HANB URB VON BALTHASAB
o cristão e a angústia traduç&> de
ANTONIO ALVES GUERRA
LIVRARIA SÃO PAULO
DUAS
CIDADES 1963
TtTUL0 ORIGINAL: DEB CBIUBT UND DIB ANOBT (COPYRIGHT BY JOHANNICS VERLAG, EINSIEDELN, 1953) I DIREITOS DE TRADUÇÃO PARA A LlNGUA PORTUGUESA RESERVADOS POR LIVRARIA MORAIS EDITORA, LISBOA
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0011 AS NECICSSAJUAS LICENÇAS
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INTBODUÇAO
Pode dizer-se, sem medo de errar, que o estudo tão profundo e apesar disso tão claro de Kierkegaard, que tem por titulo O Conceito de Angústia (Begrebet Angest. 1844), foi a primeira e a última tentativa para tratar este tema do ponto de vista teológico. Antes dele, na história da teologia, não se encontra essencialmente mais do que foram capazes de dizer desta passio animae Aristóteles e os Estóicos; e porque S. Tomás não desenvolveu aquele topos, nem a própria angústia pessoal do Refarmador alemão teve acção fecundante sobre a teologia sistemática, que em breve recaiu nos esquemas da escolástica. Foi só ao aparecerem os primeiros sintomas da moderna angústia perante o mundo com o materialismo do século XVIII e, mais ainda, com o post-romantismo dos inícios do século XIX (isto é: aos primeiros anúncios da hodierna psicose de fim do mundo) que os grandes filósofos se resolveram a fazer da angústia um tema central da ontologia e da religião: Schelling, Hegel e Baader, todos três citados por Kierkegaard, deram a este último aquele impulso imediato que o levou a tratar o tema como teólogo (ainda que apenas propedêuticamente, ou, como ele mesmo diz, «psicológicamente:&, e não de maneira própriamente «dogmática>). Que ele não soubesse decidir-se por uma dogmática e ficasse voluntàriamente no terreno da
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psicologia - naturalmente com a única intenção de a fazer convergir na inelutabilidade da verdade dogmática - ; que, por conseguinte, a angústia continuasse a ser para ele uma questão do espírito finito presa do terror defronte da própria infinitude; que, além disso, Cristo e Deus quase não sejam nomeados neste livro de inspiração indubitàvelmente cristã- são tudo razões que explicam o destino que o livro teve depois: fruto de considerações e impulsos filosófico-psicológicos, em seguida não se livrou deles o suficiente para poder fugir à cisão da filosofia da psicologia, com uma con . . seguente dupla laicização. O meio século que intercorre entre Kierkegaard e Freud e os trinta anos que passam entre Freud e Heidegger tinham visto crescer a moderna angústia da existência de um modo tão tempestuoso, que este único tema se tornou pretexto e objecto da análise da «angústia~. As profundas, mais, as atormentadas análises de inspiração teológica de Kierkegaard serviram de base à psicanálise e à filosofia existencialista, para uma representação dos abismos e dos auto-encontros do espírito finito, empreendida a partir do ângulo visual da posição espiritual dos- tempos hodiernos. ainda que depois, tanto nas intenções como nos desenvolvimentos, a obra dos psicanalistas e dos existencialistas se apresente muito diversa. Agora, por mais que se queira tomar posição, do ponto de vista teológico, contra estas duas orientações - e com quanta razão! - os factos permanecem os factos e não se pode afirmar que qualquer delas se tenha movido em esferas abstractas e avulsas, porque, ao contrário, tomaram como ponto de partida e modelo entidades bem reais do mundo moderno, do
INTRODUÇA.O
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seu espírito subjectivo e objectivo, e ambas procuraram a seu modo - com meios talvez por demais inadequados - superar o sentimento de angústia do espírito moderno. A falta de uma séria teologia da angústia perante a maré enchente da mesma angústia e também em relação às tentativas de interpretação e superação feitas pela filosofia e pela psicologia, tem-se revelado tanto mais penosa quanto é certo que tanto o fenómeno em si como o esforço de o interpretar não podiam parar no limiar da Igreja; pelo contrário, fizeram sentir violentamente a sua presença dentro da própria cristandade. E isto não apenas no sentido de que se multiplicaram as acusações movidas de fora ao Cristianismo de ser uma religião de angústia e que psicanalistas protestantes (Oskar Pfister: Das Ohristentum utul die Angst, Zurique, 1942) procuraram, com e contra Nietzsche, estabelecer até que ponto isto era verdade, tanto em relação ao Cristianismo em geral como às várias confissões, mas também pelo facto de espíritos qualificados dentro da Igreja terem tratado o tema para o ilustrarem e interpretarem. Como tantas vezes tem acontecido nos últimos tempos, foram sobretudo os poetas a preencher a lacuna deixada pelos teólogos: Bloy, Bernanos e Claudel, na França; Gertrud von Le Fort e muitos outros que se interessaram pelo espírito do Carmelo, na Alemanha. E se hoje um teólogo se interessa por um tema maduro já de há muito (valha aqui o ditado: mais vale tarde que nunca), isto acontece não só para continuar a obra de Kierkegaard na direcção da dog~ática, mas também para levar um pouco de clareza e de tranquilidade àquele campo da proble-
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mática em que, dentro e fora da Igreja, as partes opostas se disputam com tanta violência. Seria já um primeiro passo para a clarificação se nós, ao fazermos expressamente teologia, nos virássemos para as f antes da Revelação, desviando-nos ao mesmo tempo da problemática da humanidade e da época actuais. Nem o espírito nem a alma com a sua angústia, sobre que se concentra a maior parte dos estudiosos modernos, são, desse modo, medida e garantia para uma justa visão e interpretação do real, mas sim a palavra de Deus, que está acima do espírito, da alma e das angústias. Temos, assim, a garantia de nos distanciarmos do febril problematizar da alma moderna, da sua cultura dada por decadente e condenada a desa· parecer, da sua angústia religiosa e da sua religião da angústia, com os seus esforços bastante paradoxais de curar um doente já dado como perdido, de nos dis· tanciarmos daqueles cristãos, profetas da desgraça, que põem toda a sua agudeza e o seu radicalismo em anunciar o próximo total crepúsculo de tudo aquilo que hoje constitui a Igreja e, misturando Spengler com o Apocalipse, se julgam com a divina missão de propalar as suas f atalísticas visões, dando um magnífico exem.. plo de cobardia, e de nos distanciarmos, finalmente, daqueles expoentes de uma cobardia em sentido contrArio, que quereriam uma teologia serena, sorridente e absentista, cega e surda à angústia e ao desorienta.. / menta dos tempos e aos apelos de socorro. Repudiando tanto o fatalismo de uns como o absentismo dos outros, não devemos fazer mais do que procurar ouvir a palavra exacta de Deus sobre o tema que agita tão profunda-. mente os nossos tempos, não nos limitando a registá-la
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tão-somente, mas esforçando-nos por compreendê-la e por nos apropriarmos dela. Se conseguirmos receber com olhos e ouvidos puros a divina Revelação, será menor o perigo de confundir, com o fenómeno mais profundo e total da angústia, uma forma particular, limitada, de angústia, devida a particulares motivos, isto é: o medo do homem moderno no mundo mecanizado, do homem impiedosamente engolido, com a sua frágil estrutura corpórea e espiritual, por um monstruoso mecanismo dentro do qual ele é reduzido a fazer as vezes de uma roda, a angústia do homem imerso numa civilização que rompeu toda a humana medida, cujas forças desencadeadas f agem a qualquer fiscalização - o terror que está na base de todas as nevroses modernas. Expressão esta de «nevrose moderna>> que soa quase como uma tautologia, pois que, dantes, em épocas mais humanas, nevroses não as havia, como também não existia a necessidade do seu venenoso contraveneno - a psicoterapia. Uma teologia da angústia considerará esta tão exa.. gerada angústia dos nossos tempos apenas como uma manifestação daquela angústia de que fala a Revelação e que está sempre presente no homem, porque a Revelação foi feita para cada homem e para cada geração; ela aplicará a esta angústia os critérios que valem no céu e, com isso-consequência de capital importância-, fornecerá também os critérios válidos para a angústia moderna. De facto, é claro que o teólogo tem por função tornar compreensível a Revelação divina, não em si, abstractamente, mas aos homens do seu tempo, interpretando-a de maneira adequada às suas necessidades e anseios.
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Se se tomarem todos os passos da Escritura que fa· lam da angústia, descobre-se que têm necessidade de ser sistematizados e, a seguir, interpretados. Efectivamente, alguns passos quase se contradizem entre si ou contradizem eventos históricos; por isso, se queremos compreendê-los e reconhecer neles uma força propulsara sobre o desenvolvimento da existência humana, devemos interpretá-los dentro de uma visão global do sentido da Revelação, a qual visão, todavia, será sempre influenciada pela espiritualidade do presente, porque a palavra de Deus dirige-se à humanidade tal qual esta é, ou se torna, com o rodar dos tempos. Neste sentido, encontram-se e entrecruzam-se a teologia da angústia, a perenidade e a actualidade. Uma tal teologia deve partir da palavra da sagrada Escritura, onde esta se ocupa expressamente da angústia, do seu valor ou desvalor, do seu sentido ou não sentido. Ã tradição, que nunca se ocupou, que saibamos, destes problemas - o mais que se pode dizer é que o fez indirectamente, enquanto, por exemplo, a doutrina do timor (servilis et filialis) intervém na dou .. trina da graça e dos sacramentos - não podemos pedir luzes. Os passos da Escritura serão pois, e antes de mais nada, catalogados, de modo que do seu elenco resultem, ao menos, os primeiros contornos de uma interpretação. Esta interpretação será depois o objecto da segunda parte: trata-se de fazer realçar a multiplicidade do fenómeno da angústia tal qual resulta da variedade dos textos, de tornar claras não só as diferenças, mas também os nexos e os movimentos que ligam uma estratificação à outra; como resultado concreto dever-
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-se-ão. finalmente. formular leis. que valham tanto para a teologia cristã da angústia como para a prática da vida cristã. Na terceira e última parte. procuraremos penetrar ainda mais profundamente na essência da angústia. Teremos. aí. ocasião de tratar as tentativas de interpretação filosófico-teológica de Kierkegaard e dos seus continuadores. e ver-se-á então se o ponto de partida bíblico pôde trazer um contributo maior e mais profundo do que o ponto de partida «psicológico» do grande dinamarquês.
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Percorrendo os textos da sagrada Escritura que falam da angústia, f ar-se-á esta primeira verificação: a pa.. lavra de Deus não conhece o medo da angústia; afronta .. a na mesma posição de franqueza e força que assume diante de tudo aquilo que caracteriza o homem como tal (e nós conhecemo-lo unicamente na condição do «pós-Queda» e da redenção em vias de consumar-se). Tal como a dor e a morte, a angústia não constitui um pudendum para a palavra de Deus. Pertence-lhe, com efeito, «ser juiz de todos os pensamentos e movimentos do coração; nenhuma criatura se esconde da sua presença: mas todas as coisas estão a nu e a descoberto a seus olhos~ (Heb., 4, 12-13). Assim como o Verbo não intenta preservar o homem terreno da dor e da morte, assim também não desceu à terra simplesmente para lhe tirar de cima o fardo da angústia ou para o preservar dele; finalidade esta perseguida por uma filosofia ou sabedoria da vida como a estóica e, mais ou menos explicitamente, por todas as filosofias ou éticas, por todos os humanismos imanentes: dar ao homem um ponto de apoio para combater e dominar aquelas três forças obscuras. Por outro lado, não é lícita a afirmação contrária, isto é: que a palavra de Deus manifeste um particular e curioso interesse pela angústia do homem e da criatura em geral, que a ponha em foco, a queira,
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ou, mais ainda, a incremente. Não, ela considera-a como um dado fundamental da existência humana, para lhe imprimir um novo valor do alto do seu elevado observatório: tudo o que é humano é argila nas mãos do Criador e do Redentor. O que Deus fizer da angústia, nesta nova criação não se pode deduzir da própria angústia, nem é possível predizê-lo. A redenção do homem não é menos espontânea do que a sua criação, é-o ainda mais, e só se pode compreender no próprio Deus. A angústia é para a palavra de Deus, antes de mais nada, qualquer coisa como um dado genérico, fundamental, neutro, da existência humana. «Grande miséria foi imposta a todos os homens e pesado jugo carrega sobre os filhos de Adão, desde o dia em que saem do ventre de sua mãe até ao dia do regresso ao seio da mãe de todos: os seus cuidados, os s9bressaltos do coração, a apreensão do que esperam, o dia em que tudo acaba; desde o que está sentado sobre um trono de glória até àquele que jaz abatido na terra e na cinza; desde aquele que veste púrpura e cinge a coroa ao que está vestido de estopa, tudo é furor, inveja, inquietação, perplexidade, temor da morte, ressentimentos e contendas. E até no tempo de repousar no leito, o sono da noite lhe perturba o espírito. Por pouco tempo, um instante, goza de paz, e logo em sombras se afadiga como de dia, como um fugitivo tentando escapar aos seus perseguidores. No momento de se pôr a salvo, acorda e todo se maravilha porque era vão o seu temor:. (Ecli., 40, 1-7). Este é um medo neutro e geral, que tem em seu poder grandes e pequenos, sacerdotes e leigos, e não
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poupa ninguém entre «o seio materno» e a «mãe comum». Não é por acaso que esta palavra cósmica é aqui empregada, tratando-se do destino geral, que caracteriza a criatura terrestre como tal. Um destino que fere tão fundo, que revela qualquer coisa de abissal na vida para que não se pode encontrar refúgio e evasão nem nos recessos do próprio sono e na pretensa inconsciência do mesmo.. O homem que no sono se refugia do aguilhão da vigília quotidiana, é repelido de novo para os redemoinhos das preocupações de todos os dias, com uma angústia duplicada pelo facto de se revelar agora sem nenhum fundamento. A angústia é o deno.. minador comum a que se reduzem a realidade quotidiana e a irrealidade do sonho; e é porque se devem reduzir a ele que a angústia existe. Começa, assim, a desenhar-se o enorn1e paradoxo da existência na Antiga Aliança: uma existência finita, inscrita entre o nascimento e o retorno à «mãe comum>>, e, dentro destes dois termos - para além dos quais reinam as trevas o preceito de estar na luz de Deus e de gozar do seu dia (do dia temporal, passageiro) e da sua luz imperecível.. «Porque só aquele que vive tem alguma esperança; porque vale mais um cão vivo do que um leão morto; pois que os vivos sabem ao menos que têm de morrer, mas os morto~ não sabem nada, nem esperam recompensa, tendo sido esquecida a sua memória. Seja o amor, seja o ódio, seja a cobiça, para eles tudo se acabou, e nunca mais tomarão parte em nada do que se passa debaixo do sol.. Anda! come alegremente o teu pão e bebe com alegria o teu vinho!. . . Goza a tua vida com a mulher que amas por todos os dias da vã existência que Deus te deu debaixo do sol. Sim, é esta a tua parte na vida,
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em todos os teus fúteis dias na terra, em todas as tuas canseiras ... Doce é a luz, e agradável para os olhos o sol: ainda que o homem viva por muitos anos, alegre-se com todos eles; mas pense também nos dias tenebrosos que serão muitos, e quanto terá acontecido tudo é vaidade» (Ecle.) 9, 4-9; 11, 7-8). Ele deve gozar, pois, na consciência clara da futura treva infinita, deve alegrar-se, na sua finitude, da infinita luz de Deus, em que lhe é dado permanecer um instante. As margens da sua existência, o antes e o depois, estão privados de luz. Ele não pode contar nem com um nem com o outro. Deve adaptar-se à luz que nos seus dias finitos Deus lhe dá e na qual os dons divinos do amor, da fé e da esperança no Messias que há-de vir, se incarnaram. Um prolongamento para além deste espaço não é concedido, por ora. Não é esta uma incapacidade do homem para ver mais, mas sim a perfeita e positiva vontade de Deus, que não mostra mais, e a obediência do homem que não quer ver mais do que lhe é mostrado. Que a angústia permeie uma tal existência não é de admirar. E nada mais resta entretanto do que a suave exortação a se resignar à angústia inevitável, sem convulsões, aceitando aquilo que é estabelecido por Deus como destino: «Não temas a morte que te foi decretada; pensa que outros te precederam e te seguem. Tal é a sorte fixada por Deus a todo o vivente; porque hás-de tu revoltar-te contra a lei do Altíssimo? Sejam mil anos ou cem ou dez os que te cabem, no reino da morte não conta mais a duração da vida» (Ecl'i., 41, 5-7). Falou-se até aqui de uma angústia neutra, aderente à existência como tal, à «vanidade» que a torna nula~
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por causa da nulidade que nela existe para além do antes e do depois, e que atinge tanto os bons como os maus, tanto os «convertidos~ a Deus como os que lhe voltam as costas. Mas trata-se agora de completar e corrigir este pensamento: aquela neutralidade é imediatamente abolida, e até às raízes do ser, pela diferença que existe entre as duas categorias, entre os homens virados para Deus e os que d'Ele se afastam. Esta diferença dá à angústia da existência, no mais fundo dela mesma, uma coloração completamente diferente, oposta, de tal maneira que o mínimo de carácter comum que nos permitiu falar de um único fenómeno da angústia, comum aos bons e aos maus, desaparece na oposição que separa a angústia dos maus do comportamento e do estado de espírito dos bons. ~ A mais exacta descrição teológica da angústia dos maus encontra-se no capítulo 17 do Livro da Sabedoria. Todo o livro é uma contemplação do significado mais alto ou espiritual da história da Aliança com Israel, de modo que o sentido profundo que, pela Revelação, os factos históricos têm é posto em relevo, iluminado, por MSim dizer, por uma segunda Revelação reflexiva. No mencionado capitulo, a treva do Egipto corresponde à angústia que aflige o homem mau nas trevas saídas do abismo escuro (sheol) e que Deus lhe infligiu como castigo. O Livro do ~xodo tinha assim descrito o acontecimento : «E o Senhor disse a Moisés : estende a tua mão para o céu. E a treva espessa cobriu a nação do Egipto por três dias. Durante três dias, não se viam uns aos outros e ninguém se mexeu do próprio lugar. Mas os filhos de Israel tiveram luz nas suas habitações»
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(8~., 10, 21-23). E a Sabedoria faz agora as seguintes meditações: «Grandes são os teus juízos e imperscrutáveis; por Isso, aquelas almas refractárias caíram em erro. Homena sem lei, julgando que podiam oprimir um povo santo, acorrentados pelas trevas e aprisionados numa longa noite, fechados debaixo dos seus tectos, jaziam excluídos da eterna providência; e julgando que as suas culpas secretas permanecessem ocultas sob o véu espesso do esquecimento, foram eles próprios imersos nas trevas, terrivelmente apavorados pelos espectros. Pois que nem os esconderijos que os acolhiam os preservavam do medo; mas rumores horripilantes os ensurdeciam e apareciam lúgubres fantasmas de rostos medonhos. Nenhum fogo tinha força bastante para os iluminar, e o brilho das estrelas não conseguia dar claridade àquela horrível noite. Só uma massa de fogo, que se acendia por si mesma, se lhes mostrava infundindo-lhes terror e, na sua agitação, ao desaparecer daquela visão, imaginavam ainda piores as coisas entrevistas. «Os artifícios das artes mágicas ficaram impotentes e o descrédito da sua pretensa ciência foi vergonhoso. Aqueles mesmos que prometiam livrar do medo e da inquietação as almas dos fracos caíam doentes de um medo ridículo; pois que, não havendo nada de aterrador que lhes metesse medo, à passagem dos animais e aos silvos das serpentes morriam de tremuras, recusando-se até a olhar o puro ar, ao qual não se pode escapar em parte alguma. «Tal é a maldade : covarde em si mesma; testemunha-o quando é condenada. Apertada pela consciência, imagina sempre o pior. Efectivamente, o medo outra
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coisa não é senão o abandono dos recursos da reflexão ; e quando a esperança se extingue na alma, o desespero e a perplexidade são sentidos como um mal maior do que a causa real do tormento. Eles porém, naquela noite verdadeiramente impotente e saída do mais profundo abismo, jazendo num mesmo torpor, em parte eram agitados por espectros monstruosos, em parte paralisados pelo desespero, porque um terror súbito e inesperado se abatera sobre eles. Por isso, todo aquele que ali caia ficava encerrado e guardado naquela prisão sem cadeias. Fosse quem fosse, agricultor, pastor, jornaleiro em rudes e solitários trabalhos do campo, surpreendido, sofria aquela necessidade inevitável; pois que uma só cadeia os ligava a todos, a treva. Um murmúrio do vento, um canto suave de pássaro entre a ramagem espessa, o fragor das águas correndo impetuosas, o ruído surdo das pedras que caiam, a passagem invisível de animais fugitivos, o rugido das feras selvagens, o eco repercutido pelas cavernas dos montes gelava-os de medo. Entretanto, todo o resto do mundo estava alumiado por uma luz radiante e se ocupava nos seus trabalhos ~em obstáculo algum. Só para aqueles se estendia uma noite pesada, imagem das trevas que lhes estavam reservadas; e eles eram para eles mesmos mais pesados do que as trevas. Para os teus santos, porém, fazia dia claro» (Sab., 17, 1-20; 18, 1). ~ a descrição de uma angústia total, motivada pela sacrílega escravidão do povo e do reino de Deus na terra e infligida por um especial desígnio de Deus Juiz ( x. ~ r. a E t ; ) , enquanto que a causa imediata da angústia foi «uma noite nascida do fundo do abismo impra-
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ticável». Esta noite encontra-se numa relação indissolúvel de reciprocidade com a angústia que gera, dado que é ao mesmo tempo origem e imagem daquilo cujo castigo quer ser e acaba por tornar-se seu efeito; de modo que o tormento que o homem se inflige a si mesmo nesta angústia é maior do que a própria treva do Hades. O principal efeito da treva que é o de separar, desmembrar, isolar, encarcerar, agrilhoar, e interromper toda a comunicação de homem para homem - e isto sem esforço, com uma única cadeia a que são ligados todos os que desta maneira ficaram sozinhos - este efeito sobre os pecadores é, ao mesmo tempo, causado pelos próprios pecadores, enquanto eles, pecando, <<Se julgavam escondidos nos seus secretos pecados debaixo do escuro véu do esquecimento, do Lete ( ). ·i, e> n ) ». No isolamento subjectivo do pecado, que é um voltar as costas à comunicação da luz divina, está já implícita uma descida às margens do rio infernal, ou, o que ainda é pior, no querer ser esquecido por Deus está já contida a auto-exclusão da luminosa esfera da Providência: <p vi' á õ E ç "r -~ ~ a l w v t' o v 1t ~ovo t' a ç significa tanto fugir da eterna Providência como ser dela exilados, expulsos. Aqueles lugares, porém, que jazem fora da esfera luminosa da Providência e nos quais o pecador procura refugiar-se, mais não são do que, segundo múltiplos testemunhos do Antigo Testamento, o obscuro mundo subterrâneo com o qual Deus não tem relações. Os maus fogem sempre da luz do Deus que os vê, de modo que a própria luz se torna para eles motivo de medo: «De dia fecham-se, não querem saber da luz. A manhã é para eles sombra e horror e o tempo em que se pode ver, medo mortal» (Job, 24, 16-17).
