Conversa noturna e outras histórias (2019)

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Leonid Andrêiev

Conversa noturna e outras histórias Tradução e introdução de

Helena Kardash


Conversa noturna e outras histรณrias



Leonid Andrêiev

Conversa noturna e outras histórias 1ª Edição

Tradução e introdução de

Helena Kardash São Paulo-SP

2019


Copyright desta edição: © 2019 by Orel Books Editora. Copyright da tradução e Introdução: © 2019 by Milton dos Santos. Edição conforme o Acordo Ortográfico de 1990. Publisher: Carolina Marques Produção editorial: Milton dos Santos Seleção de textos: Milton dos Santos e Helena Kardash Capa, Projeto gráfico e Diagramação: José Cardoso Revisão: Helena Kardash e Adriane Dias Créditos fotográficos (exceto páginas 360 e 417): Reprodução com a permissão de Special Collections, Leeds University Library Leeds Russian Archive Leonid Andreev MS 606/G.1.vii. Créditos fotográficos página 360: V.F. Bulgakov; página 417: Divulgação.

1ª Edição: 2019. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida, por qualquer processo, sem a permissão expressa dos editores e detentores dos direitos autorais. Orel Books Editora Rua Ponta Grossa nº 237  Sobreloja  Sala 1  Parque Mandaqui 02420-010  São Paulo/SP  Brasil Fones: +55 11 4323-8610 e +55 11 9 9633-9991 (Whatsapp) www.orelbooks.com  editora@orelbooks.com Facebook: www.facebook.com/orelbookseditora Instagram: www.instagram.com/orelbooks Twitter: www.twitter.com/BooksOrel LinkedIn: www.linkedin.com/company/orel-books-editora Impresso no Brasil – Printed in Brazil


Sumário Apresentação................................................................................................................................................................................ 9 Introdução....................................................................................................................................................................................... 11

Contos e Novelas Pietka no campo..................................................................................................................................................................... 2 5 Presentinho................................................................................................................................................................................. 37 No porão.......................................................................................................................................................................................... 49 No trem............................................................................................................................................................................................. 63 Na estação........................................................................................................................................................................................ 71 É bela a vida para os ressuscitados................................................................................................................ 77 A cidade............................................................................................................................................................................................. 81 A ressurreição de todos os mortos................................................................................................................. 8 9 Duas cartas................................................................................................................................................................................... 99 Na névoa.......................................................................................................................................................................................... 1 15 O ladrão........................................................................................................................................................................................... 161 Na distância sombria...................................................................................................................................................... 181 De uma história que nunca será concluída........................................................................................ 199 Dia da Ira..................................................................................................................................................................................... 207 A história da serpente sobre como ela ganhou dentes venenosos....................... 223 O que a gralha viu............................................................................................................................................................ 229 Conversa noturna............................................................................................................................................................. 235 A vida de Vassíli Fiveiski.......................................................................................................................................... 273

Teatro As belas sabinas.................................................................................................................................................................. 363 Títulos originais e fontes....................................................................................................................................... 403 Sobre o autor.......................................................................................................................................................................... 407 Cronologia................................................................................................................................................................................. 409 Sobre a tradutora.............................................................................................................................................................. 417



Agradecimentos

A todas as pessoas e empresas que contribuíram para a publicação deste livro, nossos sinceros agradecimentos:

Ricardo Stiepcich Futura Tintas Pronto Alumínio Richard D. Davies Abimael Rodrigues Augusta Marques Pippus Bruno Gomide Carlinhos José Bortoluzzi David Elias Eduardo Luiz Telles de Oliveira Elisabete Adami Pereira dos Santos

Ana Carolina Sacchi dos Santos Aurora Bernardini Carina Ferraz Souto Claudemir Galvani Eduardo Celestino da Cruz Pereira Elena Vássina Elisabete de Fátima Durante

Elisabete Sulzbach Guzzo

Elza Miotto

Enoc Ferreira dos Santos

Fábio Gallo Garcia

Francisco Soares Lobo Frederico Artur Escudeiro

Franklin dos Santos Moura Geraldo Borin


Gilberto Caetano Iuri Fachinello José Geraldo Leal Juliana Mendes Leonardo Frankenstein Lucilei Santos Bispo Marcel Alberti Perez Márcia dos Santos Márcio Brandão Pereira Maria Aparecida de Souza Mário Sérgio Losano Mauro Jardim Onésimo Cardoso

Isaline Tenório João Gonçalves Monteiro Jr. Josenildo Jr. (J.J.) Lawrence Chung Koo Lúcia Marques Luiz Carlos Pinho dos Santos Marcelo Lagrotta Sanches Márcia Flaire Pedroza Marcos dos Santos Pizzo Maria Targino Tranjan Maurício Paulino Myrt Thânia de Souza Cruz Paulo Farias

Pedro Marques Santos

Priscila Marques

Renan Guidon

Ricardo Rossetto

Roberta Ribeiro

Roberto Lopes Jr.

Roberto Ramos de Morais

Roberto Tranjan

Rodrigo Fernandes

Rogério Menezes de Moraes

Romero Coutinho de Arruda Falcão

Rosely Spinelli

Ruth Yamada Lopes Trigo

Sandra Muradi

Saulo von Randow Jr.

Shyrlei Guitério Calmon Du Pin

Spartaco Carlos Nottoli

Stephanie de Brito Leal

Vagner Ferreira Lemos

Vilma Previato

Vinícius Pereira Magalhães

Viviane Ribeiro

Wagner Tufano Waldomiro Filho

Walderez Paulino


Apresentação

N

este ano de 2019 completa-se o centenário da morte, prematura, de Leonid Andrêiev. Tal evento não poderia passar em branco junto aos leitores lusófonos de literatura russa. Embora muito famoso e

popular em seu tempo, Andrêiev não desfruta hoje do reconhecimento e da divulgação que merece em língua portuguesa. Esta edição inédita de obras do autor, em cuidadosa tradução diretamente do original russo, pretende preencher em parte esta grande lacuna e, ao mesmo tempo, prestar-lhe uma merecida e sincera homenagem. Andrêiev foi uma pessoa muito antenada com seu tempo. Utilizando uma ideia contemporânea, podemos qualificá-lo como um profissional multimídia: foi escritor, dramaturgo, crítico, ensaísta, pintor e fotógrafo, além do envolvimento com assuntos da política em uma Rússia pré-revolucionária. Na fotografia, inclusive, foi um dos primeiros fotógrafos do mundo a utilizar a então recém desenvolvida técnica de fotografia colorida pelos irmãos Lumière, na França, denominada Autochrome. Tamanha inquietação pessoal e intelectual reflete-se plenamente em sua obra multifacetada, da qual este exemplar que o leitor tem em mãos é uma amostra modesta, porém justa e ampla o suficiente para, esperamos, demostrar todas as qualidades deste genial autor e conquistar os corações e mentes de todos os seus leitores. Leonid Andrêiev

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* * * Muitas pessoas colaboraram para que o projeto desse livro se realizasse. Entre elas, queremos agradecer de modo particular à tradutora Helena Kardash, que, com entusiasmo, prontamente aceitou o convite; a Richard Davies, grande apaixonado pela obra do autor e que, com simplicidade e humor genuinamente britânico, não poupa esforços para ajudar a outros apaixonados ao redor do mundo todo; à Professora Elena Vássina e a Ricardo Muniz, pela receptividade e apoio inicial ao projeto; a José Cardoso, principal responsável pela delicada e sensível estética do livro; a Marcelo Lagrotta e Marcel Perez, pela contribuição nos assuntos de mercado e comunicação; à editora Carolina Marques, que forneceu o suporte organizacional necessário; a Iker Stefánchikov, que colaborou com a divulgação do projeto na Rússia; a Frederick White, sempre disponível para compartilhar informações e esclarecer dúvidas sobre o autor; e a todos os que contribuíram financeiramente com o projeto. A todas essas pessoas, nosso profundo agradecimento.

Milton dos Santos Agosto de 2019

As notas da tradutora estão marcadas como (N. da T.) e as notas da editora, como (N. da E.). Optou-se por repetir algumas notas uma vez que os textos podem ser lidos de maneira não sequencial e parcial.

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Apresentação


Introdução

L

eonid Nikoláievitch Andrêiev nasceu em Oriol, no ano de 1871, em uma família humilde, de origem russo-polonesa, pela qual, ainda jovem, se tornou responsável após a morte precoce do pai. Ao contrá-

rio de grande parte dos escritores russos famosos que o precederam, não teve os privilégios da nobreza e, por isso, não apenas observou as agruras da vida das camadas menos favorecidas da sociedade como, desde a juventude, as sentiu na própria pele em seu cotidiano. Foi testemunha dos graves problemas que assolavam o povo durante o Império Russo e dos infortúnios da Primeira Guerra Mundial e da Revolução Russa. Apoiou ativamente os ideais socialistas, mas, posteriormente, se opôs aos bolcheviques e se decepcionou com a Revolução e os rumos que ela tomava, se exilando na Finlândia, onde morreu em 1919, aos quarenta e oito anos. Os contos, peças e novelas que escreveu capturaram excepcionalmente a agitação de sua época, e aquele que tentar integrá-los completamente a uma tipologia histórico-literária se encontrará diante de uma tarefa difícil, senão impossível. A heterogeneidade de estilos, a abordagem ousada de temas tabus, o interesse pela psicologia e pelas questões sociais tornaram sua obra um reflexo do turbilhão de ideias revolucionárias que tomou a Rússia do início do século XX. Foi pensando em possibilitar ao leitor de língua portuguesa a apreciação das variadas tendências combinadas de maneira única em Andrêiev que os contos e a peça desta coletânea foram selecionados. Trata-se Leonid Andrêiev

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de traduções inéditas e diretas do russo que visam preencher a lacuna editorial existente no que se refere à divulgação deste grande autor em língua portuguesa. Um leitor desatento, ao se deparar com diferentes obras de Andrêiev, poderia pensar se tratar de autores diversos, já que alguns aspectos de sua biografia e a atmosfera de mudanças dos anos de 1910 influenciaram o escritor de maneira única, resultando numa inconstância de estilo que fez com que sua produção fosse surpreendentemente diversificada. Para compreender a heterogeneidade de sua obra, é preciso levar em conta o fato de Andrêiev ser considerado uma figura solitária no contexto histórico-literário, mas que integra o momento de transição do naturalismo para as inovações do século XX. Seus primeiros contos já apresentam características dessa transição e foi com eles que Andrêiev se inseriu no meio literário, subitamente ganhando enorme popularidade. Tudo remete ao advento do realismo na Rússia, no século XIX, quando as questões políticas e sociais começaram a dominar a cena literária. Sob essa ótica, começou a se desenvolver na Rússia um novo modo de retratar a realidade. Até então, a literatura era um instrumento que dava margem ao retrato de apenas uma classe social: a nobreza. Justamente por ter sido alvo do processo de europeização iniciado pelo czar1 Pedro, O Grande, a mesma nobreza russa entrou em contato com os ideais inovadores que conturbavam o Ocidente e que voltavam a atenção para questões sociais. Teve início, então, um período de predominância da prosa na literatura russa, que executaria principalmente o papel de ferramenta de discussão social, de modo que a preocupação com a forma seria, de certa maneira, deixada de lado em detrimento da função social da literatura. Com a propagação dos novos ideais vindos do Ocidente, o debate que se acendeu terminou por levar a uma série de reformas, enquanto czares mais autoritários e outros mais libertários se revezavam no poder, de modo a se instaurar uma profunda crise na sociedade russa, concomitantemente com 1  Não há um consenso nos dicionários da língua portuguesa para o emprego dos termos csar, czar, tsar ou tzar para denominar o soberano russo até a Revolução de 1917. Adotou-se aqui a forma czar, com plural czares, por ser a mais frequentemente recomendada pelos principais dicionários. (N. da E.)

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Introdução


uma gradual possibilidade de ascensão social das classes menos favorecidas. Assim, se iniciou um processo que colocou a literatura como meio de retratar de modo sério não mais apenas a nobreza, mas também aqueles de origem humilde. Na segunda metade do século, com a libertação dos servos, em 1861, enquanto a burguesia ascendia, a nobreza decaía: o que predominava entre os escritores era a conexão ou preocupação com a vida social e política. É nesse contexto que surge a chamada geração raznotchínetz2, constituída por jovens que não pertenciam à nobreza, mas que conseguiram ter acesso à formação em universidades e encarnaram com naturalidade as transformações sociais que ocorriam na época. Foi a essa geração que pertenceu Leonid Andrêiev, de origem humilde, formado em Direito após enfrentar muitas dificuldades, frequentemente criticado por sua inconstância de estilos, por ultrapassar os limites do realismo, por fundir a atenção ao papel social da literatura com a experimentação no campo da forma, já buscando superar o realismo desenvolvido desde o século XIX, porém sem deixar de lado a problemática político-social. O próprio Andrêiev, em uma carta a seu amigo Górki, escreveu: “Quem sou eu? Para os decadentes bem-nascidos, sou um realista desprezível; para os realistas inatos, sou um simbolista suspeito.” De fato, há quem o associe ao chamado decadentismo russo, por estarem presentes em sua obra, de maneira marcante, os sentimentos de desilusão e pessimismo relacionados à perda da esperança revolucionária que moveu o século XIX na Rússia e à confusão de um período incerto, quando fermenta2  O conceito de raznotchínetz, literalmente “homens de classes mistas”, remete à Tabela de Classes introduzida em 1722 pelo czar Pedro, O Grande, e que estabelecia uma hierarquia de categorias sociais, governamentais, civis e militares, estabelecendo os critérios para a mobilidade entre essas categorias. Com o aumento da complexidade social provocado principalmente pelo advento do capitalismo e da erosão da estrutura social tradicional, surgiram pessoas que, não ligadas àquelas classes, destacavam-se principalmente pela formação educacional. Eram pessoas provenientes de pequenas cidades, do clero, dos mercadores e do campesinato, distintas daquelas oriundas da nobreza, bem como igualmente distantes dos habitantes e trabalhadores das zonas rurais. Formavam a elite educada da sociedade. Entretanto, os raznotchínetz, ao contrário da nobreza e dos comerciantes estabelecidos, não tinham o direito de possuir terras ou se dedicar ao comércio e sobreviviam basicamente do seu trabalho intelectual que, no entanto, não era valorizado como na Europa Ocidental. Eram frequentemente indigentes e não essencialmente “burgueses”. A partir da década de 1860, o conceito social de raznotchínetz tornou-se mais amplo, compreendendo uma espécie de movimento social de contestação, do qual participava qualquer pessoa que decidisse ficar fora da estrutura social tradicional de classes, inclusive membros dissidentes das classes estabelecidas. A maioria dos líderes revolucionários russos emergiram deste movimento. A Tabela de Classes passou por diversas revisões até ser formalmente abolida, em 1917, pelo governo soviético recém instalado. (N. da E.)

