torre de moncorvo
MONCORVO,
1974
ZONA
QUENTE
NA
TERRA
FRIA
-
3
OS VIZINHOS AJUDAM OS VIZINHOS A PA R T I R A A M Ê N D O A N O I N V E R N O Texto de F. ASSIS PACHECO
Na manhã em que o automóvel do meu companheiro Leonel (Lelo) Brito parou no Peredo, antes de eu ver qualquer coisa comecei foi a ouvir: era um som esquisito, inidentificável pelo homem de fora, metálico, monótono. «Que se passa?» perguntei, fiado em que qualquer canalizador de Moncorvo montava na aldeia mais uma casa de banho para emigrante. «Ah, este barulho» explicou-me o Lelo «é a partirem a amêndoa. Eu já te mostro.» A amêndoa colhe-se em Setembro-Outubro para ser partida depois de Novembro, mas pode ficar em casca, conforme as conveniências do dono, às vezes um ano ou mais. Todavia, a «partidela» (designação popular da operação, sempre colectiva) faz-se habitualmente no Inverno, a estação das noites longas. E não ocupa só as noites, mas os dias e as tardes. O tal som metálico que eu ouvia era o da percussão (um, dois toques por amêndoa) da amêndoa sobre uma pedra, mediante pancadas dadas com um pedaço de cano de ferro. No Peredo dos Castelhanos colhem-se 3.000 arrobas de amêndoa em anos recentes.A arroba esteve no princípio do Inverno a 1.200$00 (em miolo), para subir depois aos 1.400$00 ou até 1.500$00. A gente do Peredo considera estes preços «uma fortuna»,
se bem que receie uma baixa do valor do produto já na próxima colheita: é o que lhe ensina a experiência dos altos e baixos… «Há colheiteiros de amêndoa que tiram duzentas e trezentas arrobas» asseveraram-me no Peredo. (Os restantes, ou seja a maioria, andam na casa das dezenas, se tanto). Quem «faz» amêndoa? Os proprietários dos amendoais, claro, frequentemente proprietários novos, pois «os ricos têm vendido aos pobres» (emigrantes). Além dos proprietários, também os rendeiros, quando os há - e há naturalmente muitos.Em tempo: quando a mão-de-obra não faltava como agora, praticava-se o sistema do «terceiro», isto é, quem cuidava da terra para um proprietário ficava com a terça parte da produção, números redondos.
Construção aldeã (Urros): a porta mais recente, levou tijolo em vez de pedra
Faltaram os braços e... os «terceiros» transformaram-se regra geral em «meeiros». Enfim, há quem disponha de amêndoa por simples compra, sem possuir amendoais. A «partidela» da amêndoa mobiliza as boas vontades de uma aldeia. O vizinho ajuda o vizinho, que por sua vez o ajudará. (E leia-se «vizinha» que está mais certo.) Um proprietário aflito recorre ao contrato de «partideiras» experimentadas, pagandolhes em média 50$00 por dia útil e sobrecarregado. MEIA ARROBA POR DIA (COM COMIDA) Uma «partideira» parte um mínimo de meia arroba por dia: junta-se com outras nos «salões» e é um ar que lhe deu (à amêndoa). Um ar mecânico, disso não resta dúvida, a desgastar as forças e a paciência, a provocar não poucos golpes nos dedos.
A AMÊNDOA COBERTA E A GASOLINA Na segunda-feira que passei em Moncorvo as cobrideiras de amêndoa estavam desoladas: tanto confeito apurado ao lume, à espera dos visitantes, e o negócio por água abaixo… «Com esta coisa da falta da gasolina ninguém quer vir ver as amendoeiras» - queixou-se-me o dono dum restaurante, que também ficara com talheres (muitos) por sujar. O confeito de amêndoa coberta, coberta com açúcar ou açúcar e chocolate, é uma especialidade famosa de Moncorvo. Um outro fabricante poupa na amêndoa e mete lá dentro só metade, ou mesmo um amendoim (referência colhida num programa satírico das festas da vila). Mas não tomemos a parte pelo todo, que seríamos injustos. Região rica de amêndoa, o concelho de Moncorvo contribuiu para uma boa porção das 3.993 toneladas de amêndoa em miolo exportadas entre Janeiro e Novembro de 1973 últimos números oficiais conhecidos. Os principais importadores dessa amêndoa foram, por ordem decrescente, a Alemanha Federal, Bélgica Luxemburgo, Suécia, Reino Unido, Dinamarca, Holanda, França, Itália e Finlândia. A Alemanha Federal comprou, em Janeiro-Fevereiro do ano passado, nada menos de 1.552 toneladas por 106. 762 contos; a Finlândia 69,6 toneladas por 4.531 contos; a seguir à Finlândia aparecia a Angola, com 32,3 toneladas valendo 2.642 contos.
