sobre mem贸ria e m铆dia
Para-ninguém-e-nada-estar [2006–2010] Carimbo sobre jornal apagado, impressão solar e encadernação 65 x 57 cm (aberto) 42 páginas
Para-ninguém-e-nada-estar [2006–2010] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 65 x 57 cm (aberto) 42 páginas
Para-ninguém-e-nada-estar [2006–2010] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 65 x 57 cm (aberto) 42 páginas
Para-ninguém-e-nada-estar [2006–2010] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 65 x 57 cm (aberto) 42 páginas
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Para-ninguém-e-nada-estar [2006–2010] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 65 x 57 cm (aberto) 42 páginas
Para meu pai, Rolf Manfred Danziger z”l [1921–2011]
19
20
21 Apresentação RUÍNAS
25 29 41
E RUÍDOS DA INFORMAÇÃO
Mercúrio e jornais O jornal e o esquecimento Pallaksch Pallaksch Leila Danziger
PARA PENSAR O APAGAMENTO
82
Diários públicos – o teatro da leitura Luiz Cláudio da Costa
92
Entre o excesso e a exceção: a profanação do jornal Vera Lins
98
Lembrar, esquecer, sonhar Sheila Cabo Geraldo
103
O que desaparece, o que resiste: para pensar o apagamento Marina Bortoluz Polidoro
107
Entre o mar e a areia Raphael Fonseca
TAREFA INFINITA
146
Nomes próprios Fernando Cocchiarale
150
A arte de dar forma ao real: a poética da memória de Leila Danziger Márcio Seligmann-Silva
156
O efeito-arquivo no trabalho de Leila Danziger Luiz Cláudio da Costa
164 Sem gaze nos olhos Wilton Montenegro
PARA PAUL CELAN
190 A língua paterna 199 Destroços Leila Danziger
209
SOBRE A ARTISTA
212
SOBRE OS AUTORES
Die Kunst erweitern? Nein. Sondern geh mit der Kunst in deine allereigenste Enge. Und setze dich frei.
Expandir a arte? NĂŁo. Entre antes com a arte no que em ti hĂĄ de mais Ăntimo. E liberte-se. O Meridiano, Paul Celan
Apresentação Leila Danziger
1 No conto O rejeitador [Der Wegwerfer], Heinrich
ra crítica e de singularização dos dispositivos
Böll cria um personagem cuja atualidade é
midiáticos. Penso que as questões próprias a
inquestionável. Sua função é selecionar a cor-
essa investigação aproximam-se da necessida-
respondência enviada à firma em que trabalha
de, apontada por Félix Guattari, de caminhar-
e jogar fora, segundo seus próprios critérios
mos em direção a uma era pós-mídia, “assim
seletivos, o que considera desnecessário. Sua
entendida como uma reapropriação da mídia
tarefa, realizada de forma obscura, anônima
por uma multidão de grupos-sujeitos, capa-
e longe dos olhos dos demais funcionários,
zes de geri-la numa via de ressingularização”.1
poderia ser comparada ao dispositivo antilixo
Interessa-me investigar e produzir no campo
eletrônico instalado em nossos computadores,
das relações entre arte e mídia, a partir de uma
impedindo que nossas caixas postais sejam
perspectiva centrada não apenas na utilização
cotidianamente inundadas por uma avalanche
dos aparatos técnicos, mas sobretudo como
de informação inútil e indesejada.
uma atitude interventiva e poética. Privilegiando inicialmente uma leitura (ativa, crítica, cor-
As ações desse personagem de Böll são um
poral) dos jornais, apresento ações artísticas
excelente ponto de partida para apresentar
estruturadas nos procedimentos de apropria-
as questões de Diários públicos, trabalho em
ção, deslocamento e ressignificação de diver-
processo desde 2001, cujo gesto construtivo
sas materialidades.
essencial é o apagamento seletivo de jornais impressos. Apagar, neste caso, significa des-
Diários públicos (2001–2011) enfatiza o apaga-
cartar, esquecer, mas um esquecimento volun-
mento (o esquecimento, portanto), enquanto a
tário e reflexivo, pois não me parece exagero
série Nomes próprios (1996–2003), presente na
afirmar que um pacto de esquecimento orien-
segunda parte do livro, tem em seu centro a re-
ta os jornais e que mesmo a construção de
sistência ao esquecimento, a tarefa infinita de
arquivos não impede a entropia, ao contrário.
construção da memória. Enquanto a matéria
Em minhas ações, apagar significa, sobretudo,
essencial de Diários públicos são os jornais im-
editar, ou seja, desenvolver processos de leitu-
pressos, em Nomes próprios a matéria primeira
23
são vestígios de pessoas desaparecidas na Shoá,
mas desacredito também o fascínio parali-
o extermínio dos judeus europeus durante a
sante pelo nada e pelo silêncio. Creio que a
Segunda Grande Guerra. Para Jean-Luc Nancy,
especificidade da arte consiste em instituir-se
a palavra hebraica Shoá substitui o termo Ho-
como resistência à cultura: dócil, domesticada,
locausto e todas as outras designações. Ela per-
institucionalizada. Desativadas certas leituras
manece indecifrável, mesmo que traduzida e
hegemônicas do moderno, há muito sabemos
interpretada. Sua opacidade é precisamente o
que nenhum gênero ou forma de expressão de-
que lhe confere maior potência de significação.
tém um coeficiente artístico a priori. É na força
Shoá é um murmúrio, “uma longa síncope de
dos embates com o mundo que determinados
sentido”, um sopro não propriamente culpado,
gestos, operações ou estratégias tornam-se ar-
mas infame, afirma o filósofo.
tísticos. Ou não. Uma longa cadeia de atritos e negociações faz surgir a obra (conceito tão
Dessa forma, introduzo uma questão essen-
problemático, que na verdade jamais coincidiu
cial nas reflexões apresentadas neste livro: a
com sua materialidade enquanto objeto), e é
relação entre artes visuais e poesia, sobretudo
sua capacidade em seguir propondo resistên-
a de Paul Celan, repleta de sopros, balbuceios,
cias e conflitos o que condiciona sua sobrevi-
palavras desarticuladas e hesitantes. Os títulos
vência.
de dois de seus livros falam justamente de um sopro, de uma “mudança de ar” (Atemwende), e
É inegável que a complexa gênese da obra de
esta é mesmo uma de suas definições de poesia.
arte inclui, com ênfase acentuada desde os
A presença de Celan é crucial não apenas nos
anos 1960, a reflexão teórica realizada pelo
trabalhos relativos à memória da Shoá, mas
próprio artista, a partir de articulações bastan-
também na série realizada com jornais apaga-
te singulares com a história, a teoria e a crítica
dos, pois creio que a vocação da poesia de Ce-
de arte.2 Assim, compreendo a prática discur-
lan é atualizar-se continuamente, deslocar-se
siva como parte indissociável de minha produ-
do contexto original da memória dos crimes
ção plástica, exercendo-se em diferentes regis-
nazistas e informar nossas pequenas e grandes
tros, tais como o ensaio, a crônica, o poema e
catástrofes de cada dia (o estado de exceção,
o fragmento. Por outro lado, com a afirmação
o abandono, a vida nua).
crescente da arte como importante área de conhecimento na universidade, creio ser impres-
2
cindível abrir espaço à potência indiscutível
Embora a afirmação do “campo ampliado da
das próprias imagens, que nesta publicação
arte contemporânea” se tenha tornado um
tanto podem ser registros de obras quanto con-
truísmo, creio que as poéticas visuais mano-
cebidas especialmente para ser apresentadas
bram numa zona de efetividade estreita, em
na forma de livro.
algum lugar entre a esperança e a melancolia. Como artista, falho e recomeço. Renovada-
A produção plástica e discursiva aqui reunida
mente. Suspeito dos gestos triunfais, que se
realizou-se a partir de encontros ocorridos
mostram excessivamente desenvoltos e “livres”,
no âmbito da universidade. É inegável que a
24
capacidade de construir interlocução ao lon-
cisivo em minha compreensão das comple-
go do processo de trabalho é algo decisivo e
xas relações entre memória e esquecimento.
vital para o artista. Assim, os autores presen-
Os olhares atentos de Sheila Cabo Geraldo e
tes nesta publicação realimentam minha
Vera Lins, a escuta à palavra poética presen-
produção e a constituem igualmente. A escu-
te em seus textos, reafirmam tensões produ-
ta e o olhar atento de Luiz Cláudio da Costa,
tivas estabelecidas entre palavra e imagem,
colega do Instituto de Artes da Universidade
centrais nas produções contemporâneas.
do Estado do Rio de Janeiro (uerj), deu-me
O ensaio de Wilton Montenegro é um des-
a consciência da importância dos desdobra-
dobramento privilegiado de diálogos inicia-
mentos do arquivo e dos dispositivos de regis-
dos durante sessões fotográficas e reafirma
tro como questões centrais em meu trabalho.
o quanto sua ação de fotografar constitui-se
Fernando Cocchiarale, de quem fui aluna no
como prática reflexiva, que me ajuda a com-
curso de especialização em História da Arte e
preender meu próprio trabalho. Ressalto ain-
da Arquitetura no Brasil, na Pontifícia Univer-
da a importância em poder contar com a re-
sidade Católica do Rio de Janeiro (puc-Rio),
flexão de Marina Polidoro, artista que conheci
ajudou-me a compreender, ainda em meados
ao participar de sua banca de dissertação de
dos anos 1990, o quanto meu trabalho se afas-
mestrado no Programa de Pós-Graduação
tava de certas vertentes artísticas que ainda
em Artes Visuais da Universidade Federal do
pareciam hegemônicas na produção brasi-
Rio Grande do Sul (ppgav/ufrgs), e Raphael
leira naquele momento. O pensamento de
Fonseca, jovem curador e historiador da arte,
Márcio Seligmann-Silva, realizado com base
mestre pela Universidade de Campinas (Uni-
em uma atualização contínua da imensa ri-
camp) e egresso do bacharelado em história
queza da cultura judaico-alemã, foi e é de-
da arte do Instituto de Artes da uerj.
guattari, Felix. As três ecologias. Campinas: Papirus, 1990, p. 46. ferreira, Glória. “Apresentação”. In: ferreira, Glória & cotrin, Cecília (org.). Escritos de artista: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 10. 1 2
25
RUÍNAS E RUÍDOS DA INFORMAÇÃO
Mercúrio e jornais Leila Danziger
O que passa? Tua fala se turvou de vermelho. Hölderlin / H. de Campos
No ponto de ônibus, atrás de um casal sem
desenhos anatômicos de esfolados, mas era
atributos, havia uma mulher de vermelho.
demasiado humana, vigorosa, ainda jovem,
Não era a roupa, mas a própria pele. Ela ves-
quase bela. Ela era um retrato de Artaud,
tia bermuda e camiseta sem mangas; braços e
um daqueles desenhos em que o lápis duro
pernas tinham o tom vermelho escuro. Pertur-
sulca repetidamente o papel, lacerando-o,
bada, tentei ignorar sua presença (magnífica,
perfurando-o. Os traços fisionômicos brutais
fascinante, trágica). Virei-lhe as costas e bus-
eram belíssimas cicatrizes de vida.
quei a certeza do céu naquela tarde ensolarada de Ipanema.
Não sei se a moça estava realmente ferida. Talvez fosse apenas o efeito do mercurocromo, si-
Com alívio, logo identifiquei o ônibus que
nalizando na pele o que lhe atravessava a alma.
se aproximava. Fiz-lhe sinal, mas o moto-
Mas creio que ela se esfola, brandamente, de
rista não atendeu meu chamado e seguiu
modo calculado, hoje, agora. Cultiva as feridas
em frente. Reclamei, suspirei, disse irrita-
como uma espécie de plantação delicada. Em
da qualquer coisa em voz alta. Acho que foi
vez de tatuagens, ostenta a carne viva.
essa a senha, pois, como se estivesse pontuando a minha indignação, ouvi uma voz fe-
Fiquei intrigada com seu oferecimento aten-
minina e educada, que acreditei dirigir-se a
cioso. Dirigia-se casualmente a qualquer
mim: “Moça, você quer mercúrio?” Virei-me
um ou percebeu em mim alguém que, como
em direção àquela que perguntava e, polida-
ela, inspirava cuidados? Desconfiei de certa
mente, tentando controlar meu embaraço,
cumplicidade entre nós. Um outro ônibus
recusei: “Não, obrigada”. De relance, perce-
atendeu meu sinal e segui meu caminho,
bi que, no alto da cabeça, faltava-lhe cabe-
nem sei mais para onde. Afastei-me da Esfo-
lo e que o couro cabeludo estava à mostra.
lada, mas sua voz solidária, oferecendo-me
Por alguns instantes, a vi por inteiro: parecia
generosamente seu unguento, continuou
uma imensa ferida, tão brutal quanto um as-
em meus ouvidos, turvando a cidade com
tro visto de perto. Ela parecia um daqueles
as cores de sua aparição.
27
Alguns dias depois, fui à farmácia e pedi mer-
furar o papel era uma forma de escrita: conste-
curocromo, esperando o tradicional fras co
lações de signos construídos pelos vazios que
com o líquido vermelho. O vendedor inter-
iam aparecendo no papel. A escrita era pensada
pretou meu pedido à luz da atualidade e co-
não como deposição de tinta sobre uma super-
locou em minhas mãos uma caixinha branca,
fície, mas como falta, subtração de matéria, ou
de design corretíssimo, um spray antissépti-
como reação do tecido (lesão, cicatriz). “A escri-
co, “com agente anestésico”, sem cor e sem
ta manual é sempre a marca de um corpo”, já
cheiro. Insisti que queria o mercurocromo
disse Barthes sobre a pintura de Cy Twombly.1
tradicional, aquele que é vermelho, mancha
A escrita solicita o corpo em sua integridade,
a pele e costuma arder quando em contato
não um corpo sublimado, mas o corpo que ar-
com o machucado. Espantado, respondeu-me
ranha, roça, desgasta-se.
que não estava mais à venda. “Mercurocromo não tem, há muito tempo saiu do mercado; foi
Esse princípio vale também para os trabalhos
proibido pela Vigilância Sanitária”. Entendi
que desenvolvo com jornais. Vejo-os como uma
então que a moça vista no ponto de ônibus uti-
forma de escrita por supressão. Se antes perfu-
lizava algum pigmento vermelho, uma tintura
rava os papéis, agora descasco os jornais, mili-
qualquer que chamava de “mercúrio”, como
metricamente, em operações quase cirúrgicas,
o planeta mais perto do sol. Mesmo que não
que devem ser precisas, exatas, ou tudo se perde.
se pinte com mercurocromo – substância de efeito cumulativo que se deposita no organis-
Desfaço os jornais. As informações são trans-
mo e nunca mais é expelida –, seu desejo é sa-
formadas num emaranhado sem fim e suspei-
turar-se de cor, cobrir-se de croma, grau mais
to que seja essa a sua forma mais verdadeira.
intenso de um determinado matiz. Na intensi-
A leitura é um processo de extração, que re-
dade da cor, ela vê a possibilidade de tratar-se,
move o texto lido, e é vivida numa série de
curar-se, exibindo-se como uma gravura – ou
operações efetivamente materiais: folhear,
de fato um cromo – cuja matéria e cujo suporte
selecionar, extrair, dobrar ou estender, passar
são sua pele e seu corpo.
a ferro, relacionar, acumular, empilhar, fixar. Se a escrita manual é um trabalho que exige o
Na verdade, esse encontro me levou, mais uma
corpo, o mesmo é válido para a leitura (ler com
vez, a pensar no desenho e na escrita, e me fez
todo o corpo, ler e emaranhar, ler e esquecer).
compreender que eu sempre desenhava como
Leitura ruminante e distraída; leitura defensi-
se escalavrasse o papel, que sempre via o papel
va que quer se proteger da brutalidade do real.
como a superfície da pele.
O vetor do trabalho é a página impressa rarefeita, apagada, sabotada em sua função de do-
Passei alguns anos perfurando papéis, verso
cumento, mas onde o texto jornalístico ainda
e reverso. Queria penetrar em sua substância
pulsa na informação residual da imagem sele-
opaca, ir além da pele, virá-la pelo avesso, bus-
cionada ou pelo avesso do papel. A integridade
car a área ínfima entre as camadas da pele. Acho
da página é mantida, e o que permanece é uma
que buscava a interioridade da superfície. Per-
pele fina e transparente, uma matéria frágil,
28
fugaz, sensível à ação da luz, desafiadoramente
sensível do mundo – está à espera da operação
mundana. Como a pele da Esfolada à espera
poética, que, se não o regenerar, ao menos lhe
da cor-curativo, também o jornal – superfície
confira algum sentido.
Uma primeira versão deste texto foi apresentada no Colóquio Entre-lugares: arte e pensamento, realizado na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro em outubro de 2005. Disponível em: http:// www.ciencialit.letras.ufrj.br/entrelugares/ 1 Barthes, Roland. “Cy Twombly ou Non multa sed multum”. In: O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990.
29
30
O jornal e o esquecimento Leila Danziger
Ávido leitor de jornais, custou-lhe renunciar a esses museus de minúcias efêmeras. Jorge Luis Borges
Em 17 de abril de 2007, a Folha de S. Paulo traz
mistério em torno do homem que aparenta ter
a seguinte notícia, assinada pela jornalista
entre 28 e 32 anos. De altura mediana, é magro
Laura Capriglione: “Preso sem nome, sem fala
e tem pele clara e olhos castanhos. Espera-se
e sem história intriga Justiça”. Um homem é
atrair pessoas que o conheçam, que saibam
preso na capital paulista ao invadir o imóvel
seu nome e sejam capazes de inseri-lo em al-
vazio de um policial civil. Supõe-se que sua in-
guma forma de comunidade, retirando-o do es-
tenção era roubar as esquadrias de alumínio
tado de exclusão extrema em que se encontra.
do apartamento para revendê-las em seguida. Ao ser levado para a delegacia e interrogado so-
Cerca de vinte anos antes da notícia no jornal
bre sua identidade, ele consegue emitir apenas
brasileiro, o cotidiano francês Libération pu-
um som agudo, semelhante a um “ííí”. Sem re-
blica uma matéria sobre um caso semelhante,
gistro civil ou criminal, x., como foi chamado,
embora menos grave. Em 22 de maio de 1985,
é um enigma para a Justiça. A juíza encarre-
um homem é encontrado em Nice, sul da
gada do caso solicitou um intérprete que lan-
França, sem nenhuma lembrança e nenhuma
çou mão de “todas as formas de comunicação,
informação sobre seu passado, sem documen-
inclusive a gestual, a mímica e a labial” para
tos ou qualquer pista que permitisse identifi-
comunicar-se com o preso. Em vão. O chefe
cá-lo. Ele não está ferido, não parece ter sofri-
dos investigadores da delegacia, onde x. está
do nenhum acidente, simplesmente não sabe
detido há três meses, espanta-se: “Um homem
quem é, o que faz, de onde vem. “C’était un
sem nome, sem história, sem conhecidos. Des-
être sans passé ni mémoire”, define-o Jacques
de que foi preso, não recebeu nenhuma visita.
Maigne, que escreve a matéria publicada cerca
E ninguém registrou desaparecimento de ami-
de dois anos depois do despertar do amnési-
go ou parente com as características dele. Como
co. Despojado de suas experiências anteriores,
condenar alguém que não se sabe quem é?”1
ele tem medo do mundo e permanece recolhido e afastado em um hospital, até que, lenta-
Ao publicar com destaque sua foto, a repor-
mente, começa a readquirir confiança na apa-
tagem tem como objetivo desfazer o cerco de
rência habitual das coisas. Sete meses depois
31
de sua chegada, ele se arrisca a sair sozinho.
mas o esquecimento assemelha-se às vezes a
“As coisas me pareciam normais, eu já as ha-
uma espécie de castigo divino, como sugerem
via visto. Eu tinha uma vida anterior”. Vários
algumas histórias hassídicas, corrente mística
meses depois, seu passado começa a emergir.
do Judaísmo, que surgiu na Polônia no século
Ao aceitar que sua história seja publicada
xvii. Conta-se que o baal Schem Tov, funda-
em um jornal de Nice, o que até então havia
dor do Hassidismo, viajou para Israel, a fim de
recusado por sentir-se frágil, inseguro e, de
preparar a Redenção. Mas os céus resolveram
alguma forma, protegido pelo esquecimento,
interromper a viagem. Em algum ponto entre
sua família o procura. Ele aprende seu nome
Istambul e a Terra prometida, desabou uma
e que tipo de vida levava até desaparecer aos
forte tempestade e o navio foi obrigado a parar
27 anos; retorna à casa em que vivia, mas ne-
numa ilha desconhecida. O baal Schem e seu
nhuma lembrança verdadeira volta à superfí-
auxiliar, Rabi Tzvi, desembarcaram e, ao tentar
cie, nenhuma imagem do passado emerge. Ele
voltar ao navio, perderam-se e foram captura-
prefere então permanecer na cidade em que
dos por bandidos. Perguntou então seu auxi-
2
acordara “esquecido”, vivendo próximo àque-
liar: “Por que estais calado? Fazei como sempre,
les que participaram do início de sua nova
para que sejamos soltos”. Mas o baal Schem
vida, iniciada em junho de 1985.
respondeu: “Agora não sei mais nada, tudo me foi tomado. Lembra-me alguma coisa de tudo
Casos de amnésia são relatados desde a Anti-
aquilo que te ensinei e faze-me recordar.”5
guidade. No volume dedicado à fisiologia em
Mas Rabi Tzvi também havia tudo esquecido, a
História natural, Plínio, o Velho, relata casos
única coisa que lhe restara era o alfabeto, que
de memórias prodigiosas – como o de Ciro,
ele então recitou com o entusiasmo com que
rei dos persas, que sabia o nome de todos os
costumavam rezar. Assim, a memória e todo o
soldados de seus exércitos; Mitriades Eupator,
conhecimento dos dois foram restituídos. Eles
que administrava o império no conhecimento
foram salvos, mas o baal Schem compreendeu
de seus 22 idiomas; Metrodoro, que não esque-
que ainda não era a hora da Redenção.
cia o que ouvira uma única vez. Mas em Plínio 3
encontramos também a afirmação de que nada
Ao passo que o esquecimento na história has-
no ser humano é tão frágil quanto a memória.
sídica é superado e revertido, reafirmando o
“Alguém atingido por pedras esqueceu os sons
baal Schem Tov no caminho da Tradição, o
da fala. Outro, caindo de um telhado alto, es-
esquecimento que acomete o homem na mo-
queceu sua mãe, seus parentes e seus amigos,
dernidade parece de fato irreversível, tanto
outro ainda esqueceu, na doença, os nomes de
para o mal como para o bem, em certa medi-
seus escravos, e o orador Messala Corvínio es-
da. A verdade é que nenhuma narrativa, ritual,
queceu o próprio nome.”
4
oração ou estudo parece capaz de restaurar a ruptura com o passado. A lista dos que perce-
Os exemplos de amnésia mencionados deri-
beram as transformações radicais na capaci-
vam de problemas essencialmente neurológi-
dade de narrar e de transmitir as experiências
cos, ocasionados por traumatismos diversos,
na modernidade é extensa, e a própria “expe-
32
riência” transformou-se radicalmente em nos-
[...]
so mundo atingido pelo choque, a velocidade
Se encontrar seus pais na cidade de
e as informações de tantos meios de reprodu-
[Hamburgo ou em qualquer outro lugar
ção da imagem e do som. Como observaram
Passe por eles como um estranho,
vários autores (Huyssen, Yerushalmi, Warald
[vire na esquina, não os reconheça
Heinrich), estamos longe do esquecimento
Abaixe sobre o rosto o chapéu que eles
produtivo recomendado por Nietzsche como
[lhe deram
antídoto contra o historicismo, visto como
Não, oh, não mostre seu rosto
uma virtude hipertrofiada de sua época. A
Mas sim
questão essencial – a qual Nietzsche não res-
Apague as pegadas!
ponde em suas tão glosadas considerações sobre a História – é o quanto se deve lembrar e
Coma a carne que aí está. Não poupe.
o quanto se deve esquecer. “O que foi durante
Entre em qualquer casa quando chover,
muito tempo chamado de a crise do historicis-
[sente em qualquer cadeira
mo é somente o reflexo da crise de nossa cul-
Mas não permaneça sentado.
tura, de nossa vida espiritual. Se há um câncer,
[E não esqueça seu chapéu.
sua origem não está na busca histórica, mas
Estou lhe dizendo:
na perda de uma halachá (lei) que sabe o que
Apague as pegadas!
apropriar e o que deixar para trás, uma comunidade de valores que nos permita transformar
[...]
a história em memória”. Sabemos, com Ben-
Cuide, quando pensar em morrer
jamin e também com Blanchot, a importância
Para que não haja sepultura
6
do esquecimento em Kafka. “Ambos compa-
[revelando onde jaz
ram sua obra a uma hagadá (o corpus infini-
Com uma clara inscrição a lhe denunciar
to dos comentários) interminável de uma ha-
E o ano de sua morte a lhe entregar
lachá (a lei, a norma, a doutrina) apagada”. O
Mais uma vez:
escritor de Praga desistiu de curar a tradição
Apague as pegadas!
doente, preferindo trabalhá-la “numa espécie de obstinação serena” até o fim.7
(Assim me foi ensinado.)8
Apague as pegadas
Como observa Jeanne-Marie Gagnebin, a or-
Mas volto aos jornais e aos artigos menciona-
dem de Brecht para apagar as pegadas res-
dos. Nossos dois amnésicos parecem ter segui-
ponde à constatação de Benjamin: “Habitar
do os conselhos de Brecht, que em seu poema
significa deixar rastros”. O afastamento da
“Apague as pegadas” recomenda uma escapa-
tradição ocorrido no século xix provoca, como
da sem fim diante da própria identidade, ou
compensação, uma valorização da intimidade
melhor, afirma a impossibilidade de manter
própria à vida burguesa, supostamente capaz
a identidade, pois esta seria constantemente
de estancar a ausência da tradição e da histó-
ameaçada por um perigo não nomeado.
ria. O poema de Brecht recusa o aconchego, a
33
compensação propiciada por uma existência
de abandono. Como nos diz ainda Agamben, o
burguesa, e recomenda ao indivíduo moderno
que foi posto em bando em relação ao poder é
assumir seu anonimato na estranheza que o
remetido à própria separação, “ao mesmo tem-
mundo lhe oferece.
po excluso e incluso, dispensado e, simultaneamente, capturado”.11 No bando, ele identifica a
No poema, o único elo com o passado é o cha-
zona de indiferença na qual a vida do excluído
péu, oferecido pelos pais do personagem erran-
confina com aquela do homo sacer (matável, ex-
te. A posse do objeto é recomendada não por ser
terminável, sem que sua morte constitua uma
um elo com a tradição, mas sobretudo porque
violação), e salienta que é “esta estrutura de
seu extravio deixaria pistas sobre a identidade
bando que devemos aprender a reconhecer nas
do proprietário, o que no poema é visto como
relações políticas e nos espaços públicos em
algo perigoso. Gagnebin diz que essa é “uma
que vivemos”.12
descrição profética da perseguição nazista e dos mecanismos de abandono e de demissão
Benjamin nos fala também de um tipo de ex-
cegos que ela ia encorajar”. Ora, bem sabemos
clusão: “O homem, para quem a experiência
que o estado de exceção dos campos de concen-
se perdeu. se sente banido do calendário”,13 ou
tração não pertence ao passado, mas institui-se
seja, de um tempo memorável, cuja lembrança
facilmente bem próximo a nós. Para Agamben,
deveria ser vivida em comum. Os feriados pos-
9
“o campo é o espaço que se abre quando o es-
suem a função de inscrever a memória no tem-
tado de exceção começa a tornar-se a regra”.
po, do mesmo modo que os monumentos de
O filósofo italiano recusa-se a confinar a estru-
pedra e bronze detinham a tarefa de inscrever
tura jurídico-política dos Lager nazistas no pas-
a memória no espaço. Todos nós experimen-
sado, vendo-os como a matriz oculta, o nómos
tamos a inocuidade de ambas as modalidades
do espaço político em que ainda vivemos.10
públicas de rememoração. Nossos monumentos que se instauram no tempo parecem tão
Compreendemos assim, mais nitidamente, o
emudecidos quanto aqueles que se erguem no
que há de asfixiante e assustador na notícia do
espaço. “Os sinos, que outrora anunciavam os
jornal paulista. Enquanto o amnésico francês
dias festivos, foram excluídos do calendário,
parece cercado por certa comunidade que o
como os homens. Eles se assemelham às po-
envolve e permite a construção de uma nova
bres almas que se agitam muito, mas não pos-
identidade (pobre, precária e frágil, como toda
suem nenhuma história”.14
identidade na modernidade), a situação do amnésico recolhido em São Paulo parece mais
A exclusão do calendário, o emudecer dos mo-
grave, condenando-o a viver na exclusão, no
numentos, o novo regime da palavra impressa
estado de “vida nua”, e sua sorte parece quase
arrastada para as ruas – eis algumas das reve-
indiferente dentro ou fora da prisão.
lações de Benjamin em sua arqueologia da modernidade. Ele também cedo percebeu a
x., o homem sem memória e sem fala, é um ser
vocação do jornal para o esquecimento. “Na
banido, instala-se numa relação de bando ou
substituição da antiga forma narrativa pela
34
informação, e da informação pela sensação
ontologicamente separada não apenas do me-
15
reflete-se a constante atrofia da experiência”.
cânico, mas também do império da informação
Os jornais promovem justamente a separação
– precisava ser distinguida da transitoriedade
entre o fato e a experiência. “Os princípios da
imediata da informação que nivelava todos os
informação jornalística (novidade, concisão,
acontecimentos da vida.”18
inteligibilidade e, sobretudo, falta de conexão entre uma notícia e outra) contribuem para
Muito raramente o jornal permite transmutar
esse resultado, do mesmo modo que a pagi-
o fato externo em memória e experiência, per-
Para que haja
mitindo que o leitor confira sentido ao que lê e
experiência, afirma Benjamin, é preciso que,
integre o acontecimento à sua vida. Algo assim
nação e o estilo lingüístico.”
