Diários públicos

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sobre mem贸ria e m铆dia


Para-ninguém-e-nada-estar [2006–2010] Carimbo sobre jornal apagado, impressão solar e encadernação 65 x 57 cm (aberto) 42 páginas



Para-ninguém-e-nada-estar [2006–2010] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 65 x 57 cm (aberto) 42 páginas



Para-ninguém-e-nada-estar [2006–2010] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 65 x 57 cm (aberto) 42 páginas



Para-ninguém-e-nada-estar [2006–2010] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 65 x 57 cm (aberto) 42 páginas



Para-ninguém-e-nada-estar [2006–2010] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 65 x 57 cm (aberto) 42 páginas



Para-ninguém-e-nada-estar [2006–2010] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 65 x 57 cm (aberto) 42 páginas



Para-ninguém-e-nada-estar [2006–2010] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 65 x 57 cm (aberto) 42 páginas



Para-ninguém-e-nada-estar [2006–2010] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 65 x 57 cm (aberto) 42 páginas


Para meu pai, Rolf Manfred Danziger z”l [1921–2011]

19


20


21 Apresentação RUÍNAS

25 29 41

E RUÍDOS DA INFORMAÇÃO

Mercúrio e jornais O jornal e o esquecimento Pallaksch Pallaksch Leila Danziger

PARA PENSAR O APAGAMENTO

82

Diários públicos – o teatro da leitura Luiz Cláudio da Costa

92

Entre o excesso e a exceção: a profanação do jornal Vera Lins

98

Lembrar, esquecer, sonhar Sheila Cabo Geraldo

103

O que desaparece, o que resiste: para pensar o apagamento Marina Bortoluz Polidoro

107

Entre o mar e a areia Raphael Fonseca

TAREFA INFINITA

146

Nomes próprios Fernando Cocchiarale

150

A arte de dar forma ao real: a poética da memória de Leila Danziger Márcio Seligmann-Silva

156

O efeito-arquivo no trabalho de Leila Danziger Luiz Cláudio da Costa

164 Sem gaze nos olhos Wilton Montenegro

PARA PAUL CELAN

190 A língua paterna 199 Destroços Leila Danziger

209

SOBRE A ARTISTA

212

SOBRE OS AUTORES


Die Kunst erweitern? Nein. Sondern geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.

Expandir a arte? NĂŁo. Entre antes com a arte no que em ti hĂĄ de mais Ă­ntimo. E liberte-se. O Meridiano, Paul Celan


Apresentação Leila Danziger

1 No conto O rejeitador [Der Wegwerfer], Heinrich

ra crítica e de singularização dos dispositivos

Böll cria um personagem cuja atualidade é

midiáticos. Penso que as questões próprias a

inquestionável. Sua função é selecionar a cor-

essa investigação aproximam-se da necessida-

respondência enviada à firma em que trabalha

de, apontada por Félix Guattari, de caminhar-

e jogar fora, segundo seus próprios critérios

mos em direção a uma era pós-mídia, “assim

seletivos, o que considera desnecessário. Sua

entendida como uma reapropriação da mídia

tarefa, realizada de forma obscura, anônima

por uma multidão de grupos-sujeitos, capa-

e longe dos olhos dos demais funcionários,

zes de geri-la numa via de ressingularização”.1

poderia ser comparada ao dispositivo antilixo

Interessa-me investigar e produzir no campo

eletrônico instalado em nossos computadores,

das relações entre arte e mídia, a partir de uma

impedindo que nossas caixas postais sejam

perspectiva centrada não apenas na utilização

cotidianamente inundadas por uma avalanche

dos aparatos técnicos, mas sobretudo como

de informação inútil e indesejada.

uma atitude interventiva e poética. Privilegiando inicialmente uma leitura (ativa, crítica, cor-

As ações desse personagem de Böll são um

poral) dos jornais, apresento ações artísticas

excelente ponto de partida para apresentar

estruturadas nos procedimentos de apropria-

as questões de Diários públicos, trabalho em

ção, deslocamento e ressignificação de diver-

processo desde 2001, cujo gesto construtivo

sas materialidades.

essencial é o apagamento seletivo de jornais impressos. Apagar, neste caso, significa des-

Diários públicos (2001–2011) enfatiza o apaga-

cartar, esquecer, mas um esquecimento volun-

mento (o esquecimento, portanto), enquanto a

tário e reflexivo, pois não me parece exagero

série Nomes próprios (1996–2003), presente na

afirmar que um pacto de esquecimento orien-

segunda parte do livro, tem em seu centro a re-

ta os jornais e que mesmo a construção de

sistência ao esquecimento, a tarefa infinita de

arquivos não impede a entropia, ao contrário.

construção da memória. Enquanto a matéria

Em minhas ações, apagar significa, sobretudo,

essencial de Diários públicos são os jornais im-

editar, ou seja, desenvolver processos de leitu-

pressos, em Nomes próprios a matéria primeira

23


são vestígios de pessoas desaparecidas na Shoá,

mas desacredito também o fascínio parali-

o extermínio dos judeus europeus durante a

sante pelo nada e pelo silêncio. Creio que a

Segunda Grande Guerra. Para Jean-Luc Nancy,

especificidade da arte consiste em instituir-se

a palavra hebraica Shoá substitui o termo Ho-

como resistência à cultura: dócil, domesticada,

locausto e todas as outras designações. Ela per-

institucionalizada. Desativadas certas leituras

manece indecifrável, mesmo que traduzida e

hegemônicas do moderno, há muito sabemos

interpretada. Sua opacidade é precisamente o

que nenhum gênero ou forma de expressão de-

que lhe confere maior potência de significação.

tém um coeficiente artístico a priori. É na força

Shoá é um murmúrio, “uma longa síncope de

dos embates com o mundo que determinados

sentido”, um sopro não propriamente culpado,

gestos, operações ou estratégias tornam-se ar-

mas infame, afirma o filósofo.

tísticos. Ou não. Uma longa cadeia de atritos e negociações faz surgir a obra (conceito tão

Dessa forma, introduzo uma questão essen-

problemático, que na verdade jamais coincidiu

cial nas reflexões apresentadas neste livro: a

com sua materialidade enquanto objeto), e é

relação entre artes visuais e poesia, sobretudo

sua capacidade em seguir propondo resistên-

a de Paul Celan, repleta de sopros, balbuceios,

cias e conflitos o que condiciona sua sobrevi-

palavras desarticuladas e hesitantes. Os títulos

vência.

de dois de seus livros falam justamente de um sopro, de uma “mudança de ar” (Atemwende), e

É inegável que a complexa gênese da obra de

esta é mesmo uma de suas definições de poesia.

arte inclui, com ênfase acentuada desde os

A presença de Celan é crucial não apenas nos

anos 1960, a reflexão teórica realizada pelo

trabalhos relativos à memória da Shoá, mas

próprio artista, a partir de articulações bastan-

também na série realizada com jornais apaga-

te singulares com a história, a teoria e a crítica

dos, pois creio que a vocação da poesia de Ce-

de arte.2 Assim, compreendo a prática discur-

lan é atualizar-se continuamente, deslocar-se

siva como parte indissociável de minha produ-

do contexto original da memória dos crimes

ção plástica, exercendo-se em diferentes regis-

nazistas e informar nossas pequenas e grandes

tros, tais como o ensaio, a crônica, o poema e

catástrofes de cada dia (o estado de exceção,

o fragmento. Por outro lado, com a afirmação

o abandono, a vida nua).

crescente da arte como importante área de conhecimento na universidade, creio ser impres-

2

cindível abrir espaço à potência indiscutível

Embora a afirmação do “campo ampliado da

das próprias imagens, que nesta publicação

arte contemporânea” se tenha tornado um

tanto podem ser registros de obras quanto con-

truísmo, creio que as poéticas visuais mano-

cebidas especialmente para ser apresentadas

bram numa zona de efetividade estreita, em

na forma de livro.

algum lugar entre a esperança e a melancolia. Como artista, falho e recomeço. Renovada-

A produção plástica e discursiva aqui reunida

mente. Suspeito dos gestos triunfais, que se

realizou-se a partir de encontros ocorridos

mostram excessivamente desenvoltos e “livres”,

no âmbito da universidade. É inegável que a

24


capacidade de construir interlocução ao lon-

cisivo em minha compreensão das comple-

go do processo de trabalho é algo decisivo e

xas relações entre memória e esquecimento.

vital para o artista. Assim, os autores presen-

Os olhares atentos de Sheila Cabo Geraldo e

tes nesta publicação realimentam minha

Vera Lins, a escuta à palavra poética presen-

produção e a constituem igualmente. A escu-

te em seus textos, reafirmam tensões produ-

ta e o olhar atento de Luiz Cláudio da Costa,

tivas estabelecidas entre palavra e imagem,

colega do Instituto de Artes da Universidade

centrais nas produções contemporâneas.

do Estado do Rio de Janeiro (uerj), deu-me

O ensaio de Wilton Montenegro é um des-

a consciência da importância dos desdobra-

dobramento privilegiado de diálogos inicia-

mentos do arquivo e dos dispositivos de regis-

dos durante sessões fotográficas e reafirma

tro como questões centrais em meu trabalho.

o quanto sua ação de fotografar constitui-se

Fernando Cocchiarale, de quem fui aluna no

como prática reflexiva, que me ajuda a com-

curso de especialização em História da Arte e

preender meu próprio trabalho. Ressalto ain-

da Arquitetura no Brasil, na Pontifícia Univer-

da a importância em poder contar com a re-

sidade Católica do Rio de Janeiro (puc-Rio),

flexão de Marina Polidoro, artista que conheci

ajudou-me a compreender, ainda em meados

ao participar de sua banca de dissertação de

dos anos 1990, o quanto meu trabalho se afas-

mestrado no Programa de Pós-Graduação

tava de certas vertentes artísticas que ainda

em Artes Visuais da Universidade Federal do

pareciam hegemônicas na produção brasi-

Rio Grande do Sul (ppgav/ufrgs), e Raphael

leira naquele momento. O pensamento de

Fonseca, jovem curador e historiador da arte,

Márcio Seligmann-Silva, realizado com base

mestre pela Universidade de Campinas (Uni-

em uma atualização contínua da imensa ri-

camp) e egresso do bacharelado em história

queza da cultura judaico-alemã, foi e é de-

da arte do Instituto de Artes da uerj.

guattari, Felix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990, p. 46. ferreira, Glória. “Apresentação”. In: ferreira, Glória & cotrin, Cecília (org.). Escritos de artista: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 10. 1 2

25


RUÍNAS E RUÍDOS DA INFORMAÇÃO


Mercúrio e jornais Leila Danziger

O que passa? Tua fala se turvou de vermelho. Hölderlin / H. de Campos

No ponto de ônibus, atrás de um casal sem

desenhos anatômicos de esfolados, mas era

atributos, havia uma mulher de vermelho.

demasiado humana, vigorosa, ainda jovem,

Não era a roupa, mas a própria pele. Ela ves-

quase bela. Ela era um retrato de Artaud,

tia bermuda e camiseta sem mangas; braços e

um daqueles desenhos em que o lápis duro

pernas tinham o tom vermelho escuro. Pertur-

sulca repetidamente o papel, lacerando-o,

bada, tentei ignorar sua presença (magnífica,

perfurando-o. Os traços fisionômicos brutais

fascinante, trágica). Virei-lhe as costas e bus-

eram belíssimas cicatrizes de vida.

quei a certeza do céu naquela tarde ensolarada de Ipanema.

Não sei se a moça estava realmente ferida. Talvez fosse apenas o efeito do mercurocromo, si-

Com alívio, logo identifiquei o ônibus que

nalizando na pele o que lhe atravessava a alma.

se aproximava. Fiz-lhe sinal, mas o moto-

Mas creio que ela se esfola, brandamente, de

rista não atendeu meu chamado e seguiu

modo calculado, hoje, agora. Cultiva as feridas

em frente. Reclamei, suspirei, disse irrita-

como uma espécie de plantação delicada. Em

da qualquer coisa em voz alta. Acho que foi

vez de tatuagens, ostenta a carne viva.

essa a senha, pois, como se estivesse pontuando a minha indignação, ouvi uma voz fe-

Fiquei intrigada com seu oferecimento aten-

minina e educada, que acreditei dirigir-se a

cioso. Dirigia-se casualmente a qualquer

mim: “Moça, você quer mercúrio?” Virei-me

um ou percebeu em mim alguém que, como

em direção àquela que perguntava e, polida-

ela, inspirava cuidados? Desconfiei de certa

mente, tentando controlar meu embaraço,

cumplicidade entre nós. Um outro ônibus

recusei: “Não, obrigada”. De relance, perce-

atendeu meu sinal e segui meu caminho,

bi que, no alto da cabeça, faltava-lhe cabe-

nem sei mais para onde. Afastei-me da Esfo-

lo e que o couro cabeludo estava à mostra.

lada, mas sua voz solidária, oferecendo-me

Por alguns instantes, a vi por inteiro: parecia

generosamente seu unguento, continuou

uma imensa ferida, tão brutal quanto um as-

em meus ouvidos, turvando a cidade com

tro visto de perto. Ela parecia um daqueles

as cores de sua aparição.

27


Alguns dias depois, fui à farmácia e pedi mer-

furar o papel era uma forma de escrita: conste-

curocromo, esperando o tradicional fras­ co

lações de signos construídos pelos vazios que

com o líquido vermelho. O vendedor inter-

iam aparecendo no papel. A escrita era pensada

pretou meu pedido à luz da atualidade e co-

não como deposição de tinta sobre uma super-

locou em minhas mãos uma caixinha branca,

fície, mas como falta, subtração de matéria, ou

de design corretíssimo, um spray antissépti-

como reação do tecido (lesão, cicatriz). “A escri-

co, “com agente anestésico”, sem cor e sem

ta manual é sempre a marca de um corpo”, já

cheiro. Insisti que queria o mercurocromo

disse Barthes sobre a pintura de Cy Twombly.1

tradicional, aquele que é vermelho, mancha

A escrita solicita o corpo em sua integridade,

a pele e costuma arder quando em contato

não um corpo sublimado, mas o corpo que ar-

com o machucado. Espantado, respondeu-me

ranha, roça, desgasta-se.

que não estava mais à venda. “Mercurocromo não tem, há muito tempo saiu do mercado; foi

Esse princípio vale também para os trabalhos

proibido pela Vigilância Sanitária”. Entendi

que desenvolvo com jornais. Vejo-os como uma

então que a moça vista no ponto de ônibus uti-

forma de escrita por supressão. Se antes perfu-

lizava algum pigmento vermelho, uma tintura

rava os papéis, agora descasco os jornais, mili-

qualquer que chamava de “mercúrio”, como

metricamente, em operações quase cirúrgicas,

o planeta mais perto do sol. Mesmo que não

que devem ser precisas, exatas, ou tudo se perde.

se pinte com mercurocromo – substância de efeito cumulativo que se deposita no organis-

Desfaço os jornais. As informações são trans-

mo e nunca mais é expelida –, seu desejo é sa-

formadas num emaranhado sem fim e suspei-

turar-se de cor, cobrir-se de croma, grau mais

to que seja essa a sua forma mais verdadeira.

intenso de um determinado matiz. Na intensi-

A leitura é um processo de extração, que re-

dade da cor, ela vê a possibilidade de tratar-se,

move o texto lido, e é vivida numa série de

curar-se, exibindo-se como uma gravura – ou

operações efetivamente materiais: folhear,

de fato um cromo – cuja matéria e cujo suporte

selecionar, extrair, dobrar ou estender, passar

são sua pele e seu corpo.

a ferro, relacionar, acumular, empilhar, fixar. Se a escrita manual é um trabalho que exige o

Na verdade, esse encontro me levou, mais uma

corpo, o mesmo é válido para a leitura (ler com

vez, a pensar no desenho e na escrita, e me fez

todo o corpo, ler e emaranhar, ler e esquecer).

compreender que eu sempre desenhava como

Leitura ruminante e distraída; leitura defensi-

se escalavrasse o papel, que sempre via o papel

va que quer se proteger da brutalidade do real.

como a superfície da pele.

O vetor do trabalho é a página impressa rarefeita, apagada, sabotada em sua função de do-

Passei alguns anos perfurando papéis, verso

cumento, mas onde o texto jornalístico ainda

e reverso. Queria penetrar em sua substância

pulsa na informação residual da imagem sele-

opaca, ir além da pele, virá-la pelo avesso, bus-

cionada ou pelo avesso do papel. A integridade

car a área ínfima entre as camadas da pele. Acho

da página é mantida, e o que permanece é uma

que buscava a interioridade da superfície. Per-

pele fina e transparente, uma matéria frágil,

28


fugaz, sensível à ação da luz, desafiadoramente

sensível do mundo – está à espera da operação

mundana. Como a pele da Esfolada à espera

poética, que, se não o regenerar, ao menos lhe

da cor-curativo, também o jornal – superfície

confira algum sentido.

Uma primeira versão deste texto foi apresentada no Colóquio Entre-lugares: arte e pensamento, realizado na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro em outubro de 2005. Disponível em: http:// www.ciencialit.letras.ufrj.br/entrelugares/ 1 Barthes, Roland. “Cy Twombly ou Non multa sed multum”. In: O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.

29


30


O jornal e o esquecimento Leila Danziger

Ávido leitor de jornais, custou-lhe renunciar a esses museus de minúcias efêmeras. Jorge Luis Borges

Em 17 de abril de 2007, a Folha de S. Paulo traz

mistério em torno do homem que aparenta ter

a seguinte notícia, assinada pela jornalista

entre 28 e 32 anos. De altura mediana, é magro

Laura Capriglione: “Preso sem nome, sem fala

e tem pele clara e olhos castanhos. Espera-se

e sem história intriga Justiça”. Um homem é

atrair pessoas que o conheçam, que saibam

preso na capital paulista ao invadir o imóvel

seu nome e sejam capazes de inseri-lo em al-

vazio de um policial civil. Supõe-se que sua in-

guma forma de comunidade, retirando-o do es-

tenção era roubar as esquadrias de alumínio

tado de exclusão extrema em que se encontra.

do apartamento para revendê-las em seguida. Ao ser levado para a delegacia e interrogado so-

Cerca de vinte anos antes da notícia no jornal

bre sua identidade, ele consegue emitir apenas

brasileiro, o cotidiano francês Libération pu-

um som agudo, semelhante a um “ííí”. Sem re-

blica uma matéria sobre um caso semelhante,

gistro civil ou criminal, x., como foi chamado,

embora menos grave. Em 22 de maio de 1985,

é um enigma para a Justiça. A juíza encarre-

um homem é encontrado em Nice, sul da

gada do caso solicitou um intérprete que lan-

França, sem nenhuma lembrança e nenhuma

çou mão de “todas as formas de comunicação,

informação sobre seu passado, sem documen-

inclusive a gestual, a mímica e a labial” para

tos ou qualquer pista que permitisse identifi-

comunicar-se com o preso. Em vão. O chefe

cá-lo. Ele não está ferido, não parece ter sofri-

dos investigadores da delegacia, onde x. está

do nenhum acidente, simplesmente não sabe

detido há três meses, espanta-se: “Um homem

quem é, o que faz, de onde vem. “C’était un

sem nome, sem história, sem conhecidos. Des-

être sans passé ni mémoire”, define-o Jacques

de que foi preso, não recebeu nenhuma visita.

Maigne, que escreve a matéria publicada cerca

E ninguém registrou desaparecimento de ami-

de dois anos depois do despertar do amnési-

go ou parente com as características dele. Como

co. Despojado de suas experiências anteriores,

condenar alguém que não se sabe quem é?”1

ele tem medo do mundo e permanece recolhido e afastado em um hospital, até que, lenta-

Ao publicar com destaque sua foto, a repor-

mente, começa a readquirir confiança na apa-

tagem tem como objetivo desfazer o cerco de

rência habitual das coisas. Sete meses depois

31


de sua chegada, ele se arrisca a sair sozinho.

mas o esquecimento assemelha-se às vezes a

“As coisas me pareciam normais, eu já as ha-

uma espécie de castigo divino, como sugerem

via visto. Eu tinha uma vida anterior”. Vários

algumas histórias hassídicas, corrente mística

meses depois, seu passado começa a emergir.

do Judaísmo, que surgiu na Polônia no século

Ao aceitar que sua história seja publicada

xvii. Conta-se que o baal Schem Tov, funda-

em um jornal de Nice, o que até então havia

dor do Hassidismo, viajou para Israel, a fim de

recusado por sentir-se frágil, inseguro e, de

preparar a Redenção. Mas os céus resolveram

alguma forma, protegido pelo esquecimento,

interromper a viagem. Em algum ponto entre

sua família o procura. Ele aprende seu nome

Istambul e a Terra prometida, desabou uma

e que tipo de vida levava até desaparecer aos

forte tempestade e o navio foi obrigado a parar

27 anos; retorna à casa em que vivia, mas ne-

numa ilha desconhecida. O baal Schem e seu

nhuma lembrança verdadeira volta à superfí-

auxiliar, Rabi Tzvi, desembarcaram e, ao tentar

cie, nenhuma imagem do passado emerge. Ele

voltar ao navio, perderam-se e foram captura-

prefere então permanecer na cidade em que

dos por bandidos. Perguntou então seu auxi-

2

acordara “esquecido”, vivendo próximo àque-

liar: “Por que estais calado? Fazei como sempre,

les que participaram do início de sua nova

para que sejamos soltos”. Mas o baal Schem

vida, iniciada em junho de 1985.

respondeu: “Agora não sei mais nada, tudo me foi tomado. Lembra-me alguma coisa de tudo

Casos de amnésia são relatados desde a Anti-

aquilo que te ensinei e faze-me recordar.”5

guidade. No volume dedicado à fisiologia em

Mas Rabi Tzvi também havia tudo esquecido, a

História natural, Plínio, o Velho, relata casos

única coisa que lhe restara era o alfabeto, que

de memórias prodigiosas – como o de Ciro,

ele então recitou com o entusiasmo com que

rei dos persas, que sabia o nome de todos os

costumavam rezar. Assim, a memória e todo o

soldados de seus exércitos; Mitriades Eupator,

conhecimento dos dois foram restituídos. Eles

que administrava o império no conhecimento

foram salvos, mas o baal Schem compreendeu

de seus 22 idiomas; Metrodoro, que não esque-

que ainda não era a hora da Redenção.

cia o que ouvira uma única vez. Mas em Plínio 3

encontramos também a afirmação de que nada

Ao passo que o esquecimento na história has-

no ser humano é tão frágil quanto a memória.

sídica é superado e revertido, reafirmando o

“Alguém atingido por pedras esqueceu os sons

baal Schem Tov no caminho da Tradição, o

da fala. Outro, caindo de um telhado alto, es-

esquecimento que acomete o homem na mo-

queceu sua mãe, seus parentes e seus amigos,

dernidade parece de fato irreversível, tanto

outro ainda esqueceu, na doença, os nomes de

para o mal como para o bem, em certa medi-

seus escravos, e o orador Messala Corvínio es-

da. A verdade é que nenhuma narrativa, ritual,

queceu o próprio nome.”

4

oração ou estudo parece capaz de restaurar a ruptura com o passado. A lista dos que perce-

Os exemplos de amnésia mencionados deri-

beram as transformações radicais na capaci-

vam de problemas essencialmente neurológi-

dade de narrar e de transmitir as experiências

cos, ocasionados por traumatismos diversos,

na modernidade é extensa, e a própria “expe-

32


riência” transformou-se radicalmente em nos-

[...]

so mundo atingido pelo choque, a velocidade

Se encontrar seus pais na cidade de

e as informações de tantos meios de reprodu-

[Hamburgo ou em qualquer outro lugar

ção da imagem e do som. Como observaram

Passe por eles como um estranho,

vários autores (Huyssen, Yerushalmi, Warald

[vire na esquina, não os reconheça

Heinrich), estamos longe do esquecimento

Abaixe sobre o rosto o chapéu que eles

produtivo recomendado por Nietzsche como

[lhe deram

antídoto contra o historicismo, visto como

Não, oh, não mostre seu rosto

uma virtude hipertrofiada de sua época. A

Mas sim

questão essencial – a qual Nietzsche não res-

Apague as pegadas!

ponde em suas tão glosadas considerações sobre a História – é o quanto se deve lembrar e

Coma a carne que aí está. Não poupe.

o quanto se deve esquecer. “O que foi durante

Entre em qualquer casa quando chover,

muito tempo chamado de a crise do historicis-

[sente em qualquer cadeira

mo é somente o reflexo da crise de nossa cul-

Mas não permaneça sentado.

tura, de nossa vida espiritual. Se há um câncer,

[E não esqueça seu chapéu.

sua origem não está na busca histórica, mas

Estou lhe dizendo:

na perda de uma halachá (lei) que sabe o que

Apague as pegadas!

apropriar e o que deixar para trás, uma comunidade de valores que nos permita transformar

[...]

a história em memória”. Sabemos, com Ben-

Cuide, quando pensar em morrer

jamin e também com Blanchot, a importância

Para que não haja sepultura

6

do esquecimento em Kafka. “Ambos compa-

[revelando onde jaz

ram sua obra a uma hagadá (o corpus infini-

Com uma clara inscrição a lhe denunciar

to dos comentários) interminável de uma ha-

E o ano de sua morte a lhe entregar

lachá (a lei, a norma, a doutrina) apagada”. O

Mais uma vez:

escritor de Praga desistiu de curar a tradição

Apague as pegadas!

doente, preferindo trabalhá-la “numa espécie de obstinação serena” até o fim.7

(Assim me foi ensinado.)8

Apague as pegadas

Como observa Jeanne-Marie Gagnebin, a or-

Mas volto aos jornais e aos artigos menciona-

dem de Brecht para apagar as pegadas res-

dos. Nossos dois amnésicos parecem ter segui-

ponde à constatação de Benjamin: “Habitar

do os conselhos de Brecht, que em seu poema

significa deixar rastros”. O afastamento da

“Apague as pegadas” recomenda uma escapa-

tradição ocorrido no século xix provoca, como

da sem fim diante da própria identidade, ou

compensação, uma valorização da intimidade

melhor, afirma a impossibilidade de manter

própria à vida burguesa, supostamente capaz

a identidade, pois esta seria constantemente

de estancar a ausência da tradição e da histó-

ameaçada por um perigo não nomeado.

ria. O poema de Brecht recusa o aconchego, a

33


compensação propiciada por uma existência

de abandono. Como nos diz ainda Agamben, o

burguesa, e recomenda ao indivíduo moderno

que foi posto em bando em relação ao poder é

assumir seu anonimato na estranheza que o

remetido à própria separação, “ao mesmo tem-

mundo lhe oferece.

po excluso e incluso, dispensado e, simultaneamente, capturado”.11 No bando, ele identifica a

No poema, o único elo com o passado é o cha-

zona de indiferença na qual a vida do excluído

péu, oferecido pelos pais do personagem erran-

confina com aquela do homo sacer (matável, ex-

te. A posse do objeto é recomendada não por ser

terminável, sem que sua morte constitua uma

um elo com a tradição, mas sobretudo porque

violação), e salienta que é “esta estrutura de

seu extravio deixaria pistas sobre a identidade

bando que devemos aprender a reconhecer nas

do proprietário, o que no poema é visto como

relações políticas e nos espaços públicos em

algo perigoso. Gagnebin diz que essa é “uma

que vivemos”.12

descrição profética da perseguição nazista e dos mecanismos de abandono e de demissão

Benjamin nos fala também de um tipo de ex-

cegos que ela ia encorajar”. Ora, bem sabemos

clusão: “O homem, para quem a experiência

que o estado de exceção dos campos de concen-

se perdeu. se sente banido do calendário”,13 ou

tração não pertence ao passado, mas institui-se

seja, de um tempo memorável, cuja lembrança

facilmente bem próximo a nós. Para Agamben,

deveria ser vivida em comum. Os feriados pos-

9

“o campo é o espaço que se abre quando o es-

suem a função de inscrever a memória no tem-

tado de exceção começa a tornar-se a regra”.

po, do mesmo modo que os monumentos de

O filósofo italiano recusa-se a confinar a estru-

pedra e bronze detinham a tarefa de inscrever

tura jurídico-política dos Lager nazistas no pas-

a memória no espaço. Todos nós experimen-

sado, vendo-os como a matriz oculta, o nómos

tamos a inocuidade de ambas as modalidades

do espaço político em que ainda vivemos.10

públicas de rememoração. Nossos monumentos que se instauram no tempo parecem tão

Compreendemos assim, mais nitidamente, o

emudecidos quanto aqueles que se erguem no

que há de asfixiante e assustador na notícia do

espaço. “Os sinos, que outrora anunciavam os

jornal paulista. Enquanto o amnésico francês

dias festivos, foram excluídos do calendário,

parece cercado por certa comunidade que o

como os homens. Eles se assemelham às po-

envolve e permite a construção de uma nova

bres almas que se agitam muito, mas não pos-

identidade (pobre, precária e frágil, como toda

suem nenhuma história”.14

identidade na modernidade), a situação do amnésico recolhido em São Paulo parece mais

A exclusão do calendário, o emudecer dos mo-

grave, condenando-o a viver na exclusão, no

numentos, o novo regime da palavra impressa

estado de “vida nua”, e sua sorte parece quase

arrastada para as ruas – eis algumas das reve-

indiferente dentro ou fora da prisão.

lações de Benjamin em sua arqueologia da modernidade. Ele também cedo percebeu a

x., o homem sem memória e sem fala, é um ser

vocação do jornal para o esquecimento. “Na

banido, instala-se numa relação de bando ou

substituição da antiga forma narrativa pela

34


informação, e da informação pela sensação

ontologicamente separada não apenas do me-

15

reflete-se a constante atrofia da experiência”.

cânico, mas também do império da informação

Os jornais promovem justamente a separação

– precisava ser distinguida da transitoriedade

entre o fato e a experiência. “Os princípios da

imediata da informação que nivelava todos os

informação jornalística (novidade, concisão,

acontecimentos da vida.”18

inteligibilidade e, sobretudo, falta de conexão entre uma notícia e outra) contribuem para

Muito raramente o jornal permite transmutar

esse resultado, do mesmo modo que a pagi-

o fato externo em memória e experiência, per-

Para que haja

mitindo que o leitor confira sentido ao que lê e

experiência, afirma Benjamin, é preciso que,

integre o acontecimento à sua vida. Algo assim

nação e o estilo lingüístico.”

