Painel 12

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torre de moncorvo

1974

MONCORVO, ZONA QUENTE NA TERRA FRIA - 5

«A TERRA HÁ-DE SEMPRE VALER A TERRA» - DIZ UM FEITOR DO VALE DA VILARIÇA Te x t o d e F. A S S I S PA C H E C O O vale da Vilariça, a sudoeste do distrito de Bragança, é uma das regiões mais férteis do País, mas quando nos deitamos a adivinhar, quando pensamos a agricultura em termos de «indústria ao ar livre», então pomos a hipótese (e há quem a ponha muito claramente) de não estar a ser feito ali o que a terra possibilita. Contou-me o sr. Alípio, feitor da Quinta do Carrascal; «Eu não sou estudado mas já disse aos meus patrões: a terra há-de valer a terra.» E numa crítica com endereço visível: «Nós sem maçãs passamos bem, sem pão é que não…» Pelas suas condições para a policultura, já um dia compararam o vale da Vilariça ao do Nilo. Sobre a fertilidade não há dúvidas: o s r. J ú l i o d e O l i v e i r a Pimentel, segundo visconde de Vila-Maior, escrevia em Chanvre de Vilariça que as melhores terras de França ou de Itália não sofriam comparação com estas. Citava estatísticas: - produção média da região de Bolonha, ao tempo do livro: 1.200 qs./ Hec.; - idem da região de Isera: 1 . 0 0 0 q s . / h e c ; -idem do Maine-etLoire: 780 qs./ hec.; - vale da Vilariça: 1.580 qs. / hec. Solo rico, condições climáticas privilegiadas, a Vilariça arrancou de um moncorvense o seguinte desabafo: «Quando isto um dia der massa e bacalhau, já não é preciso ir para outro lado!» O vale da Vilariça estende-se por três concelhos (um deles Moncorvo). Corresponde a uma falha geológica. Quando da formação dessa falha, o Douro, sofreado no curso normal, desviou-se para noroeste contornando uma montanha. Ora, ali mesmo ia desaguar o Sabor, seu afluente: as águas deste passaram a refluir regularmente, alagando o Va l e . É a « r e b o f a » , «rebofa» que engrossa a r i b e i r a d a Vi l a r i ç a

(Afluente do Sabor) e será a principal responsável pelos espessos aluviões do vale. Entretanto, se um acidente geológico explica a riqueza da Vilariça, não a explica toda. Há que acrescentar-lhe, como factor também determinante,o climatérico: reina no vale um microclima mediterrâneo que cem anos atrás, por exemplo, dava melões de 10/15 quilos e pés de cânhamo com mais de dois metros de altura. Nesta zona de Moncorvo os desvios térmicos anuais são os de maior amplitude no continente. Por seu lado a amplitude higrométrica é também a mais elevada do continente. Terra rica do ponto de vista agrícola, a Vilariça tem a marcá-la simultaneamente um teor apreciável de insalubridade. Muita gente me falou do «tempo das sezões». 160 PIPAS DE BENEFÍCIO Entre os grandes, proprietários da Vilariça citaram-me os nomes da marquesa de Ponte de Lima, D. Irene Dulce de Oliveira de Vasconcelos e Sousa (Quinta da Granja); António José de Oliveira, irmão da precedente (Quinta de VilaMaior); dr. Águedo de Oliveira; prof. Miller Guerra (Quinta do Carrascal) e dois irmãos; António José Teixeira de Sousa Serôdio (Quinta da Terrincha);

António Gonçalves Martinho Jr. (Quinta da Silveira); Dr. Horácio de Sousa (Quinta da Pedra de Anta); António de Castro Pizarro (Quinta Nova); dr. António Maria Tenreiro (Quinta do Ataíde); e António Abrunhosa de Morais Vaz (Quinta da Portela). Há depois retalhos de uma infinidade de parceiros, sobretudo para norte. Um informador da zona disse-me que a Vilariça tem a sua produção mais marcante ligada ao regime de grande propriedade, por administração directa ou colónia (percentagem da produção + prestação de certos serviços, por prazo de 10/15 anos). Quanto à extensão do úbere vale, falou-me