16
na memória, relacionem-se de forma efetiva
ocorreu com Eric Hobsbawm. Em janeiro de
os conteúdos do passado individual com os do
1933, ao retornar da escola, ele viu a manchete
passado coletivo.
de jornal que anunciava a assunção de Hitler ao poder. Eis uma lembrança de juventude,
Informação e esquecimento
um exemplo tocante de memória topográfica
É notória a hostilidade de Mallarmé à lingua-
em que a leitura do jornal não se entrega a seu
gem jornalística. Lembra Lyotard, as obras de
destino de esquecimento, tornando-se efeti-
Mallarmé e Joyce são reações ao desenvolvi-
vamente um dispositivo que une o tempo e o
mento do jornalismo, insurgindo-se contra a
espaço: “Para este autor, o dia 30 de janeiro de
instrumentalização da linguagem.17 Mallarmé
1933 não é simplesmente a data, à parte isso ar-
argumentava que a poesia deveria ser a antítese
bitrária, em que Hitler se tornou chanceler da
das colunas verticais do jornal do mercado de
Alemanha, mas também uma tarde de inverno
massa: o efeito geral dessa poesia se basearia
em Berlim, quando um jovem de quinze anos
nos efeitos ópticos e auditivos das palavras em
e sua irmã mais nova voltavam para casa, em
relações formais “puras”. É bem verdade que,
Halensee, de suas escolas vizinhas em
entre as realizações inaugurais do cubismo, en-
Wilmersdorf, e em algum ponto do trajeto
contra-se a introdução de vasta gama de opera-
viram a manchete. Ainda posso vê-la como
ções e materiais estranhos àqueles legitimados
num sonho”.19
pela tradição. Entre estes, está o jornal, presente nas colagens de Picasso e Braque, afirmando
A excepcionalidade dessa lembrança, a qual
o caráter planar do espaço plástico moderno e
afirma a permanência na memória de uma
trazendo para a pintura mundanidade e estra-
notícia de jornal (mesmo que “como num so-
nheza, inconciliáveis com a pureza, pleiteada
nho”), deve-se de forma decisiva ao fato de que
por Mallarmé. Mas a consciência do poeta seria
aquele que a narra é um historiador e o conte-
partilhada adiante por artistas como Mondrian
údo da manchete afetaria de forma irreversí-
e Malevitch, entre outros, convencidos de que
vel as certezas de nosso mundo ocidental. Na
deveriam defender a especificidade dos meios
verdade, acredito que nossa experiência coti-
artísticos diante dos avanços dos novos modos
diana com os jornais está exemplarmente con-
de produção da indústria. “A arte tinha que ser
tida numa fotografia de Cartier-Bresson, rea-
35
lizada na Inglaterra, no dia da coroação do rei
O alto e o baixo, portanto. O território dos que
Georges vi, em maio de 1937.
permanecem despertos e elevados, e o territó-
20
rio daquele que, certamente bêbado, cai e adorA imagem é nitidamente dividida em duas re-
mece. O símbolo máximo do poder real não
giões. Na metade superior, vemos a multidão
aparece na foto; o homem comum rouba-lhe
que espera pela festa da coroação. Sobre a
a cena. Os jornais amassados, sobre os quais o
mureta de um monumento na Trafalgar Squa-
homem dorme, revelam, creio, a face mais au-
re, as pessoas olham ao longe. Embora senta-
têntica da matéria-jornal. Acredito que a inter-
das, suas posturas e olhares buscam alguma
rogação da fotografia, o seu punctum, como di-
forma de elevação. Percebemos uma extensa
ria Barthes – o “acaso que nela me punge (mas
gama de expressões que demonstram admi-
também me mortifica, me fere)21 –, é o aparente
ração, mas também prontidão e acuidade. Na
frescor dos jornais já descartados; a foto reve-
parte inferior da imagem, um homem dorme.
la a exata aparência que adquirem após o uso,
Seu leito é uma camada espessa de jornais
após o consumo. Seu ciclo de vida é veloz: em
amassados que formam uma extensão clara, e
24 horas, o jornal está velho, obsoleto, e é pron-
estes, embora certamente sejam recentes, já
tamente substituído pela edição do dia seguin-
parecem inúteis e superados; as informações
te. Os jornais traduzem a falácia de um tempo
foram avidamente assimiladas e descarta-
linear, vazio e homogêneo; tão logo surgem,
das. Indiferente a tudo, pura exterioridade, o
acumulam-se numa massa de esquecimento,
homem que dorme se torna objeto, momen-
transformam-se em dejetos da atualidade.
taneamente esquecido e descartado como os jornais. Ele perde a festa e a história que es-
Seria o esquecimento uma atividade do sono?
perava ver. Só o fotógrafo lhe dá atenção e se
O memorioso Funes, personagem de Borges,
interessa mais por ele do que pelo espetáculo
é incapaz de dormir, pois dormir é distrair-se
da coroação, do qual se desinteressa e dá as
do mundo. “Dezenove anos havia vivido como
costas.
quem sonha: olhava sem ver, ouvia sem ouvir,
Essa “descida” do olhar descreve, em larga
perdeu o conhecimento; quando o recobrou, o
medida, as operações poéticas da arte moder-
presente era quase intolerável de tão rico e tão
na. Cabe lembrar, de passagem, os conceitos
nítido, e também as lembranças mais antigas
de “perda da aura”, em que Benjamin fala de
e mais triviais”.22 Mas sua hipermemória é in-
um declínio, vivido efetivamente no corpo,
compatível com o fluxo da vida, condenando-o
nos gestos, que não fazem mais a experiên-
a um estado de vigília permanente e, em segui-
cia da arte através de um olhar que se eleva, e
da, à morte.
esquecia-se de tudo, de quase tudo. Ao cair
de “informe”, de Bataille, cuja tarefa é “desclassificar”, portanto rebaixar. A presença do
Ao concordar com Nietzsche, que em Gene-
jornal nas colagens cubistas, anteriormente
alogia da moral afirmou que somente aquilo
mencionadas, integra, sem dúvida, esse re-
que não cessa de doer permanece na memó-
baixamento.
ria, podemos imaginar o sofrimento de Funes,
36
incapaz de esquecer. Suas lembranças eram
te à indigência da palavra jornalística, ele acor-
dolorosas de nitidez e intransmissíveis pelo
dará e seguirá seu caminho. Não importa se
excesso. O personagem de Borges realiza uma
subitamente amnésico ou senhor de sua vida
“experiência do inexperienciável” – a proximi-
prosaica. Não há grande diferença. O homem
dade da morte –, de onde ressurge transforma-
na foto de 1937 adormece na festa. Não terá o
do, dotado de uma extraordinária capacidade
que lembrar, o que contar aos outros sobre o
mnemônica, que não pode ser compartilhada
evento, senão talvez seus próprios sonhos.
ou transmitida. “Com efeito, Funes não recordava somente cada folha de cada árvore de cada
O jornal e a Vanitas
monte, como também cada uma das vezes que
Os jornais amassados na foto de Bresson
a tinha percebido e imaginado. [...] Pensou que
adquirem novo sentido, se os olhamos in-
na hora da morte ainda não estaria concluído o
formados por certo gênero de pintura muito
encargo de classificar todas as recordações da
apreciado nos séculos xvi e xvii, o Vanitas, cuja
infância”.
função era advertir sobre o caráter efêmero e
23
precário de todas as coisas do mundo. Na forPara tentar dormir, Irineu Funes imaginava-
ma de natureza-morta ou alegoria, o subgê-
-se “embalado e anulado” pela corrente de um
nero Vanitas reúne objetos carregados de va-
rio que, como supõe Weinrich, é certamente
lor simbólico – livros, flores, espelhos, velas,
o Lete, o rio do esquecimento, que “liquida”
crânios – que estabelecem contrastes entre o
os conteúdos da memória.24 São esparsas as
mundo do espírito, incorruptível, e o mundo
representações do sono na história da arte
da matéria, submetido ao tempo e à degrada-
ocidental. Certamente por isso, destacam-se
ção. Vanitas é sempre uma advertência contra
A Vênus adormecida, de Giorgione, tela de 1507,
a precariedade da vida humana – e nada mais
e também o cão adormecido aos pés do anjo
precário do que a memória – e os perigos de
da melancolia, na célebre gravura de Dürer, de
deixar-se seduzir pelas riquezas terrestres.
1514. Contudo ainda mais esparsa é a presença
Assim a melancolia do gênero Vanitas infil-
do homem adormecido. Até a arte moderna, o
tra-se nas coleções que dariam origem aos
homem, representante do logos, é retratado
museus – os gabinetes de curiosidades e as
sempre desperto, no pleno domínio de si mes-
Wunderkammern (câmaras de maravilhas) –,
mo, pois o sono da razão, mostrou Goya, des-
repletos de ampulhetas, crânios que conti-
perta monstros ou, mais próxima de nós, a po-
nham relógios, estranhos espelhos, morcegos,
tência do inconsciente, como sugere Magritte
fósseis, compassos e objetos variados.
em sua tela Le dormeur témeraire, de 1928. Na foto de Bresson, os elementos que repreNa foto de Bresson, o homem adormecido so-
sentam a vaidade – os signos da realeza – estão
bre o leito de jornais pode ser o mesmo que
ocultos, porém atuantes, atraindo os olha-
apaga seus rastros no poema de Brecht: sem
res daqueles que estão na parte superior da
herança, sem bagagem, sem amigos, sem lem-
imagem. Eles organizam a festa e a própria
branças do espetáculo da coroação, indiferen-
imagem fotográfica. Os jornais amassados,
37
contudo, assinalam a precariedade, o caráter
tino, a queima de livros, sinalizando a ameaça
efêmero de todas as coisas, pois a novidade da
de extinção da memória.
notícia desaparece ainda mais rapidamente do que o frescor das flores.
Mas é em outra narrativa do mesmo livro que encontramos os jornais e a temática do esqueci-
A cada manhã, os jornais nos oferecem Vanitas.
mento com especial complexidade. Em “Utopia
Ao folhear suas páginas, nosso olhar distraí-
de um homem que está cansado”, Borges des-
do passeia pelo contraste estabelecido entre
creve o encontro do narrador com um homem
as imagens de morte e destruição, e os signos
de quatro séculos, que vive no futuro – “um ho-
de riqueza, poder e também juventude (quase
mem vestido de cinza”, cor que envolve os men-
sempre instrumentalizados pela publicidade).
sageiros da estranheza em vários contos desse
Ao passo que nas pinturas os elementos con-
escritor – e que faz assustadoras revelações.
trastantes tinham um caráter de advertên-
Uma delas é a extinção da imprensa, “um dos
cia, nos jornais os signos se igualam, e assim
piores males do homem, já que tendia a mul-
nivelam-se todos os valores. Mais significativo
tiplicar até a vertigem textos desnecessários”.26
do que o contraste entre as imagens, contudo,
A afirmação assemelha-se àquela sobre o caráter
é a precariedade da própria matéria-jornal, o
monstruoso dos espelhos e da cópula, presente
que se deve não apenas à fragilidade do papel
no início de “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”: “os
barato – tão sensível à ação da luz e do tempo –,
espelhos e a cópula são abomináveis, porque
mas também ao compromisso com a palavra
multiplicam o número dos homens”.27 Para o es-
informativa que torna o jornal tão rapidamente
critor, a multiplicação vazia da realidade, tarefa
obsoleto. Sua entropia é brutal.
dos espelhos, dos jornais e da procriação (vista apenas como tarefa biológica), deve ceder lugar
Também em Borges encontramos menção a
ao mundo visto como imenso labirinto literário,
essa escrita do esquecimento que são os jor-
mais real e mais rico do que a mera proliferação
nais. Em “O Congresso”, conto que integra
de fatos e imagens desqualificadas que preten-
O livro de areia, o narrador é um jornalista que,
dem constituir o real. À revelação do desapareci-
ao fim da vida, lembra sua participação no pro-
mento da imprensa no mundo do futuro o nar-
jeto utópico da construção de um Congresso
rador responde com um longo discurso:
do Mundo. O impulso que o levou a tal organização foi o mesmo que o conduziu à redação
Em meu curioso ontem [...] prevalecia
do jornal em que trabalharia por muitos anos.
a superstição que entre cada tarde e
“Não me envergonho de querer ser jornalista,
cada manhã acontecem fatos que é
rotina que agora me parece trivial. Lembro
uma vergonha ignorar. O planeta estava
ter ouvido Fernandez Irala, meu colega, dizer
povoado de espectros coletivos, o Canadá,
que o jornalista escreve para o esquecimento e
o Brasil, o Congo Suíço e o Mercado
que seu desejo seria escrever para a memória
Comum. Quase ninguém sabia a história
e para o tempo”. Nesse conto, encontramos
anterior desses entes platônicos, mas sim
também uma das obsessões do escritor argen-
os mais ínfimos pormenores do último
25
38
congresso de pedagogos, a iminente
picaretas, os machados, os martelos e destru-
ruptura de relações e as mensagens que os
am sem piedade as cidades veneradas!”30 Mal
presidentes mandavam, elaboradas pelo
sabiam que a realidade das duas grandes guer-
secretário do secretário com a prudente
ras que se sucederiam superaria o mais ousa-
imprecisão de que era própria do gênero.
do de seus sonhos.
Tudo se lia para o esquecimento, porque em poucas horas o apagariam outras
Ao final do conto de Borges, na menção a um
trivialidades. [...] As imagens e a letra
único nome, é revelada justamente a face mais
impressa eram mais reais do que as coisas.
cruel daquele retorno à barbárie do esqueci-
Só o publicado era verdadeiro.
mento. Caminhando pela terra do futuro, sem
28
referências e sem fronteiras, o narrador vê É inegável que no conto de Borges o futuro
uma estranha torre, coroada por uma cúpula.
é visto de forma intensamente crítica, o que
Ao indagar a seu respeito, informam-lhe que é
só se revela nas últimas linhas. Esse discur-
o crematório. “Dentro está a câmara letal. Di-
so sobre a imprensa é a fala mais longa do
zem que foi inventada por um filantropo cujo
narrador, que no restante do texto limita-se
nome, creio, era Adolf Hitler”.31
a fazer perguntas e a descrever o ambiente. A verdade é que nesse tempo distante e assusta-
Assim, o autor assinala os limites dessa utopia e
dor extinguiram-se não apenas os jornais, mas
o esvaziamento dramático causado pela ausên-
também os museus e as bibliotecas. Inexistem
cia da halachá (a lei ou doutrina) que nos orien-
monumentos, feriados ou espaços de rememo-
taria sobre o quanto lembrar e o quanto esque-
ração; inexistem cidades. Diz o homem do fu-
cer. Importa ressaltar que a história do Terceiro
turo: “Queremos esquecer o ontem, salvo para
Reich pode ser vista como uma guerra contra a
a composição de elegias. Não há comemora-
memória, um “memoricídio”, como a chamou
ções nem centenários nem efígies de homens
Weinrich, e que a extinção total dos vestígios de
mortos. Cada qual deve produzir por sua conta
seus crimes era um objetivo dos nazistas.
as ciências e as artes de que necessita”. A essa 29
revelação o narrador não oferece resistência ou
Por outro lado, o mundo descrito no conto
espanto, tampouco formula qualquer compa-
aproxima-se em parte do radicalismo das van-
ração com seu mundo presente.
guardas, com suas contradições insolúveis,
Em certa medida, essa terra de esquecimento
pureza e uma busca pela essência nessa narra-
assemelha-se ao sonho do Futurismo. No ma-
tiva bela, asséptica e aterrorizante ao mesmo
nifesto de 1908, Marinetti pregava a destruição
tempo, que remete não apenas à vanguarda
dos museus, das bibliotecas, das academias
futurista, mas aos discursos teóricos que fun-
de todo o tipo. O manifesto defende uma ale-
dam a abstração. A escrita dos jornais – impu-
gria incendiária. “Ponham fogo nas estantes
ra, instrumentalizada e voltada para o esque-
das bibliotecas! Desviem o curso dos canais
cimento – não participa desse ideal de pureza,
para inundar os museus! [...] Empunhem as
mas é indiscutível que justamente seu caráter
impasses e dilaceramentos. Há um ideal de
39
efêmero e problemático é parte integrante e
te sua linguagem informativa e, em seu lugar,
vital da modernidade (que não é sinônimo
inscrevo extratos de poemas diversos, sobretu-
de vanguarda). Vale relembrar Baudelaire:
do de Paul Celan e de sua palavra obscurecida
“A Modernidade é o transitório, o fugidio, o
e resistente, a qual, deslocada do contexto de
contingente, é a metade da arte, sendo a ou-
testemunho de Auschwitz, informa nossas pe-
tra metade o eterno e o imutável”. Os jornais
quenas e grandes catástrofes de cada dia.
32
integram a paisagem urbana do mesmo modo que a moda, o vestuário e a maquiagem femi-
Na verdade, na observação dos jornais,
nina, tão valorizados pelo poeta. O desprezo
estou à procura do sentido ou do Witz român-
desses elementos transitórios e a negação
tico, de estranhamentos que escapem ao que
do que é efêmero gerariam uma beleza vazia,
é meramente informativo, e estes podem en-
abstrata e indefinível. As bancas e quiosques
contrar-se numa única palavra, em imagens
de jornais fazem parte indelével da cidade com
ou mesmos em restos de cor. O vetor do traba-
suas infindáveis variantes. Em cada esquina,
lho é sempre a página imprensa rarefeita, apa-
os jornais e demais publicações, afixados uns
gada, sabotada em sua função de documento,
aos outros, constroem verdadeiros castelos de
mas onde o texto jornalístico ainda pulsa na
informações, solicitando o olhar por meio de
informação residual da imagem selecionada
promessas, escândalos, choques, sempre dife-
ou pelo avesso da folha que se torna transpa-
rentes e sempre os mesmos.
rente pela raspagem do papel. A integridade da página é mantida e o que permanece é uma
Que este ensaio não se confunda com qual-
pele fina e transparente, uma matéria frágil e
quer tipo de condenação aos jornais e leve a
sensível à ação da luz, desafiadoramente mun-
uma adesão crítica e, em larga medida, encan-
dana. O que me pergunto é como seria possí-
tada com suas imensas possibilidades. Como
vel reverter a temporalidade linear dos jornais,
artista plástica, venho fazendo deles o cerne
salvá-los do esquecimento, conferir-lhes po-
da poética que persigo há alguns anos. Desde
tência poética, transformá-los em pequenos
2001, apago os jornais, desfaço criteriosamen-
monumentos.
40
Publicado em Ipotesi, Revista de Estudos Literários, vol. 11, n. 2, Juiz de Fora, 2007, jul.–dez., p. 167–77. 1 capriglione, Laura. “Preso sem nome, sem fala e sem história intriga Justiça”, Folha de S. Paulo, 17 de abril de 2007, caderno c, p. c3. 2 maigne, Jacques. “Alexander au rendez-vous des souvenirs”, Libération, Paris, 27 de junho de 1987. 3 borges, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Globo, 1995, p. 120. Tradução de Carlos Nejar. 4 weinrich, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brazileira, 2000, p. 219. 5 buber, Martin. Histórias do rabi. São Paulo: Perspectiva, 1995, p. 121. 6 yerushalmi, Yosef Hayim. Zakhor: história judaica e memória judaica. Rio de janeiro: Imago, 1992, p. 131. 7 gagnebin, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 75. 8 Bertold Brecht citado por gagnebin, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. Op. cit, p. 69–70. 9 Ibid., p. 70. 10 agamben, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Ed. ufmg, 2002, p. 175. Tradução de Henrique Burigo. 11 Ibid, p. 116. 12 Ibid, p. 117. 13 benjamin, Walter. “Sobre alguns temas em Baudelaire”. In: Obras escolhidas iii: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 136. 14 Ibid. p. 136–7. 15 Ibid. 107. 16 Ibid., p. 106–7. 17 lyotard, Jean-Franços. L’inhumain, Paris: Seuil, 1988, p. 131. 18 bois, Yves-Alain, “Pintar, a tarefa do luto”, ars, vol. 5, n. 7, São Paulo, 2006, p. 103. 19 hobsbawm, Eric. Era dos extremos: o breve século xx: 1914–1991. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 14. 20 Fotografia disponível em http://www.magnumphotos.com/C.aspx?VP3=SearchResult&ALID=2K1HRGRDL32 21 barthes, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 46. 22 borges, Jorge Luis. Ficções. Op. cit., p. 113. 23 Ibid., p. 115. 24 weinrich, Harald. Lete: arte e crítica do esquecimento. Op. cit., p. 151. 25 borges, Jorge Luis. O livro de areia. São Paulo: Globo, 2001, p. 26. Tradução de Lygia Morrone. 26 Ibid., p. 84. 27 borges, Jorge Luis. Ficções. Op. cit., p. 29 28 borges, Jorge Luis. O livro de areia. Op. cit., p. 85. 29 Ibid., p. 87. 30 chipp, Herschel B., Teorias da arte moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 292. 31 borges, Jorge Luis. O livro de areia. Op. cit., p. 89. 32 baudelaire, Charles. Écrits esthetiques. Paris: Union Générale d’Éditons, 1986, p. 372–3.
41
(...) Viesse viesse um homem viesse um homem ao mundo, hoje, com a barba de luz dos Patriarcas: ele poderia se falasse ele deste tempo, ele poderia apenas balbuciar e balbuciar sempre –, sempre –, continuamente. (”Pallaksch. Pallaksch.”). Paul Celan, Tübingen, Janeiro. tradução
42
Leila Danziger
Pallaksch Pallaksch Leila Danziger
Certa vez, assisti a uma entrevista do escritor
Patriarcas: ele poderia
francês Patrick Modiano, cujos livros nos fa-
se falasse ele deste
lam com frequência da França nos anos da
tempo, ele
Ocupação, que me interessou, sobretudo, pela
poderia
beleza de sua fala entrecortada e hesitante.
apenas balbuciar e balbuciar
Ao buscar responder as perguntas, ao tentar
sempre –, sempre –,
demonstrar e complementar as várias nuanças
continuamente.
de seu pensamento, as frases se demoravam, e ele adiava longamente a conclusão de sua fala.
(“Pallaksch. Pallaksch.”)1
Cada frase parecia ser o resultado de um exercício difícil e rigoroso de extração das palavras,
A palavra repetida que encerra o poema, in-
contaminadas e quase deformadas por outras
compreensível em todas as línguas, é atri-
palavras e percepções.
buída a Hölderlin, que a inventara em quase quatro décadas de isolamento em uma torre,
Creio que esse tipo de fala hesitante e ao mes-
às margens do rio Neckar, e poderia signifi-
mo tempo rigorosa, pois seu compromisso é
car sim ou não. Essa fala extenuada, à beira
ser fiel à experiência de nosso tempo, seja a
do silêncio e da incompreensibilidade, como
forma justa – não exatamente verdadeira, e sim
afirma Lacoue-Labarthe, não é uma narrativa,
justa – ao tentar falar da atualidade. É o que pa-
não nos conta nada, mas diz respeito à possi-
rece sugerir Paul Celan no poema “Tübingen,
bilidade mesma da experiência da poesia, se
Janeiro”, dedicado a Hölderlin:
tomamos a palavra experiência em sua origem latina, como ex-periri, a travessia de um
[...]
perigo.2 Ou ainda, como nos diz Blanchot, e
Viesse
também Foucault, como uma “experiência do
viesse um homem
fora”: “uma experiência do ilimitado, do ins-
viesse um homem ao mundo, hoje, com
transponível, do impossível, isto é, daquilo
a barba de luz dos
que afronta, na realidade, a loucura, a morte,
43
a noite ou a sexualidade, ao aprofundar, na
A sonoridade da palavra “pallaksch”, duplica-
espessura da linguagem, seu próprio espaço
da como aparece no poema de Celan, parece-
de fala”.
-me um título justo para uma instalação que
3
surge de gestos repetitivos que desejam confeOra, sabemos que a experiência da poesia – da
rir algum sentido às ruínas dessa fala da atua-
arte, do risco – só é possível no embate com
lidade que são os jornais (recém-lançados e já
a língua – “estado da fala comum, tal como
obsoletos). A instalação é voltada para a espa-
é dada a cada um de nós e a todos, em deter-
cialização dos resíduos (materiais e sonoros),
minado momento do tempo e segundo nossa
produzidos a partir do processo de apagamen-
pertença a alguns lugares do mundo.” A lín-
to e reedição dos jornais impressos. Desenvol-
4
gua é aquilo que sempre nos antecede e ao que
vo aqui outro lado da série Diários públicos, em
nos submetemos, “um corpo de prescrições e
curso desde 2002, em que procuro reverter cer-
de hábitos.” Para que haja literatura, poesia –
ta visão linear e homogênea do tempo. O tra-
arte, enfim –, é preciso conquistá-la, assumi-la
balho parte de uma leitura corrosiva, vivida em
5
arriscadamente, abismar-se, torná-la uma es-
sua materialidade máxima, não apenas com os
critura, como tão bem definiu Barthes.
olhos, mas com o corpo em integridade.
Na instalação Pallaksch Pallaksch, aproprio-
Desde o início, percebo que os restos acumula-
-me literalmente da língua que nos é dada –
dos contêm certo apelo à forma, mas esse apelo
compreendida aqui como a fala incessante, o
permaneceu latente, não respondido. Há tem-
rumor contínuo da linguagem da informação
pos, observo as informações retiradas dos jor-
– e procuro transformá-la numa efetiva escritura
nais transformarem-se num emaranhado den-
de resíduos e ruídos. Proponho assim uma
so de tiras e suspeito que, nesse acúmulo, algo
interpretação da palavra incompreensível de
da verdadeira forma da linguagem jornalística
Hölderlin, que no trabalho assumirá a função
se revela. E se há algum sentido em perguntar-
de um ritornelo. Atualizar a palavra criada por
-se por uma possível “essência” do jornal – do
Hölderlin, pensá-la a partir de uma perspectiva
mesmo modo que Barthes pergunta: “Qual é a
rigorosamente contemporânea, implica, creio,
essência de uma calça (se há alguma)?” –, cer-
compreendê-la como resposta ao aspecto fala-
tamente essa essência está não no jornal into-
cioso dessa fala “inesperada, ágil, incansável,
cado, entregue ao leitor nas primeiras horas do
6
que nos dota a cada momento de um saber
dia, mas sim na pilha de jornais descartados,
instantâneo, universal”.7 Esse é o regime pró-
amassados, consumidos, destinados a outras
prio da palavra informativa, da linguagem dos
formas de uso, em função da qualidade de seu
meios de comunicação, definida por Mallarmé
papel barato e, sobretudo, do envelhecimen-
como “linguagem da ação, do trabalho, da ló-
to acelerado da informação. Como observou
gica e do saber, linguagem que transmite ime-
Barthes: “A essência de um objeto tem alguma
diatamente e que, como boa ferramenta, desa-
relação com o que dele resta: não obrigatoria-
parece na regularidade do uso”, e se situa no
mente o que dele resta depois de muito usado,
extremo oposto da poesia.
mas o que é jogado porque não se quer mais
8
44
usar”. Qual o destino dos jornais quando, tão
de controlar e entender as diversas situações es-
prontamente, deixam de ser novidade? Que po-
paciais e de luminosidade, levou o artista a pro-
tência eles guardam? Como ouvir o murmúrio
duzir imensa quantidade de fotografias ao lon-
dos restos?
go de cinco décadas, legando-nos um arquivo de imagens indissociáveis das obras em si. Como
Minha atenção ao longo do processo de traba-
observa Jean-Pierre Criqui, para o escultor, a
lho se desdobra, assim, entre o apagamento
foto desenvolve o trabalho escultural numa es-
seletivo dos jornais, que produz páginas es-
pécie de comentário paralelo que, longe de ser
vaziadas, porém íntegras, e a observação da
apenas um simples documento, estabelece res-
nova forma da informação extraída pela fita
sonâncias entre a especificidade dos dois meios
adesiva. O aspecto contínuo e quase ininter-
plásticos.9 Apesar de tal aspecto distanciar-se
rupto que adquire o jornal nesse processo de
dos interesses dos artistas contemporâneos,
extração constrói outra narrativa, que tudo
afastados da investigação da especificidade dos
nivela e confunde. A falta de conexão entre as
meios, há nessa prática de Brancusi uma trans-
notícias é assim intensificada, e esse é um dos
versalidade que nos é familiar.
fatores responsáveis pela vocação do jornal para o esquecimento.
Mesmo que as esculturas de Brancusi integrem hoje coleções de diversos museus, as fotografias
Pallaksch Pallaksch é uma resposta ao apelo –
do ateliê mostram certa perda indefinível sofri-
decididamente escultórico – dos acúmulos de
da pelas obras. Até mesmo na reconstrução do
tiras de jornais. E, nesse sentido, a fotografia
ateliê do artista, feita pelo arquiteto italiano
é um importante meio de investigação, regis-
Renzo Piano, e instalado em frente ao Centro
trando as diversas configurações de resíduos
Georges Pompidou, em Paris, há algo da ordem
que se formam continuamente, mas devem
do inexorável (e talvez a reconstrução arquite-
ser rebobinados e guardados – de outro modo
tônica pertença ao domínio da imagem). Mas o
o espaço de trabalho ficaria inteiramente ocu-
que é notável nas fotos do ateliê de Brancusi é o
pado pelos restos e expulsaria minha própria
absoluto controle exercido sobre seu espaço de
presença.
trabalho; o artista não admite nenhum elemento que não lhe pertença, nenhuma variação
Vale lembrar a prática de Brancusi, que fotogra-
formal que não tenha sido originada em um
fava a reorganização constante dos elementos
processo rigoroso de investigação, em torno de
de suas esculturas no espaço privilegiado do
certo número limitado de temas. Nesse sentido,
ateliê. A fotografia foi uma ação reflexiva fun-
embora Brancusi tenha sido amigo próximo de
damental em sua obra, embora ele não preci-
Duchamp, sua obra é de fato o oposto do ready-
sasse preocupar-se com sua permanência, pois
-made. “Enquanto Duchamp recusava a impor-
sempre trabalhou com materiais tradicionais e
tância tradicionalmente atribuída à ‘inteligên-
duráveis, como a madeira, a pedra e o bronze.
cia da mão’ e reduzia ‘a ideia da consideração
Mesmo assim, o desejo de investigar incansavel-
estética à escolha do espírito’, Brancusi reafir-
mente as relações entre as esculturas, o desejo
mava a significação do toque físico e da habili-
45
dade do artista, e ele mesmo transformava um
gem). Registros visuais e sonoros são tentati-
objeto comum em uma escultura por um ato de
vas de perceber nuanças, contornos, limites e,
sua vontade”.
10
assim, instalar certa distância reflexiva entre mim e o rumor que me envolve de forma con-
Embora não exista mais sentido em alimentar
tínua (é preciso distinguir murmúrios dentro
dicotomias (mão versus espírito; sensível versus
da concha do mundo da informação). O que
inteligível), interesso-me especialmente por
pedem as informações transformadas em
esse apego ao toque, pelo aspecto manual da
metros e metros? Acumularem-se em monta-
obra de Brancusi, e me parece possível com-
nhas? Expandirem-se pelo solo (como certas
preendê-lo em outro contexto, aplicado a ou-
algas que teimam em invadir as praias cario-
tras matérias. Modelar efetivamente o texto
cas em algumas épocas do ano)? As metáforas
informativo, erodir a matéria-jornal, raspar
geológicas trazem à lembrança reflexões de
a linguagem informativa, silenciar sua taga-
Robert Smithson, que vê a própria linguagem
relice, desviar seu aspecto utilitário, para que
transformar-se em montanhas de escombros
outras funções possam surgir, são operações
simbólicos.11
que me interessam, implicando o investimento físico numa leitura extrativa que compreendo
Quando tento me movimentar no ateliê satu-
como algo efetivamente corporal.
rado de tiras, penso em certas coreografias de Pina Bausch, que problematiza a movimenta-
A operação de apagar os jornais, que acarre-
ção dos bailarinos, ao fazê-los dançar contra
ta a transferência do texto de uma superfície
a resistência das águas. Com frequência, a
(a página) para outra superfície (o rolo de fita
coreógrafa alemã estabelece o palco como um
adesiva), possui semelhanças com a fotogra-
campo de forças, e não como um espaço liso e
fia compreendida enquanto vestígio ou índice.
tranquilo. Criar um espaço denso e resistente,
Desnecessário nos estendermos aqui sobre
capaz de instituir outra temporalidade – lenta,
o caráter indicial da fotografia, amplamente
rarefeita, que resista ao tempo da informação,
difundido por diversos autores. O estatuto da
do consumo e do tecnicismo –, eis um dos
imagem fotográfica como vestígio interessa-
desejos no horizonte do processo de trabalho.
-me especialmente nesse procedimento de
Talvez esse tempo distendido e lento (melan-
leitura extrativa, pois os metros de informação
cólico?) possa ser compreendido como uma
que jazem à minha volta contêm espectros de
forma de resistência (saudável, creio) às nos-
imagens – a imagem da imagem da imagem –
sas crises de temporalidade, experimentadas
e assemelham-se talvez a espécies de sudários
desde que a modernidade se pôs no horizonte.
da informação.
Poderia o tempo lento da melancolia ser uma estratégia reativa a um tipo de temporalidade,
Fotografo as tiras de jornais em diversas con-
em que o presente, o passado e o futuro nos
figurações no ateliê; ouço seus atritos e ruídos.
parecem igualmente inacessíveis? Creio que a
É preciso não apenas ver, mas ouvir a vocação
melancolia contemporânea pode ser associa-
do trabalho (as tiras roçam, farfalham, ran-
da à consciência da entropia, presente de for-
46
ma vertiginosa em nosso mundo industrial (e
Para Broodthaers, o cinema funciona como
ao sentimento de obsolescência que indiscri-
um curioso dispositivo que simultaneamente
minadamente afeta pessoas e objetos). Sobre-
inscreve e apaga. “Ele apresenta um texto em
tudo com Smithson, sabemos que a entropia
processo de escritura e que ao mesmo tempo já
aumenta à proporção da quantidade de infor-
teria sido escrito: um texto, que animado no pre-
mação adquirida. Essa é a consciência extrema
sente, é imediatamente inscrito no passado”.12
que adquirimos a partir do acúmulo de jornais
As imagens do filme do artista belga que mos-
e outros media. Trata-se aqui não de procurar
tram a instabilidade da escritura, a impos-
superar ou reverter a entropia – tarefa impossí-
sibilidade de fixar as palavras e conferir-lhe
vel, como já observou Smithson –, mas sim de
alguma duração, parecem-me especialmente
apropriar-se dos acúmulos, dos excessos, de
oportunas para pensar o regime da palavra
forma reflexiva e poética.
informativa, que tão logo surge, é cancelada pela torrente de informações que se sucedem
A instalação Pallaksch Pallaksch inclui também
a cada dia, deixando atrás de si apenas ruídos,
registros videográficos, em que o gesto de apa-
um estranho rumor do mundo.
gar os jornais é apresentado em seu instante essencial, que dura de dois a quatro segundos.