16

na memória, relacionem-se de forma efetiva

ocorreu com Eric Hobsbawm. Em janeiro de

os conteúdos do passado individual com os do

1933, ao retornar da escola, ele viu a manchete

passado coletivo.

de jornal que anunciava a assunção de Hitler ao poder. Eis uma lembrança de juventude,

Informação e esquecimento

um exemplo tocante de memória topográfica

É notória a hostilidade de Mallarmé à lingua-

em que a leitura do jornal não se entrega a seu

gem jornalística. Lembra Lyotard, as obras de

destino de esquecimento, tornando-se efeti-

Mallarmé e Joyce são reações ao desenvolvi-

vamente um dispositivo que une o tempo e o

mento do jornalismo, insurgindo-se contra a

espaço: “Para este autor, o dia 30 de janeiro de

instrumentalização da linguagem.17 Mallarmé

1933 não é simplesmente a data, à parte isso ar-

argumentava que a poesia deveria ser a antítese

bitrária, em que Hitler se tornou chanceler da

das colunas verticais do jornal do mercado de

Alemanha, mas também uma tarde de inverno

massa: o efeito geral dessa poesia se basearia

em Berlim, quando um jovem de quinze anos

nos efeitos ópticos e auditivos das palavras em

e sua irmã mais nova voltavam para casa, em

relações formais “puras”. É bem verdade que,

Halensee, de suas escolas vizinhas em

entre as realizações inaugurais do cubismo, en-

Wilmersdorf, e em algum ponto do trajeto

contra-se a introdução de vasta gama de opera-

viram a manchete. Ainda posso vê-la como

ções e materiais estranhos àqueles legitimados

num sonho”.19

pela tradição. Entre estes, está o jornal, presente nas colagens de Picasso e Braque, afirmando

A excepcionalidade dessa lembrança, a qual

o caráter planar do espaço plástico moderno e

afirma a permanência na memória de uma

trazendo para a pintura mundanidade e estra-

notícia de jornal (mesmo que “como num so-

nheza, inconciliáveis com a pureza, pleiteada

nho”), deve-se de forma decisiva ao fato de que

por Mallarmé. Mas a consciência do poeta seria

aquele que a narra é um historiador e o conte-

partilhada adiante por artistas como Mondrian

údo da manchete afetaria de forma irreversí-

e Malevitch, entre outros, convencidos de que

vel as certezas de nosso mundo ocidental. Na

deveriam defender a especificidade dos meios

verdade, acredito que nossa experiência coti-

artísticos diante dos avanços dos novos modos

diana com os jornais está exemplarmente con-

de produção da indústria. “A arte tinha que ser

tida numa fotografia de Cartier-Bresson, rea-

35


lizada na Inglaterra, no dia da coroação do rei

O alto e o baixo, portanto. O território dos que

Georges vi, em maio de 1937.

permanecem despertos e elevados, e o territó-

20

rio daquele que, certamente bêbado, cai e adorA imagem é nitidamente dividida em duas re-

mece. O símbolo máximo do poder real não

giões. Na metade superior, vemos a multidão

aparece na foto; o homem comum rouba-lhe

que espera pela festa da coroação. Sobre a

a cena. Os jornais amassados, sobre os quais o

mureta de um monumento na Trafalgar Squa-

homem dorme, revelam, creio, a face mais au-

re, as pessoas olham ao longe. Embora senta-

têntica da matéria-jornal. Acredito que a inter-

das, suas posturas e olhares buscam alguma

rogação da fotografia, o seu punctum, como di-

forma de elevação. Percebemos uma extensa

ria Barthes – o “acaso que nela me punge (mas

gama de expressões que demonstram admi-

também me mortifica, me fere)21 –, é o aparente

ração, mas também prontidão e acuidade. Na

frescor dos jornais já descartados; a foto reve-

parte inferior da imagem, um homem dorme.

la a exata aparência que adquirem após o uso,

Seu leito é uma camada espessa de jornais

após o consumo. Seu ciclo de vida é veloz: em

amassados que formam uma extensão clara, e

24 horas, o jornal está velho, obsoleto, e é pron-

estes, embora certamente sejam recentes, já

tamente substituído pela edição do dia seguin-

parecem inúteis e superados; as informações

te. Os jornais traduzem a falácia de um tempo

foram avidamente assimiladas e descarta-

linear, vazio e homogêneo; tão logo surgem,

das. Indiferente a tudo, pura exterioridade, o

acumulam-se numa massa de esquecimento,

homem que dorme se torna objeto, momen-

transformam-se em dejetos da atualidade.

taneamente esquecido e descartado como os jornais. Ele perde a festa e a história que es-

Seria o esquecimento uma atividade do sono?

perava ver. Só o fotógrafo lhe dá atenção e se

O memorioso Funes, personagem de Borges,

interessa mais por ele do que pelo espetáculo

é incapaz de dormir, pois dormir é distrair-se

da coroação, do qual se desinteressa e dá as

do mundo. “Dezenove anos havia vivido como

costas.

quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir,

Essa “descida” do olhar descreve, em larga

perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o

medida, as operações poéticas da arte moder-

presente era quase intolerável de tão rico e tão

na. Cabe lembrar, de passagem, os conceitos

nítido, e também as lembranças mais antigas

de “perda da aura”, em que Benjamin fala de

e mais triviais”.22 Mas sua hipermemória é in-

um declínio, vivido efetivamente no corpo,

compatível com o fluxo da vida, condenando-o

nos gestos, que não fazem mais a experiên-

a um estado de vigília permanente e, em segui-

cia da arte através de um olhar que se eleva, e

da, à morte.

esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair

de “informe”, de Bataille, cuja tarefa é “desclassificar”, portanto rebaixar. A presença do

Ao concordar com Nietzsche, que em Gene-

jornal nas colagens cubistas, anteriormente

alogia da moral afirmou que somente aquilo

mencionadas, integra, sem dúvida, esse re-

que não cessa de doer permanece na memó-

baixamento.

ria, podemos imaginar o sofrimento de Funes,

36


incapaz de esquecer. Suas lembranças eram

te à indigência da palavra jornalística, ele acor-

dolorosas de nitidez e intransmissíveis pelo

dará e seguirá seu caminho. Não importa se

excesso. O personagem de Borges realiza uma

subitamente amnésico ou senhor de sua vida

“experiência do inexperienciável” – a proximi-

prosaica. Não há grande diferença. O homem

dade da morte –, de onde ressurge transforma-

na foto de 1937 adormece na festa. Não terá o

do, dotado de uma extraordinária capacidade

que lembrar, o que contar aos outros sobre o

mnemônica, que não pode ser compartilhada

evento, senão talvez seus próprios sonhos.

ou transmitida. “Com efeito, Funes não recordava somente cada folha de cada árvore de cada

O jornal e a Vanitas

monte, como também cada uma das vezes que

Os jornais amassados na foto de Bresson

a tinha percebido e imaginado. [...] Pensou que

adquirem novo sentido, se os olhamos in-

na hora da morte ainda não estaria concluído o

formados por certo gênero de pintura muito

encargo de classificar todas as recordações da

apreciado nos séculos xvi e xvii, o Vanitas, cuja

infância”.

função era advertir sobre o caráter efêmero e

23

precário de todas as coisas do mundo. Na forPara tentar dormir, Irineu Funes imaginava-

ma de natureza-morta ou alegoria, o subgê-

-se “embalado e anulado” pela corrente de um

nero Vanitas reúne objetos carregados de va-

rio que, como supõe Weinrich, é certamente

lor simbólico – livros, flores, espelhos, velas,

o Lete, o rio do esquecimento, que “liquida”

crânios – que estabelecem contrastes entre o

os conteúdos da memória.24 São esparsas as

mundo do espírito, incorruptível, e o mundo

representações do sono na história da arte

da matéria, submetido ao tempo e à degrada-

ocidental. Certamente por isso, destacam-se

ção. Vanitas é sempre uma advertência contra

A Vênus adormecida, de Giorgione, tela de 1507,

a precariedade da vida humana – e nada mais

e também o cão adormecido aos pés do anjo

precário do que a memória – e os perigos de

da melancolia, na célebre gravura de Dürer, de

deixar-se seduzir pelas riquezas terrestres.

1514. Contudo ainda mais esparsa é a presença

Assim a melancolia do gênero Vanitas infil-

do homem adormecido. Até a arte moderna, o

tra-se nas coleções que dariam origem aos

homem, representante do logos, é retratado

museus – os gabinetes de curiosidades e as

sempre desperto, no pleno domínio de si mes-

Wunderkammern (câmaras de maravilhas) –,

mo, pois o sono da razão, mostrou Goya, des-

repletos de ampulhetas, crânios que conti-

perta monstros ou, mais próxima de nós, a po-

nham relógios, estranhos espelhos, morcegos,

tência do inconsciente, como sugere Magritte

fósseis, compassos e objetos variados.

em sua tela Le dormeur témeraire, de 1928. Na foto de Bresson, os elementos que repreNa foto de Bresson, o homem adormecido so-

sentam a vaidade – os signos da realeza – estão

bre o leito de jornais pode ser o mesmo que

ocultos, porém atuantes, atraindo os olha-

apaga seus rastros no poema de Brecht: sem

res daqueles que estão na parte superior da

herança, sem bagagem, sem amigos, sem lem-

imagem. Eles organizam a festa e a própria

branças do espetáculo da coroação, indiferen-

imagem fotográfica. Os jornais amassados,

37


contudo, assinalam a precariedade, o caráter

tino, a queima de livros, sinalizando a ameaça

efêmero de todas as coisas, pois a novidade da

de extinção da memória.

notícia desaparece ainda mais rapidamente do que o frescor das flores.

Mas é em outra narrativa do mesmo livro que encontramos os jornais e a temática do esqueci-

A cada manhã, os jornais nos oferecem Vanitas.

mento com especial complexidade. Em “Utopia

Ao folhear suas páginas, nosso olhar distraí-

de um homem que está cansado”, Borges des-

do passeia pelo contraste estabelecido entre

creve o encontro do narrador com um homem

as imagens de morte e destruição, e os signos

de quatro séculos, que vive no futuro – “um ho-

de riqueza, poder e também juventude (quase

mem vestido de cinza”, cor que envolve os men-

sempre instrumentalizados pela publicidade).

sageiros da estranheza em vários contos desse

Ao passo que nas pinturas os elementos con-

escritor – e que faz assustadoras revelações.

trastantes tinham um caráter de advertên-

Uma delas é a extinção da imprensa, “um dos

cia, nos jornais os signos se igualam, e assim

piores males do homem, já que tendia a mul-

nivelam-se todos os valores. Mais significativo

tiplicar até a vertigem textos desnecessários”.26

do que o contraste entre as imagens, contudo,

A afirmação assemelha-se àquela sobre o caráter

é a precariedade da própria matéria-jornal, o

monstruoso dos espelhos e da cópula, presente

que se deve não apenas à fragilidade do papel

no início de “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”: “os

barato – tão sensível à ação da luz e do tempo –,

espelhos e a cópula são abomináveis, porque

mas também ao compromisso com a palavra

multiplicam o número dos homens”.27 Para o es-

informativa que torna o jornal tão rapidamente

critor, a multiplicação vazia da realidade, tarefa

obsoleto. Sua entropia é brutal.

dos espelhos, dos jornais e da procriação (vista apenas como tarefa biológica), deve ceder lugar

Também em Borges encontramos menção a

ao mundo visto como imenso labirinto literário,

essa escrita do esquecimento que são os jor-

mais real e mais rico do que a mera proliferação

nais. Em “O Congresso”, conto que integra

de fatos e imagens desqualificadas que preten-

O livro de areia, o narrador é um jornalista que,

dem constituir o real. À revelação do desapareci-

ao fim da vida, lembra sua participação no pro-

mento da imprensa no mundo do futuro o nar-

jeto utópico da construção de um Congresso

rador responde com um longo discurso:

do Mundo. O impulso que o levou a tal organização foi o mesmo que o conduziu à redação

Em meu curioso ontem [...] prevalecia

do jornal em que trabalharia por muitos anos.

a superstição que entre cada tarde e

“Não me envergonho de querer ser jornalista,

cada manhã acontecem fatos que é

rotina que agora me parece trivial. Lembro

uma vergonha ignorar. O planeta estava

ter ouvido Fernandez Irala, meu colega, dizer

povoado de espectros coletivos, o Canadá,

que o jornalista escreve para o esquecimento e

o Brasil, o Congo Suíço e o Mercado

que seu desejo seria escrever para a memória

Comum. Quase ninguém sabia a história

e para o tempo”. Nesse conto, encontramos

anterior desses entes platônicos, mas sim

também uma das obsessões do escritor argen-

os mais ínfimos pormenores do último

25

38


congresso de pedagogos, a iminente

picaretas, os machados, os martelos e destru-

ruptura de relações e as mensagens que os

am sem piedade as cidades veneradas!”30 Mal

presidentes mandavam, elaboradas pelo

sabiam que a realidade das duas grandes guer-

secretário do secretário com a prudente

ras que se sucederiam superaria o mais ousa-

imprecisão de que era própria do gênero.

do de seus sonhos.

Tudo se lia para o esquecimento, porque em poucas horas o apagariam outras

Ao final do conto de Borges, na menção a um

trivialidades. [...] As imagens e a letra

único nome, é revelada justamente a face mais

impressa eram mais reais do que as coisas.

cruel daquele retorno à barbárie do esqueci-

Só o publicado era verdadeiro.

mento. Caminhando pela terra do futuro, sem

28

referências e sem fronteiras, o narrador vê É inegável que no conto de Borges o futuro

uma estranha torre, coroada por uma cúpula.

é visto de forma intensamente crítica, o que

Ao indagar a seu respeito, informam-lhe que é

só se revela nas últimas linhas. Esse discur-

o crematório. “Dentro está a câmara letal. Di-

so sobre a imprensa é a fala mais longa do

zem que foi inventada por um filantropo cujo

narrador, que no restante do texto limita-se

nome, creio, era Adolf Hitler”.31

a fazer perguntas e a descrever o ambiente. A verdade é que nesse tempo distante e assusta-

Assim, o autor assinala os limites dessa utopia e

dor extinguiram-se não apenas os jornais, mas

o esvaziamento dramático causado pela ausên-

também os museus e as bibliotecas. Inexistem

cia da halachá (a lei ou doutrina) que nos orien-

monumentos, feriados ou espaços de rememo-

taria sobre o quanto lembrar e o quanto esque-

ração; inexistem cidades. Diz o homem do fu-

cer. Importa ressaltar que a história do Terceiro

turo: “Queremos esquecer o ontem, salvo para

Reich pode ser vista como uma guerra contra a

a composição de elegias. Não há comemora-

memória, um “memoricídio”, como a chamou

ções nem centenários nem efígies de homens

Weinrich, e que a extinção total dos vestígios de

mortos. Cada qual deve produzir por sua conta

seus crimes era um objetivo dos nazistas.

as ciências e as artes de que necessita”. A essa 29

revelação o narrador não oferece resistência ou

Por outro lado, o mundo descrito no conto

espanto, tampouco formula qualquer compa-

aproxima-se em parte do radicalismo das van-

ração com seu mundo presente.

guardas, com suas contradições insolúveis,

Em certa medida, essa terra de esquecimento

pureza e uma busca pela essência nessa narra-

assemelha-se ao sonho do Futurismo. No ma-

tiva bela, asséptica e aterrorizante ao mesmo

nifesto de 1908, Marinetti pregava a destruição

tempo, que remete não apenas à vanguarda

dos museus, das bibliotecas, das academias

futurista, mas aos discursos teóricos que fun-

de todo o tipo. O manifesto defende uma ale-

dam a abstração. A escrita dos jornais – impu-

gria incendiária. “Ponham fogo nas estantes

ra, instrumentalizada e voltada para o esque-

das bibliotecas! Desviem o curso dos canais

cimento – não participa desse ideal de pureza,

para inundar os museus! [...] Empunhem as

mas é indiscutível que justamente seu caráter

impasses e dilaceramentos. Há um ideal de

39


efêmero e problemático é parte integrante e

te sua linguagem informativa e, em seu lugar,

vital da modernidade (que não é sinônimo

inscrevo extratos de poemas diversos, sobretu-

de vanguarda). Vale relembrar Baudelaire:

do de Paul Celan e de sua palavra obscurecida

“A Modernidade é o transitório, o fugidio, o

e resistente, a qual, deslocada do contexto de

contingente, é a metade da arte, sendo a ou-

testemunho de Auschwitz, informa nossas pe-

tra metade o eterno e o imutável”. Os jornais

quenas e grandes catástrofes de cada dia.

32

integram a paisagem urbana do mesmo modo que a moda, o vestuário e a maquiagem femi-

Na verdade, na observação dos jornais,

nina, tão valorizados pelo poeta. O desprezo

estou à procura do sentido ou do Witz român-

desses elementos transitórios e a negação

tico, de estranhamentos que escapem ao que

do que é efêmero gerariam uma beleza vazia,

é meramente informativo, e estes podem en-

abstrata e indefinível. As bancas e quiosques

contrar-se numa única palavra, em imagens

de jornais fazem parte indelével da cidade com

ou mesmos em restos de cor. O vetor do traba-

suas infindáveis variantes. Em cada esquina,

lho é sempre a página imprensa rarefeita, apa-

os jornais e demais publicações, afixados uns

gada, sabotada em sua função de documento,

aos outros, constroem verdadeiros castelos de

mas onde o texto jornalístico ainda pulsa na

informações, solicitando o olhar por meio de

informação residual da imagem selecionada

promessas, escândalos, choques, sempre dife-

ou pelo avesso da folha que se torna transpa-

rentes e sempre os mesmos.

rente pela raspagem do papel. A integridade da página é mantida e o que permanece é uma

Que este ensaio não se confunda com qual-

pele fina e transparente, uma matéria frágil e

quer tipo de condenação aos jornais e leve a

sensível à ação da luz, desafiadoramente mun-

uma adesão crítica e, em larga medida, encan-

dana. O que me pergunto é como seria possí-

tada com suas imensas possibilidades. Como

vel reverter a temporalidade linear dos jornais,

artista plástica, venho fazendo deles o cerne

salvá-los do esquecimento, conferir-lhes po-

da poética que persigo há alguns anos. Desde

tência poética, transformá-los em pequenos

2001, apago os jornais, desfaço criteriosamen-

monumentos.

40


Publicado em Ipotesi, Revista de Estudos Literários, vol. 11, n. 2, Juiz de Fora, 2007, jul.–dez., p. 167–77. 1 capriglione, Laura. “Preso sem nome, sem fala e sem história intriga Justiça”, Folha de S. Paulo, 17 de abril de 2007, caderno c, p. c3. 2 maigne, Jacques. “Alexander au rendez-vous des souvenirs”, Libération, Paris, 27 de junho de 1987. 3 borges, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Globo, 1995, p. 120. Tradução de Carlos Nejar. 4 weinrich, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brazileira, 2000, p. 219. 5 buber, Martin. Histórias do rabi. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 121. 6 yerushalmi, Yosef Hayim. Zakhor: história judaica e memória judaica. Rio de janeiro: Imago, 1992, p. 131. 7 gagnebin, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 75. 8 Bertold Brecht citado por gagnebin, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. Op. cit, p. 69–70. 9 Ibid., p. 70. 10 agamben, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. ufmg, 2002, p. 175. Tradução de Henrique Burigo. 11 Ibid, p. 116. 12 Ibid, p. 117. 13 benjamin, Walter. “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: Obras escolhidas iii: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 136. 14 Ibid. p. 136–7. 15 Ibid. 107. 16 Ibid., p. 106–7. 17 lyotard, Jean-Franços. L’inhumain, Paris: Seuil, 1988, p. 131. 18 bois, Yves-Alain, “Pintar, a tarefa do luto”, ars, vol. 5, n. 7, São Paulo, 2006, p. 103. 19 hobsbawm, Eric. Era dos extremos: o breve século xx: 1914–1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 14. 20 Fotografia disponível em http://www.magnumphotos.com/C.aspx?VP3=SearchResult&ALID=2K1HRGRDL32 21 barthes, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 46. 22 borges, Jorge Luis. Ficções. Op. cit., p. 113. 23 Ibid., p. 115. 24 weinrich, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Op. cit., p. 151. 25 borges, Jorge Luis. O livro de areia. São Paulo: Globo, 2001, p. 26. Tradução de Lygia Morrone. 26 Ibid., p. 84. 27 borges, Jorge Luis. Ficções. Op. cit., p. 29 28 borges, Jorge Luis. O livro de areia. Op. cit., p. 85. 29 Ibid., p. 87. 30 chipp, Herschel B., Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 292. 31 borges, Jorge Luis. O livro de areia. Op. cit., p. 89. 32 baudelaire, Charles. Écrits esthetiques. Paris: Union Générale d’Éditons, 1986, p. 372–3.

41


(...) Viesse viesse um homem viesse um homem ao mundo, hoje, com a barba de luz dos Patriarcas: ele poderia se falasse ele deste tempo, ele poderia apenas balbuciar e balbuciar sempre –, sempre –, continuamente. (”Pallaksch. Pallaksch.”). Paul Celan, Tübingen, Janeiro. tradução

42

Leila Danziger


Pallaksch Pallaksch Leila Danziger

Certa vez, assisti a uma entrevista do escritor

Patriarcas: ele poderia

francês Patrick Modiano, cujos livros nos fa-

se falasse ele deste

lam com frequência da França nos anos da

tempo, ele

Ocupação, que me interessou, sobretudo, pela

poderia

beleza de sua fala entrecortada e hesitante.

apenas balbuciar e balbuciar

Ao buscar responder as perguntas, ao tentar

sempre –, sempre –,

demonstrar e complementar as várias nuanças

continuamente.

de seu pensamento, as frases se demoravam, e ele adiava longamente a conclusão de sua fala.

(“Pallaksch. Pallaksch.”)1

Cada frase parecia ser o resultado de um exercício difícil e rigoroso de extração das palavras,

A palavra repetida que encerra o poema, in-

contaminadas e quase deformadas por outras

compreensível em todas as línguas, é atri-

palavras e percepções.

buída a Hölderlin, que a inventara em quase quatro décadas de isolamento em uma torre,

Creio que esse tipo de fala hesitante e ao mes-

às margens do rio Neckar, e poderia signifi-

mo tempo rigorosa, pois seu compromisso é

car sim ou não. Essa fala extenuada, à beira

ser fiel à experiência de nosso tempo, seja a

do silêncio e da incompreensibilidade, como

forma justa – não exatamente verdadeira, e sim

afirma Lacoue-Labarthe, não é uma narrativa,

justa – ao tentar falar da atualidade. É o que pa-

não nos conta nada, mas diz respeito à possi-

rece sugerir Paul Celan no poema “Tübingen,

bilidade mesma da experiência da poesia, se

Janeiro”, dedicado a Hölderlin:

tomamos a palavra experiência em sua origem latina, como ex-periri, a travessia de um

[...]

perigo.2 Ou ainda, como nos diz Blanchot, e

Viesse

também Foucault, como uma “experiência do

viesse um homem

fora”: “uma experiência do ilimitado, do ins-

viesse um homem ao mundo, hoje, com

transponível, do impossível, isto é, daquilo

a barba de luz dos

que afronta, na realidade, a loucura, a morte,

43


a noite ou a sexualidade, ao aprofundar, na

A sonoridade da palavra “pallaksch”, duplica-

espessura da linguagem, seu próprio espaço

da como aparece no poema de Celan, parece-

de fala”.

-me um título justo para uma instalação que

3

surge de gestos repetitivos que desejam confeOra, sabemos que a experiência da poesia – da

rir algum sentido às ruínas dessa fala da atua-

arte, do risco – só é possível no embate com

lidade que são os jornais (recém-lançados e já

a língua – “estado da fala comum, tal como

obsoletos). A instalação é voltada para a espa-

é dada a cada um de nós e a todos, em deter-

cialização dos resíduos (materiais e sonoros),

minado momento do tempo e segundo nossa

produzidos a partir do processo de apagamen-

pertença a alguns lugares do mundo.” A lín-

to e reedição dos jornais impressos. Desenvol-

4

gua é aquilo que sempre nos antecede e ao que

vo aqui outro lado da série Diários públicos, em

nos submetemos, “um corpo de prescrições e

curso desde 2002, em que procuro reverter cer-

de hábitos.” Para que haja literatura, poesia –

ta visão linear e homogênea do tempo. O tra-

arte, enfim –, é preciso conquistá-la, assumi-la

balho parte de uma leitura corrosiva, vivida em

5

arriscadamente, abismar-se, torná-la uma es-

sua materialidade máxima, não apenas com os

critura, como tão bem definiu Barthes.

olhos, mas com o corpo em integridade.

Na instalação Pallaksch Pallaksch, aproprio-

Desde o início, percebo que os restos acumula-

-me literalmente da língua que nos é dada –

dos contêm certo apelo à forma, mas esse apelo

compreendida aqui como a fala incessante, o

permaneceu latente, não respondido. Há tem-

rumor contínuo da linguagem da informação

pos, observo as informações retiradas dos jor-

– e procuro transformá-la numa efetiva escritura

nais transformarem-se num emaranhado den-

de resíduos e ruídos. Proponho assim uma

so de tiras e suspeito que, nesse acúmulo, algo

interpretação da palavra incompreensível de

da verdadeira forma da linguagem jornalística

Hölderlin, que no trabalho assumirá a função

se revela. E se há algum sentido em perguntar-

de um ritornelo. Atualizar a palavra criada por

-se por uma possível “essência” do jornal – do

Hölderlin, pensá-la a partir de uma perspectiva

mesmo modo que Barthes pergunta: “Qual é a

rigorosamente contemporânea, implica, creio,

essência de uma calça (se há alguma)?” –, cer-

compreendê-la como resposta ao aspecto fala-

tamente essa essência está não no jornal into-

cioso dessa fala “inesperada, ágil, incansável,

cado, entregue ao leitor nas primeiras horas do

6

que nos dota a cada momento de um saber

dia, mas sim na pilha de jornais descartados,

instantâneo, universal”.7 Esse é o regime pró-

amassados, consumidos, destinados a outras

prio da palavra informativa, da linguagem dos

formas de uso, em função da qualidade de seu

meios de comunicação, definida por Mallarmé

papel barato e, sobretudo, do envelhecimen-

como “linguagem da ação, do trabalho, da ló-

to acelerado da informação. Como observou

gica e do saber, linguagem que transmite ime-

Barthes: “A essência de um objeto tem alguma

diatamente e que, como boa ferramenta, desa-

relação com o que dele resta: não obrigatoria-

parece na regularidade do uso”, e se situa no

mente o que dele resta depois de muito usado,

extremo oposto da poesia.

mas o que é jogado porque não se quer mais

8

44


usar”. Qual o destino dos jornais quando, tão

de controlar e entender as diversas situações es-

prontamente, deixam de ser novidade? Que po-

paciais e de luminosidade, levou o artista a pro-

tência eles guardam? Como ouvir o murmúrio

duzir imensa quantidade de fotografias ao lon-

dos restos?

go de cinco décadas, legando-nos um arquivo de imagens indissociáveis das obras em si. Como

Minha atenção ao longo do processo de traba-

observa Jean-Pierre Criqui, para o escultor, a

lho se desdobra, assim, entre o apagamento

foto desenvolve o trabalho escultural numa es-

seletivo dos jornais, que produz páginas es-

pécie de comentário paralelo que, longe de ser

vaziadas, porém íntegras, e a observação da

apenas um simples documento, estabelece res-

nova forma da informação extraída pela fita

sonâncias entre a especificidade dos dois meios

adesiva. O aspecto contínuo e quase ininter-

plásticos.9 Apesar de tal aspecto distanciar-se

rupto que adquire o jornal nesse processo de

dos interesses dos artistas contemporâneos,

extração constrói outra narrativa, que tudo

afastados da investigação da especificidade dos

nivela e confunde. A falta de conexão entre as

meios, há nessa prática de Brancusi uma trans-

notícias é assim intensificada, e esse é um dos

versalidade que nos é familiar.

fatores responsáveis pela vocação do jornal para o esquecimento.

Mesmo que as esculturas de Brancusi integrem hoje coleções de diversos museus, as fotografias

Pallaksch Pallaksch é uma resposta ao apelo –

do ateliê mostram certa perda indefinível sofri-

decididamente escultórico – dos acúmulos de

da pelas obras. Até mesmo na reconstrução do

tiras de jornais. E, nesse sentido, a fotografia

ateliê do artista, feita pelo arquiteto italiano

é um importante meio de investigação, regis-

Renzo Piano, e instalado em frente ao Centro

trando as diversas configurações de resíduos

Georges Pompidou, em Paris, há algo da ordem

que se formam continuamente, mas devem

do inexorável (e talvez a reconstrução arquite-

ser rebobinados e guardados – de outro modo

tônica pertença ao domínio da imagem). Mas o

o espaço de trabalho ficaria inteiramente ocu-

que é notável nas fotos do ateliê de Brancusi é o

pado pelos restos e expulsaria minha própria

absoluto controle exercido sobre seu espaço de

presença.

trabalho; o artista não admite nenhum elemento que não lhe pertença, nenhuma variação

Vale lembrar a prática de Brancusi, que fotogra-

formal que não tenha sido originada em um

fava a reorganização constante dos elementos

processo rigoroso de investigação, em torno de

de suas esculturas no espaço privilegiado do

certo número limitado de temas. Nesse sentido,

ateliê. A fotografia foi uma ação reflexiva fun-

embora Brancusi tenha sido amigo próximo de

damental em sua obra, embora ele não preci-

Duchamp, sua obra é de fato o oposto do ready-

sasse preocupar-se com sua permanência, pois

-made. “Enquanto Duchamp recusava a impor-

sempre trabalhou com materiais tradicionais e

tância tradicionalmente atribuída à ‘inteligên-

duráveis, como a madeira, a pedra e o bronze.

cia da mão’ e reduzia ‘a ideia da consideração

Mesmo assim, o desejo de investigar incansavel-

estética à escolha do espírito’, Brancusi reafir-

mente as relações entre as esculturas, o desejo

mava a significação do toque físico e da habili-

45


dade do artista, e ele mesmo transformava um

gem). Registros visuais e sonoros são tentati-

objeto comum em uma escultura por um ato de

vas de perceber nuanças, contornos, limites e,

sua vontade”.

10

assim, instalar certa distância reflexiva entre mim e o rumor que me envolve de forma con-

Embora não exista mais sentido em alimentar

tínua (é preciso distinguir murmúrios dentro

dicotomias (mão versus espírito; sensível versus

da concha do mundo da informação). O que

inteligível), interesso-me especialmente por

pedem as informações transformadas em

esse apego ao toque, pelo aspecto manual da

metros e metros? Acumularem-se em monta-

obra de Brancusi, e me parece possível com-

nhas? Expandirem-se pelo solo (como certas

preendê-lo em outro contexto, aplicado a ou-

algas que teimam em invadir as praias cario-

tras matérias. Modelar efetivamente o texto

cas em algumas épocas do ano)? As metáforas

informativo, erodir a matéria-jornal, raspar

geológicas trazem à lembrança reflexões de

a linguagem informativa, silenciar sua taga-

Robert Smithson, que vê a própria linguagem

relice, desviar seu aspecto utilitário, para que

transformar-se em montanhas de escombros

outras funções possam surgir, são operações

simbólicos.11

que me interessam, implicando o investimento físico numa leitura extrativa que compreendo

Quando tento me movimentar no ateliê satu-

como algo efetivamente corporal.

rado de tiras, penso em certas coreografias de Pina Bausch, que problematiza a movimenta-

A operação de apagar os jornais, que acarre-

ção dos bailarinos, ao fazê-los dançar contra

ta a transferência do texto de uma superfície

a resistência das águas. Com frequência, a

(a página) para outra superfície (o rolo de fita

coreógrafa alemã estabelece o palco como um

adesiva), possui semelhanças com a fotogra-

campo de forças, e não como um espaço liso e

fia compreendida enquanto vestígio ou índice.

tranquilo. Criar um espaço denso e resistente,

Desnecessário nos estendermos aqui sobre

capaz de instituir outra temporalidade – lenta,

o caráter indicial da fotografia, amplamente

rarefeita, que resista ao tempo da informação,

difundido por diversos autores. O estatuto da

do consumo e do tecnicismo –, eis um dos

imagem fotográfica como vestígio interessa-

desejos no horizonte do processo de trabalho.

-me especialmente nesse procedimento de

Talvez esse tempo distendido e lento (melan-

leitura extrativa, pois os metros de informação

cólico?) possa ser compreendido como uma

que jazem à minha volta contêm espectros de

forma de resistência (saudável, creio) às nos-

imagens – a imagem da imagem da imagem –

sas crises de temporalidade, experimentadas

e assemelham-se talvez a espécies de sudários

desde que a modernidade se pôs no horizonte.

da informação.

Poderia o tempo lento da melancolia ser uma estratégia reativa a um tipo de temporalidade,

Fotografo as tiras de jornais em diversas con-

em que o presente, o passado e o futuro nos

figurações no ateliê; ouço seus atritos e ruídos.

parecem igualmente inacessíveis? Creio que a

É preciso não apenas ver, mas ouvir a vocação

melancolia contemporânea pode ser associa-

do trabalho (as tiras roçam, farfalham, ran-

da à consciência da entropia, presente de for-

46


ma vertiginosa em nosso mundo industrial (e

Para Broodthaers, o cinema funciona como

ao sentimento de obsolescência que indiscri-

um curioso dispositivo que simultaneamente

minadamente afeta pessoas e objetos). Sobre-

inscreve e apaga. “Ele apresenta um texto em

tudo com Smithson, sabemos que a entropia

processo de escritura e que ao mesmo tempo já

aumenta à proporção da quantidade de infor-

teria sido escrito: um texto, que animado no pre-

mação adquirida. Essa é a consciência extrema

sente, é imediatamente inscrito no passado”.12

que adquirimos a partir do acúmulo de jornais

As imagens do filme do artista belga que mos-

e outros media. Trata-se aqui não de procurar

tram a instabilidade da escritura, a impos-

superar ou reverter a entropia – tarefa impossí-

sibilidade de fixar as palavras e conferir-lhe

vel, como já observou Smithson –, mas sim de

alguma duração, parecem-me especialmente

apropriar-se dos acúmulos, dos excessos, de

oportunas para pensar o regime da palavra

forma reflexiva e poética.

informativa, que tão logo surge, é cancelada pela torrente de informações que se sucedem

A instalação Pallaksch Pallaksch inclui também

a cada dia, deixando atrás de si apenas ruídos,

registros videográficos, em que o gesto de apa-

um estranho rumor do mundo.

gar os jornais é apresentado em seu instante essencial, que dura de dois a quatro segundos.