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<< Ai daqueles que se escondem do Senhor para dissimular os seus projectos, que tramam as suas obras nas trevas e dizem: quem nos vê, quem nos conhece?,> (Is~, 29, 15). O pecado contra Deus que é Luz, é, porém, ao mesmo tempo, a escravização do povo santo, através do qual a luz divina se comunica ao mundq: <<Eles tiveram em prisão os teus filhos, por meio dos quais a imperecível luz da tua lei devia ser participada ao mundo» (Sab., 18, 4). A perda da luz que liga e unifica, o ficar ..se prisioneiro na solidão, comporta, porém, igualmente a perda da realidade e o encerramento no mundo dos fantasmas e das sombras . ~ inútil perguntar se as visões que aparecem na noite da angústia são <<subjectivas» ou <<objectivas». Em qualquer dos casos, são insubsistentes. São <<imagens» ( tcl~lp.aTcx) e formas sem conteúdo ( cprxap."Tª ) , figuras de sonho, que, no seu aspecto fosco e lúgubre, reflectem o estado de ânimo daquele que as vê. Estas figuras assumem a sua fantasmagórica realidade sómente no âmbito da angústia, do medo; igualmente toda a realidade do mundo circunstante que .fere os sentidos sob f arma de luz, de sons ou de qualquer outra maneira, assume um modo de ser absolutamente transformado, irreal e fantástico. Um tal mundo é subjectivo, pois que a sua irrealidade é provo .. cada unicamente pelo mau e pela sua má consciência, enquanto que «o resto do mundo resplandece de luz fulgurante» e as mesmas coisas, vistas à luz, mostram a sua verdadeira realidade acessível aos sentidos. Não obstante isto, ele é objectivo no sentido de que esta privação de realidade corresponde a uma positiva disposição da Providência julgadora, a uma extensão do
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reino da impotência, mais, da impossibilidade (áoú\l«t01'), à esfera do existente. O mundo dos espíritos e dos fantasmas é, enquanto tal, uma espécie de anti-realidade, tanto mais que possui uma <<luz» própria: uma luz das trevasJ que sendo privada de fundamento e por isso de sentido ( a v-: o p. ~ ~ lJ 1: ~ ~ á ), se torna a «contraluz da luz de Deus e da sua lei, chegando até a arremedar o fogo de Deus «ardendo por si» na sarça e na coluna de fogo: um fogo que, enquanto talJ deve ser <<cheio de medo~ ( <p~~~v 1tlY1p-'e;). Esta angústia objectiva-subjectiva é essencialmente infundada, porque consiste exactamente na renúncia a0& motivos, que são visíveis apenas na luz de Deus, ou, por outras palavras) no abandono daquela condição interior do espírito graças à qual o homem está habilitado para ver e interpretar o motivo e a finalidade do existente. Esta condição é descrita ao mesmo tempo como socorro da actividade reflexiva da razão ( á 1t õ Ào'l u1 fJ- ev ~ ~ 'fJ õ -h p. a, a) e como esperança ou como confiança ou coragem ( 1t p o e1 ~ º x. { ex. J que é, a um tempo, consciência da necessidade de um auxílio e decisão da. vontade de recorrer a este auxílio. Ao abandono desta atitude razoável que corajosamente pede o auxílio de fora e de cima, segue-se, imediatamente, a ignorância do real e a cobardia perante eleJ coisas estas que geram «o pânico da fuga» e «a imobilidade do desespero:,. Ambas as coisasJ porém, dependem da maldade, que é indicada como a origem de toda a perversão e que, não por acaso mas por necessidade. revela a sua intrínseca cobardia, quando o juízo a atinge. O cúmulo do ridículo, porém, é alcançado quando até os médicos da angústia) que pretendiam livrar dela os espíritos,
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mediante os truques das suas artes mágicas (os magos egípcios tinham-se oferecido ao faraó ferido pelas primeiras pragas e ao seu povo para fazerem desaparecer o medo objectivo das almas), se tornam eles próprios, com toda a sua ciência, vítimas desse medo, constituindo, assim, um memorável exemplo do juízo de Deus sobre os maus. Estamos, em resumo, diante de um quadro da angústia total, isolada da realidade e metida num uniyerso especial, o universo da angústia, o qual, face à realidade, aparece privado de sentido e inconsistente e possui todavia, nisso mesmo, uma consistência, um sentido e um modo de ser muito seus; um cosmos de angústia inteiramente constituído pela angústia, em que tudo está em função da angústia, até a respiração do ar e todo o fenómeno que enche o espaço e o tempo. Também este mundo tem a sua grandeza, e mesmo uma grandeza sem fim, sempre ultrapassada: porquanto. atrás de uma angústia, é suposta ou, mais exactamente, •é temida>> outra maior ainda. «A angústia age de duas maneiras: desespera da possibilidade de um socorro, e aumenta o sofrimento não permitindo ao lado deste desespero nenhuma reflexão, nenhum raciocínio eobre a causa da angústia; é tudo medo cego, que, além das dores actuais, imagina infinitas outras como possíveis, e mesmo como certas» (Comentários de Loch e Reischl a este passo da Escritura). Em última análise, porém, a angústia total dos maus, tal como é descrita no Livro da Sabedoria, mantém-se suspensa numa posição média: por um lado é «uma imagem da treva que devia absorvê-los um dia», isto é, daquele nada definitivo da treva. depois da
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morte; por outro lado. todavia, no conjunto do Livro, é apenas uma imagem, já que Deus até os seus inimigos castiga com uma certa moderação, com uma justiça temperada de longanimidade e de bondade: «Porque tu amas todos os seres e de quanto fizeste nada aborreces. _,,,,,,, Efectivamente, se tu odiasses algum deles, nem sequer o terias criado ... Tu tratas benignamente todas as coisas porque são tuas, ó Senhor, que amas tudo o que vive>>. E o mesmo se pode dizer daqueles ímpios: «Porque não era difícil à tua mão omnipotente que produziu o mundo de uma matéria informe, mandar contra eles uma multidão de ursos, ou leões ferozes, ou animais desconhecidos criados de propósito, enfurecidos e respirando fogo, ou exalando um bafo nauseabundo, ou lançando temerosas faíscas dos olhos. Não só com os seus ataques teriam podido exterminá-los, mas bastaria o seu aspecto para os fazer mo1Ter de terror» (Sab., 11, 24-26; 17-19). Estes animais - e isto é muito importante no complexo da teologia escriturística da angústia - Deus não os criou, mas contentou-se com a praga dos gafanhotos e dos répteis, cujo esvoaçar e cujos sopros chegam para quase fazer morrer os que nas trevas são oprimidos pelo medo. Basta até que o mau tenha medo do nada, do que não é real: <<Ü mau foge., ainda que ninguém o persiga» (Pr., 28, 1). <<Eles tremiam de medo, quando não havia nenhum motivo para ter medo:. (Sal., 53, 6). Perante esta angústia dos maus, existe para os bons antes de mais nada, um forte, categórico não, uma absoluta proibição de a conhecer, de se deixar prender por ela. Não devem nem precisam fazê-lo. Já na Antiga Aliança, ressoa o aviso: «Não temas» (Is., 41, 10), cEstá sem temor, porque eu te salvo» (Is., 43, 1). Mais:
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medo total e constante tem o seu extremo contraste no constante não-medo do bom: «Um coração à mercê de pensamentos insensatos é sempre um coração cheio de medo, mas quem persevera na fidelidade aos mandamentos de Deus, nunca tem medo» (Ecli, 22, 23 Vulg.). <<Não temais o que esses temem e não vos apavoreis» (Is., 8, 12). ~ claro que não se trata aqui de uma proibição moral, mas de uma proibição condicionada pela aliança sobrenatural e pela fé que nela se funda: pois que se o Deus da Aliança está com o crente, este não deve conhecer o medo. Ter medo equivaleria a não crer: «O Senhor está comigo, por isso não tenho medo: que me poderiam fazer os homens?» (Sal., 118, 6; 56, 5) . <<Por isso não tememos, ainda que a terra se revolva e os montes se precipitem no seio do mar, e bramem e se revoltem as suas ondas, estremeçam os montes ao seu ímpeto:. (Sal., 46, 3-4). <<Não tenho medo dos milhares de inimigos que acamparam em volta de mim» (Sal., 3, 7). <<Ainda que caminhe por um vale escuro, não temo desventuras, porque t.u estás comigo>> (Sal., 22, 4). <<0 Senhor é a minha luz e a minha salvação; quem posso temer? O Senhor é o baluarte da minha vida; quem pode assustar-me? Quando os maus avançam de surpresa sobre mim para me dilacerarem, são eles, os meus inimigos e adversários, que vacilam e caem» (Sal., 27, 1-2). A própria noite não tem nada de terrível para os bons: «Deitado, não deves ter medo. Repousando, o teu sono será doce. Não temerás nem o terror repentino nem os ataques dos criminosos>> (Pr., 3, 24-25). «Quem me escuta viverá tranquilo e seguro, sem temer mal algum» (Pr., 1, 33). A isenção do medo está intimamente ligada O
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ao habitar na terra da promessa e da graça (Deut., 12, 10; III Re., 2, 25; Ez.) 34, 27). Reemerge aqui uma característica essencial da Antiga Aliança, ou seja; a delimitação de um território determinado que Deus escolheu e entregou aos seus. Fé e direito de habitar esta terra são coisas que dependem uma da outra. A terra é entregue ao Povo enquanto acreditar, e é-lhe então assegurada a vitória em todas as batalhas travadas pela sua posse. O rigoroso mandamento da fé e a estrita proibição de ter medo são uma e a mesma coisa, de tal maneira que todo aquele que tiver medo deve ser excluído do exército, antes da batalha, e mandado para casa. «Quando estiverdes prontos para o combate, o sacerdote virá diante do povo e dir-lhe-á: ouve, ó Israel! Ides hoje combater contra os vossos inimigos. Não vos desfaleça o coração, não temais nem vos angustieis; não tremais diante deles. Porque o Senhor vosso Deus, marcha convosco, para combater por vós, contra todos os adversários, e vos dar a vitória ... Quem tem medo e sente vacilar a coragem que se vá embora e volte para sua casa, para que com o seu não desalente ainda o ânimo de seus irmãos» (Deut., 20, 2-4, 8). Mas este recinto ou zona imune da angústia é estabelecido por um Deus que é ele próprio capaz de fazer tremer de medo, e isto tanto em razão da sua natureza, como da violência com que se apodera do homem que elege, como. enfim, pelo destino divino a que conduz os eleitos. Podem abrir-se ao acaso os Livros Antigos; fala-se sempre da angústia dos bons nas suas relaçõe"s con1 t
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Deus. A razão mais profunda deste fenómeno está na finitude da zona de luz em que o justo se encontra, ou, com maior rigor: no carácter simbólico e de promessa de toda a Aliança, que ainda não é, portanto, salvação, não é ainda a remissão definitiva do pecado; é só um avançar - incompreensível ao homem - em direcção a esta meta. O Deus ainda não feito Homem permanece sempre absolutamente o outro. No entanto Ele não é relegado nas lonjuras de um vago mysterium tremendum (com o qual foi absurdamente confundido ou identificado), mas é um Deus que fala, que se avizinha, que intervém, que exige do homem toda a sua fidelidade e, como sinal desta fidelidade, a total observância dos seus manda.. mentas; é um Deus que se lhe revela concreto de uma maneira formidável, exigentíssima e que, necessàriamente, lhe meterá medo. Javé na sua majestade divina está mais vizinho ao homem na Antiga Aliança do que na Nova. Desaba sobre ele sem piedade e apodera·se do seu ser sem solicitação prévia (ao contrário do que sucederá na Incarnação). Mostra-se na sua divindade tão nuamente (enquanto que no Novo Testamento se vestirá com os véus da carne), que o homem, como que encandeado, mal consegue compreender o amor que se revela, ou melhor: se esconde debaixo de um zelo tão impetuoso, e, por isso, abaixa os olhos, e recua, confundido, na consciência da sua indignidade dé pecador. E assim. é como se Deus tivesse querido demasiado e como se tivesse sido constrangido pelo tremor do cora· ção humano, para o possuir completamente, a esconder-se ainda mais fundo: na forma humana. E é exac .. tamente porque se esconde que Ele maiormente se reve . . 1
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lará: o que só se pode compreender conhecendo e tendo presente a flamejante nudez da Antiga Aliança. O Deus que aqui se dá é para a criatura «um fogo devorador e um Deus ciumento» (Deut., 4, 24), de tal modo que olhá-lo e viver são coisas incompatíveis; Isaías julga-se perdido porque viu o Rei com os pró· prios olhos (Js., 6, 5), e Daniel cai diante dele desmaiado e aturdido (Dan., 10, 9). Ao mandamento de não temer as coisas que incutem terror aos maus, segue-se um outro: «seja Deus o vosso único medo e temor» (Is., B, 13). Se Ele se apodera de um homem ou de um povo eleito, é entre o fragor de relâmpagos e trovões, entre cortinas de fumo e de trevas, que o introduz na sua divindade: assim aconteceu já na Aliança com Abraão, quando este «depois do pôr do sol é subitamente atacado por uma vertigem, angústia e grande treva» e «na noite negra um fogo fumejante, um archote in .. flamado» passam pelo altar partido em dois, como sinal de que o próprio Deus se empenha na Aliança (Gé~~L 15,. l2j 17-18). ......... - ··~ Assim acontece quando Deus estende a sua mão ao povo no Egipto: «Alguma vez um Deus veio buscar para si uma nação ao meio de outra nação, à força de provas, de sinais, de prodígios, de luta com mão forte e braço estendido, de tremendos factos grandiosos, coisas todas estas que o Senhor vosso Deus fez por vós aos vossos olhos, no Egipto?:. (Deut., 4, 34). O selo veio depois entre relâmpagos e fumo sobre o Sinai, quando foi concluída a Aliança com o povo no deserto. Através de semelhante noite da eleição, o homem é introduzido na luz da promessa e das coisas prometidas. ~"'
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Mas como poderá defrontar um tal interlocutor e sub· sistir na sua presença? A pureza consumidora em que é convidado a viver não faz senão revelar-lhe cada vez mais profundamente as suas faltas, a sua infidelidade, o seu obstinado não poder e não querer, de modo que a verdadeira história entre Deus e o seu povo não decorre no plano que se previa, isento de angústia, mas nas suas fronteiras: Deus constrange ameaçadoramente (com todos os recursos do medo) a não ter receio, enquanto o homem, sempre possuído pelo temor de que Deus não queira mais reconhecer a aliança tantas vezes interrompida, luta angustiosamente por livrar-se do jugo da angústia e alcançar esse domínio de paz. De um lado, portanto, está a exigência de Deus de uma decisão absoluta com a promessa de livrar da ~gústia a quem se decidir por Ele; de outro lado, ameaçadoramente, todas as sançoes da angústia prometidas contra quem não se decidir, até ao ponto de a Aliança, que; segundo as promessas, devia ser definitiva, se apresentar - exactamente por respeito à seriedade deste carácter definitivo - como condicionada e rescindível. Por um lado, a ordem de proceder até se emancipar da angústia; pelo outro, a extrema ameaça da angústia para quem se volte para trás: «Se não ouvires a voz do Senhor teu Deus, cumprindo diligentemente todos os seus preceitos, que eu hoje te imponho, o Senhor desencadeará contra ti a maldição, a confusão e o terror em todas as tarefas a que metas mãos... Ferir-te-á com tremuras, cegueira e delírio, de tal modo que em pleno dia caminharás às apalpadelas como nas trevas ...