O filme de Broodthaers é silencioso – não ou-
Pela edição, os apagamentos se sucedem de
vimos o atrito da caneta-tinteiro sobre o papel,
forma contínua; os fatos emergem e relampe-
tampouco o encontro entre a água e a solidez
jam. A imagem é animada pelo gesto que fere o
das coisas. Podemos considerar que o silêncio
jornal, que o desfaz, e mesmo, certas vezes, por
do filme é um dos elementos de sua potência,
acidente, o rasga e destrói. Apagar as imagens
porque frustra uma espera. Mas todos nós co-
e os textos é uma modalidade de apropriação:
nhecemos a sonoridade da chuva e o discreto
literalmente arruinados – transformados em
ruído da pena sobre o papel – para quem ain-
ruínas –, eles constroem um arquivo de destro-
da não foi capaz de ouvir o som da escrita, vale
ços da informação.
lembrar a acuidade dos sentidos de Proust: “O ruído de minha respiração abafa o de minha
Em 1969, Marcel Broodthaers realizou um fil-
pena e de um banho no andar de baixo.”13 Nos
me de dois minutos, em que tentava, em vão,
registros videográficos que integram Pallaksch
escrever um texto sob uma torrente de água.
Pallaksch, os ruídos produzidos pela extra-
La pluie (projet pour um texte) mostra o artista
ção das informações é essencial, ritmando os
sentado próximo a um pequeno caixote que lhe
gestos, materializando o ato da leitura, que
serve de mesa. Enquanto escreve, as palavras
se inscreve, creio, numa zona incerta entre a
são imediatamente dissolvidas e levadas pela
lembrança (tênue e precária) e o esquecimen-
água; ainda assim, o artista continua a escrever.
to (predominante).
47
Uma primeira versão deste texto foi publicada com o título “Sobre as ruínas e os ruídos das informações” nos Anais do 18o Encontro da Associação Nacional dos Pesquisadores em Artes Plásticas (anpap). Salvador: edufba/anpap, 2009. 1 Tradução Leila Danziger. (...) Käme,/ käme ein Mensch,/ käme ein Mensch zur Welt, heute, mit/ dem Lichtbart der/ Patriarchen: er dürfte/ spräch er von dieser/ Zeit, er/ dürfte/ nur lallen und lallen, /immer-, immer/ zuzu.// (“Pallaksch. Pallaksch.”). Paul Celan, “Tübingen, Jänner”. In: Allemann, Beda & Reichert, Stefan (Hg.). Gesammelte Werke in 5 Bänden, Frankfurt: Suhrkamp, 1983, tomo I, p. 226. 2 lacoue-labarthe, Philippe. La poésie comme éxpérience. Paris: Christian Bourgeois, 1989, p. 30. 3 revel, Judith. Michel Foucault: conceitos essenciais. São Carlos: Claraluz, 2005, p. 47. 4 blanchot, Maurice. O livro por vir. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 301. 5 barthes, Roland. “Qu’est-ce que l’écriture?”. In: Le degré zero de l´écriture (suivi de Nouveuax essais critiques). Paris: Seuil, 1973, p. 11. 6 “O ritornelo é um segmento (de um relato, de uma canção ou de uma forma visual) que se autonomiza e insiste numa reverberação criadora que vai transformar todo o conjunto”. Félix Guattari citado por caiafa, Janice. Nosso século xxi: notas sobre arte, técnica e poderes, Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2000, p. 60. 7 blanchot, Maurice. O livro por vir. Op. cit., p. 296. 8 Ibid., p. 297. 9 criqui, Jean-Pierre. “Ruines à l´envers. Introduction à la visite des monuments de Passaic par Robert Smithson”, Les Cahiers du Musée National d´Art Moderne, n. 43, Paris, 1991, printemps, p. 8. 10 Sobre as afinidades e diferenças entre o objeto em Brancusi e Duchamp, ver: balas, Edith. “Brancusi, Duchamp et Dada”. In: Les carnets de l´Atelier Brancusi: regards historiques. Paris: Ed. du Centre Pompidou, 2000, p. 63–76. 11 smithson, Robert. “Uma sedimentação da mente: projetos de terra”. ferreira, Glória & cotrin, Cecília (orgs). In: Escritos de artista: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 194. 12 Bruyn, Eric. “The Museum of Atractions: Marcel Broodthaers and the séction cinéma”. Disponível em http:// www.medienkunstnetz.de/themes/art_and_cinematography/broodthaers/1/. Acesso em 12 de maio de 2009. 13 benjamin, Walter. “A imagem de Proust”. In: Obras escolhidas I: magia e técnica, arte e política, ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 48.
48
49
Para-ninguĂŠm-e-nada-estar [2006] Carimbo sobre jornal apagado 54 x 32 cm
Para-ninguĂŠm-e-nada-estar [2002] Carimbo e impressĂŁo solar sobre jornal apagado 54 x 32 cm
Para-ninguĂŠm-e-nada-estar [2002] Carimbo e impressĂŁo solar sobre jornal apagado 54 x 32 cm
Para Carlo Giuliani [2002] Carimbo e impress達o solar sobre jornal apagado 54 x 32 cm
Para Carlo Giuliani [2002] Carimbo sobre jornal apagado 54 x 32 cm
Vista parcial da exposição Diários Públicos, Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro, 2004
Para-ninguĂŠm-e-nada-estar [2003] Carimbo e impressĂŁo solar sobre jornal apagado 54 x 32 cm
Para Cecilia Meireles [2001] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aรงo 90 x 32 cm Acervo Museu Chรกcara Dona Catarina, Cataguases
Para Orides Fontela [2001] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aรงo 80 x 32 cm Acervo Museu Chรกcara Dona Catarina, Cataguases
Ciranda [2004–2007] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aço 104 x 32 cm
Para Ana Cristina César #1 [2004–2007] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aço 120 x 32 cm
Para Ana Cristina César #2 [2004–2007] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aço 120 x 32 cm
Para Paulo Leminski [2007] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aรงo 116 x 32 cm
Para Irineu Funes #1 [2004] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aรงo 160 x 32 cm
Para Irineu Funes #2 [2004] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aรงo 160 x 32 cm
Nome da obra [2011] Num fugitis molum sum, ullabo. Nam debit, quatibus ut ommolup.
(página 69) Série Para Irineu Funes [2004] Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro
Pensar em algo que será esquecido para sempre [2006] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 65 x 57 cm (aberto) 72 páginas
Vens abaixo em chamas (Hรถlderlin) [2006] Carimbo sobre jornais apagados 54 x 96 cm
Mares poder達o subir por mais mil anos [2012] Impress達o fotogr叩fica sobre papel de algod達o, conchas e moldura de madeira 90 x 72 cm
O que desaparece, o que resiste #2 [2011] Carimbo sobre jornais apagados e dispostos em séries diversas; vídeos, livros e impressos, dimensões variáveis. Instalação realizada numa banca de jornal desativada no campus da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mostra Campus (Des)situado – 20º Encontro Nacional da Anpap, Subjetividades, Utopias e fabulações, UERJ, 2011
Antônio Cupello, proprietário da banca de jornal que funcionou no Campus da UERJ – Maracanã, de janeiro de 1985 a abril de 2011
O que desaparece, o que resiste (detalhe) [2011]
PARA PENSAR O APAGAMENTO
83
Diários públicos – o teatro da leitura Luiz Cláudio da Costa
A produção contemporânea vem cedendo o lu-
Dito de outra forma, a escritura ou a obra de
gar soberano da atividade artística ao espaço
arte é um produto da leitura, da atividade de
da recepção. É na experiência por parte do es-
apropriação e ressignificação de discursos
pectador que a obra acontece. Roland Barthes
oriundos de espaços diversos não necessaria-
associou, em 1968, a crise da noção de autor
mente artísticos ou literários. Diários públicos,
ao aumento do prestígio do leitor. Contra a
série que a artista Leila Danziger desenvolve
ideia de autoria estava implícito um assalto ao
desde 2001, concebe a obra como atividade
pressuposto da origem da escritura ou da obra
de leitura à luz do problema da memória, por
de arte no indivíduo que a produz. Um texto
meio da inscrição ou do arquivamento de sig-
é espaço em que se casam e se contestam es-
nos num suporte material, da impressão ou do
crituras variadas. Ele é feito de escrituras múl-
apagamento das marcas significantes, da res-
tiplas, procedentes de várias culturas, que en-
significação de discursos segundo seus novos
tram em diálogo, paródia ou contestação. De
contextos materiais. Diários públicos apresen-
acordo com Barthes, é o leitor que pode reunir
ta a condição da obra de arte na contempora-
a multiplicidade de vozes e textos apropriados
neidade como um singular teatro da leitura.
e associados numa obra. Enquanto o escritor ou o artista pode apenas imitar um gesto sem-
A série, antes de tudo, é uma grande coleção
pre anterior, no leitor advém o próprio espaço
de jornais diários acumulados e conservados
em que se inscrevem todas as citações. O que
para serem lidos aos poucos. Os acúmulos de
se pode inferir dessa teoria é que os escritores
jornais foram mostrados em poucas situações
ou artistas são leitores ativos mais do que cria-
expositivas, mas a cena da leitura esteve visivel-
dores que fazem a obra nascer de sua subjeti-
mente presente na exposição Tempo-matéria,
vidade interior. Em suas palavras: “A escritura
realizada no Museu de Arte Contemporânea
é esse neutro, esse composto, esse oblíquo
de Niterói (mac), em 2010. Para essa ativida-
pelo qual foge o nosso sujeito, o branco e pre-
de, a artista recriou seu escritório-ateliê com a
to em que vem se perder toda identidade, a co-
instalação Pallaskch Pallaksch: uma mesa, um
meçar pela do corpo que escreve”.
banco próximo, uma luminária, uma pilha de
1
84
2
jornais, diversos carimbos espalhados, um ví-
ao compartilhamento público, para salientar
deo, um projetor e o volumoso resíduo infor-
e, portanto, restringir o significado proposto
me de fitas resultantes de sua ação extrativa.
pelo autor”.3 Fischer aborda esse compartilha-
Extrair do jornal o ruído como quem arranca o
mento oral da escrita sob a alcunha de “fala
entulho do mundo é o golpe que a artista lança
do papiro”. O ensino clássico tinha como ob-
sobre o dispositivo da informação diária. O jor-
jetivo não a aquisição de conhecimento, mas
nal, livre de excessos, expõe seu ermo, deserto
a perfeição da eloquência. Era a oralidade que
que agora estimula a errância e a demora. Si-
regia a sociedade antiga dos gregos e romanos,
lenciar a tagarelice da informação não pressu-
ainda que a escrita fosse empregada de forma
põe esquecer o excesso que insiste nas notícias.
generalizada. A mudança advinda com a pro-
Ao contrário, apagar é transferir signos: o vídeo
liferação da escrita entre gregos e romanos é
guarda o ruído e a ação física; o emaranhado
que eles passaram a ler em voz alta.4
de fitas arquiva as palavras inúteis. Enquanto o vídeo registra, aproxima, aumenta a escala da
Dessa prática oral à leitura privada muitos sé-
cena e o volume sonoro, intensificando o ver e
culos se passaram. A mudança nos hábitos de
o ouvir – o rumor da ação intempestiva que a
leitura foi gradativa, tendo sido a imprensa fun-
artista opera na extração –, as fitas guardam o
damental no enfraquecimento da oralidade e
contato com as palavras que se fazem arquivo
no predomínio da leitura silenciosa. A leitura
morto, impossibilidade de leitura. Se, porém,
do rolo na Antiguidade não era apenas oral;
ler torna-se impossível, é porque a leitura re-
mobilizava o corpo inteiro, o que não permitia
cua a sua potência máxima, essa que pode mul-
ao leitor escrever enquanto lia. O códex – livro
tiplicar e desdobrar as traduções em visibilida-
composto de folhas dobradas e páginas reuni-
des plástico-poéticas. A suposta uniformidade
das em uma mesma encadernação – pressupôs
que as palavras tentam construir não consegue
outra relação com o corpo no momento da
obstruir o processo entrópico irreversível da
leitura. Segundo Roger Chartier, o códex, ma-
informação que os meios de comunicação es-
nuscrito ou impresso, permitiu gestos inéditos,
condem na falácia de um tempo homogeneiza-
como folhear o livro, citar trechos com preci-
do e de uma significação ordenada.
são, estabelecer índices. Acima de tudo, favoreceu “uma leitura fragmentada mas que sempre
Discretamente os elementos no espaço da
percebia a totalidade da obra, identificada por
leitura convidam o espectador a se sentar na-
sua materialidade”.5 Vivemos um momento de
quele local em que reina a desordem. Eles o
transformação das práticas da leitura com o
convidam para essa atividade solitária e silen-
advento da era digital. Na tela do computador,
ciosa que, até o aparecimento da imprensa,
o texto volta a estar dobrado num espaço tridi-
era pública e oral. Escutar fazia parte do ato
mensional. Para ler, devemos desdobrá-lo sua-
de ler. Como afirma Steven Roger Fischer, em
vemente. O texto volta a ser um rolo, mas agora
História da leitura, ao comentar essa atividade
deve ser desenrolado verticalmente. A leitura
na Grécia: “Toda literatura escrita era, sobre-
produzida pela navegação na rede, por outro
tudo, embora não exclusivamente, destinada
lado, é descontínua e mais próxima da natureza
85
enciclopédica. Chartier esclarece que a reali-
carimbando, imprimindo, gravando. O vídeo,
dade hipertextual da textualidade eletrônica e
a fita extrativa e o carimbo são instrumentos
de sua hiperleitura transformam as relações
capazes de permitir a leitura corporal que pres-
possíveis entre as imagens, os sons e os textos
supõe um conjunto de ações físicas com os re-
associados de maneira não linear mediante as
síduos de textos, informações, imagens e sons:
conexões eletrônicas, as ligações entre os tex-
fixar, arrancar, gravar, imprimir, transferir.
tos fluidos em seus contornos e em número
Trata-se de apagar o puramente utilitário para
virtualmente ilimitado.6
fazer subir à superfície do papel-jornal o murmúrio dos restos, o lamento da ruína. A me-
A leitura que Leila Danziger propõe em
lancolia que está presente no trabalho de Leila
Pallaksch Pallaksch, ou mesmo na série Diários
Danziger é acompanhada da força dos destro-
públicos como um todo, não tem a materiali-
ços que não se abatem em face do esquecimen-
dade do computador, mas experimenta diver-
to a que são forçados. É essa potência que a
sidade aberta semelhante à da nova textuali-
artista se propõe a ativar, convocando cada in-
dade digital. A mobilidade do texto entre os
divíduo para a cena da exposição no mac. Cada
suportes do papel-jornal, da fita e do vídeo,
espectador, particular e solitariamente, é con-
e os variados gestos (a colagem da fita, sua
vidado a sentar-se e partilhar do emaranhado
extração, o enrolar e o desenrolar das fitas, a
de sua leitura corrosiva, ruminando todos os
gravação em vídeo, o carimbar textos prove-
murmúrios.
nientes de outros espaços discursivos) pressupostos na leitura produzida em Pallaksch
Mas se a leitura da artista é corporal, ela não
Pallaksch não implicam atividade semelhan-
se abre à facilidade da participação física do es-
te àquela realizada diante do computador.
pectador que deseja carimbar mecanicamente
O que Pallaksch Pallaksch deixa visível é a
os jornais no afã da diversão banal. Ela man-
atividade silenciosa e privada da cultura im-
tém um distanciamento dos lugares no espaço
pressa que pode produzir tanto ruído quanto
da atividade artística, uma diferença que não
a ressignificação ativa da leitura exigi-lo. São
pode ser apagada. Convocar à participação da
conexões com outros textos e imagens, tradu-
obra como leitura não significa propor a repe-
ções, recontextualizações e transferências de
tição das ações de apagamento e impressão
discursos que estão sendo ativados na leitura
já realizadas pela artista. Ao contrário, é abrir
encenada por Pallaksch Pallaksch.
a possibilidade de outro espaço de inscrição, de outro lugar para a elaboração. Segundo
Diários públicos nasce da coleção de impressos
Leila Danziger, trata-se não de solicitar a cria-
da mídia jornalística, mas Danziger, longe de
ção de imagens ou textos, mas sim de propi-
uma leitura passiva de aquisição de conheci-
ciar o aberto ou a entropia do excesso em que
mentos, investe o corpo nessa atividade que in-
todas as imagens são possíveis. É preciso ler o
clui a apropriação, a recontextualização e a res-
mundo quando a informação está quase toda
significação. A artista trabalha a materialidade
apagada. É preciso saber apagar o excesso para
da folha do jornal em sua unidade, apagando,
poder perceber a catástrofe que nos assola, a
86
miséria que devasta o mundo com a falta de
co objeto, o rolo de papiro, fosse ela ordem ad-
poesia, com o esquecimento da arte. É preci-
ministrativa, texto religioso, correspondência
so que o espectador tome assento e se demore
pessoal ou literatura. Como consequência do
no teatro da leitura delicadamente construído
aparecimento do códex nos primeiros séculos
pela artista. É a imersão no processo da leitura
d.c., deu-se início à separação dos discursos
o que propõe Leila Danziger. É preciso desco-
segundo objetos materiais diversificados: li-
brir no vazio, na ausência, no silêncio os mo-
vros, revistas, jornais, cartas, diários etc.
dos de ver o mundo em pedaços. Foi a invenção da imprensa, contudo, que esNos jornais de Danziger surgem excertos de
tabeleceu a ordem dos discursos que até hoje
textos literários ou teóricos (Pensar em algo que
permanece descontínua segundo a materia-
será esquecido para sempre, 2006), impressões
lidade de suportes individualizados. Como
de figuras de artistas viajantes (Voyage pitto-
afirma Chartier: “Na cultura impressa, uma
resque et historique au Brésil, 2008), marcas de
percepção imediata associa um tipo de obje-
impressão solar (Para-ninguém-e-nada-estar,
to, uma classe de textos e usos particulares”.7
2001). Danziger organiza acúmulos de folhas
A ordem do discurso é assim estabelecida a
trabalhadas (Para Ana Cristina César, 2004),
partir da materialidade própria dos suportes
reúne dípticos ou trípticos (Vens abaixo em
individualizados no livro, no jornal, no arqui-
chamas, 2006), edita livros-cadernos (Lembrar/
vo, na biblioteca. Só na era do computador
Esquecer, 2006). Apagando palavras e retendo
aparece uma continuidade que não diferencia
outras, extraindo imagens e conservando ou-
os discursos a partir de sua própria materiali-
tras, gravando sua ação de extração em vídeo ou
dade. Chartier esclarece que é a “ordem dos
imprimindo sobre os jornais discursos alheios
discursos que se transforma profundamente
a esse suporte, Danziger processa os dispositi-
com a textualidade eletrônica”.8 Diários públi-
vos de informação impressa da cultura de mas-
cos agrupa e faz colidir, em um mesmo espaço
sa. Por meio de diálogos dissonantes entre os
contínuo de leitura, um conjunto de discursos
textos e as imagens provenientes de espaços e
que, na era da escrita impressa, pertence a ma-
tempos diferentes, ela produz uma leitura da
terialidades descontínuas.
escrita jornalística moderna, ao mesmo tempo que problematiza a ordem dos discursos estabelecida pela cultura impressa.
Diários públicos destaca justamente o problema da materialidade discursiva do jornal impresso. A materialidade da folha do jornal é
Na cultura da escrita em que vivemos, a poesia
o elemento do trabalho mais evidente numa
pertence ao livro, a informação ao jornal, a pu-
primeira leitura. Utilizando a técnica extrativa
blicação especializada à revista. Estranhamos
com o auxílio de fitas adesivas, Danziger apaga
os jornais de Leila Danziger, ou mesmo seus
aquilo que não quer preservar. Apagar é pro-
livros-cadernos, porque neles esses discursos
duzir o desaparecimento, é fazer esquecer. Na
estão reunidos num mesmo suporte material.
história da escrita são diversos os momentos
Por muitos séculos, a escrita existiu num úni-
em que o apagamento, a queima de arquivos,
87
serviu para reprimir ou censurar a leitura. Isso
nas ao suporte físico do jornal, mas à ordem
ocorreu na Antiguidade, na Inquisição, nas
do discurso que nele se apresenta. Uma vez
ditaduras da América Latina, sem esquecer a
que o jornal, descontínuo ao livro de poesia e
abominável queima de livros realizada pelos
à revista especializada, deve seu compromis-
nazistas em 1933. Apagar, no entender de Leila
so à palavra informativa, a multiplicidade da
Danziger, ao contrário da vontade de censura,
escritura mantém-se reduzida à comunicação
é conservar algo para que seja lembrado; é re-
da notícia. Nada da verdade objetivada e ofere-
mover certos discursos do tempo vazio e ho-
cida pelos jornais se conserva no trabalho de
mogêneo para dar-lhes uma duração; é dotar
Leila Danziger, que aposta na tensão entre a
o documento do presente do caráter de monu-
imagem e a palavra, bem como entre a palavra
mento. Nas palavras da artista: “Como conferir
do cotidiano jornalístico e a palavra poética.
singularidade aos jornais, subtrai-los à tempo-
Mallarmé proferiu essa distinção entre duas
ralidade linear, transformá-los em pequenos
linguagens, o que muito o absorveu para defi-
monumentos?”
nir a diferença entre a palavra essencial e outra,
9
bruta ou imediata. O interesse de Mallarmé Um dos trípticos, intitulado Todos os nomes
era mostrar que a palavra afirma uma ausên-
da melancolia (2008), lida diretamente com
cia, mesmo quando no cotidiano queremos
o tema do caráter precário das coisas do mun-
falar objetivamente de algo do mundo. É ver-
10
do, da qualidade efêmera do tempo. A morte,
dade que a palavra usual que nomeia um ob-
representada pela caveira, aparece no centro
jeto de nossa realidade física quer dele nos
desses trabalhos, que assim se assemelham
desvencilhar, pois ela cede à pressão da coisa
visualmente, pelo prestígio dado ao objeto, ao
que designa. O poeta, porém, o escritor, não
gênero Vanitas da pintura alegórica do sécu-
deseja sequer reconstituir o objeto na ausên-
lo xvii. Como Danziger esclarece, ao folhear
cia insistente que toda palavra nutre. O poeta
suas páginas, os jornais nos oferecem Vanitas
nos oferece uma realidade evasiva, que, ouvida
pelo contraste estabelecido entre as imagens
ou lida, desaparece, evapora. Analisando essa
de morte e destruição, e os signos de riqueza,
questão da linguagem em Mallarmé, Maurice
poder e juventude. O mais significativo para a
Blanchot nos diz que, com palavras, pode-se
artista, contudo, “é a precariedade da própria
fazer silêncio: “O silêncio só tem tanta digni-
matéria-jornal, o que se deve não apenas à fra-
dade porque é o mais alto grau dessa ausência
gilidade do papel barato – tão sensível à ação da
que é toda a virtude de falar.”12
luz e do tempo – mas também ao compromisso com a palavra informativa que torna o jor-
As intervenções nas folhas de jornais da série
nal tão rapidamente obsoleto. Sua entropia é
Diários públicos operam um espaçamento no
brutal”. Vanitas é a própria matéria do jornal,
discurso jornalístico sem afirmar outra verda-
pois ele traz a atualidade como coisa perecível.
de contraposta a ele. Entre as duas dimensões
11
da palavra, a poética (que não exclui a prosa) e O problema da materialidade discursiva pre-
a cotidiana informacional, entre uma fotogra-
sente em Diários públicos diz respeito não ape-
fia e a ausência produzida pelo apagamento,
88
constitui-se espaço potencial para um discur-
que estão em questão na folha que Danziger
so heterogêneo. Explicita-se um vazio que pode
publica. A apropriação, o deslocamento e a
ser preenchido pela aparição de outra fala, ja-
ressignificação de imagens e textos são proce-
mais nomeada, jamais identificada. Diários
dimentos da poética de Leila Danziger, que se
públicos cria uma continuidade dos discursos
compromete com a multiplicidade caracterís-
que impossibilita a hierarquia entre gêneros e
tica da escritura.
até mesmo entre repertórios, pois tornaram-se semelhantes em sua aparência. Todos os dis-
Seus livros-cadernos Pallaksch Pallaksch criam
cursos são, com efeito, equivalentes em autori-
deslocamentos semelhantes aos dos pássaros
dade, pois a leitura produtiva os iguala. Como
de Rebecca Horn no âmbito da ordem dos dis-
afirmar o gênero dos discursos destes excertos:
cursos. Danziger aposta num espaço nômade
“ninguém evoca o nosso pó”, “vens abaixo em
para os discursos da arte. Utilizando folhas de
chamas”, “a escolha do nome: eis tudo”, “pen-
jornal trabalhadas pelo apagamento e com no-
sar em algo que será esquecido para sempre”,
vas impressões, os livros-cadernos Pallaksch
“não há consistência nenhuma em teu nome”?
Pallaksch deslocam o contexto da notícia, misturando-o àquele da poesia de Paul Celan. Nas
Leila Danziger investe na indeterminação do
folhas de jornal desses livros foi carimbada a
espaço discursivo móvel e fluido, vontade que
frase de Celan: “Para-ninguém-e-nada-estar”,
se explicita na publicação do jornal O Globo de
uma das traduções de um verso do poema “De
25 de setembro de 2010. O interesse pela po-
pé” (Stehen). Outras traduções do mesmo verso
esia resultou no convite do poeta Carlito Aze-
também foram incorporadas a trabalhos da sé-
vedo para o caderno “Prosa e Verso” do jornal.
rie Diários públicos, como “Resistir-para-nin-
Danziger publicou um poema seu e traduziu
guém-e-para-nada”, de Raquel Abi-Sâmara.
outro da artista plástica Rebecca Horn. Em seu
A leitura ativa implica a tradução nos traba-
poema, Danziger articula, pelo homônimo,
lhos de Danziger. Ler é deslocar e transferir dis-
o avô de seu filho e Beuys, o artista plástico.
cursos para espaços inusitados. Surgida a par-
13
A artista enfraquece as fronteiras entre espa-
tir da experiência dos campos de extermínios
ços de escritura – a arte, a poesia, o noticiário,
nazista, a poesia de Celan é transferida de seu
a biografia – através do tema do deslocamen-
contexto de origem e continuamente atualiza-
to. A migração e a sobrevivência aparecem na
da na ordem heterogênea dos discursos criada
imagem dos pássaros em bando do poema de
por Diários públicos.
Rebecca Horn, escolhido por Danziger para a tradução. No deslocamento da África ociden-
A leitura, o deslocamento, a tradução e a re-
tal para a costa da América do Sul, apenas um
contextualização operam esse estranho espaço
décimo do grupo resiste à morte. É verdade
heterogêneo que reúne palavras e imagens de
que o caderno “Prosa e Verso” já é uma publi-
ordens discursivas distintas. O que diferencia
cação especializada no interior do jornal, mas
a arte de outros discursos? A arte é a experiên-
são a mobilidade dos discursos e sua ordem
cia do risco, diria Blanchot, um pôr-se à prova
condicionada pela cultura escrita impressa
diante de algum perigo incomensurável. Mas
14
89
onde está a ameaça, se o mundo parece pleno
Fischer: “Esses depósitos de informações pron-
de diversão e informação? Mesmo quando as
tamente acessíveis eram mantidos porque se
imagens da tv mostram uma Terra ameaçada,
mostravam essenciais à administração ade-
não vemos as ruínas do mundo, a degradação
quada das cidades-estado”.15 Embora a escrita,
social, a deterioração mental, a devastação
em sua longa história, se autonomize e deixe
subjetiva da vida. A falsa alegria sobrepuja de
de ser simples recurso à memória humana,
modo sistêmico e desencoraja o humor irô-
a preocupação em conservar seus objetos em
nico. Como rachar as palavras de ordem e as
lugares reservados ao armazenamento foi uma
imagens de reconhecimento para que ecoe
consequência da nova cultura. A escrita dei-
algum sentido na superfície das coisas? Como
xou de ser mero dispositivo documental, um
fender o imenso muro de imagens para que se
auxiliar mnemotécnico. Tornou-se palavra
faça alguma visibilidade, um saber crítico do
poética, jornalística, entretenimento, dife-
visível? Como encontrar o tempo dos limiares
renciada materialmente por objetos descontí-
em que se produzem os encontros e os emba-
nuos: o livro, o jornal, a revista. Nas folhas de
tes? Quem se pode alcançar, quando não se
Diários públicos, é a potencial continuidade
crê mais no indivíduo como sujeito, quando se
dos discursos que se observa.
sabe que a subjetividade é mera posição final de formações em cruzamento? A hesitação, a
Apagar certos discursos ou imagens por
gagueira, que Paul Celan previu em seu poe-
meio do método extrativo das fitas colan-
ma, é a fala desse embaraço, dessa dificuldade,
tes favorece a materialidade do jornal diário.
dessa perturbação que a arte impõe ao mundo.
O papel torna-se quase transparente, deixando visível seu próprio avesso. Acima de tudo, Diá-
A materialização da palavra efetuada pela es-
rios públicos problematiza o compromisso da
crita na origem de sua invenção visava con-
imprensa jornalística com a palavra informati-
servar nomes, datas, lugares e, consequen-
va, meramente utilitária. Com efeito, apenas a
temente, aumentar a eficiência da memória
superfície ruidosa da redundância informativa
humana. Como reconhecem os historiadores
fica exposta quando o silêncio é imposto ao al-
da escrita e da leitura, mais do que reprodu-
voroço das palavras jornalísticas. Diários públi-
zir o discurso oral preexistente, a escrita em
cos realiza uma leitura corrosiva da cultura in-
seus primórdios deveria reter na memória
formacional da atualidade, problematizando a
informações concretas. Uma vez inventada a
cultura da escrita e a ordem dos discursos por
escrita, surge também a necessidade de con-
ela materializada. Trata-se de uma urgência: é
servar essa materialidade discursiva. Todas as
preciso operar uma leitura que vise não ape-
culturas antigas constituíram esses lugares
nas às palavras ou à sua possível significação.
de acervo para a escrita, fosse ela produzida
Entenda-se por essa necessidade não atenção
em argila, couro, varetas de bambu ou papiro.
direcionada às construções ideológicas por
A cultura da escrita é uma cultura de arqui-
trás do texto, mas aquilo que se encontra em
vo, entendido como dispositivo documental
sua superfície: a regularidade, a coexistência,
auxiliar da memória. Segundo Steven Roger
a singularidade no acúmulo, ou seja, é o dis-
90
curso jornalístico o que está em jogo na série
tinuidades e resistências. Acima de tudo, seu
Diários públicos.
trabalho artístico é crítico do terrorismo dos discursos midiáticos de denegação da reali-
Na esteira da crise da especificidade do lugar
dade ou de ficcionalização e da simulação do
considerado apenas sob as perspectivas física
mundo material. O desaparecimento e a este-
e fenomenológica, o espaço ocupado pela ar-
tização da realidade no mundo atual têm sido
tista Leila Danziger é o da formação discursiva
debatidos por diversos autores, entre os quais
pública. Os trabalhos da série Diários públicos
Jean Baudrillard, o mais feroz delator dessa
produzem uma leitura da cultura informa-
desaparição do real via simulacro. Em A ilusão
cional de modo específico, mas articulado ao
vital, o autor francês afirma que o real está não
todo da palavra impressa. Danziger precipita
apenas morto, como desapareceu. Seu cadáver
uma discussão da memória por intermédio do
não pode nem mesmo ser encontrado.18 Mas,
silêncio, explicitado em O silêncio das sereias
afinal, onde estão os cadáveres produzidos por
(2006). Pelo apagamento da folha do jornal, a
guerras recentes como a do Golfo, por assassi-
artista nos deixa diante da impossibilidade de
natos em massa, como os da Iugoslávia de Slo-
decidir se o azul que vemos é marítimo ou ce-
bodan Milosevic, por atos terroristas, como o
leste. Lembrar de Ulisses através do universo
de 11 de setembro? Os mortos desapareceram?
kafkaniano é admitir o silêncio produtivo da memória. Como afirma Walter Benjamin em
Márcio Selligman-Silva, em “Auschwitz: histó-
seu texto sobre Kafka: “Entre os ancestrais de
ria e memória”, defendendo a incorporação da
Kafka no mundo antigo, os judeus e os chine-
memória e do testemunho no procedimento
ses, que reencontraremos mais tarde, esse an-
historiográfico, aponta essa denegação nas te-
tepassado grego não deve ser esquecido.”