O filme de Broodthaers é silencioso – não ou-

Pela edição, os apagamentos se sucedem de

vimos o atrito da caneta-tinteiro sobre o papel,

forma contínua; os fatos emergem e relampe-

tampouco o encontro entre a água e a solidez

jam. A imagem é animada pelo gesto que fere o

das coisas. Podemos considerar que o silêncio

jornal, que o desfaz, e mesmo, certas vezes, por

do filme é um dos elementos de sua potência,

acidente, o rasga e destrói. Apagar as imagens

porque frustra uma espera. Mas todos nós co-

e os textos é uma modalidade de apropriação:

nhecemos a sonoridade da chuva e o discreto

literalmente arruinados – transformados em

ruído da pena sobre o papel – para quem ain-

ruínas –, eles constroem um arquivo de destro-

da não foi capaz de ouvir o som da escrita, vale

ços da informação.

lembrar a acuidade dos sentidos de Proust: “O ruído de minha respiração abafa o de minha

Em 1969, Marcel Broodthaers realizou um fil-

pena e de um banho no andar de baixo.”13 Nos

me de dois minutos, em que tentava, em vão,

registros videográficos que integram Pallaksch

escrever um texto sob uma torrente de água.

Pallaksch, os ruídos produzidos pela extra-

La pluie (projet pour um texte) mostra o artista

ção das informações é essencial, ritmando os

sentado próximo a um pequeno caixote que lhe

gestos, materializando o ato da leitura, que

serve de mesa. Enquanto escreve, as palavras

se inscreve, creio, numa zona incerta entre a

são imediatamente dissolvidas e levadas pela

lembrança (tênue e precária) e o esquecimen-

água; ainda assim, o artista continua a escrever.

to (predominante).

47


Uma primeira versão deste texto foi publicada com o título “Sobre as ruínas e os ruídos das informações” nos Anais do 18o Encontro da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas (anpap). Salvador: edufba/anpap, 2009. 1 Tradução Leila Danziger. (...) Käme,/ käme ein Mensch,/ käme ein Mensch zur Welt, heute, mit/ dem Lichtbart der/ Patriarchen: er dürfte/ spräch er von dieser/ Zeit, er/ dürfte/ nur lallen und lallen, /immer-, immer/ zuzu.// (“Pallaksch. Pallaksch.”). Paul Celan, “Tübingen, Jänner”. In: Allemann, Beda & Reichert, Stefan (Hg.). Gesammelte Werke in 5 Bänden, Frankfurt: Suhrkamp, 1983, tomo I, p. 226. 2 lacoue-labarthe, Philippe. La poésie comme éxpérience. Paris: Christian Bourgeois, 1989, p. 30. 3 revel, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005, p. 47. 4 blanchot, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 301. 5 barthes, Roland. “Qu’est-ce que l’écriture?”. In: Le degré zero de l´écriture (suivi de Nouveuax essais critiques). Paris: Seuil, 1973, p. 11. 6 “O ritornelo é um segmento (de um relato, de uma canção ou de uma forma visual) que se autonomiza e insiste numa reverberação criadora que vai transformar todo o conjunto”. Félix Guattari citado por caiafa, Janice. Nosso século xxi: notas sobre arte, técnica e poderes, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000, p. 60. 7 blanchot, Maurice. O livro por vir. Op. cit., p. 296. 8 Ibid., p. 297. 9 criqui, Jean-Pierre. “Ruines à l´envers. Introduction à la visite des monuments de Passaic par Robert Smithson”, Les Cahiers du Musée National d´Art Moderne, n. 43, Paris, 1991, printemps, p. 8. 10 Sobre as afinidades e diferenças entre o objeto em Brancusi e Duchamp, ver: balas, Edith. “Brancusi, Duchamp et Dada”. In: Les carnets de l´Atelier Brancusi: regards historiques. Paris: Ed. du Centre Pompidou, 2000, p. 63–76. 11 smithson, Robert. “Uma sedimentação da mente: projetos de terra”. ferreira, Glória & cotrin, Cecília (orgs). In: Escritos de artista: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 194. 12 Bruyn, Eric. “The Museum of Atractions: Marcel Broodthaers and the séction cinéma”. Disponível em http:// www.medienkunstnetz.de/themes/art_and_cinematography/broodthaers/1/. Acesso em 12 de maio de 2009. 13 benjamin, Walter. “A imagem de Proust”. In: Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política, ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 48.

48


49



Para-ninguĂŠm-e-nada-estar [2006] Carimbo sobre jornal apagado 54 x 32 cm


Para-ninguĂŠm-e-nada-estar [2002] Carimbo e impressĂŁo solar sobre jornal apagado 54 x 32 cm


Para-ninguĂŠm-e-nada-estar [2002] Carimbo e impressĂŁo solar sobre jornal apagado 54 x 32 cm


Para Carlo Giuliani [2002] Carimbo e impress達o solar sobre jornal apagado 54 x 32 cm


Para Carlo Giuliani [2002] Carimbo sobre jornal apagado 54 x 32 cm


Vista parcial da exposição Diários Públicos, Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro, 2004


Para-ninguĂŠm-e-nada-estar [2003] Carimbo e impressĂŁo solar sobre jornal apagado 54 x 32 cm


Para Cecilia Meireles [2001] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aรงo 90 x 32 cm Acervo Museu Chรกcara Dona Catarina, Cataguases


Para Orides Fontela [2001] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aรงo 80 x 32 cm Acervo Museu Chรกcara Dona Catarina, Cataguases


Ciranda [2004–2007] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aço 104 x 32 cm



Para Ana Cristina César #1 [2004–2007] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aço 120 x 32 cm



Para Ana Cristina César #2 [2004–2007] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aço 120 x 32 cm



Para Paulo Leminski [2007] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aรงo 116 x 32 cm



Para Irineu Funes #1 [2004] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aรงo 160 x 32 cm


Para Irineu Funes #2 [2004] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aรงo 160 x 32 cm

Nome da obra [2011] Num fugitis molum sum, ullabo. Nam debit, quatibus ut ommolup.




(página 69) Série Para Irineu Funes [2004] Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro

Pensar em algo que será esquecido para sempre [2006] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 65 x 57 cm (aberto) 72 páginas



Vens abaixo em chamas (Hรถlderlin) [2006] Carimbo sobre jornais apagados 54 x 96 cm



Mares poder達o subir por mais mil anos [2012] Impress達o fotogr叩fica sobre papel de algod達o, conchas e moldura de madeira 90 x 72 cm



O que desaparece, o que resiste #2 [2011] Carimbo sobre jornais apagados e dispostos em séries diversas; vídeos, livros e impressos, dimensões variáveis. Instalação realizada numa banca de jornal desativada no campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mostra Campus (Des)situado – 20º Encontro Nacional da Anpap, Subjetividades, Utopias e fabulações, UERJ, 2011



Antônio Cupello, proprietário da banca de jornal que funcionou no Campus da UERJ – Maracanã, de janeiro de 1985 a abril de 2011



O que desaparece, o que resiste (detalhe) [2011]


PARA PENSAR O APAGAMENTO

83


Diários públicos – o teatro da leitura Luiz Cláudio da Costa

A produção contemporânea vem cedendo o lu-

Dito de outra forma, a escritura ou a obra de

gar soberano da atividade artística ao espaço

arte é um produto da leitura, da atividade de

da recepção. É na experiência por parte do es-

apropriação e ressignificação de discursos

pectador que a obra acontece. Roland Barthes

oriundos de espaços diversos não necessaria-

associou, em 1968, a crise da noção de autor

mente artísticos ou literários. Diários públicos,

ao aumento do prestígio do leitor. Contra a

série que a artista Leila Danziger desenvolve

ideia de autoria estava implícito um assalto ao

desde 2001, concebe a obra como atividade

pressuposto da origem da escritura ou da obra

de leitura à luz do problema da memória, por

de arte no indivíduo que a produz. Um texto

meio da inscrição ou do arquivamento de sig-

é espaço em que se casam e se contestam es-

nos num suporte material, da impressão ou do

crituras variadas. Ele é feito de escrituras múl-

apagamento das marcas significantes, da res-

tiplas, procedentes de várias culturas, que en-

significação de discursos segundo seus novos

tram em diálogo, paródia ou contestação. De

contextos materiais. Diários públicos apresen-

acordo com Barthes, é o leitor que pode reunir

ta a condição da obra de arte na contempora-

a multiplicidade de vozes e textos apropriados

neidade como um singular teatro da leitura.

e associados numa obra. Enquanto o escritor ou o artista pode apenas imitar um gesto sem-

A série, antes de tudo, é uma grande coleção

pre anterior, no leitor advém o próprio espaço

de jornais diários acumulados e conservados

em que se inscrevem todas as citações. O que

para serem lidos aos poucos. Os acúmulos de

se pode inferir dessa teoria é que os escritores

jornais foram mostrados em poucas situações

ou artistas são leitores ativos mais do que cria-

expositivas, mas a cena da leitura esteve visivel-

dores que fazem a obra nascer de sua subjeti-

mente presente na exposição Tempo-matéria,

vidade interior. Em suas palavras: “A escritura

realizada no Museu de Arte Contemporânea

é esse neutro, esse composto, esse oblíquo

de Niterói (mac), em 2010. Para essa ativida-

pelo qual foge o nosso sujeito, o branco e pre-

de, a artista recriou seu escritório-ateliê com a

to em que vem se perder toda identidade, a co-

instalação Pallaskch Pallaksch: uma mesa, um

meçar pela do corpo que escreve”.

banco próximo, uma luminária, uma pilha de

1

84

2


jornais, diversos carimbos espalhados, um ví-

ao compartilhamento público, para salientar

deo, um projetor e o volumoso resíduo infor-

e, portanto, restringir o significado proposto

me de fitas resultantes de sua ação extrativa.

pelo autor”.3 Fischer aborda esse compartilha-

Extrair do jornal o ruído como quem arranca o

mento oral da escrita sob a alcunha de “fala

entulho do mundo é o golpe que a artista lança

do papiro”. O ensino clássico tinha como ob-

sobre o dispositivo da informação diária. O jor-

jetivo não a aquisição de conhecimento, mas

nal, livre de excessos, expõe seu ermo, deserto

a perfeição da eloquência. Era a oralidade que

que agora estimula a errância e a demora. Si-

regia a sociedade antiga dos gregos e romanos,

lenciar a tagarelice da informação não pressu-

ainda que a escrita fosse empregada de forma

põe esquecer o excesso que insiste nas notícias.

generalizada. A mudança advinda com a pro-

Ao contrário, apagar é transferir signos: o vídeo

liferação da escrita entre gregos e romanos é

guarda o ruído e a ação física; o emaranhado

que eles passaram a ler em voz alta.4

de fitas arquiva as palavras inúteis. Enquanto o vídeo registra, aproxima, aumenta a escala da

Dessa prática oral à leitura privada muitos sé-

cena e o volume sonoro, intensificando o ver e

culos se passaram. A mudança nos hábitos de

o ouvir – o rumor da ação intempestiva que a

leitura foi gradativa, tendo sido a imprensa fun-

artista opera na extração –, as fitas guardam o

damental no enfraquecimento da oralidade e

contato com as palavras que se fazem arquivo

no predomínio da leitura silenciosa. A leitura

morto, impossibilidade de leitura. Se, porém,

do rolo na Antiguidade não era apenas oral;

ler torna-se impossível, é porque a leitura re-

mobilizava o corpo inteiro, o que não permitia

cua a sua potência máxima, essa que pode mul-

ao leitor escrever enquanto lia. O códex – livro

tiplicar e desdobrar as traduções em visibilida-

composto de folhas dobradas e páginas reuni-

des plástico-poéticas. A suposta uniformidade

das em uma mesma encadernação – pressupôs

que as palavras tentam construir não consegue

outra relação com o corpo no momento da

obstruir o processo entrópico irreversível da

leitura. Segundo Roger Chartier, o códex, ma-

informação que os meios de comunicação es-

nuscrito ou impresso, permitiu gestos inéditos,

condem na falácia de um tempo homogeneiza-

como folhear o livro, citar trechos com preci-

do e de uma significação ordenada.

são, estabelecer índices. Acima de tudo, favoreceu “uma leitura fragmentada mas que sempre

Discretamente os elementos no espaço da

percebia a totalidade da obra, identificada por

leitura convidam o espectador a se sentar na-

sua materialidade”.5 Vivemos um momento de

quele local em que reina a desordem. Eles o

transformação das práticas da leitura com o

convidam para essa atividade solitária e silen-

advento da era digital. Na tela do computador,

ciosa que, até o aparecimento da imprensa,

o texto volta a estar dobrado num espaço tridi-

era pública e oral. Escutar fazia parte do ato

mensional. Para ler, devemos desdobrá-lo sua-

de ler. Como afirma Steven Roger Fischer, em

vemente. O texto volta a ser um rolo, mas agora

História da leitura, ao comentar essa atividade

deve ser desenrolado verticalmente. A leitura

na Grécia: “Toda literatura escrita era, sobre-

produzida pela navegação na rede, por outro

tudo, embora não exclusivamente, destinada

lado, é descontínua e mais próxima da natureza

85


enciclopédica. Chartier esclarece que a reali-

carimbando, imprimindo, gravando. O vídeo,

dade hipertextual da textualidade eletrônica e

a fita extrativa e o carimbo são instrumentos

de sua hiperleitura transformam as relações

capazes de permitir a leitura corporal que pres-

possíveis entre as imagens, os sons e os textos

supõe um conjunto de ações físicas com os re-

associados de maneira não linear mediante as

síduos de textos, informações, imagens e sons:

conexões eletrônicas, as ligações entre os tex-

fixar, arrancar, gravar, imprimir, transferir.

tos fluidos em seus contornos e em número

Trata-se de apagar o puramente utilitário para

virtualmente ilimitado.6

fazer subir à superfície do papel-jornal o murmúrio dos restos, o lamento da ruína. A me-

A leitura que Leila Danziger propõe em

lancolia que está presente no trabalho de Leila

Pallaksch Pallaksch, ou mesmo na série Diários

Danziger é acompanhada da força dos destro-

públicos como um todo, não tem a materiali-

ços que não se abatem em face do esquecimen-

dade do computador, mas experimenta diver-

to a que são forçados. É essa potência que a

sidade aberta semelhante à da nova textuali-

artista se propõe a ativar, convocando cada in-

dade digital. A mobilidade do texto entre os

divíduo para a cena da exposição no mac. Cada

suportes do papel-jornal, da fita e do vídeo,

espectador, particular e solitariamente, é con-

e os variados gestos (a colagem da fita, sua

vidado a sentar-se e partilhar do emaranhado

extração, o enrolar e o desenrolar das fitas, a

de sua leitura corrosiva, ruminando todos os

gravação em vídeo, o carimbar textos prove-

murmúrios.

nientes de outros espaços discursivos) pressupostos na leitura produzida em Pallaksch

Mas se a leitura da artista é corporal, ela não

Pallaksch não implicam atividade semelhan-

se abre à facilidade da participação física do es-

te àquela realizada diante do computador.

pectador que deseja carimbar mecanicamente

O que Pallaksch Pallaksch deixa visível é a

os jornais no afã da diversão banal. Ela man-

atividade silenciosa e privada da cultura im-

tém um distanciamento dos lugares no espaço

pressa que pode produzir tanto ruído quanto

da atividade artística, uma diferença que não

a ressignificação ativa da leitura exigi-lo. São

pode ser apagada. Convocar à participação da

conexões com outros textos e imagens, tradu-

obra como leitura não significa propor a repe-

ções, recontextualizações e transferências de

tição das ações de apagamento e impressão

discursos que estão sendo ativados na leitura

já realizadas pela artista. Ao contrário, é abrir

encenada por Pallaksch Pallaksch.

a possibilidade de outro espaço de inscrição, de outro lugar para a elaboração. Segundo

Diários públicos nasce da coleção de impressos

Leila Danziger, trata-se não de solicitar a cria-

da mídia jornalística, mas Danziger, longe de

ção de imagens ou textos, mas sim de propi-

uma leitura passiva de aquisição de conheci-

ciar o aberto ou a entropia do excesso em que

mentos, investe o corpo nessa atividade que in-

todas as imagens são possíveis. É preciso ler o

clui a apropriação, a recontextualização e a res-

mundo quando a informação está quase toda

significação. A artista trabalha a materialidade

apagada. É preciso saber apagar o excesso para

da folha do jornal em sua unidade, apagando,

poder perceber a catástrofe que nos assola, a

86


miséria que devasta o mundo com a falta de

co objeto, o rolo de papiro, fosse ela ordem ad-

poesia, com o esquecimento da arte. É preci-

ministrativa, texto religioso, correspondência

so que o espectador tome assento e se demore

pessoal ou literatura. Como consequência do

no teatro da leitura delicadamente construído

aparecimento do códex nos primeiros séculos

pela artista. É a imersão no processo da leitura

d.c., deu-se início à separação dos discursos

o que propõe Leila Danziger. É preciso desco-

segundo objetos materiais diversificados: li-

brir no vazio, na ausência, no silêncio os mo-

vros, revistas, jornais, cartas, diários etc.

dos de ver o mundo em pedaços. Foi a invenção da imprensa, contudo, que esNos jornais de Danziger surgem excertos de

tabeleceu a ordem dos discursos que até hoje

textos literários ou teóricos (Pensar em algo que

permanece descontínua segundo a materia-

será esquecido para sempre, 2006), impressões

lidade de suportes individualizados. Como

de figuras de artistas viajantes (Voyage pitto-

afirma Chartier: “Na cultura impressa, uma

resque et historique au Brésil, 2008), marcas de

percepção imediata associa um tipo de obje-

impressão solar (Para-ninguém-e-nada-estar,

to, uma classe de textos e usos particulares”.7

2001). Danziger organiza acúmulos de folhas

A ordem do discurso é assim estabelecida a

trabalhadas (Para Ana Cristina César, 2004),

partir da materialidade própria dos suportes

reúne dípticos ou trípticos (Vens abaixo em

individualizados no livro, no jornal, no arqui-

chamas, 2006), edita livros-cadernos (Lembrar/

vo, na biblioteca. Só na era do computador

Esquecer, 2006). Apagando palavras e retendo

aparece uma continuidade que não diferencia

outras, extraindo imagens e conservando ou-

os discursos a partir de sua própria materiali-

tras, gravando sua ação de extração em vídeo ou

dade. Chartier esclarece que é a “ordem dos

imprimindo sobre os jornais discursos alheios

discursos que se transforma profundamente

a esse suporte, Danziger processa os dispositi-

com a textualidade eletrônica”.8 Diários públi-

vos de informação impressa da cultura de mas-

cos agrupa e faz colidir, em um mesmo espaço

sa. Por meio de diálogos dissonantes entre os

contínuo de leitura, um conjunto de discursos

textos e as imagens provenientes de espaços e

que, na era da escrita impressa, pertence a ma-

tempos diferentes, ela produz uma leitura da

terialidades descontínuas.

escrita jornalística moderna, ao mesmo tempo que problematiza a ordem dos discursos estabelecida pela cultura impressa.

Diários públicos destaca justamente o problema da materialidade discursiva do jornal impresso. A materialidade da folha do jornal é

Na cultura da escrita em que vivemos, a poesia

o elemento do trabalho mais evidente numa

pertence ao livro, a informação ao jornal, a pu-

primeira leitura. Utilizando a técnica extrativa

blicação especializada à revista. Estranhamos

com o auxílio de fitas adesivas, Danziger apaga

os jornais de Leila Danziger, ou mesmo seus

aquilo que não quer preservar. Apagar é pro-

livros-cadernos, porque neles esses discursos

duzir o desaparecimento, é fazer esquecer. Na

estão reunidos num mesmo suporte material.

história da escrita são diversos os momentos

Por muitos séculos, a escrita existiu num úni-

em que o apagamento, a queima de arquivos,

87


serviu para reprimir ou censurar a leitura. Isso

nas ao suporte físico do jornal, mas à ordem

ocorreu na Antiguidade, na Inquisição, nas

do discurso que nele se apresenta. Uma vez

ditaduras da América Latina, sem esquecer a

que o jornal, descontínuo ao livro de poesia e

abominável queima de livros realizada pelos

à revista especializada, deve seu compromis-

nazistas em 1933. Apagar, no entender de Leila

so à palavra informativa, a multiplicidade da

Danziger, ao contrário da vontade de censura,

escritura mantém-se reduzida à comunicação

é conservar algo para que seja lembrado; é re-

da notícia. Nada da verdade objetivada e ofere-

mover certos discursos do tempo vazio e ho-

cida pelos jornais se conserva no trabalho de

mogêneo para dar-lhes uma duração; é dotar

Leila Danziger, que aposta na tensão entre a

o documento do presente do caráter de monu-

imagem e a palavra, bem como entre a palavra

mento. Nas palavras da artista: “Como conferir

do cotidiano jornalístico e a palavra poética.

singularidade aos jornais, subtrai-los à tempo-

Mallarmé proferiu essa distinção entre duas

ralidade linear, transformá-los em pequenos

linguagens, o que muito o absorveu para defi-

monumentos?”

nir a diferença entre a palavra essencial e outra,

9

bruta ou imediata. O interesse de Mallarmé Um dos trípticos, intitulado Todos os nomes

era mostrar que a palavra afirma uma ausên-

da melancolia (2008), lida diretamente com

cia, mesmo quando no cotidiano queremos

o tema do caráter precário das coisas do mun-

falar objetivamente de algo do mundo. É ver-

10

do, da qualidade efêmera do tempo. A morte,

dade que a palavra usual que nomeia um ob-

representada pela caveira, aparece no centro

jeto de nossa realidade física quer dele nos

desses trabalhos, que assim se assemelham

desvencilhar, pois ela cede à pressão da coisa

visualmente, pelo prestígio dado ao objeto, ao

que designa. O poeta, porém, o escritor, não

gênero Vanitas da pintura alegórica do sécu-

deseja sequer reconstituir o objeto na ausên-

lo xvii. Como Danziger esclarece, ao folhear

cia insistente que toda palavra nutre. O poeta

suas páginas, os jornais nos oferecem Vanitas

nos oferece uma realidade evasiva, que, ouvida

pelo contraste estabelecido entre as imagens

ou lida, desaparece, evapora. Analisando essa

de morte e destruição, e os signos de riqueza,

questão da linguagem em Mallarmé, Maurice

poder e juventude. O mais significativo para a

Blanchot nos diz que, com palavras, pode-se

artista, contudo, “é a precariedade da própria

fazer silêncio: “O silêncio só tem tanta digni-

matéria-jornal, o que se deve não apenas à fra-

dade porque é o mais alto grau dessa ausência

gilidade do papel barato – tão sensível à ação da

que é toda a virtude de falar.”12

luz e do tempo – mas também ao compromisso com a palavra informativa que torna o jor-

As intervenções nas folhas de jornais da série

nal tão rapidamente obsoleto. Sua entropia é

Diários públicos operam um espaçamento no

brutal”. Vanitas é a própria matéria do jornal,

discurso jornalístico sem afirmar outra verda-

pois ele traz a atualidade como coisa perecível.

de contraposta a ele. Entre as duas dimensões

11

da palavra, a poética (que não exclui a prosa) e O problema da materialidade discursiva pre-

a cotidiana informacional, entre uma fotogra-

sente em Diários públicos diz respeito não ape-

fia e a ausência produzida pelo apagamento,

88


constitui-se espaço potencial para um discur-

que estão em questão na folha que Danziger

so heterogêneo. Explicita-se um vazio que pode

publica. A apropriação, o deslocamento e a

ser preenchido pela aparição de outra fala, ja-

ressignificação de imagens e textos são proce-

mais nomeada, jamais identificada. Diários

dimentos da poética de Leila Danziger, que se

públicos cria uma continuidade dos discursos

compromete com a multiplicidade caracterís-

que impossibilita a hierarquia entre gêneros e

tica da escritura.

até mesmo entre repertórios, pois tornaram-se semelhantes em sua aparência. Todos os dis-

Seus livros-cadernos Pallaksch Pallaksch criam

cursos são, com efeito, equivalentes em autori-

deslocamentos semelhantes aos dos pássaros

dade, pois a leitura produtiva os iguala. Como

de Rebecca Horn no âmbito da ordem dos dis-

afirmar o gênero dos discursos destes excertos:

cursos. Danziger aposta num espaço nômade

“ninguém evoca o nosso pó”, “vens abaixo em

para os discursos da arte. Utilizando folhas de

chamas”, “a escolha do nome: eis tudo”, “pen-

jornal trabalhadas pelo apagamento e com no-

sar em algo que será esquecido para sempre”,

vas impressões, os livros-cadernos Pallaksch

“não há consistência nenhuma em teu nome”?

Pallaksch deslocam o contexto da notícia, misturando-o àquele da poesia de Paul Celan. Nas

Leila Danziger investe na indeterminação do

folhas de jornal desses livros foi carimbada a

espaço discursivo móvel e fluido, vontade que

frase de Celan: “Para-ninguém-e-nada-estar”,

se explicita na publicação do jornal O Globo de

uma das traduções de um verso do poema “De

25 de setembro de 2010. O interesse pela po-

pé” (Stehen). Outras traduções do mesmo verso

esia resultou no convite do poeta Carlito Aze-

também foram incorporadas a trabalhos da sé-

vedo para o caderno “Prosa e Verso” do jornal.

rie Diários públicos, como “Resistir-para-nin-

Danziger publicou um poema seu e traduziu

guém-e-para-nada”, de Raquel Abi-Sâmara.

outro da artista plástica Rebecca Horn. Em seu

A leitura ativa implica a tradução nos traba­­-

poema, Danziger articula, pelo homônimo,

lhos de Danziger. Ler é deslocar e transferir dis-

o avô de seu filho e Beuys, o artista plástico.

cursos para espaços inusitados. Surgida a par-

13

A artista enfraquece as fronteiras entre espa-

tir da experiência dos campos de extermínios

ços de escritura – a arte, a poesia, o noticiário,

nazista, a poesia de Celan é transferida de seu

a biografia – através do tema do deslocamen-

contexto de origem e continuamente atualiza-

to. A migração e a sobrevivência aparecem na

da na ordem heterogênea dos discursos criada

imagem dos pássaros em bando do poema de

por Diários públicos.

Rebecca Horn, escolhido por Danziger para a tradução. No deslocamento da África ociden-

A leitura, o deslocamento, a tradução e a re-

tal para a costa da América do Sul, apenas um

contextualização operam esse estranho es­paço

décimo do grupo resiste à morte. É verdade

heterogêneo que reúne palavras e imagens de

que o caderno “Prosa e Verso” já é uma publi-

ordens discursivas distintas. O que diferencia

cação especializada no interior do jornal, mas

a arte de outros discursos? A arte é a experiên-

são a mobilidade dos discursos e sua ordem

cia do risco, diria Blanchot, um pôr-se à prova

condicionada pela cultura escrita impressa

diante de algum perigo incomensurável. Mas

14

89


onde está a ameaça, se o mundo parece pleno

Fischer: “Esses depósitos de informações pron-

de diversão e informação? Mesmo quando as

tamente acessíveis eram mantidos porque se

imagens da tv mostram uma Terra ameaçada,

mostravam essenciais à administração ade-

não vemos as ruínas do mundo, a degradação

quada das cidades-estado”.15 Embora a escrita,

social, a deterioração mental, a devastação

em sua longa história, se autonomize e deixe

subjetiva da vida. A falsa alegria sobrepuja de

de ser simples recurso à memória humana,

modo sistêmico e desencoraja o humor irô-

a preocupação em conservar seus objetos em

nico. Como rachar as palavras de ordem e as

lugares reservados ao armazenamento foi uma

imagens de reconhecimento para que ecoe

consequência da nova cultura. A escrita dei-

algum sentido na superfície das coisas? Como

xou de ser mero dispositivo documental, um

fender o imenso muro de imagens para que se

auxiliar mnemotécnico. Tornou-se palavra

faça alguma visibilidade, um saber crítico do

poética, jornalística, entretenimento, dife-

visível? Como encontrar o tempo dos limiares

renciada materialmente por objetos descontí-

em que se produzem os encontros e os emba-

nuos: o livro, o jornal, a revista. Nas folhas de

tes? Quem se pode alcançar, quando não se

Diários públicos, é a potencial continuidade

crê mais no indivíduo como sujeito, quando se

dos discursos que se observa.

sabe que a subjetividade é mera posição final de formações em cruzamento? A hesitação, a

Apagar certos discursos ou imagens por

gagueira, que Paul Celan previu em seu poe-

meio do método extrativo das fitas colan-

ma, é a fala desse embaraço, dessa dificuldade,

tes favorece a materialidade do jornal diário.

dessa perturbação que a arte impõe ao mundo.

O papel torna-se quase transparente, deixando visível seu próprio avesso. Acima de tudo, Diá-

A materialização da palavra efetuada pela es-

rios públicos problematiza o compromisso da

crita na origem de sua invenção visava con-

imprensa jornalística com a palavra informati-

servar nomes, datas, lugares e, consequen-

va, meramente utilitária. Com efeito, apenas a

temente, aumentar a eficiência da memória

superfície ruidosa da redundância informativa

humana. Como reconhecem os historiadores

fica exposta quando o silêncio é imposto ao al-

da escrita e da leitura, mais do que reprodu-

voroço das palavras jornalísticas. Diários públi-

zir o discurso oral preexistente, a escrita em

cos realiza uma leitura corrosiva da cultura in-

seus primórdios deveria reter na memória

formacional da atualidade, problematizando a

informações concretas. Uma vez inventada a

cultura da escrita e a ordem dos discursos por

escrita, surge também a necessidade de con-

ela materializada. Trata-se de uma urgência: é

servar essa materialidade discursiva. Todas as

preciso operar uma leitura que vise não ape-

culturas antigas constituíram esses lugares

nas às palavras ou à sua possível significação.

de acervo para a escrita, fosse ela produzida

Entenda-se por essa necessidade não atenção

em argila, couro, varetas de bambu ou papiro.

direcionada às construções ideológicas por

A cultura da escrita é uma cultura de arqui-

trás do texto, mas aquilo que se encontra em

vo, entendido como dispositivo documental

sua superfície: a regularidade, a coexistência,

auxiliar da memória. Segundo Steven Roger

a singularidade no acúmulo, ou seja, é o dis-

90


curso jornalístico o que está em jogo na série

tinuidades e resistências. Acima de tudo, seu

Diários públicos.

trabalho artístico é crítico do terrorismo dos discursos midiáticos de denegação da reali-

Na esteira da crise da especificidade do lugar

dade ou de ficcionalização e da simulação do

considerado apenas sob as perspectivas física

mundo material. O desaparecimento e a este-

e fenomenológica, o espaço ocupado pela ar-

tização da realidade no mundo atual têm sido

tista Leila Danziger é o da formação discursiva

debatidos por diversos autores, entre os quais

pública. Os trabalhos da série Diários públicos

Jean Baudrillard, o mais feroz delator dessa

produzem uma leitura da cultura informa-

desaparição do real via simulacro. Em A ilusão

cional de modo específico, mas articulado ao

vital, o autor francês afirma que o real está não

todo da palavra impressa. Danziger precipita

apenas morto, como desapareceu. Seu cadáver

uma discussão da memória por intermédio do

não pode nem mesmo ser encontrado.18 Mas,

silêncio, explicitado em O silêncio das sereias

afinal, onde estão os cadáveres produzidos por

(2006). Pelo apagamento da folha do jornal, a

guerras recentes como a do Golfo, por assassi-

artista nos deixa diante da impossibilidade de

natos em massa, como os da Iugoslávia de Slo-

decidir se o azul que vemos é marítimo ou ce-

bodan Milosevic, por atos terroristas, como o

leste. Lembrar de Ulisses através do universo

de 11 de setembro? Os mortos desapareceram?

kafkaniano é admitir o silêncio produtivo da memória. Como afirma Walter Benjamin em

Márcio Selligman-Silva, em “Auschwitz: histó-

seu texto sobre Kafka: “Entre os ancestrais de

ria e memória”, defendendo a incorporação da

Kafka no mundo antigo, os judeus e os chine-

memória e do testemunho no procedimento

ses, que reencontraremos mais tarde, esse an-

historiográfico, aponta essa denegação nas te-

tepassado grego não deve ser esquecido.”