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Todas as pragas do Egipto, a que tens horror, Ele as fará cair sobre ti e se apegarão a ti ... O Senhor te espalhará entre todos os povos e não mais gozarás de tranquilidade nem haverá um lugar de repouso para teus pés. O Senhor dar-te-á um coração trémulo, olhos consumidos e amargura na alma. A tua vida Estará sempre diante dos teus olhos como suspensa por um fio; tremerás de medo dia e noite, jamais seguro dela ... O Senhor far-te-á voltar ao Egipto por terra e por mar, pelo caminho do qual te tinha dito: não o voltarás a ver» (Deut., 28). Mais: as pragas do Egipto assumem, na ameaça, aspecto muito concreto: «Eu mesmo devastarei o pais ... desembainharei a espada atrás de vós... em quantos de entre vós sobrevivam infundir-lhes~ei nos corações o abatimento, em terras do inimigo, de tal modo que o rumor das folhas agitadas os porá em fuga e fugirão como se foge da espada, e cairão sem serem perseguidos» (Lev ., 26) . A ameaça mil vezes repetida pela Lei e pelos Profetas é tão medonha que o homem atingido por uma desventura terrena nunca sabe se, com ela, se começa a realizar a ameaça. Existe, é verdade, a ordem de não ter medo, mas é do fundo das vagas da angústia que o submergem que o homem tenta agarrar-se a ela: a~ suas relações com Deus são um incerto, desesperado esbracejar para a Tábua de Salvação. Esta luta da angústia para chegar à não-angústia diante de Deus tem, na religião da Antiga Aliança, mais uma vez, diversos graus e aspectos. A primeira situação angustiosa, ainda relativamente exterior, é a do homem fiel à Aliança, que é vencido pelos inimigos de Deus. Os ecos
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desta angústia encontram-se em tantíssimos Salmos; é o simples implorar que se ergue a DeUB, de um coração oprimido pelo medo: «Ouve, ó Deus, a minha oração e não te furtes à minha súplica. escuta-me e responde. Vagueio gemendo, perturbado pelas ameaças do inimigo ... O meu coração confrange-se, temores mortais se abatem sobre mim. Vem-me o medo e o temor, e o receio me envolve. Exclamo: Oh! quem me dera asas como à pomba para voar e repousar!» (Sal., 54, 1-7). :m um medo inteiramente humano que se confessa e ee dirige a Deus; a que já se mistura, porém, a preocupação e a ansiedade pelo reino e pelos direitos de Deus, tendo-se, assim, uma angústia em nome de Deus, que tem maior direito de pedir e de exigir auxilio. Ao servo de Deus pois, que, dos «escolhos mortais» e das «infernais redes>>, dirige, no cúmulo da angústia, o seu grito a Deus, a salvação por obra de Deus pode apresentar-se como uma teofania do terror, em que Deus se aproxima com todas as insígnias da sua mag-estade tremenda, diante da qual «se abrem os abismos do mar e se descobrem os fundamentos do mundo», para salvar quem o invoca: «Do alto estendeu a sua mão e me tomou; livrou-me das águas profundas; das mãos doe meus poderosos inimigos me libertou» (Sal., 18; li Sam., 22, 1-20). Um pequeno passo mais e estamos naquela angústia que experimenta o «justo» quando ele, que sempre volta a pecar ou se embala numa falsa segurança, é empurrado pelo próprio Deus até à orla extrema da angústia, a fim de que, depois, mais consciente e reconhecido, possa reencontrar-se, orando, no centro da esperança. A quadrúplice tentação a que o homem é submetido
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no Salmo 107 : terrível sede no deserto, a prisão nas trevas e na sombra da morte, a náusea mortal de todo o alimento, a tempestade que levanta até aos céus e abaixa até aos abismos a barca desamparada, tem importância para o Salmista unicamente pelo resultado que consegue alcançar: arrancar ao coração do home:n ameaçado a angustiosa invocação a Deus: «Eles clamaram ao Senhor na sua aflição, e Ele os livrou das suas angústias>>. Ou que os prisioneiros «tenham resistido à palavra de Deus e desprezado a vontade do Altíssimo», ou que os doentes «fossem condenados ao tormento pelos seus muitos pecados>>, ou que os que atravessavam o deserto se tivessem simplesmente perdido sem culpa, ou que, finalmente, aos navegantes se oferecesse simplesmente a ocasião de admirar a grandeza das obras de Deus perante os abismos; numa palavra: qualquer que tenha sido a causa ou a ocasião das tentações, tornou-se numa questão quase secundária. As duas coisas, ou seja: a culpa dos homens que mereceu a provação e a vontade de Deus em manifestar nas provações a sua magnificência, não se contrapõem, mas justapõem-se integrando-se mais: tudo culmina na tempestade querida e levantada pelo próprio Deus: «A um sinal seu, levantou-se um vento tempestuoso e fez as ondas alçarem-se; subiam ao céu e desciam aos abismos; as suas vidas eram jogadas no perigo, agitavam-se e cambaleavam como ébrios e toda a sua habilidade desa· parecera. E nestas angústias clamaram ao Senhor que os tirou da tribulação. Acalmou a tempestade mudando-a em brisa e as ondas se aquietaram>> (Sal., 107, 25-29). Quer dizer: para o homem apanhado no abraço da angústia, não são distinguíveis os dois motivos que
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estão na origem da provação, a sua própria culpa que o leva quase ao ponto de ser abandonado a si mesmo e o ~encontrar-se à mercê das ondas_de Deus; o que importa e o que Deus qU€r ouvir é o grito de angústia a Ele dirigido, que partindo da margem extrema não deixa de atingir o coração de Deus. Neste .:estar preso por um fio>> - e o fio é o próprio Deus - a relação de aliança é sempre sujeita a nova prova e a nova con.. firmação. A treva d~ anátemas divinos, que é indicada ao povo como posta atrás dele, mas que foi prometida em ameaça como real possibilidade em caso de infidelidade, pode, pois, na tentação, vir a encontrar-se diante <lo homem, posto à prova (seja ele um justo ou um pecador a recuperar). Trata-se de uma treva que, sendo de Deus, não conhece aquelas «contemplações>> usadas pela Pro.. vidência no Egipto, e no lugar dos «vermes>> e dos «gafanhotos» põe as ~feras» com as fauces escancaradas, os «touros1.>, os «leões que despedaçam e rugem», as «matilh.as de cães» e os «búfalos cornúpetos>> do Salmo 21, e, enfim, toda aquela multidão de monstros que Deus manda contra Job (Job, 40-41), e que parecem ser já os precursores dos animais apocalípticos. Os inimigos investem contra Job: «mostram-me os dentes, fulminam-me com os olhos, tentam devorar-me» (16, 9). A Job ~Deus manda sonhos espantosos e visões de tal modo terrificantes que ele preferiria ser estrangulado»; Job ouve «entre os fantasmas das visões nocturnas>> a palavra furtiva de Deus: o «terror» faz-lhe tremer os ossos e um ~arrepio>> lhe corre pela espinha (4, :~·1!il: Job é o homem que se aterroriza diante de Deus (23, 15,. A angústia de Job é a máxima expressão da angústia
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do justo na Antiga Aliança. Ã indiscernibilidade por parte do sujeito, oprimido pelo medo, entre a culpa própria e a. provação querida por Deus, junta-se aqui a dialéctica objectiva (de que partirá Kafka): por um lado entre os amigos e acusadores de Job, que põem em realce o momento da necessária culpabilidade, e o sofredor, que proclama a própria inocência; por outro lado na própria alma de Job, entre a declaração de culpabilidade por parte de Deus (que na angústia lhe resulta incompreensível) e a sua consciência de estar inocente: «Ainda que tivesse razão, a tua boca me condenaria, ainda que estivesse inocente virias declarar a minha culpa - e eu estou inocente! ... - Sei que serei culpado; para que afadigar-me em vão? Se eu me lavasse na neve e esfregasse as mãos com potassa, ainda então tu me mergulharias na sujidade de tal modo que meteria nojo aos meus próprios vestidos~ {Job, 9, 19-31). Nu1 na sua angústia, Job está diante de Deus. Todo o invólucro terrestre lhe é arrancado desde o início, todo o terreno apoio lhe é subtraído, para que, depois, quando a verdadeira provação vier, ele possa ser todo e unicamente abandonado à mercê da angústia.. Por aqui se vê que o homem numa tal imediatibilidade não pode viver; como que é queimado pela demasiada potência de Deus. Um acordo, um confronto, um diálogo, não são possíveis quando embatem entre si a nua absolutibilidade e a nua relatividade. Job não invoca os seus filhos, a mulh~r, os amigos, não pensa nos seus bens, mas unicamente num mediador: «Oh se existisse entre nós um árbitro que tivesse poder sobre ambos, que retirasse a sua vara de mim e me poupasse ao seu terror!» (9J 33-34). Ele invoca o seu direito diante de
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Deus, sabendo que só de Deus lhe pode vir; apela de Deus para Deus (16, 19 ss.), de um Deus que se esconde, ausente e impossível de abordar, para um Deus que humanamente se voltasse para o homem (23. 1-7); de um Deus que para ele se «transformou em Satã» e que não se pode mais invocar, porque se tornou a negação absoluta, para um Deus que, para além de toda a dialéctica da angústia, dissesse simplesmente sim ao homem. Aqui o reino da noite que circunda o breve cone de luz da Antiga Aliança invadiu e submergiu a estreita zona de segurança. A situação já por si dialéctica da decisão (por Deus e pela não-angústia, imposta, porém, sob a ameaça da angústia), é mais uma vez superada por uma situação criada unicamente por Deus e de que Ele só é responsável, na qual a sua promessa de libertação da angústia é por Ele próprio consumada e a precedente dialéctica (tão tenazmente defendida pelos «ami· gos» de Job) é destruída (42, 79), porque a finitude da Antiga Aliança se revela em si mesma, onde acaba. No momento em que a angústia submerge a zona pau.. pada até agora (toda ela e não só as margens), no momento em que as trevas do Egipto e «as águas do caos» da alma irrompem das prisões do Hades e dos recessos supercósmicos para se desencadearem sobre a «terra santa», encontra-se já em acto necessàriamente, ainda que invisível, o movimento contrário: a breve fronteira do caos é abatida por Deus, a Nova Aliança está à vista. Pode, pois, falar-se, provisóriamente, de duas espé.. cies de angústia na Velha Aliança: a angústia dos maus e a dos bons, uma oposta à outra; a angústia dos maus é vã e, se vista da luz em que s~ encontram os justos,
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ridf cula. A angústia dos justos, ao contrário, é permitida, querida por Deus, é justa e séria. A angústia doa maus é uma antecipação das trevas do Hades, a luz que nela existe é falsa; ela constitui um estado permanente, enquanto que a angústia dos bons não é senão uma passagem, uma transição, um episódio entre uma luz e a outra luz. A angústia dos maus é efeito e causa do seu afastamento de Deus; ela prende, amarra, é o sinal da cólera de Deus contra eles: contràriamente, a angústia dos bons tem o sentido e a finalidade de abrir a alma para Deus na invocação da misericórdia e constitui o sinal da graça de Deus. A distinção, porém, ainda que justa, permanece provisória: primeiro, porque, mesmo na angústia do mau, não falta uma ~providência misericordiosa>>, depois e sobretudo, porque o próprio justo cai e porque pode ser induzido, com uma intensidade superlativa incompreensfvel para ele, na angústia reservada aos maus, e mesmo uma angústia a que estes são poupados. Não se pode descrever a existência na Antiga Aliança como um «equilíbrio» entre angústia e esperança, entre angústia e certeza da salvação; deste modo, diminuir-lhe-íamos a altíssima tensão dramática. A proibição da angústia e o mandamento da esperança, do confiante abandono ao Deus da Aliança poder-se-iam comparar mais justamente a uma directiva a observar a todo o custo, a não abandonar em caso de nova queda no pecado (e com isto, no estado da angústia que é posta atrás do homem), nem na tentação e na provação c2:a~terizada por uma angústia não expressarnt:!nte anunciada e, por isso, inesperada e incornpréensível, que é posta diante do homem
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e de que só Deus é o autor e o responsável. Tudo está em não se perder no caminho. Deste modo, a angústia torna-se um fenómeno plástico, de múltiplos significados, que nas mãos de Deus pode servir para os fins mais diversos. Nesta pluralidade de significados, o Novo Testamento será igual ao Velho, ainda que todo o fenómeno da angústia vá sofrer naquele uma completa revalorização e uma nova ordenação. Na Nova Aljança, à primeira vista, o passado não foi abolido: é assumido para ser consumado. E esta consumação só é possível com um aprofundamento da angústia. Antes de mais, existe nela, como na Antiga Aliança, a angústia difusa da humanidade em geral, por causa do futuro encontro com Deus Juiz. Já na Antiga Aliança «o dia do Senhor~ era «o dia mais terrível de todos» (Jl .• 2, 11). «Mas quem poderá suportar o dia da sua vinda? E quem poderá resistir quando ele aparecer? Pois que ele é como o fogo dos fundidores e como a lixívia dos lavandeiras» (Aial., 3, 2); e «dia de ira é aquele, dia de tribulação e de angústia, dia de calamidades e de miséria, dia de trevas e de caligem, dia de nevoeiro e tempestade>> (Sof., 1, 15); «chorai porque se avizinha o dia do Senhor!>> (Is., 13, 6). :E:: o dia do qual agora também Cristo diz: «Haverá sinais no Sol, na Lua e nas Estrelas e, na Terra, angústia entre 88 nações, perplexas com o bramido e a agitação do mar, desfalecendo os homens de pavor, e com a expectativa do que vai sobrevir ao Universo, pois as forças celestes serão abaladas>> (Luc., 21, 2n-26). É o dia em que os homens todos se escondem e invocam montes e roehas: «Cai sobre nós e escondei-me da face âaquele
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que se senta sobre o trono e da cólera do Cordeiro, porque chegou o grande dia da sua cólera; e quem poderá subsistir?>> (Apoc., 6, 16-17). Mas acontece exactamente o contrário; «e o céu se retirou como um rolo de pergaminho que se enrola e todas as montanhas e ilhas foram removidas dos seus lugares» (Apoc., 6, 14), «o céu e a terra fugiram da sua face sem deixar rasto» (20, 11), e isto para que o homem vá na sua absoluta nudez ao encontro do Juiz. ~ nas visões finais do Novo Testamento que a angústia dos maus atinge alturas superlativas. Efectivamente, as trevas, que na Antiga Aliança sobem do Hades e do Sheol, adensam-se ainda mais para se tornarem no obscuro reino do último abismo, o inferno, abrindo-se por contraposição à graça e à redenção na sua plenitude. «Ele abriu o poço do abismo e do poço subiu um fumo, como o fumo de um grande forno, tanto que o sol e o ar foram obscurecidos pelo fumo do poço•. Desta vez não se trata de inofensivos gafanhotos, que de noite metem medo, mas são a obscuridade e o próprio fumo que se condensam e se tor~am gafanhotos; é como se a própria escuridão tomasse aparências e realizasse acções de animais agressivos; e os gafanhotos por sua vez mudam-se em monstros, que em cada um dos seus atributos não são mais do que um condensado de todos os horrores e pavores: «E do fun10 saíram gafanhotos e foi-lhes dado um poder semelhante ao dos escorpiões da terra ... Ora o aspecto dos gafanhotos era semelhante ao dos cavalos preparados para a guerra, e sobre as suas cabeças havia como coroas de ouro e as suas faces eram como faces de homt~m, mas tinham cabelos como os das mulheres e os dentes
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eram como dentes de leão. Os seus troncos assemelhavam-se a couraças de ferro e o rumor das suas asas era como o rumor de carros de muitos cavalos, que correm para a batalha ... E o número dos exércitos de cavalaria era de vinte mil vezes dez mil; eu ouvi o número deles. Eis como vi na minha visão os cavalos e os cavaleiros: estes tinham couraças flamejantes, da cor do jacinto e do enxofre; os cavalos tinham cabeças semelhantes às dos leões, e das suas bocas saía fogo, fumo e enxofre .. ·. O poder dos cavalos estava nas bocas e nas caudas; pois que as suas caudas eram semelhantes a serpentes; tinham cabeças com as quais faziam mal. .. » (Apoc., 9). As angustiosas visões do Livro da Sabedoria são superadas e levadas à hipérbolet cada superlativo sofre uma ulterior intensificação; o fumo torna-se animal, o gafanhoto transforma-se em escorpião, o escorpião tem as características da fera que agride, a agressão torna-se em fragor de batalha esmagadora, vindo de todos os lados~ o número dos assaltantes multiplica-se até ao fantástico e tudo se dissolve num mar de chamas encapeladas, cada uma das quais desfere o seu golpe certeiro de maneira insuspeitada: efectivamente a última insídia esconde-se na cauda. Juntem-se todos os outros horrores do Apocalipse, dos seus números, das suas trombetas, dos seus cavaleiros e ter-se-á - posta no termo da Revelação - uma visão da angústia, que qualitativamente engloba e supera todas as visões do Antigo Testamento. Mas (e aqui está a novidade) tudo isto é posto entre parêntesis: é uma visão, o que lhe dá uma forma particular de verdade (divina, absoluta) e que por sua vez ilumina retrospectivamente a forma de
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verdade própria, a ameaça da Antiga Aliança, na Lei e nas Profecias. ~ Também a angústia dos bons é, na Nova Aliança, levada a níveis supremos: Deus feito homem, ao cair da noite, manda os seus discípulos sozinhos sobre o lago: <<Üra o barco já andava no meio do mar, açoitado pelas ondas, pois o vento era contrário. Na quarta vigília da noite, foi Jesus ter com eles, andando sobre o mar. Os discípulos, ao verem-no a andar sobre o mar; ficaram perturbados e diziam: é um fantasma. E gritaram com medo. Logo Jesus falou nestes termos: tranquilizai-vos, sou eu; não tenhais medo?> (M at., 14, 24-27). Se, no Salmo 107, é o próprio Deus a suscitar a tempestade e a querer o medo dos navegantes e se, no Livro da Sabedoria, o mundo aparece aos angustiados cheio de espíritos, aqui é dado um passo em frente, porque é o próprio Deus a aparecer como espectro, numa situação de angústia querida por ele. Aquele Deus revelado que transpôs a distância entre si e os homens, para preencher o abismo da angústia, aparece como um espírito, como um fantasma. Na primeira tempestade, quando estava com eles adormecido na barca e foi despertado pelos discípulos cheios de medo, Ele limitouNse a repreendê-los: «Porque estais assim temerosos? Como é que não tendes fé?» (Me., 4, 40). E eles de novo «tiveram muito medo» diante daquele a quem obedecem os ventos e os mares. Da segunda vez, já não repreende: Ele mesmo os mandou de noite, não fez nada para lhes retirar do coração ou àquela aparição o espectro do medo; Ele queria ser visto debaixo deste novo aspecto. S: a revelação na angústia, é a continuação da noite de Job, em que o rosto de Deus se apresenta ao angus-
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tiado tão alterado que não o reconhece. Neste caso limite, estão contidas todas as angústias da Nova Aliança: as angústias de todos aqueles que, ao encontrarem-se imediatamente com Deus, se retiram a tremer, como Zacarias (Luc., 1, 12), Maria (Luc . , 1, 29), José (Mat., 1, 20), Pedro (Luc., 5, 9), os discípulos no Tabor (Mat., 17, 6), os fugitivos durante a Paixão (Me., 14, 50), as mulheres no sepulcro que fogem cheias de pavor e de terror e por causa do medo não ousam dizer nada a ninguém (Luc., 24, 22; Me., 16, 8), os apóstolos que vêem o Ressuscitado e ~aturdidos e cheios de medo julgavam estar a ver um espírito» (Luc., 24, 37), Paulo que treme e se arrepia perante a aparição (Act., 6, 9), o vidente de Patmos, que cai como morto diante do Filho do Homem (Apoc., 1, 17). Porém todas estas angústias que adejam em volta da figura do Incarnado, são absorvidas e perdem todo o relevo na angústia do próprio Redentor: está aqui a única, mas substancial e revolucionária diferença entre a angústia da· Antiga e a da Nova Aliança. O cúmulo da angústia tem-se, na Antiga Aliança, com J ob: o irromper da treva no reino finito da luz da fé. Esta transgressão da velha ordem podia ser usada unicamente para pressignificar a cruz, a angústia do próprio Deus. Deus não podia tornar-se homem senão conhecendo a angústia humana e assumindo-a : «Pois que os filhos (de Deus) têm em comum a carne e o sangue, também Ele participou nestas coisas, para reduzir à impotência, pela sua morte, aquele que tem o império da morte, isto é, o diabo, e para libertar todos aqueles que durante a vida inteira estavam reduzidos à escravidão pelo medo da morte ... Teve de se tomar,
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por conseguinte, em tudo igual aos seus irmãos... porque tendo Ele mesmo sofrido a provação, é apto para vir em auxílio dos que são provados» (Heb., 2, 14-18). «Ele foi provado em tudo de igual maneira, menos no pecado» (Heb., 4, 15). «Ele, nos dias da sua carne, tendo apresentado, com grande clamor e lágrimas, implorações e súplicas Àquele que o podia salvar da morte, foi ouvido em razão da sua piedade» (Heb., 5, 7). Ouvido, não porque lhe fosse poupada a angústia, mas porque esta lhe foi vertida com a medida máxima. A angústia veio ao seu encontro como que em ondas sucessivas: junto do túmulo de Lázaro, dá-se o primeiro «estremecimento» ao contacto com o reino dos mortos, com o abismo de fumo e de trevas que em breve seria aberto (Jo., 11, 33-38). Pouco depois, no templo, um novo <<arrepio», porque tem já a certeza, confirmada pelo Pai, da inelutabilidade da sua hora (Jo., 12, 27). No Monte das Oliveiras, é o definitivo, brusco mergulho no abismo da angústia, que logo se fecha sobre Ele; é a angústia por representação, sofrida por cada pecador e por cada pecado, diante do Deus da absoluta justiça. Todas as angústias do Antigo Testamento e do Novo são aqui resumidas e potencializadas ao infinito, porque a pessoa que sofre nesta natureza humana é o próprio Deus infinito. ~ a paixão do infinitamente Puro, do infinitamente Justo (que ao mesmo tempo é Deus) por tudo aquilo que Deus aborrece e que só ao Puro ( o mesmo Deus) aparece em toda a sua f eat.dade; é o sofrimento por representação deste Puro por todos os impuros, isto é: o tormento daquela angústia que caberia em sorte ao pecador, diante do tribunal de Deus Juiz; enfim, e ainda mais profundamente, é a
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angústia que Deus (em forma hun1ana) sofre por aquele ~u mundo que Ele se arriscava a perder, mais: que, naquele momento, é um mundo completamente perdido; e foi exactamente para sofrer tal angústia e para, assim, poder, em termos humanos, mostrar quão precioso é para si (na sua divindade) este !nundo. o que para Ele representa, que Ele se fez flomem. É uma angústia que Ele próprio quis sem conforto e sem lenitivo, para que dela fluísse, depois, para o mundo, conforto e bálsamo. No verdadeiro e rigoroso sentido da palavra, a sua é assim a angústia absoluta, total que, superando qualquer outra, se torna medida e critério de todas as angústias. O ponto culminante desta angústia verifica-se na cruz, no actual abandono do Filho por parte do Pai ; abandono este que, sendo aquele que o sofre como homem o próprio Deus, é um abandono absoluto e, por conseguinte, medida absoluta do abismo ( ~~uaao;) e de toda e qualquer outra experiência abissal. Só o Filho sabe perfeitamente o que é ser abandonado pelo Pai, porque só EJe sabe quem é o Pai e o que significa a proximidade e o amor do Pai. Toda a experiência angustiosa do Antigo Tcr:,tamento tinha qualquer coisa de extrínseco a ela mesma, que lhe criava também os limites. Assim, durante as trevas do Egipto, os santos estavam na luz e, desta luz da lei e da sabedoria> era possível considerar o próprio evento das trevas e descobrir-lhe a intrínseca nulidade. Igualmente, as angustiosas experiências do Salmista têm um ponto firn1e na fé e, por isso, na luz; e até a própria noite de Job era clareada pelos raios de uma sabedoria - ainda que inacessível, oculta, conhecida
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unicamente de ouvido - que só Deus conhece (Job, 28). Porque também o Livro de Job faz parte dos Livros Sapienciais e a terrível e obscura parte central é, r,ão obstante tudo, um parêntesis inserido entre a luz do irúcio e a luz final. Na cruz não há já nenhum Li'Vro da Sabedoria, 1,c,is que a própria luz do mundo se obscureceu, a «hora das trevas» venceu-a, e toda a Sabedoria de Deus se tol'nou cloucura>, para destruir a ,sabedoria dos sábios» (1 Ccrr., 1, 19-21). Este obscurecimento não tem pontos de n:fer~!lcia externos, mas qualquer cconsideração» ou •\meditação> sobre o vento é absorvida e dissolve-se no puro evento, que é agora o absoluto, em vista do qual toda a Sabedoria da criação e das vias da graça divina tinha sido inventada e dirigida, e a partir do qual a Sabedoria poderá recomeçar, nova porque sepultada e r .!SS!.U:icitada com Cristo. Por esta treva todas as coisas são obscurecidas : «a partir da hora sexta produziram-se t!'evas em todo o país, até à hora nona. E por volta da hora nona, clamou Jesus, dizendo em alta voz: Eli, Eli, lamma sabachtani ?, isto é: meu Deus, meu Deus, porque n,e abandonaste? ... A terra tremeu e as rochas fcnJeram·Ee. Abriram-se os túmulos., (Mat., 27, 45-52). Verificam-se na natureza os sinais do Juízo, mas também os ,;inais da destruição das portas do inferno: pelas grandes aberturas da terra donde sai a caligem do abismo, poderá penetrar e descer a pique a luz da Redenção. Em todo o evento, é perfeita e óbvia a correspondência com as angustiosas dores do parto. Na Antiga Aliança, a imagem das dores do parto aplicava-se ao dia do Juízo: ~serão assaltados por espasmos e dores,
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contorcem-se como mulheres que dão à luz. Olham-se entre si com espanto, os seus rostos são como de fogo, (Is., 13, 8). «Como uma mulher que deve dar à luz, avizinhando-se a hora do parto, se contorce na angústia e grita as suas dores, assim nós somos diante de ti, ó Senhor: concebemos, estamos nas dores como se déssemos à luz e só geramos vento• (Is., 26, 17-18). E ainda para todo o medo vão: «Ouço gritos como os da mulher no parto, como os gemidos da que dá à luz pela primeira .vez: são os gritos da filha de Sião que geme» (Jer., 4, 31). «Damasco está sem coragem e prepara-se para fugir, assaltou-a o terror; angústias e dores se apossaram dela como da mulher que dá à luz• (Jer., 49, 24). «Ouviu esta notícia o rei de Babilónia e caíram-lhe os braços. Dores e apertos como os de mulher no parto o assaltaram» (Jer., 50, 43). «ô tu que habitas no Líbano... Como gemerás, quando te vierem as dores e os apertos como os da que dá à luz!» (Jer., 22, 23). «E por que gritas tanto agora? Não está em ti um rei! Estão perdidos os teus conselheiros, para que te assaltem as dores como de mulher que dá à luz? Contorce-te e geme de dor, filha de Sião, como uma mulher no parto• (Miq., 4, 9-10). e a angústia de Eva e da sua maldição (Gén., 3, 16) que ressoa na imagem da Antiga Aliança, em que a fecundidade parece não ter parte alguma. Angústia como restrição, aperto, opressão: eis no que se resume a imagem do nascimento na Antiga Aliança. Se se fala do fruto, este é «vento:.. Só na Nova Aliança, no nascimento doloroso sobre a Cruz, a imagem assume o seu completo significado, que transcende o dar à luz de Eva: «A mulher, quando vai dar à luz, sente-se triste, por ter chegado a sua hora; mas,
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depois de ter tido o menino, já não se lembra do aperto, com a alegria de ler nascido um homem para o inundo» (Jo., 16, 21). Desde o angustioso nascimento do novo Eão sobre a cruz, toda a angústia posterior assume um valor n0vo. Ela tem a possibilidade de ser participação da angústia fecunda da cruz. Neste sentido, as «tribulações, as adversidades, as angústias» de Paulo (I I Cor., 6, 4) tornam-se as insígnias do seu apostolado e ele torna-se, em Cristo, o gerador da sua comunidade (1 Cor., 4, 15); recordando-se da cruz, ele apresenta·se «cheio de fraqueza, de temor e de grande· tremor» (1 Cor., 2, 3). «Quem é fraco, sem que eu o seja?» (li Cor., 11, 29). «Mas ele declarou-me: basta-te a minha graça pois na fraqueza é que a força se exerce plenamente» (II Cor., 12, 9). A angústia que passa pela cruz é fecunda e toda a angústia do mundo se torna, pela cruz, com a mediação dos padecimentos dos filhos de Deus e com o apoio dos gemidos do Espírito Santo, na angústia que acompanha o nascimento do novo· mundo (Rom., 8, 19-27). Deste modo, torna-se claro o significado profundo da angústia provocada pelos apertos do parto: esses são a sensação subjectiva da angústia num processo objectivo de dilatação, segundo o paradoxo expresso pelo Salmo: in tribulatione dilatasti mihi (Sal., 2, 4 Vulg.). Como sinal definitivo deste paradoxo, a meio do último Livro da Escritura, ergue-se no céu o sinal da Mulher em parto, que, lançando gritos de angústia, dá à luz o Messias, mas também, durante todos e s t~mpos futuros, os seus irmãos (Apoc., 12).