16
ses revisionistas francesas que refutam a existência das câmaras de gás e a aniquilação dos
Nos livros-cadernos da instalação Pallaksch
judeus durante a Segunda Guerra Mundial.19
Pallaksch, após os apagamentos, descobrimos
É preciso lembrar que as barbáries da civiliza-
os estados de abandono, o desamparo infan-
ção produzem mortos e que os cadáveres exis-
til, as catástrofes vividas pelo mundo con-
tem. Ao propor uma leitura poética do mundo
temporâneo. Há algo da barbárie identificada
atual pelos jornais, Leila Danziger parece nos
por Walter Benjamin nos trabalhos de Leila
fazer a seguinte pergunta: onde se encontra
Danziger, ainda que o contexto da artista não
essa realidade que é criada para desaparecer
seja mais o da ruptura de uma tradição monu-
diariamente? A memória que a artista articu-
mental contra a qual Benjamin apostava sua
la em seu trabalho rejeita a noção de tempo
estratégia. A nova barbárie se oporia à “bar-
triunfalista dos monumentos, pois seu esforço
bárie negativa” da cultura burguesa, em que o
é dar a ver outro tempo, é permitir que alguma
tempo é compreendido como continuidade.17
imagem ou voz seja retida nas histórias do coti-
Os apagamentos de Danziger impõem descon-
diano apresentadas pelos jornais.
91
barthes, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 64. Ibid., p. 57. 3 fischer, Steven R. História da leitura. São Paulo: UNESP, 2006, p. 69. 4 Ibid., p. 41. 5 chartier, Roger. Os desafios da escrita. São Paulo: UNESP, 2002, p. 30. 6 Ibid., p. 108–9. 7 chartier, Roger. Os desafios da escrita. Op. cit., p. 109. 8 Ibid., p. 22. 9 danziger, Leila. Diários públicos/Public diaries. Disponível em: http://www. leiladanziger.com/ Acesso em 18 de janeiro de 2012. 10 Esses trípticos foram integrados à série de livros Vanitas (2008–2012). Ver: Danziger, Leila. Todos os nomes da melancolia. Rio de Janeiro: Apicuri, 2012. 11 Cf. neste livro o texto “O jornal e o esquecimento”, p. 29. 12 blanchot, Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997, p. 41. 13 danziger, Leila. “Joseph”. In: Três ensaios de fala. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p. 17–8. 14 “No hemisfério sul de nossa terra/ existe um tipo relativamente comum de pássaro migratório/ Eles se repro duzem com tanta rapidez/ que apenas um truque da natureza nos livra de um pesadelo/ A cada ano, em bando/ eles escurecem o céu da África Ocidental/ onde se reúnem para seu passeio sobre o Atlântico/ Ape nas um décimo alcança a costa da América do Sul/ noventa por cento cai exausto sobre o Atlântico/ Suspeita -se que no meio do oceano/ exatamente ali, onde segundo os geólogos/ há milhões de anos/ a África se separou da América do Sul/ esses pássaros começam a voar em círculos/ Procuram sua terra onde ela não existe mais/ Seu instinto – sobrecarregado por milhões de anos – os conduz à morte/ Apenas os insensíveis al cançam o continente”. Horn, Rebecca. “O banho em espiral” (1979), O Globo, 25 de setembro de 2010, cader no “Prosa e Verso”, p. 3. Tradução de Leila Danziger. 15 fischer, Steven R. História da leitura. Op. cit., p. 23. 16 benjamin, Walter. “Franz Kafka. A propósito do décimo aniversário de sua morte”. In: Obras escolhidas I. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987, p. 143. 17 muricy, Katia. Alegorias da dialética: imagem e pensamento em Walter Benjamin. Rio de Janeiro: Nau, 2009, p. 200. 18 baudrillard, Jean. A ilusão vital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 68. 19 seligmann-silva, Márcio. “Auschwitz: história e memória”. Disponível em: http://mail.fae.unicamp.br/ ~proposicoes/textos/32-artigos-seligmannm.pdf. Acesso em 18 de janeiro de 2012. 1
2
92
93
Entre o excesso e a exceção: a profanação do jornal Vera Lins
Diários públicos é o título de uma extensa série
sombra. Na primeira série, desse cinza, pela
de trabalhos de Leila Danziger que tensionam
exposição ao sol, ficam algumas imagens
memória e esquecimento em páginas de jor-
amareladas. Em um dos trabalhos, a sombra
nais, subtraídos de seu uso comum como mer-
de um coração sobra de todas as interven-
cadoria descartável e retrabalhados, transfor-
ções, e acima dele, a foto de um grupo de ra-
mados em arte, objetos poéticos.
pazes negros num banco de rua. Em outros
O jornal propicia o esquecimento. Ao mesmo
menino de rua, enrolado num cobertor, um
tempo que oferece a experiência de choque
corpo estendido no chão, com o nome Carlo
com o terror da catástrofe a que nos expõe
(lembrando o encontro do Grupo dos Oito em
diariamente, sua linguagem induz ao esque-
Gênova, Itália, em julho de 20011) e, ainda,
cimento, a uma passagem rápida sobre o que
rapazes mascarados de um motim da Febem
nos é apresentado como faits divers. Mas aqui
apelam ao não esquecimento do que é cena
o processo é outro. A artista transforma, com
cotidiana das ruas. A essas imagens foi ca-
trabalhos da série, sucedem-se a foto de um
seus gestos, esses papéis numa topologia, um
rimbado como manchete, em vermelho, este
lugar em que algo acontece. Os jornais pas-
verso de Paul Celan: “Para-ninguém-e-nada-
sam por um processo lento, que dura meses,
-estar”, que fala, pela negação, duplamente,
em que são descascados, expostos ao sol, do-
do exílio do artista e do abandono da vida nua
brados e carimbados. Uma operação delicada
sem dimensão política, apresentada nas fotos.
é, no entanto, uma intervenção que expõe cer-
E da violência anônima e quotidiana sobre
tas questões urgentes como feridas abertas.
essa vida nua, “uma vida que não merece ser
O que lembrar e o que esquecer? E ainda obri-
vivida.”
ga os jornais a durar, a sofrer a ação do tempo e a se conservarem, transformados.
A linguagem da comunicação é raspada, neutralizada e a linguagem da poesia toma lugar.
As notícias ficam latentes – as letras, raspada
Renasce de um não. Uma utopia? No entanto
sua tinta e a das imagens, permanecem como
esse verso é vermelho, também ferida.
94
Fica visível com essas imagens amareladas pela
te, é violentada, se transforma em ruína e outros
luz natural, à qual a folha do jornal é exposta
sentidos têm lugar, são como que liberados.
por meses, o estado de exceção que se tornou a regra. Como numa decantação, vem à tona o
A linguagem reportagem fica na sombra, seu
real. O campo, não só como história, mas como
barulho é parcialmente silenciado e sobre ela
condição inumana atual, se torna presente na
cintilam outras palavras que aparecem nas do-
cidade, em que os cidadãos se transformaram
bras, compondo um ritmo como pautas musi-
em puros corpos biológicos, abandonados a
cais, ora vazias, ora com uma ou outra palavra
uma violência mais eficaz porque anônima
que sobrou, resíduos. Em outra série, o campo
e quotidiana. É dessa perspectiva do campo,
é relembrado pelas frases de Marguerite Du-
como a entende Agamben, que se trata nessas
ras em Hiroshima meu amor, escritas em fran-
imagens de vida nua, em que público e priva-
cês, num vermelho gritante. Trazem também
do se confundem. Os corpos negros margina-
a questão do nome, pensada por Benjamin.
lizados trazem à memória a escravidão não
Guerra, amor e linguagem convivem e tensio-
2
resolvida com a Abolição, que continua de
nam: são carimbadas frases em francês, como
outra forma pela fabricação massiva da misé-
“Je n’ai plus qu’une seule mémoire, ton nom”.
ria com a industrialização do país. Progresso
As páginas dobradas agora transbordam de
e destruição caminham juntos. O estado de
sentidos nesse suporte que, se nas vanguardas,
exceção, que “atingiu hoje seu máximo des-
como colagem, se sobrepunha à tela, agora vi-
dobramento planetário”, é o resultado de um
rou a própria tela onde algo tem lugar, numa
crescimento ilimitado da atividade industrial.
nova aliança entre pensamento e poesia. O co-
A acumulação desenfreada gera um exceden-
ração, que sobrara meio apagado na primeira
te que tem de ser despendido ou explode em
imagem, fala de excesso, tumulto, energia ma-
guerra. É, portanto, do lado da produção exu-
triz de tudo.
berante que vem o conflito armado em que se volatilizam riquezas fabulosas. Bataille3 afirma
Outra série tem mais cor, os diários de Ana
que é necessário dar ao crescimento de ener-
Cristina César são convocados num verso que
gia produtora outro fim que não o guerreiro e
fala da memória: “Eu era menina e já escrevia
criar uma paz dinâmica. Com isso defendeu o
memórias, envelhecida.”
Plano Marshall, por promover uma repartição menos desigual dos recursos e uma circulação
E outra poeta, Orides Fontela, volta a falar do
de riquezas. Todo sistema que dispõe de certa
nome: “A escolha do nome, eis tudo.” A ques-
quantidade de energia deve despendê-la.
tão da nomeação entra em cena, é pensada. Como dar nome, que nome dar ao que se vê e
Aqui o jornal, que é lido como oração matinal do
ao que se sente. Uma reflexão sobre a lingua-
homem moderno, é profanado enquanto pro-
gem e os nomes a partir de Benjamin se ence-
duto do Estado espetacular integrado (Debord),
na. A linguagem da comunicação por meio da
lhe é dado um uso que não é o comum. A merca-
qual se informa é substituída pela linguagem
doria do mundo do espetáculo, do qual faz par-
poética, em que se fala com a linguagem, em
95
que ela se abisma e não comunica nenhum
da escrita, a contenção do gesto. O carimbo em
conteúdo, apenas ela mesma em movimento.
nossa recente história da arte foi usado num
Para Benjamin, o homem, ao nomear, não diz
momento de repressão política por Carmela
alguma coisa, mas se diz com a linguagem, se
Gross, que carimbava a pincelada.
fala. A fala de coisas é burguesa, como a linguagem do jornal. Mas no nome a linguagem
O jornal não é mais coisa com finalidade uti-
se comunica. O nome é aquilo pelo qual nada
litária, tornando-se objeto poético, finalidade
se comunica mais, porém pelo qual a lingua-
sem fim. Tornou-se de novo o excesso de onde
gem se comunica ela mesma e de modo abso-
tudo provém, anunciado na primeira imagem
luto. Depois da queda, a palavra perdeu sua
pelo coração esmaecido que diz do tumulto,
ligação com o conhecimento, agora deve co-
da energia que somos, que se prodigaliza sem
municar qualquer coisa: o nome virou meio;
razão nesses gestos movidos pelo desejo que
a linguagem, tagarelice. O nome pode recupe-
se tem de interferir, de fazer arte. Segundo
rar sua força na linguagem da poesia, da arte,
Bataille, a energia solar que somos é uma ener-
quando é não mais apenas comunicação do
gia que se perde, se prodigaliza sem razão.
comunicável, mas ao mesmo tempo símbolo
A arte é esse dispêndio sem outra razão que um
do não comunicável.
desejo que se tem e com isso desfaz limites impostos pela regra do estado de exceção. Como
Todo o trabalho da artista com o jornal vai em
o pensamento, é uma via negativa, que vai des-
direção a silenciar a tagarelice e dar forma a
fazendo o estabelecido – aqui, a ideologia que
esse não comunicável. E citando Schiller com
conforma o jornal, sua informação.
Benjamin, ela atualiza o que dizia o filósofo 4
alemão em Cartas sobre a educação estética:
Tanto Debord como Agamben pensam o Es-
o verdadeiro segredo do artista consiste em
tado; o espetacular e aquele em que a exceção
destruir a matéria pela forma. Aqui se trata de
se tornou a regra se sobrepõem. Como fica a
uma destruição da matéria jornal, que vai se
arte em relação à possibilidade de mudança?
descamando e se transformando pelas dobras
Schiller, contemporâneo da Revolução Fran-
numa pauta musical. E destruição da lingua-
cesa, também pensa o Estado e a liberdade.
gem reportagem, a que se referia Mallarmé,
E define como “carência nas almas refinadas”
numa tentativa de recuperar a faculdade de
o Estado estético, que produziria uma cultura
nomeação. Várias línguas estão presentes, o
que tornaria impossível qualquer abuso, que
português, o francês de Duras e o espanhol
daria liberdade por intermédio da liberdade.
de Borges. A tensão entre memória e esqueci-
Nele também o excesso, como imaginação e
mento se dá nas frases de Funes, o memorioso,
abundância, profusão de forças, levaria ao jogo
dispersas nessas pautas de um dos trabalhos:
estético, à busca de uma forma livre, à constru-
“Mi sueños son como la vigilia de ustedes”. Em
ção de uma verdadeira liberdade política.
outro, é a palavra esquecer carimbada entre vazios. E a ideia do carimbo, que substitui o ma-
Mas o que se vive, a partir do momento em que
nuscrito, mantém criticamente a mecanização
Bataille escreve, é a ferida aberta e o dilacera-
96
mento. Para Bataille, viver o excesso é viver a
A imaginação dá o salto em direção ao jogo es-
superabundância jamais controlável, é querer
tético, à busca de uma forma livre. No impulso
o impossível, sem tarefa a completar, sem fun-
lúdico que unifica impulso sensível e impulso
ção a exercer. A arte, tarefa cega, é a finalidade
formal, teríamos a forma viva.
sem fim kantiana, que está também em Schiller, ao fugir do mundo utilitário pelo desinteres-
Essa forma viva alcançada pela arte pode ser a
se. O conhecimento é acesso ao desconhecido.
imagem dialética de Benjamin, carregada de
Mas esse movimento desemboca numa recusa
tempo até explodir, uma representação dila-
a toda solução – o pensamento radical pós-
cerada, o que vemos nos vazios, nos silêncios,
-Segunda Guerra desemboca no silêncio e na
nas fotos amareladas que tensionam com as
ferida, se dilacera, como o que se vê num poeta
palavras em Diários públicos. O que Bataille vê,
como Paul Celan, trazido pelos diários da artis-
quando diz que o que procuramos é essa som-
ta. Como nos trabalhos vermelhos com mercu-
bra que não saberemos apreender – a poesia,
rocromo, que se usava para curar feridas – refe-
a profundidade ou a intimidade da paixão,
rência num texto da artista que acompanha os
mas que nos enganamos porque queremos
jornais, a ferida não se fecha.
prendê-la.
O estado estético sobrevive como idéia regula-
Agamben afirma em Moyens sans fins que, para
dora (nem em Schiller era algo imediatamente
ele, é inutilizável o pensamento de Bataille
possível) e aparece na leitura que Marcuse faz,
com seus conceitos de soberania e sagrado:
em Eros e civilização, do pensamento do filósofo. Discutindo Freud, para Marcuse, o princí-
Ter considerado esta vida nua separada
pio de vida como Eros se opõe a mais repressão
de sua forma, na sua objeção, como
do Estado industrial moderno e permite imagi-
um princípio superior – a soberania
nar outro tipo de civilização com outro tipo de
ou o sagrado –, constitui os limites do
produtividade.
pensamento de Bataille, que o tornam inutilizável para nós.6
Schiller, em Cartas sobre a educação estética,5 critica o espírito de negócio, pergunta onde re-
Agamben nega a separação vida nua/vida po-
side a causa de ainda sermos bárbaros e afirma
lítica. Como Schiller, a vida, matéria, só se
que o Estado continua estranho aos seus cida-
torna livre quando adquire forma e, então, se
dãos. Para ele, deve ser suprimida a cisão entre
torna vida orgânica. É necessária a passagem
sensibilidade e razão, para que o Estado seja
da vida cega para a forma, isto é, da sensação
modificado, e o caminho para o intelecto pre-
para o pensamento, o que se dá no estado es-
cisa ser aberto pelo coração – portanto, a for-
tético: no estado físico o homem apenas sofre
mação da sensibilidade é a necessidade mais
o poder da natureza, liberta-se desse poder no
premente da época. Embora afirme o belo
estado estético e o domina no estado moral.
como equilíbrio, diz que é apenas uma ideia
Para Agamben, o pensamento é forma de vida,
que jamais pode ser alcançada pela realidade.
vida indissociável de sua forma. Schiller situa
97
o estético como o caminho necessário para re-
aplicar o direito.7 É a partir dessa zona opaca
solver o problema político – a maior de todas as
onde público e privado se confundem que de-
obras de arte seria a constituição de uma verda-
vemos partir.
deira liberdade política. Embora iluminador, Schiller liga arte e pensamento, há certa pure-
O que o trabalho da artista faz, interferindo
za estetizante na sua filosofia, talvez marca do
no jornal, nesse produto do estado de exce-
momento histórico.
ção, que é também o estado espetacular integrado, denunciado por Debord. No próprio
Agamben, a partir de uma nova situação eu-
título as palavras se juntam e se embaralham,
ropeia e global, em que o campo se tornou a
intimidade e espaço público, diários públi-
matriz secreta do espaço político, propõe re-
cos, e a experiência que seus gestos tornam
pensar as ideias de Estado, nação e território,
presente é a da linguagem. A imaginação
para o que traz a figura do refugiado e o con-
aqui dá o salto em direção ao jogo estético,
ceito de povo. Diz que é necessário desconectar
como diria Schiller, em busca de uma forma
a linguagem da gramática e o povo do Estado.
livre. Mas essa forma se retorce num dilace-
Os conceitos de soberania e poder constituinte
ramento, é crítica. Nisso encontra a noção de
devem ser abandonados ou totalmente repen-
excesso de Bataille.
sados. A realidade que se vive é a de um estado policial supranacional. O estado de exceção é
Mas se, para Bataille, a filosofia é silêncio, recu-
hoje planetário: o aspecto normativo do direi-
sa de toda solução, para Agamben, ela é lingua-
to pode ser eliminado e contestado por uma
gem, em que pensamento e poesia se articu-
violência governamental que ignora o direito
lam. E o pensamento que advém, como gesto
internacional e promove o estado de exceção
em que se encontram vida e arte, tem uma po-
permanente, ainda, no entanto, pretendendo
tência política.
Publicado em Outra Travessia. Revista de Literatura, n. 5: a exceção e o excesso (Agamben e Bataille), Santa Catarina, 2005, p. 141–8. 1 O encontro ocorreu entre os dias 19 e 22 de julho de 2001. O G8 era constituido por Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália, Canadá e a Rússia. Em 20 de julho, violentos embates entre manifes tantes de movimentos antiglobalização e a polícia italiana levaram à morte do estudante e ativista Carlo Giu liani (1978–2001). 2 agamben, Giorgio. Moyens sans fins. Notes sur la politique. Paris: Rivages, 1995. 3 bataille, Georges. La part maudite. Oeuvres complètes, vii. Paris: Gallimard, 1976. 4 benjamin, Walter. “Über Sprache überhaupt und über die Sprach des Menschen”. In: Angelus Novus. Frankfurt: Suhrkamp, 1988. 5 schiller, Friedrich. A educação estética do homem, numa série de cartas. São Paulo: Iluminuras, 1990. Tradução de Roberto Schwarz e Márcio Suzuki. 6 agamben, Giorgio. Moyens sans fins. Notes sur la politique. Op. cit., p. 17. 7 agamben. Giogio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. Tradução de Iraci Poletti.
98
99
Lembrar, esquecer, sonhar Sheila Cabo Geraldo
O personagem Irineu Funes, do conto de Jorge
ração dessa experiência como memória. Entre-
Luis Borges “Funes, o memorioso”, foi tam-
tanto os jornais dobrados e desbotados, quase
bém chamado de “cronométrico Funes” pois,
apagados, nos indicam ainda, paradoxalmente,
sem consultar o relógio, sabia sempre a hora
uma espécie de limite da permanência dos fa-
certa, revelando uma assombrosa percepção
tos no mundo liso do vidro e do aço, como expli-
intuitiva do tempo. Antes mesmo da queda
cou Walter Benjamin,4 onde os rastros não se
1
que sofre de um cavalo, quando perde todos
fixam. Os jornais, por si efêmeros, impossibili-
os movimentos do corpo, além dessa especial
tados de serem lidos pela ação do tempo e pela
percepção temporal, possuía já uma enorme
disposição, tanto desafiam o mundo vivido en-
capacidade para memorizar nomes próprios.
quanto permanência quanto repelem, mesmo
Mas foi quando se viu totalmente impossibili-
acumulados, a experiência, jogando-nos para
tado de se movimentar, que Funes percebeu o
uma espécie de nostalgia das relações perdidas.
quanto antes era um desmemoriado. Como es-
E a série parece indicar, também e mais clara-
creve Borges: “Ao cair, perdeu o conhecimento;
mente, o que Benjamin considerou a “liber-
quando o recobrou, o presente era quase into-
dade de expor sua pobreza a tal ponto que dali
lerável de tão rico e tão nítido. [...] Agora sua
possa resultar algo.”5 Assim é que por sobre as
percepção e sua memória eram infalíveis.”2
obsessivas camadas de jornais inelegíveis palpitam, carimbadas pela artista, palavras soltas,
A série de trabalhos que Leila Danziger chamou
frases, recordações que, em imagens poéticas,
Para Irineu Funes (2003–4), com jornais diários
no confronto com os jornais, corresponde-
ordenados em superposição, faz emergirem no
riam ao algo benjaminiano, ou ao “ainda não
fato artístico, como uma densidade, as cama-
acontecido” dos “sonhos acordados”, de Ernst
das de sedimentação de um presente intolerá-
Bloch.6 Não é por outro motivo que Leila lança
vel e nítido contido nos textos e fotos jornalís-
ali a frase de Funes “meus sonhos são como a
ticos, apontando não só para certo desejo de
vigília de vocês”,7 mas lança também, de ma-
transformação do presente vivido em acúmulo,
neira reveladora, o trecho “Minha memória,
e assim em experiência, como para a recupe-
senhor, é como um despejadouro de lixo.”8
3
100
O processo de memória, como escreveu o histo-
também viveu por algum tempo, Leila, quase
riador Jacques Le Goff, consiste não só na or-
como no labirinto de Benjamin, lança na leitu-
9
denação de vestígios, como na releitura desses
ra e na escrita imagens do exercício de lembrar
vestígios. Por entre os jornais de Leila Danziger
e de esquecer, não só de suas lembranças e
podem ser entrevistos, como insistência, não
esquecimentos pessoais, como as dos Danzi-
só os rastros das vivências cotidianas acumula-
ger, mortos na Segunda Grande Guerra,12 mas
das, mas também esses resquícios de palavras
também imagens de uma memória involuntá-
perdidas, sombras de frases esquecidas, que
ria, coletiva e imprevisível, que, como escreveu
interferem tanto na formação dos sonhos diur-
Jeanne-Marie Gagnebin, “submete a soberania
nos como na recuperação mnemônica, em um
do sujeito consciente à temível perda da dis-
“murmúrio de associações”, como escreveu a
persão.”13 É revelador como a ação de arrancar
própria artista.
o texto e deixar somente a imagem fotográfica acaba por alargar o poder dessas imagens, fa-
Na série Diários públicos (2001–11), também
zendo com que exponham sua carga de his-
com jornais, assim como em Para Irineu Fu-
tórias, muitas vezes vividas por outros, como
nes, apareciam carimbadas as palavras lem-
a de Carlo Giuliani, morto em conflito com a
brar e esquecer. Nas folhas de jornal dos diá-
polícia em manifestação contra a reunião de
rios, mesmo com o processo de apagamento
cúpula do Grupo dos Oito, em Gênova, no ano
voluntário, que arranca com fita adesiva os
de 2001; ou a imagem dos jovens em rebelião
textos, permanecem as imagens fotográficas
no reformatório de São Paulo, também da sé-
como relampejos de lembranças em meio às
rie Diários públicos, que dialoga com o carim-
falhas que o tempo impõe como esquecimen-
bo “Para-ninguém-e-nada-estar”, fragmento
to. Seguindo a herança de Proust e de Freud,
retirado de uma poesia do judeu romeno Paul
Walter Benjamin, quando escreve Infância em
Celan (1920–70), autor do antológico poema-
Berlim,10 aposta na formulação de um concei-
-testemunho “Fuga da morte” [Todesfuge], que
to de sujeito que, ultrapassando a consciência
traz à tona, como linguagem balbuciada, des-
de si, abre-se para as dimensões involuntárias
construída e ofegante, o horror experimentado
e inconscientes a operar, a um só tempo, na
dos campos de concentração nazistas. É pen-
lembrança e no esquecimento. Benjamin de-
sando em Celan que Leila carimba junto às fo-
senvolve nesse texto, pela imagem do labirin-
tos-de-lembrança-esquecimentos, registros de
to, as relações que o sujeito estabelece consigo
violência diária como traumas – quando a vida
mesmo nos caminhos do amor, das viagens, da
e a palavra já não são possíveis senão nos limi-
leitura e da escrita. Evoca, assim, lembranças
tes –, frases e poesias quebradas, como inscri-
de sua infância sem fazer do texto uma auto-
ção germinal, para que os rastros, no confron-
11
biografia. Da mesma maneira, ao trabalhar
to, se façam presentes e atuantes, ao menos na
com seu arquivo de jornais recolhidos no Rio
recuperação da memória e da arte.
de Janeiro, a cidade onde vive, mas também nas cidades próximas, como São Paulo, ou nas
Nos trabalhos da artista, como na enciclopédia
distantes, como Tel Aviv ou Berlim, em que
chinesa14 descrita por Borges, a memória vai
101
além da organização em sistemas de códigos
cruzam memórias do feminino e a história
visuais ou linguísticos. Os vestígios e rastros
de uma época, carregada dos esgarçamentos
sofrem uma taxonomia em que predomina
de sua geração. Ana Cristina, como Benjamin
a “vizinhança súbita”. Mas se em Borges, ao
em Infância em Berlim, faz uma renúncia pe-
contrário da mesa dos encontros insólitos de
remptória à autoridade do autor, permitin-
Lautréamont, o espaço comum de vizinhança
do a eclosão de uma narrativa, tal qual Leila,
se acha arruinado, há que se considerar nes-
de entrelaçamentos de lembranças pessoais
sas montagens de jornais, poemas e frases da
e recordações construídas, uma poesia-prosa
série Para Irineu Funes a força impactante da
que é, a um mesmo tempo, narrativa do su-
cor, que pode parecer, tal qual o fio condutor
jeito e ficção: “fui mulher vulgar/ meia-bruxa,
15
do abecedário de Borges, a tábua de salvação
meia-fera/ risinho modernista/ arranhado na
ou o lugar onde se encontram o guarda-chuva
garganta,/ malandra, bicha,/ bem viada, vân-
e a máquina de costura. A seleção e ordena-
dala,/ talvez maquiavélica/ [...] porque inteli-
ção de cores em páginas amarelas, vermelhas
gente me punha/ logo rubra,/ ou ao contrário,/
16
e verdes, associadas a fragmentos do texto de
cara/ pálida que desconhece/ o próprio cor-
Borges ou a palavras soltas, funcionam como
-de-rosa/”20
momentos de fantasia, de que brotam efêmeros e transitórios sentidos, como aparecem em
Sobre muitos jornais manchados de imagens
Infância em Berlim. São os murmúrios da cor
de propaganda cor-de-rosa, como uma ale-
na vizinhança da palavra, que se dobram em
goria do feminino que titubeia, mas também
configurações de memória. “Em nosso jardim
com o “risinho modernista” de Ana Cristina,
havia um pavilhão abandonado e carcomido.
Leila Danziger, com a urgência dos que veem
Gostava dele por causa de suas janelas colori-
perderem-se as experiências estéticas, assim
das. Tingia-me de acordo com a paisagem da
como as experiências de vida, ambiguamente
janela”, escreveu Benjamin, relacionando frag-
absorve e desdenha dos campos de cor da pin-
mentos de momentos passados e utópicos.
tura abstrata, acionando uma pós-utópica e de-
17
18
“Perdia-me nas cores, fosse nos céus, numa
sencantada La vie en rose.
joia, num livro”. Em sua teoria da cor, escreve ainda: “[...] a cor pura é o meio da fantasia, a
Leila Danziger carimba a frase de Ana Cristina:
pátria de nuvens da criança que brinca, não é o
“Eu era menina e já escrevia memórias envelhe-
cânone rigoroso do artista que constrói.”
19
cidas.”21 “O tempo”, escreveu Ana Cristina nesse mesmo texto, “se fazia ao contrário. De noi-
Nos trabalhos com jornais dobrados e super-
te não dormia [...] As mãos se interrompiam à
postos que Leila dedicou à poeta e ensaísta
meia-noite, quando chegava o anjo mais escu-
Ana Cristina Cesar (série Para Ana C. Cesar,
ro do silêncio.” Leila, como Ana e a menina das
2004–7), a cor desdobra ainda, como fantasia
lembranças, dos esquecimentos e das fanta-
e pátria de nuvens, ficções em que se entre-
sias, já não vestia cor-de-rosa.
102
borges, Jorge Luis. “Funes, o memorioso”. In: Ficções. São Paulo: Globo, 2001, p. 121. Ibid., p. 124. 3 Depois de analisar o conceito de experiência em Dilthey e Bergson, Benjamin explica que, sendo a experiência um traço de tradição, tanto coletiva quanto particular, corresponderia, portanto, não a fatos acumulados na lembrança – um processo mais facilmente identificado com a vivência –, mas a fatos ou dados que confluem na memória. Cf. geraldo, Sheila Cabo. “Apague as pegadas: o inconsciente ótico e a montagem”. In: oliveira, Luiz Sérgio de & d’angelo, Martha (orgs.). Walter Benjamin: arte e experiência. Rio de Janeiro/Niterói: nau/ eduff, 2009. 4 benjamin, Walter. “Experiência e pobreza”. In: Obras escolhidas I. Magia, e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985. 5 Ibid. 6 bloch, Ernst. L’espirit de l’utopie. Paris: Gallimard, 1977. 7 borges, Jorge Luis. “Funes, o memorioso”. Op. cit., p. 114. 8 Ibid. 9 le goff, Jacques. História e memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2003, p. 420. 10 benjamin, Walter. “Infância em Berlin”. In: Obras escolhidas ii. Rua de mão única. São Paulo: Brasiliense, 1987. 11 citado em gagnebin, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1999. 12 A obra Nomes próprios é composta de 76 gravuras em metal e um conjunto de 12 livros, feitos a partir de imagens extraídas de jornais alemães, reproduzidas em serigrafia, que listam nomes dos judeus alemães Danziger desaparecidos nos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial. 13 gagnebin, Jeanne-Marie. História e narração em Walter Benjamin. Op. cit. 14 citado em foucault, Michel. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002. 15 Ibid. 16 Ibid. 17 benjamin, Walter. “Infância em Berlin”. Op. cit. 18 Cf. bock, Wolfgang. “Fragmentos de uma teoria da cor”. In: barrenechea, Miguel Angel de (org.). As dobras da memória. Rio de Janeiro: 7Letras, 2008. 19 Ibid. 20 cesar, Ana Cristina. “Samba-canção”. In: A teus pés. São Paulo: Ática, 1999, p. 72. 21 cesar, Ana Cristina. “Na outra noite no meio-fio”. In: A teus pés. Op. cit., p. 111. 1 2
103
104
O que desaparece, o que resiste: para pensar o apagamento Marina Bortoluz Polidoro
Nas artes visuais, operações que desgastam a
tos que dão conta de fazer durar a experiência
imagem também podem integrar a sua cons-
por vias diversas.
trução: fazer e desfazer como parte de um mesmo processo. Seguindo tal ponto de vis-
Sobre fazer e desfazer
ta, este texto busca investigar o apagamento,
A ação de apagar refere-se diretamente a uma
considerando que tal operação pode ter re-
ação anterior, a que provocou a inscrição – ou
levância equivalente à de que está imbuída a
seja, o apagamento está ligado a uma tentativa
inscrição. Essa questão pode ser encontrada
de desfazer algo. Nessa perspectiva, podemos
no trabalho de Leila Danziger, bem como, ainda
invocar aqui uma das mais famosas rotinas de
que de formas distintas, nos de Cy Twombly e
fazer e desfazer: a de Penélope. Ela diz que pre-
Robert Rauschenberg.
cisa tecer uma mortalha para o herói Laertes, seu sogro, e que não pode casar-se novamente
Em sua pesquisa poética, Leila Danziger ten-
antes de terminá-la; diz que precisa dedicar-se
siona memória e esquecimento, sendo muito
ao tear antes que os fios corrompam-se. Mas
forte a sua relação com a poesia. Mais especi-
isso não era verdade, Penélope enganou a to-
ficamente, na série Diários públicos, a artista
dos os seus pretendentes: “Passava os dias ata-
esvazia o conteúdo da página do jornal: com
refada. Mas à noite, à luz de tochas, desfiava o
auxílio de fita adesiva, arranca textos e ima-
tecido. Trapaça de três anos!” Trapaceou por-
gens. Sobre as páginas apagadas, Danziger
que não havia desistido, porque ainda espera-
carimba trechos de poemas como dedica-
va o retorno de Ulisses.
tórias e comentários acerca dos escombros das notícias. Desse fazer a artista apresenta
Assim, “versadíssima em astúcias”, ao desfiar
as próprias folhas de jornal avulsas ou enca-
o tecido, subverte a passagem do tempo e, en-
dernadas, formando livros; as fitas utilizadas
quanto pode parecer que perde tempo, está
na remoção dos textos e que agora passam a
na verdade trabalhando para ganhar mais.
contê-los; e folhas de jornal transformadas
Com a história de Penélope, a aparente perda
em múltiplos, reeditadas. São desdobramen-
de tempo que existe nas ações de desfazer,
105
nas tentativas de apagamento, ganha uma di-
Sobre o apagamento
mensão positiva.