16

ses revisionistas francesas que refutam a existência das câmaras de gás e a aniquilação dos

Nos livros-cadernos da instalação Pallaksch

judeus durante a Segunda Guerra Mundial.19

Pallaksch, após os apagamentos, descobrimos

É preciso lembrar que as barbáries da civiliza-

os estados de abandono, o desamparo infan-

ção produzem mortos e que os cadáveres exis-

til, as catástrofes vividas pelo mundo con-

tem. Ao propor uma leitura poética do mundo

temporâneo. Há algo da barbárie identificada

atual pelos jornais, Leila Danziger parece nos

por Walter Benjamin nos trabalhos de Leila

fazer a seguinte pergunta: onde se encontra

Danziger, ainda que o contexto da artista não

essa realidade que é criada para desaparecer

seja mais o da ruptura de uma tradição monu-

diariamente? A memória que a artista articu-

mental contra a qual Benjamin apostava sua

la em seu trabalho rejeita a noção de tempo

estratégia. A nova barbárie se oporia à “bar-

triunfalista dos monumentos, pois seu esforço

bárie negativa” da cultura burguesa, em que o

é dar a ver outro tempo, é permitir que alguma

tempo é compreendido como continuidade.17

imagem ou voz seja retida nas histórias do coti-

Os apagamentos de Danziger impõem descon-

diano apresentadas pelos jornais.

91


barthes, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 64. Ibid., p. 57. 3 fischer, Steven R. História da leitura. São Paulo: UNESP, 2006, p. 69. 4 Ibid., p. 41. 5 chartier, Roger. Os desafios da escrita. São Paulo: UNESP, 2002, p. 30. 6 Ibid., p. 108–9. 7 chartier, Roger. Os desafios da escrita. Op. cit., p. 109. 8 Ibid., p. 22. 9 danziger, Leila. Diários públicos/Public diaries. Disponível em: http://www. leiladanziger.com/ Acesso em 18 de janeiro de 2012. 10 Esses trípticos foram integrados à série de livros Vanitas (2008–2012). Ver: Danziger, Leila. Todos os nomes da melancolia. Rio de Janeiro: Apicuri, 2012. 11 Cf. neste livro o texto “O jornal e o esquecimento”, p. 29. 12 blanchot, Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 41. 13 danziger, Leila. “Joseph”. In: Três ensaios de fala. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p. 17–8. 14 “No hemisfério sul de nossa terra/ existe um tipo relativamente comum de pássaro migratório/ Eles se repro duzem com tanta rapidez/ que apenas um truque da natureza nos livra de um pesadelo/ A cada ano, em bando/ eles escurecem o céu da África Ocidental/ onde se reúnem para seu passeio sobre o Atlântico/ Ape nas um décimo alcança a costa da América do Sul/ noventa por cento cai exausto sobre o Atlântico/ Suspeita -se que no meio do oceano/ exatamente ali, onde segundo os geólogos/ há milhões de anos/ a África se separou da América do Sul/ esses pássaros começam a voar em círculos/ Procuram sua terra onde ela não existe mais/ Seu instinto – sobrecarregado por milhões de anos – os conduz à morte/ Apenas os insensíveis al cançam o continente”. Horn, Rebecca. “O banho em espiral” (1979), O Globo, 25 de setembro de 2010, cader no “Prosa e Verso”, p. 3. Tradução de Leila Danziger. 15 fischer, Steven R. História da leitura. Op. cit., p. 23. 16 benjamin, Walter. “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 143. 17 muricy, Katia. Alegorias da dialética: imagem e pensamento em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Nau, 2009, p. 200. 18 baudrillard, Jean. A ilusão vital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 68. 19 seligmann-silva, Márcio. “Auschwitz: história e memória”. Disponível em: http://mail.fae.unicamp.br/ ~proposicoes/textos/32-artigos-seligmannm.pdf. Acesso em 18 de janeiro de 2012. 1

2

92


93


Entre o excesso e a exceção: a profanação do jornal Vera Lins

Diários públicos é o título de uma extensa série

sombra. Na primeira série, desse cinza, pela

de trabalhos de Leila Danziger que tensionam

exposição ao sol, ficam algumas imagens

memória e esquecimento em páginas de jor-

amareladas. Em um dos trabalhos, a sombra

nais, subtraídos de seu uso comum como mer-

de um coração sobra de todas as interven-

cadoria descartável e retrabalhados, transfor-

ções, e acima dele, a foto de um grupo de ra-

mados em arte, objetos poéticos.

pazes negros num banco de rua. Em outros

O jornal propicia o esquecimento. Ao mesmo

menino de rua, enrolado num cobertor, um

tempo que oferece a experiência de choque

corpo estendido no chão, com o nome Carlo

com o terror da catástrofe a que nos expõe

(lembrando o encontro do Grupo dos Oito em

diariamente, sua linguagem induz ao esque-

Gênova, Itália, em julho de 20011) e, ainda,

cimento, a uma passagem rápida sobre o que

rapazes mascarados de um motim da Febem

nos é apresentado como faits divers. Mas aqui

apelam ao não esquecimento do que é cena

o processo é outro. A artista transforma, com

cotidiana das ruas. A essas imagens foi ca-

trabalhos da série, sucedem-se a foto de um

seus gestos, esses papéis numa topologia, um

rimbado como manchete, em vermelho, este

lugar em que algo acontece. Os jornais pas-

verso de Paul Celan: “Para-ninguém-e-nada-

sam por um processo lento, que dura meses,

-estar”, que fala, pela negação, duplamente,

em que são descascados, expostos ao sol, do-

do exílio do artista e do abandono da vida nua

brados e carimbados. Uma operação delicada

sem dimensão política, apresentada nas fotos.

é, no entanto, uma intervenção que expõe cer-

E da violência anônima e quotidiana sobre

tas questões urgentes como feridas abertas.

essa vida nua, “uma vida que não merece ser

O que lembrar e o que esquecer? E ainda obri-

vivida.”

ga os jornais a durar, a sofrer a ação do tempo e a se conservarem, transformados.

A linguagem da comunicação é raspada, neutralizada e a linguagem da poesia toma lugar.

As notícias ficam latentes – as letras, raspada

Renasce de um não. Uma utopia? No entanto

sua tinta e a das imagens, permanecem como

esse verso é vermelho, também ferida.

94


Fica visível com essas imagens amareladas pela

te, é violentada, se transforma em ruína e outros

luz natural, à qual a folha do jornal é exposta

sentidos têm lugar, são como que liberados.

por meses, o estado de exceção que se tornou a regra. Como numa decantação, vem à tona o

A linguagem reportagem fica na sombra, seu

real. O campo, não só como história, mas como

barulho é parcialmente silenciado e sobre ela

condição inumana atual, se torna presente na

cintilam outras palavras que aparecem nas do-

cidade, em que os cidadãos se transformaram

bras, compondo um ritmo como pautas musi-

em puros corpos biológicos, abandonados a

cais, ora vazias, ora com uma ou outra palavra

uma violência mais eficaz porque anônima

que sobrou, resíduos. Em outra série, o campo

e quotidiana. É dessa perspectiva do campo,

é relembrado pelas frases de Marguerite Du-

como a entende Agamben, que se trata nessas

ras em Hiroshima meu amor, escritas em fran-

imagens de vida nua, em que público e priva-

cês, num vermelho gritante. Trazem também

do se confundem. Os corpos negros margina-

a questão do nome, pensada por Benjamin.

lizados trazem à memória a escravidão não

Guerra, amor e linguagem convivem e tensio-

2

resolvida com a Abolição, que continua de

nam: são carimbadas frases em francês, como

outra forma pela fabricação massiva da misé-

“Je n’ai plus qu’une seule mémoire, ton nom”.

ria com a industrialização do país. Progresso

As páginas dobradas agora transbordam de

e destruição caminham juntos. O estado de

sentidos nesse suporte que, se nas vanguardas,

exceção, que “atingiu hoje seu máximo des-

como colagem, se sobrepunha à tela, agora vi-

dobramento planetário”, é o resultado de um

rou a própria tela onde algo tem lugar, numa

crescimento ilimitado da atividade industrial.

nova aliança entre pensamento e poesia. O co-

A acumulação desenfreada gera um exceden-

ração, que sobrara meio apagado na primeira

te que tem de ser despendido ou explode em

imagem, fala de excesso, tumulto, energia ma-

guerra. É, portanto, do lado da produção exu-

triz de tudo.

berante que vem o conflito armado em que se volatilizam riquezas fabulosas. Bataille3 afirma

Outra série tem mais cor, os diários de Ana

que é necessário dar ao crescimento de ener-

Cristina César são convocados num verso que

gia produtora outro fim que não o guerreiro e

fala da memória: “Eu era menina e já escrevia

criar uma paz dinâmica. Com isso defendeu o

memórias, envelhecida.”

Plano Marshall, por promover uma repartição menos desigual dos recursos e uma circulação

E outra poeta, Orides Fontela, volta a falar do

de riquezas. Todo sistema que dispõe de certa

nome: “A escolha do nome, eis tudo.” A ques-

quantidade de energia deve despendê-la.

tão da nomeação entra em cena, é pensada. Como dar nome, que nome dar ao que se vê e

Aqui o jornal, que é lido como oração matinal do

ao que se sente. Uma reflexão sobre a lingua-

homem moderno, é profanado enquanto pro-

gem e os nomes a partir de Benjamin se ence-

duto do Estado espetacular integrado (Debord),

na. A linguagem da comunicação por meio da

lhe é dado um uso que não é o comum. A merca-

qual se informa é substituída pela linguagem

doria do mundo do espetáculo, do qual faz par-

poética, em que se fala com a linguagem, em

95


que ela se abisma e não comunica nenhum

da escrita, a contenção do gesto. O carimbo em

conteúdo, apenas ela mesma em movimento.

nossa recente história da arte foi usado num

Para Benjamin, o homem, ao nomear, não diz

momento de repressão política por Carmela

alguma coisa, mas se diz com a linguagem, se

Gross, que carimbava a pincelada.

fala. A fala de coisas é burguesa, como a linguagem do jornal. Mas no nome a linguagem

O jornal não é mais coisa com finalidade uti-

se comunica. O nome é aquilo pelo qual nada

litária, tornando-se objeto poético, finalidade

se comunica mais, porém pelo qual a lingua-

sem fim. Tornou-se de novo o excesso de onde

gem se comunica ela mesma e de modo abso-

tudo provém, anunciado na primeira imagem

luto. Depois da queda, a palavra perdeu sua

pelo coração esmaecido que diz do tumulto,

ligação com o conhecimento, agora deve co-

da energia que somos, que se prodigaliza sem

municar qualquer coisa: o nome virou meio;

razão nesses gestos movidos pelo desejo que

a linguagem, tagarelice. O nome pode recupe-

se tem de interferir, de fazer arte. Segundo

rar sua força na linguagem da poesia, da arte,

Bataille, a energia solar que somos é uma ener-

quando é não mais apenas comunicação do

gia que se perde, se prodigaliza sem razão.

comunicável, mas ao mesmo tempo símbolo

A arte é esse dispêndio sem outra razão que um

do não comunicável.

desejo que se tem e com isso desfaz limites impostos pela regra do estado de exceção. Como

Todo o trabalho da artista com o jornal vai em

o pensamento, é uma via negativa, que vai des-

direção a silenciar a tagarelice e dar forma a

fazendo o estabelecido – aqui, a ideologia que

esse não comunicável. E citando Schiller com

conforma o jornal, sua informação.

Benjamin, ela atualiza o que dizia o filósofo 4

alemão em Cartas sobre a educação estética:

Tanto Debord como Agamben pensam o Es-

o verdadeiro segredo do artista consiste em

tado; o espetacular e aquele em que a exceção

destruir a matéria pela forma. Aqui se trata de

se tornou a regra se sobrepõem. Como fica a

uma destruição da matéria jornal, que vai se

arte em relação à possibilidade de mudança?

descamando e se transformando pelas dobras

Schiller, contemporâneo da Revolução Fran-

numa pauta musical. E destruição da lingua-

cesa, também pensa o Estado e a liberdade.

gem reportagem, a que se referia Mallarmé,

E define como “carência nas almas refinadas”

numa tentativa de recuperar a faculdade de

o Estado estético, que produziria uma cultura

nomeação. Várias línguas estão presentes, o

que tornaria impossível qualquer abuso, que

português, o francês de Duras e o espanhol

daria liberdade por intermédio da liberdade.

de Borges. A tensão entre memória e esqueci-

Nele também o excesso, como imaginação e

mento se dá nas frases de Funes, o memorioso,

abundância, profusão de forças, levaria ao jogo

dispersas nessas pautas de um dos trabalhos:

estético, à busca de uma forma livre, à constru-

“Mi sueños son como la vigilia de ustedes”. Em

ção de uma verdadeira liberdade política.

outro, é a palavra esquecer carimbada entre vazios. E a ideia do carimbo, que substitui o ma-

Mas o que se vive, a partir do momento em que

nuscrito, mantém criticamente a mecanização

Bataille escreve, é a ferida aberta e o dilacera-

96


mento. Para Bataille, viver o excesso é viver a

A imaginação dá o salto em direção ao jogo es-

superabundância jamais controlável, é querer

tético, à busca de uma forma livre. No impulso

o impossível, sem tarefa a completar, sem fun-

lúdico que unifica impulso sensível e impulso

ção a exercer. A arte, tarefa cega, é a finalidade

formal, teríamos a forma viva.

sem fim kantiana, que está também em Schiller, ao fugir do mundo utilitário pelo desinteres-

Essa forma viva alcançada pela arte pode ser a

se. O conhecimento é acesso ao desconhecido.

imagem dialética de Benjamin, carregada de

Mas esse movimento desemboca numa recusa

tempo até explodir, uma representação dila-

a toda solução – o pensamento radical pós-

cerada, o que vemos nos vazios, nos silêncios,

-Segunda Guerra desemboca no silêncio e na

nas fotos amareladas que tensionam com as

ferida, se dilacera, como o que se vê num poeta

palavras em Diários públicos. O que Bataille vê,

como Paul Celan, trazido pelos diários da artis-

quando diz que o que procuramos é essa som-

ta. Como nos trabalhos vermelhos com mercu-

bra que não saberemos apreender – a poesia,

rocromo, que se usava para curar feridas – refe-

a profundidade ou a intimidade da paixão,

rência num texto da artista que acompanha os

mas que nos enganamos porque queremos

jornais, a ferida não se fecha.

prendê-la.

O estado estético sobrevive como idéia regula-

Agamben afirma em Moyens sans fins que, para

dora (nem em Schiller era algo imediatamente

ele, é inutilizável o pensamento de Bataille

possível) e aparece na leitura que Marcuse faz,

com seus conceitos de soberania e sagrado:

em Eros e civilização, do pensamento do filósofo. Discutindo Freud, para Marcuse, o princí-

Ter considerado esta vida nua separada

pio de vida como Eros se opõe a mais repressão

de sua forma, na sua objeção, como

do Estado industrial moderno e permite imagi-

um princípio superior – a soberania

nar outro tipo de civilização com outro tipo de

ou o sagrado –, constitui os limites do

produtividade.

pensamento de Bataille, que o tornam inutilizável para nós.6

Schiller, em Cartas sobre a educação estética,5 critica o espírito de negócio, pergunta onde re-

Agamben nega a separação vida nua/vida po-

side a causa de ainda sermos bárbaros e afirma

lítica. Como Schiller, a vida, matéria, só se

que o Estado continua estranho aos seus cida-

torna livre quando adquire forma e, então, se

dãos. Para ele, deve ser suprimida a cisão entre

torna vida orgânica. É necessária a passagem

sensibilidade e razão, para que o Estado seja

da vida cega para a forma, isto é, da sensação

modificado, e o caminho para o intelecto pre-

para o pensamento, o que se dá no estado es-

cisa ser aberto pelo coração – portanto, a for-

tético: no estado físico o homem apenas sofre

mação da sensibilidade é a necessidade mais

o poder da natureza, liberta-se desse poder no

premente da época. Embora afirme o belo

estado estético e o domina no estado moral.

como equilíbrio, diz que é apenas uma ideia

Para Agamben, o pensamento é forma de vida,

que jamais pode ser alcançada pela realidade.

vida indissociável de sua forma. Schiller situa

97


o estético como o caminho necessário para re-

aplicar o direito.7 É a partir dessa zona opaca

solver o problema político – a maior de todas as

onde público e privado se confundem que de-

obras de arte seria a constituição de uma verda-

vemos partir.

deira liberdade política. Embora iluminador, Schiller liga arte e pensamento, há certa pure-

O que o trabalho da artista faz, interferindo

za estetizante na sua filosofia, talvez marca do

no jornal, nesse produto do estado de exce-

momento histórico.

ção, que é também o estado espetacular integrado, denunciado por Debord. No próprio

Agamben, a partir de uma nova situação eu-

título as palavras se juntam e se embaralham,

ropeia e global, em que o campo se tornou a

intimidade e espaço público, diários públi-

matriz secreta do espaço político, propõe re-

cos, e a experiência que seus gestos tornam

pensar as ideias de Estado, nação e território,

presente é a da linguagem. A imaginação

para o que traz a figura do refugiado e o con-

aqui dá o salto em direção ao jogo estético,

ceito de povo. Diz que é necessário desconectar

como diria Schiller, em busca de uma forma

a linguagem da gramática e o povo do Estado.

livre. Mas essa forma se retorce num dilace-

Os conceitos de soberania e poder constituinte

ramento, é crítica. Nisso encontra a noção de

devem ser abandonados ou totalmente repen-

excesso de Bataille.

sados. A realidade que se vive é a de um estado policial supranacional. O estado de exceção é

Mas se, para Bataille, a filosofia é silêncio, recu-

hoje planetário: o aspecto normativo do direi-

sa de toda solução, para Agamben, ela é lingua-

to pode ser eliminado e contestado por uma

gem, em que pensamento e poesia se articu-

violência governamental que ignora o direito

lam. E o pensamento que advém, como gesto

internacional e promove o estado de exceção

em que se encontram vida e arte, tem uma po-

permanente, ainda, no entanto, pretendendo

tência política.

Publicado em Outra Travessia. Revista de Literatura, n. 5: a exceção e o excesso (Agamben e Bataille), Santa Catarina, 2005, p. 141–8. 1 O encontro ocorreu entre os dias 19 e 22 de julho de 2001. O G8 era constituido por Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Canadá e a Rússia. Em 20 de julho, violentos embates entre manifes tantes de movimentos antiglobalização e a polícia italiana levaram à morte do estudante e ativista Carlo Giu liani (1978–2001). 2 agamben, Giorgio. Moyens sans fins. Notes sur la politique. Paris: Rivages, 1995. 3 bataille, Georges. La part maudite. Oeuvres complètes, vii. Paris: Gallimard, 1976. 4 benjamin, Walter. “Über Sprache überhaupt und über die Sprach des Menschen”. In: Angelus Novus. Frankfurt: Suhrkamp, 1988. 5 schiller, Friedrich. A educação estética do homem, numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras, 1990. Tradução de Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. 6 agamben, Giorgio. Moyens sans fins. Notes sur la politique. Op. cit., p. 17. 7 agamben. Giogio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. Tradução de Iraci Poletti.

98


99


Lembrar, esquecer, sonhar Sheila Cabo Geraldo

O personagem Irineu Funes, do conto de Jorge

ração dessa experiência como memória. Entre-

Luis Borges “Funes, o memorioso”, foi tam-

tanto os jornais dobrados e desbotados, quase

bém chamado de “cronométrico Funes” pois,

apagados, nos indicam ainda, paradoxalmente,

sem consultar o relógio, sabia sempre a hora

uma espécie de limite da permanência dos fa-

certa, revelando uma assombrosa percepção

tos no mundo liso do vidro e do aço, como expli-

intuitiva do tempo. Antes mesmo da queda

cou Walter Benjamin,4 onde os rastros não se

1

que sofre de um cavalo, quando perde todos

fixam. Os jornais, por si efêmeros, impossibili-

os movimentos do corpo, além dessa especial

tados de serem lidos pela ação do tempo e pela

percepção temporal, possuía já uma enorme

disposição, tanto desafiam o mundo vivido en-

capacidade para memorizar nomes próprios.

quanto permanência quanto repelem, mesmo

Mas foi quando se viu totalmente impossibili-

acumulados, a experiência, jogando-nos para

tado de se movimentar, que Funes percebeu o

uma espécie de nostalgia das relações perdidas.

quanto antes era um desmemoriado. Como es-

E a série parece indicar, também e mais clara-

creve Borges: “Ao cair, perdeu o conhecimento;

mente, o que Benjamin considerou a “liber-

quando o recobrou, o presente era quase into-

dade de expor sua pobreza a tal ponto que dali

lerável de tão rico e tão nítido. [...] Agora sua

possa resultar algo.”5 Assim é que por sobre as

percepção e sua memória eram infalíveis.”2

obsessivas camadas de jornais inelegíveis palpitam, carimbadas pela artista, palavras soltas,

A série de trabalhos que Leila Danziger chamou

frases, recordações que, em imagens poéticas,

Para Irineu Funes (2003–4), com jornais diários

no confronto com os jornais, corresponde-

ordenados em superposição, faz emergirem no

riam ao algo benjaminiano, ou ao “ainda não

fato artístico, como uma densidade, as cama-

acontecido” dos “sonhos acordados”, de Ernst

das de sedimentação de um presente intolerá-

Bloch.6 Não é por outro motivo que Leila lança

vel e nítido contido nos textos e fotos jornalís-

ali a frase de Funes “meus sonhos são como a

ticos, apontando não só para certo desejo de

vigília de vocês”,7 mas lança também, de ma-

transformação do presente vivido em acúmulo,

neira reveladora, o trecho “Minha memória,

e assim em experiência, como para a recupe-

senhor, é como um despejadouro de lixo.”8

3

100


O processo de memória, como escreveu o histo-

também viveu por algum tempo, Leila, quase

riador Jacques Le Goff, consiste não só na or-

como no labirinto de Benjamin, lança na leitu-

9

denação de vestígios, como na releitura desses

ra e na escrita imagens do exercício de lembrar

vestígios. Por entre os jornais de Leila Danziger

e de esquecer, não só de suas lembranças e

podem ser entrevistos, como insistência, não

esquecimentos pessoais, como as dos Danzi-

só os rastros das vivências cotidianas acumula-

ger, mortos na Segunda Grande Guerra,12 mas

das, mas também esses resquícios de palavras

também imagens de uma memória involuntá-

perdidas, sombras de frases esquecidas, que

ria, coletiva e imprevisível, que, como escreveu

interferem tanto na formação dos sonhos diur-

Jeanne-Marie Gagnebin, “submete a soberania

nos como na recuperação mnemônica, em um

do sujeito consciente à temível perda da dis-

“murmúrio de associações”, como escreveu a

persão.”13 É revelador como a ação de arrancar

própria artista.

o texto e deixar somente a imagem fotográfica acaba por alargar o poder dessas imagens, fa-

Na série Diários públicos (2001–11), também

zendo com que exponham sua carga de his-

com jornais, assim como em Para Irineu Fu-

tórias, muitas vezes vividas por outros, como

nes, apareciam carimbadas as palavras lem-

a de Carlo Giuliani, morto em conflito com a

brar e esquecer. Nas folhas de jornal dos diá-

polícia em manifestação contra a reunião de

rios, mesmo com o processo de apagamento

cúpula do Grupo dos Oito, em Gênova, no ano

voluntário, que arranca com fita adesiva os

de 2001; ou a imagem dos jovens em rebelião

textos, permanecem as imagens fotográficas

no reformatório de São Paulo, também da sé-

como relampejos de lembranças em meio às

rie Diários públicos, que dialoga com o carim-

falhas que o tempo impõe como esquecimen-

bo “Para-ninguém-e-nada-estar”, fragmento

to. Seguindo a herança de Proust e de Freud,

retirado de uma poesia do judeu romeno Paul

Walter Benjamin, quando escreve Infância em

Celan (1920–70), autor do antológico poema-

Berlim,10 aposta na formulação de um concei-

-testemunho “Fuga da morte” [Todesfuge], que

to de sujeito que, ultrapassando a consciência

traz à tona, como linguagem balbuciada, des-

de si, abre-se para as dimensões involuntárias

construída e ofegante, o horror experimentado

e inconscientes a operar, a um só tempo, na

dos campos de concentração nazistas. É pen-

lembrança e no esquecimento. Benjamin de-

sando em Celan que Leila carimba junto às fo-

senvolve nesse texto, pela imagem do labirin-

tos-de-lembrança-esquecimentos, registros de

to, as relações que o sujeito estabelece consigo

violência diária como traumas – quando a vida

mesmo nos caminhos do amor, das viagens, da

e a palavra já não são possíveis senão nos limi-

leitura e da escrita. Evoca, assim, lembranças

tes –, frases e poesias quebradas, como inscri-

de sua infância sem fazer do texto uma auto-

ção germinal, para que os rastros, no confron-

11

biografia. Da mesma maneira, ao trabalhar

to, se façam presentes e atuantes, ao menos na

com seu arquivo de jornais recolhidos no Rio

recuperação da memória e da arte.

de Janeiro, a cidade onde vive, mas também nas cidades próximas, como São Paulo, ou nas

Nos trabalhos da artista, como na enciclopédia

distantes, como Tel Aviv ou Berlim, em que

chinesa14 descrita por Borges, a memória vai

101


além da organização em sistemas de códigos

cruzam memórias do feminino e a história

visuais ou linguísticos. Os vestígios e rastros

de uma época, carregada dos esgarçamentos

sofrem uma taxonomia em que predomina

de sua geração. Ana Cristina, como Benjamin

a “vizinhança súbita”. Mas se em Borges, ao

em Infância em Berlim, faz uma renúncia pe-

contrário da mesa dos encontros insólitos de

remptória à autoridade do autor, permitin-

Lautréamont, o espaço comum de vizinhança

do a eclosão de uma narrativa, tal qual Leila,

se acha arruinado, há que se considerar nes-

de entrelaçamentos de lembranças pessoais

sas montagens de jornais, poemas e frases da

e recordações construídas, uma poesia-prosa

série Para Irineu Funes a força impactante da

que é, a um mesmo tempo, narrativa do su-

cor, que pode parecer, tal qual o fio condutor

jeito e ficção: “fui mulher vulgar/ meia-bruxa,

15

do abecedário de Borges, a tábua de salvação

meia-fera/ risinho modernista/ arranhado na

ou o lugar onde se encontram o guarda-chuva

garganta,/ malandra, bicha,/ bem viada, vân-

e a máquina de costura. A seleção e ordena-

dala,/ talvez maquiavélica/ [...] porque inteli-

ção de cores em páginas amarelas, vermelhas

gente me punha/ logo rubra,/ ou ao contrário,/

16

e verdes, associadas a fragmentos do texto de

cara/ pálida que desconhece/ o próprio cor-

Borges ou a palavras soltas, funcionam como

-de-rosa/”20

momentos de fantasia, de que brotam efêmeros e transitórios sentidos, como aparecem em

Sobre muitos jornais manchados de imagens

Infância em Berlim. São os murmúrios da cor

de propaganda cor-de-rosa, como uma ale-

na vizinhança da palavra, que se dobram em

goria do feminino que titubeia, mas também

configurações de memória. “Em nosso jardim

com o “risinho modernista” de Ana Cristina,

havia um pavilhão abandonado e carcomido.

Leila Danziger, com a urgência dos que veem

Gostava dele por causa de suas janelas colori-

perderem-se as experiências estéticas, assim

das. Tingia-me de acordo com a paisagem da

como as experiências de vida, ambiguamente

janela”, escreveu Benjamin, relacionando frag-

absorve e desdenha dos campos de cor da pin-

mentos de momentos passados e utópicos.

tura abstrata, acionando uma pós-utópica e de-

17

18

“Perdia-me nas cores, fosse nos céus, numa

sencantada La vie en rose.

joia, num livro”. Em sua teoria da cor, escreve ainda: “[...] a cor pura é o meio da fantasia, a

Leila Danziger carimba a frase de Ana Cristina:

pátria de nuvens da criança que brinca, não é o

“Eu era menina e já escrevia memórias envelhe-

cânone rigoroso do artista que constrói.”

19

cidas.”21 “O tempo”, escreveu Ana Cristina nesse mesmo texto, “se fazia ao contrário. De noi-

Nos trabalhos com jornais dobrados e super-

te não dormia [...] As mãos se interrompiam à

postos que Leila dedicou à poeta e ensaísta

meia-noite, quando chegava o anjo mais escu-

Ana Cristina Cesar (série Para Ana C. Cesar,

ro do silêncio.” Leila, como Ana e a menina das

2004–7), a cor desdobra ainda, como fantasia

lembranças, dos esquecimentos e das fanta-

e pátria de nuvens, ficções em que se entre-

sias, já não vestia cor-de-rosa.

102


borges, Jorge Luis. “Funes, o memorioso”. In: Ficções. São Paulo: Globo, 2001, p. 121. Ibid., p. 124. 3 Depois de analisar o conceito de experiência em Dilthey e Bergson, Benjamin explica que, sendo a experiência um traço de tradição, tanto coletiva quanto particular, corresponderia, portanto, não a fatos acumulados na lembrança – um processo mais facilmente identificado com a vivência –, mas a fatos ou dados que confluem na memória. Cf. geraldo, Sheila Cabo. “Apague as pegadas: o inconsciente ótico e a montagem”. In: oliveira, Luiz Sérgio de & d’angelo, Martha (orgs.). Walter Benjamin: arte e experiência. Rio de Janeiro/Niterói: nau/ eduff, 2009. 4 benjamin, Walter. “Experiência e pobreza”. In: Obras escolhidas I. Magia, e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. 5 Ibid. 6 bloch, Ernst. L’espirit de l’utopie. Paris: Gallimard, 1977. 7 borges, Jorge Luis. “Funes, o memorioso”. Op. cit., p. 114. 8 Ibid. 9 le goff, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2003, p. 420. 10 benjamin, Walter. “Infância em Berlin”. In: Obras escolhidas ii. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987. 11 citado em gagnebin, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1999. 12 A obra Nomes próprios é composta de 76 gravuras em metal e um conjunto de 12 livros, feitos a partir de imagens extraídas de jornais alemães, reproduzidas em serigrafia, que listam nomes dos judeus alemães Danziger desaparecidos nos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial. 13 gagnebin, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. Op. cit. 14 citado em foucault, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 15 Ibid. 16 Ibid. 17 benjamin, Walter. “Infância em Berlin”. Op. cit. 18 Cf. bock, Wolfgang. “Fragmentos de uma teoria da cor”. In: barrenechea, Miguel Angel de (org.). As dobras da memória. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. 19 Ibid. 20 cesar, Ana Cristina. “Samba-canção”. In: A teus pés. São Paulo: Ática, 1999, p. 72. 21 cesar, Ana Cristina. “Na outra noite no meio-fio”. In: A teus pés. Op. cit., p. 111. 1 2

103


104


O que desaparece, o que resiste: para pensar o apagamento Marina Bortoluz Polidoro

Nas artes visuais, operações que desgastam a

tos que dão conta de fazer durar a experiência

imagem também podem integrar a sua cons-

por vias diversas.

trução: fazer e desfazer como parte de um mesmo processo. Seguindo tal ponto de vis-

Sobre fazer e desfazer

ta, este texto busca investigar o apagamento,

A ação de apagar refere-se diretamente a uma

considerando que tal operação pode ter re-

ação anterior, a que provocou a inscrição – ou

levância equivalente à de que está imbuída a

seja, o apagamento está ligado a uma tentativa

inscrição. Essa questão pode ser encontrada

de desfazer algo. Nessa perspectiva, podemos

no trabalho de Leila Danziger, bem como, ainda

invocar aqui uma das mais famosas rotinas de

que de formas distintas, nos de Cy Twombly e

fazer e desfazer: a de Penélope. Ela diz que pre-

Robert Rauschenberg.

cisa tecer uma mortalha para o herói Laertes, seu sogro, e que não pode casar-se novamente

Em sua pesquisa poética, Leila Danziger ten-

antes de terminá-la; diz que precisa dedicar-se

siona memória e esquecimento, sendo muito

ao tear antes que os fios corrompam-se. Mas

forte a sua relação com a poesia. Mais especi-

isso não era verdade, Penélope enganou a to-

ficamente, na série Diários públicos, a artista

dos os seus pretendentes: “Passava os dias ata-

esvazia o conteúdo da página do jornal: com

refada. Mas à noite, à luz de tochas, desfiava o

auxílio de fita adesiva, arranca textos e ima-

tecido. Trapaça de três anos!” Trapaceou por-

gens. Sobre as páginas apagadas, Danziger

que não havia desistido, porque ainda espera-

carimba trechos de poemas como dedica-

va o retorno de Ulisses.

tórias e comentários acerca dos escombros das notícias. Desse fazer a artista apresenta

Assim, “versadíssima em astúcias”, ao desfiar

as próprias folhas de jornal avulsas ou enca-

o tecido, subverte a passagem do tempo e, en-

dernadas, formando livros; as fitas utilizadas

quanto pode parecer que perde tempo, está

na remoção dos textos e que agora passam a

na verdade trabalhando para ganhar mais.

contê-los; e folhas de jornal transformadas

Com a história de Penélope, a aparente perda

em múltiplos, reeditadas. São desdobramen-

de tempo que existe nas ações de desfazer,

105


nas tentativas de apagamento, ganha uma di-

Sobre o apagamento

mensão positiva.