Leonid Andrêiev

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vam as contradições que culminariam nas revoluções políticas, sociais e artísticas das duas primeiras décadas do século XX. Alguns críticos, no entanto, veem em Andrêiev um predomínio de princípios realistas, enquanto outros consideram a presença de elementos simbolistas como característica, de modo que o escritor não teria sido puramente realista nem mesmo no início de sua carreira, quando publicou muitos dos contos que mais causaram polêmica e levaram as tiragens a quantidades nunca antes alcançadas na Rússia. Frequentemente misturando todos esses princípios de diferentes correntes, Andrêiev acabou por seguir um caminho próprio, apresentando características do realismo, simbolismo, expressionismo e ainda outras, de modo que, por fim, acaba sendo considerado um escritor sem um “-ismo”, impossível de ser associado a uma única tendência literária. Andrêiev passou pelo conto convencional, pelo modelo de diário, pela narrativa em primeira pessoa, pela narrativa fantástica, pela adaptação de narrativas bíblicas, hagiografia e outros. Os assuntos que abordou vão do bíblico ao sexual, do histórico ao contemporâneo, do concreto ao abstrato. Apesar da dificuldade em defini-lo, ao invés de ser colocado em uma espécie de marginalidade cultural, o papel de Andrêiev é, ao contrário, central, já que seus textos carregam a evolução de toda a tradição literária russa. Evidentemente, Andrêiev não é o primeiro escritor a apresentar em sua obra características de tendências literárias diferentes, mesmo porque as delimitações de tais tendências são muitas vezes inadequadas e impossíveis de serem consideradas absolutas, até mesmo quando se trata apenas de movimentos em que há, por exemplo, um programa definido e divulgado por um grupo de artistas. Porém, poucos escritores foram relacionados a tantas escolas literárias diferentes. A influência das ideias democráticas e humanistas do realismo clássico russo foi incrivelmente forte e continuou se mantendo frutífera até o final do caminho produtivo do escritor. As ideias de apartidarismo e liberdade do pensamento criativo frequentemente assumiam uma expressão extrema em Andrêiev. “O livre pensamento humano está sempre questionando, sempre buscando”, escreveu ele em 1907. Sendo contra todo tipo de lema, princípios e programas, Andrêiev recusava-se a ter o seu nome incluído entre os prin14

Introdução


cipais colaboradores das revistas literárias, pois achava que a participação em publicações com tendências filosóficas e sociais definidas contradiziam o espírito de suas buscas. Andrêiev também era contrário a qualquer modo de pensar autoritário. Em uma carta para Galauchev, ele afirma: “toda a minha essência está no fato de que não assimilo o mundo da forma como ele me foi apresentado pelos preceptores e professores, mas da forma mais perturbadora eu o questiono, cutuco, desenterro, viro de ponta cabeça [...]”. A tendência de Leonid Andrêiev para a experimentação, para a construção da realidade, sem dúvida antecipa as buscas estéticas do futurismo e de outros direcionamentos da vanguarda mundial. É impressionante a grande quantidade de autores famosos e de importantes tendências de pensamento artístico do século XX que estão relacionadas ao escritor, fato que aponta para a sua importância e papel de destaque na história da literatura russa, tendo, inclusive, se tornado tema de numerosas autobiografias, como as de Górki, Blok e Tchukóvski. Contudo, nos primeiros anos que se seguiram à sua morte, as autoridades soviéticas desaprovaram suas obras, desestimulando qualquer publicação acerca do assunto. A partir dos anos de 1960, no entanto, seu legado pôde ser reconsiderado, retornando às páginas de críticas e estudos literários. A origem humilde, a inconstância de estilos e a abordagem de assuntos polêmicos fizeram com que, entre seus contemporâneos, houvesse ainda aqueles que acusassem Andrêiev de ser um “talento sem cultura”, um escritor ligado à “cultura de massa” em oposição à “alta cultura”, e de tocar em temas delicados e fazer experimentações inusitadas apenas para chocar e aumentar as tiragens de seus contos e peças. Seu interesse pelo cinema e pela fotografia evidenciava sua aproximação com a cultura de massa que começava a surgir na Rússia, enquanto, ao mesmo tempo, ele também se voltava para a psicologia, o misticismo e a filosofia. Seu primeiro livro de contos, publicado em 1901, foi reeditado doze vezes e até 1907 alcançou uma espantosa tiragem de cinquenta mil exemplares, um número recorde, surpreendente para a época. A oportunidade de publicação surgiu graças ao então já conhecido escritor Maksim Górki, que convidou Andrêiev para seu círculo e, impressionado com seus contos, promoveu seu nome. Leonid Andrêiev

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A partir de então, Andrêiev desfrutou de uma carreira de sucesso meteórico, ainda que de curta duração. Na época, até mesmo na América Latina3, o escritor ficou conhecido por sua abordagem dos ideais revolucionários e pela extrema sensibilidade com que retratou os dramas humanos, quase sempre expondo criticamente tanto questões sociais e históricas quanto problemas universais da natureza humana. O poeta chileno Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, antes de adotar o pseudônimo Pablo Neruda, pelo qual ficou conhecido, utilizava o pseudônimo Sashka, nome do herói da novela “Sashka Jeguliov”, escrita por Andrêiev em 1911. Outro fato interessante é que Danilo Ilić, membro da facção que organizou o atentado ao arquiduque Franz Ferdinand, acontecimento que acabou por colaborar para a deflagração da Primeira Guerra Mundial, foi um dos leitores de Leonid Andrêiev e chegou a mencionar, em um artigo, sua novela “Os Sete Enforcados” (1908) como um argumento poderoso contra a pena capital. A novela é uma crítica à pena de morte e à violência autoritária, pois o próprio Andrêiev era inclinado ao pacifismo, uma das ideias centrais também em seu conto “Conversa noturna”, presente nesta coletânea. Ironicamente, neste último Andrêiev expõe a barbárie e a estupidez da guerra, conduzida por indivíduos distantes da realidade e que são representados pela personagem do Imperador Guilherme II da Alemanha, durante a invasão da Bélgica na Primeira Guerra Mundial. Para isso, Andrêiev utiliza sua peculiar maneira expressionista e emocional de narrar, oferecendo, como foi característico em outras de suas obras, uma imagem da guerra como loucura e um destrutivo caos generalizado, sem deixar de acrescentar suas distintas pitadas de ironia. O impacto causado por essa maneira de narrar é fortalecido pela frequente escolha do autor pelo próprio gênero conto, que, em sua circularidade, favorece a poeticidade. Andrêiev, em sua prosa, faz uso de figuras poéticas de todos os tipos: metáforas, oximoros, símiles, personificações e até mesmo, ocasionalmente, metro e rima. A assimilação de algumas técnicas simbolistas 3  Até onde foram nossas pesquisas, o primeiro texto de Andrêiev traduzido para o português foi o conto “O riso”, publicado em março de 1919, quando o autor ainda era vivo (O riso, Revista Para Todos, Ano I, Nr. 11, Rio de Janeiro, 01 de março de 1919, p. 2-3. Disponível digitalmente em: https://issuu.com/leonidandreyev). (N. da E.)

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Introdução


por Andrêiev também conferiram uma intensidade particular à sua escrita. Como é possível perceber, por exemplo, em “Presentinho”, “Pietka no campo” ou mesmo em “Na névoa”, além da evidente preocupação com o retrato da realidade russa e, em geral, da condição humana, em Andrêiev se dá um encontro entre o concreto e o abstrato, uma junção de elementos que levam para além da realidade crua, conduzindo o leitor através de uma experiência que vai da identificação com uma situação cotidiana à reflexão sobre questões universais e, muitas vezes, transcendentais, conduzidas por meio de símbolos e figuras de linguagem. Dessa forma, destaca-se a tendência do escritor para uma abordagem sintética da vida e para uma combinação de objetivos puramente artísticos com questões de ordem filosófica. Em Andrêiev, todos os meios são justificáveis para transmitir suas ideias. Talvez por isso, seus contos tenham causado e ainda causem impressões tão fortes, normalmente com uma linguagem simples e sem malabarismos, porém retratando com beleza os dramas da condição humana em meio à busca do escritor pelo aprofundamento e ampliação das fronteiras do realismo. Apesar de o próprio Andrêiev sublinhar a importância do “conteúdo” para sua obra, o escritor não escapa dos limites propiciados pelo gênero de sua prosa por excelência, o conto, limites esses que contêm a maior propensão à poeticidade em comparação com o romance. Quanto a essa característica, são especialmente interessantes seus contos “O ladrão”, “A história da serpente sobre como ela ganhou dentes venenosos”, “A cidade” e “Dia da Ira”, presentes nesta coletânea, como bons representantes do aspecto poético da heterogeneidade de Andrêiev. No entanto, Andrêiev costumeiramente é lembrado pelo tom sombrio de suas narrativas. Como seu traço considerado mais marcante, o pessimismo permeia, de um jeito ou de outro, grande parte da obra, mesmo quando acompanhado de humor. Górki atribuiu isso à influência de Schopenhauer sobre o escritor; seu irmão mais novo, Pável Andrêiev, aos fatores sociológicos, à pobreza e ao estresse de sustentar a família após a morte do pai; alguns críticos, como Anatóli Lunatcharski, ao meio social histórico em que viveu. Outros Leonid Andrêiev

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ainda atribuíram o pessimismo, juntamente com sua inconstância de estilo, à própria inconstância psicológica do autor, sugerindo que sua saúde mental teria sido o fator preponderante. O escritor foi preso, em 1907, sob acusação de permitir um encontro entre membros do Partido Operário Social-Democrata Russo em seu apartamento, e foi libertado apenas após um laudo médico que constatava que, mesmo antes da prisão, já sofria com sintomas como depressão, ansiedade, palpitações e “desordens nervosas” e o diagnosticava como esquizofrênico e neurastênico. Embora muito provavelmente o laudo tenha sido exagerado para justificar sua soltura, já que o médico que o escreveu era seu amigo, é sabido que Andrêiev sofria de alcoolismo e chegou a cometer mais de uma tentativa de suicídio ao longo da vida4. Apesar disso, o fato de já em suas primeiras obras haver sinais de um tratamento não-convencional da realidade demonstra sua inclinação desde cedo para a inovação, não sendo algo necessariamente ligado à sua própria condição psicológica. É justamente sua postura contestadora que se destaca nos relatos de algumas de suas atitudes tidas como suicidas ou insanas, pois o autor gostava de desafiar o destino e testar ideias fatalistas. Por isso mesmo, também é possível notar em suas obras o profundo interesse de Andrêiev pela filosofia e pela psicologia, perceptivelmente integrado a todas as suas outras características. De fato, sua visão de mundo foi norteada por Nietzsche, Schopenhauer e Eduard von Hartmann. A ideia do Eterno Retorno5, o sentido da vida, a inevitabilidade da morte, da tragédia, da pobreza, a condição humana da qual não se pode escapar, o papel de Deus e dos mitos, é possível encontrar um pouco de tudo na construção das narrativas de Andrêiev. Essas ideias permeiam também as obras traduzidas para esta coletânea, chamando especialmente a atenção para o aspecto filosófico, além de lírico, o ensaio “É bela a vida para os ressuscitados” e o peculiar “A ressurreição de todos os mortos”, textos mais reflexivos e distintos dos contos habituais de Andrêiev (se é que há algo de “habitual” em sua obra). 4  A primeira tentativa ocorreu aos 21 anos de idade por conta de uma desilusão amorosa. Questionado por Górki sobre o incidente, Andrêiev declarou trata-se de um equívoco do romantismo juvenil. E completa: “Você sabe bem: o homem que nunca tentou matar-se não vale grande coisa.” (Górki, M. Três russos: Tolstoi, Tchekov, Andreev. Pongetti, 1945. P. 137). (N. da E.) 5  A ideia do Eterno Retorno surgiu no Ocidente através estoicismo grego, sendo apropriada por Nietzsche, que lhe atribuiu um sentido diferente dentro de sua filosofia. Foi o conceito nietzscheniano que influenciou a obra de Andrêiev (N. da E.)

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Introdução


O escritor se esforça para abranger a vida em sua totalidade ao invés de em fragmentos representativos, dando preferência a conceitos míticos, circulares. Da considerada “arte elevada”, ele expande o que é tido como atividade estética válida e, partindo da “arte baixa”, ele invade um território anteriormente considerado reservado à “arte elevada”, como ao popularizar conceitos e temas filosóficos antes restritos às discussões em círculos privilegiados. Em sua escrita, Andrêiev adota e absorve estruturas e qualidades derivadas de formas artísticas mais antigas, deixando um grande papel participativo para os leitores, que devem decidir por si mesmos o significado preciso de muitos de seus símbolos. Esse aspecto é favorecido por sua preferência dada ao gênero conto e pela experimentação de novos estilos, que remetem ao que se define como um retorno da poesia após uma era de prosa na literatura russa e ao sentimento antinaturalista que guiou os movimentos modernistas que se seguiram, refletindo o período de transição artística e político-social presenciado pelo escritor. Embora o escritor frequentemente seja lembrado apenas por seu lado soturno, o qual, de fato, ele imprimiu brilhantemente em grande parte de sua produção literária, a riqueza maior de sua obra está em toda essa experimentação que resultou em tamanha heterogeneidade. Nela podemos encontrar brutalidade e sensibilidade, pessimismo e humor, psicologia, filosofia, prosa e poesia, tudo construído de uma maneira que atingiu facilmente um grande número de leitores de todas as camadas sociais. Em tradução direta do russo, todos os textos da presente coletânea resultaram de um processo em que se tentou ao máximo manter a relativa simplicidade da linguagem utilizada pelo escritor e, ao mesmo tempo, ser fiel à profundidade na transmissão de seu significado. As falas de seus personagens utilizam, em geral, discursos bem coloquiais, como é natural tendo em vista o foco do autor nas pessoas das camadas mais desprivilegiadas da sociedade. Porém, independentemente dos personagens ou da complexidade do tema abordado, a escrita de Andrêiev é notável por sua acessibilidade ao grande público. Um dos aspectos chamativos de sua escrita é a frequente repetição da conjunção “e”, que muitas vezes traz um tom mais coloquial também para o narrador, além da sensação de se estar acompanhando um fluxo de pensaLeonid Andrêiev

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mento livre e intenso. Muitas vezes, essa repetição também contribui para a construção de uma atmosfera tediosa, cíclica ou até sufocante, o que serve bem tanto aos tons sombrios e até fantásticos de muitos dos textos do autor quanto ao que depois se identificou como as primeiras manifestações de tendências expressionistas em um autor russo. Entre os contos selecionados para esta coletânea, é possível sentir o gosto do pessimismo característico de Andrêiev especialmente em “Pietka no campo”, “Presentinho” e “A vida de Vassíli Fiveiski”, onde se exprime também a grande sensibilidade do autor ao tratar da realidade humana. Outro conto de extrema sensibilidade é “No porão”, uma obra excepcional que, além da crítica social e do olhar sombrio sobre a condição humana, traz também uma centelha de luz na escuridão da visão soturna de Andrêiev. Essa centelha, uma ponta de esperança em meio ao pessimismo, de certa maneira também pode ser encontrada em “O que a gralha viu” e “De uma história que nunca será concluída”, o que acrescenta pitadas de expectativa por algum tipo de bem ou redenção, mostrando que, ao contrário do que se poderia acreditar ao notar o tom sombrio de muitas de suas obras, em Andrêiev não há apenas perversidade no humano, nem apenas o Bem ou o Mal, mas toda a complexidade da mente, do coração, da alma, da vida. Essa complexidade Andrêiev traduz também por novos meios, mais voltados para a elaboração psicológica, especialmente em “O ladrão”, “A vida de Vassíli Fiveiski”, “Duas cartas” e “Na névoa”. O interesse do escritor por psicologia e psiquiatria acrescentou à sua criação uma habilidade exímia em explorar a psique humana e retratar profundamente as personalidades. Ao mesmo tempo, há também muita poeticidade em “O ladrão”, questionamentos filosóficos e que tocam em pontos muito sensíveis sobre a fé em “A vida de Vassíli Fiveiski”, certo sentimentalismo em “Duas cartas” e uma grande ousadia na abordagem da sexualidade adolescente e da relação pai e filho em “Na névoa”. Este último conto, lançado em 1902 juntamente com “O abismo”, causou tanto rebuliço que Sofia Tolstói, esposa de Liev Tolstói, teria escrito uma carta para os jornais protestando, indignada, “contra tamanha sujeira na literatura” e alegando que Andrêiev levava os leitores a examinarem o “cadáver decomposto da degradação humana” e a fecharem os olhos para o “maravilhoso mundo de Deus”. O próprio Tosltói, por sua vez, comentou sobre Andrêiev: “Ele tenta me assustar, mas eu não estou com medo”. 20