II
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Na passagem da Antiga para a Nova .t-\liança, deram-se duas mudanças; primeira: o fenómeno da angústia intensificou--se e definiu-se até ao limite fias suas possibilidades e, por conseguinte, também até ao limite das suas anti teses intrínsecas; segunda, a angústia representa tiva de Cristo na Paixão domou, redimiu toõa a angústia humana, deu-lhe um sentido. Quando, a seguir, falarmos das re1ações do cristão com a 3.Ilgúaüa, deveremos partir destas premissas, contidas na palavra de Deus, e nunca as perder de vista. Este segundo capítulo está, pois, contido no primeiro, como um círculo pequeno que se encontrasse inscrito dentro de qutro maior. A primeira afirmação a fazer-se em alta voz, triunfalmente, é a de que a cruz debelou, e,ompletamente e de uma vez para sempre, a angústia hum~na. A an. gústia pertence ao conjunto das potências, das forças, das potestades sobre que o Senhor triunfou na cruz e que Ele, desde então, arrasta consigo, quais prisioneiros em cadeias, para deles se servir como quiser. Também na Antiga Aliança ressoara já, poderoso, o preceito: «Não temais!». Mas, a este preceito opuseram-se, no decurso da própria Revelação, não só a exiguidade da zona iluminada pela graça, mas também o carácter de esperança da graça a conceder, a incompreensivel
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ameaça suspensa sobre a zona de luz por parte das trevas avassaladoras e, enfim, a queda sempre repetida do hon~en1 ao perado. Cristo aboliu tanto a finitude com.o o carácter de esperança da graça~ ao derrubar, com a Incarnação, a barreira existente entre céu e terra e, com a sua Paixão redentora e descida aos <infernos», a que se erguia entre a terra e o mundo subterrâneo, e a que se encontrava entre o Povo eleito e Gentios, com a fundação da Igreja, e foi constituído pelo Pai em Luz de todo o mundo e rei dos três reinos (Flp., 2, 11). Donde se conclui que, para o redimido, não existem já motivos de angústia: contra o cristão, nada pode o «mundoN, ou seja, o reino das trevas que, à vinda de Cristo, se inteiriçou contra Ele, mas que foi por Ele «vencido» (Jo., 16, 33) ; nem podem ser-lhe motivo de embaraço ou de temor aqueles <<elementos do mundo», «forças primitivas», «potentados,., «dominações» e semelhantes, como Paulo chama os prfncipes conhecidos e desconhecidos do cosmos criado, seja qual for a dimensão em que se encontrem e seja qual for a dimensão em que se encontrem e qualquer que seja a relação entre eles e o Cristo, seu dominador. Desta vitória não é excluído nem ~o último inimigo a ser destruído», ou seja, a morte (1 Cor., 15, 26), nem, finalmente, o próprio demónio que «agora~, diante do tribunal da Cruz, «é lançado fora• (Jo., 12, 31): isto é: a.quela potência única e dupla, que até agora mantinha o pecador ligado com cadeias indestrutfveis de que s6 podia ter medo. De uma ponta à outra da Nova Aliança, desde a cgrande luz~ que surge no Evangelho, até à vitória final do Logos no Apocalipse, fala-se desta submissão,
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deste debelar de todas as potências do mundo por obr,i do Filho de Deus, eleito, ab aetcrno, ~orno seu rei. E uma vez que o Senhor foi já entronizado e o Vencedor «não espera senão que os seus inimigos lhe sejam postos como escabelo sob seus pés» (H eb., 10, 13), tam. . bém a angústia é afastada e superada de uma vez para sempre. E isto não só juridicamente ou de jure) mas, para aquele que pertence a Cristo, substancialmente. Ele pode, se vive na fé, não ter medo. A sua má consciência, que o faz tremer, é nele superada pela «paz de Deus que supera toda a inteligência» (F'lp.J 4, 7). Pedro, no dia de Páscoa. já pode não ter medo diante d'Aquele que renegou três vezes. Ele foi libertado do temor e foi-lhe dado, em lugar do temor, o amor confiante. Profundamente o sabe João: «se o nosso coração nos acusa, Deus é maior do que o nosso coração e sabe tudo». (l Jo.J 3. 20); Ele sabe daquele amor que infundiu, por obra do Espírito Santo, no coração defectível e contra o qual não pode prevalecer a auto-acusação do pecador; «tu sabes tudo, Senhor, tu bem sabes que te amo» (Jo., 21, 17). O pecador rende ..se, não tem já esperança alguma de poder opor a esta superabundante esperança, que lhe foi concedida, algo de próprio ou de diverso. Assim em Paulo e em João, as maiores testemunhas da vida cristã depois da Paixão, toda e qualquer terrena e obscura praia é inundada pela luz de Deus, em quem - ao contrário do que acontece para o Deus da Antiga Aliança - não mais existe treva (1 J o.} 1, 5). Esta luz é tão delicada e doce em João, tão triunfal e fulminante em Paulo, que pode mudar até o último medo, o medo do «terrível dia do Senhor», em luminosa confiança:
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«A perfeita caridade de Deus em nós exige que tenhamos confiança no dia do julgamento, porque, tal como Cristo, nós estamos neste mundo. O temor não fica bem junto da caridade: ao contrário, a caridade perfeita expulsa todo o temor. porque o temor supõe o castigo, e aquele que teme não é perfeito na caridade>> (/ Jo., 4, 16-18). «Jesus Cristo ( ... ) não foi «sim» e «não>>; o que há nele é «sim>>. De facto, todas as promessas de Deus, têm nele o seu «sim~ (li Cor., 1, 19.-20) : por Ele «temos a afoiteza de nos aproximarmos (de Deus) confiadamente, mediante a fé na sua pessoa» (Ef., 3, 12), «é que Deus não nos reservou para a ira mas para a posse da salvação, por Nosso Senhor Jesus Cristo, o qual morreu por nós>> (/ Tess., 5, 9). Mas se o crente não deve ter medo de Deus Juiz, muito menos deverá temer as potências, quaisquer que sejam, a Ele subordinadas: nem a potência do pecado, que juntamente com a morte dominava no mundo antes da Redenção (Rom., 5, 12-14); nem todas as outras formas de ~<tribulação>) que ao crente podem provir, devem provir e provêm do mundo. O sermão da montanha (Mat., 5, 7), as instruções aos Apóstolos (M at.) 10), contêm o mandamento rigoroso de Cristo aos seus de não temerem em nenhuma tribulação, por maior que ela seja. Não lhes será arrancado um cabelo. Eles não terão o cheiro de queimado, quando saírem da fornalha ardente (Dan., 3, 27). E o «não temais» que o Senhor intercala como um refrão nas profecias de perseguição (Mat., 10, 19.26.28.31), atinge o auge no jubiloso cântico de louvores que se erguerá do meio da fornalha: «Felizes sereis quando, por minha causa, vos insultarem, vos perseguirem e, mentindo,
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disserem contra vós toda a espécie de mal. Alegrai-vos e exultai, porque é grande nos céus a vossa recompensa. Assim perseguiram, de facto, os profetas que vos precederam» (Mat.) 5, 11-12). Ser feliz no meio das contrariedades, nos exteriores e objectivos «apertos» (angústia deriva de angere-apertar) é não só possível, mas exigido. :6: a felicidade de Paulo: «Gloriamo-nos igualmente nas tribulações» (Rom., 5, 3); <<estou a transbordar de alegria no meio de todas as nossas tribulações» (li Cor., 7, 4) ; é a felicidade de todos os mártires que afrontaram a morte cantando. Se na Nova Aliança se impõe ao cristão a obrigação rigorosa de não ter medo, nem diante de Deus, nem diante do mundo, nem diante de qualquer outro poder que não seja o de Cristo, podemos concluir que também os <<factos» apresentados no que respeita à preeminência da angústia pela filosofia e a psicologia modernas, caem sob a alçada deste mandamento. Ê uma afirmação que, à primeira vista, poderá parecer grotesca, e o homem moderno dirá que· com uma proibição não se abole o facto de que a angústia existe. O cristão pode responder que os «factos» não anulam a proibição da sua existência. Se é verdade que o medo de estar no mundo, o sentimento de «estar perdido> nele, a angústia do mundo em si, com todos os seus aspectos abissais, reais ou presumidos, o medo da morte e a angústia da culpabilidade talvez inelutável, estão na raiz da consciência moderna, e que esta angústia é a causa das nevroses modernas; se é verdade que uma moderna filosofia existencialista presume de superar a angústia aceitando-a, mergulhando nela e sofrendo-a reoolutamente até ao fim - é igualmente ver-
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dade, porém, que o Cristianismo não pode senão opor a tudo isto um «não>> radical, categórico. Ao cristão €a simplesmente proibido ter medo, ter ligações com ele. Se não obstante isto, ele é nevrótico e existencialista, quer dizer que lhe falta autenticidade cristã, que a sua fé está doente ou é fraca. Porque esta angústia foi proibida por Cristo, o cristão não tem qualquer pretexto para ser timorato com os timoratos, ainda que com a intenção de se tornar mais semelhante a eles, para melhor os compreender, para os poder aconselhar e remir. «Irmãos, nós somos devedores, mas não da carne, para vivermos segundo a carne1> (Rom.) 8, 12) ; e como poderia alguém com o tornar-se carnal e mundano ajudar outros a vencer carne e mundo e a superá-los no Espírito? Ainda que a doença da angústia em todos os seus matizes tenha atingido hoje a humanidade, ela pode compreender-se bem, embora não se a tenha experimentado em si próprio (o que é proibido), indagando, seja sobre as suas causas, seja sobre os efeitos e sobre as atitudes que delas derivam. Para curar esta doença não é preciso contraí-la, tal como o melhor remédio para um doente é o aspecto e o ·exemplo de uma pessoa sã. Assim foi nos primeiros tempos do Cristianismo quando os jovens cristãos penetravam, sem se contagiarem, entre os existencialistas da antiguidade em decadência, e davam aos fracos exemplo de uma vida vigorosa, que ia buscar a sua linfa a f antes e reservas completamente diferentes. Isto é válido também para os tempos hodiernos. E se é verdade que na actual «hora cósmica» é mais difícil aos homens manterem-se livres da angústia e da nevrose, só se poderá deduzir daí que a esta geração se exige mais do que
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às outras e que por isso, provàvelmente, há menos cristãos autênticos do que noutras épocas. Menos homens que com a coragem objectiva da fé e fortalecidos por ela afrontem a vida, tendo compreendido o que Deus lhes reserva: esta vocação, esta missão cristã, este atrevimento (sem o qual o homem não alcançará nenhuma meta nobre), esta responsabilidade, esta pureza~ É contra tudo isto que üe opõe actualmente a angústia nevrótica, arruinando tantas vocações cristãs - que exigem sempre um intrépido sim à graça divina - e daí o termos de lamentar na Cristandade de hoje a sua morna e insípida mediocridade. Quelle chrétienté rampante: - exclamava o velho Bernanos- le monde regorge d'humiUté) sous ses a-ir8 d}O'fgueil, mais d'une humilité pervertie, dégradée, qui n'est plus qu'une forme de lâcheté d'esprit et de coeur. Só um cristão que não se deixe contagiar pela angústia nevrótica da humanidade moderna - ainda que esta, tentando transfigurar-se, se considere e se proclame o coração, isto é a parte mais preciosa da existência, e aqueles que não adoram este animal sejam excluídos do comércio entre os iniciados neste medo (Apoc., 13, 17) - tem alguma esperança de poder exercer uma influência cristã sobre o seu tempo. Ele não se desviará orgulhosamente da angústia dos outros homens e dos outros cristãos, mas indicará os caminhos para se livrarem de estéreis enquistamentos e saírem corajosamente para o ar livre da fé. Jamais descerá, porém, a compromissos, nem em teoria nem na prática. Ele será cônscio de que a «preocupação» está entre as coisas proibidas pelo Senhor (Mat., 6, 25, ss.), que para o cristão não existe uma
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fatalidade de culpa, e que a morte perdeu o seu aguilhão por obra do Cristo (/ Cor., 15, 55). Uma vez estabelecido isto sem equívocos nem possibilidades de retorno, de um modo firme e categórico, e só então, se poderá prosseguir verdadeiramente para diante sobre a mesma estrada e não para trás ou para o lado. Cristo carregou com a angústia do mundo para dar-lhe cm troca o que tem de seu, a sua alegria, a sua paz. Fique bem claro: aquilo que é seu. E isto não poderá nunca separar-se da sua vida terrena, da sua cruz, da sua descida «aos infernos», da sua'ressurreição. Toda a graça provém da Cruz. Toda a alegria é alegria da Cruz, marcada com o selo da Cruz. E cruz significa também angústia. Se é certo que o homem foi libertado radicalmente de toda a forma de angústia do pecado, mais:- que lhe foi proibido experimentá-la - e isto compreende tudo o que o recalca em si mesmo e o fecha. o angustia, torna infecundo e frustra - , a cruz abre-lhe, todavia, uma pPrspectiva absolutamente nova, isto é: a graça e a permissão de se angustiar na angústia de Cristo, na medida em que a graça lho concede. Veja-se quão profundamente a graça muda o valor da angústia, até a transformar no seu contrário: se a angústia do homem enquistado e segregado em si mesmo é um constrangimento e uma perda de comunicação, a angústia dada pela cruz é, ao contrário, o fruto e o efeito de uma comunicação: é um alargamento, uma dilatatio do amor na cruz, que, como tal, não pode deixar de produzir urna nova dilatação em quem dela foi feito participante. Não se quer afirmar que este objectivo contraste se torne plenamente visível na experiência subjectiva; ao contrário, é melhor, para garantia da genuidade da
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participação, que a própria participação, o seu fruto e a sua natureza antitética da angústia do pecado, permaneçam escondidos a quem se encontra dentro dela. Por agora, falemos apenas da estrutura objectiva, reservando-nos para tratar mais tard~ as leis que regulam a sua aplicação, apropriação e experiência. Objectivamente, o motivo da angústia proibida ao cristão é o pecado, e distinguem-se nela as características do pecado: a alienação, a fuga, o letargo, a esterilidade, a impressão de estar perdido, de queda no abismo. o ensimesmamento constrangido, a reclusão, o enquista . . mento, a segregação. Ao contrário, o motivo da angústia da cruz não é outro senão o amor de Deus, que assume em si todo este mundo de angústia para, sofrendo, o . vencer e superar, um amor que é o perfeito oposto da angústia do pecado, isto é: doação, disponibilidade, vida, fecundidade, sentimento de segurança e de amparo, dilatação, emanci!'ação. Os atributos da primeira angústia aparecen1 como função dos atributos da segunrla, a tal ponto que quando a angústia se transforma, quando passa a ser uma angústia suportadaJ não há só uma mudança genérica, um deslocamento do exterior, mas também uma específica, profunda transformação de cada uma das cara e .. terísticas, enquanto características e mesmo enquanto experiências. A estrutura da angústia. muda profundamente, paralelamente à da morte e da dor. Basta a consideração de que a genuina angústia cristã pode derivar unicamente da coragem, tal como a r.ruz do Filho de Deus foi a expressão de uma audácia suprema, ao ter um homem só afrontado todo o poder dos infernos.
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)< A coragem do cristão, que pode ter que suportar a angústia, não é mais do que o seu acto de fé, no qual ele ousa pô-se a si mesmo e a todo o n1undo nas mãos daquele que tem sobre si poder de vida e de morte. Como paradigma desta angústia cristã pode indicar-se, no Evangelho, a angústia dos amigos de Jesus, as irmãs de Betânia, as quais, como o mostram a sua amizade e o seu comportamento para com o Senhor (Jo., 11) eram crentes perfeitas. A angústia é-lhes imposta directamente pelo Senhor, que permanece mudo e surdo perante o fervoroso pedido de socorro que lhe fazem, para dar tempo a Lázaro de morrer e a elas de serem tomadas pela angústia «para que seja glorificado o Filho d~ Deus». Privadas de quanto tinham de mais caro na terra e aparentemente abandonadas, após este despojamento, pelo seu Amado do céu, as irmãs de Lázaro parecem-se muito com Job sofredor, cuja Angústia tem prolongamentos tão fundos no Novo Testamento. Todavia, esta angústia imposta como prova - imposta como participação na cruz ainda antes desta existir!; imposta aos membros ainda antes que a cabeça sofresse! - é profundamente diversa da de Job, porque é uma angústia sofrida no Amor tornado Homem, na paciência e na submissão, sem perguntas, sem convulsões, sem revoltas, sem ênfase: derivação imediata da angústia do Cordeiro que não abre a boca, enquanto é conduzido ao matadouro. Não se encontram vestígios das questões de Job com Deus, do cortejo de interrogatórios sobre o «porquê» e o «até quando»; os olhos não vêem, a alrna confrange-se de angústia; não obstante isso, há nela pura e simples aceitação. Mas a nota mais saliente é que a angústia imposta é função da solicitude
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por um próximo. Job é solitário porque não tem maneira de referir o seu sofrimento a outros. As irmãs experimentam a solidão, mas sempre no âmbito da solicitude pelo irmão moribundo e mais ainda pelo Senhor, a quem servem humana e cristãmente: a sua existência é definida por este serviço activo e contemplativo. Este servir o Senhor, de que nascerá a sua angústia, foi um servir em alegria; da alegria no Senhor, passaram a preocupar-se, juntamente com o Senhor, pelo próximo; depois, a sofrer e, finalmente, a temer, com Ele. Vale a lei de que a angústia· no Novo Testamento é sempre e por princípio uma angústia católica, em que os limites do indivíduo são superados e destruídos, seja em razão da origem, seja pelo fim ou efeitos da mesma angústia. Desde que o Senhor com a sua expiação sobre a cruz fez confluir a angústia de todo o pecado, a unidade da angústia do mundo na unidade da sua angústia humano-divina, deixou de ser pensável, em termos cristãos, uma expiação iso.. lada por uma culpa pessoal isolada. Toda a forma de expiação, ainda que por uma certa e determinada falta, é cristã sàmente se passou pela cruz, recebendo desta o carácter da universalidade, na qual o particular já não se distingue. De outra forma, ter-se-ia ainda a expiação da Antiga Aliança, e unicamente deste rnu11do em que existe uma relação calculável entre culpa s1ngular e expiação singular, no âmbito de uma justiça sem mistério. Uma vez que a essência do Cristianismo está no «novo mandamento» do Senhor de amar o próximo como a nós mesmos, melhor, mais do que a nós mesmos, porque não há maior amor do que o daquele que dá a vida pelos seus amigos (Jo., 15, 13), 5
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mais, pelos seus inimigos (Rom., 5, 10) segue-se que a angústia cristã só pode ter origem na solicitude pelo próximo, amigo ou inimigo que seja, com o ,-;uai o crente, ao dar o salto para Deus, deve permanecer sr lidário, sem o abandonar à sua sorte. Ao contrário, neste salto, ele deve arrastá-lo e levá-lo consigo, deve realizar o salto em representação do seu próximo, numa indissolúvel comunhão de salvação. O mandamento do amor não fica, efectivamente, nos primeiros passos, mas postula, porque ~manado d' Aquele que ia imolar-se sobre a cruz em representação dos outros, um empenho total, um seguir voluntàriamente e ainda que constrangidos, o seu caminho (Mat., 5, 41), até à mesma crucifixão, com Cristo e em representação dos outros (Rom., 9, 3). '. Toda a alegria cristã nasce deste ponto, da solidariedade; a alegria por causa de uma graça e de uma salvação consideradas individuais, limitadas a cada um, não se poderia chamar cristã. É exactamente no prolongamento desta alegria cristã que nasce, dela própria, a angústia cristã: ai precisamente, no âmbito do mistério da representação, se realiza algo do que São Paulo tanto ambicionava para si: <<ser separado rle Cristo como &nátema pelos meus irmãos>>. O amor é oferta de si mesmo, feita com serena confiança, mais, com a fé cega de uma criança em todos os milagres que a graça de Deus fará para salvar o mundo. Desde que a oferta existe, inviolável, definitiva, bas.. tará apenas que o amor abra os olhos sobre o que o pecado do mundo realmente significa, sobre o que ele representa diante de Deus e do Crucifixo, para o pre .. cipitar num abismo de angústia. Diante õe uma supe-
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rioridade esmagadora e um peso incomensurável, está agora uma impotência absoluta, um ser isolado que se limita a sofrer: o milagre escondeu-se atrás do frio cálculo da justiça divina e o crente é convidado, por divina disposição, a experimentar alguma coisa da infinita desproporção da Cruz. Uma vez suspensas por um momento a alegria e a tranquilidade derivadas do saber que um outro fez já tudo para superar a angústia - de outra forma não haverá a «comunhão de sofrimento» com Cristo (Fíl., 3, 10) -, surge pois a angustiosa desproporção entre o próprio esforço e o fardo imenso do pecado e da culpa que não se consegue remover; a qual desproporção, tendente ao absoluto, não pode gerar senão uma angústia absoluta. Efectivamente, o milagre da confiança cristã em Deus e na cruz redentora é qualquer coisa de tão delicado, compreensível e crível unicamente de um ponto de vista sobrenatural, que basta o menor sopro para que este espelho límpido seja embaciado pela angústia. A confiança, a esperança, têm um tal carácter de improbabilidade que, comparativamente a angústia, que delas nasce - exactamente lá onde Deus a toma a sério - , aparece quase como o provável, o normal. E se Deus a poupa muitas vezes, e até como regra, aos fiéis, isto deve considerar-se uma nova e, por assim dizer, potencializada graça da cruz. Não se pode, todavia, afirmar que a angústia da cruz chegue a pôr em dúvida, de qualquer maneira, a fé, a esperança e a caridade no seu carácter absoluto, que desespere da sua ~ficácia, que se torne o oposto de todas três, ou que faça parecer a redenção já realizada e sempre em acto, como f alaz, duvidosa, infrutífera.