Em 1953, o então jovem artista Robert Raus-

Por outro lado, nos aproximamos do conceito

Kooning, com a intenção de apagá-lo. Este não

de palimpsesto, que desfaz algo para reapro-

só aceita a proposta, como decide entregar-lhe

veitar o seu suporte: se tomado literalmente,

um desenho que fosse realmente difícil de apa-

refere-se aos pergaminhos que, por seu alto

gar. E o foi de fato, visto que o pequeno desenho

custo e escassez, eram reutilizados depois da

exigiu um mês de trabalho para se aproximar

raspagem do texto preexistente. Nessa direção,

da folha em branco. Assim, por meio da subtra-

como em um manuscrito onde se descobrem

ção, Rauschenberg produziu um novo desenho,

escritas anteriores, diversos trabalhos de arte

Erased de Kooning drawing. Ao apropriar-se de

contemporânea não se oferecem por inteiro a

um desenho para apagá-lo, não apaga o fato de

um único olhar, possibilitando a descoberta de

este ser um desenho. Antes disso, desenha um

outros elementos por trás da superfície. Bar-

novo, com significado completamente outro.

chenberg solicita um desenho para Willem de

thes identifica essa característica no desenho de Cy Twombly:

Segundo o próprio Rauschenberg, ele já havia realizado alguns trabalhos apagando o próprio

[...] isso apaga-se pouco a pouco, esbate-se,

desenho, mas não tinha ficado satisfeito. Reco-

conservando a delicada sujidade da

nheceu que um desenho apagado apenas faria

apagadela da borracha: a mão traçou

sentido, se pudesse ser começado a partir de

qualquer coisa como uma flor e depois

uma obra de arte importante. A ação ganharia

pôs-se a divagar sobre este traço; a flor

maior relevância ao apagar o gesto de outro ar-

foi escrita, em seguida desescrita, mas os

tista, de um artista cuja trajetória já possuísse

dois movimentos ficam vagamente sobre-

reconhecimento. A escolha do artista de quem

imprimidos. É um palimpsesto perverso:

apropriaria o desenho, portanto, deve-se ao

três textos [...] encontram-se reunidos,

fato de Willem de Kooning ser a grande refe-

cada um tentando apagar os outros, mas,

rência do expressionismo abstrato. Quase uma

dir-se-ia, com o único fim de dar a ler este

homenagem, o desenho apagado representa,

apagamento.

junto com outros de seus trabalhos, “respostas à questão ‘Como prosseguir?’, uma vez que o

Na obra de Twombly, é possível ver a convivên-

limite da expressão individual já fora atingido

cia entre o que aparece e o que desaparece, a

e, além do mais, codificado em um sistema.”

inscrição e o apagamento. Qualidades mais ligadas à negação do que à afirmação do objeto

Compartilhando o procedimento de apaga-

do desenho. Destaca-se o final dessa citação,

mento de algo apropriado de autoria de outro,

em que Barthes nos indica a importância do

porém em investigações distantes, Leila Dan-

gesto: talvez o mais significativo a ser visto no

ziger desenvolve, desde 2002, a série de traba-

apagamento não seja o vazio deixado ou a nova

lhos intitulados Diários públicos. Ela apropria-

imagem que surge, mas a evidência do gesto.

-se do jornal para, nas suas próprias palavras,

106


“interferir na temporalidade linear dos jornais, conferir-lhes potência poética, transformá-los

Meireles, Drummond, entre outros poetas, ou da própria artista.

em pequenos monumentos.”

Sobre o que resiste A artista retira o conteúdo da página do jornal;

É essa a ineficiência que se aponta no apaga-

usa fita adesiva para extrair os textos e ima-

mento, como um procedimento que, suposta-

gens, que são transferidos para a fita. Seria a

mente, se propõe a esvaziar um suporte: a ar-

leitura levada ao extremo? Ler pode ser arran-

tista esforça-se para retirar o conteúdo que ali

car, transferir? Luiz Cláudio da Costa percebe

estava inscrito, colocado e construído por ações

uma leitura que questiona o dispositivo do jor-

anteriormente realizadas, por si mesmo ou por

nal e o envelhecimento acelerado da informa-

outros autores. Porém acaba preenchendo

ção. Ora, “é imperioso ‘silenciar a tagarelice’

esse espaço com os vestígios de uma nova ação.

da informação para existir poesia.” Sobre os

Rauschenberg não consegue retornar à página

escombros da página, a artista carimba versos

vazia, à página “em branco”. Tampouco é isso

de poemas ou dedicatórias, seguindo o tom do

o que Danziger busca. As operações empreen-

conteúdo que elas abrigavam anteriormente:

didas para realizar o apagamento e suprimir as

de tragédias naturais e catástrofes do dia a dia

suas inscrições acabam também por agredir o

a pequenos encantamentos melancólicos.

papel, alterar sua superfície, produzem novas marcas que se encarregam de denunciar essa

Apesar da ação – e da agressão, porque o pa-

tentativa. O ato de apagar pode pretender su-

pel já frágil do jornal tende a tornar-se uma

primir, fazer desaparecer, porém consegue

pele ainda mais fina devido à violência do

apenas desvanecer, desbotar, abrandar.

procedimento utilizado –, mantém-se a página enquanto tal, seu formato é preservado.

O vazio não é alcançado, nem parece ser o ob-

E mantêm-se os vestígios: desde uma imagem

jetivo real. Consoante isso, pode-se recorrer a

que foi selecionada para ser conservada ao

Georges Perec, que faz uma primorosa descri-

conteúdo do verso, que transparece como uma

ção de uma sala vazia, onde “resta o que resta

visão desbotada daquilo que poderia ter sido a

quando não resta nada” – e o quanto há para se

página sobre/com a qual foi construída a obra.

descrever nessa sala. Assim, por fim, apesar de

Assim, a estrutura das notícias permanece, ain-

reduzir a quantidade de imagens e grafismos

da que apenas latente, enquanto o espaço do

presentes no trabalho, o ato de apagar acrescen-

jornal é reinvestido de sentido: sobre os vestí-

ta novos conteúdos. A obra permanece impreg-

gios da matéria jornalística impõe-se a poesia

nada da memória e dos vestígios de cada uma

carimbada, fragmentos de Paul Celan, Cecília

dessas ações, da inscrição e do apagamento.

Texto apresentado no Congresso “Criadores sobre outras obras”, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, Portugal, abril de 2011.

107


108


Entre a areia e o mar Raphael Fonseca

The sea is calm Through the video camera Like a dead light bulb In a bucket of water.1

Em junho de 2011, Leila Danziger apresentou,

zado para um canal israelense de televisão e

em Tel Aviv, a exposição O que desaparece, o

arquivado 32 anos após sua transmissão, o do-

que resiste, fruto de sua pesquisa de pós-dou-

cumentário seria finalmente exibido na tela de

torado junto à Bezalel Academy of Arts and

uma sala de cinema.

Design Jerusalem, em Israel. Instalações, objetos e projeções em vídeo ocupavam o espa-

A matéria versa sobre o esforço em recuperar

ço, e demonstravam o desdobramento de sua

uma cópia integral do filme, já que a única dis-

pesquisa artística Diários públicos, desenvolvi-

ponível estava em vhs, “já amarelada” e sem

da no Brasil a partir da apropriação de jornais.

que os três minutos iniciais, além dos créditos

Entre os cinco novos vídeos apresentados, pa-

finais, estivessem presentes enquanto imagem.

rece justo refletir sobre aquele que intitulou a

O filme se refere à figura de Adolf Eichmann,

mostra.

tenente-coronel da Alemanha nazista, capturado e julgado publicamente em 1962. Protegido

Jornais sobrepostos e em movimento. O voo

por um vidro à prova de balas, seu julgamento,

de algumas páginas revela que a pilha de pa-

em que diversas vítimas do antissemitismo na-

pel está colocada sobre a areia. Devido ao

zista depuseram à sua frente, foi transmitido

modo como sopra o vento, é lógico concluir

ao vivo por diversas televisões internacionais.

que a cena se passa em uma praia. Enquanto

Esse fato e sua condenação à morte tornaram

isso, no campo do áudio, escutamos, de modo

o caso único no âmbito da justiça israelense.

tímido, o som das ações da artista, que, com

Devido à proximidade dos 50 anos passados

um método extrativo, apaga, anula imagens

desse episódio, uma das filhas de Perlov 2 parte

desses mesmos jornais ainda intactos. O que

em busca da cópia original em 16mm do filme.

líamos na página que voou? Dusting off a documentary [Tirando a poeira de um documen-

A cópia é encontrada nos arquivos da televisão

tário], uma matéria sobre o filme Memories of

que a encomendou, mas o som dos três mi-

the Eichmann Trial [Memórias do julgamento

nutos iniciais (presentes na cópia de posse de

de Eichmann, 1979], de David Perlov. Reali-

Perlov) estavam ausentes na película. Perdas:

109


uma imagética, outra auditiva. Devido às duas

pelos anônimos? Em sua obra, vemos moto-

vontades de arquivamento (da televisão e de

ristas, crianças brincando nas ruas, soldados,

seu pai), somadas à tecnologia contemporânea

turistas, multidões; à exceção de sua família,

de restauração de objetos audiovisuais, foi pos-

que de tão presente se torna íntima do especta-

sível reconstruir o filme de modo próximo ao

dor, Perlov não tende a utilizar cartelas, nomes

original. Após esse processo técnico, a família

enquanto significantes sobre a imagem captu-

de Perlov resolveu descobrir a identidade dos

rada. Os nomes próprios aparecem, majorita-

entrevistados no filme, visto que o diretor op-

riamente, no discurso oral de sua narração au-

tou por não inserir legendas com seus nomes.

tobiográfica; não são vistos, mas ditos.

Há uma fala de Liat Benhabib, auxiliar de Yael Perlov na reconstrução do filme, que está inse-

Leila Danziger realiza um contraste com as

rida na página voadora do vídeo de Leila:

informações encontradas na página de jornal já evocada durante os sete minutos de seu ví-

Nós pensamos em publicar fotos dos

deo. Com um corte seco, do surgir da areia já

indivíduos desconhecidos e pedir ajuda

somos confrontados com uma sequência de

em sua identificação, mas isso pareceu

jornais sendo apagados e seu insistente som,

impróprio. Em vez disso, contatamos

sempre sincronizado com a imagem. As mãos

historiadores e acadêmicos daquele

da artista não ficam à mostra; o que interessa

período, especificamente aqueles que

é o repetitivo ato de eliminar informações des-

lidaram com o julgamento de Eichmann,

sas páginas de jornal e criar uma textura que

vários funcionários do Yad Vashem,

irá se assemelhar, por exemplo, à pintura de

assim como as pessoas que estavam

Mark Rothko. Temos aqui nuvens de dados,

envolvidas com a realização do filme.

fantasmas de imagens, nomes próprios e tex-

No final, conseguimos identificar 11

tos que, assim como qualquer objeto existente,

dos 14 entrevistados. Três deles

possuem uma potência de ruína.

permanecem um mistério.

3

Em alguns momentos, a fragilidade do papel O que essa matéria publicada no jornal

não resiste a esse ato corrosivo e, no lugar do

Haaretz denota é a vontade de História (ou uma

apagamento, surge um novo som, o de um ras-

“vontade historiográfica”) empreendida por um

go. Uma amálgama de papel se dá quando o ato

grupo de pessoas que se deparam com uma

de apagar é somado ao de rasgar. Parte da folha

obra incompleta, com fungos, com lacunas tan-

fica presa à base e outra fica suspensa, dando

to na parte técnica quanto no que diz respeito

ao vídeo uma sensação de tridimensionalida-

à informação. A primeira pergunta que faço é

de. Devido a isso, conseguimos enxergar folhas

esta: o que David Perlov diria a respeito desse

atrás daquelas que estão em primeiro plano.

esforço? Não me refiro à recuperação matérica

Temos camadas de informações, andares de

do filme, mas a busca incessante por nomes

uma torre que talvez possa ser comparada à

próprios. Perlov não transmitia, ao menos em

torre de Babel, visto que os idiomas dos jornais

seus Diários, a impressão de ter grande afeição

são dois, o hebraico e o inglês, sem que nos es-

110


queçamos das experiências anteriores da artis-

elemento do mar. Qual será o destino desse

ta com jornais brasileiros e também alemães.

nome próprio de uma cidade que, etimologica-

O que desaparece e o que resiste por meio

mente, significa “legado da paz”?

desse objeto que, por tal perspectiva bíblica, anseia por transformar em imagem as com-

Molhada, essa folha de papel se assemelha a

plicadas relações culturais e políticas desses

certa iconografia da natureza-morta encon-

povos que falam diferentes línguas e habitam

trada durante o século xvii, precisamente na

esse edifício em desmonte? O que desapareceu

Holanda: a pintura de peixes e outros frutos do

e o que resistiu ao longo dos quase 50 anos do

mar “encalhados”, a definhar à beira do ocea-

julgamento de Eichmann no que diz respeito

no. Transposição da vida (água) para a morte

às relações entre Alemanha e Israel?

(areia), inversa à materialidade e à utilidade do jornal. Esses peixes não apenas eram re-

Adultos, crianças, mortes, nascimentos, mu-

presentações da abundância da sociedade ho-

lheres vestindo hijabs, sinagogas, viagens, na-

landesa ou mesmo pinturas que visavam criar

tureza, produtos de consumo, guerras; diver-

imagens do trabalho, mas também podem ser

sas temáticas são cortadas e harmonizadas

interpretados como uma alegoria da brevidade

audiovisualmente pelas mãos da artista. Trata-

da vida. Temos, portanto, com a imagem deste

-se de um registro, de um arquivo do jornal que,

jornal-peixe, especialmente quando colocada

em sua essência, também arquiva fatos e fotos

logo após a imagem de um jovem a contem-

de um dado momento da História de uma na-

plar o horizonte, uma leitura da Vanitas, uma

ção, uma cidade ou mesmo, com agá minúscu-

atualização contemporânea da tradição cristã

lo, da história de um indivíduo. Vídeo-arquivo

de lembrar ao homem que nossa existência no

não só do estático, mas também do cinema e

mundo é efêmera e, portanto, há de se ter co-

da televisão, visto que em alguns momentos

medimento nos atos. A criança irá desaparecer

Leila Danziger volta sua lente para telas com

ou resistir à crueldade corrosiva dos homens?

imagens em movimento. Vanitas é justamente o título de outro dos víNo meio dessa orquestra de papel, após mi-

deos apresentados na mesma exposição. Nes-

nutos de um som que se assemelha ao de um

sa obra, a artista apaga imagens do jornal que

alimento a fritar ou mesmo de um ácido a agir,

contêm outros elementos iconográficos desse

vê-se a imagem de uma criança de frente para o

tópico da pintura ocidental: retratos, flores,

mar. Voltamos à presença da areia e à lembran-

caveiras, relógios e cemitérios viram som-

ça da paisagem. O som do papel é substituído

bras de imagens. Um anúncio de Melancolia

pelas ondas. Um jornal molhado em que se lê

(2011), filme de Lars von Trier, é transformado

o nome da cidade dividida entre Israel e Pales-

em vestígio. A pata de um gato tenta impedir

tina: Jerusalém. O papel molhado não tem a

a descamação de uma página. Outro felino é

mesma leveza para ser transportado pelo acaso

visto a caminhar por um cemitério, livremen-

e pelo vento; a informação líquida é revestida

te, do mesmo modo que folhas de jornal são

por paisagem, se desintegra na areia ou vira

capturadas a flanar pelas ruas da cidade. Se

111


em Beleza americana (1999), de Sam Mendes,

jornais. O tamanho destas e a sequência de

um dos personagens filma uma sacola plástica

imagens constroem os versos de um vídeo-

a voar por 15 minutos e diz que assiste a essa

-poema. Em uma segunda camada de imagens,

imagem para se lembrar da beleza existente

há novamente o mar e o jornal, que, fadado ao

no mundo, é possível afirmar que a rápida apa-

fracasso, tenta nadar. Esses poemas existirão

rição dos jornais que voam no trabalho de Leila

apenas como registro em vídeo, visto o cará-

Danziger remete à ideia contrária. Os poucos

ter literalmente fragmentário de seus versos.

segundos destinados a esses objetos, que, sem

O castelo do homem foi transformado efetiva-

uma leitura definida, se tornam tão vazios

mente em um depósito, em uma videoteca.

quanto a sacola plástica, meros indícios do aspecto efêmero da palavra informativa, fazem

Esses quatro primeiros vídeos estão baseados

com que aquele que os frui tenha em mente a

na apropriação, no apagamento e na criação a

fugacidade da vida.

partir da matéria do jornal. Na exposição realizada por Leila Danziger, eram projetados sobre

Em News [Pallaksch Pallaksch], o som afiado

as paredes brancas da galeria ou através de pe-

dos jornais é substituído pela leitura parcial

quenos televisores. Importante frisar que seus

do poema “Tübingen, Janeiro”, escrito e lido

sons se entrecruzavam pelo espaço, proporcio-

pelo poeta Paul Celan, poema já utilizado pela

nando uma espécie de colagem e fusão entre

artista em outras obras recentes. A sobreposi-

os sons dos fantasmas de jornal, do mar que

ção física de jornais dá lugar à sobreposição

desmaterializa e da leitura de Paul Celan. Dis-

virtual de imagens. Enquanto na obra anterior

persas pelo espaço institucional das três salas

eram perceptíveis as ideias de acúmulo e de

de exposição, as fitas que a artista utilizou para

tridimensionalidade, aqui cria-se um ambien-

realizar as extrações de imagens e palavras atri-

te mais onírico, que conjuga, por exemplo, as

buem tridimensionalidade ao caráter planar

ondas do mar e o voar dos jornais. A paisagem

do papel. As narrativas que ocupam os jornais

recebe o caráter de dado científico, de geo-

e que representam fatos que empurram ou

grafia: a imagem de um mapa-múndi com os

freiam nossas vidas ganham volume e peso na

continentes preenchidos pela cor preta é so-

instalação.

breposta pelas mãos da artista a extrair a frase “Remember Paris” (“Lembre-se de Paris”), títu-

No quinto e último trabalho apresentado na

lo de um artigo que lembra os conflitos estu-

exposição, Lição de hebraico, temos nova-

dantis de maio de 1968, associando-os, critica-

mente uma videoinstalação. A artista, tal qual

mente, às revoltas populares nos países árabes

David Perlov, constrói um monumento para

no início de 2011.

um membro de sua família, seu pai. Judeu, nascido na Alemanha e imigrado para o Brasil,

Do poema lido para o poema composto pela

ao longo da vida ele sempre recorreu e tentou

imagem. Em When man’s castle is a storage

instaurar sua relação com o judaísmo pelo

room, a artista constrói novos significados

estudo do hebraico. Para tal, ouvia um antigo

por intermédio do destaque de manchetes de

vinil didático em que pequenos diálogos eram

112


repetidos. O domínio da língua, que seria cons-

Nesse mesmo vídeo, frases do conto O judeu

truído a partir da memorização, fica em segun-

errante, de Goethe, são apagadas de um livro

do plano e cede lugar ao esforço cotidiano em

impresso em tipografia gótica. O pai da artis-

lembrar suas raízes culturais. Como acessar e

ta, ao migrar para o Brasil, trouxe uma coleção

construir uma identidade judaica no Brasil?

de livros alemães impressos nessa tipogra-

O que resiste e o que persiste desta “torre de

fia; translado literal de sua bagagem cultural.

Babel” genealógica que entrecruza Alemanha,

A leitura dessas obras, porém, se torna com-

Brasil e Israel?

plicada não tanto devido à dificuldade de apreensão dos signos gráficos, mas sobretudo

Olhar para o horizonte será, de maneira ine-

pela dramática ruptura e pelo afastamento das

vitável, rememorar o território abandonado.

gerações futuras em relação à cultura alemã.

Retornamos, portanto, à praia. A artista esca-

Ao lado da projeção do vídeo, Leila Danziger

va a areia e nos revela uma caixa que osten-

coloca um exemplar do livro de Goethe com

ta em sua tampa a imagem de uma Menorá,

suas frases desfeitas, tal qual serpentina de

importante símbolo judaico; trata-se do ar-

carnaval. Um monumento à tentativa e ao erro.

quivo/depósito que resguarda o vinil de seu

Um monumento ao esquecimento feito para

pai. Ao fundo, ouvimos, de modo pausado,

não se esquecer.

a repetição de uma das lições de hebraico. A mão que retira a areia é a mesma que a co-

Ao redor desse livro e na caixa de vinil, há areia

loca. Curiosamente, porém, trata-se não de

na projeção do vídeo. Quando esses objetos

fazer artesanalmente o ato e de filmá-lo, mas

forem retirados de tais superfícies instáveis,

sim de retorná-lo, “rebobiná-lo” digitalmen-

deixarão marcas. Até quando elas ficarão ali?

te, enterrá-lo de modo artificial. Fazer a ima-

Até que o tempo as dissipe. A areia é a História

gem voltar tem algo de apego; é querer voltar

(com ou sem agá maiúsculo, coletiva ou indivi-

para ter o prazer de desenterrar novamente.

dual, nome próprio por ser localidade ou per-

Trata-se de um medo de encerrar o aspecto

sonalidade). O mar está calmo apenas no vídeo;

de “descobrimento” de um objeto já enterra-

ele é o tempo que corrói, assim como a água de

do. Um vídeo sobre perda e saudade.

um balde apaga a luz de uma lâmpada.

1 “O mar está calmo/ através da câmera de vídeo/ como uma lâmpada morta/ em um balde d’água”. Música e letra de Cocorosie (Bianca Cassidy e Sierra Cassidy). “The sea is calm”, do álbum Noah’s Ark, Touch and Go Records, 2005. 2 Yael Perlov, uma das “protagonistas” dos célebres Diários, filmados por David Perlov, em que sua esposa e suas filhas gêmeas são acompanhadas de perto durante os anos de 1973 e 1983. O fim da adolescência, suas viagens para Paris e o Brasil, e sua relação com os conflitos entre Israel, Egito e Síria, são alguns dos tópicos presentes nesses seis episódios de cerca de 50 minutos cada. Esses filmes foram exibidos recentemente no Brasil, na mostra de cinema David Perlov – epifanias do cotidiano, realizada em março de 2011 no Rio de Janeiro e em São Paulo. 3 anderman, Nirit. “Dusting off a documentary” [1º de maio de 2011]. Disponível em http://www.haaretz.com/ print-edition/features/dusting-off-a-documentary-1.359058.

113


114


Pallaksch Pallaksch [2010] Museu de Arte Contempor芒nea, Niter贸i


Pallaksch Pallaksch [2010] Livro (carimbo sobre jornais apagados e encadernação), carimbos e mesa de madeira Dimensões variáveis Museu de Arte Contemporânea, Niterói



Pallaksch Pallaksch [2010] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 80 x 58 cm (aberto) 66 páginas



Pallaksch Pallaksch [2010] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 80 x 58 cm (aberto) 66 páginas



Pallaksch Pallaksch [2010] Vídeo (cor, som, 3’30”), Jornais, carimbos, fita adesiva, luminária, mesa e banco de madeira Exposição Tempo-matéria, Museu de Arte Contemporânea, Niterói



(páginas 123–125) Pallaksch Pallaksch [2010]

Pallaksch Pallaksch (detalhes) [2010]

Museu de Arte Contemporânea, Niterói

Museu de Arte Contemporânea, Niterói










(páginas 126–131) Diários públicos [2009] Vídeo (cor, som, 3’30”)


O que desaparece, o que resiste [2011] Pallaksch Pallaksch [2010]

Vídeos, jornais e fita adesiva

Desmontagem

BAAD Gallery / Bezalel Academy of Arts and Design, Tel Aviv, Israel

Museu de Arte Contemporânea, Niterói



Who killed Joe Alon? [2011] Impressão fotográfica sobre papel de algodão 75 x 100 cm



O que desaparece, o que resiste [2011] Stills do vídeo, 7’ Tel Aviv, Israel


Lição de hebraico [2011] Vídeo (cor, som, 4’50”), Livro, objetos diversos, mesa de madeira, areia, fotografia e texto manuscrito na parede BAAD Gallery / Bezalel Academy of Arts and Design, Tel Aviv, Israel


Lição de hebraico (detalhe) [2011] BAAD Gallery / Bezalel Academy of Arts and Design, Tel Aviv, Israel



Lição de hebraico [2011] Vídeo (cor, som, 4’50”), Livro, objetos diversos, mesa de madeira, areia, fotografia e texto manuscrito na parede

Lição de hebraico (detalhe) [2011]

BAAD Gallery / Bezalel Academy of Arts and Design, Tel Aviv, Israel

BAAD Gallery / Bezalel Academy of Arts and Design, Tel Aviv, Israel

Vídeo (cor, som, 4’50”)



É noite [2009] Impressão fotográfica sobre papel de algodão 60 x 80 cm

Lição de hebraico (detalhe) [2011]




TAREFA INFINITA

147


Nomes próprios Fernando Cocchiarale

A obra Nomes próprios, de Leila Danziger, reúne

que parece plasmar, em graus variados, parcela

todos os 76 nomes de judeus alemães com o mes-

considerável das poéticas contemporâneas.

mo sobrenome da artista desaparecidos nos campos de concentração da Segunda Guerra Mun-

Há em Nomes próprios uma tensão que supera

dial. Extraídos do Livro da lembrança, guardado

o âmbito subjetivo familiar; ultrapassa o mo-

na Biblioteca da Comunidade Judaico-alemã de

mento histórico evocado e transcende o dra-

Berlim, em Charlottenburg, esses familiares e

ma universal da condição humana, por meio

desconhecidos nomes, impressos em fotogra-

de operações poéticas que entrecruzam con-

vura em 76 suportes de papel trabalhados pre-

teúdos discursivos com a imagem: campo po-

viamente, compõem um painel de 420 x 200 cm.

lissêmico que cresce e se infiltra pelas frestas

Quando montado, este cria na parede uma su-

esgarçadas do formalismo estético, de forte

perfície compacta, mas diferenciada pelos no-

tradição no Brasil.

mes e o tratamento artesanal matérico dado aos suportes em que se inscrevem. É decisiva na fei-

O primeiro contato com a obra é exclusivamen-

tura desse trabalho, portanto, a escolha prévia

te visual. Apreendemos, talvez, a aparência en-

de um conceito que deflagra na artista “o desejo

velhecida e suja do conjunto. Vemos sua bela

de dar materialidade aos nomes, reisncrevê-los

e paradoxal leveza, modulada pela fragilidade

no tempo e no espaço, dar-lhes aquilo que per-

dos papéis utilizados. É impossível, entretanto,

deram: corpo”, colocando-a em face do desafio

à medida que distinguimos nomes, datas e lu-

de transformar uma ocorrência histórica, extra-

gares, continuarmos distantes do trabalho. In-

-artística, em uma nova situação, essencialmen-

terceptado pela palavra, o olhar examina cada

te estética. Ao contrário da tradição moderna,

pedaço de Nomes próprios. Percebemos então

na qual as obras buscavam seus significados a

estar diante de um mesmo genos, um único

partir de relações formais, cromáticas e espa-

fado, delimitado pelo nome de família da artis-

ciais, trata-se aqui de equacionar, no campo da

ta. Nosso total desconhecimento dos corpos e

arte, situações semânticas nem sempre origi-

sentimentos que animaram esses nomes, em-

nadas dentro de seus limites estritos: questão

prestando-lhes, outrora, densidade humana

148


e afetiva específicas, torna-os hoje demasiado

abandonados pela plástica modernista (afi-

iguais, e eles, a despeito de suas distinções or-

nal, o narrativo nas artes permanece parado-

tográficas e fonéticas, estão ali apenas como

xalmente silencioso). O que muitos artistas

indícios. Os hiatos gráficos dessas cifras ape-

contemporâneos buscam, nem sempre de

nas nomeadas e mecanicamente impressas

modo consciente e, às vezes, sem sucesso, tal-

comprimem no vazio dezenas de existências

vez pelo foco exclusivo na expressão de fan-

sem biografia ou identidade. São entrelinhas

tasmas privados, são alternativas à academi-

nas quais reverberam silêncios de vidas singu-

zação de parte da produção brasileira recente,

lares, jogadas no esquecimento pela mesma

fundada em relações puramente formais, cro-

tragédia que as eternizou na vala comum de

máticas ou gestuais.

uma lista de nomes preservada na biblioteca de Charlottenburg.

Elas pouco podem dizer do mundo em que vivemos. Tornaram-se fáceis e previsíveis, se

A associação de informações mínimas aos no-

confrontadas com o vigor inventivo das genea-

mes da lista, como data e local de nascimento

logias que reivindicam para si, pois já nascem

e de morte, longe de singularizá-los, esvazia-os

prontas, repetindo, sem qualquer risco, efeitos

ainda mais das circunstâncias específicas que

dos resultados positivos conquistados, em pro-

um dia personificaram, pois indicam um des-

cessos experimentais genuínos, por seus ante-

tino comum, histórico (o fim coletivo no Holo-

cessores estéticos desde os anos 1950.

causto promovido pelo nazismo) e ontológico (a inevitabilidade da morte e o esquecimento

De um ponto diverso, Nomes próprios constrói,

que ela fatalmente representa para o indivíduo).

com palavra e matéria, imagens, tomadas aqui

O conceito que informa este trabalho de Dan-

proposto por Panofsky na primeira metade

ziger aponta-nos, de sua espacialidade, para o

do século xx: imagens significam mais do que

fluxo do tempo e a permanente fragilidade da

aquilo que vemos (forma), pois ela simbolizam.

em sentido próximo ao da iconologia, tal como

memória, preocupações que atravessam o conjunto de sua obra: a condenação progressiva

Alguns dos artistas contemporâneos mais sig-

ao esquecimento da esfera do vivido e a con-

nificativos, como Beuys e Kiefer, parecem ter

densação crescente da memória do passado,

encontrado no campo simbólico, renovado

construída pela história. Tal é o fio que liga um

pelas questões desse fim de século xx, a solu-

passado apenas coletivo a um presente pleno

ção dos impasses a que chegou a maioria das

de indivíduos, qualificado desde nossa própria

pesquisas formais strictu sensu. O tratamento

individualidade. Fio que tece um pano de fun-

matérico dado por Leila Danziger a Nomes pró-

do intransmissível e único; aquilo que, com a

prios e aos livros adquire substância sobretu-

morte, desaparecerá conosco para sempre.

do a partir de conceitos com os quais a artista trabalha. No ato de ferir, gravar e pigmentar

Tudo isso, no entanto, não deve ser tomado

papéis, sequenciando-os seja na parede ou

como um retorno aos elementos “literários”

em páginas, há antes o registro e a produção

149


de um fluxo do que a cristalização sincrônica

– vida, história e a própria feitura –, semantiza-

de uma cena, tal como ocorria no quadro de

dos pela intervenção da artista, condensam-se

representação mimética e de parte da produ-

simbolicamente, dando sentido contemporâ-

ção moderna. Lapsos temporais heterogêneos

neo à sua obra.

