Boa leitura ou passa adiante. Leandro Malósi Dóro



PassoFundo.com A primeira página de artigos e conteúdo de Passo Fundo foi o www.passofundo.com.br. Começou na segunda metade dos anos 90, quando a internet passou a se popularizar. Já apresentava um design claro e limpo, comparado a maioria dos sítios brasileiras, que ainda possuíam letras disformes e formatos desproporcionais, com raras exceções. Era administrado pela FlyMD, gerida pela Carine Carine Vanzo Bastos, Yan Koslovsky, Felipe Cardoso e outros. Oportunizou a diversos passofundenses

e

moradores

da

região

escreverem suas idéias em artigos semanais. Um dos mais famosos foi sobre um furacão nos Estados

Unidos

-

depoimento

de

Rafael

Campanile contando, em linguagem gaudéria,


sua experiência de assistir esse fenômeno natural na casa de um amigo, na terra do Tio Sam. Uma série de artigos descreveram a aventura de moto de um tapejarense que viajou a América Latina de moto, muito antes do filme Viagens de Motocicleta. Clei Moraes escrevia artigos poéticos. Muitos outros passaram por esse espaço. Também publiquei na Passofundo.com. Eram artigos, contos, histórias em quadrinhos e desenhos animados, feitos toscamente. Na época, eu era influenciado pelo mailing Cardoso Online, de André Czarnoboski, de Porto Alegre, que semanalmente enviava dezenas de textos de futuros escritores e jornalistas - entre eles, Daniel Galera e Daniel Pellizari. A sede da Fly era na esquina da Avenida Brasil com General Neto, sobre o então bar Fellini, onde Malvados Azuis, Rabo de Peixe e outros se


apresentavam. Andávamos mais uma quadra e meia e estávamos no SA, ouvindo o DJ Cassio Saraiva tocar Planet Hemp, a trilha de Pulp Fiction, Júpiter Maçã e outros. Fabiano Trindade, presidente do

DA das

Engenharias, promoveu uma festa ali, durante a semana. Os rumores diziam que iriam apenas homens, pois era o que havia nas engenharias. Porém todos se esqueceram do nascente curso de arquitetura, repleto de moçoilas. O bar lotou de mulheres, enquanto Fabiano e eu parávamos todos os homens que passavam em frente ao bar para que entrassem, pois o lugar estava transbordando de “peposas”. Ninguém acreditou. Ao final da festa, ficamos eu, Fabiano, um garçom e o dono (Capacete), cercados de irritadas garotas.


Do outro lado do quarteirão ficava o Teatro Municipal, onde amigos como Guto Pasini, Marino Otavio, Betinha Mânica e Pieterson Piéterson Duderstadt se apresentavam as sextas e sábados com seus espetáculos teatrais. Alguns, com grande performance e outros nem tanto, mas a maioria apetitosa. Ao lado funcionava o Museu de Artes Visuais Ruth Schneider - administrado pela saudosíssima Roseli Pretto -, onde o Rodrigo Nassif e outros às vezes se aventuravam em seus primeiros recitais de

violão.

Também

naquele

museu,

eu

participava,com Sérgio e Luciane Campana, Denise Aparecida Vieira (a eterna Emília do Grupo de Teatro da UPF), Moisés Brignoni, Gustavo Ferenci e outros o Grupo do Museu, que aos sábados debatia arte era figurinha fácil em coquetéis de lançamento de exposições.


Tratava-se de um quarteirão que resumia boa parte da cultura daquele final de século, também freqüentado pelos primeiros alunos do nascente curso de Comunicação Social: Vivian Vivian Augustin Eichler, Cássio Giovani Turra, Ana Cláudia,

Ana

Cristina

Spannenberg,

Lucas

Cristiano Gobbi, Veronês Cogo (in memorian) e muitos outros que se espalharam mundo afora, mas que na época trabalhavam em jornais, emissoras de televisão e rádios da cidade e região. Perto de minha casa, na Rua Paissandú, ficava de um lado o apartamento do Bocajão, onde íamos ver filmes, ouvir histórias e músicas ou ler algum de seus contos ou poesias. Do outro lado de minha casa, morou Yamandú Costa - na época considerado autista por alguns vizinhos, pois passava dias inteiros, no quarto, tocando violão.


Pobrezinho. Letícia Birkheuer era uma entre as centenas de garotas bonitas que freqüentavam a Oppium e o Mano Escobar Cabeleireiros. Rodrigo de Andrade surgia na cena cultural escrevendo seu zine Ponto TXT, do qual também participei com alguns textos nonsense ao estilo das Publicações Andrade. Ele inclusive foi processado por reproduzir selos. Ainda, eu, Campanile, Gustavo Ferenci e Carine Hickmann apresentamos um programa sobre música, literatura, teatro e cinema na extinta Rádio Passo Fundo,

ouvido,

esporadicamente,

pelos

moradores da Cantareira - a casa que reuniu boa parte dos roqueiros da cidade entre 1999 e 2000, entre eles Jerônimo Rodrigues de Lima, Sanjai Cardoso, Carlos Potiguar Weydmann Filho, Adriano Moskito e outros Próxima a Cantareira ficava a sala de ensaio da família Lorenz, que fazia o melhor heavy, doom e trash metal do Rio


Grande do Sul – afinal, chegaram ao segundo lugar no Circuito de Rock promovido pela Rádio Atlântida em nível estadual. Na rádio Passo Fundo existia, também, o programa Onde Você Mora, com Bibiana De Paula Friderichs, Gui Deisi Fanfa e Fabiana Beltrami, que confraternizavam, ao vivo, com centenas de moradores de bairros da cidade e, com certeza, era bem mais popular e útil que o nosso programa cultural. Provavelmente, não viviam nossas aventuras noturnas, pois nosso programa era entre 22h e 24h. Um dos radialistas, da meia-noite às seis, tinha fama de garanhão. Namorava muitas ouvintes. Nos dava uma hora a mais, para ficar com alguma delas no sofá da rádio e até meia hora a mais para dispensar as que batessem à porta da rádio, procurando-o enquanto ele estivesse ocupado com alguma radiouvinte mais emotiva.


Nesses anos, Alegre Corrêa, talvez graças ao compositor da casa Raul Boeira, resolveu fazer um show inesquecível, trazendo sua banda da Áustria. O curso de Música da UPF passou a ser dirigido por Roberto Thiesen, aceitando músicos que não liam

partitura.

Isso

gerou

um

momento

inesquecível: eu soube da admissão de músicos não-leitores, através de Roberto, no extinto bar do Jota, e avisei a Nassif, que estava no andar superior. Ele duvidou e foi provocar Roberto, dizendo: "olha só um Paco de Lucia para você". Roberto ouviu calmamente o rapaz se esfalfar e disse:

"você

toca

muito bem.

Pelo

que

demonstrou aqui, passa tranqüilamente no curso de música." Nassif, boquiaberto, encaminhou rapidamente sua matrícula para o vestibular.