Introdução


Apesar das acusações de imoralidade, muitos também apoiaram fervorosamente a denúncia da hipocrisia social e a forte impressão causada pela escrita de Andrêiev. Por último, ainda vale a pena mencionar outra característica que Andrêiev soube utilizar junto a todas as outras e que, diante de todo o peso filosófico e pessimista sempre tão destacado em sua obra, pode até mesmo parecer inusitada: o humor. Ele pode ser captado, mesmo que de leve, nos textos aqui reunidos, como “Na estação” e “A cidade”, e muitas vezes vem trazendo pitadas sarcásticas até mesmo nos contos mais sérios. Porém, é com a tradução da peça “As Belas Sabinas” que a presente coletânea traz ao leitor lusófono a oportunidade de conferir mais claramente também esse lado do escritor, além de sua capacidade de criação também no gênero teatral. Assim, espera-se colaborar, ao menos um pouco, para o preenchimento da lacuna deixada no que se refere à tradução de literatura russa para o português, que, apesar de ter aumentado consideravelmente nos últimos anos, permanece ainda, em grande parte, focada nos grandes nomes, como Dostoiévski, Tolstói e Tchékhov, já conhecidos pelos apreciadores desse nicho. Leonid Andrêiev foi um dos maiores escritores de seu tempo e seus contos, novelas e peças parecem tão pertinentes hoje quanto há cem anos. Sua obra é espantosamente heterogênea e vai muito além do pessimismo e do tom lúgubre pelo qual costuma ser lembrado, o que o levou a ser um dos mais proeminentes escritores da Era de Prata da literatura russa. Fica a cargo do leitor, enfim, julgar por si mesmo se o expressivo retrato da condição humana composto por tão variados estilos é o resultado do contexto histórico vivido pelo autor, falta de erudição, loucura ou brilhantismo.

Helena Kardash

Leonid Andrêiev

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Contos & Novelas



Pietka no campo

Ó

ssip Abramovitch, barbeiro, endireitou uma toalha suja no peito do cliente, enfiou-a com os dedos atrás do colarinho e gritou com voz entrecortada e brusca:

— Menino, a água! O cliente, que examinava sua fisionomia no espelho com aquela atenção aguçada e interesse que só se tem na barbearia, tinha notado que em seu queixo surgira mais um cravo preto e, com desagrado, desviava os olhos, que acabavam focando em um bracinho fino e pequeno que se esticava, vindo de algum lugar na lateral, e colocava uma lata com água quente sobre o aparador que ficava embaixo do espelho. Quando ele movia os olhos mais para cima, via o reflexo do barbeiro, estranho e como que inclinado, e notava o olhar rápido e ameaçador que ele lançava para baixo, sobre a cabeça de alguém, e o movimento silencioso de seus lábios num sussurro inaudível, mas expressivo. Se não fosse o próprio dono da barbearia Óssip Abramovitch quem o estivesse barbeando, mas algum dos aprendizes, Prokópiy ou Mikhail, então o sussurro se tornava alto e assumia a forma de uma ameaça indefinida: — Ah, você me paga! Isso significava que o menino não havia trazido a água com rapidez suficiente e que uma punição o aguardava. “É assim mesmo que se deve lidar Leonid Andrêiev

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com eles”, pensava o cliente, entortando a cabeça para o lado e contemplando bem diante de seu nariz uma grande mão suada, na qual três dedos estavam esticados, e os outros dois, pegajosos e cheirosos, tocavam suavemente a face e o queixo, enquanto a navalha meio cega removia espuma de sabão e fios duros de barba com um rangido desagradável. Nessa barbearia, impregnada pelo cheiro de perfumes baratos, cheia de moscas irritantes e sujeira, os clientes eram pouco exigentes: porteiros, vendedores, às vezes funcionários de baixo nível hierárquico ou operários e, com frequência, rapagões de uma beleza rústica, mas suspeitos, com bochechas rosadas, bigodinhos finos e olhos insolentes e lascivos. Não muito longe havia um quarteirão repleto de casas de libertinagem barata. Elas dominavam essa área e lhe conferiam um caráter especial de algo sujo, desordenado e alarmante. O menino com quem gritavam na maioria das vezes se chamava Pietka e era o menor de todos os funcionários do estabelecimento. O outro garoto, Nikolka, era uns três anos mais velho e, em breve, iria se tornar aprendiz. Mesmo agora, quando na barbearia aparecia um cliente mais ingênuo, os aprendizes, que na ausência do dono tinham preguiça de trabalhar, mandavam Nikolka cortar e ficavam rindo por ele ter que ficar na ponta dos pés para ver a nuca cabeluda de um robusto zelador. Às vezes, o cliente se ressentia por causa dos cabelos danificados e começava a gritar, então os aprendizes também gritavam com Nikolka, mas não com seriedade, apenas para agradar o simplório tosquiado. Mas esses casos eram raros e Nikolka se fazia de importante e se comportava como gente grande: ele fumava cigarros, cuspia por entre os dentes, xingava com palavrões e até se gabava para Pietka de que tomava vodca, mas provavelmente mentia. Juntamente com os aprendizes, ele corria até a rua vizinha para assistir uma boa briga, e quando voltava de lá, feliz e risonho, Óssip Abramovitch lhe dava dois tapas: um em cada bochecha. Pietka tinha dez anos de idade; ele não fumava, não bebia vodca e não xingava, embora conhecesse muitas palavras chulas ​​e, em todos esses aspectos, invejava seu colega. Quando não havia clientes, Prokópiy, que passava noites sem dormir em algum lugar e durante o dia tropeçava de sono, 26

Pietka no campo


encostava-se num canto escuro atrás da divisória, enquanto Mikhail lia o jornal “Folha de Moscou” e, entre descrições de roubos e furtos, procurava pelo nome familiar de algum dos clientes costumeiros. E Pietka e Nikolka ficavam conversando. Este último sempre se tornava mais gentil quando ficavam só os dois e explicava ao “menino” como eram os cortes degrade, topete e o corte com risca. Às vezes, eles se sentavam na janela, ao lado do busto de cera de uma mulher que tinha bochechas rosadas, olhos surpresos de vidro e escassas pestanas retas, e ficavam olhando para a alameda, onde a vida começava desde o início da manhã. As árvores da alameda, cinzentas de poeira, se entorpeciam imóveis sob o sol quente e implacável e ofereciam uma sombra também cinzenta e que não refrescava. Em todos os bancos estavam sentados homens e mulheres, sujos e estranhamente vestidos, sem lenços e chapéus, como se morassem ali e não tivessem outro lar. Havia rostos indiferentes, maldosos ou licenciosos, mas todos estavam marcados pela fadiga extrema e pelo descaso com o ambiente ao seu redor. Frequentemente a cabeça desgrenhada de alguém se inclinava impotente sobre o ombro, e o corpo involuntariamente procurava espaço para dormir, como acontece com um passageiro de terceira classe que viajou milhares de quilômetros sem descanso, mas não havia onde deitar. Um guarda usando azul-marinho percorria os caminhos com um cassetete e vigiava para que ninguém se espalhasse no banco ou se jogasse na grama, avermelhada pelo sol, mas tão macia, tão fresca. As mulheres, sempre vestidas de maneira mais limpa, até mesmo com um toque de moda, eram como se tivessem todas o mesmo rosto e a mesma idade, embora, às vezes, podia-se deparar com algumas muito velhas ou muito jovens, quase crianças. Todos falavam com vozes ásperas e roucas, xingavam, abraçavam os homens com tanto desembaraço, como se estivessem totalmente sozinhos na alameda e, às vezes, tomavam vodca e comiam um tira-gosto ali mesmo. Acontecia de um homem bêbado espancar uma mulher tão embriagada quanto ele; ela caía, levantava e caía novamente; mas ninguém se movia para defendê-la. Os dentes se arreganhavam alegremente, os rostos se tornavam mais perspicazes e mais vivos e uma multidão se reunia em torno dos que brigavam; mas quando o guarda vestido de azul-marinho Leonid Andrêiev

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vivo se aproximava, todos se dispersavam preguiçosamente de volta para seus lugares. E somente a mulher espancada ficava chorando e xingando inutilmente; os cabelos desgrenhados dela se arrastavam pela areia e o corpo seminu, sujo e amarelado à luz do dia, estava cínica e lamentavelmente exposto. Sentavam-na no fundo da caleche de aluguel e a levavam, e sua cabeça que pendia ficava balançando como a de um morto. Nikolka conhecia os nomes de muitas mulheres e homens, contava a Pietka histórias sujas sobre eles e ria, arreganhando os dentes afiados. E Pietka ficava impressionado com o quão inteligente e destemido ele era, e pensava que um dia seria igual a ele. Mas, por enquanto, ele gostaria de ir a algum outro lugar... gostaria muito. Os dias de Pietka se estendiam surpreendentemente monótonos e parecidos uns com os outros, como dois irmãos de sangue. Tanto no inverno, como no verão, ele via sempre os mesmos espelhos, um dos quais tinha uma rachadura, e o outro era torto e engraçado. Na parede manchada pendia sempre o mesmo quadro, representando duas mulheres nuas à beira-mar, e apenas seus corpos rosados ​​estavam ficando cada vez mais pontilhados com os rastros deixados pelas moscas e a fuligem negra crescia sobre o lugar onde, no inverno, durante quase o dia inteiro, ficava acesa uma lâmpada de querosene. De manhã e à noite, o dia inteiro, o mesmo grito entrecortado pairava sobre Pietka: “Menino, a água”, e ele continuava a levá-la, continuava a levá-la. Não havia feriados. Aos domingos, quando a rua não era mais iluminada pelas vitrines das lojas e vendas, a barbearia derramava um feixe de luz brilhante na calçada até tarde da noite, e o transeunte via uma figura pequena e magra encolhida em um canto em sua cadeira e imersa não se sabe se em pensamentos ou em um estado pesado de sonolência. Pietka dormia muito, mas por alguma razão ele sempre queria dormir ainda mais, e muitas vezes parecia que tudo ao seu redor não era real, mas um sonho longo e desagradável. Muitas vezes ele derramava água ou não ouvia o grito cortante ou áspero: “Menino, a água”, e ele estava perdendo peso, e surgiram feridas feias em sua cabeça raspada. 28

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Até mesmo os clientes pouco exigentes olhavam com aversão para esse menino magro e sardento, que tinha olhos sempre sonolentos, a boca entreaberta e as mãos e o pescoço muito sujos. Junto aos seus olhos e sob o nariz apareceram ruguinhas finas, como se tivessem sido traçadas por agulhas afiadas e faziam com que ele parecesse um anão envelhecido. Pietka não sabia se estava entediado ou alegre, mas queria ir para outro lugar, sobre o qual não podia dizer nada, onde ele ficava, nem como era. Quando sua mãe, a cozinheira Nadiéjda1, vinha visitá-lo, ele comia preguiçosamente as guloseimas trazidas, não se queixava, apenas pedia para ser levado dali. Mas então ele esquecia seu pedido, se despedia de sua mãe com indiferença e não perguntava quando ela viria novamente. E Nadiéjda pensava com tristeza que ela tinha um único filho – e esse era aparvalhado. Quanto tempo Pietka tinha vivido assim, ele não sabia. Mas um dia sua mãe veio na hora do almoço, conversou com Óssip Abramovitch e disse que ele, Pietka, teve licença para ir à datcha2 em Tsaritsyno, onde moram seus patrões. No início, Pietka não entendeu, depois seu rosto se cobriu de ruguinhas finas provocadas por um riso silencioso, e ele começou a apressar Nadiéjda. Por uma questão de decoro, ela tinha que conversar com Óssip Abramovitch sobre a saúde de sua esposa, mas Pietka a empurrava devagarinho em direção à porta e puxava a mão dela. Ele não sabia o que é uma datcha, mas supunha que ela era exatamente o lugar para onde ele tanto queria ir. E ele egoisticamente se esqueceu de Nikolka, que, com as mãos nos bolsos, estava ali e tentava olhar para Nadiéjda com a costumeira petulância. Mas nos olhos dele, em vez de petulância, havia uma tristeza profunda: ele não tinha mãe alguma, e naquele momento não se importaria até mesmo de ter uma tal qual essa gorda Nadiéjda. A questão era que também ele nunca estivera em uma datcha. E pela primeira vez, diante dos olhos estupefatos de Pietka, enchendo-o de um sentimento de excitação e impaciência, surgiu a estação, com sua balbúrdia dissonante, o barulho estrondoso dos trens que chegavam, os 1  Nome feminino que, em russo, significa “esperança”. (N. da T.) 2  Casa de campo típica russa. (N. da T.)