Em 1953, o então jovem artista Robert Raus-
Por outro lado, nos aproximamos do conceito
Kooning, com a intenção de apagá-lo. Este não
de palimpsesto, que desfaz algo para reapro-
só aceita a proposta, como decide entregar-lhe
veitar o seu suporte: se tomado literalmente,
um desenho que fosse realmente difícil de apa-
refere-se aos pergaminhos que, por seu alto
gar. E o foi de fato, visto que o pequeno desenho
custo e escassez, eram reutilizados depois da
exigiu um mês de trabalho para se aproximar
raspagem do texto preexistente. Nessa direção,
da folha em branco. Assim, por meio da subtra-
como em um manuscrito onde se descobrem
ção, Rauschenberg produziu um novo desenho,
escritas anteriores, diversos trabalhos de arte
Erased de Kooning drawing. Ao apropriar-se de
contemporânea não se oferecem por inteiro a
um desenho para apagá-lo, não apaga o fato de
um único olhar, possibilitando a descoberta de
este ser um desenho. Antes disso, desenha um
outros elementos por trás da superfície. Bar-
novo, com significado completamente outro.
chenberg solicita um desenho para Willem de
thes identifica essa característica no desenho de Cy Twombly:
Segundo o próprio Rauschenberg, ele já havia realizado alguns trabalhos apagando o próprio
[...] isso apaga-se pouco a pouco, esbate-se,
desenho, mas não tinha ficado satisfeito. Reco-
conservando a delicada sujidade da
nheceu que um desenho apagado apenas faria
apagadela da borracha: a mão traçou
sentido, se pudesse ser começado a partir de
qualquer coisa como uma flor e depois
uma obra de arte importante. A ação ganharia
pôs-se a divagar sobre este traço; a flor
maior relevância ao apagar o gesto de outro ar-
foi escrita, em seguida desescrita, mas os
tista, de um artista cuja trajetória já possuísse
dois movimentos ficam vagamente sobre-
reconhecimento. A escolha do artista de quem
imprimidos. É um palimpsesto perverso:
apropriaria o desenho, portanto, deve-se ao
três textos [...] encontram-se reunidos,
fato de Willem de Kooning ser a grande refe-
cada um tentando apagar os outros, mas,
rência do expressionismo abstrato. Quase uma
dir-se-ia, com o único fim de dar a ler este
homenagem, o desenho apagado representa,
apagamento.
junto com outros de seus trabalhos, “respostas à questão ‘Como prosseguir?’, uma vez que o
Na obra de Twombly, é possível ver a convivên-
limite da expressão individual já fora atingido
cia entre o que aparece e o que desaparece, a
e, além do mais, codificado em um sistema.”
inscrição e o apagamento. Qualidades mais ligadas à negação do que à afirmação do objeto
Compartilhando o procedimento de apaga-
do desenho. Destaca-se o final dessa citação,
mento de algo apropriado de autoria de outro,
em que Barthes nos indica a importância do
porém em investigações distantes, Leila Dan-
gesto: talvez o mais significativo a ser visto no
ziger desenvolve, desde 2002, a série de traba-
apagamento não seja o vazio deixado ou a nova
lhos intitulados Diários públicos. Ela apropria-
imagem que surge, mas a evidência do gesto.
-se do jornal para, nas suas próprias palavras,
106
“interferir na temporalidade linear dos jornais, conferir-lhes potência poética, transformá-los
Meireles, Drummond, entre outros poetas, ou da própria artista.
em pequenos monumentos.”
Sobre o que resiste A artista retira o conteúdo da página do jornal;
É essa a ineficiência que se aponta no apaga-
usa fita adesiva para extrair os textos e ima-
mento, como um procedimento que, suposta-
gens, que são transferidos para a fita. Seria a
mente, se propõe a esvaziar um suporte: a ar-
leitura levada ao extremo? Ler pode ser arran-
tista esforça-se para retirar o conteúdo que ali
car, transferir? Luiz Cláudio da Costa percebe
estava inscrito, colocado e construído por ações
uma leitura que questiona o dispositivo do jor-
anteriormente realizadas, por si mesmo ou por
nal e o envelhecimento acelerado da informa-
outros autores. Porém acaba preenchendo
ção. Ora, “é imperioso ‘silenciar a tagarelice’
esse espaço com os vestígios de uma nova ação.
da informação para existir poesia.” Sobre os
Rauschenberg não consegue retornar à página
escombros da página, a artista carimba versos
vazia, à página “em branco”. Tampouco é isso
de poemas ou dedicatórias, seguindo o tom do
o que Danziger busca. As operações empreen-
conteúdo que elas abrigavam anteriormente:
didas para realizar o apagamento e suprimir as
de tragédias naturais e catástrofes do dia a dia
suas inscrições acabam também por agredir o
a pequenos encantamentos melancólicos.
papel, alterar sua superfície, produzem novas marcas que se encarregam de denunciar essa
Apesar da ação – e da agressão, porque o pa-
tentativa. O ato de apagar pode pretender su-
pel já frágil do jornal tende a tornar-se uma
primir, fazer desaparecer, porém consegue
pele ainda mais fina devido à violência do
apenas desvanecer, desbotar, abrandar.
procedimento utilizado –, mantém-se a página enquanto tal, seu formato é preservado.
O vazio não é alcançado, nem parece ser o ob-
E mantêm-se os vestígios: desde uma imagem
jetivo real. Consoante isso, pode-se recorrer a
que foi selecionada para ser conservada ao
Georges Perec, que faz uma primorosa descri-
conteúdo do verso, que transparece como uma
ção de uma sala vazia, onde “resta o que resta
visão desbotada daquilo que poderia ter sido a
quando não resta nada” – e o quanto há para se
página sobre/com a qual foi construída a obra.
descrever nessa sala. Assim, por fim, apesar de
Assim, a estrutura das notícias permanece, ain-
reduzir a quantidade de imagens e grafismos
da que apenas latente, enquanto o espaço do
presentes no trabalho, o ato de apagar acrescen-
jornal é reinvestido de sentido: sobre os vestí-
ta novos conteúdos. A obra permanece impreg-
gios da matéria jornalística impõe-se a poesia
nada da memória e dos vestígios de cada uma
carimbada, fragmentos de Paul Celan, Cecília
dessas ações, da inscrição e do apagamento.
Texto apresentado no Congresso “Criadores sobre outras obras”, Academia Nacional de Belas Artes, Lisboa, Portugal, abril de 2011.
107
108
Entre a areia e o mar Raphael Fonseca
The sea is calm Through the video camera Like a dead light bulb In a bucket of water.1
Em junho de 2011, Leila Danziger apresentou,
zado para um canal israelense de televisão e
em Tel Aviv, a exposição O que desaparece, o
arquivado 32 anos após sua transmissão, o do-
que resiste, fruto de sua pesquisa de pós-dou-
cumentário seria finalmente exibido na tela de
torado junto à Bezalel Academy of Arts and
uma sala de cinema.
Design Jerusalem, em Israel. Instalações, objetos e projeções em vídeo ocupavam o espa-
A matéria versa sobre o esforço em recuperar
ço, e demonstravam o desdobramento de sua
uma cópia integral do filme, já que a única dis-
pesquisa artística Diários públicos, desenvolvi-
ponível estava em vhs, “já amarelada” e sem
da no Brasil a partir da apropriação de jornais.
que os três minutos iniciais, além dos créditos
Entre os cinco novos vídeos apresentados, pa-
finais, estivessem presentes enquanto imagem.
rece justo refletir sobre aquele que intitulou a
O filme se refere à figura de Adolf Eichmann,
mostra.
tenente-coronel da Alemanha nazista, capturado e julgado publicamente em 1962. Protegido
Jornais sobrepostos e em movimento. O voo
por um vidro à prova de balas, seu julgamento,
de algumas páginas revela que a pilha de pa-
em que diversas vítimas do antissemitismo na-
pel está colocada sobre a areia. Devido ao
zista depuseram à sua frente, foi transmitido
modo como sopra o vento, é lógico concluir
ao vivo por diversas televisões internacionais.
que a cena se passa em uma praia. Enquanto
Esse fato e sua condenação à morte tornaram
isso, no campo do áudio, escutamos, de modo
o caso único no âmbito da justiça israelense.
tímido, o som das ações da artista, que, com
Devido à proximidade dos 50 anos passados
um método extrativo, apaga, anula imagens
desse episódio, uma das filhas de Perlov 2 parte
desses mesmos jornais ainda intactos. O que
em busca da cópia original em 16mm do filme.
líamos na página que voou? Dusting off a documentary [Tirando a poeira de um documen-
A cópia é encontrada nos arquivos da televisão
tário], uma matéria sobre o filme Memories of
que a encomendou, mas o som dos três mi-
the Eichmann Trial [Memórias do julgamento
nutos iniciais (presentes na cópia de posse de
de Eichmann, 1979], de David Perlov. Reali-
Perlov) estavam ausentes na película. Perdas:
109
uma imagética, outra auditiva. Devido às duas
pelos anônimos? Em sua obra, vemos moto-
vontades de arquivamento (da televisão e de
ristas, crianças brincando nas ruas, soldados,
seu pai), somadas à tecnologia contemporânea
turistas, multidões; à exceção de sua família,
de restauração de objetos audiovisuais, foi pos-
que de tão presente se torna íntima do especta-
sível reconstruir o filme de modo próximo ao
dor, Perlov não tende a utilizar cartelas, nomes
original. Após esse processo técnico, a família
enquanto significantes sobre a imagem captu-
de Perlov resolveu descobrir a identidade dos
rada. Os nomes próprios aparecem, majorita-
entrevistados no filme, visto que o diretor op-
riamente, no discurso oral de sua narração au-
tou por não inserir legendas com seus nomes.
tobiográfica; não são vistos, mas ditos.
Há uma fala de Liat Benhabib, auxiliar de Yael Perlov na reconstrução do filme, que está inse-
Leila Danziger realiza um contraste com as
rida na página voadora do vídeo de Leila:
informações encontradas na página de jornal já evocada durante os sete minutos de seu ví-
Nós pensamos em publicar fotos dos
deo. Com um corte seco, do surgir da areia já
indivíduos desconhecidos e pedir ajuda
somos confrontados com uma sequência de
em sua identificação, mas isso pareceu
jornais sendo apagados e seu insistente som,
impróprio. Em vez disso, contatamos
sempre sincronizado com a imagem. As mãos
historiadores e acadêmicos daquele
da artista não ficam à mostra; o que interessa
período, especificamente aqueles que
é o repetitivo ato de eliminar informações des-
lidaram com o julgamento de Eichmann,
sas páginas de jornal e criar uma textura que
vários funcionários do Yad Vashem,
irá se assemelhar, por exemplo, à pintura de
assim como as pessoas que estavam
Mark Rothko. Temos aqui nuvens de dados,
envolvidas com a realização do filme.
fantasmas de imagens, nomes próprios e tex-
No final, conseguimos identificar 11
tos que, assim como qualquer objeto existente,
dos 14 entrevistados. Três deles
possuem uma potência de ruína.
permanecem um mistério.
3
Em alguns momentos, a fragilidade do papel O que essa matéria publicada no jornal
não resiste a esse ato corrosivo e, no lugar do
Haaretz denota é a vontade de História (ou uma
apagamento, surge um novo som, o de um ras-
“vontade historiográfica”) empreendida por um
go. Uma amálgama de papel se dá quando o ato
grupo de pessoas que se deparam com uma
de apagar é somado ao de rasgar. Parte da folha
obra incompleta, com fungos, com lacunas tan-
fica presa à base e outra fica suspensa, dando
to na parte técnica quanto no que diz respeito
ao vídeo uma sensação de tridimensionalida-
à informação. A primeira pergunta que faço é
de. Devido a isso, conseguimos enxergar folhas
esta: o que David Perlov diria a respeito desse
atrás daquelas que estão em primeiro plano.
esforço? Não me refiro à recuperação matérica
Temos camadas de informações, andares de
do filme, mas a busca incessante por nomes
uma torre que talvez possa ser comparada à
próprios. Perlov não transmitia, ao menos em
torre de Babel, visto que os idiomas dos jornais
seus Diários, a impressão de ter grande afeição
são dois, o hebraico e o inglês, sem que nos es-
110
queçamos das experiências anteriores da artis-
elemento do mar. Qual será o destino desse
ta com jornais brasileiros e também alemães.
nome próprio de uma cidade que, etimologica-
O que desaparece e o que resiste por meio
mente, significa “legado da paz”?
desse objeto que, por tal perspectiva bíblica, anseia por transformar em imagem as com-
Molhada, essa folha de papel se assemelha a
plicadas relações culturais e políticas desses
certa iconografia da natureza-morta encon-
povos que falam diferentes línguas e habitam
trada durante o século xvii, precisamente na
esse edifício em desmonte? O que desapareceu
Holanda: a pintura de peixes e outros frutos do
e o que resistiu ao longo dos quase 50 anos do
mar “encalhados”, a definhar à beira do ocea-
julgamento de Eichmann no que diz respeito
no. Transposição da vida (água) para a morte
às relações entre Alemanha e Israel?
(areia), inversa à materialidade e à utilidade do jornal. Esses peixes não apenas eram re-
Adultos, crianças, mortes, nascimentos, mu-
presentações da abundância da sociedade ho-
lheres vestindo hijabs, sinagogas, viagens, na-
landesa ou mesmo pinturas que visavam criar
tureza, produtos de consumo, guerras; diver-
imagens do trabalho, mas também podem ser
sas temáticas são cortadas e harmonizadas
interpretados como uma alegoria da brevidade
audiovisualmente pelas mãos da artista. Trata-
da vida. Temos, portanto, com a imagem deste
-se de um registro, de um arquivo do jornal que,
jornal-peixe, especialmente quando colocada
em sua essência, também arquiva fatos e fotos
logo após a imagem de um jovem a contem-
de um dado momento da História de uma na-
plar o horizonte, uma leitura da Vanitas, uma
ção, uma cidade ou mesmo, com agá minúscu-
atualização contemporânea da tradição cristã
lo, da história de um indivíduo. Vídeo-arquivo
de lembrar ao homem que nossa existência no
não só do estático, mas também do cinema e
mundo é efêmera e, portanto, há de se ter co-
da televisão, visto que em alguns momentos
medimento nos atos. A criança irá desaparecer
Leila Danziger volta sua lente para telas com
ou resistir à crueldade corrosiva dos homens?
imagens em movimento. Vanitas é justamente o título de outro dos víNo meio dessa orquestra de papel, após mi-
deos apresentados na mesma exposição. Nes-
nutos de um som que se assemelha ao de um
sa obra, a artista apaga imagens do jornal que
alimento a fritar ou mesmo de um ácido a agir,
contêm outros elementos iconográficos desse
vê-se a imagem de uma criança de frente para o
tópico da pintura ocidental: retratos, flores,
mar. Voltamos à presença da areia e à lembran-
caveiras, relógios e cemitérios viram som-
ça da paisagem. O som do papel é substituído
bras de imagens. Um anúncio de Melancolia
pelas ondas. Um jornal molhado em que se lê
(2011), filme de Lars von Trier, é transformado
o nome da cidade dividida entre Israel e Pales-
em vestígio. A pata de um gato tenta impedir
tina: Jerusalém. O papel molhado não tem a
a descamação de uma página. Outro felino é
mesma leveza para ser transportado pelo acaso
visto a caminhar por um cemitério, livremen-
e pelo vento; a informação líquida é revestida
te, do mesmo modo que folhas de jornal são
por paisagem, se desintegra na areia ou vira
capturadas a flanar pelas ruas da cidade. Se
111
em Beleza americana (1999), de Sam Mendes,
jornais. O tamanho destas e a sequência de
um dos personagens filma uma sacola plástica
imagens constroem os versos de um vídeo-
a voar por 15 minutos e diz que assiste a essa
-poema. Em uma segunda camada de imagens,
imagem para se lembrar da beleza existente
há novamente o mar e o jornal, que, fadado ao
no mundo, é possível afirmar que a rápida apa-
fracasso, tenta nadar. Esses poemas existirão
rição dos jornais que voam no trabalho de Leila
apenas como registro em vídeo, visto o cará-
Danziger remete à ideia contrária. Os poucos
ter literalmente fragmentário de seus versos.
segundos destinados a esses objetos, que, sem
O castelo do homem foi transformado efetiva-
uma leitura definida, se tornam tão vazios
mente em um depósito, em uma videoteca.
quanto a sacola plástica, meros indícios do aspecto efêmero da palavra informativa, fazem
Esses quatro primeiros vídeos estão baseados
com que aquele que os frui tenha em mente a
na apropriação, no apagamento e na criação a
fugacidade da vida.
partir da matéria do jornal. Na exposição realizada por Leila Danziger, eram projetados sobre
Em News [Pallaksch Pallaksch], o som afiado
as paredes brancas da galeria ou através de pe-
dos jornais é substituído pela leitura parcial
quenos televisores. Importante frisar que seus
do poema “Tübingen, Janeiro”, escrito e lido
sons se entrecruzavam pelo espaço, proporcio-
pelo poeta Paul Celan, poema já utilizado pela
nando uma espécie de colagem e fusão entre
artista em outras obras recentes. A sobreposi-
os sons dos fantasmas de jornal, do mar que
ção física de jornais dá lugar à sobreposição
desmaterializa e da leitura de Paul Celan. Dis-
virtual de imagens. Enquanto na obra anterior
persas pelo espaço institucional das três salas
eram perceptíveis as ideias de acúmulo e de
de exposição, as fitas que a artista utilizou para
tridimensionalidade, aqui cria-se um ambien-
realizar as extrações de imagens e palavras atri-
te mais onírico, que conjuga, por exemplo, as
buem tridimensionalidade ao caráter planar
ondas do mar e o voar dos jornais. A paisagem
do papel. As narrativas que ocupam os jornais
recebe o caráter de dado científico, de geo-
e que representam fatos que empurram ou
grafia: a imagem de um mapa-múndi com os
freiam nossas vidas ganham volume e peso na
continentes preenchidos pela cor preta é so-
instalação.
breposta pelas mãos da artista a extrair a frase “Remember Paris” (“Lembre-se de Paris”), títu-
No quinto e último trabalho apresentado na
lo de um artigo que lembra os conflitos estu-
exposição, Lição de hebraico, temos nova-
dantis de maio de 1968, associando-os, critica-
mente uma videoinstalação. A artista, tal qual
mente, às revoltas populares nos países árabes
David Perlov, constrói um monumento para
no início de 2011.
um membro de sua família, seu pai. Judeu, nascido na Alemanha e imigrado para o Brasil,
Do poema lido para o poema composto pela
ao longo da vida ele sempre recorreu e tentou
imagem. Em When man’s castle is a storage
instaurar sua relação com o judaísmo pelo
room, a artista constrói novos significados
estudo do hebraico. Para tal, ouvia um antigo
por intermédio do destaque de manchetes de
vinil didático em que pequenos diálogos eram
112
repetidos. O domínio da língua, que seria cons-
Nesse mesmo vídeo, frases do conto O judeu
truído a partir da memorização, fica em segun-
errante, de Goethe, são apagadas de um livro
do plano e cede lugar ao esforço cotidiano em
impresso em tipografia gótica. O pai da artis-
lembrar suas raízes culturais. Como acessar e
ta, ao migrar para o Brasil, trouxe uma coleção
construir uma identidade judaica no Brasil?
de livros alemães impressos nessa tipogra-
O que resiste e o que persiste desta “torre de
fia; translado literal de sua bagagem cultural.
Babel” genealógica que entrecruza Alemanha,
A leitura dessas obras, porém, se torna com-
Brasil e Israel?
plicada não tanto devido à dificuldade de apreensão dos signos gráficos, mas sobretudo
Olhar para o horizonte será, de maneira ine-
pela dramática ruptura e pelo afastamento das
vitável, rememorar o território abandonado.
gerações futuras em relação à cultura alemã.
Retornamos, portanto, à praia. A artista esca-
Ao lado da projeção do vídeo, Leila Danziger
va a areia e nos revela uma caixa que osten-
coloca um exemplar do livro de Goethe com
ta em sua tampa a imagem de uma Menorá,
suas frases desfeitas, tal qual serpentina de
importante símbolo judaico; trata-se do ar-
carnaval. Um monumento à tentativa e ao erro.
quivo/depósito que resguarda o vinil de seu
Um monumento ao esquecimento feito para
pai. Ao fundo, ouvimos, de modo pausado,
não se esquecer.
a repetição de uma das lições de hebraico. A mão que retira a areia é a mesma que a co-
Ao redor desse livro e na caixa de vinil, há areia
loca. Curiosamente, porém, trata-se não de
na projeção do vídeo. Quando esses objetos
fazer artesanalmente o ato e de filmá-lo, mas
forem retirados de tais superfícies instáveis,
sim de retorná-lo, “rebobiná-lo” digitalmen-
deixarão marcas. Até quando elas ficarão ali?
te, enterrá-lo de modo artificial. Fazer a ima-
Até que o tempo as dissipe. A areia é a História
gem voltar tem algo de apego; é querer voltar
(com ou sem agá maiúsculo, coletiva ou indivi-
para ter o prazer de desenterrar novamente.
dual, nome próprio por ser localidade ou per-
Trata-se de um medo de encerrar o aspecto
sonalidade). O mar está calmo apenas no vídeo;
de “descobrimento” de um objeto já enterra-
ele é o tempo que corrói, assim como a água de
do. Um vídeo sobre perda e saudade.
um balde apaga a luz de uma lâmpada.
1 “O mar está calmo/ através da câmera de vídeo/ como uma lâmpada morta/ em um balde d’água”. Música e letra de Cocorosie (Bianca Cassidy e Sierra Cassidy). “The sea is calm”, do álbum Noah’s Ark, Touch and Go Records, 2005. 2 Yael Perlov, uma das “protagonistas” dos célebres Diários, filmados por David Perlov, em que sua esposa e suas filhas gêmeas são acompanhadas de perto durante os anos de 1973 e 1983. O fim da adolescência, suas viagens para Paris e o Brasil, e sua relação com os conflitos entre Israel, Egito e Síria, são alguns dos tópicos presentes nesses seis episódios de cerca de 50 minutos cada. Esses filmes foram exibidos recentemente no Brasil, na mostra de cinema David Perlov – epifanias do cotidiano, realizada em março de 2011 no Rio de Janeiro e em São Paulo. 3 anderman, Nirit. “Dusting off a documentary” [1º de maio de 2011]. Disponível em http://www.haaretz.com/ print-edition/features/dusting-off-a-documentary-1.359058.
113
114
Pallaksch Pallaksch [2010] Museu de Arte Contempor芒nea, Niter贸i
Pallaksch Pallaksch [2010] Livro (carimbo sobre jornais apagados e encadernação), carimbos e mesa de madeira Dimensões variáveis Museu de Arte Contemporânea, Niterói
Pallaksch Pallaksch [2010] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 80 x 58 cm (aberto) 66 páginas
Pallaksch Pallaksch [2010] Carimbo sobre jornais apagados e encadernação 80 x 58 cm (aberto) 66 páginas
Pallaksch Pallaksch [2010] Vídeo (cor, som, 3’30”), Jornais, carimbos, fita adesiva, luminária, mesa e banco de madeira Exposição Tempo-matéria, Museu de Arte Contemporânea, Niterói
(páginas 123–125) Pallaksch Pallaksch [2010]
Pallaksch Pallaksch (detalhes) [2010]
Museu de Arte Contemporânea, Niterói
Museu de Arte Contemporânea, Niterói
(páginas 126–131) Diários públicos [2009] Vídeo (cor, som, 3’30”)
O que desaparece, o que resiste [2011] Pallaksch Pallaksch [2010]
Vídeos, jornais e fita adesiva
Desmontagem
BAAD Gallery / Bezalel Academy of Arts and Design, Tel Aviv, Israel
Museu de Arte Contemporânea, Niterói
Who killed Joe Alon? [2011] Impressão fotográfica sobre papel de algodão 75 x 100 cm
O que desaparece, o que resiste [2011] Stills do vídeo, 7’ Tel Aviv, Israel
Lição de hebraico [2011] Vídeo (cor, som, 4’50”), Livro, objetos diversos, mesa de madeira, areia, fotografia e texto manuscrito na parede BAAD Gallery / Bezalel Academy of Arts and Design, Tel Aviv, Israel
Lição de hebraico (detalhe) [2011] BAAD Gallery / Bezalel Academy of Arts and Design, Tel Aviv, Israel
Lição de hebraico [2011] Vídeo (cor, som, 4’50”), Livro, objetos diversos, mesa de madeira, areia, fotografia e texto manuscrito na parede
Lição de hebraico (detalhe) [2011]
BAAD Gallery / Bezalel Academy of Arts and Design, Tel Aviv, Israel
BAAD Gallery / Bezalel Academy of Arts and Design, Tel Aviv, Israel
Vídeo (cor, som, 4’50”)
É noite [2009] Impressão fotográfica sobre papel de algodão 60 x 80 cm
Lição de hebraico (detalhe) [2011]
TAREFA INFINITA
147
Nomes próprios Fernando Cocchiarale
A obra Nomes próprios, de Leila Danziger, reúne
que parece plasmar, em graus variados, parcela
todos os 76 nomes de judeus alemães com o mes-
considerável das poéticas contemporâneas.
mo sobrenome da artista desaparecidos nos campos de concentração da Segunda Guerra Mun-
Há em Nomes próprios uma tensão que supera
dial. Extraídos do Livro da lembrança, guardado
o âmbito subjetivo familiar; ultrapassa o mo-
na Biblioteca da Comunidade Judaico-alemã de
mento histórico evocado e transcende o dra-
Berlim, em Charlottenburg, esses familiares e
ma universal da condição humana, por meio
desconhecidos nomes, impressos em fotogra-
de operações poéticas que entrecruzam con-
vura em 76 suportes de papel trabalhados pre-
teúdos discursivos com a imagem: campo po-
viamente, compõem um painel de 420 x 200 cm.
lissêmico que cresce e se infiltra pelas frestas
Quando montado, este cria na parede uma su-
esgarçadas do formalismo estético, de forte
perfície compacta, mas diferenciada pelos no-
tradição no Brasil.
mes e o tratamento artesanal matérico dado aos suportes em que se inscrevem. É decisiva na fei-
O primeiro contato com a obra é exclusivamen-
tura desse trabalho, portanto, a escolha prévia
te visual. Apreendemos, talvez, a aparência en-
de um conceito que deflagra na artista “o desejo
velhecida e suja do conjunto. Vemos sua bela
de dar materialidade aos nomes, reisncrevê-los
e paradoxal leveza, modulada pela fragilidade
no tempo e no espaço, dar-lhes aquilo que per-
dos papéis utilizados. É impossível, entretanto,
deram: corpo”, colocando-a em face do desafio
à medida que distinguimos nomes, datas e lu-
de transformar uma ocorrência histórica, extra-
gares, continuarmos distantes do trabalho. In-
-artística, em uma nova situação, essencialmen-
terceptado pela palavra, o olhar examina cada
te estética. Ao contrário da tradição moderna,
pedaço de Nomes próprios. Percebemos então
na qual as obras buscavam seus significados a
estar diante de um mesmo genos, um único
partir de relações formais, cromáticas e espa-
fado, delimitado pelo nome de família da artis-
ciais, trata-se aqui de equacionar, no campo da
ta. Nosso total desconhecimento dos corpos e
arte, situações semânticas nem sempre origi-
sentimentos que animaram esses nomes, em-
nadas dentro de seus limites estritos: questão
prestando-lhes, outrora, densidade humana
148
e afetiva específicas, torna-os hoje demasiado
abandonados pela plástica modernista (afi-
iguais, e eles, a despeito de suas distinções or-
nal, o narrativo nas artes permanece parado-
tográficas e fonéticas, estão ali apenas como
xalmente silencioso). O que muitos artistas
indícios. Os hiatos gráficos dessas cifras ape-
contemporâneos buscam, nem sempre de
nas nomeadas e mecanicamente impressas
modo consciente e, às vezes, sem sucesso, tal-
comprimem no vazio dezenas de existências
vez pelo foco exclusivo na expressão de fan-
sem biografia ou identidade. São entrelinhas
tasmas privados, são alternativas à academi-
nas quais reverberam silêncios de vidas singu-
zação de parte da produção brasileira recente,
lares, jogadas no esquecimento pela mesma
fundada em relações puramente formais, cro-
tragédia que as eternizou na vala comum de
máticas ou gestuais.
uma lista de nomes preservada na biblioteca de Charlottenburg.
Elas pouco podem dizer do mundo em que vivemos. Tornaram-se fáceis e previsíveis, se
A associação de informações mínimas aos no-
confrontadas com o vigor inventivo das genea-
mes da lista, como data e local de nascimento
logias que reivindicam para si, pois já nascem
e de morte, longe de singularizá-los, esvazia-os
prontas, repetindo, sem qualquer risco, efeitos
ainda mais das circunstâncias específicas que
dos resultados positivos conquistados, em pro-
um dia personificaram, pois indicam um des-
cessos experimentais genuínos, por seus ante-
tino comum, histórico (o fim coletivo no Holo-
cessores estéticos desde os anos 1950.
causto promovido pelo nazismo) e ontológico (a inevitabilidade da morte e o esquecimento
De um ponto diverso, Nomes próprios constrói,
que ela fatalmente representa para o indivíduo).
com palavra e matéria, imagens, tomadas aqui
O conceito que informa este trabalho de Dan-
proposto por Panofsky na primeira metade
ziger aponta-nos, de sua espacialidade, para o
do século xx: imagens significam mais do que
fluxo do tempo e a permanente fragilidade da
aquilo que vemos (forma), pois ela simbolizam.
em sentido próximo ao da iconologia, tal como
memória, preocupações que atravessam o conjunto de sua obra: a condenação progressiva
Alguns dos artistas contemporâneos mais sig-
ao esquecimento da esfera do vivido e a con-
nificativos, como Beuys e Kiefer, parecem ter
densação crescente da memória do passado,
encontrado no campo simbólico, renovado
construída pela história. Tal é o fio que liga um
pelas questões desse fim de século xx, a solu-
passado apenas coletivo a um presente pleno
ção dos impasses a que chegou a maioria das
de indivíduos, qualificado desde nossa própria
pesquisas formais strictu sensu. O tratamento
individualidade. Fio que tece um pano de fun-
matérico dado por Leila Danziger a Nomes pró-
do intransmissível e único; aquilo que, com a
prios e aos livros adquire substância sobretu-
morte, desaparecerá conosco para sempre.
do a partir de conceitos com os quais a artista trabalha. No ato de ferir, gravar e pigmentar
Tudo isso, no entanto, não deve ser tomado
papéis, sequenciando-os seja na parede ou
como um retorno aos elementos “literários”
em páginas, há antes o registro e a produção
149
de um fluxo do que a cristalização sincrônica
– vida, história e a própria feitura –, semantiza-
de uma cena, tal como ocorria no quadro de
dos pela intervenção da artista, condensam-se
representação mimética e de parte da produ-
simbolicamente, dando sentido contemporâ-
ção moderna. Lapsos temporais heterogêneos
neo à sua obra.