Esporadicamente, o PCdoB promovia festas, onde um hoje vereador e professor de História era DJ, tocando LPs com ótimas MPBs e, acompanhado de Alex Necker, Platão Bitencourt Proença, Nilton Oliveira, o Japonês, e outros, ensinava lições de socialismo a qualquer um que se interessasse ou não. Pequenos tópicos desta história cultural, eu registrava na extinta coluna Batata Frita, que eu mantinha no Diário da Manhã ao lado de Camila Knack. Nesse mesmo jornal, atuava o chargista Alexandre Oliveira, antes de ir para o Diário Gaúcho, com piadas inocentes – por exemplo, John Lennon pede sonhos ao padeiro que lhe informa: “o sonho acabou”. Nesse universo era redigida a Passofundo.com. Não havia comentário nos artigos e blog era novidade. O Orkut inexistia e o mais próximo do MSN era o chato ICQ. Por isso recebia e-mails,


com comentários. A partir de 2000, passei a notar um fenômeno: éramos articulistas do êxodo. Dezenas

de

amigos

da

minha

geração

começaram a partir de Passo Fundo, seja pela falta de oportunidades ou por outras metas. Recebia e-mails de Tóquio, Lisboa, Londres, São Paulo, Florianópolis, Lima, Buenos Aires, entre outros. Em todos a saudade era o tema. Para completar, a namorada deixou Beto Bruno, que caiu em depressão e, na véspera de mudar-se para Porto Alegre, mostrou suas branquelas nádegas aos amigos em um bar da cidade, mandando todos bebericar água do orifício prosseco (tomar no...). Na capital, uniu-se a outro ex-morador da cidade, Marcelo Gross (que, quando morava em Passo Fundo recebia amigos em uma casa onde as únicas coisas que os freqüentadores estavam proibidos de quebrar eram a bateria e o sofá), e montou a Cachorro


Grande – banda que acolheu muitos filhos do Planalto Médio em seu imenso e pouco higiênico apartamento do Bom Fim. Devido a essa despedida em massa de amigos - e também minha mudança para Porto Alegre -, escrevia artigos onde falava sobre a cidade, para a Passofundo.com. Alguns eram emocionados e outros

despretensiosos.

Apesar

disso,

a

Passofundo.com crescia e tornava-se referência para a noite e a cultura da cidade, mantendo cerca de sete mil acessos semanais - na época, um número impressionante em uma cidade cujo maior número de computadores era concentrado na Universidade de Passo Fundo. Uma das iniciativas da Fly não teve bom resultado: promoveram uma pesquisa idônea, em várias etapas. Injustamente o resultado dessa pesquisa gerou um processo contra a empresa. Em 2001, a Passofundo.com acabou e em seu


lugar surgiram outras páginas e a lembrança dessa que foi a mais importante iniciativa cultural no município ao final do século XX.



Clods Minha geração começou a se acostumar com a perda de amigos. Infelizmente é o tempo que nos torna mais duros. Porém algumas lembranças ficam. Clodoaldo Tonial foi muito importante para nossa adolescência. Liderou o primeiro grupo de metaleiros dark e thrash metal de Passo Fundo. Eu era roqueiro, portanto não fazia parte dessa turma. Porém ouvia histórias de que Clodoaldo havia roubado um crânio de um cemitério e o levado para casa. Ainda contavam que realizava rituais. A verdade é que o conheci nas escadarias do colégio EENAV e depois com dezenas de seguidores caminhando pelas ruas da cidade, sempre de preto, cabeludo e chamando todos de “frau”. Bebiam caipirinhas


em copos feitos de garrafas plásticas cortadas ao meio e sentados a beira da calçada. Os frequentadores do classe média Boka lanches - e suas camisas xadrez - odiavam esses metaleiros. Essa rivalidade gerou inúmeras brigas nas madrugadas da rua Independência. Assisti algumas dessas batalhas de soco, lideradas por Clods, que pareciam ter saído do filme Ruas de Fogo. De uma hora para outra, Clodoaldo sumiu da rua Independência. Passou a frequentar somente o bar do Claudião, distante dali, e mais tarde desapareceu da noite. Descobri onde ele morava e fui visitar. Conheci um Clodoaldo família, que cuidava dos pais e aprendia informática. Uma vez foi morar em São Paulo e voltou frustrado com a forma desonesta que os patrões tratavam os funcionários, forçando a trabalhar sem descanso e recebendo pouco. Finalmente decidiu ser técnico em informática. Um dia


enviou currículo e não foi contratado. De vingança, instalou um vírus na empresa que o recusou. Ainda havia resquícios do velho Clods. Depois arrumou o tão desejado emprego de técnico de informática, cortou o cabelo e se tornou uma pessoa comum que ia em churrascos da empresa, assistia jogos do Grêmio, gostava de carros antigos e se envolvia com namoradas. Sua fama se perdeu com o tempo, mas parecia não se importar e sequer aparecia para rever a noite que antes era seu habitat. Amava os pais acima de tudo e muitas vezes conversávamos algumas besteiras virtualmente. Perdeu a mãe ainda em 2018 e ele mesmo veio a falecer

meses

depois

de

pneumonia

e

tuberculose em um drama pessoal intenso. Mesmo assim ficam as memórias e talvez a possibilidade de contar melhor esses causos que ouvia sobre ele na juventude. Descanse em paz.



Gla, gla, gla Sentado na escadaria da igreja Batista, Marcelo agitava seus cabelos loiros lisos corte penico. Empunhava um violão, cantando Pastor João e a Igreja Invisível, de Raul Seixas, ritmando seu corpo de pouco mais de um metro e meio. Na igreja, uma banda tocava cânticos a deus, abruptamente interrompidos enquanto uma voz retumbante se aproximava da porta. Era um trompetista engravatado que passou a correr, empunhando seu trompete, atrás do violonista que se levantou correndo e rindo no meio da rua naquele domingo pela manhã. Eu e Ari chegamos a pé e o vimos ali, parando para rir daquele negro alto e obeso, de camisa branca e gravata, calças e sapatos pretos que em vão tentava alcançar um Marcelo de calça jeans, camiseta branca, tênis e forte, talvez graças a sua


baixa estatura. O trompetista desistiu de alcançá-lo e retornou para a igreja, limpando o suor do rosto com a ponta da gravata. Marcelo nos viu e contou o motivo da perseguição. Ele morava desde a infância ao lado daquela igreja e a música de Raul Seixas se tornou uma boa arma para irritar os vizinhos religiosos. Rimos, mas sugerimos que parasse de fazer isso. Ouvimos o motor de uma Kombi, pilotada pelo Roque, que também era Papai Noel nas vilas da cidade. Chegou exatamente à hora combinada. Entramos e seguimos até uma chácara na saída da cidade, com o veículo trepidando na estrada irregular, compondo uma sinfonia ensurdecedora junto com o motor. Saí da Kombi para abrir a porteira. Junto à cerca, havia flores de primavera e um cheiro de pólen que me faziam espirrar. Entramos e outros amigos já estavam lá, reunidos em torno de uma


casa

branca

de

telhado

marrom.