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apitos das locomotivas, ora graves e zangados, como a voz de Óssip Abramovitch, ora estridentes e agudos, como a voz de sua esposa doente, e os passageiros apressados, que passavam sem parar, como se não tivessem fim. Ele, como sua mãe, estava com medo de se atrasar, embora ainda faltasse uma boa meia hora para a partida do trem que seguia para o campo; e, quando eles se sentaram no vagão e partiram, Pietka grudou na janela, e apenas sua cabeça raspada se movia pra lá e pra cá em seu pescoço fino, como em uma haste de metal. Ele nasceu e cresceu na cidade, era a primeira vez em sua vida que ia para o campo, e tudo ali era incrivelmente novo e estranho para ele: o fato de que era possível ver tão longe que a floresta parecia grama, e o céu, que neste mundo novo era incrivelmente claro e amplo, como quando se olha do telhado. Pietka o via do seu lado, e quando se virava para a mãe, esse mesmo céu azul aparecia na janela oposta, e pequenas nuvens alegres e brancas flutuavam sobre ele como anjinhos. Pietka ora se virava pra lá e pra cá junto a sua janela, ora corria para o outro lado do vagão, depositando credulamente a mãozinha mal lavada nos ombros e nos joelhos de passageiros desconhecidos, que respondiam a ele com sorrisos. Mas, não se sabe se por excesso de cansaço ou por tédio, um cavalheiro que estava lendo um jornal e bocejava o tempo todo, por duas vezes lançou um olhar enviesado e hostil para o garoto e Nadiéjda se apressou em pedir desculpas: — É a primeira vez que ele viaja pela estrada de ferro, está curioso... — Hum... – resmungou o cavalheiro e voltou a se enterrar no jornal. Nadiéjda queria muito contar a ele que Pietka vivia com o barbeiro já há três anos e este havia prometido lhe ensinar a profissão, e isso será muito bom, porque ela é uma mulher sozinha e fraca e não possui outro apoio em caso de doença ou na velhice. Mas o rosto do cavalheiro era maldoso e Nadiéjda guardou todos esses pensamentos para si mesma. À direita dos trilhos se estendia uma ravina ondulada, verde-escura devido à constante umidade, e em sua borda estavam distribuídas casinhas cinzentas que pareciam de brinquedo, e numa alta montanha verde, 30

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ao pé da qual brilhava uma faixa prateada, havia uma igreja branca que também parecia de brinquedo. Quando o trem, com um tinido metálico estrondoso, que subitamente havia ficado mais forte, subiu voando na ponte e como que pairou no ar acima da superfície espelhada do rio, Pietka até estremeceu de susto e surpresa e recuou da janela, mas imediatamente retornou a ela, temendo perder qualquer mínimo detalhe do caminho. Há muito tempo que os olhos de Pietka deixaram de parecer sonolentos e as rugas desapareceram. Era como se alguém tivesse passado um ferro quente naquele rosto, alisando suas rugas e fazendo com que se tornasse branco e brilhante. Nos dois primeiros dias da estadia de Pietka na datcha, a riqueza e a força das novas impressões, derramadas sobre ele de cima a baixo, comprimiram sua pequena e tímida alminha. Em contraste com os selvagens dos séculos passados, que ficavam desnorteados ao migrarem do deserto para a cidade, esse selvagem moderno, arrebatado dos abraços das enormes construções urbanas, sentia-se fraco e desamparado ao se deparar com a natureza. Para ele, tudo aqui tinha vida própria, sentimentos e vontade. Ele estava com medo da floresta, que sussurrava tranquilamente sobre sua cabeça e era escura, pensativa e tão assustadora em sua infinitude; amava as clareiras, luminosas, verdes, alegres, que pareciam cantar com todas as suas cores brilhantes, e ele gostaria de acariciá-las como se fossem suas irmãs, enquanto o céu azul-escuro o chamava para si e ria como uma mãe. Pietka se emocionava, sobressaltava-se e empalidecia, sorria para alguma coisa e, calmamente, como um homem idoso, passeava pela orla do bosque e pela margem arborizada do lago. Então, ele, cansado, sem fôlego, se esparramava na grama levemente úmida e densa e afundava nela; só seu pequeno narizinho sardento se elevava acima da superfície verde. Nos primeiros dias, ele voltava para junto da mãe, esfregava-se ao lado dela e, quando o patrão perguntava se era bom estar na datcha, ele sorria timidamente e respondia: — É bom!... E então, ele seguia novamente para a temível floresta e para a água calma, e parecia estar as interrogando sobre alguma coisa. Leonid Andrêiev

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Mas mais dois dias se passaram e Pietka entrou em total acordo com a natureza. Isso aconteceu com a colaboração do aluno do ginásio Mítia, de Stáryi Tsarítsin. O ginasiano Mítia tinha o rosto amarelo-escuro, como um vagão de segunda classe, e o cabelo no topo da cabeça era espetado e completamente branco, de tão descorado pelo sol. Ele estava pescando no lago quando Pietka o viu, entabulou uma conversa com ele sem qualquer cerimônia e fez amizade com ele com surpreendente rapidez. Ele deixou que Pietka segurasse a vara de pescar e depois o levou para algum lugar longínquo para tomarem banho. Pietka tinha muito medo de entrar na água, mas quando entrou não queria mais sair e fingia que estava nadando: erguia o nariz e as sobrancelhas, engasgava-se e batia na água com as mãos, espirrando-a para todo lado. Naquele momento, ele se parecia muito com um filhote de cachorro que tinha entrado na água pela primeira vez. Quando Pietka se vestiu, estava azul de frio, como um defunto, e, enquanto falava, batia os dentes. Por sugestão do mesmo Mítia, que possuía uma inesgotável capacidade inventiva, eles exploraram as ruínas de um palácio; escalaram o telhado coberto de árvores e vagaram entre as paredes arruinadas do imenso edifício. Era muito bom lá: havia pilhas de pedra por todo o lugar, nas quais era difícil subir, e sorveiras e bétulas cresciam entre elas, o silêncio era mortal, e parecia que alguém estava prestes a pular de algum canto ou que em um nicho trincado da janela iria surgir uma carranca tremendamente assustadora. Aos poucos, Pietka passou a se sentir em casa na datcha e se esqueceu completamente que no mundo existiam Óssip Abramovitch e a barbearia. — Olha só, como engordou! Um verdadeiro mercador! – alegrava-se Nadiéjda, ela mesma gorda e vermelha do calor da cozinha, como um samovar de bronze. Ela atribuía isso ao fato de estar lhe dando muita comida. Mas Pietka comia muito pouco, não porque ele não quisesse comer, mas porque não havia tempo a perder: se ao menos fosse possível não mastigar, engolir imediatamente, mas era preciso mastigar, e nos intervalos ficar balançando as pernas, pois Nadiéjda comia diabolicamente devagar, roía os ossos, limpava-se com seu avental e falava sobre trivialidades. Mas 32

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ele estava cheio de afazeres: precisava tomar banho no rio cinco vezes, cortar uma vara de pescar no bosque de aveleiras, desenterrar minhocas – tudo isso exige tempo. Agora Pietka corria descalço, e isso é mil vezes mais agradável do que usando botas com solas grossas: a terra áspera ora queimava, ora esfriava seus pés tão carinhosamente. Ele também deixou para trás sua jaqueta usada de ginasiano, com a qual ele parecia um respeitável aprendiz de barbeiro, e ficou incrivelmente mais jovem. Vestia-a apenas à noite, quando ia até a represa para observar cavalheiros que andavam em barcos: bem-vestidos, engraçados, eles riam ao se sentarem no barco balançante e ele lentamente ia cortando a água espelhada, enquanto as árvores refletidas oscilavam como se uma brisa passasse por elas. No final da semana, o patrão trouxe uma carta da cidade dirigida à “cosineira Nadiéjda” e, quando a leu para a destinatária, ela começou a chorar e espalhou a fuligem que estava no avental sobre o rosto. De acordo com as palavras fragmentadas que acompanhavam esta operação, foi possível entender que se tratava de Pietka. Já estava anoitecendo, Pietka brincava sozinho de pular amarelinha no quintal e estufava as bochechas, porque assim era significativamente mais fácil pular. O ginasiano Mítia havia ensinado essa ocupação boba, mas interessante, e agora Pietka, como um verdadeiro atleta, aperfeiçoava-a sozinho. O patrão saiu e, colocando a mão em seu ombro, disse: — Bem, meu amigo, você tem que ir! Pietka sorria timidamente e permanecia em silêncio: “Que menino esquisito!” – pensou o patrão. — É preciso ir, meu amiguinho. Pietka sorria. Nadiéjda se aproximou e confirmou banhada em lágrimas: — Precisa ir, filhinho! — Onde? – espantou-se Pietka. Leonid Andrêiev

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Tinha esquecido da cidade, e o outro lugar, para onde sempre quis ir, ele já o havia encontrado. — Para o seu patrão, Óssip Abramovitch. Pietka continuava sem entender, embora a questão fosse clara como o dia. Mas sua boca estava seca e sua língua se movia com dificuldade quando ele perguntou: — E como vou pescar amanhã? Está aqui, a vara... — O que se pode fazer? Ele está exigindo. Diz que Prokopiy adoeceu, foi levado ao hospital. Diz que tem pouca gente. Não chore: é bem possível que ele te dará licença novamente, Óssip Abramovitch é bondoso. Mas Pietka nem estava pensando em chorar e continuava sem entender. De um lado havia um fato – a vara de pescar – e, de outro, um fantasma – Óssip Abramovitch. Mas, aos poucos, os pensamentos de Pietka começaram a clarear, e uma estranha troca ocorreu: Óssip Abramovitch se tornou um fato e a vara de pescar, que ainda não tinha tido tempo de secar, transformou-se em um fantasma. E então Pietka surpreendeu sua mãe, deixou o patrão e a patroa entristecidos e teria ele próprio ficado surpreso, se fosse capaz de fazer autoanálise: ele não apenas começou a chorar como choram as crianças da cidade, magras e subnutridas. Ele gritou mais alto que o mujique3 mais gritalhão e começou a rolar no chão como aquelas mulheres bêbadas na alameda. Sua magra mãozinha se fechou em punho e batia na mão da mãe, no chão, no que quer que estivesse na sua frente, sentindo a dor causada pelas pedrinhas afiadas e pelos grãos de areia, mas como que se esforçando para intensificá-la ainda mais. Após algum tempo, Pietka se acalmou, e o patrão disse à patroa, que estava na frente do espelho e colocava uma rosa branca em seu cabelo: — Viu só? Parou. A tristeza das crianças dura pouco. 3  Nome dado aos camponeses russos antes da revolução de 1917, também utilizado para se referir a um homem rude, do povo. (N. da T.)

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— Mesmo assim ainda estou com muita pena desse pobre menino. — É verdade, eles vivem em condições terríveis, mas há pessoas que vivem em condições piores. Está pronta? E eles foram para o Jardim de Dipman4, onde haviam sido programadas danças para aquela noite e já estavam tocando músicas marciais. No dia seguinte, no trem das sete da manhã, Pietka já estava a caminho de Moscou. Mais uma vez, campos verdes brilhavam à sua frente, grisalhos por causa do orvalho da noite, porém, eles não corriam na mesma direção que antes, mas na direção oposta. A jaqueta usada de ginasiano envolvia seu corpo magrinho, por trás da gola aparecia a ponta branca do colarinho de algodão. Pietka não se virava para todos os lados e mal olhava pela janela, mas estava sentado tão quietinho e modesto, e suas pequenas mãos estavam educadamente postas sobre os joelhos. Seus olhos estavam sonolentos e apáticos, rugas finas, como as de um homem idoso, amontoavam-se ao redor dos olhos e sob o nariz. Então, pilares e vigas da plataforma começaram a surgir junto à janela e o trem parou. Dando encontrões em meio aos passageiros apressados, eles saíram para a rua barulhenta e a grande e gananciosa cidade devorou indiferente sua pequena vítima. — Guarde a vara de pescar! – disse Pietka quando sua mãe o levou à porta da barbearia. — Guardo, filhinho, guardo! Talvez você vá de novo. E, novamente, na barbearia suja e abafada, soava o grito: “Menino, a água”, e o cliente via como um pequeno braço sujo se estendia para o aparador sob o espelho e ouvia um sussurro vagamente ameaçador: “Você me paga!” Isso significava que o menino sonolento havia derramado água ou confundido as ordens. E à noite, no lugar onde Nikolka e Pietka dormiam um ao lado do outro, uma vozinha baixa soava vibrante e se emocionava, e 4  Um centro de lazer, muito apreciado pelos donos e hóspedes das casas de campo de Tsaritsyno, cujo proprietário era Baltazar Dipman, e que além do belo jardim contava também com teatro, restaurante, sala de jogos, pista de dança e outras atrações. (N. da T.)

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contava sobre a datcha, e falava sobre algo que não acontecia, que ninguém jamais havia visto ou ouvido. No silêncio que se seguia, ouvia-se a respiração irregular no peito das crianças, e outra voz, rude e enérgica, que não era própria de uma criança dizia: — Que diabos! Que se explodam! — Quem são diabos? — Ora... Todos. Uma carroça estava passando por ali e, com seu poderoso estrondo, abafava as vozes dos garotos e aquele distante grito pesaroso que há muito se ouvia vindo da alameda: ali um homem bêbado espancava uma mulher tão embriagada quanto ele.

(1899)

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Presentinho

I —

E

ntão venha! – pela terceira vez pediu Senista1, e pela terceira vez Sazonka respondeu apressadamente:

— Venho, venho, pode ficar tranquilo. Como eu não viria? Claro que venho. E ficaram em silêncio novamente. Senista estava deitado de costas, coberto até o queixo com um cobertor cinza do hospital, e olhava persistentemente para Sazonka; ele queria que Sazonka ficasse mais um pouco no hospital e que, com seu olhar lançado em resposta, Sazonka confirmasse mais uma vez a promessa de não deixá-lo em sacrifício à solidão, à doença e ao medo. Sazonka queria ir embora, mas não sabia como fazer isso sem ofender o garoto: ficou fungando, quase deslizava de sua cadeira e novamente se sentava com firmeza e decisão, como se fosse para sempre. Ele teria ficado sentado mais um pouco se houvesse algo para falar; mas não havia nada para falar e pensamentos tolos vinham à sua cabeça e, por causa deles, ele tinha vontade de rir e sentia vergonha. Assim, o tempo todo ele tinha vontade de chamar Senista pelo nome e patronímico – Semión Ierofêievitch, 1  Apelido para o nome Semión. (N. da T.)

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o que era terrivelmente absurdo2: Senista era só um menino aprendiz, e Sazonka era um mestre respeitável e um beberrão, e apenas por hábito era chamado de Sazonka. E ainda não haviam se passado duas semanas desde o último tapa na cabeça que dera em Senista, e aquilo tinha sido muito ruim, mas sobre isso também era melhor não falar. Sazonka começou a deslizar resolutamente para fora da cadeira, mas sem ter levado a ação até a metade, com a mesma resolução, deslizou de volta à posição original e disse num tom que não se sabe se era de reprovação ou de consolo: — Assim são as coisas. Está doendo? Senista balançou a cabeça afirmativamente e respondeu baixinho: — Bom, é melhor você ir. Senão ele vai brigar. — É verdade – Sazonka se alegrou com a desculpa – bem que ele me ordenou: você, ele disse, seja rápido. Leve para ele e volte no mesmo minuto. E nada de vodka. Ora, diabo! Porém, junto com a consciência de que agora poderia ir embora a qualquer minuto, penetrou no coração de Sazonka um sentimento agudo de compaixão em relação ao Senista, com aquela cabeça grande. A compaixão era fruto de todo esse ambiente incomum: a fileira estreita de camas com pessoas pálidas e sombrias; o ar impregnado até a última partícula pelo cheiro dos remédios e pelas emanações de corpos humanos doentes; o sentimento da própria força e saúde. E, não mais evitando o olhar suplicante, Sazonka se inclinou na direção de Senista e repetiu com firmeza: — Você, Semión… Sênia3, não tenha medo. Eu venho. Assim que eu tiver terminado o trabalho eu venho. Acaso não sou gente? Por Deus! Também sei das coisas, querido! Você acredita em mim, não? E com um sorriso nos lábios escurecidos e ressecados, Senista respondeu: 2  Os russos, além de nome e sobrenome, têm o chamado “patronímico”, que remete ao primeiro nome do pai. Chamar pelo nome e patronímico é uma maneira respeitosa de se dirigir a alguém geralmente mais velho ou de posição superior. (N. da T.) 3  Variante carinhosa do nome Semión. (N. da T.)

