Painel 2

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Dez anos Que mudaram Portugal

Poder local: os vícios do centro

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2. O Interior

Abandonado o tempo da enxada e do trabalho escravo de sol a sol, a Vilariça procurava o futuro. Agricultura: uma reconversão adiada Em 1964, Camilo Mendonça lançava o sonho da sua vida: o complexo agro-industrial do Cachão. Revolveu a terra, árida, criou um império, desproporcionado e inconsequente. Das minas se falava como «Sines do Nordeste», o Cachão se cantava como «sinfonia incompleta». O deputado da Assembleia Nacional, confessava a quem o queria ouvir: a última fase está pronta; façam agora a primeira. O carro ficou sempre à frente dos bois. De início, os agricultores ainda tiveram esperança. Entregavam os produtos no complexo, diversificavam as culturas segundo as sugestões dos técnicos, mas os pagamentos demoravam cada vez mais, o agricultor era descapitalizado. O Cachão não servia a agricultura. Como nos dizia um técnico agrícola, há muito estabelecido na região, a esperança da agricultura sempre foi o Cachão, mas o Cachão está alheado da agricultura. E hoje os principais problemas que se colocam a um concelho como Moncorvo que, a par de uma forte componente administrativa, tem um significativo peso agrícola, passam pela reconversão de amendoais e olivais (culturas privilegiadas da região), pelo incremento de novas culturas surgidas nesta década no ubérrimo Vale da Vilariça, como o tabaco, pela construção de pequenas barragens. Os olivais (e nunca deveria haver, segundo nos diz um técnico, menos de 250 a 300 oliveiras por hectare) e os amendoais têm envelhecido na fuga das gentes à agricultura e aos seus métodos tradicionais e na dificuldade da mecanização de terrenos altamente inóspitos. Mas a reconversão não se vislumbra. E nos últimos 10 anos houve uma quebra de produção do azeite e da amêndoa da ordem dos 25 a 30 por cento. Por outro lado, segundo opinião emitida por um técnico agrário, a maior parte dos olivais existentes no Vale da Vilariça deveriam ser transportados para a meia encosta, transformando o vale num aglomerado hortoindustrial, desde que o Cachão estivesse a trabalhar em pleno. E tudo ou quase tudo da agricultura do Nordeste vai desaguar no Cachão, que, vozes locais defendem dever ser reprivatizado. Também a produção da amêndoa está em crise, embora um sopro de esperança tenha tocado este ano a vida dos agricultores. A arroba está ao preço elevado de cinco contos, devido à circunstância da produção da Califórnia, na sua maior quantidade, ter sido queimada pela intempérie. A amêndoa hoje não é competitiva nos mercados internacionais. E compreende-se, se nos lembrarmos que num hectare californiano são plantadas 600 a 700 amendoeiras, enquanto num duriense não passam de 120 a 150. Apesar de tudo, o Douro Superior produz hoje, três vezes mais, pelo menos, amêndoa que o Algarve. Teve a sua época áurea em 1963/64, atingido que foi o máximo da produção no país inteiro: cinco mil toneladas. Destas cinco mil toneladas mais de três mil pertenceram ao Douro; aoAlgarve, apenas mil.

de desencanto, os produtos não podem competir com os de outras regiões mais próximas dos grandes centros. E para quê cultivar, se depois não têm saída? Agricultura pobre, mal dimensionada, com o grande êxodo da emigração (em fuga a força inteira de uma região), a cultura do trigo foi abandonada. Em breve, porém, poderá regressar, face aos preços compensadores que estão a funcionar no mercado. O quilo de trigo está a ser comprado a 34 escudos. Apesar de tudo, muitos agricultores ainda desconfiam. Estão queimados, não só pelas geadas como pelas promessas. Para outros, falta ainda uma verdadeira alternativa à EPAC. Segundo alguns, a zona ideal para a cultura do trigo seria a Vilariça, mas isso está fora de questão. De qualquer modo aqui ficam os números surpreendentes: cinco mil quilos por hectare, seria a média de produção em terras da Vilariça (uma corrupte: de Vila Rica, Moncorvo nos seus primórdios que se hasteava num morro ao lado e de que ainda se conservam ruínas, após a implacável investida da formiga branca que obrigou os povos a subirem até às faldas da serra e a construírem uma nova vila). A Vilariça tem sido reconvertida nos últimos anos para a produção do vinho do Porto. O olhar adunco das multinacionais (Sandeman, Cockburn, Grã-Cruz, Ramos Pinto) tem visto mosto rico em terra plana. Máquinas, sob a mira do lucro canadiano, invadiram o Vale, arrancaram oliveiras e começaram a plantar vinha aos milheiros. Os velhos clamaram, nostálgicos, com a memória às braçadas: «Acudam que vêm aí os ingleses.» Hoje todo o Douro Superior, com a Vilariça dentro, produz vinho do Porto de alta qualidade. Contudo, não foi beneficiado pelo último decreto que permite aos lavradores meter um requerimento a fim de lhes ser concedida autorização de plantio de três a 10 hectares. Em 10 hectares plantam-se cerca de 40 mil cepas. A cooperativa de Moncorvo que apesar de não ter nenhum vinho comercializado, tem funcionado bem, com uma gestão rigorosa, produziu no ano passado 22 mil litros de vinho, dos quais duas mil pipas de generoso (cada pipa tem 550 litros e é vendida a 60 contos)

