Painel 3

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Dez anos Que mudaram Portugal

As freiras cuidam do bicho da seda

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3. O Interior Minas de ferro

Do Rei D. Sebastião ao ministro Veiga Simão

Imóvel, o único espaço de granito, assente no poder do silêncio, que continuou fechado, que o tempo e os homens foram proibidos de tocar. A quatro quilómetros de Moncorvo, como imponente fortaleza, vidros de garrafas espetados no alto dos muros, começada a lavrar em granito no final da década de 40 (mais exactamente na Primavera de 1947), ergue-se o primeiro convento das Carmelitas em Portugal, depois da sua expulsão em 1834, por Joaquim António de Aguiar, popularmente conhecido por Mata-Frades. Habitam-no 17 freiras, em clausura, que optaram fazer da sua vida uma permanência de contemplação. Têm cemitério próprio, em que já está enterrada uma freira da Ordem. Entrou no tempo, expressão da lápide, assinala o seu nascimento. São alma do convento as duas religiosas que há 37 anos, vindas de Sevilha, chegaram a terras duras do Nordeste para fundar um convento, com a planta do arquitecto Vasco Regaleira, obediente a uma arquitectura ancestral, segura às vestes castanhas. Num campo agreste semeado de centeio, oferecido pela proprietária de uma quinta próxima (dormiram as freiras durante muitos meses num palheiro), lançaram-se as primeiras pedras. Só em granito. Mais tarde, seria fundado o convento carmelita de Beja. Hoje são 17 freiras que vivem reclusas a quatro quilómetros da vila de Moncorvo. O visitante apenas pode falar com a prioresa e a religiosa que a precede na escola hierárquica (afinal as duas fundadoras), bem como a irmã rodeira, a responsável pelas compras, esmolas e necessidades burocráticas e administrativas do convento. Acomunicação com o mundo

Também para elas, estes 10 anos foram tempo de mudança: mantendo as regras da clausura, não podem, contudo, fugir a uma comunicação com o mundo, nem abdicam dos direitos que lhes foram concedidos pela Democracia. Assim, recebem dois jornais, «Ordem» e «Mensageiro de Bragança», vêem televisão, já têm máquinas de lavar e sempre que há eleições vão votar à freguesia do Larinho, onde estão recenseadas. A própria continuação das obras no convento já não pode ser sustentada em granito. Como nos dizia uma freira, de Lisboa na sua confissão apressada e com algum orgulho de permeio, tiveram que deitar mão ao tijolo e contentarse em forrá-lo com granito. Sinais dos tempos, pela primeira vez depois destes anos todos, começaram a vender vasos com plantas e a criar casulos de bichoda-seda nas suas celas, com mãos delicadas e o tempo

paciência feito. Frente aos três locutórios com grades duplas (assistimos ao encontro de familiares com a carmelita, separados por grades, enquanto na mesa se alinhavam vitualhas várias e uma garrafa de vinho da Meda) e à porta da roda puxada por uma velha corrente a que no interior responde um sino, foram já abertos os buracos com vista à plantação de pequenas amoreiras para «habitat» do bicho-da-seda. Também o convento faz parte do tecido mitológico da vila de Moncorvo. E pelas noites frias, além da malícia sem sentido, fala-se da fuga da freira linda que os pais, com abonado dote, tinham entregue à clausura. O sedutor já não a esperou embuçado e com carruagem puxada por fogosos cavalos pretos, como o temperamento bexigoso de Camilo gostaria de imaginar, mas tão-somente num automóvel, enquanto fumava um cigarro. Mas se nestes 10 anos houve alterações no convento, ao viver sem relógio, da Ordem chega o sopro quente da realidade que a rodeia, já na Igreja as alterações foram mais profundas e de imprevisíveis consequências. Presentemente, há apenas 7 padres no concelho (16 freguesias), quase todos em idade de reforma. Há 20 anos que não se ordena um padre. E presentemente, Moncorvo, não tem um único seminarista. Desfazamento da palavra