F o t o s d e L E O N E L B R I TO Régua pagou, segundo o sr. Alípio do Carrascal, uma média de 13 contos por pipa. Apanharia assim o vinho de 27 cooperativas… (Vd. «Tempo Económico», número zero quem o tiver, claro: traz a história dos «mosqueteiros» da Régua.) No dizer do sr. Alípio, «devia estar tudo com vinha e o resto com olival». E acrescentou: «Vamos pôr a vinha toda nas encostas.» A vinha obstou a que o Carrascal (é uma das explicações, provavelmente não a de fundo) colaborasse mais de perto com o Complexo Agro-Industrial do Nordeste, o celebrado «Cachão». «Para o Cachão» - informou o sr. Alípio - «fizemos já só 70 toneladas

“Vamos por a vinha toda nas encostas” em 40 quilómetros - «quase até Mogadouro». A Quinta do Carrascal, que visitei demoradamente, faz 10.000 litros de azeite por ano (digamos: fez no último ano). Trigo: 50 toneladas. Amêndoa menos: média anual, 30 arrobas (60 «quando carrega»). Faz muita outra coisa, como veremos. O Sr. Alípio estava agradado da informação que me prestou sobre o vinho: « Cento e sessenta pipas para benefício!» As pipas para «benefício» referem-se à quantidade autorizada a ser aproveitada para vinho do Porto. Um dado importante: até ao ano passado o produtor de vinho do Porto contava com 5 contos por pipa; em 1973 a Central Vinícola da

de tomate e 20 a 22 de pimento. Creio bem que vamos acabar com isso… Sabe o senhor, tínhamos que retirar pessoal da vinha para o pimento, que requer trabalho diário. Lá se perdia uma pipa em dois dias.» Logo a seguir o feitor emendou: tomate afinal não fez no ano passado para o Cachão, e quando o fazia era para lho pagarem (aos patrões) a $70 o melhor, $60 o pior. O pimento paga-o o Cachão por 2$20. Sopraram-me entretanto: «Pois é, se o Cachão quis pimento teve que ir comprá-lo no Sul…» Uma queixa explícita do feitor do Carrascal é de que o Cachão «não assina papel nenhum». Leva os produtos e pagará mais tarde. «Ainda lá têm dinheiro nosso» garantiu-me o sr. Alípio.

Instalações agrícolas na Quinta do Carrascal (Vilariça) Mas os produtores meridionais de pimento seriam mais bem tratados: produto entregue, dinheiro recebido. «É, é, recebem-no logo, e o nosso ainda lá está!» ABAIXO A OLIVEIRA! Em anos recentes houve quem arrancasse oliveiras para plantar… damasqueiros na Vilariça. Teria acontecido tal como um grande proprietário que (diz-se) fez tábua rasa de 4.000 árvores. Agora chegou à conclusão de que os damasqueiros não dão - não dão o que dava o olival e «serrou os damasqueiros e com uma máquina arrancou-os». Iria pôr de novo oliveira, oliveira de moita ou de ripa, cuja apanha é em Outubro e é muito mais compensadora que a vulgar(uma mulher dá um rendimento médio de 100kg/dia na de moita e 50 na vulgar, ainda por cima esta com uma apanha que se faz em Dezembro/Janeiro, em tempo mais frio).«Andou por aí um tal susto da oliveira!» - exclamaria para mim o sr. Alípio.-«Que em Alfândega da Fé o senhor engenheiro, numa reunião, disse que a oliveira só valia 800$00. Pois um proprietário pegou-lhe na palavra e respondeu: a mil compro-lhas todas e dou-lhe o dinheiro já!» O sr. Alípio sabe perfeitamente o valor das oliveiras: comprou na sua terra 40 árvores por 40 contos e elas deram-lhe 5 contos em azeite. «Então não é melhor que pôr o dinheiro no banco?» A azeitona está em valorização: a de azeite subiu de 5$00/6$00 para 10$00; a de mesa anda a 12$00/13$00 (informação local). Uma do sr. Alípio: «Estiveram cá uns senhores engenheiros, olharam para as oliveiras e disseram: arranque isto, ó homem! Eu respondi-lhes: vão falar nisso aos de Vide, que têm boas para contar…» Ah, quando tudo isto passar, Quando o sr. Alípio se «reformar»... «Faço uma casinha aqui na Vilariça,