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— Acredito. — Isso! – exultou Sazonka. Agora ele estava se sentindo leve e bem, e já podia falar sobre o tapa, dado fortuitamente há duas semanas. E, tocando o ombro de Senista com o dedo, ele cautelosamente insinuou: — E se alguém acertou você na cabeça, acaso foi por maldade? Por Deus! Essa sua cabeça é realmente tão apropriada para isso: é grande e raspada! Senista sorriu de novo e Sazonka se levantou da cadeira. Ele era muito alto. Seu cabelo, todo em pequenos cachos, penteado com um pente fino, formava um basto conjunto que parecia um chapéu jovial, e seus olhos cinzentos e um pouco inchados brilhavam e sorriam inconscientemente. — Bem, adeusinho! – ele disse, mas não se moveu do lugar. Ele disse “adeusinho” propositadamente, porque assim saía mais emocional, mas agora isso não lhe parecia suficiente. Era necessário fazer algo mais comovente e bom, algo que fizesse Senista se sentir alegre deitado no hospital e que facilitasse a sua própria partida. E ele permanecia em pé, marcando passo desajeitadamente, engraçado em seu embaraço infantil, quando Senista novamente o tirou da dificuldade. — Tchau! – disse ele com sua vozinha fina e infantil, por causa da qual o provocavam chamando de “harpinha” e, com absoluta simplicidade, como se fosse um adulto, ele tirou a mão de debaixo do cobertor e a estendeu para Sazonka, como a um igual. E Sazonka, sentindo que era exatamente isso o que lhe faltava para uma total paz de espírito, envolveu respeitosamente os dedos finos com sua mãozona robusta, segurou-os por um tempo e soltou-os com um suspiro. Havia algo triste e misterioso no toque dos dedinhos finos e quentes: como se Senista não fosse apenas igual a todas as pessoas do mundo, mas estivesse acima de todos e fosse mais livre do que todos, e isso acontecia porque Leonid Andrêiev

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agora ele pertencia a um senhor desconhecido, mas temível e poderoso. Agora ele podia ser chamado de Semión Ierofêievitch. — Então, venha mesmo – pela quarta vez pediu Senista, e este pedido afastou aquela coisa terrível e grandiosa que por um momento o envolveu com suas asas silenciosas. Ele se tornou um menino novamente, doente e sofredor, e Sazonka mais uma vez sentiu pena dele – muita pena. Quando Sazonka deixou o hospital, o cheiro de remédios e a voz suplicante o perseguiram por muito tempo ainda: — Venha mesmo! E, erguendo as mãos para os lados em sinal de perplexidade, Sazonka respondia: — Querido! Acaso não sou gente?

II A Páscoa estava se aproximando e havia tanto trabalho de alfaiataria que Sazonka conseguiu se embebedar apenas uma vez, no domingo, e mesmo assim não completamente. Por dias inteiros, reluzentes e longos dias primaveris, de cantar em cantar de galo, ele ficava sentado no tabulado junto à sua janela, com as pernas dobradas sob o corpo, à maneira turca, apertando os olhos e assoviando com desaprovação. De manhã, a janela ficava à sombra e o frio se infiltrava pelas fendas alargadas, mas ao meio-dia o sol penetrava formando uma estreita faixa amarela, na qual cintilavam pontos luminosos da poeira que pairava. E, meia hora depois, o peitoril inteiro com a tesoura e os retalhos de tecidos jogados sobre ele, já brilhava com uma luz ofuscante, e ficava tão calor que era necessário abrir a janela, como no verão. E pela janela, junto com a onda de ar fresco e intenso, impregnada com o cheiro de esterco apodrecendo, lama secando e brotos desabrochando, en40

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travam voando uma mosca perdida e ainda pouco vigorosa, e o barulho de múltiplos e variados sons da rua. Lá embaixo, junto ao montículo de terra que contornava as parede externas da casa, as galinhas cavoucavam e, lagarteando ao sol nos buraquinhos redondos, cacarejavam com deleite: no lado oposto, já seco, as crianças jogavam babki4, seus gritos sonoros e heterogêneos e as batidas das peças de ferro fundido nas peças de ossinhos soavam com entusiasmo e frescor. Havia muito pouco movimento naquela rua que se localizava na periferia da cidade de Oriol, e apenas, ocasionalmente, algum camponês que vivia nos arredores da cidade passava devagarinho em sua carroça; ela saltava nos sulcos profundos, ainda cheios de lama úmida, e todas as suas partes batiam com o baque surdo da madeira que lembrava o verão e a vastidão dos campos. Quando as costas de Sazonka começavam a doer e seus dedos endurecidos não conseguiam mais segurar a agulha, ele saía correndo para a rua, do jeito que estava, descalço e sem cinto, e com saltos gigantes voava sobre as poças e se juntava às crianças que estavam jogando. — Vamos lá, deixa eu bater – ele pedia, e uma dúzia de mãos sujas estendiam as peças para ele, e uma dezena de vozes imploravam: — Por mim! Sazonka, jogue no meu lugar! Sazonka escolhia uma peça mais pesada, arregaçava as mangas e, assumindo a postura de um atleta lançando um disco, media a distância com o olho semicerrado. Com um leve assobio, a placa voava de sua mão e, saltando em ondas, irrompia bem no meio da longa fileira de peças com um golpe deslizante, e as peças se espalhavam como uma chuva variegada, e as crianças respondiam ao golpe com gritos igualmente heterogêneos. Depois de algumas jogadas, Sazonka descansava e dizia às crianças: — E Senista ainda está no hospital, pessoal. Porém, as crianças, entretidas com seu jogo interessante, recebiam a notícia de maneira fria e indiferente. 4  Antigo jogo popular russo cujo objetivo era acertar peças feitas de ossinhos com peças de metal. (N. da T.)

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— Seria bom levar um presentinho para ele. Eu vou levar – continuava Sazonka. Houve muitas reações à palavra “presentinho”. Mishka Porossiónok puxava as calças com uma mão, a outra estava segurando as peças na barra da camisa, e aconselhava com seriedade: — Dê uma moeda de dez copeques5 a ele. Uma moeda de dez copeques era exatamente a quantia que o avô do próprio Mishka havia lhe prometido e ele não tinha qualquer noção de felicidade humana acima disso. Mas não havia tempo para ficar falando muito sobre o presentinho e, com os mesmos saltos gigantescos, Sazonka retornava e começava a trabalhar novamente. Seus olhos ficaram um pouco inchados, o rosto se tornou amarelo pálido, como o de um doente, e as sardas junto aos olhos e sobre o nariz pareciam particularmente frequentes e escuras. Somente os cabelos cuidadosamente penteados continuavam a formar o chapéu jovial, e quando o patrão, Gavriil Ivánovitch, olhava para eles, invariavelmente ele imaginava o aconchegante “Botequim Vermelho” e vodca, e ele cuspia e praguejava obstinadamente. A cabeça de Sazonka estava confusa e pesada, e durante horas a fio ele ficava revirando desajeitadamente um pensamento único: sobre botas novas ou uma sanfona. Mas, mais frequentemente pensava em Senista e no presentinho que levaria para ele. O ruído da máquina de costura era monótono e induzia ao sono, o patrão ralhava, e sempre a mesma imagem surgia no cérebro cansado de Sazonka: como ele iria visitar Senista e lhe daria um presentinho embrulhado em um lencinho de chita com debrum. Muitas vezes, quando ele se encontrava num estado de sonolência pesada, ele se esquecia de quem era Senista e não conseguia se lembrar de seu rosto; mas o lencinho de chita com debrum, que ainda precisaria ser comprado, apresentava-se viva e nitidamente, e parecia até que os nozinhos não estavam firmemente amarrados. E para todos, para o patrão, para a patroa, para os fregueses e as crianças, Sazonka dizia que iria ver o menino sem falta no 5  Um copeque designa a centésima parte de um rublo, moeda da Russia (N. da E.)

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primeiro dia da Páscoa. — Isso precisa ser feito – ele repetia – vou me pentear e imediatamente vou ter com ele. Aqui está seu presentinho, querido, pegue! Mas, ao dizer isso, ele via uma imagem diferente: as portas abertas do “Botequim Vermelho” e, nas profundezas escuras, um balcão inundado de vodca de má qualidade. E ele era tomado pela consciência amarga de sua fraqueza, contra a qual ele não conseguia lutar, e tinha vontade de gritar alto e insistentemente: “Eu vou visitar o Senista! Vou visitar o Senista!”. Porém, a cabeça estava repleta de uma oscilante bruma cinzenta e apenas o lencinho com debrum se destacava nela. Mas não havia alegria nele e sim uma severa repreensão e uma advertência ameaçadora.

III E no primeiro dia da Páscoa, assim como no segundo, Sazonka ficou embriagado, brigou, foi espancado e passou a noite na delegacia. E somente no quarto dia ele conseguiu sair para ver Senista. A rua, inundada pela luz do sol, estava salpicada de manchas vívidas das camisas de algodão vermelho e de alegres arreganhos de dentes brancos que roíam sementes de girassóis; sanfonas tocavam desordenadamente, peças de ferro fundido se chocavam contra as pecinhas de ossos, e um galo berrava alto, chamando para briga o galo do vizinho. Mas Sazonka não olhava ao redor. Seu rosto, com um olho roxo e um lábio partido, estava sombrio e concentrado, e até mesmo seu cabelo não se elevava mais como uma crina exuberante, mas se projetava confusamente em madeixas desgrenhadas e separadas. Ele estava envergonhado por ter se embriagado e não ter cumprido com sua palavra e era uma pena que não iria se apresentar diante de Senista em sua melhor forma – em uma camisa de lã vermelha e colete, mas arruinado pela bebedeira, asqueroso, com hálito que fedia a vodca. Mas quanto mais perto chegava do hospital, mais aliviado ele se sentia, e seus olhos começaram a focar com maior frequência no lado direito, onde o pequeno Leonid Andrêiev

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embrulho com o presentinho pendia cuidadosamente de sua mão. E agora, ele conseguia visualizar de forma muito viva e clara o rosto de Senista, com lábios ressecados e olhar suplicante. — Querido, como é possível? Ah, meu Deus! – dizia Sazonka e apressava bastante o passo. Eis o hospital – um prédio amarelo e imenso com caixilhos pretos nas janelas, fazendo com que elas parecessem olhos escuros e sombrios. Eis o longo corredor, o cheiro dos remédios e uma sensação indefinida de horror e melancolia. Eis a ala e o leito de Senista… Mas onde está o próprio Senista? — Você está procurando quem? – perguntou a enfermeira que tinha entrado em seguida. — Tinha um menino aqui. Semión. Semión Ierofêiev. Aqui, nesse lugar – Sazonka apontou com o dedo para o leito vazio. — É preciso se informar antes, não se pode ir entrando assim – disse a enfermeira rudemente – e não é Semión Ierofêi, mas Semión Pustochkin. — Ierofêiev é o patronímico. O pai se chamava Ierofêi, por isso ele é chamado de Ierofêitch6 – explicou Sazonka, empalidecendo lenta e terrivelmente. — Morreu o seu Ierofêitch. Mas aqui, nós não o conhecemos pelo patronímico. Pelo nosso registro é Semión Pustochkin. Estou dizendo que ele morreu. — Que coisa! – Sazonka manifestou surpresa de forma decorosa, tão pálido que as sardas se destacaram fortemente, como respingos de 6  Ierofêitch é uma maneira encurtada de se pronunciar Ierofeievitch, Encurtar os patronímicos desta maneira é tipico do linguajar popular. A confusão se faz pois Sazonka ainda pronuncia o nome de uma terceira maneira, "Ierofêiv", cujo sufixo "ev" indica sobrenome, e não patronímio. (N. da T.)

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tinta – mas quando foi isso? — Ontem, após as vésperas. — M-mas eu posso…? – pediu Sazonka gaguejando. — Por que não? – respondeu indiferente a enfermeira – pergunte onde é o necrotério, vão te mostrar. E você não se desespere! Ele estava muito fraco, já não pertencia a esse mundo. A língua de Sazonka pedia informações sobre o caminho de modo educado e minucioso, as pernas o levavam firmemente na direção indicada, mas os olhos não viam nada. E somente começaram a ver quando, imóveis e diretos, focaram o corpo sem vida de Senista. Ao mesmo tempo, ele sentiu o terrível frio que reinava no necrotério e tudo em volta ficou visível: as paredes cobertas de manchas de umidade, a janela encoberta por teias de aranha; não importava o quanto brilhasse o sol, através desta janela o céu parecia sempre cinzento e frio como no outono. Em algum lugar, de tempos em tempos, uma mosca zumbia, inquieta; gotas de água caíam de algum lugar; cai uma – ploc! – e, por muito tempo depois o som lamuriante e estridente perdurava no ar. Sazonka recuou um passo e disse em voz alta: — Adeusinho, Semión Ierofêitch. Depois se ajoelhou, tocou com a testa o chão úmido e se levantou. “Perdoe-me, Semión Ierofêitch”, ele pronunciou de maneira espaçada e em voz alta, e novamente caiu de joelhos, e pressionou a testa no chão por um longo tempo, até sua cabeça começar a ficar dormente. A mosca parou de zumbir e tudo ficou em silêncio, como somente acontece onde repousa um defunto. E em intervalos regulares as gotas pingavam numa bacia de latão, pingavam e choravam – silenciosamente, suavemente. Leonid Andrêiev

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IV Logo atrás do hospital terminava a cidade e começava o campo, e Sazonka pôs-se a caminhar em direção ao campo. Plano, sem ser perturbado por alguma árvore ou construção, ele alargava-se livremente, e a própria brisa parecia ser sua respiração livre e morna. Primeiro Sazonka caminhou por uma estrada que já havia secado, depois virou à esquerda e se dirigiu para o rio seguindo diretamente pelo alqueive e pelo restolho do ano anterior. Em alguns lugares a terra ainda estava um pouco úmida, e ali, depois de sua passagem, ficavam as pegadas de seus pés com depressões escuras dos saltos. Na margem, Sazonka se deitou numa pequena baixada coberta de grama, onde o ar estava imóvel e morno, como numa sauna a vapor, e fechou os olhos. Os raios de sol passavam pelas pálpebras fechadas em uma onda quente e vermelha; em meio ao céu azul, a grande altitude, ressoava o canto da cotovia e era agradável respirar e não pensar. A água do degelo já havia descido e o rio fluía em forma de um riacho estreito, tendo deixado enormes e porosos blocos de gelo, vestígios de sua fúria, bem longe, na margem oposta e mais baixa. Tocos de árvores estavam amontoados uns em cima dos outros e em forma de triângulos brancos se erguiam de encontro aos raios ígneos e impiedosos que, passo a passo, os afiavam e perfuravam. Sonolento, Sazonka afastou a mão e sentiu que havia algo duro, envolto em tecido debaixo dela. O presentinho. Levantando-se rapidamente, Sazonka gritou: — Meu Deus! O que é isso? Ele tinha se esquecido completamente do embrulho e o olhava com olhos assustados: ele tinha a impressão de que o embrulho havia vindo até ali e se deitado ao lado dele por vontade própria, e dava medo de tocá-lo. Sazonka olhava, olhava, olhava sem parar, enquanto um senti46

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mento de compaixão, turbulento e borbulhante e uma raiva frenética cresciam dentro dele. Ele olhava para lencinho de chita e via como no primeiro, no segundo e no terceiro dia da Páscoa, Senista esperava por ele e se virava para a porta, mas ele não chegava. Morreu sozinho, esquecido - como um cachorrinho jogado no lixo. Se ele tivesse ido apenas um dia antes, Senista, com os olhos esmaecidos, teria visto o presentinho, teria se alegrado com seu coração infantil, e sem dor. Sazonka chorava, encravando as mãos no cabelo exuberante e rolando no chão. Chorava e, erguendo as mãos para o céu, pedia desculpas miseravelmente: — Meu Deus! Acaso não sou gente? E caiu diretamente na terra com o lábio partido, e se acalmou em meio a um arroubo de mudo pesar. A grama nova tocava o rosto dele macia e suavemente; um cheiro denso e tranquilizante subia da terra úmida e havia nela uma força poderosa e um apelo apaixonado à vida. Como mãe eterna, a terra tomava nos braços o filho pecador e provia o seu coração sofredor de calor, amor e esperança. E ao longe, na cidade, os alegres sinos festivos badalavam em descompasso. (1901)