Tabaco de primeira qualidade Em 1975, fizeram-se no Vale da Vilariça as primeiras experiências de plantação de tabaco. É uma cultura que começa em Maio e termina em Setembro. Não envolve grandes sacrifícios nem gastos. Numa plantação experimental de três mil metros, por exemplo, deu um rendimento bruto de 300 contos. Foram gastos, nas despesas, 110 contos. O rendimento líquido foi de 190 contos. Quase todo o tabaco foi classificado como sendo de primeira qualidade. A Tabaqueira mostrou-se interessada em cultivar, no Vale, 100 hectares. Mas o Cachão não quer, o Cachão, mesmo parado, é a força determinante dos destinos da agricultura do Nordeste. Também na zona da Vilariça se mostrou de grande rentabilidade a cultura do morango, incrementada nesta década. Mas para o seu escoamento, já que a capacidade de consumo regional é diminuta, seriam necessários acessos mais fáceis aos grandes centros. Assim, sem estradas e outras vias de comunicação, no isolamento em que o concelho vive e vai definhando, num conformismo

A Igreja é o ex-libris de Moncorvo, o seu obrigatório ponto de referência. À sua volta se tece o quotidiano, monótono, com poucas saídas, mas melhor do que há 10 anos. enquanto a de vinho de consumo corrente não ultrapassam os 15 contos. Diga-se, para informação do leitor menos calhado com esta realidade, que cerca de 750 quilos de uva dão 550 litros de vinho, com um benefício equivalente a 60 contos. Por outro lado, uma cepa do Douro produz seis vezes menos de vinho que uma cepa do Ribatejo. Depois de tudo isto, após o reconhecimento de que a região é zona privilegiada para a cultura do vinho do Porto, o decreto, estrangulando esperanças, estabelece que a zona contemplada com 2500 hectares para novos plantios é a que vai do Pinhão até S. João da Pesqueira. E o agricultor do Douro Superior pensa como o menino do «Suave Menino» do conto de Eça de Queirós que são agrestes e longos, contra ínvios e obscuros atalhos, os caminhos que levam até à Galileia do Poder, a uma recatada e alcatifada sala de gabinete ministerial desta Lisboa de refinada e variada gente. Poder Local: os vícios do centro Moncorvo, perto de 50 mil hectares de terra habitável, em tempos idos foi a maior comarca do reino, com juiz e desembargador, com edifício da Inquisição onde mais tarde estiveram instalados os legionários de arreio, Mauser e cantil, e hoje foi convertido em estúdio fotográfico. Depois de Abril, teve a sua explosão política, com o esquerdismo infantil do MRPP a dirimir bandeiras contra as feridas africanas de ruidosos retornados e condenações sem apelo nem agravo aos suspeitos de «socialfascismo», com ocupação de casa e eleições primeiras para a câmara municipal. O PS esteve sempre à beira do Poder, mesmo quando o ocupou através de um independente. Em 1974 eram 60 os socialistas de cartão, chegaram a ser 400, hoje não passam de uma centena. Têm três vereadores em sete autarcas. Muitas das grandes questões são resolvidas pelo voto de qualidade do presidente, mau grado a defunta AD ter a maioria. Mas as relações do poder em Moncorvo estão já inquinadas pelos vícios do poder central. Movem-se os mais ligados à política «tout court» pelos cafés (mais e de arquitectura diferente introduzida nesta década), trocam-se influências, autoconsomem-se em intrigas, em movimentos palacianos à volta de problemas que tendem a eternizar-se: o saneamento básico, a questão da água à vila, que sofre dias de secura em verões mais quentes. Como alguém nos dizia, ironicamente, uma única vez por todas o executivo camarário esteve de acordo entre si: no alargamento do cemitério municipal, em torno do qual corre uma história pícara - em que a vila é fértil - sobre o despejo de um jazigo. À volta da barragem de Vale de Ferreiros, movem-se grandes discussões, alimentam-se protestos e suspeitas. Só este ano vai beber 70 mil contos do orçamento camarário, que já não é tão insignificante como se possa pensar. Movimentam-se no concelho, em termos de orçamento, cerca de 300 mil contos. A barragem, na opinião de alguns, virá a resolver o problema da distribuição de água à vila, cuja rede em pouco difere da traçada há 40 anos. Para outros, não é com a barragem que o problema da água ficará resolvido.Asolução tem que ser encontrada no rio. Entretanto, no entardecer de Setembro, foram descobertos na região do vale, indícios de uma povoação romana.