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Ainda que possa, subjectivamente, levar muito perto deste limite, o certo é que não o ultrapassa nunca. Uma vez considerada objectivamente, ela não é senão um modus da fé, do amor e da esperança, uma fase da sua realização e um processo vital interno; a angústia cristã não pode descrever-se senão como um misterioso não-se-ver-a-si-mesma, ou, melhor, um já não querer conhecer-se a si mesmas da fé, do amor e da esperança. O Filho, sobre a Cruz, despoja-se nas mãos do Pai, de toda a sua força e vista, para atingir, neste estado de obscuridade e prostração, o vértice do sofrimento. O Filho não renunciou ao que é seu no sentido de que tenha adquirido propriedades opostas, mas no sentido de que provisóriamente o que lhe pertence é inatingível, inactual e. por conseguinte, sem eficácia. Ele renunciou de maneira tão e:ategórica, que já não pode servir-se do que é seu para se ajudar. Existe sim o fúlgido reino da fé, do amor, da esperança; mas ele, na angústia, é dele excluído, não pode contar com ele; e pois que renunciou realmente, totalmente, ao conforto desta luz, não vê sequer como os outros possam confiar em tal conforto: se o soubesse, isto seria para o sofredor o cume da beatitude. Quem quer sofrer, deve privar-se desta certeza, e quem deve sofrer na graça da cruz, é privado desta certeza. O obscurecimento da fé, do amor e da esperança, que se dá através de um processo interno de aperfeiçoamento é, portanto, exactamente o oposto do obscurecimento das mesmas causado pelo pecado, no qual, além de perderem a sua posição central, chegam a ser anuladas. Na angústia cristã, a imagem de Deus é velada, como as imagens na igreja durante o tempo
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da Paixão ; na angústia do pecado a mesma imagem é deformada ou destruída. Aquela angústia é uma intensificação da verdade cristã, uma prova de que Deus se digna fazer uma alma participante dos seus mistérios mais preciosos; esta é uma diminuição ou uma perda da verdade, a prova de que uma alma se afastou de Deus. lTma primeira lei sobre a angústia cristã poder-se-ia, pois, formular como segue: O Cristiani~mo quer e pode redimir o homem da angústia do pecado, se o homem se abre à redençã,o e se submete às suas condições; em lugar da angústia do pecado, ele dá-lhe acesso a Deus sem angústia, na fé, na caridade e na esperança)· as quais, porém, derivando da cruz, podem por si mesmas provocar uma nova, carismática,, coexpiante forma de angústia, no âmbito da solidariedade católica. Com esta primeira verdade, simples e linear, cruza.. se, porém, uma outra que ameaça velar-lhe a pureza. Para o filho de Deus, crucificado, sem pecado, a oposição da angústia redentora à angústia do pecado (infrutuosa, que Ele não pode experimentar) é coisa óbvia. Pode-se também chegar a con1preender que algo desta angústia redentora possa ser comunicado a um crente pela graça superabundante da cruz. Mas os cristãos, ainda que remidos e crentes, amantes e esperançados, não continuarão. apesar disso, sempre pecadores?; seja porque caiam em pecado grave, prevaricando com i~so - segundo a ameaça do Apóstolo - de um modo inuito mais terrível do que um pagão que não sabe (Heb., 6, 3-8) ; seja porque se debatem na penumbra, entre o amor e a concuspiscência, entre a esperança e a dúvída,
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sem uma direcção fundamental definida; como <<almas salvas a metade», que merecem a qualificação tanto de «pecadores» como de «justos»? :m claro que um homem não pode possuir a graça santificante e ao mesmo tempo odiar a Deus. no sentido em que Lutero ou o catecismo de Heidelberg interpretaram o simul justus et -peocatar. Mas quanto de verdade não contém ainda esta definição, como muito bem deveriam saber todos aqueles que são fracos. desencaminhados. que recaem sempre, tépidos, surdos aos mandamentos de Deus! E nesta te pi dez que se mantém à força de compro . . missas. não serão assaltados por uma nova. bem compreensível angústia. compreensível todavia unicamente ao cristão. ou seja: a angústia de verificar que é impossível estar <<ao mesmo tempo dentro e fora» ou. pior. «nem dentro nem fora»? Não é esta exactamente a específica angústia cristã. out ao menos. aquela que com maior frequência se encontra e que. pela sua ambiguidade, mais desagradàvelmente impressiona os estranhos. os pagãos. neste ponto mais inequívocost menos decididos? Se «estes redimidos têm um ar tão pouco redimido». se os cristãos não convencem. isto deve atribuir-se. e não em último lugar. à sua falta de segurança. produzida pela consciência de fazer mal as suas coisas. de representar tão mal a sua causa, ou. o que ainda é mais lamentável, ao medo de que se descubra que não são de modo algum o que pretendem ser. Recai-se assim. de certo modo. na angústia da Antiga Aliança. Nela a angústia era superada graças a uma promessa; mas, uma vez que tal promessa não era actual. não tinha força para arrancar completamente os homens à angústia do pecado. Este estar suspenso entre o pre-
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sente pecaminoso e a promessa que não podia ser nunca plenamente actualizada provocava uma nova forma de angústia. O mesmo parece repetir-se em plena Nova Aliança= na medida em que a redenção já vinda conserva um carácter escatológico e o pecador permanece a caminho da plena justiça, na medida em que não se dissipa nunca a ambiguidade entre «temor e esperança». ou melhor, entre o medo que o pecador tem de Deus e da condenação divina e a esperança do crente na _redenção. Não. favorece o Novo Testamento esta ambiguidade enquanto acentua e torna definitivos os dois aspectos, tanto a promessa como a ameaça? Mas ao fazer isto, e ao submeter o homem que se encontra dentro do seu campo de força a tensões sobre-humanas - temer e esperar, estar certo e suspenso ao mesmo tempo - não pediu ele demasiado às nossas pobres forças. que como que são por ele fulminadas? Pode viver-se dentro desta contradição? Os muitos desvios e deformações não vêm comprovar que se exigem aqui ao homem coisas impossiveis? Não se perde o cristão, quando trata a sério com o pecado e com a redenção, numa dialéctica sem saída, em que a cada grau a mais de graça corresponde um grau a mais de indignidade e culpa, e a religião nesta selva obscura se torna um verdadeiro inferno? E não tem precisamente aqui a mais impiedosa psicanálise um campo favorável? Que o homem, ainda que crente, possa ser tomado de uma espécie de vertigem nesta situação transitória entre medo e esperança, ~ um facto inegável, confirmado pela experiência de todos os dias. Este sentir faltar o terreno debaixo dos pés, porém, não se pode imputar ao Cristianismo znas tão-sõn1ente ao homem
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que não quer tomar verdadeiramente a sério o Cristianismo. O Cristianismo não cava diante do homem um abismo, mas, ao contrário, oferece-lhe um terreno sólido; este terreno porém está em Deus, não no próprio homem, e o acesso a ele implica que o homem abandone o seu próprio terreno. O pecador é exactamente aquele que quer estar em si e não em Deus. E quem quer apoiar-se sobre si mesmo e sobre Deus ao mesmo tempo, acaba por cair num vazio intermédio. Verificar (ou mesmo apenas sentir) que se está sem terreno debaixo dos pés, pressupõe que se deixou de caminhai·; de caminhar no terreno de Deus ou de efectuar a passagem do próprio terreno para o terreno de Deus. A fé, se é viva e operante, não é mais do que um caminhar, passar de um a outro ponto. Aquele que caminha tem um terreno debaixo dos pés. Fé, esperança e caridade são precisamente o terreno firme oferecido ao homem para caminhar. Nem mesmo no parêntesis entre o pecado (que rejeita este terreno para estar sobre o próprio) e o retorno a Deus no arrependimento, se dá, cristãmente falando, uma perda total deste terreno. Quem crê, quem se agarra sõlidamente à fé, anda para diante, e, enquanto avança, não pode pôr-se a filosofar sobre a possibilidade desse avanço, não pode reflectir en1 si mesmo a própria passagem para Deus e ao mesmo tempo realizá-la. Isto sim, seria uma contradição, e semelhantes reflexões não poderiam gerar senão outras contradições e jogos dia. . Iécticos. Desde que há a possibilidade, de um ponto de vista cristão, da passagem para Deus - e Deus concede-a como graça - a passagem, sempre em linguagem cristã, não é uma tarefa que nos deva preocupar.
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O homem não deve pensar senão em avançar, pois que Deus cuida previamente de tornar-lhe possível o avanço, resolveu o prob]ema do conf.inuum., e todos os paradoxos do espaço espiritual, incluindo o de Aquiles e a tartaruga, estão ultrapassados. A má consciência, e, por conseguinte, a angústia que atormenta muitos cristãos, não deriva tanto do facto Je serem pecadores e recidivos, quanto de que cessaram de crer na eficácia e na verdade da sua fé; medem a força da fé pela própria impotência, projectando o mundo de Deus na própria psicologia, em vez de se deixarem medir por Deus. Fazem o que, como cristãos, lhes é proibido: consideram a fé de fora, desesperam da força da esperança, fecham-se ao poder do amor, instalam-se na vala que se forma entre a exigência cristã e a sua falência, vala que, em termos cristãos, é domínio do nada. Não é, pois, de admirar que. numa tal posição. a angústia se apodere deles. Qualquer reflexão cristã sobre uma relação estática entre angústia do pecado e angústia da cruz é portanto absolutamente impossível. Entre as duas domina aquela lei de exclusão, que só pode ser definida pelo movimento de uma para a outra, um movimento autêntico, uma marcha firme - assim como a fé, no Novo Testamento, é descrita como algo de palpável, de seguro, que dá a paz, a segurança - e de modo nenhum como uma dialéctica oscilante entre a angústia do pecado e a certeza da salvação, entre o medo do diabo e triunfo sobre ele. E foi algures neste campo que Lutero fraquejou, por mais admiràvelmente profundo que de resto possa ter sido o seu conhecimento da angústia cristã. Ele tinha por força que chegar à sua solução dialéctica, porque
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a sua concepção da redenção ficara demasiado próxima da do Antigo Testamento (em que a redenção tinha um carácter escatológico, de promessa), porque não quis admitir nem uma verdadeira emancipação da angústia do pecado, nem uma autêntica participação na angústia da cruz do Senhor. Na Antiga Aliança, estas duas coisas não existiam, ou existiam apenas com o carácter de promessa. E, assim, este nem - nem transformou-se inevità velmente num dialéctico e- e, e o interesse do teólogo, do pregador, do cura de almas deveria centrar-se naquela situação intermédia (Zwischen), impossível e, do ponto de vista cristão, proibida, que, a seguir, no prolongamento directo da dialéctica luterana, devia levar ao conceito kierkegaardiano de angústia: à vertigem do espírito finito perante si mesmo, perante a descon .. tinuidade em si mesmo entre o finito e infinito, perante o abismo da sua liberdade. Tudo o que Kierkegaard - de uma maneira profundamente dialéctica ! - diz sobre a concatenação e causalidade recíproca de pecado e angústia mostra apenas que ele se colocou num plano de pensamento que está para além da concepção cristã e que não tem nada que ver nem com a ingenuidade do crente Adão nem com o impávido caminhar para Deus, prescrito ao cristão: é um plano mental que pertence - como Kierkegaard justamente reconheceu - à psicologia, não à dogmática, e, precisamente por isto, a angústia nele é natural. Sumamente revelador dos componentes luteranos do pensamento de Kierkegaard é o facto de a angústia fundamental não ser - como para Calvino - provocada pela consideração da predestinação divinaJ mas pelo abismo do próprio espírito.
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Kierkegaard torna-se, a8sim, traço de conjunção e de passagem entre Lutero e Heidegger. Mas também Calvino parou a meio do caminho. Também ele, onde eram exigidos o passo e o evento da fé, reflectiu e, por isso, cindiu num sistema de dúplice predestinação a ambivalência do juízo de Deus, que só pode ser interpretada num acto de fé. Daqui deveria nascer uma nova angústia não cristã, diversa da de Lutero é verdade, mas não menos fundamental. Também aqui se recai n~ Antigo Testamento, e desta vez por uma concepção profundamente individual da salvação humana, que exclui uma fundamental solidariedade. Sempre que, no pensamento cristão, se põe em evidência a finitude da redenção - e Jansénio sublinhá-la-á de novo - a angústia surge. A história do J anse .. nismo francês e das suas repercussões até aos nossos dias quase não é outra coisa senão a crónica dos danos provocados por esta angústia. Estas vias de pensamentos estão interditas ao católico. Não lhe é lícito recorrer a uma dialéctica, seja qual for, para tranquilizar aquele que desesperasse ou duvidasse da sua verdadeira passagem para Deus, ele não tem de fazer mais do que indicar-lhe a fé viva como sendo o acto da passagem. A isto tendem, no fundo, também as duas f armas de protestantismo, mas a vertigem provocada pela reflexão imped2 o elemento de presença de produzir o seu efeito ao mesmo tempo que o elemento escatológico. O católico não pode limitar-se a considerar a redenção como um facto objectivo, consumado na Cruz e do qual basta que o crente tome conhecimento para beneficiar dos seus efeitos. Pelo con.. trário, ele sabe que a redenção para se tornar subjectiva
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exige participação e apropriação; por isso o caminho da angústia do pecado para uma angústia redentora é, para ele. um verdadeiro progredir. Se ele se vira para esta última, não pode não deixar a primeira atrás de si; se se aproxima desta, afasta-se da outra. E entre as duas estende-se necessàriamente uma zona de isenção da angústia. caracterizada pelo resplendor da fér da caridade e da esperança. Na angústia cristã há só um ponto em que existe um como que vestígio de «dialéctica»; e este ponto delicado há-de dar sempre ocasião a mal-entendidos e interpretações erradas: jamais o crente que foi assumido pela graça da angústia da éruz poderá ver-se a si mesmo numa unidade com o Redentor e contraposto aos pecadores. Uma tal directa e inteira unidade seria falsa e refutável tanto do ponto de vista objectivo e teológico como do subjectivo da experiência. Nenhum cristão fica em igualdade de direitos com Cristo, e nenhum dos que a graça atrai para a sua vizinhança, será tentado a confundir-se com Ele. Precisamente quando a graça o chama «amigo» ele se professa <<Servo», e não só servo mas pecador. No calvário só Cristo é a vítima; quem se encontra na sua vizinhança ou é, como o ladrão, crucificado com justiça em razão dos seus delitos, ou (sempre e de qualquer maneira) culpado pela crucifixão de Cristo. Qualquer participação real e objectiva na angústia da cruz do Senhor só poderá ter, subjectivamente, este carácter de parcialidade que separa como um abismo a angústia de Cristo da angústia do cristão: aquele que sofre por uma graça concedida, é apesar de tudo e sempre um
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pecador manchado ao menos pela culpa hereditária. Não quer dizer que a sua qualidade de pecador lhe seja expressamente manifesta como ocasião da angústia: pode acontecer que permaneça escondida, tal como a luz sobrenatural que é preciso deixar incondicionalmente à vontade de Deus. Mas mesmo neste caso nunca será tentado a confundir a sua angústia com a do Senhor; suportá-la-á, solitário, no lugar que lhe foi destinado e numa obediência para ele próprio inexplicável. Podemos por conseguinte, e em resumo, formular uma segunda lei : Enquanto somos pecadores, e podemos sempre -t;oltar a sé-lo de novo, a4nda como crentes, a objectiva acção redentora da Cruz 11ão aboliu simplesmente a angústia do pecado; pe"lo contrário, esta é posta diante de nós, mesmo na Nova Aliança. Podemos deixá-la atrás de n6s, na medida em que 1,erdadeiramente nos aproximamos da Fé que a Cruz nos oferece; fé 1Jipa, isto é: que informe a nossa vida. Todavia, ainda que nos seja concedida a graça de sofrer a a11gústia da Cruz, permanece respeitada a distância que corre entre quem não faz mais do que participar no sofrimento e Quem sofreu a S'Ua Paixão redentora; e desta di,.qfância é consciente quem sofre a angústia.
No que acabamos de dizer está implícita uma terceira asserção que deve ser ainda expressamente considerada. Se é verdade que a angústia participante na Cruz é um fruto especial nascido de um dom da fé, da caridade e da esperança, e uma particularíssima intensificação das mesmas, concedida por Deus, então é impossível que um homem passe directamente da an-
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gústia do pecado para a angústia da Cruz. Por outras palavras: o mistério do obscurecimento na angústia da Cruz, está, de um ponto de vista teológico, necessàriamente enquadrado no mais amplo mistério da redenção cristã do pecado como da angústia do pecado e, por aí, na alegria cristã. Uma autêntica participação, segundo a vontade de Deus, na noite do Crucificado será, pois, sempre um episódio inserido entre uma e outra luz, entre uma e outra alegria, entre uma e outra força . .'e, não só improvável, mas intrinsecamente impossível, que Deus chame um homem da angústia do pecado para a angústia da Cruz, sem que este tenha experimentado plenamente a alegria cristã. Isto vale antes de tudo para a noite mística própriamente dita, que não se pode interpretar cristãmente senão numa referência à Cruz: não como um fenómeno de «purificação» posta no início de uma via espiritual, mas sim, e em primeiro lugar, como uma graça cristã, e portanto social, que é administrada por Deus sómente, e que pode, por conseguinte, ser imposta em todas as etapas da vida espiritual, com a limitação, porém, que é concedida itnicamente a quem tenha chegado a conhecer a luz de Deus na fé, na caridade e na esperança até aos mais profundos recantos da alma. Porque tal «noite» outra coisa não é senão a privação desta luz; e quanto maior for o contraste, quanto mais completa for a privação, tanto mais profunda e eficaz será a noite. Só o Filho de Deus, gerado desde toda a eternidade no seio do Pai. nutrido com a sua subst~ncia, pode avaliar plenamente o que significa ser abandonado pelo Pai. Ainda aqui as mulheres de Betânia nos ensinam: elas não teriam podido sentir a angústia da ausên-
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eia incompreensível de Jesus, se não tivessem sido ~uas amigas, se a sua presença santificante não tivesse sido para elas a própria vida. Se isto vale para a grande noite mística e para a grande angústia mística que nela se experimenta, vale de um modo análogo, como que em menor formato, para toda a vida de fé cristã viva: «o conforto» da fé precede sempre o ~desconforto», porque este não pode ser sentido cristãmente senão como privação de uma luz espiritual. É preciso que os poetas católicos dispostos a tratar o tema da angústia cristã, sobretudo eles, aceitem oue lhes lembremos esta verdade. A sua responsabilidade é grave e tanto mais grave quanto mais peso tiver o seu testemunho na Igreja e fora dela. Quem conhece com alguma profundidade Georges Bernanos não pode sustentar que ele exagera a noite, o desespero e a angústia, objecção que surgirá fàcilmente a uma lE?itura superficial. Basta um relance à sua vida que de catástrofe em catástrofe, conserva sempre a marca da autenticidade cristã, para que não possamos ter qualquer dúvida a esse respeito. A zona onde radica e donde brota a sua obra fica para além de toda a inclinação à grandiloquência e de toda a efervescência da paixão (não menos violenta que a do seu antepassado espiritual Bloy): é uma segurança incorruptível nas coisas da Igreja e do sobrenatural, que ele revela com mão objectiva de médico, não querendo produzir sensação nem falsear seja o que for, mas apenas mostrar o que é. O próprio Bernanos conhecia a angústia desde criança, uma angústia que o mordeu e não o largou mais em toda a vida. Mas não impediu a sua extraordinária, vitoriosa, 1
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cavalheiresca coragem; em última análise, mais não foi do que uma forma desta coragem: estar nu e inde . . feso diante de Deus, tal como os santos que descreve. Ele pôde assim, no ano da sua morte, atingir uma pro-fundidade em que não são exageradas nem blasfemas estas palavras do seu diário: «Nós queremos realmente o que Ele quer, nós queremos verdadeiramente, sem o sabermos, os nossos sofrimentos, a nossa dor, a nossa solidão, julgando querer unicamente a nossa alegria. Imaginamos que fugimos da morte, e na verdade queremos esta morte, como Ele quis a sua. Como Ele se imola em cada altar onde se celebra a Missa, assim recomeça a morrer de novo em cada homem na agonia. Nós queremos o que Ele quer, n1as não sabemos aquilo que queremos, não nos conhecemos, o pecado faz . . nos viver à superfície, só entramos em nós para morrer, e é lá que Ele nos espera». A novela de Gertrud von Le 14,ort Dic Letzte am Schaffott lA última no Patíbulo) • já é mais problemática: não pela descrição da angústia mística e do sacrifício nela consumado na extrema debilidade, nem pela contraposição desta «pequena debilidade» ao heroísmo viril da mestra das noviças, que, aliás, no fim de contas, não é escolhida para o sacrifício; mas pela maneira como em Blanche de la Force uma angústia natural, inata e mesmo claramente neurótica, vai constituir a base de uma angústia mística, ou pelo menos desemboca nela sem solução de continuidade. A angústia de Blanche é «predisposição» e é posta em relação com o . Donde CN. do T.)