O acesso ao ensino, a sua relativa gratuidade, a gradual desmistificação do padre como a fonte mais perene do conhecimento e da sabedoria, o desfazamento da palavra da Igreja com as necessidades e realidade do seu tempo, têm sido as razões mais imediatas da escassez de vocações que, alguém ligado à Igreja nos confessava, ser motivada numa crise de fé. Por outro lado, em termos económicos e mesmo sociais, ser hoje padre já não compensa. Escassos 20 contos por ano é o que ganhou um sacerdote, por nós contactado, por paroquiar uma freguesia. Resta aos padres o ensino, concorrendo com o jovem laico que tirou um curso. Alguns, nas aldeias, têm metido os papéis para a reforma, que é mínima. As campanhas da Igreja, no distrito, nomeadamente contra o aborto, atiçadas pelo verbo populista do bispo de Bragança, já não têm o impacte de há oito ou dez anos. A juventude não tem saídas e, agnóstica, embora generosa, não acredita na liturgia dominical, nem na compensação do paraíso para as suas frustrações na terra.

Duas freiras do Convento com o repórter (foto Joaquim Lobo)

O Montesinho ainda árido e deserto

Quem do Nordeste Transmontano, quem do Douro Superior, cujo PIB por habitante não chega a metade da média nacional e onde 25 por cento do orçamento alimentar é gasto em vinho, conhece os seus mitos e fortalezas, as suas esperanças adiadas, não pode deixar de reflectir que as minas de ferro de Moncorvo têm desempenhado um farto papel na memória colectiva das populações. Às minas se prendem histórias, com aldeias calcetadas a pedra de um azul que fere ao sol ou de um triste vermelho de sangue velho. E mineiros de toada lenta, idos da Beira Baixa e cargas da GNR em alturas de greve. O arranque das minas condensa um pouco o sebastianismo de uma parte do Nordeste, ressuscitado e alimentado com o 25 de Abril. Em consequência da esperança nasceu à beira, no Carvalhal, um povoado, na sua quase totalidade composto de construções clandestinas, com dois restaurantes, um recente e pequeno hotel, oficinas pensando-se indústrias subsidiárias do D. Sebastião regressado de Alcácer, que seriam as ferrominas a funcionarem, empresa pública a partir de 12 deAbril de 1977. Há escassos dias, Veiga Simão anuncia que o Projecto Siderúrgico Nacional vai ser congelado, pelo que a Ferrominas vai continuar a ser um projecto adiado metido, à espera de melhores dias, no frigorífico da austeridade. Em tempos de passado curto, ministros das Finanças como Morais Leitão e João Salgueiro tinham-se oposto ao projecto que necessitava, a preços de 80, de um investimento de 12 milhões de contos. Baião Horta enquanto ministro da tutela, bateu-se pelo arranque do projecto; os políticos, sem excepções na sua cor partidária, enquanto sanchos travestidos de quixotes em campanha eleitoral, defenderam o projecto.Acreditava-se que D. Sebastião um dia havia de morrer. Mas não. Feitas as contas, dos filões podiam ser extraídas duas mil toneladas por ano. No seu total, os jazigos conservam para exploração, 600 milhões de toneladas de ferro, de teor pobre, é certo, mas com a nova tecnologia, já rentável. À espera, sempre à espera… Desmamada a esperança, a crer nas palavras do ministro da tutela, fica ao repórter um condicional de melancolia. Ouvira dizer ao director das minas, engenheiro Monteiro de Barros, no seu trajecto pelo concelho, que o projecto mineiro deveria arrancar em 1986, dando corda à esperança talvez já em 1985. Visitávamos o Museu do Ferro, em manhã de termómetro baixo, guiados entre a mitologia e a historia. O engenheiro Monteiro de Barros chegou há mais de 30 anos a Moncorvo. Técnico jovem, com muitas solas gastas nas ruas de Lisboa, acumulou livros, álcool quanto baste e um conhecimento do ferro, único no País. Todo aquele passado, de um projecto que não passa de o ser, é um pouco seu, exactamente dele que não acredita em D. Sebastião. Feito este parêntesis, mergulhemos no condicional melancólico. A não ter havido o congelamento ministerial (um simples e repetido plágio dos poderes desde Abril) repensavam-se os estudos técnicos já existentes da construção de barcaças para o transporte de 1200 toneladas de ferro, caso o Douro se tornasse navegável, a serem construídas nos estaleiros de Viana do Castelo. Desceriam o Douro, cinco barcaças por dia, com partida do Pocinho e chegada a Crestuma, rumo ao mar. Transportariam oito mil toneladas diárias. Há 10 anos - ainda que a exploração do ferro já fosse