Uma

churrasqueira de tijolo a vista já fumegava aguardando a carne que ainda estava em um freezer, fazendo companhia a cervejas vodka, cachaça, limão e refrigerantes. O dono do lugar nos recebeu: — Essa chácara eu herdei do meu pai. Ele tem uma pedreira, aqui ao lado. Quando comprou já tinha o açude que vamos ver à tarde. É muito lindo e agora na primavera fica mais bonito ainda. A formalidade do nosso anfitrião se explica porque aquele churrasco fazia parte de uma comemoração de final de ano da juventude de um partido político. Ouvi Marcelo dedilhar o violão em ritmo de blues, acompanhado pelo violão de Luciano e uma batucar de Everaldo. Cantava: As baratas não morrem jamais Elas só ficam tontinhas


Perguntei ao Ari o motivo de Marcelo cantar aqueles versos e todos rirem. Contou-me que Marcelo fez uma festa em sua casa e acabou a bebida. Procuro, na despensa, alguma garrafa e encontrou uma que se assemelhava a batida de côco. Bebeu um gole, caiu ao chão e foi levado ao hospital. Era veneno para barata. Recuperou-se, mas seu gato, que lambeu a mistura, ficou com sequelas. A cada meia dúzia de minutos tinha espasmos que pareciam choques elétricos. Ofereceram-nos latas de cerveja e refrigerantes enquanto formavam-se grupos para conversar sobre política com uma seriedade que destoava com o domingo de manhã. Os primeiros risos descontrolados surgiram aos poucos entre as cerca de 40 pessoas. Alguns se revezavam na montagem dos espetos e da mesa. *** O sol do meio-dia irritou nossos olhos quando a digestão

nos

tornava

sonolentos.

Alguns


dormitavam sob as árvores e outros decidiram caminhar para espantar o sono. Eu, Ari e Marcelo nos unimos a Luciano e a Everaldo para desbravar a chácara. Caminhamos pelo entorno do açude, sentindo o calor nos fazer suar. Encontramos um pequeno cais para botes. Ari e Luciano sentaram ali. Esse último contou as dificuldades

de

continuar

a

pagar

as

mensalidades da faculdade de Engenharia Mecânica, enquanto esse último narrava as peripécias para pagar as de Direito. Everaldo e Marcelo embrenharam-se na mata, repleta de arbustos e pinheiros de araucária, cujos galhos e folhas formavam uma sombra fechada, escura e úmida. Sentei-me em uma pedra para ver o açude. As águas calmas, cercadas por árvores e flores, convidavam a contemplação e ao silêncio, imediatamente destruído pelos gritos de Marcelo, que gritando, vestindo apenas uma cueca, correu de dentro da


mata até o lado do pequeno cais, onde se atirou na água para nadar. O anfitrião caminhava por ali, tirou a roupa e, também de cueca, fez o mesmo. Decidiram nadar de um lado a outro do açude e assim o fizeram em mais ou menos quinze minutos.

Voltaram

ao

ponto

de

partida

esbaforidos. O anfitrião comemorou, pois foi o primeiro a chegar. Despediu-se, molhado, dizendo que iria ver como estavam os outros convidados. Marcelo foi a mata, pegar as roupas. Ouvimos gritos. Era Marcelo pedindo para Everaldo acordar. O próximo som foi: gla, gla, gla, gla, gla e tibum. O “gla, gla, gla” era o riso de Everaldo que correu vestido da mata e, passando por entre Ari e Luciano, no pequeno cais, atirou-se na água gerando o já citado “tibum”. Ari e Luciano riam enquanto viam Everaldo debater-se na água e emitir os “gla, gla, glas” enquanto emergia e submergia da água. Parecia


uma brincadeira de Everaldo. Porém o debater-se na água se repetiu por cerca de um minuto até que Luciano assustou-se e decidiu puxar, pela mão, o amigo da água. Everaldo tossia e expelia água, agradecendo por Luciano lhe salvar a vida. Ari sugeriu que levassem Everaldo para a casa da chácara, para se recuperar. Luciano concordou e levou-o escorado pelo braço por alguns metros e deu um grito, largando Everaldo ao chão. Perguntei o que aconteceu e Everaldo, com voz empastada, disse para Luciano levá-lo ao matagal e fazer o que quisesse, como forma de agradecer por ter salvo sua vida. Rimos às gargalhadas e Luciano, não. Voltou para a casa da chácara, mudo, e nós o seguimos. O violão de Marcelo fora deixado escorado na casa branca e, devido ao sol, empenou. Parecia, agora, um berimbau. Talvez ao grau de alcoolismo ele nem viu. Correu para a área onde


todos haviam estacionado os carros. O grupo que ficou no entorno da casa decidiu ir embora em meia hora. Ouvimos gritos vindos de uma mata próxima. Era Everaldo, que tentava imitar o grito de Tarzan enquanto pendurava-se em um cipó. Sentei-me para admirar aquela clareira repleta de arbustos e cipós das árvores. Reconheci a buzina da kombi de Roque. Chamei a todos que só perceberam quando eu me levantei e me dirigi para onde estavam os automóveis. Além dos passageiros normais, iria-nos acompanhado um freezer que dançava de um lado para outro do carro na viagem. A cada solavanco, ia de encontro a algum dos quatro caronas - eu, Ari, Everaldo e Marcelo -, que revezavam-se para evitar ser prensados contra a parede do veículo. Descemos na Avenida Getúlio Vargas, próximo a casa de Ari, que pediu para trocar de roupas antes de continuarmos a farra no bobódromo da


cidade – um trecho de avenida cuja praça, ao centro, era dividida por grupos de amigos e o entorno por bares, enquanto automóveis e seus pavoneados motoristas se exibiam para as pretensas namoradas. Eu e Ari fomos na frente, caminhando trôpega- mente, comigo mancando com a perna esquerda e ele com a direita em um compasso desconexo que lembrava dois pêndulos ao contrário. Marcelo e Everaldo demoraram para atravessar a rua e, por isso, distanciaram-se de nós. Gritavam e riam e por isso decidimos não esperá-los para “não queimar o filme” com a vizinhança. Cumprimentamos a todos que estavam nas ruas e nas janelas, sem percebermos que estávamos sujos de barro e mato. A mãe do Ari atendeu a porta, com seus olhos azuis

e

cabelos

brancos

como

nuvens.

Educadamente pediu para que aguardasse-o enquanto se arrumava. Sentado na sala, ouvi


latidos, gritos e aquele “gla, gla, gla” que interpretava como riso. Pedi para que eles não entrassem na casa. Porém bateram à porta. A mãe de Ari novamente atendeu. — Ari está? — Está tomando banho. — O quê? Aquele vagabundo está tomando banho? — questionou Marcelo com a voz ainda embargada pelo alcóol. Correu até a porta do banheiro e começou a chutá-la: — Sai do banho, Ari. Sai do banho. A mãe de Ari tentou acalmá-lo. Eu e Everaldo decidimos então sentar-nos na mureta em frente a casa, pois a vergonha que sentíamos já estava insuportável. Tentamos conversar sobre assuntos amenos, começando pela pergunta “o que você tem feito?” enquanto ouvíamos os gritos insistentes de Marcelo.


Ari saiu prematuramente do banho. Vestiu uma roupa limpa e saiu acompanhado por um Marcelo que gesticulava e gritava. Pedimos para que ele e Everaldo fossem na frente, em direção a parada de ônibus. Uma adolescente de cabelos castanhos e longos estava no peitoril da janela de casa e sua mãe, muito parecida com a filha, regava as plantas do pátio. Marcelo gritou: — Gostosa, oi, gostosa. Everaldo completou: — A mãe também. Pegamos um ônibus e chegamos ao bobódromo, repleto de pessoas e automóveis. Decidimos ir a um bar onde um músico conhecido tocava MPB. Vestia camiseta, bermuda e sandálias que combinavam com aquele dia de calor. Marcelo falou ao seu ouvido, porém o microfone captou: — Você está muito gostosa hoje.