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seu nascimento, ocorrido durante um pânico popular: •desde muito cedo que ela dá mostras de uma ansiedade que excede em muito a que por vezes se observa nas crianças». «A escada não escorregará?... Não cairá a parede ? A gôndola não se afundará? Não se irão as pessoas zangar?», pergunta continuamente a rapariguinha.. Mais tarde, encontra «pequenos expedientes, que servem ao menos para disfarçar o medo... Blanche mostrava-se subitamente cansada ou indisposta, tinha-se esquecido de ir buscar ou de aprender isto ou aquilo, numa palavra: conseguia achar um pretexto para não entrar na gôndola ou subir a escada». A entrada no Carmelo ao princípio é claramente uma fuga da angústia para a segurança, e é no meio desta ansiedade nevrótica, deste «medo do medo», que vem surpreendê-la a vocação para a autêntica angústia mfstica. Não é que uma tal vocação possa ser dada unicamente a natur& zas fortes e serenas e não a caracteres ansiosos. Mas, neste segundo caso, deve atender-se a não estabelecer uma continuidade. mais, deve até suprimir-se a aparência desta continuidade, porque entre o obscurecimento da angústia natural nevrótica e aqueloutro, tão diverso, da angústia sobrenatural, insere-se sempre a luz e a serena força da vocação. Se em Gertrud von Le Fort fica problemático o inicio da vocação à angústia (enquanto que no fim, sobre o patíbulo, tudo se esclarece) no Refém (L,Otage) de Paul Claudel, o fim da heroína Sygne de Couf ontaine está envolto na mais completa obscuridade. Depois de ter sacrificado a sua honra. mais. a honra da sua casa e, simbólicamente, a honra de todo o antigo regime monárquico, para salvar o Papa e a Igreja da tempestade
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da Revolução, da impetuosa liberdade vazia e sem sentido, esgota-se nela toda a capacidade de perdão e de alegria, toda a força de paz. Morre com o ~tique nel'voso» de abanar a cabeça em sinal de negação, não porque queira opor-se à verdade, mas porque não lhe resta um resíduo de força para dizer que sim. Em Claudel (e de um modo especial na Anunciação a Maria) o destino e a acção das suas figuras são sempre determinados pelo simbolismo que nelas reside, e o terrível desta art.e é que onde o símbolo (a ruína do Ancien Régime em holocausto cristão pelo novo) é de uma precisão impecável, as pessoas simbolizantes são levadas a uma perigosa tensão que se arrisca a ultrapassar todos os limites. Todos os três poetas nomeados reconheceram o lugar espiritual da angústia cristã e colocaram-se nele: na Revolução F·rancesa, no desmoronamento de toda a antiga ordem do mundo perante o caos da liberdade que se levanta e cujas pretensões de uma indiscriminada, caótica abertura e disponibilidade para tudo ( AllmõglichkeitJ, não podem deixar de ser considerados, se as referirmos à abertura cristã a Deus, senão como uma diabólica contratacção da verdade. Exige-se o sacrifício de toda a ordem (que é a única existente): de tão monstruosa exigência tinha de brotar a extrema angústia. Mas nesta situação terrível sobrevive aquela rectidão, aquela pureza por que se bate Bernanos: Tene2 bon! Soye2 fier!; sobrevive na morte da jovem marquesa De la Force a invisível força da Cruz, capaz de plasmar um futuro de ilimitados horizontes: «a Revolução acabou. E o regime de terror caiu de facto dez dias depois»; e sobrevive até, apesar de todas M profanações, a honra dos Q)ufontaine.
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Bygne: Viens avec moi ou il n'y a pkuJ de douleur. Georges: Et plus d'honne,..1.,r r Bygne: Plus de nom et aucun honneur. Georges: Le mien est intact. Sygne: Mais à quoi sert d'être intact1 Le grain que l'on met dans la terre, De quel usage est._ilJ s'il ne pourrit d,abord1 ...
Toute terre est la même à six pieds de projondeur. Reinhold Schneider sabe-o: «Não há tragédia revolucionária: seria uma contradição de termos. A tragédia está em que é justamente a vida melhor, a mais alta, que deve perecer, e que, em todo o caso, a lei vale mais do que a vida e a existência» (Macht und Gnade, 30); mas, mais profundamente ainda, sabe que não só no interior de uma moldura sólida se pode produzir o desmoronamento; mas que a própria moldura deve ser feita em pedaços, para que tudo possa adquirir nova validade pela única lei formadora da história- pela Cruz. Nesta contradição devoradora está a tragédia cristã, e também a angústia cristã. Em tal sentido o poeta a deve entender e descrever; mas como poderia esquecer que, debaixo de semelhante sinal, nenhum crepúsculo, nenhum desabar será tão horroroso que, dos destroços, não irrompa, resplandecente como nuncai o fogo da Redenção? Por conseguinte, se ao representar a grande angústia cristã se deve procurar com o maior cuidado que transpareçam as suas leis determinadas pela Cruz, a sua diversidade da angústia natural, a sua origem na certeza e na alegria da missão e o seu desembocar na
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vitória da Cruz, mais importante é ainda distinguir sempre, e muito nitidamente, entre esta angústia e o pecado e a angústia do pecado. Está a espalhar-se hoje aquilo que Karl Rahner estigmatizou como a falsa e funesta ,mística do pecado» (de que nem um grande escritor como Graham Greene nem o K ranz der Engel de Gertrud von Le Fort ficaram isentos). Defendida sob o pretexto da sinceridade e do antifariseísmo, esta teoria pretende que na própria culpa tomada voluntàriamente sobre si mesmo (por solidariedade com os outros pecadores) haveria um factor de redenção: ora isto está em contradição radical com a verdadeira redenção. Se se desfazem hoje irrevogàvelmente (e é bom que assim seja) os quadros de um individualismo cristão, de uma solitária especulação sobre a própria salvação, que para o homem moderno sabem demasiadamente a egocentrismo, nas leis do Evangelho, todavia, não se toca: elas são sólidas e válidas para todas as gerações. Em Deus não há sombra de trevas, e na culpa não existe luz alguma. O Filho de Deus fez-se igual a nós em tudo, excepto no pecado, e este «excepto> é a premissa pela qual Ele pôde tomar sobre si e expiar todos os pecados. Quem se afasta um milímetro que seja desta doutrina, confunde tudo. O cristão pode cooperar e ser solidário, exactamente na medida em que se liberta do pecado. Angustiar-se com os outros, ele pode fazê-lo, apenas na medida em que, objectivamente, foi liberto da angústia do pecado. A terceira lei, portanto, será esta: Deus não oferece a nenhum crente a participação ( mística, ou mesmo comum) na angústia da Cruz do seu Filho, sem lhe ter
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dado, primeiro, toda a força da missão cristã, toda a alegria e toda a luz da Fé, da Caridade e da Esperança, isto é: sem lhe ter tirado a angústia do pecado. Ter como possível uma «síntese» das duas angú.stia.s, ou tentá-la, é contrário à sã doutrina cristã.
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Ao voltarmo-nos para o problema da essência da angústia, não abandonamos o campo da teologia, mas usa.mos tão-só das achegas que sobre o tema a razão nos pode fornecer; e isto tendo sempre em vista uma mais profunda compreensão daquilo que nos foi revelado. Por outras palavras, servimo-nos da filosofia, entendida no que ela é e unicamente pode ser: a reflexão do espírito humano sobre os motivos e as causas deste mundo concreto - o qual, como nos mostra a Revelação, nunca foi «puramente natural>>, mas sim um mundo criado por Deus, na graça sobrenatural, com uma única e sobrenatural finalidade que é a contemplação de Deus. Este mundo não se tornou «puramente natural>> nem mesmo com a queda do homem, porque este permaneceu sempre totalmente inserido no sobrenatural. O objecto de qualquer filosofia é, portanto, sempre algo mais do que filosófico (se se considerarem a graça e a revelação como objectos específicos da Teologia) , pelo simples facto de que a razão, que é ao mesmo tempo objecto e instrumento do filosofar, nunca existiu nem jamais existirá, tal como a <<natureza» de que deriva, em estado «puramente natural>>. Tanto assim que, podendo postular-se e formular-se o conceito de uma natureza totalmente separada do sobrenatural, se torna, em seguida, impossível ao filósofo desenvolver constru-
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tivamente uma tal concepção, na falta de dados sufi.. cientes da experiência. A natureza que nós conhecemos é a que se move entre o pecado original e a Redenção; e está de tal maneira e tão intimamente afectada por estas duas modalidades que nem sequer é possível uma clara e incontestável reconstrução da original natureza paradisíaca (que como «estado» real está mais perto da natureza actual) ; calcule-se, por conseguinte, se é possível o reconhecimento de um estado fora de toda e qualquer relação com o sobrenatural, coisa que nunca existiu realmente ... Se o filósofo se resigna a estes limites impostos pela Revelação (é-lhe negada a existência de um campo de trabalho absolutamente independente da Revelação, porque não há «graça» sem «revelação)>: essência e consciência na sobrenatural auto-revelação de Deus estão indissoluvelmente ligadas), então o contributo de uma reflexã.o filosófica no interior da investigação teológica será benvindo; mais do que isso: devemos dizer que é indispensável. Efectivamente, Eobre que outra coisa se deveria basear a ciência teológica senão sobre a actividade reflexiva da razão? Nesta parte do trabalho que nos resta desenvolver, não se trata, pois, exclusivamente de uma ulterior e mais profunda análise dos textos bíblicos enquanto tais, mas de analisar, à luz da Revelação que eles trazem, a natureza e a razão humanas que pela mesma luz fo ram atingidas; natureza e razão que são expressamente solicitadas pela Revelação a repensarem-se e a compreenderem-se a si mesmas, adentro das asserções e proclamações da palavra de Deus. A esta actividade é concedida a maior liberdade de movimentos: a razão é autorizada a trazer as suas descobertas e, depois, a 4
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examiná-las à luz da palavra de Deus, para ver se resistem, se e até que ponto serão válidas ou de rejeitar, ou em que medida serão utilizáveis, depois dos oportunos remodelamentos: intellectus quaerens fidem; a razão pode, porém, partir da Palavra de Deus e levar ~sta última como expressão da ordem concreta do ser indicada por Deus, para aquela ordem do ser que é acessível ao homem, e reconhecer a Palavra como última e absoluta verdade da verdade relativa que foi a sua &.té esta confrontação: /ides quaerens inteZlectum. Quem aqui quisesse cindir as duas ordens mais nitidamente, cortaria os laços vivos da verdade. A partir de Platão, a filosofia considerou como seu acto fundamental a admiração, em que a razão, saindo da actividade quotidiana, avista o existente como tal. Não era preciso Heidegger para descobrir que este acto fundamental leva perto da angústia. O parentesco entre admiração e espanto existe já em Platão; poder-se-ia até designar esta transição como a mais íntima característica do génio socrático, na medida em que Sócrates não se cansa de mostrar que aquilo que aparentemente se conhece é, na realidade, incógnito ( e assim provoca espanto), com o fim de o tornar verdadeiramente cognoscível (e de o fazer admirar) graças a este distanciar-se... Mas também na medida em que ele demonstra que aquilo é desconhecido na aparência é na realidade conhecido, pelo que o sentimento de estranheza que 1,á no cadmirar-se~ é apenas função do Eros mais profundo, admirativo. Tomás de Aquino viu bem a acção recíproca destas duas formas de admiração e espanto ao fazer a objec ção: cOs filósofos são movidos ao estudo da verdade 4
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pela admiração como [Aristóteles] diz no princípio <la. Física. O medo, ao contrário, não move à investigação. mas à fuga. Portanto, é evidente que a admiração !lâo é uma forma de angústia,.. Na resposta, porém, ele distingue três formas de angústia, pelo menos da que atinge o espírito através de um mal exterior. Um tal mal pode exceder a força de resistência do homem (e provocar assim o medo), a.ntes de mais nada pela sua intensidade, que escapa a uma exacta avaliação e gera a admiratio, o espanto; em segundo lugar, pelo seu carácter insólito e de improbabilidade, donde o estupor; enfim, pela sua imprevisi· bilidade, que suscita o horror. a agonia. A resposta à objecção diz que «aquele que admira, foge de dar um juízo sobre a coisa admirada, porque tem medo de não o conseguir; mas investiga no f~turo: porém quem está possuído pelo estupor tem tanto medo do juízo presente como do exame futuro; pelo que a admiração é o prin· cipio do filosofar, enquanto que o estupor é um obstáculo à consideração filosófica» (S. T. 1 I. 2 q. 41 a 4 c et ad 5). A distinção é artificial; mas remete-nos à análise dos estreitos laços que existem entre admiração e espanto. que levaram Hegel, Kierkegaard e Heidegger a declarar como acto fundamental da filosofia, e, com isto, implicita.. mente do próprio espírito, o horror, a vertigem, a angústia e precisamente a angústia com a sua tendência à fuga, de preferência à esperança com a sua tendência à confiança. Medo e esperança sempre foram, por definição, dois conceitos opostos: o objecto da esperança foi definido como bonum futur-um ardu.um1 quod quis potest adipisei, o objecto do temor como malum fu-
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t1trum arduu,m, quod non -potest de facili 11itari (ibidem,
q.42 a 3 e; C. G., I, 89).
Mas o movimento confiante da esperança, com o conceito nela implícito de acessibilidade, encerra toda a subjectividade do esforço e do «se:r bom para mim», enquanto que a tendência à fuga, própria do medo, exclui exacta111ente esta subjectividade, para criar aquele espaço livre, em que a coisa pode surgir na sua objectividade. (Paralelamente, em teologia, a via negativa que procura definir. Deus não considerando as suas relações com as criaturas, como faz a via positiva, mas em si, absolutamente, prescindindo da criatura, foi sempre considerada a via por excelência, a mais objectiva). A admiração, o fervor entusiástico pela sublimidade do ser e pela sua dignidade como objecto do conhecimento, só promete tornar-se ponto de partida para uma autêntica inteligência e penetração, quando atingiu aquele grau em que, perante a superioridade esmagadora do objecto, o sujeito é por assim dizer reduzido a um ponto, a um nada. (Igualmente em teologia, o movimento para Deus no amor e na esperança apenas é genuíno e desinteressado quando atingiu a posição da pura adoração de Deus, por Ele mesmo). Deste modo, quando o por-si-mesmo do objecto superou a subjectividade, e quando toda a coloração dos desejos e aspirações foi eliminada pela impassível, majestosa objectividade do ser-assim-e-não-de-outro-modo, eis que ~parece a angústia. A essência desta está na abolição do tranquilizante equilíbrio de forças entre sujeito e objecto, pela qual o primeiro fica à mercê do segundo ( timor est de malo futuro quod excedit potes-
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tatem timentis, ut scilicet ei resisti nem possit - I. 2 q. 41 a 4 e).
A velha filosofia distingue entre dois males, que estão na origem do medo: «Existe o medo, diz Aristóteles (Ret., 1 II e 5), do mal corruptivo (que destrói o ser), do qual a natureza foge em virtude do seu natural desejo de ser: e tal temor é chamado natural. Além deste, existe o medo do mal contristante, que não se opõe à natureza, mas ao apetite do concupiscível; e tal temor não é dito natural» (8. T., I, 2, q.41 a 3 c). O primeiro ameaça a substância, o segundo a actividade (S. T., I. q.48 a 5 e; C. G., 3, 6). A ameaça natural por excelência é a morte, seja a «morte natural» por causas naturais, seja a «morte violenta», por causas não naturais. E no entanto, continua S. Tomás com Aristóteles. esta ameaça natural, para incutir medo, deve assumir uma determinada posição; não deve ser tão remota que a sua imagem empalideça a ponto de não produzir imedia tamente um efeito angustiante - «todos sabem que devem morrer; mas corno não é coisa próxima, não se importam com isso» (Arist., loc. cit.), nem deve estar tão rto que a iminência do mal sepulte o medo», tal como aos que são decapitados, que não têm medo inelutabilidade da morte que se aproxima ~). «Para se ter medo é preciso que sub'--esperança» (S. T., L 2, q. 42 a 2 c), ou '~ certo espaço livre, em que aquilo "Ver-se, passando de distâncias t, . . vizinhança imediata, e vice... à·. à e( o medo atinge aqui os seus mça~ QJ~ •
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Reconheceu a ameaça total à substância, que provém da morte. Descreveu, porém, a angústia que dela deriva como qualquer coisa de relativo, de condicionado por uma determinada proximidade ou distância. A esta limitação corresponde o lugar dado ao medo entre as passiones animae, as quais são, no seu sentido mais próprio e rigoroso, um sofrimento motivado pela perda de qualquer coisa: o que, directamente, só pode acontecer a um ser material. «Assim, a paixão propriamente dita só indirectamente (per accidens) pode atingir a alma, isto é, na medida em que sofre o composto (de alma e corpo)>> (S. T. I. 2, q. 22 a 1 e). Consequentemente, a passio tem a sua sede mais na parte apetitiva do que na parte receptiva e mais na parte apetitiva dos sentidos do que na espiritual, ou seja: na vontade (ibidem, a 2 et 3). Segundo S. 'romás, pois, a ameaça iminente sobre a natureza ou a substância que provoca a angústia natural, só pode ter por objecto a morte do corpo (isto é: a separação da alma do corpo, a recomposição do «composto»), e nunca o ser da criatura como todo. A consciência que a alma tem da própria imortalidade e, portanto, da sua invulnerabilidade por parte do nada, enquanto male corruptivum, está tão radicada, a confiança do homem medieval no ser é tão sólida. que uma angústia que ponha em dúvida o ser finito da criatura nem sequer é tomada em consideração. Uma tal angústia aliás não seria primàriamente uma passio (na parte sensível da alma) mas uma atitude da alma espiritual enquanto tal, ou seja do espírito, em que, este, enquanto finito, vê os seus limites e, vendo-os, os ultra. . passa. Só aqui, onde a ameaça ao espírito finito (que enquanto espírito é, todavia, de certo modo, infinito)
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investe contra os fundamentos do espírito todo e não apenas contra a sua corporeidade. se tem o ponto de contacto com a angústia do Antigo Testamentot que treme diante do paradoxo de um sector de salvação finito, encerrando todavia em si o infinito da salvação. Para isto influíram as circunstâncias de uma época em que a confiança no ser estava profundamente abaladat pelo que a angústia foi transferida da posição periférica de uma passio animae, à posição central de um «dado fundamental» do espírito finito. Viu ..se depois (disso aliást já se apercebera a Idade Média) que uma sensibilidade «Binnlichkeit) fechada não oferece lugar para a verdadeira angústia, porque não alcança directamente nem apreende em si a dimensão do futuro, do qual provém a ameaça, e quet portanto, o animal pode ter com aquilo que é ameaçador unicamente uma relação de medo natural e objectivo, de maneira nenhuma subjectivo (sensus non app,·ehendit futurum, sed ex eo quod apprehendit praesens, animal naturali instinctu movetur ad sperandum futurum bonum vel tim.endum futu1·um malum. (S. 7'., I. 2. q. 41 a
1 ad 3).