Texto escrito por ocasião da exposição Nomes próprios, na Galeria Thomas Cohn, São Paulo, abril de 1998.

150


151


A arte de dar forma ao real: a poética da memória de Leila Danziger Márcio Seligmann-Silva Aus seiner Krume/ knetest du neu unsre Namen [De suas migalhas/ você modela de novo nossos nomes] “Von ungeträumten geätzt”, Paul Celan

G. E. Lessing, em um dos textos centrais da

A arte da memória contemporânea deve à tra-

teoria estética, o seu Laocoonte, de 1766, en-

dição da antiga arte da memória retórica tanto

tre diversas fronteiras que tentou traçar como

uma concepção espacial da memória quanto a

bom iluminista que era, aquelas às quais ele

concepção de um entrelaçamento necessário

atribuiu maior valor eram as que deveriam

entre o trabalho das palavras e o das imagens.

manter as diferentes artes devidamente se-

Nos palácios da memória que o rétor antigo

paradas – cada uma atuando conforme a

construía para aí instalar confortavelmente

adequação do seu meio com os objetos que

em cada nicho uma imagem – e por onde ele

lhe seriam apropriados – e a proibição de re-

poderia caminhar com desenvoltura durante

presentação do asqueroso (ekelhaft). Para ele

seus discursos, retrotraduzindo em palavras

o asqueroso estaria fora do campo da ilusão

as imagens que cristalizavam as diferentes

estética. Nada poderia estar mais longe da

ideias que ele queria apresentar – havia uma

posterior produção artística, o que nos faz

clara imbricação entre palavras e imagens.

pensar que Hegel estava certo na sua boutade

Uma podia e deveria traduzir a outra. Se, por

sobre a ave de Minerva e seu lançar voo sem-

sua vez, na arte da memória contemporânea

pre ao anoitecer. Lessing representou o canto

essa tradução é posta em questão, por outro

de cisne da visão pré-romântica da arte, mas

lado o trabalho em conjunto entre palavras e

abriu também, com o seu argumento de base

imagens é mantido e o mesmo vale para a es-

semiótica, a possibilidade de uma nova era na

pacialização do tempo. Nessa arte, como logo

teoria das artes estabelecer-se.

veremos nas obras de Leila Danziger, as palavras transformam-se em imagens, assim como

Mas se o nosso objeto é a obra de Leila Dan-

as imagens são utilizadas no lugar de palavras

ziger, cabe a pergunta: o que o desrespeito da

– transformando-se, por exemplo, em livros e

separação estanque entre as artes e, por outro

só funcionando enquanto superfície a ser lida.

lado, a apresentação do asqueroso têm a ver

As tumbas de papel – ou seja, as tentativas

com a arte da memória? Tudo.

de dar conta do passado via palavras escritas

152


– são suplementadas aqui pela presença de

sua tese de doutorado – e se deparou logo na

imagens e pelo seu jogo em um espaço ima-

entrada com dois grossos volumes contendo

gético-verbal que tende para a construção de

a lista dos nomes dos judeus alemães assas-

verdadeiros hieróglifos da memória.

sinados nos kz nazistas (ou seja, nos Konzentrationslagern, campos de concentração). Ela

Quanto à apresentação do asqueroso, pare-

encontrou aí o seu nome de família elencado

ce mais difícil perceber esse traço na obra de

76 vezes. Os 76 Danzigers dessa lista, por assim

Danziger, e que é frequente na arte contempo-

dizer, produziram uma virada nas coordena-

rânea que tem o corpo como objeto – a body art

das que guiavam sua vida. Seu pai, judeu de

e a “arte abjeta” constituindo os dois exemplos

Berlim, ela em Berlim e os 76 nomes constituí-

mais notórios dessa modalidade de arte. Com

ram uma constelação que passou a orientar

efeito, em vez da espetacularização explícita do

sua produção artística. Mas virada existencial

trauma via exploração do corte na pele ou apre-

não significou um nascimento ex nihilo na sua

sentação dos fluidos que saem de nosso corpo,

carreira. Leila já havia feito então, aos 32 anos,

Danziger elege uma poética da materialidade

algumas importantes exposições individuais

que apresenta a memória traumática por meio

e participado de outras tantas coletivas, a pri-

de uma escritura que é tão corpórea quanto a

meira delas em 1987, em Toulouse, durante

nossa pele. Sua obra executa mediações, como

os seus estudos realizados no Institut d’Arts

na “passagem para o papel” – um de seus

Visuels d’Orléans.

meios prediletos –, que a tornam mais delicada, sofisticada e intelectual a um só tempo.

Essa primeira exposição individual chamava-se Entre ciel et ruines e já apresentava algu-

Leila Danziger herdou de seu pai, como ela

mas das características dos seus trabalhos

gosta de dizer, a “língua alemã”: mas não

posteriores: intertextualidade com a literatu-

como língua falada, e sim “como uma espécie

ra (neste caso, as estampas dialogavam com

de monumento, sinalizando unicamente per-

fragmentos do poeta Edmond Jabès), formato

das”. Essa herança erodida sem dúvida alguma

que lembra um livro e as temáticas dos nomes

se inscreve em sua identidade e deixa marcas

e da memória traumática. Nos fragmentos le-

na sua obra, repleta de fragmentos da língua

mos, por exemplo: “nous n’habitons que notre

alemã. Língua que, ao passar pelas câmaras de

perte” e “nous nous parlons à travers une bles-

gás e fornos crematórios, se tornou lalen, lala-

sure dont nous ignorerons toujours l’origine”.

ção, e renasceu em outro contexto, no Rio de

As imagens posicionadas ao lado dos fragmen-

Janeiro, a partir de rupturas que só muito len-

tos lembram às vezes as obras escriturais de

tamente foram se tornando conscientes.

um Cy Twombly. Entre céu e ruínas é um trabalho extremamente delicado que inicia uma

Certa vez, por exemplo, em 1994, quando visi-

pesquisa sobre um intervalo – “entre” –, sen-

tou uma exposição no Museu Histórico de Ber-

do que o céu aqui pode ser interpretado como

lim dedicada aos “Mahnmale des Holocaust”

uma constelação e conjunto de traços a serem

[Monumentos do Holocausto] – tema, aliás, de

lidos, assim como as ruínas apresentam uma

153


visão do tempo metamorfoseado espacialmen-

flexão sobre nomes e datas/locais vai num cres-

te na sua própria cicatriz e em sua destruição.

cendo mudo que guia seus trabalhos de modo distanciado, esse “excesso de história” resulta

A exposição seguinte, de 1989, tinha o nome-

em uma poética do murmúrio, marca de sua

-dedicatória Pour Edmond Jabès. Dessa feita os

obra que é avessa a qualquer monumentalidade.

fragmentos do poeta aparecem estampados

Os trabalhos sobre papel apresentados nas

sob águas-fortes – como uma inscriptio de um

duas exposições com nome Cáucaso (1993 e

emblema barroco. A epígrafe da exposição (et

1994) levam ao limite a experiência com a gra-

pourquoi pas?) deve ser lembrada: “Le nom

vura e revelam um vir à tona da materialidade

échappe au souvenir. Il est, lui même, mémoire”

do papel desgastado e corroído por processos

(E. Jabès). As imagens monocromáticas con-

químicos e mecânicos, que nas suas manchas

tinuam o trabalho de escritura e traçamento

e perfurações apresentam com sutileza um

da poesia, só que sem formar letras. Apenas o

“real” que não se deixa simbolizar.

gesto escritural é preservado. Nos textos lemos “Sarah, Sarah par quoi le monde commence?

A fase seguinte da obra de Leila inicia-se com o

Par la parole? Par le regard?” Questão essencial

trabalho Nomes próprios (nome de três de suas

que nos remete à reversão goetheana da frase

exposições em 1997 e 1998). A obra Greifwal-

bíblica: “Im Anfang war die Tat” (Faust, I Teil,

dstr. 138, agora exposta na ifa-Galerie Berlin,

3. Szene). Como ver estas obras hieroglíficas?

ainda é fruto desse momento de sua reflexão

Devemos “ouver-las” no seu misto de palavras

artística/conceitual. Com a técnica da fotogra-

e imagens. Outra frase: “Jamais l’avènement

vura Leila realizou matrizes de metal com os

n’a lieu. C’est dans ce ‘jamais eu lieu’ qu’il ré-

76 Danziger. Nas “páginas” resultantes, com

side.” Formulação aporética que retoma com

forma que lembra uma lápide, estão inscritos

toda força o “drama da representação” pós-

os seus nomes, locais e data de nascimento, a

-Auschwitz. E, não por acaso, é justamente este

data de morte – ou a menção “verschollen”, de-

tópos que é nomeado ao final da sequência in-

saparecido, e em alguns casos os nomes dos kz

terminável de nomes judeus que subscreve – e

onde foram assassinados, ou ainda a menção

como que assina – a terceira água-forte: “Dans

“Freitod”, suicídio. As gravuras foram expostas

tout nom, il y a un nom dérangeant: Auschwitz.”

lado a lado, formando um enorme painel de

Decerto em Danziger e em tantos outros mi-

400 x 220 cm. Essas gravuras também foram

lhões de nomes também – assim como em “to-

transformadas em livros trabalhados com óleo

dos os nomes” depois daquela data-local.

de linhaça e betume, e portanto muito densos do ponto de vista da matéria e do tema. Livros

Nos anos seguintes, após o retorno ao Rio de

da memória, mas também livros sobre o esque-

Janeiro, Leila continua trabalhando com os

cimento e a impossibilidade de dar um corpo

recursos escriturais da gravura e com a forma

ao passado.

do livro. Suas obras expostas entre 1992 e 1994 apresentam um trabalho cada vez mais inten-

Na exposição coletiva O artista pesquisador

so com o suporte. Se o peso da história e a re-

(1998), em Pequenos impérios (1999) e em ou-

154


tras exposições coletivas, Danziger soma a essa

pelo princípio da reprodução técnica – mas na

experiência estética dos 76 nomes próprios o

obra de Danziger, em um segundo momento, o

trabalho com a Greifwalderstr. 138. Esse en-

exercício mesmo de transposição e metamor-

dereço remete a um local e a um prédio preci-

fose do original dá um novo corpo e uma nova

sos em Berlim. Danziger leu em 1994. em um

densidade ao “original”, a saber, ao desapare-

exemplar do cotidiano Tagespiegel, matéria de

cido/presente. Esse procedimento de repro-

uma página de autoria de Ruth Nube, nascida

duzir e transformar – as gravuras e livros são

em 1932, sobre uma amante de seu pai, Sophie

tratados com óleo de linhaça, grafite e betume,

Gutmann. Nube descobriu as correspondên-

e algumas vezes postos sobre mesas, elas mes-

cias entre seu pai e Gutmann apenas depois

mas trabalhadas com o mesmo material – me-

da queda do muro de Berlim. Ela decidiu en-

tamorfoseia o que era mero jornal descartável

tão pesquisar o que acontecera com essa judia,

(uma memória curtíssima fadada ao esqueci-

que ela conhecera e que permanecera em Ber-

mento, como o é toda informação jornalística)

lim durante a guerra. A correspondência com

em um índice do passado. Cria um delicado

seu pai foi suspensa em 1942. Gutmann cuida-

antimonumento. Alguns dos livros parecem

va de um orfanato com cerca de 60 a 80 crian-

ter sobrevivido a incêndios. As metáforas que

ças judias. Nube encontrou como resultado de

se anunciam – como a do livro – são logo trans-

sua pesquisa no arquivo da cidade de Berlim

formadas em metonímias, pars pro toto impos-

(Landearchiv Berlin) as listas de transporte dos

sível, mas ainda assim tentadas e lançadas aos

judeus enviados aos campos de concentração.

espectadores.

Sophie Gutman e sua filha (meia irmã de Ruth Nube) estão listadas em um transporte de 29

Os trabalhos de Danziger dos últimos anos têm

de novembro de 1942, com 1.021 nomes, ao

insistentemente requisitado o jornal (sobretu-

lado de 230 crianças e jovens entre seis sema-

do jornais alemães) como base e suporte. Mas

nas e 18 anos, a maioria órfãos.

do que suporte, no entanto, essas páginas de jornal são transformadas em “corpo”, objetos

Leila Danziger fez uma fotocópia dessa maté-

de arte, na medida em que, empregando fita

ria e tem trabalhado desde então em sua re-

adesiva, os textos em alemão são delicadamen-

produção e transformação em livros-objetos

te retirados – assim como o alemão de Leila

e gravuras. Em agosto de 2000 ela foi ao ende-

perdeu a sua função comunicativa e manteve

reço onde funcionava o orfanato e encontrou

a sua dimensão afetiva. Apenas algumas pala-

um canteiro de obras que fotografou. Em uma

vras, outras vezes fotos ou ainda os contornos

das fotos vemos uma criança andando de bici-

das colunas e das imagens ficam impressos

cleta refletida no vidro do prédio. Esse traba-

nas páginas. No fundo, as letras ao avesso ain-

lho desdobra o testemunho de Nube e busca,

da podem ser vislumbradas, recobrando assim

com suas inúmeras passagens pela serigrafia,

uma força que não atribuímos ao papel-jornal

dar conta da fixação sobre tal passado. O ato

diariamente jogado no lixo. Nessas superfícies

reflexo que nos leva a repetir a cena traumáti-

Leila também constrói poemas às vezes com

ca é, em um primeiro momento, mimetizado

uma só palavra – como “ausências” –, outras

155


com carimbos que trazem palavras ou versos

Danziger identifica-se com outros artistas

de Paul Celan, Drummond, Cecília Meireles e

brasileiros atuais, como Antonio Manuel e

Orides Fontela. Nesta reciclagem artística do

Franklin Cassaro. A artista com quem tem

jornal apagado e reinvestido de sentido, as pa-

maior afinidade no Brasil é Mira Schendel. Na

lavras e as imagens constroem uma grafia do

cena internacional sua obra dialoga direta-

tempo junto com marcas da luz que também

mente com Robert Rauschenberg, On Kawara

se inscrevem – de modo estudado – sobre a

e Anselm Kiefer, assim como pode ser aproxi-

sensível superfície descascada. Essas grafias

mada dos antimonumentos de Horst Hohei-

de luz revelam o princípio da fotografia e da

sel, Andreas Knitz, Jochen Gerz e Hirschhorn,

própria obra de Danziger enquanto uma escri-

e de outros artistas que trabalham com poéti-

tura do real que desconhece o caminho arris-

cas da memória, como Doris Salcedo, Marcelo

cado da narração e da ilusão da representação

Brodsky, Naomi Tereza Salmon e Christian

tradicional.

Boltanski.

Publicado em seligmann-silva, Marcio (org.) Palavra e imagem: memória e escritura. Chapecó: Argos, 2006, p. 215–25. Uma versão em alemão foi publicada no catálogo da mostra Bilder des Erinnerns und Verschwindens, realizada no Institut für Auslandsbeziehungen (IFA), em Berlin, em 2003.

156


157


O efeito-arquivo no trabalho de Leila Danziger Luiz Cláudio da Costa

A arte contemporânea interessa-se por objetos

tividades outras, a arte toma a matéria-docu-

do mundo e da cultura, por acontecimentos

mento como a ponte para ousar relacionar-se

sociais e geopolíticos, apropriando-se de dis-

reflexivamente com dispositivos que não são

positivos discursivos externos a seu próprio

originalmente os seus.

saber e até a sua instituição. O procedimento da apropriação, tão comum nos trabalhos de

O projeto a que Rosângela Rennó2 deu início

arte atualmente, é criterioso quando reflete a

em 1992 envolvendo recortes de jornais com

consciência de que toda matéria assimilada é

pequenas histórias impressas sobre fotografias

um documento da máquina de discursos, de

e utilizando processos de digitalização recebeu

visibilidades e de afetos do contexto do qual

o nome de Arquivo universal. Tomar posse de

procede. Isso significa algo simples, mas que

material de arquivos, da memória individual

constitui escrupuloso ponto de partida da polí-

ou institucional, é a estratégia pela qual Rennó

tica da arte na contemporaneidade: toda apro-

problematiza mecanismos de identificação e

priação e, consequentemente, sua transfe-

de classificação. Traduzidas por processos de

rência contextual já configuram uma leitura e

transferência de um contexto a outro, de um

provêm de interesses que acarretam definições

suporte a outro, as imagens provocam peque-

éticas. Arthur Danto argumenta que, desde Du-

nos deslocamentos afetivos, estéticos e/ou

champ e, especialmente, com o Fluxus e a Pop,

políticos. Rennó revela ainda dispositivos de

a arte insiste no desejo de transfigurar o lugar-

visibilidade, ao apropriar-se de negativos e de

-comum, colecionando artefatos do cotidiano

cópias fotográficas encontrados em feiras de

e os transformando em obras de arte que orga-

antiguidade, álbuns pessoais, jornais diários.

nizam seus próprios “armazéns”. Esse interes-

Comentando o trabalho Bananeira, da série

se da arte em arquivos e coleções remete antes

Frutos estranhos, com o qual a artista cria um

a uma vontade de mapear e articular saberes

efeito de movimento em imagem originalmen-

e campos por meio de processos simultanea-

te instantânea, Antônio Fatorelli chama a aten-

mente conceituais e expressivos. Atravessada

ção para “o modo particular de contrair e de di-

por domínios distantes e à procura de subje-

latar o instantâneo na pós-produção digital”.3

1

158


Alterando a temporalidade ou conjugando

relatadas em várias línguas: português, inglês,

imagens e textos, Rennó produz um inventário

espanhol e alemão.

de práticas, mas também de percepções e afetos de diversos contextos distintos.

Esses artistas brasileiros rejeitam insistir apenas na exploração disciplinar dos sistemas

Ricardo Basbaum também tem utilizado pro-

internos da instituição arte, como o fazem os

cedimentos que inventariam, arquivam e

americanos dos anos 1980, ainda vinculados

criam deslocamentos de informações, impres-

à chamada crítica institucional, como Andrea

sões e afetos desde o projeto da marca Olho,

Fraser, Renée Green e Fred Wilson, preferindo

exposto na mostra Como vai você, Geração 80?

uma atuação transversal, que confronta ou-

Envolvendo uma dinâmica de publicidade

tros dispositivos e subjetividades. Eles optam

que contaminava o público, a marca Olho

por fazer circularem visibilidades e discursos

multiplicava-se em adesivos gráficos, filipetas

provenientes de outros campos e contextos

e cartazes, entre outros dispositivos comuni-

impregnados de afetos e expressão poética e

cacionais. Esse projeto contém as origens do

artística, criando assim espaços que potencia-

programa integrado de trabalhos conhecido

lizam relações inesperadas entre forças e sen-

pela sigla nbp – Novas Bases para a Personali-

tidos antes invisíveis ou indizíveis. Articulando

dade –, composto de textos, diagramas, obje-

também outras formações discursivas como a

tos e ambientes construídos sobre a forma he-

biblioteca e o jornal diário, Leila Danziger gera

xagonal criada pelo artista. Em 2007, Basbaum

um espaço crítico transversal para o campo da

cria o arquivo-site “Você gostaria de participar

arte, vinculando-o à cultura das comunicações,

de uma experiência artística?” e mapeia vidas

à história e à literatura em trabalhos que alcan-

geograficamente dispersas no mundo, que

çam deslocar conjuntos inteiros de discursos e

aceitam a proposta que serve de base para o

afetar poeticamente visibilidades não artísticas.

4

projeto de experimentar, cada um à sua maneira, o objeto nbp de ágata, com as dimen-

Em texto publicado no folder da exposição Pe-

sões de 80 x 125 x 18 cm. Como uma espécie

quenos impérios,5 Leila Danziger se pergunta:

de artista-comissário que catalisa por meio de

“A que categorias submeter tudo aquilo que

seu objeto o conjunto de expressões, afetos e

sobra, mas guarda ainda possibilidades não

documentações dos participantes, Basbaum

realizadas? Sob que critérios reunir, relacionar,

organiza um diagrama no site e relaciona aque-

classificar?” Pequenos impérios expunha livros

las vidas, tramando uma rede e entrelaçando

feitos a partir de processos serigráficos sobre

histórias de outro modo não conectadas. O ar-

impressos em papel e dispostos sobre mesas

quivo da internet de Ricardo Basbaum permite

de madeira com lâmpadas elétricas que pen-

ao cibernauta escolher suas entradas e urdir as

diam do teto. Todos os elementos dessa exposi-

próprias relações entre as ações, as imagens e

ção tinham dimensões variadas, o que, quanto

as narrativas dos participantes, tecendo seus

às lâmpadas, significava potências luminosas

caminhos e acessos às subjetividades e visi-

diferenciadas e, quanto aos livros e mesas, ca-

bilidades cartografadas. São 118 experiências

ráter, isto é, corporeidade, massa e peso. Ainda

159


que não oculto, um dos livros buscava resistir

Berlim, em Charlottenburg. Nenhuma fotogra-

em sua materialidade, apesar de cerrado numa

fia, nenhum desenho, apenas os nomes. Com

cuba de óleo de linhaça. Esses trabalhos, sur-

a coleção desses nomes-documentos retira-

gidos de outros mais antigos e não concluídos,

dos dos arquivos de Charlottenburg, Danziger

tomados do arquivo da própria artista, guarda-

criava um espaço de visibilidade no campo da

vam por isso mesmo certa memória afetiva. Por

arte voltado para o esquecimento. Segundo a

outro lado, Pequenos impérios utilizava pala-

artista, “estamos longe do esquecimento pro-

vras e imagens retiradas de jornais diários, de

dutivo recomendado por Nietzsche como antí-

um espaço público de informações. Interiori-

doto contra o historicismo”.8

dade e exterioridade articulavam-se nas sobras de um tempo que aspira à memória, mas en-

Transcendendo a estética em certa medida,

frenta o atrito do esquecimento. A membrana

Danziger volta-se, com sua poética do arqui-

densa desses papéis volumosos, organizados

vo, para a história e para a memória enquanto

sob a forma de livros, parecia conservar as cica-

espaço de uma ferida. Dito de outra maneira,

trizes de um tempo insubordinado às separa-

Danziger organiza o material sensível sob uma

ções de público e privado, prolongando apenas

perspectiva conceitual e política. Se não há se-

a precariedade própria à memória. Danziger

quer uma imagem fotográfica no conjunto de

comenta em texto recente que dá continuida-

gravuras com os nomes (nos livros há imagens),

de às reflexões da época da exposição Pequenos

há o procedimento indicial da impressão. A fo-

impérios: “Se cada resto, cada ‘pequeno impé-

togravura instaura uma referência pelo contato

rio’ é um arquivo, cabe perguntar o que está ar-

do papel com a matriz de metal preparada com

quivado na matéria que os constitui e sobre o

a emulsão fotossensível. A matriz em metal cria

modo mesmo como são constituídos”.

6

sensações que a serigrafia em tela certamente não produziria, pois os sulcos que o ácido es-

Entre 1996 e 1998, Leila Danziger produziu

cavou na placa para inscrever aqueles nomes

uma série de trabalhos em que listava nomes

são as feridas impressas no papel. A marca da

de judeus alemães com o mesmo sobrenome

cicatriz deixada no metal da gravura era o ín-

que o dela, desaparecidos nos campos de con-

dice de um acontecimento profundo que seria

centração da Segunda Guerra Mundial. A série

impresso na superfície do papel. Na materiali-

Nomes próprios é composta por 76 gravuras de

dade corporal dos papéis tratados com óleo de

matrizes em metal e um conjunto de 12 livros

linhaça por Leila Danziger, impregnam-se os

feitos a partir de imagens extraídas de jornais

índices impressos dos crimes nazistas perpe-

alemães, reproduzidas em serigrafia. Os livros,

trados em Auschwitz.

encorpados em sua materialidade com óleo de linhaça, foram mostrados junto às gravu-

Listando junto aos nomes algumas informa-

ras na exposição Nomes próprios.7 O conjunto

ções como data e local de nascimento e morte,

de gravuras media 4,2 x 2 m e reunia todos os

a série de gravuras de Danziger desdramatiza

nomes extraídos do Livro da lembrança, guar-

o evento histórico sem nem mesmo tentar dar

dado na biblioteca da comunidade judaica de

imagens aos nomes vazios. Tampouco há nar-

160


rações ou representações de vidas. Há apenas

de um “instante decisivo”, como diria Cartier-

a lembrança do esquecido e os documentos-

-Bresson, era o que interessava à fotografia

-nome da ferida sobre o corpo do papel, ferida

moderna em sua origem, ao se opor ao picto-

que não cessa de doer e que, por isso mesmo,

rialismo, que criava com suas intervenções e

não pode ser esquecida. O painel de Danziger

manipulações o aspecto “artístico” de técnicas

apenas toma aqueles nomes de um lugar pró-

como o desenho e a pintura. Rejeitando as in-

9

prio da memória: o arquivo da biblioteca em

tervenções de laboratório e defendendo o con-

Charlottenburg. Mas na leveza do papel com os

tato direto com a realidade e a exploração de

nomes gravados fantasmas invisíveis parecem

recursos próprios, como a escolha do enqua-

insinuar-se e criar um espaço outro. Ou seriam

dramento, da luz, das lentes, dos filmes, dos

as palavras que se tornam imagens? Enquan-

papéis, a fotografia poderia assim originar a

to o observador se delonga para ler as palavras

ordem de um lugar específico entre as técnicas

vazias de sentido, um espaço de melancolia pe-

de produção de espaços visíveis. Atualmente,

netra os nomes do frágil papel embebido em

por meio de um “olhar direto” de observação

linhaça. Com a demora da leitura de uma sim-

da realidade aprendida com os fotógrafos mo-

ples lista, ainda que longa, aumenta estrondo-

dernos, os dispositivos informacionais contro-

samente o silêncio que os nomes reverberam,

lam nossa experiência do tempo do visível.12

abrindo uma errância no vazio do tempo para

Mas em Diários públicos de Danziger o obser-

imagens surgirem no pensamento. Referindo-

vador experimenta uma reviravolta do tempo,

-se ao trabalho de Leila Danziger como uma

que se insinua sob um perturbador silêncio en-

“poética da memória”, Márcio Seligmann-Silva

tre palavras que antes parecem ocultar-se para

afirmou que a artista “apresenta a memória

permitir a um pensamento peregrino emergir

traumática por meio de uma escritura que é

com a percepção viva das imagens consentidas.

tão corpórea quanto a nossa pele”.10 Empregando método extrativo, Leila Danziger Em outra série da artista, Diários públicos, ex-

apaga as palavras do noticiário, porém mantém

posta pela primeira vez em 2004 no Espaço Cul-

algumas imagens. Com carimbos, ela grava ou-

tural Sérgio Porto, a fotografia aparece como

tras palavras: “Para-ninguém-e-nada-estar”, de

fantasma de um tempo mudo de informações.

um poema de Paul Celan; “Pensar em algo que

Como um saber disciplinar da temporalidade

será esquecido para sempre”, de Nós, os mortos,

do visível, a fotografia fixou o instante da dura-

de Denilson Lopes; “Vens abaixo em chamas”,

ção. Segundo argumenta Maurício Lissovsky,11

de um poema do Hölderlin; e “Todos os nomes

o legado original da fotografia moderna foi a

da melancolia”, fragmento da própria artista,

visibilidade do instante como tempo de espera.

estimulam a errância, a demora, o esquecimen-

Para o teórico, o tempo na fotografia instantâ-

to do tempo linear dos instantes velozes.

nea manifesta-se por seu ausentar-se: um refluir do tempo para fora da imagem, deixando

O tempo instantâneo e efêmero das notícias

apenas o traço de sua retirada, o instante. Sem

começa a flutuar suspenso, atingido pelo ges-

dúvida o tempo da espera que vai ao encontro

to que extrai as palavras com um único golpe.

161


A velocidade com que os momentos são subs-

dos do século xix, o modo de exposição da foto-

tituídos no noticiário é aniquilada pelo golpe

grafia e seu lugar de conservação eram o arqui-

súbito que apaga o impresso. Fica explicitada,

vo e não as paredes do museu. Ela não pertencia

assim, a vocação própria ao jornal, o esqueci-

ao arquivo discursivo da arte. A fotografia per-

mento. Como afirma Danziger, os jornais tra-

tencia, até meados do século xix, ao discurso

duzem a falácia de um tempo homogêneo, acu-

topográfico da geologia e não ao saber estético,

mulando-se “numa massa de esquecimento,

cujo código visual de representação aplainada

transformam-se em dejetos da atualidade”.13

e comprimida transformou as vistas em paisagens. Foi só depois de 1860 que a fotografia

Um pensamento errante começa a flutuar e a

entrou verdadeiramente para a instituição arte

constituir outra experiência. É o sigiloso es-

e passou a ter lugar no discurso da história da

paço nômade do tempo que se abre diante da-

arte e nas paredes das galerias. Mais contem-

quele que observa esses jornais transfigurados

poraneamente, entretanto, os especialistas da

e cuja função de informar estranhamente de-

fotografia, segundo a autora, aplicaram os “con-

sapareceu. As fotos, privadas das legendas jor-

ceitos fundamentais do discurso estético ao ar-

nalísticas que tentam preencher o que elas não

quivo visual”.14 A noção de “arquivo visual” no

dizem, tomam a força poderosa do silêncio e se

texto de Krauss remete tanto ao móvel em que

articulam de viés com as palavras. Entre umas

se guardavam e expunham as vistas quanto à

e outras, há somente a distância que permite

noção de “formação histórica” proveniente da

um espaço crítico penetrar e realizar uma vi-

teoria foucaultiana sobre os discursos e as visi-

sibilidade não aparente do dispositivo apro-

bilidades do saber em A arqueologia do saber.

priado. Transformando esses jornais pelas investidas físicas sobre eles, Danziger expõe e

Ao mesmo tempo que o arquivo visual da fo-

problematiza a cultura do esquecimento con-

tografia foi absorvido pela arte, ele também

veniente aos meios de comunicação. Abrindo

apresentaria motivos de suscitar o interes-

fendas no arquivo da informação diária, faz

se da instituição policial. A análise que Tom

atravessar nele o movimento da dimensão

Gunning faz do processo de constituição da

poética do real. O tempo, que havia refluído

“sistematização de identificação fotográfica

para fora da imagem instantânea dos jornais

de criminosos do século xix” pode contribuir

diários, penetra vazio como memória sem lu-

para a compreensão dessa formação cultural

gar, ativando espaços críticos nos lugares pró-

que, com efeito, a fotografia ajudou a fundar,

prios da cultura da informação.

o arquivo. Gunning analisa as rogues galleries (galerias dos vilões), coleções de fotografias

A fotografia, guardando uma memória singular

dos procurados pela polícia, e mostra como o

do visível, teve papel fundamental para as poéti-

sistema policial reconhecia no novo procedi-

cas críticas que aqui destaco, por constituírem

mento a técnica que “imitava a aplicação ante-

o efeito-arquivo que desloca sentidos e afetos

rior da marcação a ferro quente” e como a aper-

estratificados. Rosalind Krauss, em “O espaço

feiçoava tecnologicamente.15 Porém a “própria

discursivo da fotografia”, afirma que, em mea-

natureza da fotografia, sua precisão detalhada

162


e sua instantaneidade”, como ele alega, cria-

ne guardados na agenda dos celulares, já não

ram problemas de organização e procedimen-

precisamos lembrar nem mesmo dos números

to, pois faltava a construção de um método que

das pessoas mais próximas. A cultura da me-

pudesse utilizá-la, bem como outros meios de

mória é uma cultura do esquecimento, pois

descrição e mensuração físicas, para fixar de

transfere todas as informações para os dispo-

modo permanente uma identidade e individua-

sitivos de arquivamento. A produção artística

lizar uma pessoa. O sistema policial juntaria

e crítica atual está atenta a esse arquivo que

a antropometria, a precisão óptica da câme-

ultrapassa a instituição arte enquanto tecno-

ra, um vocabulário fisionômico refinado e a

logia que implica técnicas da era digital, mas

estatística. O estudo de Gunning mostra que

também conhecimentos e subjetivações.