Texto escrito por ocasião da exposição Nomes próprios, na Galeria Thomas Cohn, São Paulo, abril de 1998.
150
151
A arte de dar forma ao real: a poética da memória de Leila Danziger Márcio Seligmann-Silva Aus seiner Krume/ knetest du neu unsre Namen [De suas migalhas/ você modela de novo nossos nomes] “Von ungeträumten geätzt”, Paul Celan
G. E. Lessing, em um dos textos centrais da
A arte da memória contemporânea deve à tra-
teoria estética, o seu Laocoonte, de 1766, en-
dição da antiga arte da memória retórica tanto
tre diversas fronteiras que tentou traçar como
uma concepção espacial da memória quanto a
bom iluminista que era, aquelas às quais ele
concepção de um entrelaçamento necessário
atribuiu maior valor eram as que deveriam
entre o trabalho das palavras e o das imagens.
manter as diferentes artes devidamente se-
Nos palácios da memória que o rétor antigo
paradas – cada uma atuando conforme a
construía para aí instalar confortavelmente
adequação do seu meio com os objetos que
em cada nicho uma imagem – e por onde ele
lhe seriam apropriados – e a proibição de re-
poderia caminhar com desenvoltura durante
presentação do asqueroso (ekelhaft). Para ele
seus discursos, retrotraduzindo em palavras
o asqueroso estaria fora do campo da ilusão
as imagens que cristalizavam as diferentes
estética. Nada poderia estar mais longe da
ideias que ele queria apresentar – havia uma
posterior produção artística, o que nos faz
clara imbricação entre palavras e imagens.
pensar que Hegel estava certo na sua boutade
Uma podia e deveria traduzir a outra. Se, por
sobre a ave de Minerva e seu lançar voo sem-
sua vez, na arte da memória contemporânea
pre ao anoitecer. Lessing representou o canto
essa tradução é posta em questão, por outro
de cisne da visão pré-romântica da arte, mas
lado o trabalho em conjunto entre palavras e
abriu também, com o seu argumento de base
imagens é mantido e o mesmo vale para a es-
semiótica, a possibilidade de uma nova era na
pacialização do tempo. Nessa arte, como logo
teoria das artes estabelecer-se.
veremos nas obras de Leila Danziger, as palavras transformam-se em imagens, assim como
Mas se o nosso objeto é a obra de Leila Dan-
as imagens são utilizadas no lugar de palavras
ziger, cabe a pergunta: o que o desrespeito da
– transformando-se, por exemplo, em livros e
separação estanque entre as artes e, por outro
só funcionando enquanto superfície a ser lida.
lado, a apresentação do asqueroso têm a ver
As tumbas de papel – ou seja, as tentativas
com a arte da memória? Tudo.
de dar conta do passado via palavras escritas
152
– são suplementadas aqui pela presença de
sua tese de doutorado – e se deparou logo na
imagens e pelo seu jogo em um espaço ima-
entrada com dois grossos volumes contendo
gético-verbal que tende para a construção de
a lista dos nomes dos judeus alemães assas-
verdadeiros hieróglifos da memória.
sinados nos kz nazistas (ou seja, nos Konzentrationslagern, campos de concentração). Ela
Quanto à apresentação do asqueroso, pare-
encontrou aí o seu nome de família elencado
ce mais difícil perceber esse traço na obra de
76 vezes. Os 76 Danzigers dessa lista, por assim
Danziger, e que é frequente na arte contempo-
dizer, produziram uma virada nas coordena-
rânea que tem o corpo como objeto – a body art
das que guiavam sua vida. Seu pai, judeu de
e a “arte abjeta” constituindo os dois exemplos
Berlim, ela em Berlim e os 76 nomes constituí-
mais notórios dessa modalidade de arte. Com
ram uma constelação que passou a orientar
efeito, em vez da espetacularização explícita do
sua produção artística. Mas virada existencial
trauma via exploração do corte na pele ou apre-
não significou um nascimento ex nihilo na sua
sentação dos fluidos que saem de nosso corpo,
carreira. Leila já havia feito então, aos 32 anos,
Danziger elege uma poética da materialidade
algumas importantes exposições individuais
que apresenta a memória traumática por meio
e participado de outras tantas coletivas, a pri-
de uma escritura que é tão corpórea quanto a
meira delas em 1987, em Toulouse, durante
nossa pele. Sua obra executa mediações, como
os seus estudos realizados no Institut d’Arts
na “passagem para o papel” – um de seus
Visuels d’Orléans.
meios prediletos –, que a tornam mais delicada, sofisticada e intelectual a um só tempo.
Essa primeira exposição individual chamava-se Entre ciel et ruines e já apresentava algu-
Leila Danziger herdou de seu pai, como ela
mas das características dos seus trabalhos
gosta de dizer, a “língua alemã”: mas não
posteriores: intertextualidade com a literatu-
como língua falada, e sim “como uma espécie
ra (neste caso, as estampas dialogavam com
de monumento, sinalizando unicamente per-
fragmentos do poeta Edmond Jabès), formato
das”. Essa herança erodida sem dúvida alguma
que lembra um livro e as temáticas dos nomes
se inscreve em sua identidade e deixa marcas
e da memória traumática. Nos fragmentos le-
na sua obra, repleta de fragmentos da língua
mos, por exemplo: “nous n’habitons que notre
alemã. Língua que, ao passar pelas câmaras de
perte” e “nous nous parlons à travers une bles-
gás e fornos crematórios, se tornou lalen, lala-
sure dont nous ignorerons toujours l’origine”.
ção, e renasceu em outro contexto, no Rio de
As imagens posicionadas ao lado dos fragmen-
Janeiro, a partir de rupturas que só muito len-
tos lembram às vezes as obras escriturais de
tamente foram se tornando conscientes.
um Cy Twombly. Entre céu e ruínas é um trabalho extremamente delicado que inicia uma
Certa vez, por exemplo, em 1994, quando visi-
pesquisa sobre um intervalo – “entre” –, sen-
tou uma exposição no Museu Histórico de Ber-
do que o céu aqui pode ser interpretado como
lim dedicada aos “Mahnmale des Holocaust”
uma constelação e conjunto de traços a serem
[Monumentos do Holocausto] – tema, aliás, de
lidos, assim como as ruínas apresentam uma
153
visão do tempo metamorfoseado espacialmen-
flexão sobre nomes e datas/locais vai num cres-
te na sua própria cicatriz e em sua destruição.
cendo mudo que guia seus trabalhos de modo distanciado, esse “excesso de história” resulta
A exposição seguinte, de 1989, tinha o nome-
em uma poética do murmúrio, marca de sua
-dedicatória Pour Edmond Jabès. Dessa feita os
obra que é avessa a qualquer monumentalidade.
fragmentos do poeta aparecem estampados
Os trabalhos sobre papel apresentados nas
sob águas-fortes – como uma inscriptio de um
duas exposições com nome Cáucaso (1993 e
emblema barroco. A epígrafe da exposição (et
1994) levam ao limite a experiência com a gra-
pourquoi pas?) deve ser lembrada: “Le nom
vura e revelam um vir à tona da materialidade
échappe au souvenir. Il est, lui même, mémoire”
do papel desgastado e corroído por processos
(E. Jabès). As imagens monocromáticas con-
químicos e mecânicos, que nas suas manchas
tinuam o trabalho de escritura e traçamento
e perfurações apresentam com sutileza um
da poesia, só que sem formar letras. Apenas o
“real” que não se deixa simbolizar.
gesto escritural é preservado. Nos textos lemos “Sarah, Sarah par quoi le monde commence?
A fase seguinte da obra de Leila inicia-se com o
Par la parole? Par le regard?” Questão essencial
trabalho Nomes próprios (nome de três de suas
que nos remete à reversão goetheana da frase
exposições em 1997 e 1998). A obra Greifwal-
bíblica: “Im Anfang war die Tat” (Faust, I Teil,
dstr. 138, agora exposta na ifa-Galerie Berlin,
3. Szene). Como ver estas obras hieroglíficas?
ainda é fruto desse momento de sua reflexão
Devemos “ouver-las” no seu misto de palavras
artística/conceitual. Com a técnica da fotogra-
e imagens. Outra frase: “Jamais l’avènement
vura Leila realizou matrizes de metal com os
n’a lieu. C’est dans ce ‘jamais eu lieu’ qu’il ré-
76 Danziger. Nas “páginas” resultantes, com
side.” Formulação aporética que retoma com
forma que lembra uma lápide, estão inscritos
toda força o “drama da representação” pós-
os seus nomes, locais e data de nascimento, a
-Auschwitz. E, não por acaso, é justamente este
data de morte – ou a menção “verschollen”, de-
tópos que é nomeado ao final da sequência in-
saparecido, e em alguns casos os nomes dos kz
terminável de nomes judeus que subscreve – e
onde foram assassinados, ou ainda a menção
como que assina – a terceira água-forte: “Dans
“Freitod”, suicídio. As gravuras foram expostas
tout nom, il y a un nom dérangeant: Auschwitz.”
lado a lado, formando um enorme painel de
Decerto em Danziger e em tantos outros mi-
400 x 220 cm. Essas gravuras também foram
lhões de nomes também – assim como em “to-
transformadas em livros trabalhados com óleo
dos os nomes” depois daquela data-local.
de linhaça e betume, e portanto muito densos do ponto de vista da matéria e do tema. Livros
Nos anos seguintes, após o retorno ao Rio de
da memória, mas também livros sobre o esque-
Janeiro, Leila continua trabalhando com os
cimento e a impossibilidade de dar um corpo
recursos escriturais da gravura e com a forma
ao passado.
do livro. Suas obras expostas entre 1992 e 1994 apresentam um trabalho cada vez mais inten-
Na exposição coletiva O artista pesquisador
so com o suporte. Se o peso da história e a re-
(1998), em Pequenos impérios (1999) e em ou-
154
tras exposições coletivas, Danziger soma a essa
pelo princípio da reprodução técnica – mas na
experiência estética dos 76 nomes próprios o
obra de Danziger, em um segundo momento, o
trabalho com a Greifwalderstr. 138. Esse en-
exercício mesmo de transposição e metamor-
dereço remete a um local e a um prédio preci-
fose do original dá um novo corpo e uma nova
sos em Berlim. Danziger leu em 1994. em um
densidade ao “original”, a saber, ao desapare-
exemplar do cotidiano Tagespiegel, matéria de
cido/presente. Esse procedimento de repro-
uma página de autoria de Ruth Nube, nascida
duzir e transformar – as gravuras e livros são
em 1932, sobre uma amante de seu pai, Sophie
tratados com óleo de linhaça, grafite e betume,
Gutmann. Nube descobriu as correspondên-
e algumas vezes postos sobre mesas, elas mes-
cias entre seu pai e Gutmann apenas depois
mas trabalhadas com o mesmo material – me-
da queda do muro de Berlim. Ela decidiu en-
tamorfoseia o que era mero jornal descartável
tão pesquisar o que acontecera com essa judia,
(uma memória curtíssima fadada ao esqueci-
que ela conhecera e que permanecera em Ber-
mento, como o é toda informação jornalística)
lim durante a guerra. A correspondência com
em um índice do passado. Cria um delicado
seu pai foi suspensa em 1942. Gutmann cuida-
antimonumento. Alguns dos livros parecem
va de um orfanato com cerca de 60 a 80 crian-
ter sobrevivido a incêndios. As metáforas que
ças judias. Nube encontrou como resultado de
se anunciam – como a do livro – são logo trans-
sua pesquisa no arquivo da cidade de Berlim
formadas em metonímias, pars pro toto impos-
(Landearchiv Berlin) as listas de transporte dos
sível, mas ainda assim tentadas e lançadas aos
judeus enviados aos campos de concentração.
espectadores.
Sophie Gutman e sua filha (meia irmã de Ruth Nube) estão listadas em um transporte de 29
Os trabalhos de Danziger dos últimos anos têm
de novembro de 1942, com 1.021 nomes, ao
insistentemente requisitado o jornal (sobretu-
lado de 230 crianças e jovens entre seis sema-
do jornais alemães) como base e suporte. Mas
nas e 18 anos, a maioria órfãos.
do que suporte, no entanto, essas páginas de jornal são transformadas em “corpo”, objetos
Leila Danziger fez uma fotocópia dessa maté-
de arte, na medida em que, empregando fita
ria e tem trabalhado desde então em sua re-
adesiva, os textos em alemão são delicadamen-
produção e transformação em livros-objetos
te retirados – assim como o alemão de Leila
e gravuras. Em agosto de 2000 ela foi ao ende-
perdeu a sua função comunicativa e manteve
reço onde funcionava o orfanato e encontrou
a sua dimensão afetiva. Apenas algumas pala-
um canteiro de obras que fotografou. Em uma
vras, outras vezes fotos ou ainda os contornos
das fotos vemos uma criança andando de bici-
das colunas e das imagens ficam impressos
cleta refletida no vidro do prédio. Esse traba-
nas páginas. No fundo, as letras ao avesso ain-
lho desdobra o testemunho de Nube e busca,
da podem ser vislumbradas, recobrando assim
com suas inúmeras passagens pela serigrafia,
uma força que não atribuímos ao papel-jornal
dar conta da fixação sobre tal passado. O ato
diariamente jogado no lixo. Nessas superfícies
reflexo que nos leva a repetir a cena traumáti-
Leila também constrói poemas às vezes com
ca é, em um primeiro momento, mimetizado
uma só palavra – como “ausências” –, outras
155
com carimbos que trazem palavras ou versos
Danziger identifica-se com outros artistas
de Paul Celan, Drummond, Cecília Meireles e
brasileiros atuais, como Antonio Manuel e
Orides Fontela. Nesta reciclagem artística do
Franklin Cassaro. A artista com quem tem
jornal apagado e reinvestido de sentido, as pa-
maior afinidade no Brasil é Mira Schendel. Na
lavras e as imagens constroem uma grafia do
cena internacional sua obra dialoga direta-
tempo junto com marcas da luz que também
mente com Robert Rauschenberg, On Kawara
se inscrevem – de modo estudado – sobre a
e Anselm Kiefer, assim como pode ser aproxi-
sensível superfície descascada. Essas grafias
mada dos antimonumentos de Horst Hohei-
de luz revelam o princípio da fotografia e da
sel, Andreas Knitz, Jochen Gerz e Hirschhorn,
própria obra de Danziger enquanto uma escri-
e de outros artistas que trabalham com poéti-
tura do real que desconhece o caminho arris-
cas da memória, como Doris Salcedo, Marcelo
cado da narração e da ilusão da representação
Brodsky, Naomi Tereza Salmon e Christian
tradicional.
Boltanski.
Publicado em seligmann-silva, Marcio (org.) Palavra e imagem: memória e escritura. Chapecó: Argos, 2006, p. 215–25. Uma versão em alemão foi publicada no catálogo da mostra Bilder des Erinnerns und Verschwindens, realizada no Institut für Auslandsbeziehungen (IFA), em Berlin, em 2003.
156
157
O efeito-arquivo no trabalho de Leila Danziger Luiz Cláudio da Costa
A arte contemporânea interessa-se por objetos
tividades outras, a arte toma a matéria-docu-
do mundo e da cultura, por acontecimentos
mento como a ponte para ousar relacionar-se
sociais e geopolíticos, apropriando-se de dis-
reflexivamente com dispositivos que não são
positivos discursivos externos a seu próprio
originalmente os seus.
saber e até a sua instituição. O procedimento da apropriação, tão comum nos trabalhos de
O projeto a que Rosângela Rennó2 deu início
arte atualmente, é criterioso quando reflete a
em 1992 envolvendo recortes de jornais com
consciência de que toda matéria assimilada é
pequenas histórias impressas sobre fotografias
um documento da máquina de discursos, de
e utilizando processos de digitalização recebeu
visibilidades e de afetos do contexto do qual
o nome de Arquivo universal. Tomar posse de
procede. Isso significa algo simples, mas que
material de arquivos, da memória individual
constitui escrupuloso ponto de partida da polí-
ou institucional, é a estratégia pela qual Rennó
tica da arte na contemporaneidade: toda apro-
problematiza mecanismos de identificação e
priação e, consequentemente, sua transfe-
de classificação. Traduzidas por processos de
rência contextual já configuram uma leitura e
transferência de um contexto a outro, de um
provêm de interesses que acarretam definições
suporte a outro, as imagens provocam peque-
éticas. Arthur Danto argumenta que, desde Du-
nos deslocamentos afetivos, estéticos e/ou
champ e, especialmente, com o Fluxus e a Pop,
políticos. Rennó revela ainda dispositivos de
a arte insiste no desejo de transfigurar o lugar-
visibilidade, ao apropriar-se de negativos e de
-comum, colecionando artefatos do cotidiano
cópias fotográficas encontrados em feiras de
e os transformando em obras de arte que orga-
antiguidade, álbuns pessoais, jornais diários.
nizam seus próprios “armazéns”. Esse interes-
Comentando o trabalho Bananeira, da série
se da arte em arquivos e coleções remete antes
Frutos estranhos, com o qual a artista cria um
a uma vontade de mapear e articular saberes
efeito de movimento em imagem originalmen-
e campos por meio de processos simultanea-
te instantânea, Antônio Fatorelli chama a aten-
mente conceituais e expressivos. Atravessada
ção para “o modo particular de contrair e de di-
por domínios distantes e à procura de subje-
latar o instantâneo na pós-produção digital”.3
1
158
Alterando a temporalidade ou conjugando
relatadas em várias línguas: português, inglês,
imagens e textos, Rennó produz um inventário
espanhol e alemão.
de práticas, mas também de percepções e afetos de diversos contextos distintos.
Esses artistas brasileiros rejeitam insistir apenas na exploração disciplinar dos sistemas
Ricardo Basbaum também tem utilizado pro-
internos da instituição arte, como o fazem os
cedimentos que inventariam, arquivam e
americanos dos anos 1980, ainda vinculados
criam deslocamentos de informações, impres-
à chamada crítica institucional, como Andrea
sões e afetos desde o projeto da marca Olho,
Fraser, Renée Green e Fred Wilson, preferindo
exposto na mostra Como vai você, Geração 80?
uma atuação transversal, que confronta ou-
Envolvendo uma dinâmica de publicidade
tros dispositivos e subjetividades. Eles optam
que contaminava o público, a marca Olho
por fazer circularem visibilidades e discursos
multiplicava-se em adesivos gráficos, filipetas
provenientes de outros campos e contextos
e cartazes, entre outros dispositivos comuni-
impregnados de afetos e expressão poética e
cacionais. Esse projeto contém as origens do
artística, criando assim espaços que potencia-
programa integrado de trabalhos conhecido
lizam relações inesperadas entre forças e sen-
pela sigla nbp – Novas Bases para a Personali-
tidos antes invisíveis ou indizíveis. Articulando
dade –, composto de textos, diagramas, obje-
também outras formações discursivas como a
tos e ambientes construídos sobre a forma he-
biblioteca e o jornal diário, Leila Danziger gera
xagonal criada pelo artista. Em 2007, Basbaum
um espaço crítico transversal para o campo da
cria o arquivo-site “Você gostaria de participar
arte, vinculando-o à cultura das comunicações,
de uma experiência artística?” e mapeia vidas
à história e à literatura em trabalhos que alcan-
geograficamente dispersas no mundo, que
çam deslocar conjuntos inteiros de discursos e
aceitam a proposta que serve de base para o
afetar poeticamente visibilidades não artísticas.
4
projeto de experimentar, cada um à sua maneira, o objeto nbp de ágata, com as dimen-
Em texto publicado no folder da exposição Pe-
sões de 80 x 125 x 18 cm. Como uma espécie
quenos impérios,5 Leila Danziger se pergunta:
de artista-comissário que catalisa por meio de
“A que categorias submeter tudo aquilo que
seu objeto o conjunto de expressões, afetos e
sobra, mas guarda ainda possibilidades não
documentações dos participantes, Basbaum
realizadas? Sob que critérios reunir, relacionar,
organiza um diagrama no site e relaciona aque-
classificar?” Pequenos impérios expunha livros
las vidas, tramando uma rede e entrelaçando
feitos a partir de processos serigráficos sobre
histórias de outro modo não conectadas. O ar-
impressos em papel e dispostos sobre mesas
quivo da internet de Ricardo Basbaum permite
de madeira com lâmpadas elétricas que pen-
ao cibernauta escolher suas entradas e urdir as
diam do teto. Todos os elementos dessa exposi-
próprias relações entre as ações, as imagens e
ção tinham dimensões variadas, o que, quanto
as narrativas dos participantes, tecendo seus
às lâmpadas, significava potências luminosas
caminhos e acessos às subjetividades e visi-
diferenciadas e, quanto aos livros e mesas, ca-
bilidades cartografadas. São 118 experiências
ráter, isto é, corporeidade, massa e peso. Ainda
159
que não oculto, um dos livros buscava resistir
Berlim, em Charlottenburg. Nenhuma fotogra-
em sua materialidade, apesar de cerrado numa
fia, nenhum desenho, apenas os nomes. Com
cuba de óleo de linhaça. Esses trabalhos, sur-
a coleção desses nomes-documentos retira-
gidos de outros mais antigos e não concluídos,
dos dos arquivos de Charlottenburg, Danziger
tomados do arquivo da própria artista, guarda-
criava um espaço de visibilidade no campo da
vam por isso mesmo certa memória afetiva. Por
arte voltado para o esquecimento. Segundo a
outro lado, Pequenos impérios utilizava pala-
artista, “estamos longe do esquecimento pro-
vras e imagens retiradas de jornais diários, de
dutivo recomendado por Nietzsche como antí-
um espaço público de informações. Interiori-
doto contra o historicismo”.8
dade e exterioridade articulavam-se nas sobras de um tempo que aspira à memória, mas en-
Transcendendo a estética em certa medida,
frenta o atrito do esquecimento. A membrana
Danziger volta-se, com sua poética do arqui-
densa desses papéis volumosos, organizados
vo, para a história e para a memória enquanto
sob a forma de livros, parecia conservar as cica-
espaço de uma ferida. Dito de outra maneira,
trizes de um tempo insubordinado às separa-
Danziger organiza o material sensível sob uma
ções de público e privado, prolongando apenas
perspectiva conceitual e política. Se não há se-
a precariedade própria à memória. Danziger
quer uma imagem fotográfica no conjunto de
comenta em texto recente que dá continuida-
gravuras com os nomes (nos livros há imagens),
de às reflexões da época da exposição Pequenos
há o procedimento indicial da impressão. A fo-
impérios: “Se cada resto, cada ‘pequeno impé-
togravura instaura uma referência pelo contato
rio’ é um arquivo, cabe perguntar o que está ar-
do papel com a matriz de metal preparada com
quivado na matéria que os constitui e sobre o
a emulsão fotossensível. A matriz em metal cria
modo mesmo como são constituídos”.
6
sensações que a serigrafia em tela certamente não produziria, pois os sulcos que o ácido es-
Entre 1996 e 1998, Leila Danziger produziu
cavou na placa para inscrever aqueles nomes
uma série de trabalhos em que listava nomes
são as feridas impressas no papel. A marca da
de judeus alemães com o mesmo sobrenome
cicatriz deixada no metal da gravura era o ín-
que o dela, desaparecidos nos campos de con-
dice de um acontecimento profundo que seria
centração da Segunda Guerra Mundial. A série
impresso na superfície do papel. Na materiali-
Nomes próprios é composta por 76 gravuras de
dade corporal dos papéis tratados com óleo de
matrizes em metal e um conjunto de 12 livros
linhaça por Leila Danziger, impregnam-se os
feitos a partir de imagens extraídas de jornais
índices impressos dos crimes nazistas perpe-
alemães, reproduzidas em serigrafia. Os livros,
trados em Auschwitz.
encorpados em sua materialidade com óleo de linhaça, foram mostrados junto às gravu-
Listando junto aos nomes algumas informa-
ras na exposição Nomes próprios.7 O conjunto
ções como data e local de nascimento e morte,
de gravuras media 4,2 x 2 m e reunia todos os
a série de gravuras de Danziger desdramatiza
nomes extraídos do Livro da lembrança, guar-
o evento histórico sem nem mesmo tentar dar
dado na biblioteca da comunidade judaica de
imagens aos nomes vazios. Tampouco há nar-
160
rações ou representações de vidas. Há apenas
de um “instante decisivo”, como diria Cartier-
a lembrança do esquecido e os documentos-
-Bresson, era o que interessava à fotografia
-nome da ferida sobre o corpo do papel, ferida
moderna em sua origem, ao se opor ao picto-
que não cessa de doer e que, por isso mesmo,
rialismo, que criava com suas intervenções e
não pode ser esquecida. O painel de Danziger
manipulações o aspecto “artístico” de técnicas
apenas toma aqueles nomes de um lugar pró-
como o desenho e a pintura. Rejeitando as in-
9
prio da memória: o arquivo da biblioteca em
tervenções de laboratório e defendendo o con-
Charlottenburg. Mas na leveza do papel com os
tato direto com a realidade e a exploração de
nomes gravados fantasmas invisíveis parecem
recursos próprios, como a escolha do enqua-
insinuar-se e criar um espaço outro. Ou seriam
dramento, da luz, das lentes, dos filmes, dos
as palavras que se tornam imagens? Enquan-
papéis, a fotografia poderia assim originar a
to o observador se delonga para ler as palavras
ordem de um lugar específico entre as técnicas
vazias de sentido, um espaço de melancolia pe-
de produção de espaços visíveis. Atualmente,
netra os nomes do frágil papel embebido em
por meio de um “olhar direto” de observação
linhaça. Com a demora da leitura de uma sim-
da realidade aprendida com os fotógrafos mo-
ples lista, ainda que longa, aumenta estrondo-
dernos, os dispositivos informacionais contro-
samente o silêncio que os nomes reverberam,
lam nossa experiência do tempo do visível.12
abrindo uma errância no vazio do tempo para
Mas em Diários públicos de Danziger o obser-
imagens surgirem no pensamento. Referindo-
vador experimenta uma reviravolta do tempo,
-se ao trabalho de Leila Danziger como uma
que se insinua sob um perturbador silêncio en-
“poética da memória”, Márcio Seligmann-Silva
tre palavras que antes parecem ocultar-se para
afirmou que a artista “apresenta a memória
permitir a um pensamento peregrino emergir
traumática por meio de uma escritura que é
com a percepção viva das imagens consentidas.
tão corpórea quanto a nossa pele”.10 Empregando método extrativo, Leila Danziger Em outra série da artista, Diários públicos, ex-
apaga as palavras do noticiário, porém mantém
posta pela primeira vez em 2004 no Espaço Cul-
algumas imagens. Com carimbos, ela grava ou-
tural Sérgio Porto, a fotografia aparece como
tras palavras: “Para-ninguém-e-nada-estar”, de
fantasma de um tempo mudo de informações.
um poema de Paul Celan; “Pensar em algo que
Como um saber disciplinar da temporalidade
será esquecido para sempre”, de Nós, os mortos,
do visível, a fotografia fixou o instante da dura-
de Denilson Lopes; “Vens abaixo em chamas”,
ção. Segundo argumenta Maurício Lissovsky,11
de um poema do Hölderlin; e “Todos os nomes
o legado original da fotografia moderna foi a
da melancolia”, fragmento da própria artista,
visibilidade do instante como tempo de espera.
estimulam a errância, a demora, o esquecimen-
Para o teórico, o tempo na fotografia instantâ-
to do tempo linear dos instantes velozes.
nea manifesta-se por seu ausentar-se: um refluir do tempo para fora da imagem, deixando
O tempo instantâneo e efêmero das notícias
apenas o traço de sua retirada, o instante. Sem
começa a flutuar suspenso, atingido pelo ges-
dúvida o tempo da espera que vai ao encontro
to que extrai as palavras com um único golpe.
161
A velocidade com que os momentos são subs-
dos do século xix, o modo de exposição da foto-
tituídos no noticiário é aniquilada pelo golpe
grafia e seu lugar de conservação eram o arqui-
súbito que apaga o impresso. Fica explicitada,
vo e não as paredes do museu. Ela não pertencia
assim, a vocação própria ao jornal, o esqueci-
ao arquivo discursivo da arte. A fotografia per-
mento. Como afirma Danziger, os jornais tra-
tencia, até meados do século xix, ao discurso
duzem a falácia de um tempo homogêneo, acu-
topográfico da geologia e não ao saber estético,
mulando-se “numa massa de esquecimento,
cujo código visual de representação aplainada
transformam-se em dejetos da atualidade”.13
e comprimida transformou as vistas em paisagens. Foi só depois de 1860 que a fotografia
Um pensamento errante começa a flutuar e a
entrou verdadeiramente para a instituição arte
constituir outra experiência. É o sigiloso es-
e passou a ter lugar no discurso da história da
paço nômade do tempo que se abre diante da-
arte e nas paredes das galerias. Mais contem-
quele que observa esses jornais transfigurados
poraneamente, entretanto, os especialistas da
e cuja função de informar estranhamente de-
fotografia, segundo a autora, aplicaram os “con-
sapareceu. As fotos, privadas das legendas jor-
ceitos fundamentais do discurso estético ao ar-
nalísticas que tentam preencher o que elas não
quivo visual”.14 A noção de “arquivo visual” no
dizem, tomam a força poderosa do silêncio e se
texto de Krauss remete tanto ao móvel em que
articulam de viés com as palavras. Entre umas
se guardavam e expunham as vistas quanto à
e outras, há somente a distância que permite
noção de “formação histórica” proveniente da
um espaço crítico penetrar e realizar uma vi-
teoria foucaultiana sobre os discursos e as visi-
sibilidade não aparente do dispositivo apro-
bilidades do saber em A arqueologia do saber.
priado. Transformando esses jornais pelas investidas físicas sobre eles, Danziger expõe e
Ao mesmo tempo que o arquivo visual da fo-
problematiza a cultura do esquecimento con-
tografia foi absorvido pela arte, ele também
veniente aos meios de comunicação. Abrindo
apresentaria motivos de suscitar o interes-
fendas no arquivo da informação diária, faz
se da instituição policial. A análise que Tom
atravessar nele o movimento da dimensão
Gunning faz do processo de constituição da
poética do real. O tempo, que havia refluído
“sistematização de identificação fotográfica
para fora da imagem instantânea dos jornais
de criminosos do século xix” pode contribuir
diários, penetra vazio como memória sem lu-
para a compreensão dessa formação cultural
gar, ativando espaços críticos nos lugares pró-
que, com efeito, a fotografia ajudou a fundar,
prios da cultura da informação.
o arquivo. Gunning analisa as rogues galleries (galerias dos vilões), coleções de fotografias
A fotografia, guardando uma memória singular
dos procurados pela polícia, e mostra como o
do visível, teve papel fundamental para as poéti-
sistema policial reconhecia no novo procedi-
cas críticas que aqui destaco, por constituírem
mento a técnica que “imitava a aplicação ante-
o efeito-arquivo que desloca sentidos e afetos
rior da marcação a ferro quente” e como a aper-
estratificados. Rosalind Krauss, em “O espaço
feiçoava tecnologicamente.15 Porém a “própria
discursivo da fotografia”, afirma que, em mea-
natureza da fotografia, sua precisão detalhada
162
e sua instantaneidade”, como ele alega, cria-
ne guardados na agenda dos celulares, já não
ram problemas de organização e procedimen-
precisamos lembrar nem mesmo dos números
to, pois faltava a construção de um método que
das pessoas mais próximas. A cultura da me-
pudesse utilizá-la, bem como outros meios de
mória é uma cultura do esquecimento, pois
descrição e mensuração físicas, para fixar de
transfere todas as informações para os dispo-
modo permanente uma identidade e individua-
sitivos de arquivamento. A produção artística
lizar uma pessoa. O sistema policial juntaria
e crítica atual está atenta a esse arquivo que
a antropometria, a precisão óptica da câme-
ultrapassa a instituição arte enquanto tecno-
ra, um vocabulário fisionômico refinado e a
logia que implica técnicas da era digital, mas
estatística. O estudo de Gunning mostra que
também conhecimentos e subjetivações.