Fotos de LEONEL BRITO
Há quem tenha maquinaria para executar este trabalho. A máquina é chamada no Peredo também «partideira», e torcem o nariz quando se fala dela. Por isto: «É mais rápida, sim senhor, mas esborraça a amêndoa molar, aquela que se parte com os dentes.» Quem parte amêndoa para alguém, pago ou não, recebe comida e bebida desse alguém. As «partidelas» redundam, pois, num misto de trabalho duro e pausas conviventes. Não se desejam às damas da cidade, como me lançaram com um sorriso de mofa. AS CONTAS DO GUARDA-FIOS No Peredo vimos a escola primária, um «salão» de amêndoa, uma pequena taberna, algumas casas de habitação. O resto do tempo passámo-lo, eu e o Lelo, a conversar com residentes. Ao almoço, oferecido por uma família dos conhecimentos do meu companheiro, entrámos no menu da época: salpicão, alheiras, grelos, batatas, queijo e vinho (o que constituía um festim apreciável, porque a população pobre resume-se muita vez a uma dieta de batatas e grelos). Ataquei o sr. José Correia, guarda-rios, com a pergunta sacramental: «Quanta gente vive na aldeia?» José Correia pôs-se a fazer contas de cabeça: a bem dizer conhece o Peredo casa por casa, família por família. Concluiu com a informação de que tinha cerca de 200 habitantes antes da emigração, estando hoje com 120. Entretanto, para demonstrar que as estatísticas eram assunto dele, pegou num papel e numa esferográfica e começou apontar os emigrantes, velhos e novos, homens e mulheres, famílias completas (o que tem sucedido mais no Peredo do que noutras aldeias). «Então?» «Bom» matutou José Correia , «tenho aqui 91, e alguns a gente não se recorda.» Antes havíamos falado em mais de 200 emigrantes só na França, o que terá sido exagero. Apesar do que - acrescentaria o guarda-rios com absoluta convicção - homens de 30 anos é difícil subsistirem no Peredo, dos 25 aos 40 «não há mais de cinco pessoas». A emigração não estaria a correr pelo melhor, disse ainda José Correia. Este ano já ficaram na aldeia «uns cinco ou seis».
Raparigas na partidela da amêndoa (Peredo dos Castelhanos) Emigrantes, alguns deles, com a sua casa de banho montada. Uns doze até ao momento. Sem água canalizada, que terá de vir de Urros. Idos os emigrantes, muita coisa se alterou no Peredo, a velha aldeia repovoada em 1530 por oito famílias espanholas de Freixeneda. Entre as alterações, uma sintomática: ninguém praticamente coze ali pão. O pão trazem-no os padeiros do Escalhão ou de Mirandela. Mas no Peredo existe uma moagem (do regedor)! Do Peredo anda muita juventude a estudar. Não apenas na escola primária - também na Escola Secundária de Moncorvo (aboletada essa juventude na vila servindo-se das duas carreiras diárias de camioneta) e inclusivamente na Universidade. O Peredo contaria hoje de 20 a 30 alunos universitários: disse-mo pessoa fidedigna, e espantou-me com isso. Registo o número tal e qual, sem encontrar para ele uma explicação correcta.
E seria, pois ninguém refilou. E seria, pois o patrão do homem colheu este ano 600 arrobas de amêndoa em duas aldeias, e 300 almudes de azeite, e 80 pipas de vinho (quase todo do Porto, o que deu 700 contos de «benefício»). Um latifúndio ancorado em região de minifúndio corrente, onde «não há ninguém, mais de metade dos homens foram-se embora» (voz do feitor). Em Urros, terra com produções idênticas - amêndoa, azeite, vinho - , ainda se tece em teares manuais, como aliás no Felgar, aldeia natal do meu camarada de redacção Afonso Praça. Estava uma velhinha a fiar lã de ovelha e estava uma outra a tecer uma «cortcha» (colcha) de borboto. «O borboto, quando é trabalho grande, dá uns dois contos por peça» - Contou-me a tecedeira. - «O ano passado estava a um conto e quinhentos». Gosta mais de «felpas», que enchem a vista, e a pedido é
Urros também foi vítima da emigração, uma emigração que manda aldeões para a França e para a Alemanha como outrora os mandava para Lisboa. «O senhor admira-se de haver muita gente de Urros em Lisboa?» - admirou-se uma vizinha da velha tecedeira. «Pois em Lisboa, fique sabendo, há mais gente de Urros do que em Urros.» Não resisto a fechar esta caminhada com uma história local. Se for cedência, é sem exemplo. Em Urros existia um santo que às tantas desapareceu. «Está a ser restaurado» - disse pessoa culta. «Roubaram-no» -argumentou parte dos habitantes. E o santo de Urros iria provocar correrias, discussões azedas, desconfianças, idas à vila, alguma punhada à mistura. Não houve outro jeito senão trazê-lo depressa. Quando o santo voltou, uns reconheceram-no,outros
Uma tecedeira de Urros, entregue à arte dos borbotos e das felpas. URROS E MAÇORES Na vinda do Peredo o automóvel fez sucessivas paragens em Urros (400 e tal fogos) e Maçores (centena e meia). Um homem dali, feitor de um grande proprietário, orgulhou-se ingenuamente da riqueza do patrão: «É deste cabeço àquela encosta. Tudo, tudo nosso!»
capaz de fazer mantas de «ourelos» (farrapos). Tudo isto encarece de ano para ano, à medida que a arte vai morrendo. Só em Urros soubemos de uma tecedeira nova, o que é a excepção à regra. Comentário a propósito: «Elas agora só querem estudar!» E este, partido do mesmo grupo de mulheres: «Só querem andar ao ar!»
levantaram a hipótese de ter sido perpetrada uma sinistra operação de troca. Digamos que em 1974 o santo de Urros já não desperta estes arrepios. Mesmo assim um aldeão mantinha-se ainda há pouco tempo na sua: «O outro santo olhava para a gente, que eu bem no via, este não: é mais senudo!» (arsudo).