diminuta - viam-se, ao frio da madrugada, homens em tronco nu, carregando pás cheias de calhaus de ferro do vagão vindo do Carvalhal para o vagão que partia do Pocinho em direcção a Leixões. Mas o sonho das barcaças, o negócio das barcaças, também esse foi adiado. Restaria a Linha do Sabor, que, começando a ser construída em 1911, só viria a concluir-se em 1983. As razões pretextadas para a sua finalização, prendiam-se, fundamentalmente, com as potencialidades do ferro existente na região. Muitos anos depois, com rigor no Verão de 1979, a CP em maré de redução de custos, tenta acabar com a Linha. Deficitária, também ela esperava tempo de mais pelo arranque da Ferrominas. As populações levantaram-se em pé de guerra, bairristas questionaram o Poder central. Hoje, um comboio ronceiro, com vagões de mercadorias, circulando duas vezes por semana, dá um sabor de memória infantil à paisagem. Mas a Linha tem resistido apenas, mau grado agitações exaltantes, à espera do arranque da Ferrominas. Com este congelamento pode estar definitivamente ameaçada a sua continuação. Aeuforia de 50 Hoje o empreendimento mineiro de Moncorvo vive numa apagada e vil tristeza. Há 10 anos não tinha mais de 40 trabalhadores. Com Abril chegou a esperança de que com o arranque iam surgir criando, pelo menos, 550 postos de trabalho, 368 dos quais seriam preenchidos por elementos da região. Hoje, goradas as esperanças, os empregados não atingem uma centena. De 1951 a 1953, data do início da exploração, deu-se a grande euforia. A Ferrominas chegou a empregar então 1200 homens vindos de todas as partes do país. Com o decorrer dos anos, a exploração foi diminuindo quase por completo. A concorrência do ferro do Terceiro Mundo era grande e as siderurgias europeias exigiam minérios muito mais ricos. Com o 25 de Abril pôs-se o problema: seria necessário procurar novas técnicas que purificassem o fósforo até 0,1 por cento de fósforo (a percentagem indispensável para o tornar concorrencial) ou então enveredar por uma outra concepção de politica mineira que passaria pela ocupação, a 70 por cento, dos fornos do Seixal com matéria- prima interna e pelo levantamento de uma campanha apelando aos portugueses para um maior consumo de aço. Hoje porém, é com algum cepticismo, reforçado já em Lisboa, que, por um caminho poeirento, entre castanheiros, subimos até ao alto do Carvalhal ou viajamos, em espiral, até ao Cabeço da Mua, onde assenta o grosso dos jazigos. Aqui, na década de 50, morreu um mineiro numa exploração, mais além, era a casota pequena onde muitos deles viviam, com direito a lenha e a uma determinada quantidade de aguardente para aquecerem. A exploração era a céu aberto, ao esforço das picaretas. Hoje tudo estava programado para maquinaria sofisticada e mão-de-obra mais qualificada. E 10 anos depois de as populações acreditarem, quase violentamente, que as minas iam arrancar, as pessoas perguntam-se: para quando é o amanhã? As promessas do Poder central têm sido muitas mas as suas respostas têm conduzido ao mesmo: depois de 10 anos, as minas mantêm-se paradas e o sonho alimentado do grande desenvolvimento regional em torno de um projecto de dimensão nacional, cada vez mais envelhecido, como as populações que vão morrendo enquanto esperam que as máquinas cheguem para derrubar montes prenhes de ferro.

Ninguém quer viver nas aldeias. Os jovens estudam para fugir ao campo, esperando chegar um dia à cidade. Os adultos emigraram para a França e a Alemanha. Só as pedras se mantiveram.

Ainda o sonho das minas não morrera e as casas iam crescendo à espera de um milagre. Milagre não houve, mas as casas continuaram a crescer.


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