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I Ele bebia muito, perdeu o emprego e os amigos e se instalou em um porão junto com ladrões e prostitutas, vivendo da venda das últimas coisas que possuía. Ele tinha um corpo doente e pálido, desgastado pelo trabalho, consumido por sofrimentos e vodca, e a morte já o espreitava, como uma ave predadora, cinza, cega à luz do sol e de visão aguçada nas noites escuras. Durante o dia, ela se escondia em cantos escuros e, à noite, sentava-se em silêncio junto à cabeceira de sua cama e ficava sentada por um longo tempo, até o amanhecer, e era calma, paciente e persistente. Quando, nos primeiros vislumbres do dia, ele botava a cabeça pálida para fora do cobertor com os olhos de um animal acossado, o quarto já estava vazio – mas ele não acreditava nesse vazio enganador em que os outros acreditam. Ele perscrutava desconfiado os cantos, de maneira repentina e astuta olhava por cima do ombro e depois, apoiando-se nos cotovelos, atentamente e por muito tempo fitava a escuridão evanescente da noite que se ia. E então ele via algo que os outros nunca veem: o balanço de um enorme corpo cinzento, sem forma e assustador. Era transparente, envolvia tudo e dentro dele os objetos pareciam estar atrás de uma parede de vidro. Mas agora ele não tinha medo dele e, deixando pegadas frias, aquilo ia embora – até a noite seguinte. Leonid Andrêiev

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Por um curto período de tempo ele adormecia e sonhos terríveis e incomuns vinham a ele. Ele via um quarto branco, com paredes e piso brancos, iluminado por uma forte luz branca, e uma cobra preta, que saía de debaixo da porta com um leve farfalhar, que se parecia com uma risada. Pressionando a cabeça achatada no chão e serpenteando, ela deslizava rapidamente para fora, desaparecia em algum lugar e, novamente, seu focinho preto e achatado aparecia no vão debaixo da porta, e seu corpo se esticava como uma fita preta de novo e de novo. Certa vez ele viu algo engraçado em seu sonho e riu, mas o som saiu estranho, como um pranto reprimido, e foi assustador ouvi-lo: em algum lugar nas profundezas desconhecidas, não se sabe se sua alma ri ou chora, enquanto o corpo permanece imóvel, como o de um morto. Gradualmente, os sons do dia que nascia começavam a entrar em sua consciência: a fala abafada dos transeuntes, o rangido distante de uma porta, o ruído estrondoso da vassoura de um zelador varrendo a neve do parapeito da janela – o zunido indefinido da cidade grande que desperta. E então chegava o momento mais terrível para ele: a impiedosamente clara consciência de que um novo dia havia chegado e de que ele logo teria que se levantar para lutar pela vida, sem esperança de vitória. É preciso viver. Ele virava as costas para a luz, jogava o cobertor sobre a cabeça para que nem o menor raio de luz pudesse penetrar em seus olhos, encolhia-se em uma pequena bola, puxando as pernas até o queixo e assim ficava, imóvel, com medo de se mexer e de esticar as pernas. Uma verdadeira montanha de roupas o cobria, roupas com as quais ele se protegia do frio do porão, mas ele não sentia seu peso e seu corpo permanecia frio. E a cada som, a cada sinal de vida, ele se sentia enorme e exposto, encolhia-se ainda mais e gemia em silêncio – não com a voz, nem com o pensamento, porque agora ele tinha medo da própria voz e dos próprios pensamentos. Ele orava a alguém, para que o dia não viesse e ele pudesse ficar deitado para sempre debaixo da pilha de trapos, sem se mover ou pensar, e empregava toda a sua 50

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vontade para deter o dia que estava chegando e se convencer de que a noite ainda continuava. E, mais do que qualquer coisa no mundo, ele queria que alguém colocasse um revólver em sua nuca, ali onde se sente uma depressão, e disparasse. Mas o dia se desdobrava – amplo, irresistível, chamando imperiosamente para a vida, e o mundo inteiro começava a se mover, falar, trabalhar e pensar. No porão, a primeira a acordar era a locatária, a velha Matriona, que tinha um amante de vinte e cinco anos. Ela começava a andar ruidosamente pela cozinha, fazer barulho com baldes e mexer com alguma coisa bem à porta de Khijniakóv. Ele sentia ela se aproximar e congelava, decidido a não responder se ela o chamasse. Mas ela ficava em silêncio e ia para algum lugar e, umas duas horas depois, outros dois moradores acordavam: a mulher da vida, Duniasha, e o amante da velha, Abram Pietróvitch. Apesar de sua juventude, todos o chamavam tão respeitosamente porque ele era um ladrão corajoso e hábil e algo mais sobre o que só suspeitavam, mas ninguém se atrevia a falar. Acima de tudo, Khijniakóv temia o despertar deles, já que os dois tinham direito sobre ele, podiam entrar, sentar na cama, tocá-lo com as mãos e fazê-lo pensar e falar. Certa vez, bêbado, ele teve relações íntimas com Duniasha e prometeu se casar com ela, e embora ela tivesse rido e dado um tapinha no ombro dele, sinceramente o considerava apaixonado por ela e o protegia, mas ela mesma era burra, suja, cheirava mal e muitas vezes passava a noite na delegacia. E quanto a Abram Pietróvitch, há apenas três dias havia se embebedado junto com ele, trocado beijos e feito juramentos de eterna amizade. Quando a voz jovem e alta de Abram Pietróvitch ecoou e seus rápidos passos se aproximaram da porta, Khijniakóv congelou de medo e expectativa, gemeu em voz alta, incapaz de se conter e ficou ainda mais assustado. Um quadro em cores vivas de sua bebedeira se formou rapidamente diante dele: como eles tinham ficado sentados em uma taverna escura, iluminada por uma única lâmpada, entre pessoas escuras que, por algum motivo, sussurravam e eles também ficaram sussurrando. Abram Pietróvitch, pálido e exaltado, queixava-se da difícil vida de ladrão, não se sabe por que desnuLeonid Andrêiev

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dava o braço e deixava apalpar os ossos que tinham se soldado incorretamente, enquanto Khijniakóv lhe dava beijos1 e dizia: — Eu gosto de ladrões. Eles são corajosos – e sugeria que bebessem seguindo um rito especial de consolidação da amizade, apesar de que há muito tempo já se tratavam por “você”2. — E eu gosto de você, pois é educado e entende o nosso tipo de gente – respondia Abram Pietróvitch – veja aqui o estado do meu braço! E novamente, diante de seus olhos se estendia um braço branco, que parecia patético por causa de sua brancura, e numa súbita compreensão de algo que ele agora não lembrava e não entendia, ele beijava aquele braço, enquanto Abram Pietróvitch gritava com orgulho: — É verdade, irmão! Podemos morrer, mas não desistir! E depois, algo sujo, girando, uivos, assobios e luzes saltitantes. E naquele momento isso tinha sido divertido, mas agora – com a morte se escondendo nos cantos e o dia se aproximando por todos os lados com a necessidade de viver e agir, e lutar por algo, pedir algo – agora era doloroso e indescritivelmente horrível. — Nobre senhor, você está dormindo? – Abram Pietróvitch perguntou ironicamente atrás da porta, e, sem receber resposta, ele acrescentou – então dorme, deixa para lá. Muitos conhecidos vêm visitar Abram Pietróvitch, e no decorrer de todo o dia a porta range e vozes graves são ouvidas. A cada batida, Khijniakóv pensa que vieram vê-lo e buscá-lo, e ele se esconde mais profundamente e ouve por um longo tempo até perceber a quem pertence a voz. Ele espera, espera angustiadamente, com todo o corpo estremecendo, embora não haja ninguém no mundo que venha para vê-lo e buscá-lo. Um dia ele teve uma esposa, muito tempo atrás, e ela morreu. Há mais 1  Trocar beijos na face era um costume comum entre os homens russos, em especial antigamente. (N. da T.) 2  Os russos costumam se tratar respeitosamente por “vós”, tratando por “tu/você” apenas amigos próximos e familiares. (N. da T.)

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tempo ainda, ele teve irmãos e irmãs e, se retrocedermos no tempo mais ainda, teve algo vago e bonito que ele chamava de mãe. E todos eles morreram. Pode ser que alguém esteja vivo, mas tão perdido no mundo infinito que é como se tivesse morrido. E ele também vai morrer em breve – ele sabe disso. Quando ele se levantar da cama hoje, suas pernas vão tremer e ceder, e suas mãos farão movimentos inseguros e estranhos – e isso é a morte. Mas, até que ela venha, é preciso viver, e esta é uma tarefa tão formidável para uma pessoa que não tem dinheiro, saúde e vontade, que o desespero domina Khijniakóv. Ele joga o cobertor para longe, torce as mãos e lança ao nada gemidos tão longos, como se eles tivessem atravessado milhares de peitos carregados de sofrimento e por isso se tornaram tão cheios, preenchidos até a borda com um tormento insuportável. — Abre, diabo! – Duniasha grita por trás da porta e bate nela com o punho – ou vou quebrar a porta! Tremendo e oscilando, Khijniakóv foi até a porta, abriu-a e, rapidamente, quase caindo, voltou a se deitar na cama. Duniasha, já com os cabelos enrolados e empoada, sentou-se ao lado dele, pressionando-o contra a parede, cruzou as pernas e disse: — Eu tenho notícias para você. Ontem a Kátia entregou a alma a Deus. — Que Kátia? – perguntou Khijniakóv. E sua língua se movia pesada e hesitante, como se não fosse dele. — Olha só, já se esqueceu – Duniasha riu – aquela Kátia, que morava aqui. Como você já se esqueceu, se ela foi embora há apenas uma semana? — Morreu? — Pois é, morreu, como todos morrem. Duniasha pôs um pouco de saliva no dedo curto e limpou o pó dos cílios escassos. — De quê? Leonid Andrêiev

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— Daquilo de que todos morrem. Quem é que vai saber, de quê? Foi no café ontem que me contaram. “A Kátia morreu”, disseram. — E você gostava dela? — Claro que gostava! Que pergunta! Os olhos estúpidos de Duniasha olhavam para Khijniakóv com resignada indiferença e sua perna grossa balançava. Ela não sabia mais sobre o que falar e tentava olhar para o homem deitado de modo a lhe mostrar seu amor, e para isso ela estreitou levemente um olho e abaixou os cantos dos lábios grossos. O dia começou.

II Neste dia, um sábado, estava tão frio que os alunos do ginásio não foram à escola e as corridas de cavalos foram transferidas para outro dia, por causa do perigo dos cavalos se resfriarem. Quando Natália Vladímirovna saiu da maternidade, em um primeiro minuto ficou contente porque já era noite, não havia ninguém na avenida marginal e ninguém iria se deparar com ela, uma moça com um bebê de seis dias em seus braços. Parecia-lhe que, assim que atravessasse o limiar da porta, toda uma multidão a receberia com alarido e vaias, e nela estaria seu pai, babão, paralisado e como se totalmente desprovido de olhos, e também estudantes conhecidos, oficiais e senhoritas. E todos eles apontariam os dedos para ela e gritariam: ali está a moça que concluiu as seis séries do ginásio3, tinha amigos estudantes inteligentes e nobres, corava ao ouvir termos impróprios e há seis dias deu à luz uma criança em uma maternidade, ao lado de outras mulheres caídas. Mas a avenida marginal estava deserta. Um vento gelado corria livremente ao longo dela, levantando uma nuvem cinzenta de neve, transformada pelo frio em uma poeira cáustica, e cobria com ela todas as coisas vivas e 3  Equivalente ao Ensino Médio na Rússia imperial. Dependendo do lugar, tinha 6 ou 7 anos de duração. (N. da T.)

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mortas que encontrava no caminho. Com um leve assobio, ele rodopiava em volta das barras de metal da treliça, e elas brilharam como polidas, e pareciam tão frias e solitárias que era doloroso olhar para elas. E a moça se sentiu do mesmo modo fria, separada das pessoas e da vida. Vestia uma blusa curta, a mesma com a qual costumava patinar e que vestiu apressadamente, saindo de casa, já começando a sofrer com as contrações que antecedem o parto. E quando o vento a envolveu, enrolou o vestido fino em volta das pernas e esfriou sua cabeça, ela se aterrorizou, pensando que iria congelar, e o medo da multidão desapareceu, e o mundo se transformou em um infinito deserto de gelo, onde não há nem pessoas, nem luz, nem calor. Duas lágrimas quentes brotaram de seus olhos e esfriaram. Inclinando a cabeça, ela as limpou com o embrulho disforme, com o qual suas mãos estavam ocupadas, e começou a andar mais rapidamente. Agora ela não amava nem a si mesma, nem a criança, e a vida de ambos lhe parecia desnecessária, mas ela estava sendo persistentemente empurrada para frente por palavras que não pareciam estar em seu cérebro e sim caminhando à sua frente e chamando: “Rua Niemtchinovskaia, segunda casa depois da esquina. Rua Niemtchinovskaia, segunda casa depois da esquina.” Ela havia repetido essas palavras por seis dias, deitada na cama, amamentando a criança. Elas queriam dizer que era preciso ir à rua Niemtchinovskaia, onde mora sua irmã de leite, uma prostituta, porque unicamente lá, com ela, poderia encontrar abrigo para si e para o bebê. Um ano atrás, quando tudo ainda estava bem e ela ria e cantava constantemente, ela visitou Kátia, que havia adoecido, e a ajudou com dinheiro, e agora Kátia era a única pessoa diante da qual não se sentia envergonhada. “Rua Niemtchinovskaia, segunda casa depois da esquina. Rua Niemtchinovskaia, segunda casa depois da esquina.” Ela andava, e o vento girava furiosamente ao seu redor, e quando ela subiu na ponte, ele avançou selvagemente sobre seu peito e cravou as garras de ferro em seu rosto frio. Derrotado, ele caía ruidosamente da ponte, rodopiava ao longo da superfície lisa e nevada do rio e novamente se lançava Leonid Andrêiev

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para o alto, bloqueando o caminho com tremulantes asas frias. Natália Vladímirovna parou e se apoiou, sem forças, sobre o corrimão. Lá embaixo, um olho preto e fosco – um retalho de água que não chegou a congelar – olhou para ela, e seu olhar era misterioso e assustador. Mais à frente soavam e insistentemente chamavam as palavras: “Rua Niemtchinovskaia, segunda casa depois da esquina. Rua Niemtchinovskaia, segunda casa depois da esquina.” Khijniakóv, já vestido, deitou-se de novo na cama e se cobriu até os olhos com um casaco quente, a última coisa que lhe havia restado. Estava frio no quarto e nos cantos havia se formado gelo, mas ele estava respirando na gola de lã de carneiro, e por isso ele se sentia aquecido e confortável. Durante todo o dia ele vinha se enganando, dizendo que amanhã iria procurar trabalho e pedir algo às pessoas, mas, por enquanto, ele apenas não pensava, feliz, e só estremecia com o som mais alto de uma voz do outro lado da parede ou com a batida da porta enregelada. Estava assim calmamente deitado há muito tempo quando uma batida irregular, tímida, apressada e aguda, foi ouvida na porta da frente, como se estivessem batendo com as costas da mão. Seu quarto era o mais próximo da porta e, virando a cabeça, cauteloso, ele distinguia claramente o que estava acontecendo perto dela. Matriona veio, a porta se abriu e fechou atrás de alguém que havia entrado, e veio um silêncio expectante. — Quem você está procurando? – a pergunta hostil de Matriona soou rouca. E uma voz desconhecida, baixa e trêmula, respondeu insegura: — Estou procurando a Kátia Nietcháieva. Kátia Nietcháieva mora aqui? — Morava. E o que você quer com ela? — Preciso muito falar com ela. Ela não está? – o medo soou em sua voz. — A Kátia morreu. Morreu, estou dizendo. No hospital. Mais uma vez, um longo silêncio, tão longo que Khijniakóv sentiu uma dor no pescoço, que não ousava virar enquanto as pessoas permaneciam em 56