O músico agradeceu, constrangido, e continuou a tocar. Encontramos amigos e sentamos a uma mesa. Ari perguntou onde estava Marcelo. Olhamos no entorno e vimos suas pernas dançando no ar. Perdera o equilíbrio e caiu sobre um arbusto florido, ficando de pernas para o ar. Levantamo-o e decidimos levá-lo embora, mas ao arrastá-lo para atravessar a avenida, todavia tropeçou e caiu e começou a gritar palavras ininteligíveis enquanto interrompia o trânsito. Erguemo-o mais uma vez e quando estava do outro lado da avenida, sentiu-se revigorado e nos convidou para ir a um outro bar beber. Recusamos e ele saiu correndo, com Everaldo o seguindo. Eu e Ari decidimos voltar para casa antes do sol se pôr.


Â



Bar do Nica Rodrigo sorria com bafo de cachaça e Fanta laranja, enquanto dedilhava Purple Haze em um violão Tonante ao sol do final da tarde. Suava na testa de cabelos castanhos curtos e sob a camisa listrada de flanela azul, que guarnecia um corpo magricelo, porém robusto. Sentado na mureta do bar, sob sua pasta do primeiro semestre da faculdade de Direito, esperava que os amigos surgissem em alguma esquina. A casa caiada de branco tinha apenas uma andar e pouco mais de quatro metros de largura. O pátio em frente à rua era de lajotas irregulares. Um ônibus passou, fazendo tremer as mesas metálicas dobráveis. Rodrigo olhou para a penumbra do interior do bar, identificando apenas os óculos fundo de garrafa e os cabelos brancos de Nica, por trás do balcão do boteco.


Percebeu que, na esquina, aproximavam-se os cabelos loiros, corte penico, de Marcelo, amigo e colega de faculdade, que cambaleava o corpo maciço de um metro e sessenta centímetros. — Daí, cuzão – gritou Marcelo, acendendo um cigarro no canto da boca. — Chega aí – sorriu Rodrigo, erguendo um copo repleto de cachaça misturada com Fanta. – Toma um Ai-ai. Arrancou o copo plástico das mãos do amigo, derrubando cachaça no chão e tomando um gole de seis segundos. Marcelo tirou um baseado do bolso da camisa. Rodrigo sorriu e pediu para Nica guardar o violão atrás do balcão. Os dois caminharam duas quadras até se embrenharam nas folhas de um chorão. Sob a árvore acenderam o cigarro de maconha. Olharam para o entorno e viram homens de camisa branca e calça e


gravatas pretas, acompanhado de mulheres de vestido e cabelos longos, a tiracolo de seus filhos. Eram os evangélicos que saíam do culto dominical. Rodrigo gritou: — Sou “o coisa ruim”. Sou o capeta. Os evangélicos atravessaram a rua, alguns fazendo sinal da cruz. O baseado queimava as pontas dos dedos, amarelados pelo fumo. Marcelo guardou o toco com outros, em uma caixa de fósforos. Voltaram rindo e encontraram um casal discutindo na esquina. Reconheceram Evandro — o magricelo guitarrista da banda Patrulha Ativa —, abraçado a um violão. Sua namorada, uma morena de cabelos encaracolados, esbravejava: — Você decide, ou eu, ou o violão.


— Sou músico. Se você quiser, fica comigo. Senão acabou, “mina”. Ela deu um tapa na cara de Evandro e começou a gritar. Rodrigo e Marcelo riram e decidiram voltar para o bar. Encontraram Bira, e suas precoces entradas nos cabelos escuros, que morava na casa dos fundos, tocando um blues com sua gaitinha de boca. Contaram o que viram e riram enquanto o cabeludo Maurício e magricela Nelson se aproximavam. Reunidos, pareciam vestir uniformes: camisas de flanela listradas abertas, revelando camisetas por baixo, calças jeans e tênis ou botinas com solado de borracha. — Cadê o Ai-ai, cadê o Ai-ai – esbravejou Maurício, enquanto Nelson perguntava baixo com o canto da boca: — E o beise. Vocês fumaram um, né? — questionou lentamente. Falava assim desde que


tomou um chá de cogumelo na casa do amigo Leonardo. Tinha por vezes um olhar perdido, contrastando ao de Maurício, que aparentava sempre bravo e compenetrado. A seriedade que tinha nos exercícios de guitarra parecia ter transbordado para a vida social. — O beise acabou, mas se tiver mais avisa que eu fumo — ironizou Marcelo, com olhos vermelhos. Rodrigo pediu para Nica trazer a garrafa de cachaça com Fanta e cada um tomou um gole, enquanto ouviam sobre a briga de Evandro e a namorada. Riram e Maurício, amarrando a cabeleira loira com um elástico, pediu o violão para Nica, que o alcançou fazendo pequenas piadas, mas retornando para sua vida interior e quieta de dono de bar que procurava ser um oásis de silêncio em meio ao burburinho dos clientes.


Maurício dedilhou Faxineira Fascinante, de Nei Lisboa, enquanto o sol se punha. Um vento frio amainava o calor do dia que terminava. Mais um ônibus passou fazendo trepidar a todos. Muitos do grupo de amigos haviam acordado a tarde. Sábado, assistiram ao show da banda Patrulha Ativa, no New Kids — uma garagem improvisada de bar, no centro da cidade. Contaram histórias de bebedeiras e de baseados fumados em becos escuros. Aos poucos, foram se sentando nas cadeiras do bar, fazendo um círculo de pessoas cujas risadas eram ouvidas nos prédios e casas vizinhos. Marcelo levantou-se de um salto, derrubando a cadeira metálica: — Vocês são todos uns idiotas. Ninguém leu Dostoiévski. Eu li Dostoievski. Você já leu O Idiota, seu idiota? E Memórias de Subterrâneo? Quem não leu Dostoiévski não entende a humanidade.


— Li e tu com isso? — respondeu Rodrigo. — Olhaí o Alexandre. Chega aí, Plasmão — gesticulou Nelson, com seus braços grandes e desengonçados, combinando com o nariz de papagaio. — Só pra não perder a prática, alguém quer um cigarro Plaza? — ofereceu Alexandre, reforçando o motivo de seu apelido. Já tinha olhos túmidos de quem tinha bebido algumas cervejas, antes de ir ao bar. — Dá um gole desse Ai-ai — pediu, estendendo a mão para receber o copo de Bira, que o observava com o canto dos olhos: — Daí, figura. Já bebeu todas, hoje? — Nem me fale. Saiu um churrascão lá em casa. Bebi todas.


Começaram a conversar sobre almoço de domingo. Alguns tinham acordado a tempo, outros, não. Mais um ônibus passou fazendo tremer a todos. Um grupo de homens carecas, outros grisalhos, e obesos se aproxima. Nica sai de dentro do bar e vai ao seu encontro. Cumprimentam-se aos risos e com tapas nas costas. Um negro de rugas fundas e boina dirigiu-se ao Bira: — E daí, quando vamos repetir aquele joguinho de futebol? — Nem me fale. Nunca pensei que a gente ia perder pra vocês. — Bah, mas faz um mês que aconteceu esse jogo. Nem lembro do resultado — retrucou Maurício.