16

faltava ao sistema de identificação fotográfica “a inclusão em um arquivo de informações”; ci-

O trabalho de Leila Danziger mostra que apro-

tando literalmente palavras de Alan Sekula, ele

priar-se de imagens e discursos é assimilar

afirma que “o artefato central desse sistema

dispositivos de subjetivação, os quais deseja

não é a câmera, mas o arquivo”.

17

enfrentar com sua prática artística. Colecionando jornais, ela neutraliza o esquecimento;

É notável a gigantesca proliferação atual de

apagando imagens, faz ver figuras; gravando

dispositivos de visibilidade e de circulação de

balbucios poéticos, impulsiona outras falas.

imagens que incluem suportes tanto de produ-

A artista articula uma experiência do ver e do

ção como de arquivamento. Até a era digital, o

falar que ultrapassa o horizonte de um campo

número de fotografias tiradas em um evento

do conhecimento e atravessa, em movimen-

era normalmente reduzido, pois os filmes ti-

to indeterminado, a fotografia, a informação,

nham número limitado de poses e o preço da

a cultura de massa, a poesia. O olhar direto

revelação era alto. Hoje, com a memória digital

não tem mais lugar; busca-se nas artes hoje o

das câmeras atuais, podemos fotografar infini-

olhar de viés que, inventariando, processa es-

tamente um evento. Existem dispositivos au-

tratos do saber, círculos da memória e afetos

tomáticos para tomadas contínuas. Todos nós

do pensamento. É nesse sentido que a reflexi-

temos uma câmera, nem que seja a do celular.

vidade crítica contemporânea se diferencia da

Tudo é passível de ser fotografado, e muitas ve-

autorreflexividade moderna. Enquanto a refle-

zes continuamente. A toda hora clicamos para

xividade contemporânea quer abrir espaços

ter uma imagem, uma lembrança. A enorme

poéticos no exercício heterogêneo de práticas

facilidade de produzir fotografias é equivalen-

apropriadas, a autorreflexividade modernista

te à velocidade com que os dispositivos são

problematizava as convenções de uma mesma

substituídos e continuamente consumidos.

linguagem, tornando-a sempre mais própria

A velocidade com que os equipamentos sur-

ao exercício daquele lugar ou campo. Leila

gem nas prateleiras das lojas é a mesma que

Danziger efetiva sua poética da memória exer-

os faz desaparecer. O excesso de imagens para

cendo e propiciando espaços de resistência ao

nos fazer lembrar mostra a ansiedade e o medo

poder do esquecimento efetuado pelos dispo-

do esquecimento. Com os números de telefo-

sitivos do arquivo da cultura atual.

163


Publicado com o título “A poética da memória e o efeito-arquivo no trabalho de Leila Danziger” em Arte & Ensaios. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes, n. 19, Rio de Janeiro, 2009. 1 danto, Arthur. “O mundo como armazém: Fluxus e filosofia”. In: hendricks, Jon (org.). O que é o Fluxus? O que não é! O porquê. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2002. 2 pedrosa, Adriano & melendi, Maria Angélica. Rosângela Rennó: o arquivo universal e outros arquivos. São Paulo: CosacNaify, 2003. 3 fatorelli, Antônio. “Reconfigurações da imagem”. Comunicação oral proferida xii Encontro Internacional da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), São Paulo, 2008. 4 Ver o site do artista: http://www.nbp.pro.br. 5 danziger, Leila. “Pequenos impérios”, Galeria Cândido Portinari, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1999. Folder da exposição. 6 Ver o site da artista: http://www.leiladanziger.com 7 A série Nomes próprios (gravuras e livros) foi exposta na Galeria Thomas Cohn, São Paulo (1998), e na bbk, Galerie, Oldenburg, Alemanha (2000), bem como integrou a mostra coletiva itinerante WegZiehen [Ir embora], organizada pelo Frauenmuseum, em Bonn, Alemanha (2001–2). 8 danziger, Leila. “O jornal e o esquecimento”, Ipotesi. Revista de Estudos Literários, vol. 11, n. 2, Juiz de Fora, 2007, jul.–dez., p. 167–77. 9 A artista cita em seu artigo “O jornal e o esquecimento” (Op. cit., p. 172.) a frase de Nietzsche na qual o filósofo afirma que “apenas o que não cessa de doer permanece na memória”. 10 seligmann-silva, Márcio. “Escrituras da memória e da história”. In: Palavra e imagem: memória e escritura. Chapecó: Argos, 2006, p. 215–25. 11 lissovsky, Maurício. “O tempo e a originalidade da fotografia moderna”. In: doctors, Marcio (org.). Tempo dos tempos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. 12 Faço aqui referência ao título da exposição de Paul Strand, Olhar direto, organizada pelo Instituto Moreira Salles, em cartaz entre os meses de abril e julho de 2009. O título é referência aos dois momentos-chave da obra de Strand: quando o fotógrafo estava ligado ao movimento da fotografia modernista em seu país, a Straight Photography, e quando produzia retratos que aludiam ao lugar do fotógrafo através do olhar direto para a câmera. Cf; strand, Paul. Olhar direto. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2009. Catálogo. 13 danziger, Leila. “O jornal e o esquecimento”. Op. cit., p. 172. 14 krauss, Rosalind. “O espaço discursivo da fotografia”. In: O fotográfico. Barcelona: Gustavo Gili Br, 2002, p. 40–59. 15 gunning, Tom. “O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema”. In: charney, Leo & schwartz, Vanessa, R. (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: CosacNaify, 2001, p. 48. 16 Ibid., p. 57. 17 Ibid., p. 58.

164


165


Sem gaze nos olhos Wilton Montenegro

Descendo uma aleia do Parque Lage em di-

Por que uma porta semioculta? Estranha in-

reção ao que outrora pode ter sido uma ca-

terferência no espaço expositivo, essa porta/

valariça, ladeada pelo que outrora podem ter

passagem evidencia e propicia a necessidade

sido duas capelas; ante a primeira percebo

de solução: colocar um grande espelho incli-

duas amplas janelas góticas (a terceira não

nado para barrar a passagem, além de resolver

nos importará aqui) numa parede com tal-

esse problema, cria um jogo de espelhos escó-

vez mais de 50 cm de espessura. Ao entrar,

pico, I and eye multiplicando-me em outros, e

minha primeira constatação é de que a pro-

desdobra-se em algo que se possa tornar uma

fundidade das janelas desapareceu, oculta

rota de fuga, talvez passagem para alguma pe-

por dois grandes espelhos que acompanham

quena praça circular oculta em Veneza, com

seu desenho, e, como golpe imediato, apesar

portas que dão para diversos lugares no mun-

da perda da mirada para fora, essas janelas/

do, e só quem as conhece é um velho persegui-

espelhos constroem um interior muito mais

do pelos fascistas que ajuda Corto Maltese a

amplo, como se acabássemos de entrar no

escapar. Onírico.

museu de A invenção de Morel, construído para a “retenção das imagens que se formam

Ao lado da porta semioculta uma grande pro-

nos espelhos”. Oposta a essa parede, uma

jeção revela-se na falta de qualidade propo-

porta escondida atrás de um amplo espe-

sital para que não se perdesse certa inocên-

1

lho que a encobre apenas o suficiente para

cia e cumplicidade no ato de filmar: diversas

que se a entreveja. Antes que possamos dar

mulheres divertindo-se numa praia em Jaffa,

mais algum passo observador ao conjun-

onde a artista parecia apenas mais uma. “Meu

to das obras expostas, nos reconhecemos

abuso consiste em tê-los fotografado sem au-

refletidos no primeiro espelho, para logo em

torização”.2 Claro que, numa praia do Oriente

seguida sofrer um pequeno susto com a pre-

Médio, as mulheres que vemos são principal-

sença de mais alguém no espaço: alguém de

mente mulheres cobertas; cobertas com véus

costas – somos nós mesmos no contraespelho –

diversos, jogando bola na beira d’água; mães

Unheimlichkeit.

com crianças; a bela que passa, misteriosa,

166


de óculos escuros; a de cabelos soltos e roupa

processo de transferência de sentido. [Como

colorida – meio hippie – dançando; outra um

no texto/objeto:] Cada objetivo é construído

pouco mais deslocada, isolada mesmo, sen-

sobre o traço daquela perspectiva que ele ra-

tada num muro, dispersa, mirando sem mirar

sura; cada objeto político é determinado em

algum horizonte abissal – inevitabilidade e

relação ao outro e deslocado no mesmo ato

ausência; e sendo mirada pela artista – metavi-

crítico”.4

são e alteridade. De repente um pequeno grito, o som mais perceptível em todo o vídeo, uma

Sem olhos em Gaza é o título de um romance de

voz feminina adulta profere um nome em dire-

Aldous Huxley escrito em 1936 e ambientado

ção a duas crianças que brincam no mar: Eli...

na Europa dos anos 1930, em que o orgulhoso

e outro: Davi! Alerta ou invocação? Naquele lu-

personagem masculino é incapaz de perceber

gar em que todas as mulheres se divertem e pa-

os acontecimentos do entorno. O romance, por

recem livres entre si, uma cena de casamento:

sua vez, abre com uma citação do cego John

uma delas é entregue a um homem – a cerimô-

Milton, “Eyeless in Gaza at the Mill with Sla-

nia é bela e reveladora: sagração da primavera.

ves”, no poema Samson Agonistes, sobre o juiz

Tudo se confunde.

guerreiro comparado ao mito de Narciso, que acabou cego e aprisionado, traído por sua vai-

Algo une a imagem no espelho (eventualmente

dade.5 A essa incapacidade de ver contrapõe-se

a própria artista) à mulher na praia sentada no

a extremada e dolorida capacidade de visão da

muro: ambas são desaparecimentos. Oposta

artista, que se recusa a colocar qualquer véu

a elas, a mulher que filma, por sua vez, torna-

ante os olhos, produzindo, há alguns anos,

-se outro duplo: vigia e assombra: um deles,

em determinadas obras um processo de apa-

mais da ordem da estética, é o que tenta a ar-

gamento (veladura/desvelamento/revelação)

tista/vigia a incorporar-se ao mundo proibido

em que aflora o oculto por trás da rasura.

(só permitido à mulher), através das “imagens

“[...] o que se apaga habita o que se inscreve [...]

[que] não vivem. Ainda assim, me parece que,

jogo de presença/ausência, como jogo em

de posse desse aparelho, seria o caso de inven-

différance, que não se prende à oposição, mas

tar outro, que permita averiguar se as imagens

desliza nelas, uma requisitando a outra, uma

sentem e pensam – ou, ao menos, se têm os

como rastro da outra.”6 Assim o rastro é apaga-

pensamentos e as sensações que passaram

do, precisa ser; mas esse apagamento sempre

pelos originais durante a exposição”; o outro

deixa seu/outro rastro no tempo, do qual aflo-

assombra – é da ordem da política – ao impedir

ra o Ser sob rasura, sua própria questão. Não

toda negação e transcendência da diferença:

há diferença, salvo de suporte, entre o jornal

desloca o centro, descentra o eu e o Outro; des-

apagado e o tesouro familiar das agendas em

loca o tempo, não há mais passado e presente.

branco, ou das louças quebradas e das não

No vértice, o desejo.

usadas, ou entre botões guardados em peque-

3

nas caixas. As agendas em branco de diferenE algo mais ainda liga as mulheres e os apaga-

tes anos são montadas em páginas abertas em

mentos: na praia “cada posição é sempre um

dias de anos em que nada ocorreu na vida das

167


pessoas às quais as agendas se destinavam

que permite ler aquilo que ela oblitera, inscre-

e que permanecerão incógnitas, anônimas, vi-

vendo violentamente no texto aquilo que bus-

das em branco das quais não se sabe memó-

cava comandá-lo de fora...”, diz Derrida.8

ria. Tanto as louças como os botões, em determinado momento, servirão de elementos de

A inscrição no livro apagado instiga outra lei-

composição para uma memória mais ampla,

tura: ainda que o ex-texto possua inscrição e

dentro de quadros com imagens fotográficas.

leitura ocidental, da esquerda para a direita, e

Na arqueologia de alguns deles, afloram cacos

a figura inscrita caminhe no mesmo sentido –

ou uma pequena torá (“minha torá”, disse ela)

ereta, desafiante –, ela anda sobre, sobreposta

da areia contida dentro, mas cujo destino ine-

ao racismo, em direção à África, como a afirmar

vitável é escorrer pelas frestas. Já esses botões

certo orgulho de sua condição rebelde: Rache. O

constituem uma estranha parábola paradoxal:

desenho na página aberta é um contorno qua-

num sistema de classificação singular – da

se sem estilo que sugere a demissão da mão:

própria família – hesitam entre permanecer

ali é o território de todos os conflitos. Todavia,

um pequeno tesouro ou aparentar-se com

nos apagamentos de jornais, eventualmente a

uma espécie de migrantes encaixotados que

mesma figura caminha no sentido inverso; al-

jamais conheceram suas próprias casas: união

guns dos jornais apagados têm leitura oriental,

na dispersão.

da direita para a esquerda, outros, ocidental, e as inserções ocupam diferentes planos, similar

“Minha torá”, disse-me ela. Fazer um livro sa-

a uma página de Mallarmé no Un coup de dés,9

grado. Mas todo texto é constituído por outros

porém com o acréscimo de poderem ser visual-

textos, não tem corpo próprio, donde não ter

mente lidos também de baixo para cima, ou em

autor, origem, propriedade intelectual; é antes

qualquer diagonal, ou ainda em qualquer outra

de tudo a soma do já ouvido ou lido – e assim

ordem, leitura en abîme, desfalecendo, Abgrund,

é em cada escrito e em todos os antecedentes,

em estupor ante o abismo.10 Esse encontro de

e aos quais o nosso se irá juntar – ainda que

Ocidente e Oriente não ocorre linear, historica-

disso não tenhamos conhecimento conscien-

mente, mas de outras maneiras aqui e em toda a

temente. Como a duvidar de sua própria afir-

sua obra, tempo multíplice, temporalidade.

mação, dessacraliza inscrevendo, por cima do apagamento de um livro racista, Banzo, de

Quando a visibilidade histórica já se

Coelho Neto, um desenho – parece gravado a

apagou, quando o presente do indicativo

fogo na carne do livro –, um carimbo que de-

do testemunho perde o poder de capturar,

nuncia a condição escrava (ainda?, talvez ela se

aí os deslocamentos da memória e as

pergunte) e desloca o conceito que não se dei-

indireções da arte nos oferecem a imagem

7

xa apropriar, pertencer, que testemunha um

da nossa sobrevivência psíquica. Viver

desenraizamento, mesmo que a diferença do

no mundo estranho [...] encontrar sua

completamente outro nunca possa ser anula-

separação e divisão representadas na obra

da: “Sim, por meio desse duplo jogo, marcado

de arte, é também afirmar um profundo

em certos lugares decisivos, por uma rasura

desejo de solidariedade social.11

168


No vídeo Pallaksch Pallaksch, há uma cena em

trem que seguia – a vida toda – para o norte.”12

que uma página de jornal é levada pelo vento,

As palavras lembrar/esquecer dão título à obra

creio, e em determinado momento o que se vê

na qual estão escritas sobre jornais apagados.

são enormes manchas escuras com a forma dos

De dentro da rasura, recusando a camuflagem,

continentes entremeadas com as manchas de

“pela moldura da porta/ vejo seu contorno [...]

texto: parece uma camuflagem. “Eu sou aque-

em algum lugar, chamam pelo nome que cos-

la que esqueceu a máquina fotográfica em um

tuma ser o [s]eu”:13 Leila Danziger.

bioy casares, Adolfo. A invenção de Morel. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 83. Tradução de Samuel Titan Jr. Ibid., p. 79. 3 Ibid., p. 97. 4 bhabha, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da ufmg, 2010, p. 53. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. 5 huxley, Aldous. Sem olhos em Gaza. São Paulo: Globo, 2001, p. 7. Tradução de V. de Miranda Reis. 6 continentino, Ana Maria Amado. “A alteridade no pensamento de Jacques Derrida: escritura, meio luto, aporia”. Tese de doutoramento em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2006, p. 39. 7 coelho neto, Henrique Maximiano. Banzo. Porto: Lello & Irmão Editores, 1912. 8 Jacques Derrida citado em continentino, Ana Maria Amado. “A alteridade no pensamento de Jacques Derrida: escritura, meio luto, aporia”. Op. cit., p. 21. 9 mallarmé, Stéphane. Un coup de dés jamais n’abolira le hasard. Paris: Gallimard, 1997. 10 Talvez Lukács tivesse razão sobre a Escola de Frankfurt parecer estar hospedada no Grande Hotel Abgrund. Afinal, logo após, a Europa entrou em sua grande noite abissal. 11 bhabha, Homi K. O local da cultura. Op. cit., p. 42. 12 danziger, Leila. Três ensaios de fala. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p. 29. 13 Ibid., p. 25–6. 1 2

169


170


Nomes pr贸prios (fragmento) [1998] Serigrafia sobre papel de arroz, papel Hahnem眉hle, guache e folha de cobre 52 x 25 cm






Nomes próprios (livro) [1998] (páginas 172–173) Nomes próprios (detalhe) [1996] Fotogravura sobre papéis diversos, grafite e óleo de linhaça 240 x 400 cm Coleção Thomas Cohn, São Paulo

Fotogravura e serigrafia sobre papéis diversos, óleo de linhaça, grafite e encadernação 28 x 40 cm (aberto) 32 páginas Acervo Frauen Museum, Bonn, Alemanha



Ciranda [1998] Museu de Arte Contempor芒nea, Niter贸i



Para Josepha Gutman [1998] Serigrafia sobre papéis diversos, óleo de linhaça e grafite 48 x 80 cm 16 páginas Acervo Frauen Museum, Bonn, Alemanha (página 179) Würzburg [1998] Serigrafia sobre papéis diversos, óleo de linhaça e grafite 48 x 80 cm 24 páginas Mesa de madeira e lâmpada elétrica Galeria Thomas Cohn, São Paulo



Würzburg [1998] Serigrafia sobre papéis diversos, óleo de linhaça e grafite 48 x 80 cm 24 páginas Mesa de madeira e lâmpada elétrica (página 181 / parte superior) Para Josepha Gutman #1, (díptico) [1998] Serigrafia sobre papel de algodão, óleo de linhaça e intervenção manual 84 x 52 cm (página 181 / parte inferior) Para Josepha Gutman #2, (díptico) [1998] Serigrafia sobre papel de algodão, óleo de linhaça e intervenção manual 84 x 52 cm



Würzburg [2000] Serigrafia sobre papéis diversos, óleo de linhaça e intervenção manual 70 x 208 cm



Josepha! Ruth! NoĂŤmi! Miriam! [2003]

Greifswalder Strasse 138 [2003]

Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aço

Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aço

85 x 40 cm

170 x 40 cm


Wann [2003] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aรงo 170 x 40 cm Oh quand refleuriront, oh roses, vos septembres? [2003] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aรงo 170 x 40 cm


Vista do ateliĂŞ, janeiro de 2003



Greifswalder Strasse 138 [2003] Fotogravura e carimbo sobre jornais apagados Dimensões variáveis IFA-Galerie, Berlim, Alemanha

Ruth Nube, autora do artigo “Spurensuche: Kinderort, Greifswalder Strasse 138”, publicado no jornal Der Tagespiegel, em 11 de outubro de 1994, que deu origem à série de trabalhos dedicados a Josepha Gutman IFA-Galerie, Berlim, Alemanha


PARA PAUL CELAN

191


A língua paterna Leila Danziger Todos os nomes, todos os nomes incinerados juntos. Tanta cinza para abençoar. Tanta terra conquistada sobre os leves, tão leves Anéisalmas. Chymisch, Paul Celan1

Nascida no Rio de Janeiro, na década de 1960,

Em “Discurso de Bremen”, Celan evoca sua

herdei de modo particular a língua alemã. Não

paisagem de origem, o lugar natal dos con-

como linguagem comunicativa, destinada a

tos hassídicos, trazidos para o idioma alemão

criar laços com o cotidiano e os familiares,

por Martin Buber. Originário da Mitteleuropa

tampouco com o passado, em momentos de

como Kafka e Canetti, Celan nunca foi cida-

comemorações. Herdei a língua alemã como

dão alemão. Mesmo a política de extermínio

uma espécie de monumento – opaco, estanque,

e a violência manifesta na linguagem admi-

supostamente desativado –, sinalizando sobre-

nistrativa do Terceiro Reich (repleta de perí-

tudo perdas, e mesmo estas permaneceriam

frases e eufemismos que visavam silenciar os

infensas à rememoração.

crimes) foram incapazes de fazê-lo abandonar a língua materna. Reconhecendo o cará-

“Não vejo diferença de princípio entre um aper-

ter degradado da língua alemã e negando-se

to de mão e um poema”, escreveu Paul Celan.

simplesmente a não mais pronunciá-la, Celan

Poemas são encontros. “Poemas são também

afirma o esforço daquele que vai à língua com

presentes – presentes aos atentos. Presentes

seu ser “ferido de realidade e em busca de

que levam consigo um destino.” Sem exage-

realidade.”3 A complexa adesão à língua alemã

ros, posso dizer que a poesia de Celan reati-

é afirmada de modo radical:

2

vou esse monumento sonoro – a língua alemã –, misto de familiaridade e profunda estranheza,

Alcançável, próximo e não-perdido

reabilitando-me lentamente, de modo crítico,

permaneceu em meio às perdas este único:

à língua paterna. Simultaneamente, orientou a

a língua. Ela, a língua, permaneceu não-

busca de realidade – o atrito do mundo – sem o

-perdida, sim, apesar de tudo. Mas ela teve

qual o trabalho em artes plásticas fecha-se em

de atravessar as suas próprias ausências

purismos ou perde-se em virtualidades.

de resposta, atravessar um emudecer,

192


atravessar os milhares de terrores e o

linguagem é o nome próprio – “ponto em que a

discurso que traz a morte. Ela atravessou

linguagem humana atinge a mais íntima par-

e não deu nenhuma palavra para aquilo

ticipação na infinitude divina da palavra pura

que ocorreu; mas atravessou este ocorrido.

e simples, o ponto em que não pode tornar-se

Atravessou e pôde novamente sair

palavra finita nem conhecimento”.8 O nome,

“enriquecida” por tudo aquilo.4

fechando-se ao caráter instrumental, não comunicando nada além de si mesmo, detém a

Convivo com a poesia de Paul Celan desde 1987.

dimensão criadora da linguagem. Também

Se o idioma pouco a pouco perdeu opacidade,

Flusser afirma:

a poesia resiste a entregar-se. Tenho seguido o conselho do poeta oferecido a Israel Chalfen,

Os nomes próprios são tirados do caos

quando este pediu-lhe que interpretasse um

do vir-a-ser para serem postos para cá

poema: “Leia! Continuamente apenas leia, a

(hergestellt), isto é, para serem postos para

compreensão vem por si mesma.” Lembro-me

dentro do intelecto. Tirar para por para cá

5

também da advertência de Gadamer sobre os

se chama, em grego, poiein. Aquele que

perigos de interpretações exaustivas. Uma in-

tira para propor, aquele que “produz”,

terpretação é correta apenas quando termina

portanto, é o poietés. A atividade do

por se apagar, sendo completamente integrada

chamar, a atividade que resulta em nomes

a uma nova experiência do poema. À pergunta

próprios, é, portanto, a atividade da

“O que deve saber o leitor de Celan?” responde o filósofo: ele deve saber tanto quanto possa

intuição poética. [...] Os nomes próprios são produto da poesia.9

suportar. Deve saber o que seu ouvido poético seja capaz de ouvir sem ensurdecer. Frequen-

O apelo ao nome é constante na poesia de

temente será bem pouco, mas será melhor que

Celan. Em “Conversa na montanha”, cena cre-

se souber em excesso.6

puscular em que“o sol, e não apenas ele tinha se posto”,10 o judeu atravessa a paisagem pos-

Comecei a ler Celan em traduções francesas,

suindo apenas um bordão e“seu nome, o in-

tentando confrontar-me com o texto em ale-

dizível” [“sein Name, der unaussprechliche”]

mão, procurando suas vias de acesso, como

Mas até mesmo seu estranho nome de judeu

os pronomes pessoais ich/du e os inúmeros

– bem único, marca de alteridade – está conde-

nomes próprios: Marianne, Sulamith, Ruth,

nado, como todo o universo ao qual pertence,

Brest, Bretagne, Mandelstam. Estes efetiva-

ao desaparecimento ou, em termos mais exa-

mente rompiam a opacidade do poema em

tos, ao extermínio.

alemão, possibilitando a sentença de Vilém Flusser: “O nome próprio, incrustado dentro

“Chymisch”, poema do livro [Die Niemandsrose

do verso como um diamante dentro do miné-

[A rosa-de-ninguém], tem início com a evoca-

rio, cintila.” O pensamento de Flusser estabe-

ção de um sacrifício: “Silêncio, como ouro

lece continuidade com a filosofia da linguagem

cozido,/ em mãos/ carbonizadas” – e prosse-

de Walter Benjamin, para quem a essência da

gue pela queima de nomes: “Todos os nomes,

7

193


todos os/ nomes incinerados/ juntos. Tanta/

judaico-alemão, produto ainda do universalis-

cinza para abençoar. Tanta/ terra conquistada/

mo e tolerância iluministas. No texto “Proust e

sobre/ os leves, tão leves/ Anéis-/almas.” Este,

os nomes”, Roland Barthes afirma que:

entre tantos outros poemas de Celan, adquiriu ainda mais sentido quando encontrei, em

o nome próprio é um signo, e não um

1994, a imensa listagem dos judeus alemães

simples indício que designaria sem

assassinados pelos nazistas. Ver meu nome

significar [...]. Como o signo, o nome

de família impresso dezenas de vezes fez com

próprio se oferece a um deciframento: ele

que o percebesse de modo particular. Deu-lhe

é ao mesmo tempo um ‘meio’ (no sentido

peso, densidade e um particular senso de res-

biológico do termo), no qual é preciso

ponsabilidade.

mergulhar, banhando-se indefinidamente em todos os devaneios que ele traz, e

Comecei então a conviver com estes nomes, lê-

um objeto precioso, comprimido,

-los, relê-los de modo a dar-lhes inicialmente

embalsamado, que é preciso abrir como

vida na memória, repeti-los como uma espé-

uma flor.12

cie de litania. A quase total ausência de nomes considerados tipicamente judaicos parece

Recusado o lirismo da citação de Barthes, terri-

testemunhar a certeza tranquila na cidadania

velmente deslocado em relação aos nomes dos

alemã, adquirida ao cabo de um longo proces-

judeus assassinados, ainda podemos aceitar a

so. Na série Nomes próprios, quis dar materia-

sugestão de neles imergir como num “meio”,

lidade aos nomes, resgatá-los da morte anôni-

mergulhando-se assim em camadas de histó-

ma e serial, expressa pela repetição da palavra

ria, a densidade que faz pulsar esses corpos de

verschollen [desaparecido], destino da maioria

ausências, que são os nomes dos deportados.

dos deportados. “Desaparecido” significa as-

Como explica Hannah Arendt, um dos aspec-

sassinado, carbonizado, transformado em fu-

tos mais fascinantes da história judaica é o fato

maça, disperso no ar: “Ninguém nos molda de

de que os judeus tomaram parte ativa na his-

novo da terra e do barro,/ ninguém evoca nosso

tória europeia precisamente porque eram um

pó./ Ninguém./ Louvado sejas, Ninguém”.11

elemento intereuropeu e não nacional, em um mundo no qual só as nações existiam ou esta-

As gravuras e livros-objetos que integram a

vam a ponto de surgir.13 Também no verbete

série Nomes próprios buscam reinscrever os

“juif” da Encyclopédie, de Diderot e D’Alembert,

nomes das vítimas no tempo e no espaço, dar-

os judeus figuram como elemento de ligação e

-lhes aquilo que perderam: corpo. Mas a única

equilíbrio entre as nações.14

corporeidade possível para estes que foram um dia plenos de vida e densidade é a forma da

Nomes-rostos

ausência. O trabalho instala-se justamente na

Trabalhar com meu próprio sobrenome – os

tentativa de fazer pulsar a ausência, potenciali-

76 Danziger encontrados nas páginas 241 e

zá-la, atestar a atualidade dos nomes nos quais

242 do Livro da memória da comunidade ju-

se inscreve o trágico desfecho do “amálgama”

daico-alemã – significa questionar a força de

194


atração, o poder latente da ausência, compre-

ada pelo desejo de refletir a própria estrutura

endida como força organizadora e operante.

da memória: instável, formada por sedimen-

Ao contrário de países europeus, onde possuir

tos, falhas, irrupções abruptas e obscuridades.

sobrenome estrangeiro significa e, claro, com

Com cada um dos nomes, acompanhados das

frequência segrega, em nosso país podemos

breves informações sobre suas origens e desti-

nos chamar como queremos. Sobrenomes de

nos, foi feita uma matriz de gravura em metal.

origem não lusitana conferem certo prestígio

As 76 matrizes, por sua vez, foram impressas

abstrato, mas não chegam propriamente a sig-

em papel impregnado por óleo de linhaça.

nificar. (O que aconteceu com os nomes dos

As gravuras formam uma superfície compacta

índios e dos africanos trazidos como escra-

de 400 x 220 cm. Nem pedra nem bronze, os

vos?) Nomes não nos aprisionam, tampouco

nomes ganham corpo em camadas de papel,

nos liberam. Na verdade, levitamos num teci-

material frágil e sensível à passagem do tempo.

do histórico frágil e incipiente que nos deixa vulneráveis à construção de identidades ofi-

Em processo contínuo, à série Nomes próprios acrescentaram-se livros que, despojados de

ciais e postiças.

função explicitamente comunicativa, enfatiConsidero os nomes próprios densos núcle-

zam o aspecto sensível dos materiais. Cada um

os de sentido. Em sua soberania, resistem à

desses livros-objetos parte de um documento

manipulação, recusam a tornar-se coisas, são

(texto, artigo de jornal ou fotografia) e pretende

como faces humanas: “[...] os nomes de pesso-

conferir-lhe – pela gravura, entre outras opera-

as, cuja ‘afirmação’ significa um semblante – os

ções – nova materialidade. A necessidade de re-

nomes próprios no meio de todos esses nomes

verter o caráter volátil que as imagens adquirem

e lugares comuns – não resistem à dissolução

nos meios de comunicação de massa é o que

do sentido e não nos ajudam a falar?”15 Para

me faz acentuar os dois polos do trabalho em

Emmanuel Lévinas, o rosto é inviolável.

gravura: por um lado, a elaboração da matriz e,

Os olhos, inteiramente desprotegidos, são a

por outro, a de suportes sensíveis à recepção da

parte mais nua do corpo humano, mas ofere-

imagem gravada. Queria dar corpo e espessura

cem resistência absoluta à posse, resistência

às imagens, mas percebo que evidencio ainda

absoluta em que se inscreve a tentação do as-

mais sua fragilidade, seu caráter incorpóreo e,

sassinato: a tentação de uma negação absoluta.

desse modo, elas continuam existindo apenas

“Essa tentação do assassinato e essa impossi-

na superfície das coisas. Queria uma imagem-

bilidade do assassinato constituem a própria

-cicatriz e me deparo com a imagem-membrana.

visão do rosto.” Ver um rosto significa ouvir de

A gravura não impõe sua presença na matéria

imediato: “Não matarás.”

espessa do papel, não ganha o combate, não

16

leva a melhor. O papel permanece mais real do

Nomes-monumentos

que a imagem. (É constante o sentimento de

A lista de nomes com os 76 Danziger surgiu

tentar pescar uma baleia com um anzol de pes-

como num encontro marcado – imediato apelo

ca, de ter acesso apenas a instrumentos frágeis

ao testemunho. A série de trabalhos é perme-

diante de um real brutal e opaco.)