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silêncio. E então, a voz desconhecida falou baixinho, sem expressão: — Adeus. Mas, aparentemente, ela não saiu, porque um minuto depois Matriona perguntou: — O que você tem aí? Trouxe alguma coisa para a Kátia? Algo desabou no chão, batendo os joelhos, e a voz desconhecida falou rapidamente, esforçando-se para conter o pranto: — Pegue! Pegue, pelo amor de Deus. Pegue! E eu… eu já vou. — Mas o que é isso? Então, seguiu-se novamente um longo silêncio e um choro baixinho, intermitente e desesperançado. Havia nele um cansaço mortal e um negro e desalentado desespero. Como se a mão cansada de alguém deslizasse sem forças por uma corda bem esticada, e essa corda fosse a última de um instrumento querido, e quando ela se rompesse, o som terno e triste desapareceria para sempre. — Ora, você quase o sufocou! – Matriona exclamou de maneira zangada e rude – também, vai tendo filho assim, acha que é simples. Onde já se viu? Quem é que enrola um bebê desse jeito?! Venha comigo. Chega, chega, está tudo bem, venha, estou dizendo. Onde já se viu? O silêncio voltou a reinar junto à porta. Khijniakóv escutou um pouco mais e se deitou, feliz por não ser alguém que tenha vindo vê-lo, nem buscá-lo, e sem tentar esclarecer a parte que não tinha entendido daquele acontecimento, ele já estava começando a sentir a noite se aproximando e queria que alguém mais forte acendesse a lâmpada. A paz estava indo embora e, rangendo os dentes, ele tentava reter o pensamento; no passado havia sujeira, queda e horror – e o mesmo horror estava no futuro. Ele já estava começando a se encolher gradativamente, a esconder as pernas e os braços quando Duniasha entrou, já vestida para sair com uma blusa vermelha e Leonid Andrêiev

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levemente embriagada. Ela se sentou espaçosamente na cama e ergueu os braços curtos: — Oh, meu Deus! – e ela balançou a cabeça e riu – trouxeram um bebê. Tão pequeno, mas berra como um chefe de polícia. Por Deus, como um chefe de polícia! Ela soltou um palavrão alegremente e, toda coquete, deu um peteleco no nariz de Khijniakóv. — Vamos lá ver. Por Deus, por que não? Vamos dar uma olhada e pronto. Matriona quer dar banho nele, está aquecendo o samovar. Abram Pietróvitch está avivando o fogo com a bota – que diversão! Enquanto isso, o bebê fica berrando: buá, buá… Duniasha fez uma careta que, de acordo com sua suposição, imitava a expressão da criança e guinchou novamente: — Buá! Buá! Um verdadeiro chefe de polícia. Por Deus! Vamos. Não quer? Ah, deixa para lá! Morra aqui então, seu imprestável. E, dançando, ela saiu. Meia hora depois, oscilando nas pernas fracas e se segurando com os dedos no batente, Khijniakóv abriu hesitantemente a porta da cozinha. — Fecha, vai deixar o frio entrar! – gritou Abram Pietróvitch. Khijniakóv fechou rapidamente a porta atrás de si e olhou em volta com ares de culpa, mas ninguém prestava atenção nele e ele se acalmou. Na cozinha estava quente por causa do fogão, do samovar e das pessoas, e o vapor subia em grossas nuvens e se arrastava pelas paredes frias. Matriona, zangada e severa, banhava a criança em uma tina e com a mão nodosa ia jogando a água nela, dizendo: — Gugu dadá, querido! Gugu dadá, querido! Vamos ficar limpinhos, vamos ficar branquinhos. 58

No porão


Talvez pelo fato de o ambiente na cozinha estar claro e alegre, ou porque a água estava morna e agradável, a criança havia ficado quieta e franzia o rostinho vermelho, como se estivesse prestes a espirrar. Por cima do ombro de Matriona, Duniasha espiava a tina e, escolhendo um momento, rapidamente, espirrou água na criança usando três dedos. — Saia daqui! – gritou a velha ameaçadoramente – para que está se metendo? Sei muito bem o que fazer sem você, tive meus próprios filhos. — Não atrapalhe. É verdade – confirmou Abram Pietróvitch – criança é coisa delicada, tem que ser alguém que saiba como lidar. Ele estava sentado na mesa e olhava para o pequeno corpinho rosa com prazer condescendente. A criança mexeu os dedinhos e Duniasha balançou a cabeça numa alegria frenética e começou a rir. — Um verdadeiro chefe de polícia, por Deus! — E você já viu o chefe de polícia numa tina? – perguntou Abram Pietróvitch. Todos riram e Khijniakóv sorriu, mas imediatamente arrancou assustado o sorriso do rosto e olhou para a mãe. Ela estava sentada no banco com um ar cansado, a cabeça jogada para trás, e seus olhos negros, que se tornaram enormes devido à doença e ao sofrimento, cintilavam com um brilho calmo, e em seus lábios pálidos perambulava o sorriso orgulhoso de mãe. E, vendo isso, Khijniakóv começou a rir, com um riso solitário e tardio: — Hi-hi-hi! E também olhou em volta orgulhosamente. Matriona tirou a criança da tina e o envolveu em um lençol. Ele começou a chorar bem alto, mas logo se calou, e Matriona, afastando o lençol, sorriu timidamente e disse: — Que corpinho, puro veludo. — Deixa eu tocar – pediu Duniasha. Leonid Andrêiev

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— E o que mais você quer? Inesperadamente, Duniasha começou a tremer com o corpo todo e, batendo com os pés no chão, sufocando em ganância, louca por causa do desejo que a dominou, gritou numa voz alta que ninguém nunca tinha ouvido dela: — Deixa! Deixa! Deixa! — Deixa ela pegar! – pediu assustada Natália Vladímirovna. Do mesmo jeito inesperado, Duniasha se acalmou e, passando a sorrir, tocou delicadamente com dois dedos o ombrinho da criança e, atrás dela, Abram Pietróvitch, estreitando os olhos com condescendência, também estendeu a mão para aquele ombrinho rosado. — É verdade. Criança é coisa delicada – disse ele defensivamente. Khijniakóv foi quem tocou por último. Por um instante, seus dedos sentiram o contato com algo vivo, fofo como veludo e tão tenro e fraco que seus dedos pareciam ter se tornado estranhos e tenros também. E assim, com os pescoços esticados, inconscientemente iluminados por um sorriso de estranha felicidade, eles permaneciam em pé, um ladrão, uma prostituta e uma pessoa solitária e perdida, enquanto essa pequena vida, fraca como uma luzinha na estepe, chamava-os vagamente para algum lugar e prometia alguma coisa bonita, iluminada e imortal. E a mãe feliz olhava orgulhosamente para eles, mas lá em cima, partindo do teto baixo, erguia-se a casa numa massa enorme e pesada de pedras e em seus cômodos altos perambulavam pessoas ricas e entediadas. A noite chegou. Ela chegou negra, maldosa, como todas as noites e, em forma de escuridão, se espalhou por campos de neve distantes, e os galhos de árvores solitários, aqueles que são primeiros a receber o sol nascente, congelaram de medo. As pessoas lutavam contra ela com a luz fraca das lamparinas, mas, forte e zangada, ela cingia as luzes solitárias formando um círculo sem saída e enchia os corações humanos de trevas. E em muitos corações ela apagou as fracas faíscas que se extinguiam. 60

No porão


Khijniakóv não estava dormindo. Tendo se enrodilhado em uma bola minúscula, ele se escondia do frio e da noite sob uma pilha macia de trapos e chorava – sem esforço, sem dor, sem soluços, como choram aqueles que têm um coração puro e sem pecado, como o das crianças. Ele sentia pena de si mesmo, enrodilhado, e lhe parecia que ele tinha compaixão de todas as pessoas e de toda a vida humana, e nesse sentimento estava contida uma alegria misteriosa e profunda. Ele tinha visto uma criança que nascera, e lhe parecia que ele próprio havia nascido para uma nova vida, e que viveria por muito tempo e sua vida seria bela. Ele amava e se compadecia dessa nova vida, e isso lhe dava tanta alegria que ele riu, sacudiu a pilha de trapos e perguntou: — Por que estou chorando? E não achou o porquê, e respondeu: — Bem… E havia um significado tão profundo nessa palavra curta, que uma nova onda de lágrimas quentes agitou o coração partido de um homem cuja vida era tão triste e solitária. E junto à cabeceira da cama já estava se sentando em silêncio a morte predadora e esperava – calma, paciente e persistente.

(1901)

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ós não conseguíamos dormir. Entramos no vagão com o desejo de descansar. Na escuridão fantasmagórica dele, ao som do tagarelar das rodas, sob o balanço ritmado dos leitos macios, quando o pen-

samento sonolento como que flutua sobre uma imensidão ondulada… Mas aconteceu de entabularmos uma conversa sobre alguma coisa, a respeito de algumas pessoas e cantos muito distantes, e passamos metade da noite conversando. Eu não sei por que, mas durante uma viagem todas as pessoas se transformam em filósofos: afastadas do habitual, é como se elas tivessem acordado e ficassem olhando para frente e para trás com surpresa, e se lembrassem de coisas de um passado muito distante, e sonhassem com um futuro igualmente distante. Se o pensamento humano pudesse se transformar em uma imagem, então, todo trem que corre impetuosamente seria envolvido por um enxame de sombras e não seria possível ouvir o seu ruído estrondoso por trás de milhares de suas vozes arrastadas e surdas. Para as pessoas no vagão, não existe o presente, o maldito presente, que mantém o pensamento num torno e as mãos em movimento – talvez por isso, as pessoas no vagão se transformem em filósofos. E ficamos falando sobre as pessoas, falamos também sobre a vida, sobre a sua beleza e riqueza, a respeito de suas profundezas insondáveis, sobre as quais pessoas-estilhaços flutuam descuidada e cegamente. Elas só conhecem a superfície e são leves, leves demais, nunca descem até o fundo. Às vezes, uma onda terrena as cobre e por um momento a vida lhes revela suas misLeonid Andrêiev

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teriosas entranhas e as deslumbra e assusta – e depois, novamente a superfície, novamente a tenda azul, que para seu aconchego eles chamam de céu, novamente o balanço sonolento e cego, e assim por diante até o fim, até que apodreçam. Conversamos assim por um longo tempo – no crepúsculo fantasmagórico do vagão, sob o tinido abafado das rodas, sem vermos um ao outro, mas sentindo como crescia a proximidade e uma terna afeição. Afastadas do habitual, as pessoas no vagão se tornam sensíveis com seus corações eternamente solitários e bebem avidamente do rio efêmero e silencioso – como as flores bebem a água da chuva após uma seca. — Precisamos dormir – disse ele. — Está na hora – eu respondi. Sorrindo, fechamos os olhos, mas, meia hora depois, tendo saído da cabine, ficamos parados no corredor, olhando pela janela. Provavelmente, em algum lugar atrás das nuvens estava a lua, e a noite era clara, e a bruma nevada da terra se fundia imperceptivelmente com a névoa lunar do céu noturno de inverno. Sob a grossa camada de neve, montes e irregularidades se suavizavam, mas viajávamos frequentemente por esse caminho e tudo que passava por nós parecia conhecido e já visto. — Mas isso não é verdade – eu disse – nós não vemos nem conhecemos nada. Ele me entendeu e, sem se afastar da janela, apenas aproximando mais a sua cabeça da minha, respondeu: — Mas parece que conhecemos. Os olhos enganam. — Os olhos enganam. Quando eu passo por esse caminho, fico olhando constantemente pela janela, meu olhar abrange tudo, até o horizonte. E isso me parece muito, mas é apenas até o horizonte. Quando eu passar várias vezes, certas casas e estações, e algumas pessoas, e a floresta, e até árvores isoladas permanecerão em minha memória. E me parece que isso é tudo – mas, são apenas certas casas, alguns rostos e árvores isoladas. Eu conheço uma bétula aqui. Ela fica na orla da floresta, isolada das outras, e sua aparência 64

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me dá a impressão de que ela correu para fora da floresta e está observando o campo avidamente. Mas se ela for cortada, não encontrarei o lugar onde ela viveu e, provavelmente, nem me lembrarei dela. — Eu conheço essa bétula. Ela parece estar gritando. — Sim. Mas você se lembra de onde ela fica? — Em algum lugar por aqui. Não sei. Não lembro. E já faz tempo que não a vejo. — Parece que a cortaram. Uma floresta invernal russa passou por nós e soprou frio, noite e solidão sobre nós. E novamente a bruma nevada e o mesmo céu enevoado. E como frequentemente viajávamos por esse caminho, o próprio céu parecia familiar e há muito conhecido, e não se podia acreditar que aquele era um céu novo, que nunca havíamos visto. Uma luzinha verde e alguns telhados cobertos de neve passaram rapidamente por nós e o trem parou. — Estação Bielievo – disse o funcionário do trem. Como o trem sempre ficava parado aqui por cinco minutos, nós conhecíamos bem esta estação, mas por algum motivo não dissemos nada sobre isso. — Bielievo? – repetiu alguém atrás de nós. Aqui tem salgados gostosos. Eu sei. E bateu a porta. Nosso vagão parou bem em frente ao telégrafo e, através da ampla janela era possível ver as pessoas que trabalhavam. Elas não sabiam que estavam sendo observadas e faziam o seu trabalho com indiferença, e era um pouco parecido com um palco com a cortina levantada. Um telegrafista, jovem, de bigode, estava de frente para nós e até encontrou meus olhos uma vez, mas não havia expressão em seu olhar. O vidro da janela grande refletia levemente as luzes da estação e, por isso, apenas a parte iluminada de seu rosto era nitidamente visível, enquanto aquilo que estava na sombra desaparecia, como se não existisse absolutamente. — Olhe melhor para o telegrafista – disse-me o meu companheiro. Eu estava olhando. O telegrafista continuava trabalhando com a mesma Leonid Andrêiev

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indiferença, depois disse algo voltado para um lado, acendeu um cigarro e se levantou. Ele se afastou um passo e imediatamente desapareceu no vidro brilhante. E apareceu de novo e voltou a trabalhar. O cigarro entre os dentes o atrapalhava visivelmente. Ele franzia a metade iluminada do rosto e, por fim, colocou o cigarro na borda da mesa. E isso é tudo. O trem se moveu e a estação passou por nós em ordem inversa; lanternas, alguns telhados cobertos de neve, a luz verde – e azul: o campo, novamente a bruma nevada e o mesmo céu enevoado. É assim que os fantasmas devem aparecer: entram por uma porta e saem pela outra, e a sala continua a mesma – a mesma mesa, as mesmas cadeiras, o mesmo piscar silencioso da vela. E somente nos olhos permanecerá uma imagem pálida, que parece derreter, e o coração, aos sobressaltos, dirá alguma coisa. — E essa é a Bielievo que conhecemos – disse o companheiro. — E se andarmos para trás, ela aparecerá de novo. — E desaparecerá de novo! — E se ficarmos nela?! — Por muito tempo? – ele perguntou baixo – por muito tempo? – repetiu, sorrindo apenas em pensamento. E mais uma vez ficamos em pé, recostados, olhando pelas janelas, e parecia que ele corria atrás delas pelo campo nevado – ele, o telegrafista indiferente por trás do vidro. Mas isso era o que parecia. Ele estava em nossos olhos – apenas em nossos olhos. — Ele tem um bom rosto – eu disse, lembrando-me. — Ele é jovem. Provavelmente, tem uns vinte e cinco anos. E trabalha no telégrafo há seis ou sete anos, naquele telégrafo: sente-se algo familiar e que vem de longa data nos movimentos de suas mãos, na expressão de seu rosto, naquele cigarro, colocado na borda da mesa. — Ele não nos viu. Onde ele estava era mais iluminado e ele não nos viu. — Provavelmente, ele viu apenas a silhueta do vagão. Ele vê apenas os vagões e suas silhuetas. Todos os dias ele está de plantão no telégrafo e deze66