— Pois eu lembro: vocês perderam — disse Nica. Conversaram mais alguns minutos sobre a derrota dos novos contra os velhos enquanto as primeiras estrelas surgiam em um céu sem nuvens. Nica organizou uma mesa para o mais velhos jogarem cartas. Serviu as bebidas e Alexandre revelou aos amigos que tinha um baseado. Dessa vez foi Maurício quem pediu para Nica guardar o violão. Todos foram para um terreno baldio próximo. Permaneceram em círculo enquanto fumaram a maconha, que foi insuficiente para “dar um toque” — fazer com que se sentissem como se estivessem em um sonho lento. Decidiram, então, desmanchar as pontas de baseado e fazer um único cigarro. O resultado foi um cigarro no formato de um palito de fósforo que foi tragado em uma passada pelo círculo.


— Fuma rápido aí, fominha — asseverou Alexandre para Nelson, cuja tragada já demorava alguns segundos. Voltaram para o bar, quietos. Alguns compraram cigarros. Rodrigo pediu para Nica pendurar a cachaça e a Fanta. Despediram-se e partiram a pé num horário em que os ônibus já não mais passavam por ali.



Freak Brothers Palmilhei quadras com minhas botinas Zebu. A lua, igual bola de vôlei, iluminou o céu, ciceroneada por nuvens semelhantes a pequenos morros repletos de arbustos. Encontrei Gustavo em frente à varanda da casa. Das paredes descascadas, vibrava Ângela Ro Ro, cantando Amor, Meu Grande Amor. — E daí meu? — disse ele, com um sorriso e um cumprimento

de

mãos.

Estávamos

sem

namoradas. Por isso a festa daquela noite parecia ser ótima oportunidade para nos divertir. Ambos usavam camisa xadrez de manga longa — eu, azul e ele, marrom —, abertas, mostrando nossas camisetas brancas. Filosofamos sobre Gramsci. Estávamos fascinados por aquele pensador italiano ter previsto que comunicadores e artistas


eram o setor intermediário de um partido, que permitia

a

direção

relacionarem.

e

aos

Éramos,

eu

militantes e

se

Gustavo,

comunicadores sem partido. Minto, palpitamos pela esquerda. Por isso participamos daquela festa do PCdoB, porém também gostávamos do PT, do PDT e do PSTU. Todos pareciam querer reduzir a distância entre as classes sociais. Do toca disco, Djavan cantava Lambada de Serpente. Luana, Augusto, Miguel e vários outros surgiram em turmas, cumprimentando-nos e adentrando o corredor exíguo que dava para o pátio, nos fundos da casa. Fomos para lá, também. Encontramos mais algumas dezenas de amigo. Onde estava Aline? Pensei que viria a festa. Comprei uma cerveja, armazenada em uma caixa


metálica repleta de gelo, ao lado de uma das árvores

do

gramado.

Ouvi

uma

seleção

psicodélica sessentista de Caetano Veloso. O disk jóquei,

Juliano, aproveitava

politicamente

alguns

para

doutrinar

adolescentes.

Muitos

estariam na tarde do dia seguinte, domingo, em uma reunião do partido. Clarice, loira e esguia, surgiu, espalhafatosa, com seu vestido policrômico esvoaçante. Flanava com plumas e sorrisos, sabendo ser admirada pelos rapazes

e

invejada

pelas

garotas.

Ao

cumprimentar, oferecia seu braço como se aguardando um beijo-mão. Ríamos. Subimos a escadaria de cimento rachado. Na casa com, piso de madeira, uma banda arrumava os equipamentos para tocar alguns covers de Barão Vermelho, Rolling Stones, Beatles, Red Hot Chili Peppers, Cazuza, Legião e Mutantes.


A fila do banheiro, composta por viciados, indicava o que acontecia ali, enquanto um casal de

lésbicas

aguardava

oportunidade

para

utilizá-lo de forma mais criativa. O baterista, tocando a introdução de Rock and Roll de Led Zeppelin, tremeu o piso precário. Em minutos, dezenas de pessoas abarrotava as duas salas, a cozinha e a biblioteca do partido, repleta de volumes de Marx e Engels, biografias do Che Guevara e coleções de revistas do partido. Gargalhávamos com mímicas de meu vizinho, Júlio. Gustavo depositava cerveja em nossos copos. Aline veio, acompanhada de Andressa. Fingiram não me ver? Conversaram com alguns alunos das Artes. Cumprimentei-as erguendo o copo cheio e sorrindo. Aline manteve o olhar por alguns

segundos

nos

meus,

consentindo o prazer em me ver. Isso seria verdade?

como

que


A bela estava com as bochechas rosadas, provavelmente de beber vinho. Os olhos cintilantes, combinando com os cabelos negros que caíam sobre uma pequena camisa listrada de manga curta, terminada na altura das calças jeans boca de sino que guarneciam nádegas volumosas. Na próxima vez que me olhasse, iria até ela. Contaria algumas piadas, parecidas com "se você me amasse como eu te amo, a gente se amassava a noite inteira". Diria algumas frases inteligentes, extraídas de algum intelectual qualquer, como "o homem é uma ponte entre o animal e o além-homem", do Nietzsche. Depois a convidaria para dar uma volta no pátio e então a beijaria e a roçaria pelo restante da noite. Júlio apareceu ao meu lado, eufórico. Mostrou um baseado. Fomos à parte mais escura do pátio, porém Platão, o mais velho da casa, viu-nos e


pediu para fumarmos em outro lugar. Demos uma volta na quadra, repleta de casas de alvenaria, com telhados em forma de "v" invertido. Falava de Aline, que queria ficar com ela, a achava linda e a queria desde que a conheci no início do semestre do curso de jornalismo. Voltamos a festa e ela conversava com Maurício, o diretor de teatro e estudante de Farmácia que, pelos

olhares,

parecia

ser

extremamente

simpático. Pedi um Hals ao Gustavo e comprei uma Coca-cola. Precisava recuperá-la. Marcos, um dos comunistas da casa, mostrou-nos a coleção dos Freak Brothers. Nunca havia visto tudo dos três Freak. Lia pequenas histórias em revistas alternativas, nesses anos pré-internet. Devo ter ficado quase meia hora deleitando-me com um daqueles gibis, rindo do gato freak e das aventuras

criadas

por

Gilbert

Shelton.

Provavelmente a maconha me impediu de


perceber que me prolongava na leitura. Quando percebi, a banda parou de tocar. Levantei-me de um salto e fui ao banheiro lavar o rosto. Tinha olheiras e cabelos desgrenhados. Retornei ao pátio. Procurei meus amigos, mas não os vi. E Aline? Onde estava? Gal Costa cantava Mamãe, Coragem, do álbum Tropicália. Deus, a música era depressiva e eu estava perdido. Encontrei Gustavo contando histórias do estúdio de rádio onde trabalhava. — Aí o locutor beijava uma ouvinte na ante-sala do estúdio. A namorada dele bateu a porta da emissora. Desesperado, nos pediu para que disséssemos que ele não estava. Em troca, ganhamos mais meia hora na programação. Perguntei de Aline, mas ninguém sabia. Corri para a frente da casa e lá estava ela, beijando-se com o diretorzinho de teatro. Droga. Fiquei com


raiva. Ia tomar mais uma cerveja, mas meu dinheiro acabou. Vi Júlio, meu vizinho, saindo da festa. Decidi acompanhá-lo. Umas três quadras adiante, passamos pelo prédio de Eduardo, um dos viciados do banheiro. Da janela do terceiro andar, Rafael, seu amigo, gritou três vezes: “ei, vocês”. Berrei, em resposta: “o que houve?”. Ele respondeu com um dedo sobre a boca: “shhhhhhh, silêncio”.Queria rir, mas minhas botinas me levaram para casa.