com um bar, com tudo o que é bom daqui!» Mas «isto» ainda não passou. Enquanto não passa o sr. Alípio aproveita para me relatar: - o Carrascal olha de lado para o pimento e outros produtos em que o Cachão muito insiste; - no Carrascal prefere-se o «gado de lã», as vacas (que são novas na região), a vinha, o trigo, o olival; - experiências toda a gente faz, e o sr. Alípio já experimentou girassol, amendoim, algodão («tão bom como em África»); - na Vilariça faz-se milho normalmente para os gastos da casa; o Carrascal produziu entre 10 e 12 toneladas no ano passado, reduzido a farinha; - as vacas, a tal novidade do vale, deram ao Carrascal, em 1973, qualquer coisa como 18. 000/19. 000 litros; melhor: os patrões do sr. Alípio compraram quatro animais e já têm mais dezasseis de criação própria. Orgulho do feitor: «Nem arroz se dá cá mal. Experimentámo-lo, sim senhor!» OS PROBLEMAS DA ÁGUA O vinho compensa, o trigo não opinião do sr. Alípio. Pois se o trigo tem o mesmo preço de há 30 anos… «Então faz pouco trigo» - lancei. «Faço algum, faço algum» repôs. - «A palha é fundamental para as vacas e ovelhas. Que pensa? Eu em borregos tiro 50 contos por ano. A arroba de lã de ovelha, que já esteve a 100$00 aqui há dois anos, subiu para 320$00. E depois há os estrumes, que não têm preço…» O rebanho de ovelhas do Carrascal (150 animais) vale 150 contos e deixa anualmente um lucro de 100: em lã (20), leite (20), borregos (50) e estrume («ponha lá 10»). Eis o que se chama ter as contas em dia. Ainda no tocante ao trigo, a

palha hoje vale quase tanto como o grão (« Tanto vale o papo-seco como a palha que come o burro» - dir-meia um moncorvense radicado em Lisboa e senhor destes segredos). No caso do Carrascal, em 1973 a quinta fez 160 contos (5 vagões) de trigo em grão e outros 160 de fardos de palha (8.000 fardos a 20$00 cada). Aqui está a razão por que o sr. Alípio não é «apologista de falar contra o trigo». Enfim, há o problema da água. Ultimamente constou que queriam «regar a Vilariça no Inverno e no Verão». Palavras do sr. Alípio, que notou de seguida: «Diz que era com uma hipoteca à Junta» (de Colonização Interna). «As quintas de Alfândega da Fé disseram-me que já estão hipotecadas…» Evidentemente que para um feitor como o sr. Alípio, «faz muita falta a água», mas «hipotecar a Vilariça é que não!» A história começou a ser contada no último número da «Seara Nova» sob o título de «O Caso da Albufeira de Santa Justa». Aí se fazem acusações precisas e não simples referências de outiva como aquelas que o feitor do Carrascal pôde transmitir-me. Completada essa albufeira de Santa Justa, na Vilariça, mas mais lá para o Norte, num ápice a ribeira ficará com um caudal menor, as águas escassearão e as grandes quintas do Sul, que agora a vão buscar quando querem, terão de solicitá-la com muito bons modos à albufeira: solicitar a água e - não custa prever sair talvez da sua independência de produção para os cultivos importantes. Impostos entre aspas, se o leitor o entender. Um conto largo, para apurar noutro tom daqui a uns tempos, até porque o maior prejudicado é o pequeno proprietário. «Os pequeninos estão pior, estão pior…» - ouvi em comentário.

COM A QUEIJEIRA DA PÓVOA Tinham-me dito que o queijo de ovelha só na Póvoa e em casa de uma tal sr.ª Carminda, famosa por não dar leite ao «carro» (que é uma história que conto mais à frente). A sr.ª Carminda tirava estrume com o marido e a filha solteira; sabendo ao que eu vinha, levou-me pronto até à queijaria. Foi assim que entrei na Póvoa, talvez a aldeia mais pobre de toda a fragada da Cardanha. Na Póvoa há gente, ovelhas, algum macho ou burro por ali - e criação à solta. Cães, claro. Muita modéstia à vista. A sr.ª Carminda estava com três ou quatro queijos em processo de fabrico, a escoarem para as francelas, calcados por pedras grossas. O meu companheiro de viagem queria dois. «São a 70 o quilo» - avisou a queijeira, não fosse termos vindo à Póvoa desprevenidos. A pesagem fez-se num instante. Uma pedra era um quilo, um bico de charrua meio quilo, uma chave um quarto de quilo. «Aquela pedra maior é a arroba» - apontou a sr.ª Carminda. Pesou a compra 1,70 kg de massa compacta, saborosíssima, como descobrimos mais tarde na vila. E então surgiu a história. Aqui há tempos a sr.ª Carminda, queijeira com excedentes de leite, vendia parte deste aos homens do «carro», comerciantes de Moncorvo. Justaram o litro a 9$00.Quando foi do pagamento,

