torre de moncorvo MONCORVO,
1974 ZONA
QUENTE
NA
TERRA
FRIA
-
2
Texto de F. ASSIS PACHECO Fotos de LEONEL BRITO
ANO
ZERO
NA
ALDEIA
DOS
ESTEVAIS
Em terras de Moncorvo, nascida não se sabe bem porquê nos granitos de uma fragada sobranceira ao vale da Vilariça, a aldeia dos Estevais está praticamente no ano zero. Eis o «largo» da igreja, onde as lajes salientes não dão passagem a automóveis. (LER NA PÁGINA CENTRAL)
Em «ruas» como esta, nos Estevais, é melhor não trazer galinhas à solta. Por causa da multa
E S T E VA I S , A N O Z E R O
Entra-se em Estevais a pé, de burro ou de macho Chega-se a Estevais por uma estrada de macadame vinda cá do fundo da Portela, depois de muito subir com o carro em segunda. Nós ao pé da aldeia e quase a não vemos ainda: está escondida, parece que desde tempos recuados, talvez por um movimento estratégico da população numa era que poderá ter sido a das razias árabes. Entra-se em Estevais a pé, de burro ou de macho: o automóvel não passa da estrada e não passa da periferia da aldeia. Em Estevais têm-se lembrado de tanta coisa, até de viver, mas nunca ninguém se lembrou de exigir ruas transitáveis. Que vemos? Um velho montado num jerico. Uma praça cortada em rocha, onde todo o cuidado é pouco para se não cair de borco. Raparigas ao fundo e outro velho, e uma velha, encostada esta gente de ambos os lados da porta do «soto» (loja). Meia dúzia de galinhas debicando, um peru entre elas. Entrei a pé, direito ao «soto» do sr. António Augusto Vilela. O homem não se encontrava lá: sim a mulher e uma filha (uma das raparigas), que me fizeram boa recepção. Nas prateleiras do «soto» topavam-se r e f r i g e r a n t e s , a m e n d o i m , a ç ú c a r, bicarbonato, baterias para rádios transistorizados, chouriço e petróleo, além de tabaco. Perguntei à dona da casa quanto tinha vendido nesse dia. Encolheu os ombros: «Pouco. A bem dizer quase nada. Umas coisas pequenas, não sei…» O «soto» é também o posto local do Correio, com telefone. Reparei que as listas de vários anos se amontoavam numa mesinha. O meu cicerone, compadre do sr. Vilela, quis saber do filho solteiro da casa. «Ah, esse» - fez a mãe - acabou a tropa
não sabe para onde há-de ir. A velha que apanhava o sol meteu-se na conversa: «Aqui não se faz nada. Há vinte anos havia por aí muita gente, era o tempo do minério.Agora é só para se estar.» A própria agricultura, de subsistência, é cada vez mais «para se estar» - em pobre e em abandono. Quanto ao dono do «soto» o sr. Vilela, foi e é uma pessoa importante (leia-se o adjectivo com reservas). Anos atrás comprou uma malhadeira, pô-la a trabalhar, ganhou dinheiro. Mas a malhadeira exige mão-de-obra, coisa que desandou, e entretanto vieram as ceifeiras, ou seja o grau seguinte de mecanização… Adeus fortuna que te não vejo. Restam o «soto» e a posição social. «Nessas fragas» - explicou a mulher do sr. Vilela - «lavravam-se uns campinhos de centeio com uns machos, hoje ninguém lavra. Só há carrascos e giestas.» Numa volta pela fragada pude ver algum centeio em trechos exíguos de terra. Não, nem para o pão dá. A velha que apanhava sol foi terminante: «Não coze ninguém. O pão vem de Moncorvo.» Todos os presentes fizeram que sim com a cabeça: «De Moncorvo.» BATATAS, FEIJÕES E GRELOS A pergunta do costume («quanta gente vive na terra?») Provocou discussão. Hesitava-se entre sete, oito, nove dezenas de pessoas. Fogos habitados, talvez uns vinte. «As casas, a gente vai a contá-las e não demora!»
O velho interessou-se pela comida de Lisboa: falta alguma coisa? O bacalhau, como nos Estevais? Ou o açúcar? Ele bem sabia a explicação: «O bacalhau, quando o venderem, está podre.Armazenam-no para ele subir…» A velha (depois soube: a mulher do velho) inquietou-se com o açúcar: «Diz que já o não fabricam!» Nos Estevais, tirando os dias da alheira ou da galinha, que não são o dia-a-dia, comese dieta de pobre. «Batatas, feijão e grelos» - disse o velho. «E a alheirita, e a alheirita» - contrapôs a dona do «soto». «Grelos, mulher» Era a voz do velho, a memória recente do velho, ambas irritadas. Amulher do sr. Vilela contou ainda: «Hoje ao almoço foi café, ao jantar por aí uns grelos e a alheirita. Quando apetece à gente, ajeita-se um requito.» A velha estava nitidamente um furo abaixo deste menu. «Salada de azedas» - mastigou em seco. - «Ou batatas, catancho!» Dos Estevais emigrou-se para o Brasil, para a Espanha, para a França, para a Alemanha. Mais para a França O velho, antigo soldado da guerra 14-18 em Moçambique («já somos poucos, é um em cada freguesia, como os cucos»), não teve ganas, nem pernas, para tentar o «salto». Deixa-se estar, quietinho, ao sol. Emigrantes são chusma de verão, e deles pelo Natal, sim senhor. Um até mandou uma fita gravada para um amigo: «olha, vai à minha sogra e dá-lhe um abraço; não, não lhe dês um abraço que ela só tem ossos, dá-lhe uma mãozada!»
Deixa-se estar porque os Estevais, não produzindo quase nada, sempre fazem crescer umas batatas, uns feijões e uns grelos. Na Vilariça? Na Vilariça é a riqueza. «Mas a gente» - avisou ele - «vai à Vilariça e é dos outros. Ninguém de cá tem lá um barral.» A sua fixação - a comida - levou-o a gemer: «A galinha comemo-la só quando estamos a morrer». Sempre sobre a emigração, confirmou que era «quem pôde ir». GALINHAS AO AR LIVRE Não há carreira para a fragada, isto é, quem quiser ir daAdeganha, ou da Cardanha, ou dos Estevais até à vila, distante no mínimo 10 quilómetros, tem de mandar vir um carro de praça ou pôr-se à espreita de uma boleia. O carro de praça leva 80$00 para o trajecto Estevais-Moncorvo, dos Estevais à Cardanha 20$00. «As galinhas não ficam debaixo dos carros?» - perguntei. «Não senhor» - riu-se a mulher do sr. Vilela -, «andam só por aqui pelas ruas.» «Fogem para a panela» - casquinou uma rapariga. «Nós quando vemos a Guarda» continuou a dona do «soto» - «trazemo-las para dentro, senão multam-nos.» Uma galinha apanhada à solta, ao ar livre numa «rua» dos Estevais, vale «oitenta e croa» de multa. «Já multaram aí umas duas ou três pessoas» - informou um dos presentes.