2010 Mais uma década se encerra. A anterior cobriu o período entre meus 15 para 25 anos. Essa, que se conclui, dos 25 aos 35 anos. Dos 15 aos 25 a velocidade

das

mudanças

foi

vertiginosa,

comparada a essa década. Conheci muitas pessoas, comecei a cursar faculdade, tive três empregos diferentes, nutri sonhos em trabalhar com cinema, música, literatura, quadrinhos, cartum e artes plásticas. Já atuava com jornalismo. Por isso queria apenas aprimorar-me nessa área. Aprendi a lidar com sentimentos e acreditei que a felicidade se concretizava de diversas maneiras: com festas, com passeios ao estilo dos filmes de aventura, com música, com sonhos. Mudei meu conceito de felicidade várias vezes. Cogitava tudo, menos paz.


Encontrei a paz dos 25 aos 35. demorou para chegar, mas ela está aqui. Sinto-me mais tranquilo e racional. Pouco me emociono com qualquer coisa. Ocorreu o que eu temia: tornei-me racional e a arte perdeu o sentido que antes era latente e essencial. Sim, eu sempre percebi que a arte popular é jovem. Já notaram que

dificilmente

um

roqueiro

cria

uma

composição essencial depois dos 40 anos? Se o fizer, normalmente é releitura. Porém as que possuem emoção, são até uns 34. porque? Acredito que seja culpa do racional. Ele suplanta o emocional e, com isso, adeus inspiração, que nada mais é que o subjetivo sendo manifestado. Dos 25 aos 35 trabalhei com outros sentimentos. Queria me assentar, ter um trabalho que me desse tranquilidade e o direito de ter um lar onde eu fosse o responsável. De certa forma, consegui. Agora procuro mantê-lo, porém continuo a ter


sonhos. Queria muito viajar e esse não é um sonho original. Todos querem conhecer o mundo antes da morte. Todos, menos os que não perceberam a importância de sentir-se pleno observando a grandeza da humanidade. E qual é o motivo de viajar, além de observar os feitos da humanidade? Talvez, evitar perceber que mesmo com as tecnologias que nos cercam, somos animais limitados. Almejamos, como meta de vida, morar em uma residência com paredes, portas e janelas – coisa que a humanidade aprendeu a executar a milênios. Dormimos em camas, que são a evolução da relva onde descansavam nossos antepassados ou da cama de palha, que conheceram nossos avós. Queremos registrar o presente, pois ele é efêmero. O futuro muda tudo, inclusive o que nós pensamos sobre qualquer coisa. Precisamos nos locomover com rapidez, pois temos pressa em


viver e cumprir nossas tarefas para que sobre um pouco de tempo para o que a novela das chama de vida. Devemos nos educar, pois sem isso somos pobres animais que podem sair brigando igual personagem de filme de ação de baixo orçamento. Necessitamos nos comunicar, afinal as experiências e o apoio de outrem nos auxiliam a viver melhor no que chamamos de sociedade e nos auxiliam a passar esse ínterim entre o nascer e o morrer. Passar o tempo. Para mim, saber como passar o tempo é a principal dúvida da humanidade. Quando olho para jovens bebendo cerveja em um sábado à tarde ou pessoas comprando coisas sem necessidade ou ainda apenas caminhando sem rumo, noto o quanto nós não conseguimos preencher esse tempo que nos foi dado. Felizes são os ocupados, que pouco pensam nisso. Ou talvez infelizes, pois talvez não tenham opção de buscar alternativas para se viver.


Espanto-me como as experiências passam rápido. Há poucos minutos decidi escrever esse texto e já estou concluindo a primeira página, sem perceber como cheguei aqui. Fluxo de pensamento? Pode ser. À tarde, almocei no centro de Porto Alegre e reencontrei um amigo que não conversava desde 1997. Dialogamos sobre amenidades e nos despedimos sem pressa de nos rever. Para minha sorte, meu corpo me permite, ainda, sentir-me um pouco eterno e isso me agrada. Porém sei que aos 35 as decisões que tenho de tomar definem boa parte do meu futuro. Sim, há decisões a serem tomadas para que com paz eu possa, talvez, um dia, ficar tranquilo a janela de um apartamento observando as crianças que um dia irão preencher as ruas com suas trajetórias.


Tenho muitos instintos e sentimentos e com eles devo lidar. Graças a eles, mantenho-me bastante ocupado:

fome,

preguiça,

sono,

libido,

curiosidade, ganância, ódio, tédio e assim o seguem. São diversos e graças a linguagem posso defini-los. Os mesmos transitam e se misturam no meu cotidiano e apenas a disciplina pode educá-los para que existam ou não. É triste, mas notei que nessa década me tornei mais indivíduo. Na anterior eu era mais comunitário. Vivia pelos outros e me emocionava quando via qualquer amigo nas ruas. Isso ainda acontece, mas de maneira muito diferente do que antes. Alguns chamam isso de maturidade. Eu chamo de espanto. Sim, espanto-me comigo e minhas decisões. Nessa década, como na anterior, perdi muitos amigos, que me fizeram lembrar o quão frágil é a vida. No trabalho, tem um cartaz com os


desaparecidos políticos, semelhantes aos dos mortos na guerrilha do Araguaia, que circulam pelas sedes dos partidos de esquerda do país. Observo-os e noto como somos finitos. São centenas, mortos. E ao entrar em uma rua da Praia lotada com milhares de pessoas eu as olho e lembro de uma única frase: nós que aqui estamos, por vós esperamos. Para quem desconhece, essa sentença, ela está incrustada nos cemitérios antigos. A diferença é que nós iremos desaparecer de formas diferentes: alguns viram cinzas, outros vão para cemitérios, outros, ainda, para gavetas e assim por diante. Se formos masoquistas, podemos erigir nosso lar eterno e visitá-lo ainda na juventude. Quando criança, aprendi que visitar cemitérios traz tranquilidade, pois toda a pressa de nada adianta, pois todos chegaremos ali um dia.


Notem, escassos leitores, eu comecei esse artigo para fazer um balanço dessa década que abarcou dos meus 25 a 35 anos e apenas ou quase somente falei sobre a vida e eu. Porque isso? Talvez por compreender cada vez mais minha finitude ou por escrever essas palavras enquanto o sol se põe em uma tarde de inverno em Porto Alegre. Há ninguém para telefonar e se houver, estou sem ânimo para ser divertido. E isso não é recusa de amizade. Pelo contrário, é respeito. Quero preservar meus amigos e por isso evito suas companhias quando não estou em um estado de espírito condizente a alegria que possam estar. E convenciono a alegria que possam estar por fatores subjetivos. Notei também que aceito mais julgar as pessoas sem sentir vergonha disso. Antes as julgava e me


envergonhava, também por errar muito sobre o que pensavam. Hoje consigo acertar mais sobre o que as pessoas pensam e por isso os julgamentos são mais acertados. Porém os mais velhos, em geral, continuam sendo um mistério para mim. E muitos eu não me arrisco a julgar, principalmente quando possuo poucos elementos para isso. Dos

25

aos

35

meus

sentimentos

se

transmutaram e notei que tive uma vida mais interna do que apenas externa. Porém observo os cabelos brancos caminhando pelas ruas e temo o que o futuro me reserva.