em 50 mil contos, 58 soldados da paz (de idades entre os 20 e 23 anos) e 19 viaturas. Há 10 anos mal existia, e o seu parque não passava de três velhas viaturas. Hoje, com uma direcção eleita anualmente, tem um eficiente serviço de transportes de doentes, uma acção intensa e frequente nos incêndios de Verão e dispõe a funcionar o 115 (há só três no distrito). Em termos de cultura, o concelho vive no ano zero, no abandono mais gelado, sem subsídios, sem incentivos, sem esperança. A equipa de futebol, sobrevive em muito das receitas do loto; a banda filarmónica com 100 anos completados no passado Agosto ressurgiu das cinzas e do toque desafinado de há 10 anos, mercê de um grupo de jovens que ensaiam às noites no edifício que antes fora da Mocidade Portuguesa. Na saúde há sete médicos residentes (seis dos quais de clínica geral) e sete enfermeiras. O concelho é farto em hipertensões arteriais. Mas os cuidados médicos, morto o serviço Médico à Periferia, regrediram muito no concelho nos últimos três anos. Melhor sem dúvida que há 10, sobretudo na abertura de postos clínicos nas aldeias, de cuidados preventivos. Mas a paisagem é cinzenta: médicos que faltam muito, segundo queixa generalizada das populações, ausência de especialistas e um hospital concelhio em parte transformado num lar da terceira idade, onde os velhos vão ocupar camas e esperar pela morte, em maior conforto e companhia do que em suas casas. Uma década depois, o nível de vida das pessoas é diferente, há uma regressão na qualidade de vida nos últimos quatro anos, há um desencanto perante a incapacidade de as grandes questões do concelho serem resolvidas e, no correr da amargura, fica a palavra do velho à modorra do sol, como gato cansado, numa aldeia que em 10 anos quase ou nada mudou: Estevais, conquistada às fragas, isolada do vale da Vilariça por uma paisagem agreste e sem tempo, do velho, dos poucos habitantes no meio de uma manhã de Fevereiro, incapaz já de ir até à vinha próxima podar, enquanto as poucas mulheres lavavam no ribeiro, como há 10 anos, ficam as palavras do velho como sinais de que a sabedoria nem sempre é optimista e o passado reconhece que o futuro custa a sê-lo: A nossa terra é como a burra do João Vaz não anda para a frente nem para trás.

A saúde está doente Houve por dias embargo de obras, foram descobertos alguns objectos de cerâmica e indícios de que ali funcionou um forno. Mas as obras recomeçaram. O presidente da Câmara concedera que elas parassem, para ser recolhido tudo o que fosse possível. E difícil será dizer hoje da importância ou não importância, do que se especula ter sido uma povoação romana com peso na zona, no princípio da era cristã. Mas entre a discussão política, assembleias municipais animadas, com desobediência de voto partidário de homens bons vindos das aldeias e que de imediato pensam no benefício directo do local em que habitam, algo se foi transformando durante estes 10 anos: existe um mercado municipal que não funciona porque não há água; existe um activo corpo de bombeiros, com nova sede orçamentada

Na ausência de um mercado municipal, que existe mas não funciona por falta de água, a carne é disposta ao ar livre. E, em jeito de metáfora para o isolamento e o desejo: o cão olha a carne que não come...