Uma sensibilidade pode sim «impressionar-se» perante o inabitual, mas não pode verdadeiramente maravilhar-se e muito menos pode ter medo. A sensibilidade é um sistema receptivo finito e fechado, e que só pode apreender aquilo para que foi feito: sonst luzes. cores, por exemplo. dentro de uma certa gama limitada. O som demasiado alto, a luz demasiado intensa não são percepcionados; pode existir, é certot nas margens da capacidade receptiva, uma zona susceptível de se tornar mais extensa por meio do exercício e do esforço talvez
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doloroso; mas esta extensão de uma escala finita não comporta nunca a superação e a transcendência neces-sários para que pudesse verificar-se uma total perplexidade e uma total ameaça. O medo do animal, permanece. pois, um fenómeno de todo diverso do medo espiritual, o único que aqui nos interessa, ainda que a velha filosofia tivesse razão em ver na angústia humana não um fenómeno puramente espiritual, mas um fenómeno espiritual-corporal, isto é, interessando integralmente o espírito na sua finitude '. O lugar da angústia no espírito é definido pela relação recíproca entre transcendência e contingência. Transcendência significa que o espírito, para poder reconhecer um existente como tal, deve ter ultrapassado todo o existente singular e finito e atingido a percepção do ser. O ser, porém, não é finito nem é um existente, mas é aquilo pelo qual o existente existe. Não se põe, portanto, objectivamente como uma coisa. diante do espírito cognoscente. mas. como é o principio pelo qual o existente existe, assim também, no espírito, é o princípio pelo qual se pode reconhecer um existente como tal. Por si. o ser é indiferente em relação a isto ou àquilo, porque pode ser tudo, e o espírito que quer conhecer um existente deve, consequentemente, libertar-se até alcançar esta indiferença do ser, e nela adquirir a capacidade de medir todas as diferenças. O espírito tem necessidade de possuir em si um palco Não é este o lugar para examinar ma18 a fundo o medo do animal. A este respeito. veja-se o que diz S. Tcmãs CS. T., I. q. 78 a 4) sobre os «sentidos lnten1os:. Cf. igualmente Karl Rahner, Geiat ln Welt, 1941. I
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vazio e de tal medida que nele tudo possa aparecer e ser representado. Não se pode dizer deste vazio que seja simplesmente o «nada», já que ele é a negação do exis.. tente na medida apenas em que é o ser, de que deriva todo o existir. Mas também não pode chamar-se «qualquer coisa•, porque com esta palavra designamos aquilo que existe, as suas relações e propriedades. Tão-pouco pode ser designado como a ideia por excelência de todo o existente, porque ultrapassa de uma distância infinita esta ideia, tanto quantitativa como qualitativamente: considerando um número infinito de existentes não se chega a definir nem a delimitar o ser em si, nem de j modo algum a esgotar progressivamente o seu conteúdo; este permanece intacto, na sua transcendência, aquilo \\ que sempre foi ; ou seja, aquilo por que aquilo que é existe. Esta superioridade absoluta, que foi chamada a diferença ontológica, exprime, ao mesmo tempo, o que é a contingência: esta não pode ser mais bem expressa do que dizendo que nenhum existente singular nem nenhum cúmulo de existentes será jamais o ser. Porque o ser enquanto tal não aparece nunca, nem nunca se realiza num existente, ou numa síntese dos existentes. Este abismo que exi~te na transcendência, e também · na contingência enquanto reflexo da primeira, é precieamente o motivo da angústia, para o espírito conhecedor do existente. Em todo o acto de conhecimento, o eepírito tem que abandonar o terreno do existente, para \ voltar a ele, a partir do ser, onde não se pode tomar / pé, porque é intangível ( u,nfassbar). O ser não é uma · categoria, um conceito, mas é aquilo por que o espírito, abandonando tudo, deve ser tomado para poder, por sua
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vez, apreender qualquer coisa. O angustiante na estrutura íntima do conhecimento é ele mover-se entre dois pólos, que, como tais, necessàriamente lhe escapam: o ser escapa-lhe, porque jamais poderá tornar-se objecto de conhecimento, mas permanece como premissa de todo o conhecimento objectivo, tal como na alegria de Platão em que os prisioneiros na caverna vêem as próprias sombras mas não vêem a luz que, por detrás deles, se produz. O existente, depois, escapa-lhe, porque só seria verdadeiramente conhecido se se pudesse demonstrar a sua relação inteligível com o ser, pelo qual, em todas as suas partes, ele é o que é, se se pudesse deduzi-lo do ser e mostrar a sua relação necessária com ele. Ora isso é impossível. O conhecimento oscila entre estes dois pólos, nos limites da diferença ontológica e na indiferença perante o «ser» e tem que se deixar diferenciar em relação a um «sendo», sem o que não atingirá pela indiferença o próprio ser nem pela diferenciação o <<Sendo» na sua necessidade. Ainda que não seja exacto dizer que o ser está para o existente como o geral para o particular ( efectivamente, todo o particular é tal também graças ao ser, que, por isso, está para além da generalidade e da particularidade e sustenta as duas), é, todavia, verdade que aquela relação dá bastante bem a ideia do que seja a diferença ontológica. O que se interpõe entre o geral e o particular, esse abismo a que não podemos ver o fundo, é, para o espírito cognoscente, aviso e lembrança constantes do abismo mais profundo, e muitas vezes esquecido. que existe entre o existente e o ser. Aqui, para o conhecimento, a questão torna-se urgente e quase brutal: porque é que ele encontra preci-
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samente este particular e não outro? Como explicar o «de facto» destes factos, tomados singularmente ou em conjunto, pela normatividade das leis gerais? Ê igualmente difícil tornar inteligível a soma do que existe de facto como articulação dum mundo de normas ideais e a própria norma como simples fórmula empírica para o comportamento factual das coisas. E se o pensamento tivesse a ingenuidade de acreditar numa des .. tas duas coisas e a tomasse como ponto de partida, mais cedo ou mais tarde encontrar-se-ia, hrutalmente, perante a contingência que emerge deste abismo: o de f:facto», na sua realização, é tão impensado e estranho, a lei, acima dele, tão indiferente e ineficaz, que, pela incongruência que há na composição do existente, entre este e o ser se abre um abismo. Um homem determinado, concreto, realiza, porventura, a ideia magnífica de homem? Mas, se ele não pode fazê-lo, nem muitos juntamente, como pode, então, a ideia universal de homem servir de norma a uma tal humanidade? Ou, por outras palavras: se eu sou homem porque tudo aquilo que pertence à ideia de homem é realizado na minha natureza - incluindo a unicidade - como pode esta ideia ser indiferente em relação à minha unicidade e realizar-se em milhões de outros homens (permanecendo sempre indiferente) ? Se em relação à ideia sou indiferente (se o meu ser homem é passível de troca com o de outro homem) , então a ideia não se realiza em mim genuinamente, a não ser que seja próprio da ideia o ser indiferente, - o que aboliria o conceito de personalidade. Todos os cruzamentos e interferências de significado entre factos e norma, que experiência e ciência verificam - e quem se atreve a negar que eles são infinita-
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mente vários e interessantes?·- flutuam sem cessar adentro do vazio da diferença ontológica. Esta é vazia não só porque o pensamento vê nela a sua vacuidade, mas também a impreenchibilidade. Enquanto a generalidade é tal como o pensamento deve vê-la necessàriamente, esta não pode representar-se a si mesma de modo exaustivo nos factos; e enquanto o existente é tal como o pensamento deve necessàriamente reconhecê-lo, este não pode ter a pretensão de fornecer um quadro completo d~ ser. Não se diga, portanto, riue o existente como tal, seja embora pelo seu carácter limitado, é motivo de angústia; mas torna-se tal, desde que se considere nas suas relações com o ser - e 1:.odo o acto de conhecimento o põe em tal relação. Igualmente, o ser, em si, não é terrível e angustiante, nem mesmo pela sua indefinibilidade e intangibilidade, mas é-o na sua relação com o existente, o qual é para o t?onhecimento a única, embora não necessária, expressão do ser. O espírito que, para conhecer o existente, se lança na transcendência, não pode deixar de interrogar-se st1bre se um tal esforço - a indiferença perante todo o existente - vale a pena de ser realizado, visto que, com C'le, não se chega nunca a um real conhecimento do ser ( que jamais se objectiviza). nem do existente (que não se deixa nunca derivar do ser) e isto porque qualquer coisa de abissal faz parte da própria estrutura do objectivo. O jovem que, até ontem inteiramente absorvido no individual e no existente, desperta para os problemas da abstracção e da transcendência, sofrerá pela primeira vez - e tanto mais intensamente quanto mais penetrante for o seu espírito - a imensa decepção que
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o mundo causa. A transcendência que se abre na sua frente apresenta-se ao princípio como algo de sedutor, convidando a todas as aventuras, como a fremente visita às «Madres»: em breve, porém, se deve reconhecer que o caminho não leva a meta alguma, mas, de improvisoJ volta para trás em direcção ao singular, com a única vantagem de um melhor conhecimento do singular no mundo. Doravante, todavia, por causa da transcendência entreaberta, este singular não pode mais ter, para o espírito infantil, o peso de um absoluto: pela distância. tornou-se de certo modo indiferente. Do ponto de vista formal, a transcendência é o que torna possível ao pensamento a dupla direcção da abstractio (do ser a partir do existente) e da canuersio ad phantasma (como ver-se o ser na aparência). Mas do ponto de vista do conteúdo, este duplo movimento não é mais do que uma avulsão (abstractia) do espírito do seu ambiente sereno e familiar (heimlich) para os horizontes inquietantes (unheimlich) do ser e, depois. um retorno a um mundo, que só agora mostra ser aparência (phanta.sma) porque é contingência e estranheza (Unheimlichkeit). O excessus, o extâse do pensamento para além do sensível (Sinnl-ichkeit), tem já em si o gérmen da angústia, não por se abrir um espaço maior, mas porque este espaço, que torna possível a f armação dos conceitos, não basta para oferecer um satisfatório sentido do objectivo; ao contrário, impede-o, porque não é mais do que a tal zona intransponível chamada diferença ontológica. A estrutura que revela a verdade do ser é a mesma que a oculta: se é verdade que faz desabrochar a luz do ser e do intelecto activo ( intellectWJ agcns), é também verdade que difunde as trevas da falta
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de sentido e da incompreensibilidade. Na diferença ontológica, o mundo torna-se abstracto em ambas as direcções: o existente perde importância enquanto é visto como aparência do ser, e o ser por sua parte nada ganha, porquanto depende, de certo modo, deste existente enquanto aparência. A abstracção torna-se quali,. dade interna do S€r e do espírito no mundo, qualidade que numa errada teoria do conhecimento se considera como f enomenalismo (e isto é falso, porque não se nega às coisas a propriedade de existir, mas postula-se a sua caracterização) e que oferece um ponto de partida a um modo de pensar tanto idealístico como realístico. A diferença ontológica dá ao ser no mundo características abstracto-fantásticas que, no espírito (que, conhecendo, se encontra na diferença ontológica), não pode expri· mir-se senão como angústia. Isto é mais evidente ainda se se considera o espi rito não já como razão, mas como vontade. Aqui a indiferença do intelecto perante o ser-por-si, que constituia a premissa para o conhecimento de qualquer existente diferente, aparece como indiferença do querer perante o mesmo ser-por-si, como condição necessária para a livre elegibilidade de qualquer ser singular como bem. Por um lado o ser-por-si (porque não é objecto) não é elegível pelo querer, tal como não é objectivamente cognoscível pela razão; por outro lado, o abrir-se a ele é a condição necessária para que a vontade, pela distância do espírito e, portanto, em liberdade, possa escolher um bem singular. Isto mesmo, que a livra do constrangimento (sensível) e que de cego instinto a transforma em superior faculdade espiritual de escolha, impõe-lhe, ao mesmo tempo, indiferença e neutralidade
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perante todos os bens da terra. Nesta imposição a vontade sente-se livre, porque não há aqui escolha necessitante alguma. Aquilo que se chama liberdade de escolha (liberum arbitrium), tem em si, inseparáveis, o lado positivo de construir uma distância que liberta do constrangimento e o lado negativo de ser uma arbitragem entre duas partes ou opiniões diversas, das quais se pode dizer a priori que nenhuma delas tem completa e absolutamente razão. Assim, por sua vez, o absoluto de um distanciamento do concreto (para poder escolher) vem a encontrar-se em desproporção com a finalidade desta abstracção: isto é, a escolha de qualquer coisa que será, em qualquer caso, algo de contingente. Nisto está a verdadeira <(vertigem da liberdade~ diante da própria infinitude, indeterminação, abissalidade, que só podem levar à vertigem na medida em que a esta tpossibilidade» não corresponde uma realidade, ou seja: a necessidade de qualquer coisa que se deva escolher. E ainda: com esta verificação não se querem minar as bases de uma recta ética e abrir caminho ao relativismo. Mas a melhor tabela dos valores abstractos e da sua hierarquiaJ com as mais seguras receitas de escolha, não tirará à vontade a angústia fundamental de ter sido elevada ao lugar tão vertiginosamente exposto de árbitro (liber arbiter). Surge neste momento a pergunta: que vem a ser a natureza humana descrita desta maneira? ~ a essência, tal qual Deus a criou, a «natureza primeira», ou será, antes, a natureza corrompida pela «queda no pecado», pelo «pecado hereditário),? Admitindo como verdadeira a segunda hipótese, dever-se-ia admitir que a natureza, tal como Deus a criou, era isenta da angústia, e toda &
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distância adentro da natureza (pense-se na diferença ontológica e no seu reflexo na razão e na vontade) não seria em concreto nada mais nada menos que a distância entre o pecador e Deus; melhor dizendo: seria concondicionada pela queda, pela culpa. Note..se bem: concondicionada e não simplesmente condicionada, porque a diferença ontológica, de um outro ponto de vista, é o sinal característico e necessário da «criatura». qualquer que seja o seu estado. Mas concondicionada de tal maneira que a modalidade atrás descrita da transcendência e da contingência não se explicaria senão com a queda. E ser-se-ia então obrigado a aproximar o que ~á de abstracto no espírito com a verdade teológica do pecado origina). O vazio que ali se abre, a causa da sua angústia, deveriam ser atribuídas a uma ausência: e ausência de quem, senão do seu Criador, do dispensador das graças, do «doce hóspede da almai>, que nela estabelecera a sua morada? Se hesitamos em levar este pensamento até às suas extremas consequências no campo da gnoseologia, porque aquilo que a filosofia desde sempre indicou como estrutura do pensamento discursivo nos parece inseparável da natureza humana enquanto tal, a mesma coisa nos aparece todavia não só possível, mas até como inevitável, se reflectimos sobre a liberdade da vontade da criatura, tal como saiu das mãos do Criador, na sua graça original.. Kierkegaard tem razão quando escreve: «Fazer começar a liberdade com um l'iber arbitrium que pode escolher igualmente o bem e o mal, significa tornar fundamentalmente impossível qualquer explicação». E noutro passo: «A possibilidade da liberdade não coincide com o poder de escolher o bem e o mal. Seme-
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lhante carência de reflexão é tão alheia às Escrituras como à filosofia. A possibilidade consiste em poder-se» 2 • Começar com o livre arbítrio significa pressupor que com certeza não pode ser pressuposto: o conhecimento do bem e do mal, ou, o que vem a dar no mesmo, uma aviltante neutralidade e indiferença entre o bem e o mal, entre Deus e anti-Deus. Deus não pôs a sua criatura nesta situação nefasta, ao contrário, a proibição do paraíso não tinha outro fim e sentido senão o de a preservar de uma tal situação, isto é: de uma posição de indiferença e tepidez entre calor e gelo, da atitude daquele que não se decidiu pelo bem, contra o mal; Deus queria que o homem se decidisse pelo bem, sem sequer ter a ideia do mal, completamente virado para Deus e, por conseguinte, voltando as costas a tudo aquilo que não se encontra em Deus ou no seu caminho. O bem amado que está completamente presente ao amante, dispensa-o de toda e qualquer escolha, este é por natureza o que está decidido, aquele a quem não resta outra escolha, e encontra nesse facto toda a sua libertação, toda a sua liberdade. Não dizemos que Adão tenha contemplado Deus face a face, desta forma não seria explicável a sua queda. Dizemos unicamente que o espaço, nele, que, com o afastamento da presença divina, se tornou, depois, um espaço de vazio e de liberdade indiferente, era um espaço que Deus originàriamente tinha criado para si e tinha preenchido com a sua misteriosa e, todavia, indubitável presença. Presença na fé, naturalmente, mas numa fé que nos é impossível imitar, e numa obediên2
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trad. port., Ed. Preaenc;a, pp. 74-75.
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eia e num amor imediatos, possessivos, plenos, serenoe, como os de uma criança. Uma fé pela qual Deus, ainda que não visto face a face, é a realidade mais presente, mais concreta, pela qual tudo aquilo que existe no mundo se torna certo, claro, justo, evidente, definido. Na brisa vespertina do Paraíso, Deus conversa com Adão: invisível mas perceptível e penetrando tudo, como a brisa. Nele nós vivemos, nos movemos e existimos. E desta vida Adão tira a sua real, mas não tirânica, supremacia sobre a natureza que se lhe abre na sua concretude, a cada passo. É, portanto, con1preensível que os velhos teólogos (inclusivamente S. Tomás de Aquino) lhe atribuam, a par de uma faculdade de pensamento «discursiva», uma outra intuitiva, que deve entender-se não tanto como uma «ciência infusa» mas como uma ciência adquirida por um concreto viver em Deus, por meio da fé. Também para ele, enquanto criatura, existe a dimensão do geral e do particular do existente e do ser. Mas entre estes pólos não há o vazio, porque tanto através do geral como do particular, tanto do existente como do ser, transparece Deus, que, estando para além deles, neles se faz reconhecer. A passagem desta vida, em Deus E: com Deus, à vida no pecado, requer, como muito agudamente notou Kierkegaard, uma «determinação intermédia». Esta é necessàriamente ambígua em si, porque por um lado leva ao pecado e torna-se prernissa do pecado, e por outro, levando ao pecado, só pode nascer do domínio do pecado e ter o pecado como premissa. Kierkegaard entende esta determinação intermédia como a angústia que está latente no fundo da inocência e da ignorância, enquanto o espírito adormecido intui, no fundo de si mesmo, a
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sua infinitude e as suas possibilidades, possibilidades que nele são despertas pelos limites que lhe impõe a interdição. «Neste estado há calma e há repouso; mae há, ao mesmo tempo, outra coisa que, contudo, não é perturbação nem luta, pois nada existe contra que lutar. O que há então? Nada. Mas que efeito produz este nada? Este nada engendra a angústia. Eis o mistério profundo da inocência: ao mesmo tempo é angústia. Sonhador, o espírito projecta a sua própria realidade, que é nada, e a inocência vê continuamente diante de si este nada» 8 • «O homem é uma síntese de alma e corpo; simplesmente, esta torna-se inimaginável se os dois elementos se não unirem num terceiro. O terceiro é o espírito C... ) Logo, o espírito lá está presentet embora em estado de imediatidade, de sonho. No entanto, precisamente na medida da sua presença revela. . se, de certa maneira, como um poder inimigo, pois sempre perturbe. a relação entre a alma e o corpo, que certamente subsiste, sem contudo ter a subsistência que só mediante o espírito poderá assumir. Por outro lado, o espírito é uma potência amiga desejosa de constituir a relação. ( ... ) O espírito tem receio de si, não pode ficar quite consigo mesmo, nem apreender-se, enquanto o seu eu se mantiver exterior a si próprio; ( ... ) fugir à angústia não pode, porque a ama; mas amá-la verdadeiramente também não, porque foge dela» '. Kierkegaard trabalha aqui com as categorias do romantismo e do idealismo alemão. E ainda que as suas intenções sejam cristãs, a relação do espírito consigo mesmo é posta em tal evi• In O Ooncetto da Angústia, ed. cit., p. 63. 4
lbide•h pp. 66-67.
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dência que o mais importante, isto é: a relação com Deus, corre o risco de ser esquecido. Aliás, isto está relacionado com o facto de, para Kierkegaard, Adão não ser qualitativamente diverso do resto da humanidade e com o facto de ele repelir energicamente a existência de um «estado de justiça original>>, incluindo-o no número dos mitos que trazem dano à teologia: o estado de Adão antes do pecado não se distingue, portanto, quali.. tativamente (distinguindo-se, porém, quantitativamente) :> do estado em que se encontra qualquer homem na ignorância e na inocência da consciência ainda não desperta. «O indivíduo é ele próprio e o género humano, é a perfeição do homem considerada como estado e, simultâneamente, é também uma contradição: logo e sempre, a expressão de um problema. Ora problema é um movimento, mas um movimento para o que é semelhante. para o que é proposto como idêntico - é um movimento histórico. Assim, pois, o indivíduo tem uma história e, se a tem, o género humano também terá uma. ( ... ) Qualquer indivíduo é tão essencialmente afectado pela história de todos os outros como pela sua própria. A perfeição pessoal consiste, portanto, em participar sem reservas na totalidade. ( ... ) Enquanto decorre a história da humanidade, o indivíduo começa sempre da capo, por ser ele próprio e o género humano e, por isso mesmo, também a história do género humano»•. ' Emil Brunner in Der M en8ch in, Widerapruch ( 1937) vai aJnda mais longe, negando também uma diferença quantJtativ& entre Adão e os outros homens • lbideni, p. 44.