16
faltava ao sistema de identificação fotográfica “a inclusão em um arquivo de informações”; ci-
O trabalho de Leila Danziger mostra que apro-
tando literalmente palavras de Alan Sekula, ele
priar-se de imagens e discursos é assimilar
afirma que “o artefato central desse sistema
dispositivos de subjetivação, os quais deseja
não é a câmera, mas o arquivo”.
17
enfrentar com sua prática artística. Colecionando jornais, ela neutraliza o esquecimento;
É notável a gigantesca proliferação atual de
apagando imagens, faz ver figuras; gravando
dispositivos de visibilidade e de circulação de
balbucios poéticos, impulsiona outras falas.
imagens que incluem suportes tanto de produ-
A artista articula uma experiência do ver e do
ção como de arquivamento. Até a era digital, o
falar que ultrapassa o horizonte de um campo
número de fotografias tiradas em um evento
do conhecimento e atravessa, em movimen-
era normalmente reduzido, pois os filmes ti-
to indeterminado, a fotografia, a informação,
nham número limitado de poses e o preço da
a cultura de massa, a poesia. O olhar direto
revelação era alto. Hoje, com a memória digital
não tem mais lugar; busca-se nas artes hoje o
das câmeras atuais, podemos fotografar infini-
olhar de viés que, inventariando, processa es-
tamente um evento. Existem dispositivos au-
tratos do saber, círculos da memória e afetos
tomáticos para tomadas contínuas. Todos nós
do pensamento. É nesse sentido que a reflexi-
temos uma câmera, nem que seja a do celular.
vidade crítica contemporânea se diferencia da
Tudo é passível de ser fotografado, e muitas ve-
autorreflexividade moderna. Enquanto a refle-
zes continuamente. A toda hora clicamos para
xividade contemporânea quer abrir espaços
ter uma imagem, uma lembrança. A enorme
poéticos no exercício heterogêneo de práticas
facilidade de produzir fotografias é equivalen-
apropriadas, a autorreflexividade modernista
te à velocidade com que os dispositivos são
problematizava as convenções de uma mesma
substituídos e continuamente consumidos.
linguagem, tornando-a sempre mais própria
A velocidade com que os equipamentos sur-
ao exercício daquele lugar ou campo. Leila
gem nas prateleiras das lojas é a mesma que
Danziger efetiva sua poética da memória exer-
os faz desaparecer. O excesso de imagens para
cendo e propiciando espaços de resistência ao
nos fazer lembrar mostra a ansiedade e o medo
poder do esquecimento efetuado pelos dispo-
do esquecimento. Com os números de telefo-
sitivos do arquivo da cultura atual.
163
Publicado com o título “A poética da memória e o efeito-arquivo no trabalho de Leila Danziger” em Arte & Ensaios. Revista do Programa de Pós-Graduação em Artes, n. 19, Rio de Janeiro, 2009. 1 danto, Arthur. “O mundo como armazém: Fluxus e filosofia”. In: hendricks, Jon (org.). O que é o Fluxus? O que não é! O porquê. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, 2002. 2 pedrosa, Adriano & melendi, Maria Angélica. Rosângela Rennó: o arquivo universal e outros arquivos. São Paulo: CosacNaify, 2003. 3 fatorelli, Antônio. “Reconfigurações da imagem”. Comunicação oral proferida xii Encontro Internacional da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine), São Paulo, 2008. 4 Ver o site do artista: http://www.nbp.pro.br. 5 danziger, Leila. “Pequenos impérios”, Galeria Cândido Portinari, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 1999. Folder da exposição. 6 Ver o site da artista: http://www.leiladanziger.com 7 A série Nomes próprios (gravuras e livros) foi exposta na Galeria Thomas Cohn, São Paulo (1998), e na bbk, Galerie, Oldenburg, Alemanha (2000), bem como integrou a mostra coletiva itinerante WegZiehen [Ir embora], organizada pelo Frauenmuseum, em Bonn, Alemanha (2001–2). 8 danziger, Leila. “O jornal e o esquecimento”, Ipotesi. Revista de Estudos Literários, vol. 11, n. 2, Juiz de Fora, 2007, jul.–dez., p. 167–77. 9 A artista cita em seu artigo “O jornal e o esquecimento” (Op. cit., p. 172.) a frase de Nietzsche na qual o filósofo afirma que “apenas o que não cessa de doer permanece na memória”. 10 seligmann-silva, Márcio. “Escrituras da memória e da história”. In: Palavra e imagem: memória e escritura. Chapecó: Argos, 2006, p. 215–25. 11 lissovsky, Maurício. “O tempo e a originalidade da fotografia moderna”. In: doctors, Marcio (org.). Tempo dos tempos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. 12 Faço aqui referência ao título da exposição de Paul Strand, Olhar direto, organizada pelo Instituto Moreira Salles, em cartaz entre os meses de abril e julho de 2009. O título é referência aos dois momentos-chave da obra de Strand: quando o fotógrafo estava ligado ao movimento da fotografia modernista em seu país, a Straight Photography, e quando produzia retratos que aludiam ao lugar do fotógrafo através do olhar direto para a câmera. Cf; strand, Paul. Olhar direto. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles, 2009. Catálogo. 13 danziger, Leila. “O jornal e o esquecimento”. Op. cit., p. 172. 14 krauss, Rosalind. “O espaço discursivo da fotografia”. In: O fotográfico. Barcelona: Gustavo Gili Br, 2002, p. 40–59. 15 gunning, Tom. “O retrato do corpo humano: a fotografia, os detetives e os primórdios do cinema”. In: charney, Leo & schwartz, Vanessa, R. (orgs.). O cinema e a invenção da vida moderna. São Paulo: CosacNaify, 2001, p. 48. 16 Ibid., p. 57. 17 Ibid., p. 58.
164
165
Sem gaze nos olhos Wilton Montenegro
Descendo uma aleia do Parque Lage em di-
Por que uma porta semioculta? Estranha in-
reção ao que outrora pode ter sido uma ca-
terferência no espaço expositivo, essa porta/
valariça, ladeada pelo que outrora podem ter
passagem evidencia e propicia a necessidade
sido duas capelas; ante a primeira percebo
de solução: colocar um grande espelho incli-
duas amplas janelas góticas (a terceira não
nado para barrar a passagem, além de resolver
nos importará aqui) numa parede com tal-
esse problema, cria um jogo de espelhos escó-
vez mais de 50 cm de espessura. Ao entrar,
pico, I and eye multiplicando-me em outros, e
minha primeira constatação é de que a pro-
desdobra-se em algo que se possa tornar uma
fundidade das janelas desapareceu, oculta
rota de fuga, talvez passagem para alguma pe-
por dois grandes espelhos que acompanham
quena praça circular oculta em Veneza, com
seu desenho, e, como golpe imediato, apesar
portas que dão para diversos lugares no mun-
da perda da mirada para fora, essas janelas/
do, e só quem as conhece é um velho persegui-
espelhos constroem um interior muito mais
do pelos fascistas que ajuda Corto Maltese a
amplo, como se acabássemos de entrar no
escapar. Onírico.
museu de A invenção de Morel, construído para a “retenção das imagens que se formam
Ao lado da porta semioculta uma grande pro-
nos espelhos”. Oposta a essa parede, uma
jeção revela-se na falta de qualidade propo-
porta escondida atrás de um amplo espe-
sital para que não se perdesse certa inocên-
1
lho que a encobre apenas o suficiente para
cia e cumplicidade no ato de filmar: diversas
que se a entreveja. Antes que possamos dar
mulheres divertindo-se numa praia em Jaffa,
mais algum passo observador ao conjun-
onde a artista parecia apenas mais uma. “Meu
to das obras expostas, nos reconhecemos
abuso consiste em tê-los fotografado sem au-
refletidos no primeiro espelho, para logo em
torização”.2 Claro que, numa praia do Oriente
seguida sofrer um pequeno susto com a pre-
Médio, as mulheres que vemos são principal-
sença de mais alguém no espaço: alguém de
mente mulheres cobertas; cobertas com véus
costas – somos nós mesmos no contraespelho –
diversos, jogando bola na beira d’água; mães
Unheimlichkeit.
com crianças; a bela que passa, misteriosa,
166
de óculos escuros; a de cabelos soltos e roupa
processo de transferência de sentido. [Como
colorida – meio hippie – dançando; outra um
no texto/objeto:] Cada objetivo é construído
pouco mais deslocada, isolada mesmo, sen-
sobre o traço daquela perspectiva que ele ra-
tada num muro, dispersa, mirando sem mirar
sura; cada objeto político é determinado em
algum horizonte abissal – inevitabilidade e
relação ao outro e deslocado no mesmo ato
ausência; e sendo mirada pela artista – metavi-
crítico”.4
são e alteridade. De repente um pequeno grito, o som mais perceptível em todo o vídeo, uma
Sem olhos em Gaza é o título de um romance de
voz feminina adulta profere um nome em dire-
Aldous Huxley escrito em 1936 e ambientado
ção a duas crianças que brincam no mar: Eli...
na Europa dos anos 1930, em que o orgulhoso
e outro: Davi! Alerta ou invocação? Naquele lu-
personagem masculino é incapaz de perceber
gar em que todas as mulheres se divertem e pa-
os acontecimentos do entorno. O romance, por
recem livres entre si, uma cena de casamento:
sua vez, abre com uma citação do cego John
uma delas é entregue a um homem – a cerimô-
Milton, “Eyeless in Gaza at the Mill with Sla-
nia é bela e reveladora: sagração da primavera.
ves”, no poema Samson Agonistes, sobre o juiz
Tudo se confunde.
guerreiro comparado ao mito de Narciso, que acabou cego e aprisionado, traído por sua vai-
Algo une a imagem no espelho (eventualmente
dade.5 A essa incapacidade de ver contrapõe-se
a própria artista) à mulher na praia sentada no
a extremada e dolorida capacidade de visão da
muro: ambas são desaparecimentos. Oposta
artista, que se recusa a colocar qualquer véu
a elas, a mulher que filma, por sua vez, torna-
ante os olhos, produzindo, há alguns anos,
-se outro duplo: vigia e assombra: um deles,
em determinadas obras um processo de apa-
mais da ordem da estética, é o que tenta a ar-
gamento (veladura/desvelamento/revelação)
tista/vigia a incorporar-se ao mundo proibido
em que aflora o oculto por trás da rasura.
(só permitido à mulher), através das “imagens
“[...] o que se apaga habita o que se inscreve [...]
[que] não vivem. Ainda assim, me parece que,
jogo de presença/ausência, como jogo em
de posse desse aparelho, seria o caso de inven-
différance, que não se prende à oposição, mas
tar outro, que permita averiguar se as imagens
desliza nelas, uma requisitando a outra, uma
sentem e pensam – ou, ao menos, se têm os
como rastro da outra.”6 Assim o rastro é apaga-
pensamentos e as sensações que passaram
do, precisa ser; mas esse apagamento sempre
pelos originais durante a exposição”; o outro
deixa seu/outro rastro no tempo, do qual aflo-
assombra – é da ordem da política – ao impedir
ra o Ser sob rasura, sua própria questão. Não
toda negação e transcendência da diferença:
há diferença, salvo de suporte, entre o jornal
desloca o centro, descentra o eu e o Outro; des-
apagado e o tesouro familiar das agendas em
loca o tempo, não há mais passado e presente.
branco, ou das louças quebradas e das não
No vértice, o desejo.
usadas, ou entre botões guardados em peque-
3
nas caixas. As agendas em branco de diferenE algo mais ainda liga as mulheres e os apaga-
tes anos são montadas em páginas abertas em
mentos: na praia “cada posição é sempre um
dias de anos em que nada ocorreu na vida das
167
pessoas às quais as agendas se destinavam
que permite ler aquilo que ela oblitera, inscre-
e que permanecerão incógnitas, anônimas, vi-
vendo violentamente no texto aquilo que bus-
das em branco das quais não se sabe memó-
cava comandá-lo de fora...”, diz Derrida.8
ria. Tanto as louças como os botões, em determinado momento, servirão de elementos de
A inscrição no livro apagado instiga outra lei-
composição para uma memória mais ampla,
tura: ainda que o ex-texto possua inscrição e
dentro de quadros com imagens fotográficas.
leitura ocidental, da esquerda para a direita, e
Na arqueologia de alguns deles, afloram cacos
a figura inscrita caminhe no mesmo sentido –
ou uma pequena torá (“minha torá”, disse ela)
ereta, desafiante –, ela anda sobre, sobreposta
da areia contida dentro, mas cujo destino ine-
ao racismo, em direção à África, como a afirmar
vitável é escorrer pelas frestas. Já esses botões
certo orgulho de sua condição rebelde: Rache. O
constituem uma estranha parábola paradoxal:
desenho na página aberta é um contorno qua-
num sistema de classificação singular – da
se sem estilo que sugere a demissão da mão:
própria família – hesitam entre permanecer
ali é o território de todos os conflitos. Todavia,
um pequeno tesouro ou aparentar-se com
nos apagamentos de jornais, eventualmente a
uma espécie de migrantes encaixotados que
mesma figura caminha no sentido inverso; al-
jamais conheceram suas próprias casas: união
guns dos jornais apagados têm leitura oriental,
na dispersão.
da direita para a esquerda, outros, ocidental, e as inserções ocupam diferentes planos, similar
“Minha torá”, disse-me ela. Fazer um livro sa-
a uma página de Mallarmé no Un coup de dés,9
grado. Mas todo texto é constituído por outros
porém com o acréscimo de poderem ser visual-
textos, não tem corpo próprio, donde não ter
mente lidos também de baixo para cima, ou em
autor, origem, propriedade intelectual; é antes
qualquer diagonal, ou ainda em qualquer outra
de tudo a soma do já ouvido ou lido – e assim
ordem, leitura en abîme, desfalecendo, Abgrund,
é em cada escrito e em todos os antecedentes,
em estupor ante o abismo.10 Esse encontro de
e aos quais o nosso se irá juntar – ainda que
Ocidente e Oriente não ocorre linear, historica-
disso não tenhamos conhecimento conscien-
mente, mas de outras maneiras aqui e em toda a
temente. Como a duvidar de sua própria afir-
sua obra, tempo multíplice, temporalidade.
mação, dessacraliza inscrevendo, por cima do apagamento de um livro racista, Banzo, de
Quando a visibilidade histórica já se
Coelho Neto, um desenho – parece gravado a
apagou, quando o presente do indicativo
fogo na carne do livro –, um carimbo que de-
do testemunho perde o poder de capturar,
nuncia a condição escrava (ainda?, talvez ela se
aí os deslocamentos da memória e as
pergunte) e desloca o conceito que não se dei-
indireções da arte nos oferecem a imagem
7
xa apropriar, pertencer, que testemunha um
da nossa sobrevivência psíquica. Viver
desenraizamento, mesmo que a diferença do
no mundo estranho [...] encontrar sua
completamente outro nunca possa ser anula-
separação e divisão representadas na obra
da: “Sim, por meio desse duplo jogo, marcado
de arte, é também afirmar um profundo
em certos lugares decisivos, por uma rasura
desejo de solidariedade social.11
168
No vídeo Pallaksch Pallaksch, há uma cena em
trem que seguia – a vida toda – para o norte.”12
que uma página de jornal é levada pelo vento,
As palavras lembrar/esquecer dão título à obra
creio, e em determinado momento o que se vê
na qual estão escritas sobre jornais apagados.
são enormes manchas escuras com a forma dos
De dentro da rasura, recusando a camuflagem,
continentes entremeadas com as manchas de
“pela moldura da porta/ vejo seu contorno [...]
texto: parece uma camuflagem. “Eu sou aque-
em algum lugar, chamam pelo nome que cos-
la que esqueceu a máquina fotográfica em um
tuma ser o [s]eu”:13 Leila Danziger.
bioy casares, Adolfo. A invenção de Morel. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 83. Tradução de Samuel Titan Jr. Ibid., p. 79. 3 Ibid., p. 97. 4 bhabha, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da ufmg, 2010, p. 53. Tradução de Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis e Gláucia Renate Gonçalves. 5 huxley, Aldous. Sem olhos em Gaza. São Paulo: Globo, 2001, p. 7. Tradução de V. de Miranda Reis. 6 continentino, Ana Maria Amado. “A alteridade no pensamento de Jacques Derrida: escritura, meio luto, aporia”. Tese de doutoramento em Filosofia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2006, p. 39. 7 coelho neto, Henrique Maximiano. Banzo. Porto: Lello & Irmão Editores, 1912. 8 Jacques Derrida citado em continentino, Ana Maria Amado. “A alteridade no pensamento de Jacques Derrida: escritura, meio luto, aporia”. Op. cit., p. 21. 9 mallarmé, Stéphane. Un coup de dés jamais n’abolira le hasard. Paris: Gallimard, 1997. 10 Talvez Lukács tivesse razão sobre a Escola de Frankfurt parecer estar hospedada no Grande Hotel Abgrund. Afinal, logo após, a Europa entrou em sua grande noite abissal. 11 bhabha, Homi K. O local da cultura. Op. cit., p. 42. 12 danziger, Leila. Três ensaios de fala. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p. 29. 13 Ibid., p. 25–6. 1 2
169
170
Nomes pr贸prios (fragmento) [1998] Serigrafia sobre papel de arroz, papel Hahnem眉hle, guache e folha de cobre 52 x 25 cm
Nomes próprios (livro) [1998] (páginas 172–173) Nomes próprios (detalhe) [1996] Fotogravura sobre papéis diversos, grafite e óleo de linhaça 240 x 400 cm Coleção Thomas Cohn, São Paulo
Fotogravura e serigrafia sobre papéis diversos, óleo de linhaça, grafite e encadernação 28 x 40 cm (aberto) 32 páginas Acervo Frauen Museum, Bonn, Alemanha
Ciranda [1998] Museu de Arte Contempor芒nea, Niter贸i
Para Josepha Gutman [1998] Serigrafia sobre papéis diversos, óleo de linhaça e grafite 48 x 80 cm 16 páginas Acervo Frauen Museum, Bonn, Alemanha (página 179) Würzburg [1998] Serigrafia sobre papéis diversos, óleo de linhaça e grafite 48 x 80 cm 24 páginas Mesa de madeira e lâmpada elétrica Galeria Thomas Cohn, São Paulo
Würzburg [1998] Serigrafia sobre papéis diversos, óleo de linhaça e grafite 48 x 80 cm 24 páginas Mesa de madeira e lâmpada elétrica (página 181 / parte superior) Para Josepha Gutman #1, (díptico) [1998] Serigrafia sobre papel de algodão, óleo de linhaça e intervenção manual 84 x 52 cm (página 181 / parte inferior) Para Josepha Gutman #2, (díptico) [1998] Serigrafia sobre papel de algodão, óleo de linhaça e intervenção manual 84 x 52 cm
Würzburg [2000] Serigrafia sobre papéis diversos, óleo de linhaça e intervenção manual 70 x 208 cm
Josepha! Ruth! NoĂŤmi! Miriam! [2003]
Greifswalder Strasse 138 [2003]
Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aço
Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aço
85 x 40 cm
170 x 40 cm
Wann [2003] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aรงo 170 x 40 cm Oh quand refleuriront, oh roses, vos septembres? [2003] Carimbo sobre jornais apagados e pregadores de aรงo 170 x 40 cm
Vista do ateliĂŞ, janeiro de 2003
Greifswalder Strasse 138 [2003] Fotogravura e carimbo sobre jornais apagados Dimensões variáveis IFA-Galerie, Berlim, Alemanha
Ruth Nube, autora do artigo “Spurensuche: Kinderort, Greifswalder Strasse 138”, publicado no jornal Der Tagespiegel, em 11 de outubro de 1994, que deu origem à série de trabalhos dedicados a Josepha Gutman IFA-Galerie, Berlim, Alemanha
PARA PAUL CELAN
191
A língua paterna Leila Danziger Todos os nomes, todos os nomes incinerados juntos. Tanta cinza para abençoar. Tanta terra conquistada sobre os leves, tão leves Anéisalmas. Chymisch, Paul Celan1
Nascida no Rio de Janeiro, na década de 1960,
Em “Discurso de Bremen”, Celan evoca sua
herdei de modo particular a língua alemã. Não
paisagem de origem, o lugar natal dos con-
como linguagem comunicativa, destinada a
tos hassídicos, trazidos para o idioma alemão
criar laços com o cotidiano e os familiares,
por Martin Buber. Originário da Mitteleuropa
tampouco com o passado, em momentos de
como Kafka e Canetti, Celan nunca foi cida-
comemorações. Herdei a língua alemã como
dão alemão. Mesmo a política de extermínio
uma espécie de monumento – opaco, estanque,
e a violência manifesta na linguagem admi-
supostamente desativado –, sinalizando sobre-
nistrativa do Terceiro Reich (repleta de perí-
tudo perdas, e mesmo estas permaneceriam
frases e eufemismos que visavam silenciar os
infensas à rememoração.
crimes) foram incapazes de fazê-lo abandonar a língua materna. Reconhecendo o cará-
“Não vejo diferença de princípio entre um aper-
ter degradado da língua alemã e negando-se
to de mão e um poema”, escreveu Paul Celan.
simplesmente a não mais pronunciá-la, Celan
Poemas são encontros. “Poemas são também
afirma o esforço daquele que vai à língua com
presentes – presentes aos atentos. Presentes
seu ser “ferido de realidade e em busca de
que levam consigo um destino.” Sem exage-
realidade.”3 A complexa adesão à língua alemã
ros, posso dizer que a poesia de Celan reati-
é afirmada de modo radical:
2
vou esse monumento sonoro – a língua alemã –, misto de familiaridade e profunda estranheza,
Alcançável, próximo e não-perdido
reabilitando-me lentamente, de modo crítico,
permaneceu em meio às perdas este único:
à língua paterna. Simultaneamente, orientou a
a língua. Ela, a língua, permaneceu não-
busca de realidade – o atrito do mundo – sem o
-perdida, sim, apesar de tudo. Mas ela teve
qual o trabalho em artes plásticas fecha-se em
de atravessar as suas próprias ausências
purismos ou perde-se em virtualidades.
de resposta, atravessar um emudecer,
192
atravessar os milhares de terrores e o
linguagem é o nome próprio – “ponto em que a
discurso que traz a morte. Ela atravessou
linguagem humana atinge a mais íntima par-
e não deu nenhuma palavra para aquilo
ticipação na infinitude divina da palavra pura
que ocorreu; mas atravessou este ocorrido.
e simples, o ponto em que não pode tornar-se
Atravessou e pôde novamente sair
palavra finita nem conhecimento”.8 O nome,
“enriquecida” por tudo aquilo.4
fechando-se ao caráter instrumental, não comunicando nada além de si mesmo, detém a
Convivo com a poesia de Paul Celan desde 1987.
dimensão criadora da linguagem. Também
Se o idioma pouco a pouco perdeu opacidade,
Flusser afirma:
a poesia resiste a entregar-se. Tenho seguido o conselho do poeta oferecido a Israel Chalfen,
Os nomes próprios são tirados do caos
quando este pediu-lhe que interpretasse um
do vir-a-ser para serem postos para cá
poema: “Leia! Continuamente apenas leia, a
(hergestellt), isto é, para serem postos para
compreensão vem por si mesma.” Lembro-me
dentro do intelecto. Tirar para por para cá
5
também da advertência de Gadamer sobre os
se chama, em grego, poiein. Aquele que
perigos de interpretações exaustivas. Uma in-
tira para propor, aquele que “produz”,
terpretação é correta apenas quando termina
portanto, é o poietés. A atividade do
por se apagar, sendo completamente integrada
chamar, a atividade que resulta em nomes
a uma nova experiência do poema. À pergunta
próprios, é, portanto, a atividade da
“O que deve saber o leitor de Celan?” responde o filósofo: ele deve saber tanto quanto possa
intuição poética. [...] Os nomes próprios são produto da poesia.9
suportar. Deve saber o que seu ouvido poético seja capaz de ouvir sem ensurdecer. Frequen-
O apelo ao nome é constante na poesia de
temente será bem pouco, mas será melhor que
Celan. Em “Conversa na montanha”, cena cre-
se souber em excesso.6
puscular em que“o sol, e não apenas ele tinha se posto”,10 o judeu atravessa a paisagem pos-
Comecei a ler Celan em traduções francesas,
suindo apenas um bordão e“seu nome, o in-
tentando confrontar-me com o texto em ale-
dizível” [“sein Name, der unaussprechliche”]
mão, procurando suas vias de acesso, como
Mas até mesmo seu estranho nome de judeu
os pronomes pessoais ich/du e os inúmeros
– bem único, marca de alteridade – está conde-
nomes próprios: Marianne, Sulamith, Ruth,
nado, como todo o universo ao qual pertence,
Brest, Bretagne, Mandelstam. Estes efetiva-
ao desaparecimento ou, em termos mais exa-
mente rompiam a opacidade do poema em
tos, ao extermínio.
alemão, possibilitando a sentença de Vilém Flusser: “O nome próprio, incrustado dentro
“Chymisch”, poema do livro [Die Niemandsrose
do verso como um diamante dentro do miné-
[A rosa-de-ninguém], tem início com a evoca-
rio, cintila.” O pensamento de Flusser estabe-
ção de um sacrifício: “Silêncio, como ouro
lece continuidade com a filosofia da linguagem
cozido,/ em mãos/ carbonizadas” – e prosse-
de Walter Benjamin, para quem a essência da
gue pela queima de nomes: “Todos os nomes,
7
193
todos os/ nomes incinerados/ juntos. Tanta/
judaico-alemão, produto ainda do universalis-
cinza para abençoar. Tanta/ terra conquistada/
mo e tolerância iluministas. No texto “Proust e
sobre/ os leves, tão leves/ Anéis-/almas.” Este,
os nomes”, Roland Barthes afirma que:
entre tantos outros poemas de Celan, adquiriu ainda mais sentido quando encontrei, em
o nome próprio é um signo, e não um
1994, a imensa listagem dos judeus alemães
simples indício que designaria sem
assassinados pelos nazistas. Ver meu nome
significar [...]. Como o signo, o nome
de família impresso dezenas de vezes fez com
próprio se oferece a um deciframento: ele
que o percebesse de modo particular. Deu-lhe
é ao mesmo tempo um ‘meio’ (no sentido
peso, densidade e um particular senso de res-
biológico do termo), no qual é preciso
ponsabilidade.
mergulhar, banhando-se indefinidamente em todos os devaneios que ele traz, e
Comecei então a conviver com estes nomes, lê-
um objeto precioso, comprimido,
-los, relê-los de modo a dar-lhes inicialmente
embalsamado, que é preciso abrir como
vida na memória, repeti-los como uma espé-
uma flor.12
cie de litania. A quase total ausência de nomes considerados tipicamente judaicos parece
Recusado o lirismo da citação de Barthes, terri-
testemunhar a certeza tranquila na cidadania
velmente deslocado em relação aos nomes dos
alemã, adquirida ao cabo de um longo proces-
judeus assassinados, ainda podemos aceitar a
so. Na série Nomes próprios, quis dar materia-
sugestão de neles imergir como num “meio”,
lidade aos nomes, resgatá-los da morte anôni-
mergulhando-se assim em camadas de histó-
ma e serial, expressa pela repetição da palavra
ria, a densidade que faz pulsar esses corpos de
verschollen [desaparecido], destino da maioria
ausências, que são os nomes dos deportados.
dos deportados. “Desaparecido” significa as-
Como explica Hannah Arendt, um dos aspec-
sassinado, carbonizado, transformado em fu-
tos mais fascinantes da história judaica é o fato
maça, disperso no ar: “Ninguém nos molda de
de que os judeus tomaram parte ativa na his-
novo da terra e do barro,/ ninguém evoca nosso
tória europeia precisamente porque eram um
pó./ Ninguém./ Louvado sejas, Ninguém”.11
elemento intereuropeu e não nacional, em um mundo no qual só as nações existiam ou esta-
As gravuras e livros-objetos que integram a
vam a ponto de surgir.13 Também no verbete
série Nomes próprios buscam reinscrever os
“juif” da Encyclopédie, de Diderot e D’Alembert,
nomes das vítimas no tempo e no espaço, dar-
os judeus figuram como elemento de ligação e
-lhes aquilo que perderam: corpo. Mas a única
equilíbrio entre as nações.14
corporeidade possível para estes que foram um dia plenos de vida e densidade é a forma da
Nomes-rostos
ausência. O trabalho instala-se justamente na
Trabalhar com meu próprio sobrenome – os
tentativa de fazer pulsar a ausência, potenciali-
76 Danziger encontrados nas páginas 241 e
zá-la, atestar a atualidade dos nomes nos quais
242 do Livro da memória da comunidade ju-
se inscreve o trágico desfecho do “amálgama”
daico-alemã – significa questionar a força de
194
atração, o poder latente da ausência, compre-
ada pelo desejo de refletir a própria estrutura
endida como força organizadora e operante.
da memória: instável, formada por sedimen-
Ao contrário de países europeus, onde possuir
tos, falhas, irrupções abruptas e obscuridades.
sobrenome estrangeiro significa e, claro, com
Com cada um dos nomes, acompanhados das
frequência segrega, em nosso país podemos
breves informações sobre suas origens e desti-
nos chamar como queremos. Sobrenomes de
nos, foi feita uma matriz de gravura em metal.
origem não lusitana conferem certo prestígio
As 76 matrizes, por sua vez, foram impressas
abstrato, mas não chegam propriamente a sig-
em papel impregnado por óleo de linhaça.
nificar. (O que aconteceu com os nomes dos
As gravuras formam uma superfície compacta
índios e dos africanos trazidos como escra-
de 400 x 220 cm. Nem pedra nem bronze, os
vos?) Nomes não nos aprisionam, tampouco
nomes ganham corpo em camadas de papel,
nos liberam. Na verdade, levitamos num teci-
material frágil e sensível à passagem do tempo.
do histórico frágil e incipiente que nos deixa vulneráveis à construção de identidades ofi-
Em processo contínuo, à série Nomes próprios acrescentaram-se livros que, despojados de
ciais e postiças.
função explicitamente comunicativa, enfatiConsidero os nomes próprios densos núcle-
zam o aspecto sensível dos materiais. Cada um
os de sentido. Em sua soberania, resistem à
desses livros-objetos parte de um documento
manipulação, recusam a tornar-se coisas, são
(texto, artigo de jornal ou fotografia) e pretende
como faces humanas: “[...] os nomes de pesso-
conferir-lhe – pela gravura, entre outras opera-
as, cuja ‘afirmação’ significa um semblante – os
ções – nova materialidade. A necessidade de re-
nomes próprios no meio de todos esses nomes
verter o caráter volátil que as imagens adquirem
e lugares comuns – não resistem à dissolução
nos meios de comunicação de massa é o que
do sentido e não nos ajudam a falar?”15 Para
me faz acentuar os dois polos do trabalho em
Emmanuel Lévinas, o rosto é inviolável.
gravura: por um lado, a elaboração da matriz e,
Os olhos, inteiramente desprotegidos, são a
por outro, a de suportes sensíveis à recepção da
parte mais nua do corpo humano, mas ofere-
imagem gravada. Queria dar corpo e espessura
cem resistência absoluta à posse, resistência
às imagens, mas percebo que evidencio ainda
absoluta em que se inscreve a tentação do as-
mais sua fragilidade, seu caráter incorpóreo e,
sassinato: a tentação de uma negação absoluta.
desse modo, elas continuam existindo apenas
“Essa tentação do assassinato e essa impossi-
na superfície das coisas. Queria uma imagem-
bilidade do assassinato constituem a própria
-cicatriz e me deparo com a imagem-membrana.
visão do rosto.” Ver um rosto significa ouvir de
A gravura não impõe sua presença na matéria
imediato: “Não matarás.”
espessa do papel, não ganha o combate, não
16
leva a melhor. O papel permanece mais real do
Nomes-monumentos
que a imagem. (É constante o sentimento de
A lista de nomes com os 76 Danziger surgiu
tentar pescar uma baleia com um anzol de pes-
como num encontro marcado – imediato apelo
ca, de ter acesso apenas a instrumentos frágeis
ao testemunho. A série de trabalhos é perme-
diante de um real brutal e opaco.)