Be bop a lula Misturei sabão e água até espumar na pia, entupida por um pano. Mergulhei o pente na mistura e escovei o cabelo. Fiz um topete estilo Elvis Presley - ou, na realidade, João Penca e seus Miquinhos Amestrados. Saí e fui a festa. Umas gurias perguntaram qual era meu signo. Respondi: Escorpião. Disseram que eu era tarado. No fim da festa passei na região que abrigava os bares da cidade. Porém fiquei minutos, pois temia que a mãe reclamasse minha falta. Voltei pra casa e me perguntei: quando voltaria àquele lugar? Vida louca vida. Era tímido ao ponto de receber visitas escorado à porta, com medo de que vissem meu corpo inteiro. Isso aconteceu até o dia em que um amigo me convidou para ajudar na sua campanha a vereador. Aceitei ajudar e assim saí de casa. Nunca mais me escorei a uma porta.


- Oi, Sol - disse àquele cara de cabelos ruivos encaracolados que escrevia em uma faixa eleitoral para a campanha de vereador do amigo em comum. Convidou-me para ir em um bar: Barril 2000, do outro lado da cidade. Levei uma gaita de boca no bolso. Sabia tocar apenas Roadhouse Blues, do The Doors. Haviam mais pessoas fora que dentro daquele bar de esquina, ao lado de uma avenida com um canteiro central tão amplo e arborizado que muitos se perdiam por ali pra fumar ou se beijar. Alguém riu de mim, sentado, em frente ao bar. Não entendi o motivo, mas lembro do sorriso e de ver alguém que parecia ter uns 16 anos sair de mãos dadas com uma mulher mais velha. Dentro daquele bar, amarelo cerveja, às vezes alguém

cantava

MPB,

mas,

fora,

os

adolescentes batiam riffs de rock nos violões e fechavam baseados que seriam fumados no pátio dos vizinhos ou no canteiro central. Às vezes eu também ia, mas tímido, pois ainda conhecia os que ali frequentavam.


Uma vez pulamos o muro de algum vizinho e fomos fumar no pátio de um amigo. A mãe dele percebeu e tivemos que sair correndo. No dia seguinte minha mãe perguntou quem eram meus novos amigos. Comentei que os conheci no bairro Boqueirão. Ai ela colocou as mãos no rosto e disse: - Meu deus, na rádio disseram que uns meninos fizeram uma cruz de gasolina na frente do bar e colocara fogo.Um motorista quase morreu. Esses são seus amigos? Respondi que não conhecia essas pessoas. Na realidade, sabia quem eram. Porém preferi mentir. No final de semana seguinte descemos a Independência, a rua que abrigava as festas da cidade. As luzes ofuscaram meu olhar e lembro que descia com um gingado que, imaginava, ser similar a Embalos de Sábado à Noite, mas com roupas de Kurt Cobain e um cabelo desgrenhado e comprido, bem mais adequado àqueles tempos.


A camisa de flanela azul xadrez aberta sobre uma camiseta era acompanhada por uma calça jeans e botina couro falso e elástico. O bar onde entramos se chamava New Kids e ouvi alguém cantar Be Bop a Lula, na versão do Raul Seixas. O lugar parecia ser uma garagem pintada de preto e, na realidade, as grandes festas eram na parte de cima, na New Head, onde era cobrado ingresso, as mulheres usavam vestido tubinho preto, os homens camisa xadrez e cabelos bem arrumados e a música eletrônica da moda. Porém no New Kids havia rock e uma experiência musical que nunca ouvi em outro lugar. Sentei à mesa próximo aos músicos enquanto meu amigo Sol me apresentava os que ali estavam. Cumprimentavam todos com um aperto da mão que mais parecia uma queda de braço e gritava um “e aí, meu”, sem saber se o outro me escutava devido ao som alto da banda de rock. Paralisei ao ouvir os versos de Só as mães são felizes, de Cazuza: Você nunca sonhou Ser currada por animais


Nem transou com cadáveres? Nunca traiu seu melhor amigo Nem quis comer a tua mãe? Só as mães são felizes Fui ao banheiro e me olhei no espelho com a cara suada. Observei o vaso sanitário com restos de cocaína enquanto alguém batia a porta pra entrar. Passei água no cabelo e respirei. Sabia que voltaria mais vezes sem me importar se minha mãe me esperava cedo pra dormir.



Malvados Azuis A Banda Malvados Azuis formou-se em 1995, em Passo Fundo. Atuou no interior do estado do Rio Grande do Sul entre 1996 e 1999, quando mudou-se para Porto Alegre em busca de vôos maiores. Infelizmente, a banda não conseguiu manter-se unida nesta empreitada, o que resultou na desintegração da mesma. Inicialmente composta por Beto Bruno nos vocais, Jerônimo Bocudo no baixo, Maurício Fuinha e Carlinhos Bolacha nas guitarras e Adriano Mosquito na bateria, a banda gravou um single, que não divulgou, por não gostar do resultado.Quando da mudança para Porto Alegre, produziram um novo single, agora com Thomas Dreher operando as mesas de som. Gravaram três músicas: Água que cai do céu, Planeta Careta e


Super Barato (com Astronauta Pingüim no tecladinho italiano). Durante a gravação deste material, ocorreu a cisão na banda, com a saída do baterista Adriano Mosquito. Marcelo Gross (ex-Júpiter Maçã) assumiu as baquetas e gravou Planeta Careta, onde ainda teve tempo de pôr um violão/cìtara.Depois de alguns shows na região metropolitana, Carlos Bolacha e Maurício Fuinha deixaram a banda, e só restavam dois dos membros originais. Beto Bruno e Jerônimo Bocudo não davam o braço a torcer, e tentaram continuar com a banda, recrutando dois guitarristas, Gabriel Guedes (Pata de Elefante) e Beto Nickhorn (Lovecraft), e com o Marcelo Gross nas baquetas, estava formada uma superbanda que não durou mais que três ensaios. E este foi o fim dos Malvados Azuis. Dos espólios desta banda, surgiu a Cachorro Grande e a Locomotores.