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Se se quisesse aceitar a verdade contida nestas pra. posições sem abandonar a doutrina católica do estado original, repelida por Kierkegaard, haveria dois cami~ nhos: o adaptado por Josef Bernhart ( Chaos und Da~ moni~, 1950), em que o estado original da natureza, assim como todos os estados concretos posteriores é aproximado, na medida do possível, da natureza em geral (natura pura), os privilégios de Adão são reduzidos ao mínimo, enquanto é dado o máximo relevo à tentabilidade (peccabilitas) e à ameaça que pairava sobre a natureza originária4 Estamos, deste modo, no terreno da mais antiga e documentada tradição da Igreja (Cf. H. de Lubac: Esprit et liberté dans la tradition théologique, in «Surnaturel», 1946, 187-321), segundo a qual o espírito finito não pode chegar à plena realização do seu destino a não ser por meio de uma escolha e atravessando uma tentação. Pode, é certo, ter havido no princípio um estado de bondade sem pecado, mas sempre um estado de indiferença a respeito da decisão a tomar a favor do bem4 Daqui parte um segundo caminho que, com Gregório de Nissa (Cf4 o nosso estudo Présence et Pensée., 1942) determina o estado originário dialecticamente : como idealidade e como realidade ao mesmo tempo, no sentido que a realidade do estado originário (na tradição irenística para que apela também Bernhart) pode ser considerado como o único possível bem inicial (que neste sentido é um bem pleno e não inferior à ideia mesma do homem) ; todavia, considerado à luz da idealidade, entendida por Deus a respeito do homem (na tradição origenística), não pode ser considerado senão como uma primeira premissa para a história posterior e para o drama da decisão. Temos,
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portanto. razão para considerar ideal a relação de Adão com Deus e deficiente qualquer outra relação depois da tentação e da queda; mas podemos. igualmente. considerar a idealidade como realidade posta em acto, no momento em que Adão saiu das mãos do Criador (no estado latente da inocência inconsciente. mas em si bem real. a qual imprime a todo o posterior estado de queda o seu verdadeiro carácter de deficiência abissal. Podemos, pois. simultâneamente postular (de feição realística) uma inicial decisão livre na indiferença (como querem de Lubac e Bernhart. com os Santos Padres e com os Escolásticos) e. todavia, considerar a indiferença realizada. o vazio e a angústia dela derivados. como um afastamento da verdadeira origem. ainda antes do Pecado original propriamente dito. Daqui resulta que. no que diz respeito à natureza da angústia, Kierkegaard viu bem o ponto donde ela nasce, mas não analisou suficientemente a natureza da vertigem gerada pelo vazio que se cava dentro da finitude do espírito. Não é o vazio do nada da sua dimensão interna que faz medo ao espírito, mas sim aquele vazio que se abre na região em que a vizinhança de Deus e o seu conhecimento concreto se mudou num afastamento, num alheamento de Deus. dando lugar a uma relação abstracta com um «Outro» com um «que está do lado de lá)) (Cf. Guardini, Welt und Peraon, 1940) 1 • A culpa de ter levado o homem a tal posição perante Deus, isto é: a arrogar-se o direito da neutralidade e Trad. port. O Mundo e a Pessoa, Circulo do Hum~mo Cristão, Livraria Morais Ed., 1963 (N. d-0 7'.). I
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da indifercnça, para, como um árbitro, tomar uma decisão entre Deus e anti-Deus, é atribuída ao influxo da serpente, isto é, do mal, e pertence, assim, inequivocamente à esfera do anti-divino. Não que o homem, quando próximo de Deus originàriamente, fosse aces. . sível à tentação por causa de uma «angústia própria da criatura» face à possibilidade da queda. Nem que Deus, retirando-se e deixando atrás de si o vácuo, tenha posto o homem em tentação. Ê verdade, porém, que o espaço que tomou possível ao homem afastar-se de Deus, Ele lho deve ter deixado livre. E Deus não o podia poupar à tentação exercida por aquilo que tinha excluído e proibido e de cuja própria proibição deriva o poder que tem sobre o homem. Uma vez entrados neste espaço, eis que aparece em cena a angústia e, já que Adão «é ele mesmo e o género humano», o espaço não se pode fechar, e a angústia não pode mais ser banida. A angústia doravante é imanente ao espírito por causa do vazio que nele se abriu; ma.a esta imanência. tem uma premissa transcendente; o afastamento de Deus. Portanto, o «nada» é efectivamente a ocasião próxima da angústia; mas não é simplesmente perante o nada, implícito na finitude como tal, não é perante a transcendência interior do espírito e a sua contingência que a angústia se angustia; mas é pela consciência de uma falsidade fundamental, inversão ou culpa, que é gerada pela ausência daquilo que devia estar presente neste «nada». A ontologia filosófica, quando analisa a consciência concreta do homem, pode chegar, tateando, até muito perto da origem da angústia: as relações inegáveis que existem entre as estruturas mais formais do espírito, no seu pensamento
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e no seu querer, e o estado histórico concreto da huma· nidade levam a obscuridades decerto tmbaraçosas, mas que se esclarecem em face da Revelação. E as análises dos filósofos adquirem a sua significação útil quanto aceitam ultrapassar-se a si mesmas, sob a con .. duta dessa Revelação. A angústia está em cena assim como o vazio, e a redenção de Cristo não suprime este vazio. Traz sim a plenitude de Deus, mas trá-la para dentro da forma deste vazio. Do Redentor diz-se que ele se esvaziou. entrando no vazio. Com isto o vazio foi preenchido: Deus está presente. Mas já não está presente como en· tão, na brisa vespertina do Paraíso, como o supremamente real para o homem e para a sua natureza, que informa todas as outras coisas da sua realidade, mas é presente como plenitude não percebida, como plenitude no vazio. No paraíso, Deus era o primum notu.m (na fé, não na visão). tanto quoad nos, como in se. Agora é. . o sàmente in se, e não já quoad nos. A abstracção e a indiferença do querer não são suprimidas: Continuam a ser a forma na qual e através da qual o imediato e o concreto da fé devem realizar-se. Só assim se define a última atitude do cristão: através do permanente vazio no homem (como indifjerentia intellectus et voluntatia ad omne em), se manifesta a plenitude de Deus, como presença, de maneira que Deus exige do homem antes de mais nada um sim total à sua totalidade e in .. dif e. . rença invisíveis: e este sim, ponto vivo de convergência da fé, do amor e da esperança, é, por sua vez, a indiferença cristã. ~ a entrega do próprio vazio e da própria angústia na plenitude de não percepcionada (e por isso sentida como vazio) da totalidade de Deus. Isto
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explica também a passagem daquilo que a natureza humana (depois do pecado original) é na sua essência intima, isto é: a indiferença entendida como um superamento de toda e qualquer diferença natural para cum o ser, à essência da natureza cristã, em regime de graça, que é indiferença para Cllm o Deus que assumiu esta natureza, fazendo-se homem. O acto do cristão (der Akt des OhrisUich.en) está vedado à. natureza; não obstante isso, ele encontra-se precisamente na linha que prolonga e supera a natureza; mais, toda a natureza participa neste acto: superàndo o mundo e dirigindo-se a Deus verdadeiramente revelado e, actualmente, próximo; isto porém realiza-se não ex se mas sim impBcitamente no acto humano para com Deus feito homem. A indiferença implica abandono do terreno seguro da diferença, para subir sem o auxilio de corrimãos. um saltar a borda da barca para entrar na água. I!: um transcender, pondo a confiança unicamente naquilo que ae encontra do outro lado, e de que vem a possibilidade e a força. Não é a atitude em que se realiza este transcender que é a força; esta seria finita, diferente, e do agarrar-se a esta atitude, do produ~ir esta atitude, do reflectir sobre esta atitude, tudo poderia decair da autêntica transcendência, na transcendência falsa, filo,. sófica, na cfé filosófica>. A atitude não é nada, sem aquilo que torna possível esta atitude: Deus presente em Cristo. No reflectir sobre a sua fé ( «como farei?») Pedro falta já à fé e afunda-se dentro da transcendência - descobre-se aquilo que no seu caminhar tinha sido como que engolido e desaparecera: a angústia. Não se pode ao mesmo tempo fazer um acto de abandono e querer retê-lo. A fé, o amor, a esperança, devem ter
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qualquer coisa da natureza de um salto, porque s6 este é o modo que corresponde à dignidade de Deus infinito! Requere-se ousadia, porque Deus merece bem um empenho total, e o lucro não consiste no «prémio> pelo salto ousado, mas está incluído no próprio salto, que é um dom de Deus e deste modo uma participação na sua infinidade. Este salto ousado não é mais do que um reflexo da infinita dedicação das pessoas divinaa entre si; efectivamente, abandonado todo o apoio que é em si limitação, o homem pode sentir-se pairar no absoluto. Levantado nos braços da graça, levado sobre a.a asas do amor, ele experimenta um orTepio, que lhe dá a segurança de não insistir mais sobre si mesmo ou sobre a terra, mas de poder voar, com uma força nova. Tudo isto é cristão, porque tem o seu modelo em Cristo. Não se pode dizer dele que tem fé como nós a devemos ter. E não obstante o Apóstolo, num passo muito importante, porque resume toda a economia da salvação e da fé, chama-lhe «o fundador e o consumador da fé» ( ~<>1' :Ô.; 11;1~"":"Ít,JI, 1.cXt cxpznrov ~é).•1Co3,l'l\l, Heb., 12, 2). E isto porquanto ele tem de consumar o mesmo acto que o cristão, apenas que, digamos assim, em direcção oposta. Enquanto o cristão, ousando abandonar tudo, sai da finitude para entrar na infinitude de Deus, Cristo, ao contrário, para tornar possível na origem este acto, da infinitude da «forma de Deus:1> ousou lançar-se, cconsiderando que nã.o devia ter esta segura como uma presa,,, na finitude e no vazio do tempo; passo este não menos radical com que se pôs no tempo, renunciando a toda a segurança e facilidade provenientes da sua
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eternidade, e entregando-se à vontade do Pai que lhe era dada a conhecer de cada vez. Não é ele a estabelecer a hora: nem sequer a conhece; s6 o Pai dispõe. Ele deixa-se conduzir com a mesma paciência ( '-'7.o\u ~,.,"ll) que caracteriza fundamentalmente o cristão no tempo, aquela atitude que para o cristão se exprime como fé, caridade, esperança e disponibilidade para com o Pai. · Neste emergir da eternidade para o tempo, o Filho do Homem conheceu a angústia, e nisto, como em tudo o que ele foi, fez e sofreu, exprimiu em linguagem humana algo de intangível, de divino (é isto a Revelação) : o zelo ansioso de Deus pelo mundo, pela sua criação, que corre o risco de se perder. Quem quisesse objectar que tudo isto não se concilia com a beatitude eterna de Deus, mostraria ter de Deus um conceito bem mesquinho. Abandonando tudo, todo o apoio, para se pôr sem reservas à disposição da totalidade de Deus, o crente entrega a Deus até o seu sentir (Gestimmtheit) : quem ama, espera e crê chega a ser indiferente perante a angústia ou não angústia. Não se antecipa e tudo espera de Deus. ~ Deus que, sendo a transcendência, dispõe da angústia e da segurança da criatura. Se a fé é verdadeiramente indiferente, tanto a imposição da angústia como a libertação da mesma, ou uma profusão de conso· lações e de certeza sensível, podem ser dados sómente por Deus. Todos os motivos por que um homem, como ser natural marcado pela Queda ou como cristão ( des. do do mundo e solidário como todos os outros -ue devem ser reunidos), poderia conhecer a Jã,o ultrapassados graças à fé, na esperança Jade, à fé que é in-diferença em relação a
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Deus. Efectivamente a fé diz sim a todas as verdades de Deus, quer às que vê, quer muito mais ainda às que não vê, tanto às consoladoras como às desoladoras, tanto às verdades da alegria divina como às da divina paixão, e só de Deus espera que disponha e diferencie. Encontramos aqui de novo a lei de que falámos na segunda parte: à fé plena, e, com ela, à verdadeira in-diferença chega só quem deixou atrás de si a angústia do pecado; o ingresso no reino da verdade plena é alegria, consolação, luz sem reservas. A outorga da parte de Deus da dor cristã e também da angústia cristã é no fundo. vista de Deus, uma intensificação de luz e de alegria, uma «treva resplandecente», porque é uma dor feita de alegria, uma angústia feita de júbilo: sinais de uma tanto maior confiança de Deus naquele que crê. E o que, na experiência sentida, lhe parece angústia e aperto mais não é do que fecunda dilatação das vias por onde passa a nova vida, uma tensão e distensão de fé, de esperança e de caridade. E ainda que subjectivamente fosse sentida como angústia mortal, objectivamente é acrescentamento de beatitude, participação no perpétuo êxtase trinitário. A «indiferença» para com o Deus de Jesus Cristo é, no sobrenatural, o que, na ordem da natureza, é a indiferença da razão e da vontade perante todo o ser. Mas a actualização, por Deus, da indiferença sobrenatural tem dois aspectos, correspondendo à actualização natural: a abstracção (até ao puro ser) e a conversão (à imagem do aparente, ao «fantasma»), ou, em termos cristãos: o desapego de tudo (que conduz a Deus) e a reconversão (com a missão no mundo). Mas tal como, no processo natural, a abstracção, ao menos lógica-
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mente (se é que não sempre psicológica ou temporal .. mente), deve preceder a conversão, porq"..!e esta de outro modo não poderia nunca perceber na aparência alguma coisa de existente, assim também o desapego cristão ( e este psicolàgicamente e temporalmente) deve pre,. ceder a missão cristã, para que esta possa desenvolver· ..se em sentido autênticamente cristão e não só em sen· tido terrestre-religioso4 No acto imediato do juízo, que reconhece um existente e como tal o põe e aceita, no acto indivisível da vontade, que escolhe e bem, o retémt e por ele se empenhat reina a certeza; e o espírito dá contra a base granítica do ser. Todo o buscart tactear. reflectir vem antes: no trabalho de elaboração do juízo e da escolhat ou depois. na utilização do julgado e do escolhido~ Por conseguinte, há angústia cristã antes da missão, quando a alma é despojada, esvaziada, e, quando muito, pode sobrevir de novo durante o cumprimento da missão (se a angústia aí pode ter lugar) t mas não se pode ter no acto de ser mandados : que aqui dominam necessária e absolutamente a clareza, a segurançat o acordo~ O profeta que está diante de lavé, pode experimentar a angústia antes da missão, ou durante ela; mast no acto de receber a missão, não existe sombra de angústia. O acto pelo qual a missão é dada, que pressupõe a plena indiferençat possui e conserva para o mandatário algo da natureza da rocha sobre que assenta a Igreja . Estat na verdadet assenta sobre o mandato dos apóstolos, de Pedro em particulart mandato que porém não é separável da missão dos profetas da Antiga e da Nova Aliança. Nestas páginas falou-se muito do rristão e pouco da Igreja. «A Igreja e a angústia» poderia ser o tema
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de um novo estudo. Sem o irmos encetar agora, é no entanto necessário chamar a atenção para o lugar que a Igreja ocupa no problema <<O Cristão e a angústia~ . A Igreja exige continuamente do homem natural um esforço demasiado grande pedindo-lhe a imitação de Jesus Cristo. Todo o Cristianismo tal como a Igreja. e ela só, o apresenta aos homens e o encarnaJ parecer..Jhes ..á sempre e com razão uma exigência excessiva, uma violentação, e por conseguinte uma ameaça de destruição do homem natural, das suas leis e das suas medidas. Ela quer que o homem se aventure a caminhar para além da sua natureza, e que neste salto ele per· severe e viva. Mas Deus não só ofereceu ao homem o auxilio invisivel da graça para este salto; fazendo-se homem visivel e fundando a Igreja visivel, ofereceu-lhe também aquela abundância de auxilias visiveis, acessíveis nos órgãos e nas funções da Igreja: o ministério e os homens que dele estão encarregados, a Sagrada Escritura como Palavra compreensível, os Sacramentos quais formas e receptáculos do encontro salvifico de Deus com o homem, a tradição, para se poder orientar também pelo passado, o exemplo dos santos e de todos os cristãos de fé viva, a poderosa estrutura do ano litúrgico, que acolhe o crente e o guia docemente de mistério em mistério: tudo apoios e ajudas que são feitos para educar o cristão e prepará ..lo para o grande salto para além dos auxílios e apoios . Paradoxo da lgrejaJ mas também jà paradoxo da Incarnação de Deus, da Oikonomia, que todavia em breve se dissipa: basta reflectir, na fé, sobre a trans· parência do Filho do homem em relação ao PaiJ e ter presente que todos os «meios da graça:. da Igreja não
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são mais que meios de nos avizinharmos do Deus incompreensível e do seu amor . :m claro que quem não vê e não quer ver este paradoxo, quem tem medo do salto da fé, empregará todos os auxílios destinados a facilitar o salto como protecções da angústia contra o salto. O Cristianismo da Igreja em si não é «religião de angústia», não desperta a angústia com as suas exigências e ameaças nem a adormenta com as suas formas e ritos . Mas já que a existência na Igreja é a mais árdua e a mais exposta que se possa conceber para os homens, acontece que tudo nela se encontra separado da angústia apenas por um cabelo . E o homem que diz não, que recusa o risco, vê na fé e no Deus dos cristãos um perpétuo motivo de angústia e nas fórmulas da Igreja encontra incom· paráveis abrigos contra a mesma angústia, num jogo dialéctico inextricável. Naturalmente, uma teologia dialéctica ou uma psic<r logia das profundidades, teriam matéria para análises cada vez mais profundas nesta «demonia» da Igreja e em todas aquelas sobre-estruturas e carapaças da angústia com que «os homens da Igreja» a dotaram no decurso dos milénios. Mas com isso não se adiantaria mais do que nós já sabemos: que o abuso do óptimo leva ao péssimo e que o mais precioso tem em si mesmo a sua melhor protecção. É esta também uma lição do Novo Testamento, no qual por causa da presença da infinita redenção, as trevas concentradas contra ela, ou seja as potências do inferno. atingiram o grau máximo de intensidade. Não se pode por conseguinte negar que os auxílios que a Igreja oferece ao crente e o uso que este faz deles, estejam sempre num estado crítico e expostos
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ao perigo da ambiguidade. Deixemos de lado as f ormaa mais grosseiras em que o homem julga poder apropriar-se de Deus e da salvação, através de «uma materiali· zação da graça», por uma via supersticiosa ou mágica. Pensamos em qualquer coisa de mais difícil e subtil, como o recurso à tradição para fugir a uma decisão que deve ser tomada pessoalmente, com o carácter da unicidade; pensamos na prova eminentemente razoável da verosimilhança, onde o inverosímil é que deve ser feito, onde o inverosímil quer tornar-se acontecimento; pensamos na problemática insondável das relações entre o reino de Deus e o poder teITestre (hoje só Reinhold Schneider tem a ousadia de afrontar tais prof undidades) : se, por exemplo, um convite às armas por parte da Igreja, se a bênção delas, se o recurso à espada secular são expressões de coragem da fé cristã, ou, ao contrário, manifestações de uma angústia e de uma falta de confiança que podem ser tudo menos cristãs; se o que se pode abundantemente cobrir e justificar com fáceis razões tiradas da fé (sem falar da história da Igreja; mas que nos ensina ela?) não desabará lamentàvelmente perante o tribunal da razão última, porque o que devia parecer a arma de Deus nas mãos dos guerreiros de Deus contra inimigos de Deus, se revela bruscamente a acção descontrolada, desesperada de Pedro contra o servo do Sumo Sacerdote, de quem Jesus tomou a defesa, para nos revelar o que se escondia debaixo do recurso às armas: traição e medo. Para ser cristão adentro da lgreja é preciso coragem. Coragem não é de modo algum o oposto de angústia. l!: um fenómeno tão ambíguo, tão complexo como a angústia, e vai desde manifestações primitivas, incons-
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cientes, até às mais sublimes atitudes espirituais. Fala· mos aqui da virtude cristã da coragem; esta, como tudo o que é cristão, é uma graça e um dom de Deus, mas, especialmente quando se apodera do homem todo e o inflama, assume e eleva também as melhores atitudes do homem. A coragem natural do espírito baseia. .se sobre uma consciência das próprias possibilidades, sobre um avaliar e sentir-se a si mesmo como possibilidade, como programa a desenvolver e como capacidade para o realizar. Mas o raio desta possibilidade é proporcional à abertura e ao vazio que existem no espírito que conhece e quer. Porque, apesar das vertigens que então o torturam, o espírito sabe bem que aquele vazio é ele mesmo. Nem mesmo a angústia destrói esta consciência fundamental; ao contrário, ela toma a sua medida, não pode ser senão a angústia desta coragem. Esta coragem torna-se valor natural quando, tendo diante dos olhos o plano espiritual do ser, isto é: Lei e dever, não vacila e, resolvida pela mais alta possibilidade de si mesmo, afronta e supera todas as situações. todos os ataques e todas as angústias. A mesma coragem torna-se valor cristão quando o plano encontra o seu fim e a sua origem no próprio Deus, de maneira que da parte do homem - muito mais ainda do que na antiga á1;~6ua e ci-rapa~ia - a indiferença que tudo aceita transforma-se em decisão total ; isto é, a coragem de dizer sim, em qualquer caso, a qualquer palavra de Deus que possa dizer respeito à minha vida. Precisamente o «estar desarmado» e, do ponto de vista do homem natural, a fraqueza (e consequentemente tam· bém a angústia) tornam-se uma condição essencial da coragem cristã. ~ lá onde se toma a sério o despoja·
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mento do coração e da vida, que refulge mais pura a verdadeira força, que não é a minha força, mas a força de Deus. «Nós trazemos, porém, esse tesouro em vasos de barro, para que tão excelso poder se reconheça vir de Deus e não de nós. Apertados em tudo, mas não esmagados, perplexos. mas não desesperados, perseguidos, mas não abandonados, abatidos, mas não aniquilados» (11 Cor., 4, 7-9); «mas ele declarou-me: basta-te a minha graça, pois na fraqueza é que a força se exerce plenamente. Ê. pois da melhor vontade que me ufanarei principalmente das minhas fraquezas, para que a força de Cristo se estabeleça em mim. Pelo que sinto prazer nas fraquezas, nas afrontas, nas adversidades, nas rerseguições e nas angústias sofridas por Cristo. Pois, quando me sinto fraco, então é que sou forte> (II Car., 12, 9-10). Quanto mais desarmado se está maior é a abertura a Deus e para Deus e, por isso mesmo, mais a sua força aflui e habita no homem. Ninguém se expõe, tão desarmado, como o santo diante de Dt:us e, por isso, ninguém tão disposto a ser inundado t~mbém por todas as angústias; e no entanto é ele, por excelência, o modelo de toda a coragem e de toda a força bem armada - por Deus. Isto não quer dizer, porém, que o corajoso, indefeso diante de Deus, deva apresentar-se perante o mundo como um São Jorge eriçado o.e armas. É bem verdade que toda a sua coragem em face do mundo lhe vem de ter sido armado por Deus. Mas a «armadura de Deus» que S. Paulo recomenda aos Efésios de vestirem e na qual os deseja ~fortes no Senhor e no poder da sua força> não é mais do que a «verdade1>, a cjustiça1>, a «fé>, a «salvação» e a «Palavra de Deus~, que devem ser para o cristão «arnês»,
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«cinto», «couraça», «jarretes,-, «escudo», «elmo», .,rJádio». Resumindo: <<revistamos a couraça da fé e da caridade, com o capacete que é a esperança da .salvação» (/ Tess., 5, 8), isto é: três coisas que têm um s6 significado: a abertura, a disposição de alma pa.ra a salvação. Assim aberto, o cristão caminha, resplandecente de luz, para afrontar e vencer o mundo fechado na BUa couraça. Mas não é um solitário, porque está na Igreja. E na medida em que a Ig~eja, concretamente no seu ministério e no amor para com estes homens, é para ele a representante de Deus, eis que a disponibilidade do cristão perante Deus se transforma em disponibili .. dade para com a Igreja, isto é: torna-se obediência à Igreja.. l: esta a prova decisiva da coragem cristã, porque ~coragem também os mamelucos a têm». lias enquanto a Igreja é a comunidade dos seus iguais, as armas de Deus agem nela e sobre ela do mesmo 1nodo que, depois, serão temperadas e aguçadas na luta com o mundo. l: o contrário da submissão subalterna do lacaio, é a coragem do discernimento dos espíritos, da palavra franca, do feito que não pratica «um qualquer um», do fulgurante golpe de espada que, em mil ocasiões, cerno no princípio, cinde o Caos. O «rebanho de Cristo» não é e nunca será o «rebanho» nietzscheano. Pertencer à Igreja, viver na Igreja é já eleição, coragem da decisão. Com toda a sua mansidão e humildade, levado até ao extremo de subir ao patíbulo da Cruz, Deus não se despoja da sua natureza de Juiz e de fogo devorador. Nada é mais majestoso do que a sua paixão, e mesmo do que a sua angústia. E Deus não desmente os seus atributos naqueles que são a luz no mundo. Estes
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resplandecem «irrepreensfveis e puros:t, no «seio duma geração perversa e depravada, como luminares no meio do mundo> (Flp., 2, 15) e também a sua angú~tia, quando Deus a concede, leva os estigmas da sua divina predestinação.
INDICE
Introdução .. I. D. lll.
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A Palavra de Deus e a Angfastia
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Cristão e a Angústia
A Essência da Angústia
-~-·--COMPOSTO E IMPRESSO NA ORAFICA IMPERIAL. LDA. Rua Feio Teremas. 81-A Telefone 84 44 09 LISBOA - l
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