195
De caráter interminável, os livros parecem
que atravessa os jornais e organiza o espaço.
sempre à espera de mais um gesto de acrés-
Greifswalder Str. 138 surge da contínua reim-
cimo ou subtração. Entregues ao contato e ao
pressão dos textos de Gutmann e Nube, ten-
manuseio, são organismos vivos, submetidos
tativa de atualizá-los e dar continuidade ao
às transformações do tempo. Construindo-
trabalho de memória que se fixa precaria-
-se em camadas, parecem dotados de poder
mente em breves configurações de imagens e
de absorção, voltando-se sobre si mesmos.
palavras. Esses textos funcionam, por sua vez,
Alimentam-se, não obstante, de mundo e de
como polos que atraem outros testemunhos,
história, conjugam interior e exterior, público
outras camadas de textos, como extratos de
e privado, pessoal e coletivo. A expansão dos
poemas de Celan inseridos em continuidade
livros continuou nas mesas de madeira, que
com o texto epistolar de Gutmann, ou apenas
de meros suportes passaram a constituir ati-
com seu nome, declinado nos diminutivos
vamente o trabalho. Como se um poderoso
com que assina suas cartas – Josepha, Sephie,
processo de erosão tivesse decomposto os
Sephinka. Como não ouvi-los no chamado di-
livros que não existem apenas “sobre” as me-
rigido a Ruth, Noëmi e Mirjam, em In Ägyten?
sas e sim delas se apoderam e interferem em
“Você deve chamá-las das águas: Ruth, Noëmi,
sua estrutura e substância. A poética de Celan
Mirjam!” [“Du sollst sie rufen aus dem Wasser:
sempre no horizonte: “Na longa mesa do tem-
Ruth! Noëmi! Mirjam!”]20 Talvez um subtítulo
po/ embebedam-se os cântaros de Deus/ Eles
para esse trabalho seja Landschaft mit Urnenwe-
esvaziam os olhos de quem vê e os olhos de
sen [Paisagem com urnas-vivas],21 pois com-
quem não [...].”
preendo os jornais como paisagens minadas
17
por urnas, arcas, núcleos de sentido que são
“Pallaksch. Pallaksch.”
os nomes próprios e as palavras com força de
A poesia de Celan esteve ainda presente na
testemunho. Ao substituir a linguagem jorna-
instalação Greifswalder Str. 138, realizada em
lística pela poesia e pelo texto de testemunho,
março de 2003. O trabalho parte de um artigo
creio simplesmente seguir orientações presen-
18
do jornal Tagespiegel, escrito por Ruth Nube,
tes em “Tübingen, Janeiro”, poema-referência
moradora de Berlim, a partir da correspondên-
aos anos de isolamento de Hölderlin, no qual
cia entre seu pai e uma jovem educadora as-
Celan sugere que a língua da atualidade seria
sassinada em Auschiwtz, aos 24 anos: Josepha
um contínuo balbuciar:
Gutmann. O título remete ao endereço onde 19
funcionou, entre 1938 e 1942, um abrigo para
(...)
crianças judias mantido por Gutmann. Nesse
Viesse
trabalho quis “devolver” o artigo ao fluxo dos
viesse um homem
jornais, mas jornais apagados, literalmente
viesse um homem ao mundo, hoje, com
descascados e esvaziados, inutilizados em
a barba de luz dos
sua função informativa. Trata-se de reimpri-
Patriarcas: ele poderia
mir a voz de Josepha Gutmann, reportada por
se falasse ele deste
Ruth Nube, transformá-la em moto-contínuo
tempo, ele
196
poderia
dos sons que articulava –, o menino aparenta-
apenas balbuciar e balbuciar
va três anos; mesmo doente e paralisado, ten-
sempre –, sempre –,
tava desesperadamente aprender a língua dos
continuamente.
homens. Suas experiências com a linguagem detêm, por breves instantes, caráter redentor e
(”Pallaksch. Pallaksch.”)
22
transformam aquela barraca do campo de extermínio em uma Torre de Babel:
Celan confere assim forma poética contundente às aporias do testemunho: tentar falar
De noite ficávamos de ouvido bem abertos:
deste mundo marcado por tantas catástrofes
era verdade, do canto de Hurbinek vinha
resulta numa fala traumatizada, uma contínua
de quando em quando um som, uma
‘lalação’ – lallen und lallen –, sem que se apre-
palavra. Não sempre exatamente a mesma,
sente a possibilidade de desistir desta “tarefa
para dizer a verdade, mas era certamente
infinita”, orientada pelo compromisso ético de
uma palavra articulada; ou melhor,
despertar para uma realidade sempre dolorosa.
palavras articuladas ligeiramente diversas,
Ao relatar a experiência de um curso de pós-
variações experimentais sobre um tema,
-graduação em Yale dedicado à literatura de
uma raiz, sobre um nome talvez.
testemunho, Shoshana Felman cita o depoimento de um homem e menciona entre parên-
Hurbinek continuou, enquanto viveu, as
teses que “não era judeu”:
suas experiências obstinadas. Nos dias seguintes, todos nós o ouvíamos em
A literatura tornou-se para mim o lugar
silêncio, ansiosos por entendê-lo, e havia
de minha própria gagueira. A literatura
entre nós falantes de todas as línguas
como aquilo que pode testemunhar
da Europa; mas a palavra de Hurbinek
sensivelmente o Holocausto, me dá a voz,
permaneceu secreta. Não, não devia
o direito e a necessidade de sobreviver.
ser uma mensagem, tampouco uma
Porém, não posso descartar a literatura
revelação: era talvez o seu nome, se tivesse
que, no escuro, acorda os gritos, que abre
tido a sorte de ter um nome [...].24
as feridas e me faz querer cair em silêncio. Arrebatado por dois desejos contraditórios
Talvez seja essa palavra secreta, esse nome
e simultâneos, falar ou não falar, consigo
para sempre desconhecido, que Primo Levi
apenas gaguejar.23
discernia na poesia de Celan, comparada, pelo escritor italiano, a um balbuciar inarticulado
A fala balbuciante, instalada entre a urgência
ou ao murmúrio de um moribundo.25 O meni-
e a impossibilidade, nos lembra Hurbinek,
no Hurbinek encarna simultaneamente estes
uma criança de Auschwitz cujo único indício
dois polos: o inaugural e o agônico. Sua fala,
de vida é o testemunho deixado por Primo Levi
transcrita por Levi (mass-klo, matisklo), man-
em A trégua. Chamado pelos próprios prisio-
tém intacta, apesar do esforço de “todas as lín-
neiros de Hurbinek – nome sugerido a partir
guas da Europa”, a opacidade original.26
197
Mas na poesia de Celan podemos talvez discer-
diminuiu nos últimos 35 anos,
nir ainda algo do “som vivo” da língua alemã,
tornou-se maior. [...]
em sua nova atualidade obscurecida e fraturada. Pois não era justamente o “som vivo” que
Para muitos de nós, o som vivo que os
Gershom Scholem tanto admirava na tradução
senhores procuravam evocar na língua
alemã da Bíblia, trabalho de Martin Buber e
alemã desvaneceu-se, surgirá alguém para
Franz Rosenzweig? Enquanto a tradução de
recuperá-lo?29
Moses Mendelssohn, no final do século xviii, foi o “Portal” pelo qual os judeus ingressa-
Ao continuar a escrever poesia na língua mar-
ram no espaço da língua alemã, a de Buber e
cada “pelos milhares de trevas de discursos
27
Rosenzweig sela o término brutal, mais cruel
que trazem a morte” [“die tausend Finsternisse
do que qualquer prognóstico, do chamado
todbringender Rede”], Celan restitui-lhe certa
“amálgama” judaico-alemão. Concluída ape-
humanidade e a devolve – “enriquecida”, em
nas por Buber – Rosenzweig morre em 1929 –,
toda a complexidade do termo – aos judeus e
a obra é saudada por Gershom Scholem em ter-
aos alemães (sejam eles europeus, turcos ou
mos que lembram um Kaddish, a prece judaica
ainda todos que reivindicam a língua alemã
pelos mortos. Quando a tradução teve início,
para si mesmos).
a obra de Buber e Rosenzweig era “uma espécie de presente que o judaísmo alemão deu
Em um poema de Atemwende, Celan fala de
ao povo alemão, um ato simbólico de aptidão
“nossos nomes” modelados de miolo de pão:
após sua partida. E que presente dos judeus à
“De suas migalhas/ você modela de novo nossos
Alemanha poderia ser tão pleno do significado
nomes” [“Aus seiner Krume/ knetest du neu uns-
histórico como a tradução da Bíblia?” A Shoá,
re Namen”].30 Fascinante neste poema, entre
contudo, transmuta o presente simbólico da
outros aspectos, é a materialidade e a plastici-
tradução na lápide “de um relacionamento
dade do nome. Se é inevitável, lembra Gadamer,
que se extinguiu em horror indescritível.” En-
a associação com a passagem do Gênesis, sem
dereçando-se a Buber, pergunta Scholem:
contar ressonâncias com o misticismo judai-
28
co,31 cabe ressaltar que os nomes são feitos não
198
Os judeus para quem os senhores
de barro, mas de pão, já produto do trabalho
traduziram não mais existem. Seus
humano. No poema, a tarefa de nomear consti-
filhos, que escaparam deste horror,
tui-se numa operação material e concreta. Tra-
não mais lerão o alemão. A própria
ta-se aqui do nome próprio, aquilo que nos é
língua alemã sofreu profunda
concedido ao nascer, mas que deverá ser cons-
transformação nesta geração, [...].
truído ao longo da vida, in-formado, modelado
E ela não se desenvolveu na direção
e remodelado, em uma tarefa certamente in-
daquela utopia linguística a que seu
findável. Em um projeto mais amplo, gostaria
empreendimento empresta testemunho
justamente de dar forma, de realizar no “real”
tão impressionante. O contraste entre
estético, algumas das aporias que as imagens
a língua de 1925 e sua tradução não
poéticas de Celan verbalmente constroem.
Publicado em finazzi-agró, Ettore & vecchi, Roberto (orgs.). Formas e mediações do trágico moderno. São Paulo: Unimarco Editora, 2004, p. 41–52. 1 “Alle die Namen, alle die mit-/ verbrannten/ Namen. Soviel/ zu segnende Asche. Soviel/ gewonnenes Land/ über/ den leichten, so leichten/ Seelen-/ Ringen.” celan, Paul. “Chymisch”. In: Ausgewählte Gedichte. Frankfurt: Suhrkamp, 1968, p. 80. 2 celan, Paul. “Carta a Hans Bender”. In: Cristal. São Paulo: Iluminuras, 1999, p. 166. 3 celan, Paul. “Ansprache anlässlich der Entgegennahme des Literaturpreises der Freien Hansestadt Bremen”. In: Ausgewählte Gedichte. Op. cit., p. 129. 4 citado em seligmann-silva, Marcio. “A história como trauma”. In: nestrovski, Arthur & seligmann-silva, Marcio (orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000, p. 95–6. 5 chalfen, Israel. Paul Celan. Eine Biographie seiner Jugend. Frankfurt: Suhrkamp, 1983, p. 7. 6 gadamer, Hans-Georg. “Postface”, In: Qui suis-je et qui est-tu? Commentaire de Cristaux de Souffle de Paul Celan. Arles: Actes Sud, 1987. 7 flusser, Vilém. A dúvida. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1999, p. 67. 8 benjamin, Walter. “Sobre a linguagem em geral e sobre a linguagem humana”. In: Sobre arte, técnica, lingua gem e política. Lisboa: Relógio d’Água, 1992, p. 187. 9 flusser, Vilém. A dúvida. Op. cit., p. 65. 10 celan, Paul. “Conversa na montanha”, Inimigo Rumor, n. 8, Rio de Janeiro, 2000, p. 66. Tradução de Vera Lins. 11 celan, Paul. “Salmo”. In: Cristal. Op. cit., p. 95. 12 barthes, Roland. “Proust et les noms”. In: Le degré zero de l’écriture. Paris: Seuil, 1972, p.125. 13 arendt, Hannah. “Sur l’antisemitisme”. In: Les origines du totalitarisme. Paris: Seuil, 1984, p. 62. 14 In: pons, Alain (ed.) Encyclopédie ou Dictionnaire des sciences des arts et des métiers (articles choisis), vol. 2. Paris: Garnier-Flammarion, 1986, p. 204. 15 lévinas, Emmaunel. Noms propres. Paris: Fata Morgana, 1976, p. 9. 16 lévinas, Emmaunel. Difficile liberté. Paris: Albin Michel, 1976, p. 21. 17 celan, Paul. “Os cântaros” [Die Krüge]. In: Cristal. Op. cit., p. 41. 18 Greifswalder Str. 138 integrou a exposição Bilder des Erinnerns und Verschwindens [Imagens do lembrar e do desaparecer], realizada na galeria do Instituto de Relações com o Exterior (Ifa-Galerie), em Berlim. 19 nube, Ruth. “Spurensuche: Kinderhort, Greifswalder Str. 138. Eine Berlinerin fand in alten Briefen ihres Vaters Hinweise auf eine ermordete jüdische Erzieherin und ihre Kinder”, Der Tagespiegel, Berlin, Stadtleben, 11 de outubro de 1994, p. 10. 20 celan, Paul. Ausgewählte Gedichte. Op. cit., p. 21. 21 “Landschaft mit Urnenwesen./ Gespräche/ von Rauchmund zu Rauchmund.” Ibid., p.114. Os textos de Josepha Gutmann, Ruth Nube e Paul Celan foram impressos com carimbos sobre jornais alemães literalmente “descascados” com fita adesiva. 22 “Käme,/ käme ein Mensch,/ käme ein Mensch zur Welt, heute, mit/ dem Lichtbar der Patriarchen: er dürfte,/ spräch er von dieser/ Zeit, er/ dürfte/ nur lallen und lallen,/ immer-, immer-/ zuzu.// (“Pallaksck. Pallaksch.”). celan, Paul. In: La rose de personne. Paris: Le Nouveau Commerce, p. 40. 23 felman, Shoshana. “Educação e crise, ou as vicissitudes do ensinar”. In: nestrovski, Arthur & seligmann -silva, Marcio (orgs.). Catástrofe e representação. Op. cit., p. 70–1. 24 levi, Primo. A trégua. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 30. 25 Primo Levi (Le métier des autres) citado em agamben, Giorgio. Ce qui reste d’Auschwitz. Paris: Payot, 1999, p. 45. 26 Hurbinek remete-nos certamente a Kazik, um dos personagens do romance Ver: amor, de David Grossman. Morador do Jardim Zoológico de Varsóvia, seus 64 anos de vida desenrolam-se ao longo de um único dia, “contado” na forma de verbetes enciclopédicos que constroem, na verdade, um labirinto ou uma “antienci clopédia”: “[...] Kazik morreu às 18h27, 21 horas e 27 minutos após ter sido trazido ao zoológico, recém -nascido. Estava então, segundo o cálculo de seu tempo especial, com 64 anos e se suicidou.”. Cf. grossman, David. Ver: amor. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 322. 27 benjamin, Walter. “Juden in der deutschen Kultur”. In: Gesammelte Schriften, Band ii, 2. Frankfurt: Suhrkamp, 1980, p. 807. 28 scholem, Gershom. O Golem, Benjamin, Buber e outros justos: Judaica I. São Paulo: Perspectiva, 1994, p. 45. 29 Ibid., p. 45. 30 celan, Paul, “Von ungeträumten geätzt”, citado em gadamer, Hans-Georg. Qui suis-je et qui est-tu? Commen taire de Cristaux de Souffle de Paul Celan. Op. cit., p. 24. 31 Ibid., p. 26.
199
200
Destroços Leila Danziger
dessa vez
todos os nomes
creio que o início de tudo
impronunciáveis
foi a persiana que esqueci aberta
derretidos
deixando que o sol esquentasse
fundidos
em minha ausência furiosamente
aos jornais
dias e dias
que cresceram como erva daninha
os versos de Celan
em minha ausência
acumulados sobre a mesa
furiosamente dias e dias
as palavras de madeira e borracha
a linguagem informativa acumulada em pilhas
os carimbos
que era preciso desfazer
começaram a derreter e a gaguejar
esvaziar
– lallen und lallen –
apagar
balbuciar e repetir
erodir a matéria-jornal
: destroços celestes
turvá-la de poesia
: cinza-e-cinza Ho-sana anéis-almas
de uma forma não prevista no início do projeto que queria apenas escavar e manobrar
mas percebi – surpresa –
os versos
o desastre
como se faz com a própria
o desvio
terra-areia-ar-eu-você-Ossip-Marina
tudo fora feito
e tantos outros nomes
sem mim
Publicado em Inimigo Rumor. Revista de Poesia, n. 20, São Paulo/Rio de Janeiro, 2008, p. 183–84. E, posterior mente, em danziger, Leila. Três ensaios de fala. Rio de Janeiro: 7Letras, 2012, p. 15.
201
202
Para Paul Celan (babble and babble) [2007] Impressão fotográfica sobre papel de algodão 45 x 60 cm
Para Paul Celan (Todos os nomes #1) [2007] Impressão fotográfica sobre papel de algodão 45 x 60 cm Para Paul Celan (Ruth! Noëmi! Miriam!) [2007]
Para Paul Celan (Todos os nomes #2) [2007]
Impressão fotográfica sobre papel de algodão
Impressão fotográfica sobre papel de algodão
45 x 60 cm
45 x 60 cm
Pallaksch Pallaksch (díptico) [2011] Impressão fotográfica sobre papel de algodão Tel Aviv, Israel
Série um poema e um talit [2009] Impressão fotográfica sobre papel de algodão 80 x 60 cm
Série um poema e um talit [2009] Impressão fotográfica sobre papel de algodão 80 x 60 cm Imagens produzidas para a revista Devarim, da Associação Religiosa Israelita (A.R.I.), n. 9, Rio de Janeiro, abril de 2009
SOBRE A ARTISTA
211
Leila Danziger
Em sua trajetória, destacam-se as participações
Artista visual, pesquisadora e professora dos
nas seguintes exposições: What vanishes, what
cursos de graduação e pós-graduação do Insti-
resists [individual], baad Gallery / Bezalel Aca-
tuto de Artes da Universidade do Estado do Rio
demy of Arts and Design, Tel Aviv, Israel, 2011;
de Janeiro (uerj). Graduou-se em artes pelo
Tempo-matéria, Museu de Arte Contemporânea
Institut d’Arts Visuels d’Orleans, França, onde
de Niterói, 2010; 9º Vaga-lume. Mostra de Vídeo
viveu de 1985 a 1989. Mestre (1996) e doutora
Experimental do Instituto de Artes da Universi-
(2003) pelo Programa de Pós-Graduação em
dade Federal do Rio Grande do Sul (artista convi-
História Social da Cultura da Pontifícia Univer-
dada), Pinacoteca Barão de Santo Ângelo, Porto
sidade Católica do Rio de Janeiro, com estágio
Alegre, 2010; Materialidades na arte brasileira,
de pesquisa na Universidade de Oldenburg,
Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, Juiz
Alemanha (2000). Foi duas vezes contemplada
de Fora, 2009; Achados e perdidos, Sesc Pinhei-
pelo Programa de Bolsas RioArte, do Instituto
ros, São Paulo, 2007; Diários públicos [individu-
Municipal de Cultura do Rio de Janeiro (1996
al], Espaço Cultural Sérgio Porto, Rio de Janeiro,
e 2001). Desde 2011, é pesquisadora do CNPq
2004; Bilder des Erinnerns und Verschwindens.
e da Faperj, com o auxílio dos quais desenvol-
Institut für Auslandsbeziehungen (ifa), Berlim,
ve projetos de criação em artes visuais, em que
Alemanha, 2003; Wegziehen, Frauenmuseum,
sua dupla formação de artista e historiadora
Bonn, Alemanha, 2001; Investigações: Rumos Vi-
da arte se faz presente em produções artísticas
suais 1 (Arte e política: isto são outros 500), Itaú
orientadas pelas negociações entre arte, histó-
Cultural, São Paulo; Centro Dragão do Mar, For-
ria, memória e literatura.
taleza; Fundação Joaquin Nabuco, Recife, 2000; Dobras do corpo, marcas da alma (segmento: a
Em 2012, realizou três mostras individuais no
escritura judaica no Brasil), Fundação Cultural
Rio de Janeiro: Felicidade-em-abismo, na Capela
de Curitiba, 2000; Eigennamen [individual], bbk
anexa às Cavalariças da Escola de Artes Visuais
Galerie, Oldenburg, Alemanha, 2000; Nomes
do Parque Lage, na qual apresentou trabalhos
próprios [individual], Galeria Thomas Cohn,
desenvolvidos a partir de sua pesquisa de pós-
São Paulo; O artista pesquisador, Museu de
-doutorado junto à Bezalel Academy of Arts and
Arte Contemporânea, Niterói, 1998; Nomes pró-
Design Jerusalem, Israel (2011); Edifício Líbano,
prios [individual], Paço Imperial, Rio de Janei-
na Galeria de Arte Ibeu, centrada no edifício de
ro; Dialog: experiências alemãs, Museu de Arte
Copacabana em que parte de sua família resi-
Moderna, Rio de Janeiro, 1996; Programa Anual
diu desde a década de 1940 e entrelaçando as
de Exposições, Centro Cultural São Paulo, São
memórias familiar e do bairro ao entorno da co-
Paulo, 1993; Projeto Macunaíma, Funarte, Rio
munidade do Pavão-Pavãozinho; e Todos os no-
de Janeiro, 1992; 9na. Bienal del Grabado Lati-
mes da melancolia, na Galeria Cosmocopa Arte
noamericano y del Caribe, Porto Rico, 1990; Gra-
Contemporânea, em que apresentou conjunto
vures d’Ateliers, Centre d’Arts Plastiques Albert
de fotografias, livros e um vídeo, nos quais a
Chanot, Clamard, França, 1989; Pour Edmond
melancolia é apresentada como forma de resis-
Jabès [individual], Librairie Les Temps Moder-
tência ao aceleramento do tempo.
nes, Orléans, França, 1989.
212
Em 2012, publicou os livros Todos os nomes da
2012), reunindo poemas produzidos entre 2007
melancolia (Rio de Janeiro: Apicuri, 2012), que
e 2012. Tem publicado ensaios em vários perió-
reúne sua produção recente com ensaios críticos
dicos, entre os quais Porto (ufrgs); Arte & Ensaio,
de Luiz Cláudio da Costa, Luciano Vinhosa, Már-
(eba/ufrj); Visualidades (ufg); Ipotesi (ufjf); Re-
cio Seligmann-Silva, Marisa Flórido, Marguerite
vista Brasileira de Literatura Comparada (Abralic);
Dewandel, Rapahel Fonseca e Roberto Condu-
Z Cultural (pacc/ufrj), Arquivo Maaravi (ufmg);
ru; e Três ensaios de fala (Rio de Janeiro: 7Letras,
Musas (iphan), Papel das Artes e Ciência Hoje.
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213
SOBRE OS AUTORES
214
Fernando Cocchiarale
instauração de imagens à luz da apropriação e
Crítico de arte, curador e professor da Ponti-
da aproximação de fragmentos, em especial no
fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
desenho e na colagem. Professora do Centro
(puc-Rio) e da Escola de Artes Visuais do Par-
Universitário Ritter dos Reis, em Porto Alegre,
que Lage. Entre suas curadorias recentes, des-
e editora da Revista-Valise (ppgav/ufrgs).
tacam-se: É Hoje na Arte Contemporânea Brasileira (Santander Cultural, Porto Alegre, 2006),
Márcio Seligmann-Silva
com Franz Manata; Filmes de Artista (Oi Futuro,
Professor livre-docente de Teoria Literária na
Rio de Janeiro, 2007); e Hélio Oiticica: Museu é
Universidade de Campinas (unicamp) e pes-
o Mundo (Itaú Cultural, São Paulo; Paço Impe-
quisador do cnpq. Doutor em teoria literária
rial e Casa França-Brasil, Rio de Janeiro, 2010),
pela Freie Universität Berlin, onde é atualmen-
com César Oiticica Filho. Foi curador do Mu-
te professor convidado. Autor, entre outros,
seu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (2000–
dos livros: Ler o livro do mundo. Walter Benja-
2007) e da Casa de Cultura Laura Alvim, Rio de
min: romantismo e crítica poética (São Paulo:
Janeiro (2011–2012). Doutor pela Escola de Co-
Iluminuras, 1999) e O local da diferença (São
municação da Universidade Federal do Rio de
Paulo: Editora 34, 2005); organizador de Leitu-
Janeiro (eco/ufrj).
ras de Walter Benjamin (São Paulo: Annablume, 1999) e História, memória, literatura: o teste-
Luiz Cláudio da Costa
munho na era das catástrofes (Campinas: Ed.
Professor adjunto dos cursos de graduação e
da Unicamp, 2003); e coorganizador de Catás-
pós-graduação do Instituto de Artes da Uni-
trofe e representação (São Paulo: Escuta, 2000),
versidade do Estado do Rio de Janeiro (uerj)
Escritas da violência (Rio de Janeiro: 7Letras,
e bolsista Prociência/Faperj. Organizador de
2012) e Imagem e memória (Belo Horizonte:
Dispositivos de registros na arte contemporânea
fale/Editora da ufmg, 2012). Possui vários en-
(Rio de Janeiro: Contra Capa, 2009). Publicou
saios publicados em livros e revistas no Brasil
ensaios em diversos catálogos, livros e perió-
e no exterior.
dicos, como Sala Preta e ars (usp), Arte & Ensaios (eba-ufrj), Concinnitas (uerj), Poiéisis
Raphael Fonseca
(Ciência da Arte-uff) e Porto Arte (ufrgs). Foi
Professor de Artes Visuais do Colégio Pedro ii,
curador da mostra Tempo-matéria (Museu de
Rio de Janeiro. Doutorando em História e Críti-
Arte Contemporânea, Niterói, 2010) e vice-pre-
ca da Arte pelo Programa de Pós-Graduação em
sidente da Associação Nacional dos Pesquisa-
Artes da Universidade do Estado do Rio de Ja-
dores em Artes Plásticas (2010-2012).
neiro (uerj). Organizador dos livros Commedia all’italiana (Rio
de
Janeiro:
Aeroplano,
Marina Bortoluz Polidoro
2011), Cinema pós-iugoslavo (Rio de Janeiro:
Artista visual. Mestre em Artes – Poéticas Visuais
Mariana de Carvalho Editora, 2012) e Do tirar
pela Universidade Federal do Rio Grande do
pelo natural (Campinas: Ed. da Unicamp, 2013).
Sul (ufrgs), onde atualmente realiza o douto-
Curador das exposições City as a process (2nd
rado. Sua pesquisa investiga questões sobre a
Ural Industrial Biennial, Ekaterinburg, Rússia,
215
2012) e Linha aparente (Sérgio Gonçalves Ga-
Casa de Rui Barbosa. Foi professora convidada
leria, Rio de Janeiro, 2012). Escreve periodica-
do Instituto de Romanística da Universidade
mente para as revistas ArtNexus e DasArtes.
de Viena no primeiro semestre de 2000. Publicou Gonzaga Duque: a estratégia do franco-ati-
Sheila Cabo Geraldo
rador (Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991),
Pesquisadora de história, teoria e crítica da
Novos pierrôs, velhos saltimbancos: os escritos
arte, e coordenadora do Grupo de Pesquisa Es-
de Gonzaga Duque e o final de século carioca
crita: arte, história e crítica (cnpq). Professora
(Curitiba: Secretaria de Cultura do Paraná,
do Programa de Pós-Graduação em Artes do
1998), Poesia e crítica: uns e outros (Rio de Janei-
Instituto de Artes da Universidade do Estado
ro: 7Letras, 2005) e Ingeborg Bachmann (Rio de
do Rio de Janeiro (uerj). Foi editora da revis-
Janeiro: eduerj, 2013).
ta Concinnitas, desse mesmo instituto (20032011), e presidente da Associação Nacional de
Wilton Montenegro
Pesquisadores em Artes Plásticas (2011-2012).
Artista e fotógrafo, conhecido sobretudo por
Organizou Trânsito entre arte e política (Rio
suas fotos de obras de arte e por capas de dis-
de Janeiro: Quartet/Faperj, 2012) e, com Luiz
cos. Em 2006, realizou uma retrospectiva no Oi
Cláudio da Costa, Narrativas, ficções e subjeti-
Futuro Flamengo, no Rio de Janeiro, com ima-
vidades (Rio de Janeiro: Quartet, 2012).
gens que dão um testemunho da arte contemporânea brasileira. Participa esporadicamente
Vera Lins
de exposições coletivas e dedica-se especial-
Professora associada de Literatura Comparada
mente à escritura de ensaios fotográficos e a
da Faculdade de Letras da Universidade Fede-
ensaios escritos sobre a obra de alguns artis-
ral do Rio de Janeiro (ufrj) e bolsista de pro-
tas visuais, bem como à realização de fotos de
dutividade em pesquisa do cnpq na Fundação
cunho mais pessoal.
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CRÉDITOS
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Organização Leila Danziger Projeto gráfico Lygia Santiago Amanda Lianza Revisão Contra Capa
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057 Danziger, Leila Diários públicos : sobre memória e mídia / Leila Danziger. – Rio de Janeiro : Contra Capa; FAPERJ, 2013. 224 p. : il., color; 19 x 25,5 cm ISBN 978-85-7740-149-9
Tratamento de imagem Natasha Gompers Assistente da artista Patrícia Chiavazzolli Fotos Antônio Caetano (54 / 68–73) Eyal Pinkas (132-135 / 137–140) Iggy Wanderley (169 / 174–175 / 178 / 180-187) Leila Danziger (55 / 76–80 / 132 / 141-144 / 188 / 201-208 / 220 / 222) Luciano Bogado (3-16 / 116–119) Mario Grisolli (58–59 / 64–65 / 75) Mauricius Farina (179) Pat Kilgore (113–115 / 120–125) Silvestre Machado (50-53 / 56-57 / 60-63 / 66-67 / 176-177 / 184-187) Vicente de Mello (172–173) Wilton Montenegro (217–219 / 221–222 / 224) Agradecimentos Faperj Instituto de Artes da Uerj Contra Capa Lygia Santiago Amanda Lianza Patrícia Chiavazzolli Natasha Gompers Luiz Cláudio da Costa Márcio Seligmann-Silva Marina Bortoluz Polidoro Raphael Fonseca Sheila Cabo Geraldo Vera Lins Wilton Montenegro Fernando Cocchiarale David Danziger Regenberg Ana Paula Ferreira Mario Grisolli Pat Kilgore Felipe Abdala
1. Arte – Brasil 2. Memórias 3. Mídia I. Título 13-0579
CDD 709.81 Índices para catálogo sistemático:
1. Arte - Brasil
Apoio
Copyright ©, 2013 dos autores. Todos os direitos desta edição reservados à Contra Capa Livraria Ltda. atendimento@contracapa.com.br www.contracapa.com.br Tel (55-21) 2507 9448 Fax (55-21) 3435 5128 Os textos deste livro foram compostos em Avenir Next LT Pro, fonte projetada por Adrian Frutiger em 1988, e em Arnhem, fonte projetada por Fred Smeijers em 1999. Os papéis do miolo são ofsete 90g/m2 e cuchê fosco 170 g/m2, e o de capa, cartão DuoDesign 350 g/m2.
Tiragem: 1.000 exemplares Esta obra foi impressa na cidade de João Pessoa pela Gráfica Santa Marta para a Contra Capa em julho de 2013. Sua publicação tornou-se possível graças ao apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro.
Felicidadeem-abismo [2012] Móvel de madeira e espelhos, monitor 22”, vídeo (cor, som, 6’), objetos de cristal e porcelana 160 x 70 x 50 cm Capela, Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro
Felicidadeem-abismo [2012] Capela, Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro
Felicidadeem-abismo (vistas parciais) [2012] Capela, Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro
Felicidadeem-abismo [2012] Série Souvenir Jerusalém [2012]
Móvel de madeira e espelhos, monitor 7”, vídeo (cor, som, 6’), objeto de porcelana e cacos de vidro
Impressão fotográfica sobre papel de algodão
150 x 35 x 28 cm
60 x 90 cm
Série Souvenir Jerusalém [2012]
Série Souvenir Jerusalém (Guenizah) [2012]
Impressão fotográfica sobre papel de algodão, areia, objetos de porcelana e moldura de madeira
Impressão fotográfica sobre papel de algodão, areia e rolo manuscrito
60 x 80 cm
30 x 40 cm
Diga que Jerusalém existe. [Sag, dass Jerusalem ist.] Paul Celan
ISBN 978-85-7740-149-9
9 788577 401499