A febre das tardes de Quarta

Em Fevereiro de 1974, o jornal «República», pela mão de Fernando Assis Pacheco, fazia em Moncorvo uma série de reportagens. Uma delas dava conta, através de uma mesa-redonda, do quotidiano dos estudantes. Veiga Simão, na altura responsável pelo MEN, visitava o Nordeste Transmontano, passando pela Escola Secundária de Moncorvo, dirigida por A. M. Pires Cabral, que se haveria de revelar um poeta necessário para a leitura da década de 70, ficcionista galardoado, no ano findo, com o Prémio Literário do Círculo de Leitores. A escola era um velho e exíguo edifício, antigo hospital da Misericórdia, com muitos pavilhões prefabricados, sem condições, fornalhas no Verão e câmaras frigoríficas no Inverno, com uma cantina improvisada onde os alunos comiam uma parca refeição ou as merendas trazidas de casa. A maior parte deles moravam nas aldeias, eram filhos de emigrantes, vinham de comboio ou automotora. Quase ainda não havia transportes de autocarro. Esperavam de manhã que os cafés abrissem para se aquecerem e, à tarde, nos cafés esperavam até que os transportes chegassem. Quanto ao quotidiano: um namorar subreptício, para quebrar tédios, na estrada das Aveleiras, uma das bocas da vila, um entreter de tempo nos bancos do jardim, a televisão, o futebol, o bilhar. As telenovelas ainda não preocupavam Valadão. Os jovens não tinham saídas, que não fossem a guerra colonial ou a emigração. Nem parecia o futuro pertencerlhes. Mal sabiam que no corpo decadente de um país esgotado, começavam a abrir, como crisântemos na lama, os primeiros cravos. Hoje, 10 anos depois, em Fevereiro de 1984, qual o quotidiano dos estudantes? Não têm guerra que os ameace, nem emigração que se lhes ofereça. Têm novas instalações, quase ideais, uma associação com sala própria, eleita após uma renhida campanha travada entre três listas, e um pequeno pé de meia subsidiado, pagam 50 escudos por uma refeição na cantina, são para tão grande espaço uma população menor do que há 10 anos (a chamada segunda geração, filha dos emigrantes, que optou por frequentar a escola no país que acolheu os seus pais, está a reduzir a escolaridade no interior), têm aquecimento com custos orçados em 200 contos mensais,

50 professores (ainda que só 10 sejam efectivos), não vivem na turbulência política dos anos anteriores (turbulência expressa nas paredes de granito velho da antiga escola: «Abaixo os lambe-botas», «viva a LSD», cruzes, gamadas, etc.), têm carreiras que os transportam às 18 da tarde para casa, com 50 por cento de desconto, suportado pela escola (e só no ensino secundário são 330, perto de metade dos alunos, que utilizam diariamente as carreiras), têm um maior poder de consumo. E, contudo, qual o seu quotidiano? Esvaem-se em tédio, à espera que as horas passem. Têm da política o desencanto e de Abril um conhecimento sem memória. E o desejo de todos é sair, sair, partir para qualquer lado. Não se querem resignar aos custos da interioridade, a um isolamento sem expressão, numa zona que é considerada a mais subdesenvolvida da Península Ibérica, a que tem maior índice de mortalidade infantil, só comparável à Turquia, que produz um terço de toda a energia do País e não atinge sequer a metade da média nacional do consumo de electricidade.

O importante é sair Uma jovem com 21 anos, a frequentar o 12º ano, lê a «Crónica Feminina» todas as semanas. E a «Maria». E mais literatura cor-de-rosa de engasgar o olho. «Os Maias», porque obrigatório. Não leio romances, a não ser livros pequenos. Levanta-se às sete da manhã. Apanha a carreira. Chega às 8 e meia. Assiste às aulas da manhã. Os «furos» no horário, consome-os no café. Às 18 horas regressa a casa. Não quero ficar em casa porque me chateio. Vim estudar para não ficar em casa. O seu desejo era seguir Medicina, mas como não tem hipóteses já se contentava com enfermagem. Não tenho possibilidades de emprego. Adorava sair daqui. Para outro sítio que não conhecesse. Gostava de ir para o Porto. Mesmo sem Medicina, mesmo sem enfermagem. Sair. Apenas sair. Mais ou menos, todas passamos o mesmo, diz-nos outra jovem, também de 21 anos, que vê diária e religiosamente o Pai Herói. Aliás, na hora da telenovela, as ruas são entregues ao silêncio, a praça, o centro da vila, torna-se um deserto, pára a vida exterior às casas. É uma saída, a evasão. Não há abertura com os pais. Não fumo

