Terras de Moncorvo
O futuro não tem pressa
Reportagem As terras de Moncorvo distam quase 500 quilómetros de Lisboa. Também tiveram Abril, há de10 anos. E continuam à espera de promessas: melhores estradas, menos isolamento, mais emprego, arranque das minas de ferro, protecção à agricultura. Até lá, algo foi mudando. Mas lenta, lentamente…
Reportagem de Rogério Rodrigues (texto) e Leonel Brito (fotos)
Dez anos Que mudaram Portugal
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1. O Interior
Terras de Moncorvo, terras quentes do Douro Superior, um Mediterrâneo sem água, terra de sonhos adiados e mitos mantidos: o futuro não tem pressa, mas, 10 anos depois,Abril na mira da memória, o presente está alterado. São mais regulares os transportes (péssimas, contudo, as vias de comunicação), a habitação expande-se (ainda que de modo caótico), as construções escolares renovadas (pese o decréscimo de alunos e doa a insuficiente profissionalização dos professores), as necessidades básicas da população em parte satisfeitas (acautelado seja o repórter sobre o poder consumista das populações em regressão há três anos a esta parte, mas bem maior do que na antecâmara de Abril) e os mitos inalteráveis (que as minas produzam ferro e provoquem emprego, que o complexo agro-industrial do Cachão se active e transforme a agricultura em oficio digno e lucrativo e não fatalidade de quem vai morrendo aos poucos, reflexão vicentina). Mas 10 anos depois, na máquina do tempo cuja medida o repórter crê ser mais do que uma ao fazer a curva do Pocinho, deixando para trás uma velha ponte, estilo Eiffel, em ferro feita em 1911, com um republicano orçamento de 500 contos, a memória confrange-se, enrolada sobre si mesma: a estrada não difere, estreita e ziguezagueante, o seu estado de conservação está pior do que há 10 anos. Não foi Cristo que passou por aqui (dizem os locais quando se lembram vivos no cu do Mundo), mas também não passaram os capitães de Abril, enredados no Terreiro do Paço, nem o poder que deles emanou. E ao atingir, década após, o primeiro cume donde se avista a vila, um lagarto espreguiçando-se em direcção ao Vale que, segundo rezam as crónicas de Fernão Lopes foi local aprazado por D. João I para o alardo (revista, no linguajar de hoje) de cavalos que serviram em Aljubarrota, com as primeiras amendoeiras a florirem, constata-se: a vila cresceu para poente, segundo plano elaborado por Rosado Correia, mas, na sua execução, totalmente adulterado.
Vieram de Angola e Moçambique sem nada, mas deram a Moncorvo muito do que a VILA não tinha: do agroalimentar à pequena indústria contra o conformismo deram-lhe a iniciativa e o risco da audácia. Habitação: Aanarquia da emergência Há 10 anos, a vila asfixiava no seu granito de terra antiga, adobada em pedra com trejeitos manuelinos, por mercê de fidalgotes vindos prósperos das índias e áfricas em descoberta, bornais cheios de cravo, pimenta e canela, saques, massacres e o mais que pelo tempo da história foi sendo dito. A periferia da vila era pertença agrícola de proprietários que não se queriam desfazer de chão herdado. Hoje, crescem aí em anteriores olivais e hortas, quase num beijo com o pequeno cemitério municipal, casas de retornados, habitações de conjuntura, resoluções momentâneas de uma situação, segundo nos confessavam técnicos do GAT, que foram construindo como quiseram e/ou puderam; destacam-se as casas dos emigrantes, sinais violentamente coloridos de ostentação dos que já regressaram ou esperam regressar; finalmente, o bairro social de Santo Cristo, da responsabilidade do Fundo de Fomento de Habitação com renda económica e em formato de dente-de-serra, branco e agressivo numa paisagem de cinza onde o nevoeiro costuma fazer novena, com a serra do Reboredo a impor-se como muralha. Aqui as coisas fazem-se por sentimento, dizia-nos um técnico de habitação. A construção obedece à emergência e à conjuntura. Por isso, surgiu um emaranhado que nada respeita. De informação em informação conclui-se que as autarquias nunca se interessaram muito em preservar a paisagem urbanística e arquitectónica. O GAT, gabinete de apoio técnico às autarquias, necessidade reconhecida por Abril, tem mera função consultiva. Não lhe compete a fiscalização das obras. Passados estes anos todos, o Município não tem um plano de urbanização, embora esteja encomendado há três anos. Para a construção de casas na aldeia, a Câmara não exige sequer desenho ou projecto. E, desta feita, um ver-se-te-avias de aldeias que nascem ao lado da primitiva, agressões na paisagem, dessolidarizando-se com a estrutura circular e fechada ao exterior dos povoados na sua traça original. Mas, por um lado, os retornados têm força: em 1977, por exemplo, ocupavam a presidência de oito dos 12 municípios do distrito de Bragança - onde residem mais
de 20 mil -, as pequenas empresas quer no sector industrial e comercial, seja no agro-pecuário, pertencemlhes na sua maioria, mercê de créditos altamente bonificados, do «fundo perdido» do IARN, mas também da sua capacidade de iniciativa, de olhar mais lançado para horizontes maiores. Eles são, economicamente, os fundamentais obreiros da transformação operada nos últimos 10 anos. Politicamente, contudo, foram forças negativas no desenvolvimento democrático da região. Hoje estão inseridos na comunidade e o seu voto político é diversificado, em parte refeitos dos traumas de há oito e nove anos. Também os emigrantes, por outro lado, não sendo uma força produtiva (geralmente regressa, como os elefantes, para gozarem, fartos, os últimos anos da vida, ao toro da oliveira das suas raízes, escravos combatentes que foram da riqueza dos outros) têm uma importância financeira única no concelho, só que não aproveitada regionalmente.