195


De caráter interminável, os livros parecem

que atravessa os jornais e organiza o espaço.

sempre à espera de mais um gesto de acrés-

Greifswalder Str. 138 surge da contínua reim-

cimo ou subtração. Entregues ao contato e ao

pressão dos textos de Gutmann e Nube, ten-

manuseio, são organismos vivos, submetidos

tativa de atualizá-los e dar continuidade ao

às transformações do tempo. Construindo-

trabalho de memória que se fixa precaria-

-se em camadas, parecem dotados de poder

mente em breves configurações de imagens e

de absorção, voltando-se sobre si mesmos.

palavras. Esses textos funcionam, por sua vez,

Alimentam-se, não obstante, de mundo e de

como polos que atraem outros testemunhos,

história, conjugam interior e exterior, público

outras camadas de textos, como extratos de

e privado, pessoal e coletivo. A expansão dos

poemas de Celan inseridos em continuidade

livros continuou nas mesas de madeira, que

com o texto epistolar de Gutmann, ou apenas

de meros suportes passaram a constituir ati-

com seu nome, declinado nos diminutivos

vamente o trabalho. Como se um poderoso

com que assina suas cartas – Josepha, Sephie,

processo de erosão tivesse decomposto os

Sephinka. Como não ouvi-los no chamado di-

livros que não existem apenas “sobre” as me-

rigido a Ruth, Noëmi e Mirjam, em In Ägyten?

sas e sim delas se apoderam e interferem em

“Você deve chamá-las das águas: Ruth, Noëmi,

sua estrutura e substância. A poética de Celan

Mirjam!” [“Du sollst sie rufen aus dem Wasser:

sempre no horizonte: “Na longa mesa do tem-

Ruth! Noëmi! Mirjam!”]20 Talvez um subtítulo

po/ embebedam-se os cântaros de Deus/ Eles

para esse trabalho seja Landschaft mit Urnenwe-

esvaziam os olhos de quem vê e os olhos de

sen [Paisagem com urnas-vivas],21 pois com-

quem não [...].”

preendo os jornais como paisagens minadas

17

por urnas, arcas, núcleos de sentido que são

“Pallaksch. Pallaksch.”

os nomes próprios e as palavras com força de

A poesia de Celan esteve ainda presente na

testemunho. Ao substituir a linguagem jorna-

instalação Greifswalder Str. 138, realizada em

lística pela poesia e pelo texto de testemunho,

março de 2003. O trabalho parte de um artigo

creio simplesmente seguir orientações presen-

18

do jornal Tagespiegel, escrito por Ruth Nube,

tes em “Tübingen, Janeiro”, poema-referência

moradora de Berlim, a partir da correspondên-

aos anos de isolamento de Hölderlin, no qual

cia entre seu pai e uma jovem educadora as-

Celan sugere que a língua da atualidade seria

sassinada em Auschiwtz, aos 24 anos: Josepha

um contínuo balbuciar:

Gutmann. O título remete ao endereço onde 19

funcionou, entre 1938 e 1942, um abrigo para

(...)

crianças judias mantido por Gutmann. Nesse

Viesse

trabalho quis “devolver” o artigo ao fluxo dos

viesse um homem

jornais, mas jornais apagados, literalmente

viesse um homem ao mundo, hoje, com

descascados e esvaziados, inutilizados em

a barba de luz dos

sua função informativa. Trata-se de reimpri-

Patriarcas: ele poderia

mir a voz de Josepha Gutmann, reportada por

se falasse ele deste

Ruth Nube, transformá-la em moto-contínuo

tempo, ele

196


poderia

dos sons que articulava –, o menino aparenta-

apenas balbuciar e balbuciar

va três anos; mesmo doente e paralisado, ten-

sempre –, sempre –,

tava desesperadamente aprender a língua dos

continuamente.

homens. Suas experiências com a linguagem detêm, por breves instantes, caráter redentor e

(”Pallaksch. Pallaksch.”)

22

transformam aquela barraca do campo de extermínio em uma Torre de Babel:

Celan confere assim forma poética contundente às aporias do testemunho: tentar falar

De noite ficávamos de ouvido bem abertos:

deste mundo marcado por tantas catástrofes

era verdade, do canto de Hurbinek vinha

resulta numa fala traumatizada, uma contínua

de quando em quando um som, uma

‘lalação’ – lallen und lallen –, sem que se apre-

palavra. Não sempre exatamente a mesma,

sente a possibilidade de desistir desta “tarefa

para dizer a verdade, mas era certamente

infinita”, orientada pelo compromisso ético de

uma palavra articulada; ou melhor,

despertar para uma realidade sempre dolorosa.

palavras articuladas ligeiramente diversas,

Ao relatar a experiência de um curso de pós-

variações experimentais sobre um tema,

-graduação em Yale dedicado à literatura de

uma raiz, sobre um nome talvez.

testemunho, Shoshana Felman cita o depoimento de um homem e menciona entre parên-

Hurbinek continuou, enquanto viveu, as

teses que “não era judeu”:

suas experiências obstinadas. Nos dias seguintes, todos nós o ouvíamos em

A literatura tornou-se para mim o lugar

silêncio, ansiosos por entendê-lo, e havia

de minha própria gagueira. A literatura

entre nós falantes de todas as línguas

como aquilo que pode testemunhar

da Europa; mas a palavra de Hurbinek

sensivelmente o Holocausto, me dá a voz,

permaneceu secreta. Não, não devia

o direito e a necessidade de sobreviver.

ser uma mensagem, tampouco uma

Porém, não posso descartar a literatura

revelação: era talvez o seu nome, se tivesse

que, no escuro, acorda os gritos, que abre

tido a sorte de ter um nome [...].24

as feridas e me faz querer cair em silêncio. Arrebatado por dois desejos contraditórios

Talvez seja essa palavra secreta, esse nome

e simultâneos, falar ou não falar, consigo

para sempre desconhecido, que Primo Levi

apenas gaguejar.23

discernia na poesia de Celan, comparada, pelo escritor italiano, a um balbuciar inarticulado

A fala balbuciante, instalada entre a urgência

ou ao murmúrio de um moribundo.25 O meni-

e a impossibilidade, nos lembra Hurbinek,

no Hurbinek encarna simultaneamente estes

uma criança de Auschwitz cujo único indício

dois polos: o inaugural e o agônico. Sua fala,

de vida é o testemunho deixado por Primo Levi

transcrita por Levi (mass-klo, matisklo), man-

em A trégua. Chamado pelos próprios prisio-

tém intacta, apesar do esforço de “todas as lín-

neiros de Hurbinek – nome sugerido a partir

guas da Europa”, a opacidade original.26

197


Mas na poesia de Celan podemos talvez discer-

diminuiu nos últimos 35 anos,

nir ainda algo do “som vivo” da língua alemã,

tornou-se maior. [...]

em sua nova atualidade obscurecida e fraturada. Pois não era justamente o “som vivo” que

Para muitos de nós, o som vivo que os

Gershom Scholem tanto admirava na tradução

senhores procuravam evocar na língua

alemã da Bíblia, trabalho de Martin Buber e

alemã desvaneceu-se, surgirá alguém para

Franz Rosenzweig? Enquanto a tradução de

recuperá-lo?29

Moses Mendelssohn, no final do século xviii, foi o “Portal” pelo qual os judeus ingressa-

Ao continuar a escrever poesia na língua mar-

ram no espaço da língua alemã, a de Buber e

cada “pelos milhares de trevas de discursos

27

Rosenzweig sela o término brutal, mais cruel

que trazem a morte” [“die tausend Finsternisse

do que qualquer prognóstico, do chamado

todbringender Rede”], Celan restitui-lhe certa

“amálgama” judaico-alemão. Concluída ape-

humanidade e a devolve – “enriquecida”, em

nas por Buber – Rosenzweig morre em 1929 –,

toda a complexidade do termo – aos judeus e

a obra é saudada por Gershom Scholem em ter-

aos alemães (sejam eles europeus, turcos ou

mos que lembram um Kaddish, a prece judaica

ainda todos que reivindicam a língua alemã

pelos mortos. Quando a tradução teve início,

para si mesmos).

a obra de Buber e Rosenzweig era “uma espécie de presente que o judaísmo alemão deu

Em um poema de Atemwende, Celan fala de

ao povo alemão, um ato simbólico de aptidão

“nossos nomes” modelados de miolo de pão:

após sua partida. E que presente dos judeus à

“De suas migalhas/ você modela de novo nossos

Alemanha poderia ser tão pleno do significado

nomes” [“Aus seiner Krume/ knetest du neu uns-

histórico como a tradução da Bíblia?” A Shoá,

re Namen”].30 Fascinante neste poema, entre

contudo, transmuta o presente simbólico da

outros aspectos, é a materialidade e a plastici-

tradução na lápide “de um relacionamento

dade do nome. Se é inevitável, lembra Gadamer,

que se extinguiu em horror indescritível.” En-

a associação com a passagem do Gênesis, sem

dereçando-se a Buber, pergunta Scholem:

contar ressonâncias com o misticismo judai-

28

co,31 cabe ressaltar que os nomes são feitos não

198

Os judeus para quem os senhores

de barro, mas de pão, já produto do trabalho

traduziram não mais existem. Seus

humano. No poema, a tarefa de nomear consti-

filhos, que escaparam deste horror,

tui-se numa operação material e concreta. Tra-

não mais lerão o alemão. A própria

ta-se aqui do nome próprio, aquilo que nos é

língua alemã sofreu profunda

concedido ao nascer, mas que deverá ser cons-

transformação nesta geração, [...].

truído ao longo da vida, in-formado, modelado

E ela não se desenvolveu na direção

e remodelado, em uma tarefa certamente in-

daquela utopia linguística a que seu

findável. Em um projeto mais amplo, gostaria

empreendimento empresta testemunho

justamente de dar forma, de realizar no “real”

tão impressionante. O contraste entre

estético, algumas das aporias que as imagens

a língua de 1925 e sua tradução não

poéticas de Celan verbalmente constroem.


Publicado em finazzi-agró, Ettore & vecchi, Roberto (orgs.). Formas e mediações do trágico moderno. São Paulo: Unimarco Editora, 2004, p. 41–52. 1 “Alle die Namen, alle die mit-/ verbrannten/ Namen. Soviel/ zu segnende Asche. Soviel/ gewonnenes Land/ über/ den leichten, so leichten/ Seelen-/ Ringen.” celan, Paul. “Chymisch”. In: Ausgewählte Gedichte. Frankfurt: Suhrkamp, 1968, p. 80. 2 celan, Paul. “Carta a Hans Bender”. In: Cristal. São Paulo: Iluminuras, 1999, p. 166. 3 celan, Paul. “Ansprache anlässlich der Entgegennahme des Literaturpreises der Freien Hansestadt Bremen”. In: Ausgewählte Gedichte. Op. cit., p. 129. 4 citado em seligmann-silva, Marcio. “A história como trauma”. In: nestrovski, Arthur & seligmann-silva, Marcio (orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000, p. 95–6. 5 chalfen, Israel. Paul Celan. Eine Biographie seiner Jugend. Frankfurt: Suhrkamp, 1983, p. 7. 6 gadamer, Hans-Georg. “Postface”, In: Qui suis-je et qui est-tu? Commentaire de Cristaux de Souffle de Paul Celan. Arles: Actes Sud, 1987. 7 flusser, Vilém. A dúvida. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999, p. 67. 8 benjamin, Walter. “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana”. In: Sobre arte, técnica, lingua gem e política. Lisboa: Relógio d’Água, 1992, p. 187. 9 flusser, Vilém. A dúvida. Op. cit., p. 65. 10 celan, Paul. “Conversa na montanha”, Inimigo Rumor, n. 8, Rio de Janeiro, 2000, p. 66. Tradução de Vera Lins. 11 celan, Paul. “Salmo”. In: Cristal. Op. cit., p. 95. 12 barthes, Roland. “Proust et les noms”. In: Le degré zero de l’écriture. Paris: Seuil, 1972, p.125. 13 arendt, Hannah. “Sur l’antisemitisme”. In: Les origines du totalitarisme. Paris: Seuil, 1984, p. 62. 14 In: pons, Alain (ed.) Encyclopédie ou Dictionnaire des sciences des arts et des métiers (articles choisis), vol. 2. Paris: Garnier-Flammarion, 1986, p. 204. 15 lévinas, Emmaunel. Noms propres. Paris: Fata Morgana, 1976, p. 9. 16 lévinas, Emmaunel. Difficile liberté. Paris: Albin Michel, 1976, p. 21. 17 celan, Paul. “Os cântaros” [Die Krüge]. In: Cristal. Op. cit., p. 41. 18 Greifswalder Str. 138 integrou a exposição Bilder des Erinnerns und Verschwindens [Imagens do lembrar e do desaparecer], realizada na galeria do Instituto de Relações com o Exterior (Ifa-Galerie), em Berlim. 19 nube, Ruth. “Spurensuche: Kinderhort, Greifswalder Str. 138. Eine Berlinerin fand in alten Briefen ihres Vaters Hinweise auf eine ermordete jüdische Erzieherin und ihre Kinder”, Der Tagespiegel, Berlin, Stadtleben, 11 de outubro de 1994, p. 10. 20 celan, Paul. Ausgewählte Gedichte. Op. cit., p. 21. 21 “Landschaft mit Urnenwesen./ Gespräche/ von Rauchmund zu Rauchmund.” Ibid., p.114. Os textos de Josepha Gutmann, Ruth Nube e Paul Celan foram impressos com carimbos sobre jornais alemães literalmente “descascados” com fita adesiva. 22 “Käme,/ käme ein Mensch,/ käme ein Mensch zur Welt, heute, mit/ dem Lichtbar der Patriarchen: er dürfte,/ spräch er von dieser/ Zeit, er/ dürfte/ nur lallen und lallen,/ immer-, immer-/ zuzu.// (“Pallaksck. Pallaksch.”). celan, Paul. In: La rose de personne. Paris: Le Nouveau Commerce, p. 40. 23 felman, Shoshana. “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar”. In: nestrovski, Arthur & seligmann -silva, Marcio (orgs.). Catástrofe e representação. Op. cit., p. 70–1. 24 levi, Primo. A trégua. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 30. 25 Primo Levi (Le métier des autres) citado em agamben, Giorgio. Ce qui reste d’Auschwitz. Paris: Payot, 1999, p. 45. 26 Hurbinek remete-nos certamente a Kazik, um dos personagens do romance Ver: amor, de David Grossman. Morador do Jardim Zoológico de Varsóvia, seus 64 anos de vida desenrolam-se ao longo de um único dia, “contado” na forma de verbetes enciclopédicos que constroem, na verdade, um labirinto ou uma “antienci clopédia”: “[...] Kazik morreu às 18h27, 21 horas e 27 minutos após ter sido trazido ao zoológico, recém -nascido. Estava então, segundo o cálculo de seu tempo especial, com 64 anos e se suicidou.”. Cf. grossman, David. Ver: amor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 322. 27 benjamin, Walter. “Juden in der deutschen Kultur”. In: Gesammelte Schriften, Band ii, 2. Frankfurt: Suhrkamp, 1980, p. 807. 28 scholem, Gershom. O Golem, Benjamin, Buber e outros justos: Judaica I. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 45. 29 Ibid., p. 45. 30 celan, Paul, “Von ungeträumten geätzt”, citado em gadamer, Hans-Georg. Qui suis-je et qui est-tu? Commen taire de Cristaux de Souffle de Paul Celan. Op. cit., p. 24. 31 Ibid., p. 26.

199


200


Destroços Leila Danziger

dessa vez

todos os nomes

creio que o início de tudo

impronunciáveis

foi a persiana que esqueci aberta

derretidos

deixando que o sol esquentasse

fundidos

em minha ausência furiosamente

aos jornais

dias e dias

que cresceram como erva daninha

os versos de Celan

em minha ausência

acumulados sobre a mesa

furiosamente dias e dias

as palavras de madeira e borracha

a linguagem informativa acumulada em pilhas

os carimbos

que era preciso desfazer

começaram a derreter e a gaguejar

esvaziar

– lallen und lallen –

apagar

balbuciar e repetir

erodir a matéria-jornal

: destroços celestes

turvá-la de poesia

: cinza-e-cinza Ho-sana anéis-almas

de uma forma não prevista no início do projeto que queria apenas escavar e manobrar

mas percebi – surpresa –

os versos

o desastre

como se faz com a própria

o desvio

terra-areia-ar-eu-você-Ossip-Marina

tudo fora feito

e tantos outros nomes

sem mim

Publicado em Inimigo Rumor. Revista de Poesia, n. 20, São Paulo/Rio de Janeiro, 2008, p. 183–84. E, posterior mente, em danziger, Leila. Três ensaios de fala. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p. 15.

201


202


Para Paul Celan (babble and babble) [2007] Impressão fotográfica sobre papel de algodão 45 x 60 cm


Para Paul Celan (Todos os nomes #1) [2007] Impressão fotográfica sobre papel de algodão 45 x 60 cm Para Paul Celan (Ruth! Noëmi! Miriam!) [2007]

Para Paul Celan (Todos os nomes #2) [2007]

Impressão fotográfica sobre papel de algodão

Impressão fotográfica sobre papel de algodão

45 x 60 cm

45 x 60 cm



Pallaksch Pallaksch (díptico) [2011] Impressão fotográfica sobre papel de algodão Tel Aviv, Israel



Série um poema e um talit [2009] Impressão fotográfica sobre papel de algodão 80 x 60 cm



Série um poema e um talit [2009] Impressão fotográfica sobre papel de algodão 80 x 60 cm Imagens produzidas para a revista Devarim, da Associação Religiosa Israelita (A.R.I.), n. 9, Rio de Janeiro, abril de 2009


SOBRE A ARTISTA

211


Leila Danziger

Em sua trajetória, destacam-se as participações

Artista visual, pesquisadora e professora dos

nas seguintes exposições: What vanishes, what

cursos de graduação e pós-graduação do Insti-

resists [individual], baad Gallery / Bezalel Aca-

tuto de Artes da Universidade do Estado do Rio

demy of Arts and Design, Tel Aviv, Israel, 2011;

de Janeiro (uerj). Graduou-se em artes pelo

Tempo-matéria, Museu de Arte Contemporânea

Institut d’Arts Visuels d’Orleans, França, onde

de Niterói, 2010; 9º Vaga-lume. Mostra de Vídeo

viveu de 1985 a 1989. Mestre (1996) e doutora

Experimental do Instituto de Artes da Universi-

(2003) pelo Programa de Pós-Graduação em

dade Federal do Rio Grande do Sul (artista convi-

História Social da Cultura da Pontifícia Univer-

dada), Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, Porto

sidade Católica do Rio de Janeiro, com estágio

Alegre, 2010; Materialidades na arte brasileira,

de pesquisa na Universidade de Oldenburg,

Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz

Alemanha (2000). Foi duas vezes contemplada

de Fora, 2009; Achados e perdidos, Sesc Pinhei-

pelo Programa de Bolsas RioArte, do Instituto

ros, São Paulo, 2007; Diários públicos [individu-

Municipal de Cultura do Rio de Janeiro (1996

al], Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro,

e 2001). Desde 2011, é pesquisadora do CNPq

2004; Bilder des Erinnerns und Verschwindens.

e da Faperj, com o auxílio dos quais desenvol-

Institut für Auslandsbeziehungen (ifa), Berlim,

ve projetos de criação em artes visuais, em que

Alemanha, 2003; Wegziehen, Frauenmuseum,

sua dupla formação de artista e historiadora

Bonn, Alemanha, 2001; Investigações: Rumos Vi-

da arte se faz presente em produções artísticas

suais 1 (Arte e política: isto são outros 500), Itaú

orientadas pelas negociações entre arte, histó-

Cultural, São Paulo; Centro Dragão do Mar, For-

ria, memória e literatura.

taleza; Fundação Joaquin Nabuco, Recife, 2000; Dobras do corpo, marcas da alma (segmento: a

Em 2012, realizou três mostras individuais no

escritura judaica no Brasil), Fundação Cultural

Rio de Janeiro: Felicidade-em-abismo, na Capela

de Curitiba, 2000; Eigennamen [individual], bbk

anexa às Cavalariças da Escola de Artes Visuais

Galerie, Oldenburg, Alemanha, 2000; Nomes

do Parque Lage, na qual apresentou trabalhos

próprios [individual], Galeria Thomas Cohn,

desenvolvidos a partir de sua pesquisa de pós-

São Paulo; O artista pesquisador, Museu de

-doutorado junto à Bezalel Academy of Arts and

Arte Contemporânea, Niterói, 1998; Nomes pró-

Design Jerusalem, Israel (2011); Edifício Líbano,

prios [individual], Paço Imperial, Rio de Janei-

na Galeria de Arte Ibeu, centrada no edifício de

ro; Dialog: experiências alemãs, Museu de Arte

Copacabana em que parte de sua família resi-

Moderna, Rio de Janeiro, 1996; Programa Anual

diu desde a década de 1940 e entrelaçando as

de Exposições, Centro Cultural São Paulo, São

memórias familiar e do bairro ao entorno da co-

Paulo, 1993; Projeto Macunaíma, Funarte, Rio

munidade do Pavão-Pavãozinho; e Todos os no-

de Janeiro, 1992; 9na. Bienal del Grabado Lati-

mes da melancolia, na Galeria Cosmocopa Arte

noamericano y del Caribe, Porto Rico, 1990; Gra-

Contemporânea, em que apresentou conjunto

vures d’Ateliers, Centre d’Arts Plastiques Albert

de fotografias, livros e um vídeo, nos quais a

Chanot, Clamard, França, 1989; Pour Edmond

melancolia é apresentada como forma de resis-

Jabès [individual], Librairie Les Temps Moder-

tência ao aceleramento do tempo.

nes, Orléans, França, 1989.

212


Em 2012, publicou os livros Todos os nomes da

2012), reunindo poemas produzidos entre 2007

melancolia (Rio de Janeiro: Apicuri, 2012), que

e 2012. Tem publicado ensaios em vários perió-

reúne sua produção recente com ensaios críticos

dicos, entre os quais Porto (ufrgs); Arte & Ensaio,

de Luiz Cláudio da Costa, Luciano Vinhosa, Már-

(eba/ufrj); Visualidades (ufg); Ipotesi (ufjf); Re-

cio Seligmann-Silva, Marisa Flórido, Marguerite

vista Brasileira de Literatura Comparada (Abralic);

Dewandel, Rapahel Fonseca e Roberto Condu-

Z Cultural (pacc/ufrj), Arquivo Maaravi (ufmg);

ru; e Três ensaios de fala (Rio de Janeiro: 7Letras,

Musas (iphan), Papel das Artes e Ciência Hoje.

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213


SOBRE OS AUTORES

214


Fernando Cocchiarale

instauração de imagens à luz da apropriação e

Crítico de arte, curador e professor da Ponti-

da aproximação de fragmentos, em especial no

fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

desenho e na colagem. Professora do Centro

(puc-Rio) e da Escola de Artes Visuais do Par-

Universitário Ritter dos Reis, em Porto Alegre,

que Lage. Entre suas curadorias recentes, des-

e editora da Revista-Valise (ppgav/ufrgs).

tacam-se: É Hoje na Arte Contemporânea Brasileira (Santander Cultural, Porto Alegre, 2006),

Márcio Seligmann-Silva

com Franz Manata; Filmes de Artista (Oi Futuro,

Professor livre-docente de Teoria Literária na

Rio de Janeiro, 2007); e Hélio Oiticica: Museu é

Universidade de Campinas (unicamp) e pes-

o Mundo (Itaú Cultural, São Paulo; Paço Impe-

quisador do cnpq. Doutor em teoria literária

rial e Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, 2010),

pela Freie Universität Berlin, onde é atualmen-

com César Oiticica Filho. Foi curador do Mu-

te professor convidado. Autor, entre outros,

seu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (2000–

dos livros: Ler o livro do mundo. Walter Benja-

2007) e da Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de

min: romantismo e crítica poética (São Paulo:

Janeiro (2011–2012). Doutor pela Escola de Co-

Iluminuras, 1999) e O local da diferença (São

municação da Universidade Federal do Rio de

Paulo: Editora 34, 2005); organizador de Leitu-

Janeiro (eco/ufrj).

ras de Walter Benjamin (São Paulo: Annablume, 1999) e História, memória, literatura: o teste-

Luiz Cláudio da Costa

munho na era das catástrofes (Campinas: Ed.

Professor adjunto dos cursos de graduação e

da Unicamp, 2003); e coorganizador de Catás-

pós-graduação do Instituto de Artes da Uni-

trofe e representação (São Paulo: Escuta, 2000),

versidade do Estado do Rio de Janeiro (uerj)

Escritas da violência (Rio de Janeiro: 7Letras,

e bolsista Prociência/Faperj. Organizador de

2012) e Imagem e memória (Belo Horizonte:

Dispositivos de registros na arte contemporânea

fale/Editora da ufmg, 2012). Possui vários en-

(Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009). Publicou

saios publicados em livros e revistas no Brasil

ensaios em diversos catálogos, livros e perió-

e no exterior.

dicos, como Sala Preta e ars (usp), Arte & Ensaios (eba-ufrj), Concinnitas (uerj), Poiéisis

Raphael Fonseca

(Ciência da Arte-uff) e Porto Arte (ufrgs). Foi

Professor de Artes Visuais do Colégio Pedro ii,

curador da mostra Tempo-matéria (Museu de

Rio de Janeiro. Doutorando em História e Críti-

Arte Contemporânea, Niterói, 2010) e vice-pre-

ca da Arte pelo Programa de Pós-Graduação em

sidente da Associação Nacional dos Pesquisa-

Artes da Universidade do Estado do Rio de Ja-

dores em Artes Plásticas (2010-2012).

neiro (uerj). Organizador dos livros Commedia all’italiana (Rio

de

Janeiro:

Aeroplano,

Marina Bortoluz Polidoro

2011), Cinema pós-iugoslavo (Rio de Janeiro:

Artista visual. Mestre em Artes – Poéticas Visuais

Mariana de Carvalho Editora, 2012) e Do tirar

pela Universidade Federal do Rio Grande do

pelo natural (Campinas: Ed. da Unicamp, 2013).

Sul (ufrgs), onde atualmente realiza o douto-

Curador das exposições City as a process (2nd

rado. Sua pesquisa investiga questões sobre a

Ural Industrial Biennial, Ekaterinburg, Rússia,

215


2012) e Linha aparente (Sérgio Gonçalves Ga-

Casa de Rui Barbosa. Foi professora convidada

leria, Rio de Janeiro, 2012). Escreve periodica-

do Instituto de Romanística da Universidade

mente para as revistas ArtNexus e DasArtes.

de Viena no primeiro semestre de 2000. Publicou Gonzaga Duque: a estratégia do franco-ati-

Sheila Cabo Geraldo

rador (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991),

Pesquisadora de história, teoria e crítica da

Novos pierrôs, velhos saltimbancos: os escritos

arte, e coordenadora do Grupo de Pesquisa Es-

de Gonzaga Duque e o final de século carioca

crita: arte, história e crítica (cnpq). Professora

(Curitiba: Secretaria de Cultura do Paraná,

do Programa de Pós-Graduação em Artes do

1998), Poesia e crítica: uns e outros (Rio de Janei-

Instituto de Artes da Universidade do Estado

ro: 7Letras, 2005) e Ingeborg Bachmann (Rio de

do Rio de Janeiro (uerj). Foi editora da revis-

Janeiro: eduerj, 2013).

ta Concinnitas, desse mesmo instituto (20032011), e presidente da Associação Nacional de

Wilton Montenegro

Pesquisadores em Artes Plásticas (2011-2012).

Artista e fotógrafo, conhecido sobretudo por

Organizou Trânsito entre arte e política (Rio

suas fotos de obras de arte e por capas de dis-

de Janeiro: Quartet/Faperj, 2012) e, com Luiz

cos. Em 2006, realizou uma retrospectiva no Oi

Cláudio da Costa, Narrativas, ficções e subjeti-

Futuro Flamengo, no Rio de Janeiro, com ima-

vidades (Rio de Janeiro: Quartet, 2012).

gens que dão um testemunho da arte contemporânea brasileira. Participa esporadicamente

Vera Lins

de exposições coletivas e dedica-se especial-

Professora associada de Literatura Comparada

mente à escritura de ensaios fotográficos e a

da Faculdade de Letras da Universidade Fede-

ensaios escritos sobre a obra de alguns artis-

ral do Rio de Janeiro (ufrj) e bolsista de pro-

tas visuais, bem como à realização de fotos de

dutividade em pesquisa do cnpq na Fundação

cunho mais pessoal.

216


CRÉDITOS

217


Organização Leila Danziger Projeto gráfico Lygia Santiago Amanda Lianza Revisão Contra Capa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Danziger, Leila Diários públicos : sobre memória e mídia / Leila Danziger. – Rio de Janeiro : Contra Capa; FAPERJ, 2013. 224 p. : il., color; 19 x 25,5 cm ISBN 978-85-7740-149-9

Tratamento de imagem Natasha Gompers Assistente da artista Patrícia Chiavazzolli Fotos Antônio Caetano  (54 / 68–73) Eyal Pinkas  (132-135 / 137–140) Iggy Wanderley  (169 / 174–175 / 178 / 180-187) Leila Danziger  (55 / 76–80 / 132 / 141-144 / 188 / 201-208 / 220 / 222) Luciano Bogado  (3-16 / 116–119) Mario Grisolli  (58–59 / 64–65 / 75) Mauricius Farina  (179) Pat Kilgore  (113–115 / 120–125) Silvestre Machado  (50-53 / 56-57 / 60-63 / 66-67 / 176-177 / 184-187) Vicente de Mello  (172–173) Wilton Montenegro  (217–219 / 221–222 / 224) Agradecimentos Faperj Instituto de Artes da Uerj Contra Capa Lygia Santiago Amanda Lianza Patrícia Chiavazzolli Natasha Gompers Luiz Cláudio da Costa Márcio Seligmann-Silva Marina Bortoluz Polidoro Raphael Fonseca Sheila Cabo Geraldo Vera Lins Wilton Montenegro Fernando Cocchiarale David Danziger Regenberg Ana Paula Ferreira Mario Grisolli Pat Kilgore Felipe Abdala

1. Arte – Brasil 2. Memórias 3. Mídia I. Título 13-0579

CDD 709.81 Índices para catálogo sistemático:

1. Arte - Brasil

Apoio

Copyright ©, 2013 dos autores. Todos os direitos desta edição reservados à Contra Capa Livraria Ltda. atendimento@contracapa.com.br www.contracapa.com.br Tel (55-21) 2507 9448 Fax (55-21) 3435 5128 Os textos deste livro foram compostos em Avenir Next LT Pro, fonte projetada por Adrian Frutiger em 1988, e em Arnhem, fonte projetada por Fred Smeijers em 1999. Os papéis do miolo são ofsete 90g/m2 e cuchê fosco 170 g/m2, e o de capa, cartão DuoDesign 350 g/m2.

Tiragem: 1.000 exemplares Esta obra foi impressa na cidade de João Pessoa pela Gráfica Santa Marta para a Contra Capa em julho de 2013. Sua publicação tornou-se possível graças ao apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.


Felicidadeem-abismo [2012] Móvel de madeira e espelhos, monitor 22”, vídeo (cor, som, 6’), objetos de cristal e porcelana 160 x 70 x 50 cm Capela, Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro


Felicidadeem-abismo [2012] Capela, Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro



Felicidadeem-abismo (vistas parciais) [2012] Capela, Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro




Felicidadeem-abismo [2012] Série Souvenir Jerusalém [2012]

Móvel de madeira e espelhos, monitor 7”, vídeo (cor, som, 6’), objeto de porcelana e cacos de vidro

Impressão fotográfica sobre papel de algodão

150 x 35 x 28 cm

60 x 90 cm


Série Souvenir Jerusalém [2012]

Série Souvenir Jerusalém (Guenizah) [2012]

Impressão fotográfica sobre papel de algodão, areia, objetos de porcelana e moldura de madeira

Impressão fotográfica sobre papel de algodão, areia e rolo manuscrito

60 x 80 cm

30 x 40 cm

Diga que Jerusalém existe. [Sag, dass Jerusalem ist.] Paul Celan



ISBN 978-85-7740-149-9

9 788577 401499


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