os compradores disseram-lhe que afinal não podiam dar os 9$00, mas 7$00, porque as análises tinham revelado um «defeito». «Qual defeito?» «Parece que gordura a menos. O leite não tinha a gordura lá deles e eu não tenho culpa» - respondeu-me a sr.ª Carminda. O que é, o caso não morreria ali. Foi a sr.ª Carminda para a Justiça. «Fui para a Justiça, eles escreveram a dizer que não podiam dar os 9$00, que dava muito prejuízo. Falei com um senhor advogado. Um dia o senhor advogado disse: receba lá a 7$00, senão não recebe nada.» A sr.ª Carminda recebeu a 7$00, mas jurou que, enquanto fosse viva, nem mais uma gota iria para os homens do «carro». Esta história, narrada no «soto» dos Estevais, envolvia-se de ressonâncias épicas. «NAO VALEMOS JÁ NADA» Remediada, a sr.ª Carminda sobressaía do comum das gentes do lugar. Seria a pessoa mais importante? Não era. «Essa é a sr.ª Maria Sendas. A sr.ª Carminda talvez seja a segunda» - propôs alguém nos Estevais. Entretanto, via-se que na casa da sr.ª Carminda havia um mínimo de comodidades (ao nível aldeão, bem entendido). Junto ao lume, numa estantezinha, reparei numa lata de «Toddy», um frasco de café

«Mokambo», um pacote de «Bravo». «São coisas que vêm do supra» - explicou o marido no dia seguinte à cena dos queijos. (No supra de Moncorvo, quer dizer, no supermercado da vila, trabalha um filho do casal. Outro filho está igualmente em Moncorvo). Ocupações da queijeira, marido e filha? O queijo, evidentemente, e os amanhos da pequena lavoura. «Ofereci 100$00 por dia a dois homens para me tirarem o estrume e não quiseram: não precisavam» - queixou-se-me o marido. Por isso o víramos, a ele, à mulher e à filha, com as botas pegajosas e as mãos pretas de pegar no forcado. «Isto aqui são quantos homens?» O marido da sr.ª Carminda fez as contas: «São onze. Somos onze ao todo. Já não valemos nada.» Da Póvoa pode-se ir viver para a vila, da vila ninguém regressa à fragada. Os filhos do casal constituíram as suas famílias, desapareceram, vivem a 10 quilómetros, pouco mais. Longe. A filha solteira encontrará um dia homem para casar, quem sabe se por procuração (um emigrante). Tem 16 anos, pensa fazer o ciclo. Agora ajuda os pais; veste um camisolão preto e umas calças também pretas, seguras por um cinto «pop»; fala só meias palavras.

Na Póvoa andei dois dias. No primeiro compraram-se os queijos, no segundo comeu-se um jantar à sr.ª Carminda e ao marido, por convite insistente.

A CEGA E O CÃO No segundo dia éramos para dar transporte à sr.ª Carminda da vila para a Póvoa: a queijeira tinha que deslocar-se a Moncorvo por causa das vacinas. Combinados hora e local de embarque, ela não apareceu. Mas o convite para o jantar ficara de pé, de modo que voltámos à aldeia da fragada. Esperavam-nos lá em casa, acompanhados da professora da escola. O jantar foi opíparo: alheiras, chouriço, batata frita e grelos. Sem vinho, pois o marido da sr.ª Carminda não bebe. Acabada a refeição, pusemo-nos ao lume na conversa. O regresso foi às oito e meia da noite. Já toda a gente da casa cabeceava com sono. Um regresso difícil. Íamos descansados da vida, pela «rua» principal, direitos ao automóvel, e ladrou um cão de pastor. «Alto» - gritou o meu companheiro de viagem. «Este morde!» Realmente o cão não parecia manso e, pior, não arredava da «rua».Chamámos por gente vizinha. Veio uma velha cega com um pau na mão. «Os senhores aqui a estas horas, tão tarde!» - admirou-se ela. Enfim, tirou-nos do enleio com um berro ao cão, que passou por nós como uma seta. Às nove horas, na vila, as pessoas começavam a encher os cafés.

A Queijeira da Póvoa a caminho do estábulo


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