Em 1976, a título de exemplo, os seus depósitos na Banca foram superiores a 593 mil contos nos quatro concelhos do Douro Superior (Moncorvo, Foz Côa, Freixo de Espada Cinta e Mogadouro), ultrapassando a soma do valor de tudo o que esta região nesse mesmo ano produziu. Abarragem do Pocinho Esta década de Abril, promissora ainda, se, por um lado, não conseguiu que frutificassem esperanças por tão longo tempo conservadas, por outro, impôs projectos que, a médio prazo, serão carícias no isolamento das populações. Exemplarmente, falamos da barragem do Pocinho, no Douro, a 180 quilómetros da sua foz. A energia que actualmente produz dá para alimentar, servindo-nos de um padrão, uma cidade com as necessidades de Coimbra. A barragem demorou perto de 10 anos a completar-se, custou cerca de oito milhões de contos e nela começará a
Nesta barragem do Pocinho começa o sonho da navegabilidade do Douro e a esperança de melhores vias de comunicação para o Nordeste Transmontano
navegabilidade do Douro. É o Pocinho o primeiro porto de um sonho. Fora antes (hoje com um peso diminuto) o entrecruzar de linhas ferroviárias, numa baixa doentia onde até o paludismo (popularmente as «sezões») atacava e que levavam a Barca d'Alva e à Espanha, ao Porto e a Duas Igrejas. A construção da barragem que chegou a empregar mil homens, teve um grande impacte social na região. Transformou-se numa entidade empregadora flutuante e, nos primeiros anos depois de Abril, albergou e esbateu desesperos compreensíveis - os retornados regressavam sem trabalho. Muitos deles empregaram-se na barragem, regressando às antigas profissões, àqueles que tinham abandonado quando demandaram África. Eram empregos de circunstância, à espera de tempos melhores. Foi também a barragem o primeiro emprego para muitos jovens. Hoje, completada a sua construção, o desemprego aumentou aos níveis da preocupação, a capacidade de consumo da vila está a diminuir, não há projectos alternativos e a construção civil desceu à mais baixa actividade desta década. Contudo, não são muitas as pessoas que se inscrevem no desemprego, ou porque, desconhecem os mecanismos, quer porque sobrevivem no subemprego, seja porque optaram pelo biscato. Dos quatro concelhos do Douro Superior, apenas 300 pessoas recebem, o subsídio de desemprego (jovens e mulheres, sobretudo), o que equivale a uma soma de quatro mil contos mensais. Com a barragem a funcionar em pleno, para lá da energia que produz, uma nova via de comunicação se abre para o Nordeste - uma ponte sobre a eclusa que vem substituir a velha, incapaz de suportar grandes camiões de carga. Por outro lado, abre uma nova via para o Porto (ainda hoje em transportes colectivos alguém que vá de Moncorvo à capital do Norte, a uma distância de 270 quilómetros, não consegue regressar no mesmo dia), através do Douro, navegável que se torne, para o que precisará de uma completa dragagem dos fundos. No campo das hipóteses, reconhecido que já estavam feitas a obras necessárias, a viagem será lenta: nunca menos de 9 a 10 horas, segundo as contas de um técnico que esteve envolvido na construção de várias barragens que disciplinam o Douro. Com efeito, só para a esclusagem das quatro barragens (Valeira, Régua, Carrapatelo e Crestuma) eram necessárias duas horas, meia hora gasta em cada eclusa.