diante do meu pai porque ele não consentia ainda que saiba que eu fumo. O fim-de-semana passa-o na aldeia. Os próprios filmes que ao domingo chegam, de nimas ambulantes, ao povoado, estão-lhe vedados. São na maioria pornográficos. O último titulava-se «A Grangeadora». Mesmo esta incursão ao Capitólio do Parque Mayer algures no Nordeste tem os dias contados. O ambulante do nimas foi contratado para um circo do Porto. Fim-de-semana na aldeia: umas voltas, televisão e trabalho no campo. Às vezes folheia o Jornal de Noticias à procura de emprego. Sonho? Sair para a cidade. Aliás, hoje - o que não acontecia há 10 anos - assiste-se a um significativo surto emigratório da aldeia para a vila. A aldeia funciona para estância última de velhas à espera da queda da folha. A opinião sobre os professores é radical. Emotiva, exagerada, porventura, mas denunciadora de um clima que se vive no interior do País. Os professores? Uma porcaria. Incompetentes. Um ponto a nível nacional que nos calhe, é um desastre. Aopinião é generalizada. Nem sempre justa. Um jovem à espera de ir para a tropa, anda no 12º ano e sonha com engenharia civil. Sabe que são remotas as possibilidades de ingresso. Joga pingue-pongue na escola e ganha 4.900$00 mensais alinhando pelo clube de futebol da terra que ocupa o segundo lugar na distrital de Bragança. Se não sair? Limito-me aqui. Mas gostava de ser profissional de futebol e viver numa cidade como Espinho. Além do mais: não gosto de romances. Vejo todos os dias o «Pai Herói». Quarta-feira é o seu dia de discoteca. O som e a fúria Como fugir ao tédio de horas iguais sobre horas iguais? A esperança está nas tardes de quarta-feira. Não há aulas. Os alunos espalham-se pela Catacumba (cave dum café do bairro mais próximo da escola) onde dançam, às vezes sob piccola luz e bebem, a preços correntes, uma cerveja ou coca-cola enquanto não se adivinha a hora da partida das carreiras. Outros, mais «avançados» e provavelmente com capacidade de maior consumo, sobem à vila e entram na Noitibó, uma discoteca (a primeira da vila em termos de fundação) que abre expressamente nas tardes de quarta-feira

para os estudantes. Para as moças, entrada gratuita: para os jovens, 150$00 (direito a uma bebida, mediante apresentação de talão, cerveja ou coca-cola). Não se cabe nas duas horas de música frenética, sob a bandeira do Sunshine Reggae. Não há pista para tanta gente. O espaço, na penumbra das luzes intermitentes, é ocupado, disputado palmo a palmo, como a Costa de Caparica em Agosto, até à porta. A ordem é: Entrar, entrar todos. A flor venenosa da tarde murcha às 18, hora da partida para a solidão da aldeia. À noite, na Pinguim, outra discoteca, são os professores e professoras que dançam, dançam. É também a sua quartafeira. O seu tédio não é menor. O seu quotidiano em pouco difere dos alunos. Há caldo verde oferecido pela casa, servido por moça de mãos escamadas vestida a rigor, com gravata vermelha. Segue-se concurso de dança: tango, valsa e paso-doble.Anunciam-se e celebram-se aniversários. Uma jovem professora tirou o curso em Lisboa onde viveu durante muitos anos, foi dar aulas para Moncorvo, terra com raízes familiares mas não outras. Desde que está em Moncorvo não leu um único romance. À semelhança dos seus alunos, vê todos os dias o «Pai Herói». Vai todas as noites à discoteca, para dançar. Dá aulas. E pára pelos cafés. Vem passar as férias a Lisboa. Outras professoras e professores zarpam, no fim-de-semana, para paragens menos paradas. O seu contacto está altamente dependente do meio. Têm que se adaptar à filosofia do quotidiano de uma vila do interior onde a vida privada tem a transparência do vidro. Também os professores sonham sair. Moncorvo é terra de passagem, para fim de curso ou colocação definitiva numa cidade, mesmo que seja pequena. Às quartas-feiras o mundo é melhor: não há aulas e funciona a discoteca, uma invenção, hoje um pouco decadente, trazida para a vila, nos últimos 10 anos, pelos retornados, e que não era sequer imaginável quando o 25 de Abril fez derrubar o retrato de Salazar da sala nobre da Câmara Municipal. Mesmo 10 anos depois (e as máquinas, os jogos de electrónica, também aqui assentaram arraiais), na vila de Moncorvo, as 24 horas têm mais minutos do que nós possamos supor. Que o digam os jovens iguais aos da cidade na ausência de saídas, mas desfavorecidos nas oportunidades de acesso a um curso, de realização pessoal, de conhecimento, da vida, em suma.


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