Acordar As pegadas de Rafael iam do banheiro ao quarto, onde o rádio-gravador executava a fita K7 de Made in Brazil interpretando um blues: "Eu acordei, eu acordei, eu acordei legal essa manhã, manhã cinzenta e muito quente". Pôs uma camiseta branca, que umedeceu ao contato com os cabelos castanhos longos, ainda ensopados. Colocou uma camisa xadrez, em azul e cinza. Não a abotoou. Calça jeans larga e botina de lona de caminhão completaram seu vestuário. - Tchau, mãe – disse, ao fechar a porta de casa. Deixou o rádio-gravador ligado. Caminhou velozmente, fazendo flanar a camisa xadrez. Atravessou ruas escuras, até ver as luzes do bar Barril 2000, onde seus amigos tocavam violão e


contavam piadas. Cumprimentou-os tocando Roadhouse Blues, dos The Doors, na gaita de boca. Há poucos dias, um radialista falou dos "vândalos do Boqueirão", que queimaram uma cruz de gasolina na Avenida Brasil. Um Del Rey desgovernou e bateu nas árvores do canteiro central. Sol, que provocou o acidente, estava ali. O mesmo radialista informou que um desses rapazes caminhou nu pelas ruas da cidade. Era Paulinho,

que,

bêbado,

comemorava

seu

aniversário. Também sumiram placas de trânsito naquela região. Foi Rodrigo, que as colocava em seu quarto junto com quadros que pintava pássaros voando sobre despenhadeiros floridos. O relógio do bar marcava meia-noite. Paulinho anunciou ter a erva. Sol disse possuir uma garrafa de cachaça misturada com Coca-cola. Todos


saíram do bar, deixando um cantor que ia começar

a

sua

apresentação

de

MPB.

Dirigiram-se a uma ruela. Pularam um muro e deram no pátio de uma casa, onde Rodrigo começou a fechar um cigarro. Um dos vizinhos abriu a porta dos fundos e gritou, fazendo todos fugirem até o próximo muro. De volta à Avenida Brasil, Paulinho decidiu que o grupo deveria fumar no caminho para o New Kids, o bar onde tocavam Eros e Banda – blues e rock anos 80 -, Patrulha Ativa – rock progressivo - e Zero a Esquerda – rock gaúcho anos 80. O New Kids era apenas uma garagem sob uma boate famosa. Mais de duzentas pessoas se amontoavam naquele espaço enfumaçado. Eros berrava: "Well be-bop-a-lula she's my baby, Be-bop-a-lula I don't mean maybe.


Be-bop-a-lula she's my baby Be-bop-a-lula I don't mean maybe Be-bop-a-lula she's my baby love, My baby love, my baby love." Dois magrelas, com calças e bolsas hippies, acotovelaram-se entre os roqueiros e chegaram ao palco. A música parou. Um deles tomou o microfone e disse: - Companheiros, a situação do país é grave. O dinheiro das poupanças foi roubado e a maioria de nós e de nossos pais ficaram na miséria. Collor é corrupto. Amanhã à tarde vamos às ruas de cara-pintada. Vamos derrubar esse ladrão e sua corja de covardes. Vamos à tarde a praça em frente a Catedral. Aplausos e gritos. Os mortos-vivos podiam acordar.



Iago A motovoadora de Iago sobrevoa o asfalto das ruas do centro velho de Passo Fundo. O veículo está no piloto automático, permitindo que vislumbre arquitetura antiga dos hotéis e prédios residenciais

e

comerciais,

convertidos

em

camelódromos e cortiços. O excesso de edifícios gerou umidade e limo, que recobrem as paredes. Pousa em uma marquise da rua Morom. Paga, com cartão de crédito, um guardador de veículos e desce por uma escada circular plástica. O bolor penetra em suas narinas e o limo emporcalha suas botas assépticas. Ajusta a temperatura de seu sobretudo de fibra de soja. A maioria dos passantes transita sentados sobre Unomotores – veículo que se assemelha a um banco que se locomove graças a uma turbina


movida a hidrogênio. Os mais pobres, utilizam Unomotores com rodas e os paupérrimos, a pé, com tênis ortopédicos, lutam para não serem abalroados pelos veículos ou mordidos por cães transmutados geneticamente, transmissores da síndrome de regressão gênica, que causa deterioração corpórea dos seres mordidos. Iago não possui um Unomotor. Prefere caminhar com botas de cano alto ou circular de moto. Adentra a Catedral Nossa Senhora Aparecida, convertida em templo evangélico após a derrocada da Igreja Católica provocada pelos ataques da mídia norte-americana durante o século XXI. Faz, via celular, uma cópia eletromagnética da foto de uma mulher nua de cabelos e olhos castanhos, sorrindo na praça nudista Marau, no centro novo da cidade. A imagem é projetada em


360 graus e emana o calor de uma tarde morna de janeiro daquele 2087. Apresenta-a a um engravatado pastor que lhe responde com um sinal da cruz e pergunta se deseja que a moça seja convertida em holograma eterno. Iago diz “sim” e oferece seu cartão para pagamento da contribuição para manutenção do holograma. Enquanto a operação é efetuada, Iago observa o conjunto de hologramas de pessoas mortas, que encobrem os vitrais que reproduzem a via sacra católica. O Ministério do Patrimônio negou o pedido de descaracterização da Catedral. Porém os evangélicos cobriram as referências católicas com esses monitores holográficos, desligados para visitação de historiadores. O pastor agradece a contribuição de Iago e leva a imagem em um projetor manual rumo ao centro


do templo. A imagem é reproduzida em proporções humanas no teto do templo. Flutua rumo ao chão e caminha em direção a Iago. É uma mulher de proporções iguais à amada de Iago. Enlaça-o e o beija. Sente a maciez de sua pele e o calor de seus lábios. Transita suas mãos sobre as nádegas dela e a enlaça pela cintura. O pastor informa que o casal pode ir a um dos quartos na ala anexa ao templo. Iago agradece e a leva para reviver o sexo perdido desde o dia em que estavam a beira mar, em Porto Alegre – cidade que se tornou litorânea após o degelo dos pólos. Iago e sua namorada planejavam visitar uma extinta plataforma petrolífera da Petrobrás, convertida em hotel submerso após o fim comercial dos combustíveis fósseis e do aumento do nível do mar.


O casal foi a praia da capital gaúcha vestindo macacões higiênicos para eliminar os efeitos da poluição. Iam surfar ondas de três metros, geradas pelo vento quente das indústrias de gaiastico – espécie de plástico a base terra vermelha, da África do Sul. A cidade estava protegidos pela campânula eletromagnética que rechaça os raios ultravioleta e mantém temperatura e umidade constantes. Onde não há esse recurso, inicia um irreversível processo

de

desertificação,

reduzido

pela

irrigação aérea realizada periodicamente pelo trem intercontinental que sobrevoa os cinco continentes

graças

a

uma

estrada

supercondutores subterrânea. Ela beijou Iago e sussurou: - Sou Lillith, a primeira esposa de Adão.

de


Despiu-se do macacão protetor e tragou um anarguilé portátil de Tetra – droga produzida a partir

da

essência

da

maconha,

o

tetrahidrocanabinol. Correu, com sua prancha, e mergulhou. Iago percebeu uma perigosa mancha esverdeada nas águas. Correu para resgatá-la, mas ela já estava com o corpo recoberto pelos fungos gerados pelo contato dos coliformes fecais com uma alga transgênica presente no mar. Levou-a, de moto, ao hospital, porém a degradação cancerígena, gerada pelo fungo, já atingia o cérebro de sua namorada. Reviu fotos e depoimentos dela e descobriu que desejava morrer, para encontrar a vida eterna. Queria voltar holograficamente e reencontrá-lo no templo. Assim fez Iago, mantendo-se fiel aos reencontros holográficos com a amada a partir do


dia em que entrou na antiga catedral de Passo Fundo.


Â


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.