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nas, centenas de vagões passam por ele. Muita gente viaja por esse caminho, e todos os dias milhares de pessoas passam por ele em ambos os sentidos. Talvez, a metade da Rússia já tenha passado – e tudo só perto dele. E ele não sabe nada sobre aqueles que passaram. — Liév Tolstói viaja frequentemente por esse caminho. — Liév Tolstói viaja frequentemente por esse caminho. Por ele passam ministros, príncipes, grandes pintores, escritores e cantores. E milhares de olhos já haviam pousado indiferentemente sobre ele, e ele continuava sentado da mesma forma indiferente e trabalhava. Quem sabe, talvez Tolstói estivesse olhando para ele, e naquele momento ele estivesse conversando com alguém, fumando e tragando avidamente o tabaco ruim. Ele vê apenas os vagões e suas silhuetas. Eis que nos caminhos vazios os vagões surgem da escuridão ou da luz do sol, e param, e ficam parados de um jeito, como se fosse para o resto da vida. Mas, daqui a cinco minutos eles partem, e os caminhos silenciosos estão vazios novamente, como se ninguém nunca tivesse estado ali. No verão, rostos surgem e desaparecem rapidamente nas janelas, mas, no inverno, os vagões ficam fechados, recobertos pela geada e tão ermos como se não houvesse uma pessoa viva neles. Passam silenciosamente, e silenciosamente sem se abrir, vão embora – e ele fica sentado, trabalhando e não sabe nada sobre aqueles que passaram. Ele está trabalhando – isso quer dizer que ele transmite palavras. Ainda que estas palavras para ele sejam claras como o dia, elas estão trancadas como os vagões, porque ele não conhece nem aqueles que falam, nem aqueles que escutam. E as palavras, assim como os vagões, passam por ele – a alegria de alguém e a dor de alguém, os pensamentos, as considerações, as ordens de alguém. Ele apenas transmite. E ele tem ouvidos e olhos, mas é surdo e cego, como se nunca tivesse tido audição ou visão. — Ele tem sua própria vida. — Ele mora em Bielievo na casa de alguma pequeno-burguesa, em uma casa de três janelas sobre um barranco. Se apenas por um momento você se desviar do caminho calcado, irá afundar na neve até a cabeça. As únicas manLeonid Andrêiev

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chas escuras diante dos olhos são uma pilha de cinzas e lavadura congelada e um tronco nu e nodoso de um salgueiro. E seu quarto pequeno e quente tem um leito junto ao fogão1, e nesse leito ele se senta nos feriados, pela manhã, e fica tocando violão. Ele adora camisas russas bordadas com as quais é presenteado no seu onomástico2, sonha com um novo casaco do uniforme e botas de verniz. Ele não bebe ainda, é jovem e sonhador e, por isso, seu quarto está limpo, as roupas estão cobertas com um lençol e há cortinas de musselina na janela. E quando ele lê algum velho livro rasgado, no qual faltam páginas, sem suspeitar que este livro também foi escrito por uma pessoa, acha que o livro existe por conta própria, como um salgueiro nodoso para o qual ele fica olhando, mas que, da mesma forma que o livro, suscita nele tão pouca reflexão. Quando volta do trabalho à noite, tem muito medo dos cachorros e ao chegar em casa se despe rapidamente e, tendo olhado para as meias gastas nos calcanhares, adormece com pensamentos sobre meias e telégrafos. Tudo o que acontece no mundo de grande, espetacular e deslumbrante, passa ao largo dele, e ele não suspeita, nem imagina que o autor daquele livro rasgado poderia ter sido um passageiro que, ontem, talvez tivesse passado por ele. Sua rica alma humana é como um violino Stradivarius dado a um músico de rua: polcas de má qualidade são tocadas nele, e ele nunca conhecerá a si mesmo, a sua real voz, pois quem poderia extraí-la, o artista-vida, o pintor-vida, o grande músico-vida, passa em algum lugar ao largo dele e ele jamais saberá de sua existência. E, deixando passar por ele os vagões ermos, fechados, ele passa ao largo de si mesmo, igualmente fechado, igualmente ermo e transitório – assim falou meu amigo e ficou pensativo, e sua bochecha, que estava junto da minha, ficou fria. — Mas pode ser que ele não seja assim, absolutamente, e você só inventou tudo isso. — Pode ser. Já que nós só passamos por ele. O vagão oscilava levemente e os campos de neve passavam flutuando. Eles 1  O leito localizado próximo ao fogão à lenha é um elemento típico dos antigos casebres russos. (N. da T.) 2  Na Rússia, além do aniversário, é costume cada pessoa celebrar um dia associado ao seu nome próprio, dado em homenagem a algum santo. É o "Dia do Nome", "Onomástico", dia do santo cujo nome a pessoa leva. (N. da T.)

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pareciam conhecidos e enganavam: eu nunca tinha visto esses campos! Ele estava em pé ao meu lado e sua bochecha encostava na minha bochecha, e ele me enganava com esse toque: eu não o conheço! Amanhã nos separaremos, e sua imagem permanecerá apenas nos meus olhos, e outras pessoas passarão por mim e eu passarei por outras pessoas. Talvez, passarei ao largo de mim mesmo.

(1965 [1901])

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ra o início da primavera quando cheguei à datcha1, e os caminhos ainda estavam cobertos pelas folhas escuras do ano anterior. Não havia ninguém comigo; fiquei perambulando sozinho por entre as datchas vazias que refletiam o sol de abril com os vidros de suas janelas, subia nos amplos e claros terraços e ficava imaginando quem iria morar ali, embaixo das tendas verdes de bétulas e carvalhos. E quando fechava os olhos, tinha a impressão de ouvir passos rápidos e alegres, uma canção jovem e um sonoro riso feminino. E com frequência eu ia à estação para ver os trens de passageiros chegando. Não esperava por ninguém e não havia ninguém que pudesse vir me visitar; mas eu amo esses gigantes de ferro, quando eles passam correndo, balançando seus ombros e bamboleando nos trilhos por causa do peso colossal e da força, e levam para algum lugar pessoas que não conheço, mas que me são próximas. Eles parecem vivos e extraordinários para mim; em sua velocidade, sinto a vastidão da Terra e a força do homem e, quando eles gritam imperativa e livremente, penso: na América, na Ásia e na ígnea África eles também gritam assim. A estação era pequena, com dois ramais curtos, e quando o trem de passageiros partia, ficava silenciosa e deserta; a floresta e o sol radiante se apoderavam da plataforma baixinha e dos ramais desertos e os inundavam 1  Casa de campo típica russa. (N. da T.)

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de silêncio e luz. No ramal, galinhas perambulavam sob um vagão vazio adormecido, cavoucando junto às rodas de ferro fundido, e olhando para seu calmo e meticuloso labor era difícil de acreditar que existe uma tal América e uma Ásia e uma ígnea África… Em uma semana eu já reconhecia todos os habitantes daquele lugar e cumprimentava, como conhecidos, os vigias de blusões azuis e os sinaleiros calados, com rostos sombrios e cornetas de cobre que brilhavam ao sol. E todos os dias eu via um guarda na estação. Era um rapaz saudável e forte, como todos eles são, de costas largas, envolvidas por uma farda justa, azul-marinho, com mãos enormes e um rosto jovem, no qual a ingenuidade de olhos azuis da aldeia ainda permeava os ares de severidade própria de uma autoridade. No início, com um jeito desconfiado e sombrio, ele me revistava com os olhos, assumia uma expressão de severidade inabordável, sem espaço para indulgências e, quando passava por mim, suas esporas ressoavam de forma especialmente ríspida e eloquente – mas ele logo se acostumou comigo, como havia se acostumado aos pilares que sustentavam o teto da plataforma, aos ramais desertos e ao vagão abandonado, sob o qual as galinhas saracoteavam. Nesses cantinhos tranquilos o hábito se cria rapidamente. E quando ele parou de me notar, vi que aquele homem se sentia entediado – entediado como ninguém mais no mundo. Entediado com a estação enfadonha, entediado com a ausência de pensamentos, entediado com a ociosidade que devorava as forças, entediado com a excepcionalidade de sua posição, fixada em algum lugar no espaço entre as autoridades da estação, que lhe eram inacessíveis, e os funcionários que ocupavam cargos inferiores e que, portanto, não eram dignos dele. Sua alma vivia dos distúrbios da ordem, mas, nessa minúscula estação, ninguém perturbava a ordem e, toda vez que um trem de passageiros partia sem quaisquer aventuras, o rosto do policial expressava a frustração e o aborrecimento de uma pessoa que foi enganada. Indeciso, ele permanecia em pé no mesmo lugar por alguns minutos e, depois, caminhava a passos frouxos para a outra extremidade da plataforma, sem ter um objetivo definido. Durante o percurso, parava por um segundo diante de uma mulher que esperava o trem; mas a mulher era uma mulher como outra qualquer e, franzindo a testa, o guarda seguia adiante. Depois, ele se sentava lenta e pesadamente, como se tivesse passado do ponto, e percebia-se como seus braços inertes eram moles e frouxos sob o tecido do uniforme, como todo o seu corpo forte, projetado para o traba72

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lho, afligia-se no torturante langor de ociosidade. Nós nos entediamos apenas em nossas mentes, mas ele se entediava por inteiro, de cima a baixo: seu quepe estava entediado, deslocado para um lado com uma ousadia despropositada, as esporas estavam entediadas e tilintavam desarmonicamente, sem sincronismo, como surdas. Então ele começava a bocejar. E como ele bocejava! Sua boca entortava, rasgando-se de uma orelha à outra, alargava-se, crescia, tomava todo o seu rosto; parecia que em apenas um segundo, por esse orifício crescente seria possível visualizar suas entranhas atulhadas de mingau e sopa de repolho gordurosa. Como ele bocejava! Eu ia embora apressadamente, mas por um longo tempo ainda os infames bocejos contraíam minhas maçãs do rosto, e nos olhos lacrimejantes as árvores se partiam e pulavam. Certa vez, retiraram um passageiro sem bilhete de um trem postal e isso foi uma grande festa para o guarda entediado. Ele se aprumou, as esporas tilintaram com precisão e ferocidade, seu rosto se tornou concentrado e maligno – mas a felicidade durou pouco. O passageiro pagou pela passagem e voltou apressadamente para o vagão, xingando, e lá atrás, as rodelas de metal tilintavam de maneira desnorteada e lastimosa, e sobre elas oscilava debilmente um corpo extenuado. E, às vezes, quando o guarda começava a bocejar, eu começava a temer por alguém. Já havia alguns dias que operários trabalhavam perto da estação, limpando o lugar, e, quando eu voltei da cidade, tendo ficado lá dois dias, os pedreiros assentavam a terceira fileira de tijolos: um prédio novo, de pedra, estava sendo erguido para a estação. Havia muitos pedreiros, eles trabalhavam rápido e habilmente, e era divertido e estranho ver como uma parede reta e esguia surgia da terra. Depois de cobrirem uma fileira com cimento, eles assentavam a próxima, ajustando os tijolos de acordo com o tamanho, assentando-os ora com o lado largo, ora com o lado estreito, aparando os cantos, experimentando. Eles refletiam, e o curso de seus pensamentos era claro, sua tarefa também era clara, e isso tornava seu trabalho interessante e agradável aos olhos. Eu os observava com prazer quando uma voz cheia de autoridade ressoou junto de mim: Leonid Andrêiev

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— Você, escute aqui! Como você se chama? Está colocando o errado! Quem falava era o guarda. Inclinando-se sobre a grade de metal que separava a plataforma de asfalto dos trabalhadores, ele apontava com o dedo para um tijolo e insistia: — Estou falando com você! Barbudo! Coloque aquele. Está vendo? É uma metade. O pedreiro, de barba esbranquiçada em alguns lugares por causa da cal, virou-se em silêncio – o rosto do guarda se mantinha severo e imponente – em silêncio seguiu com o olhar para onde apontava o dedo dele, pegou o tijolo, experimentou-o e, em silêncio, colocou-o de volta. O guarda olhou severamente para mim e se afastou, mas a tentação de um trabalho interessante foi mais forte que o decoro: depois de ter dado duas voltas pela plataforma, ele parou mais uma vez diante dos trabalhadores com uma pose um tanto negligente e desdenhosa. Mas não havia tédio em seu rosto. Eu fui até a floresta e, quando estava retornando pela estação, era uma hora da tarde – os trabalhadores descansavam e o local estava deserto, como sempre. Mas alguém se agitava junto à parede que estava sendo construída, e esse alguém era o guarda. Ele pegava os tijolos e completava a quinta fileira que estava inacabada. Eu só conseguia ver suas costas largas apertadas no uniforme, mas nelas era possível sentir uma tensa reflexão e indecisão. Evidentemente, o trabalho era mais difícil do que ele havia imaginado; o olho que não estava acostumado a esse tipo de serviço também o enganava, e ele se inclinava para trás, balançava a cabeça e se abaixava para pegar outro tijolo, fazendo com que o cassetete batesse no chão. Uma vez ele levantou o dedo – gesto clássico de uma pessoa que encontrou a solução para um problema, provavelmente utilizado anteriormente por Arquimedes2 – e suas costas se endireitaram com mais autoconfiança e segurança. Mas, imediatamente, se encolheram de novo com a consciência da falta de 2  Arquimedes de Siracusa (c. 287 – c. 212 a.C.), grego, foi matemático, físico, engenheiro, inventor e astrônomo. É considerado um dos maiores cientistas e o maior matemático da antiguidade clássica e um dos maiores matemáticos de todos os tempos. A Arquimedes é atribuído o suposto fato pitoresco de que, tendo descoberto a solução de um grande problema enquanto tomava banho em uma banheira, saiu nu pelas ruas da sua cidade gritando Eureca! Eureca! (em grego, Encontrei!). Talvez por analogia, ou por graça, Andrêiev tenha atribuído o gesto com o dedo a este momento de Arquimedes. (N. da E.)

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decoro do trabalho assumido. Em toda a sua figura corpulenta havia algo dissimulado, como nas crianças, quando têm medo de serem apanhadas. Eu risquei um fósforo inadvertidamente, acendendo um cigarro, e o policial se virou assustado. Por um segundo, ele ficou olhando para mim indeciso e, de repente, seu rosto jovem se iluminou com um sorriso um pouco suplicante, crédulo e terno. Mas logo no momento seguinte se tornou inacessível e severo, e a mão se moveu em direção ao bigode ralo, mas nela, nessa mesma mão, ainda estava o malfadado tijolo. E eu vi o quão dolorosamente envergonhado ele estava por causa do tijolo e do involuntário sorriso traiçoeiro. Provavelmente, ele não sabia como corar – caso contrário, teria ficado vermelho como o tijolo, que permanecia impotente em sua mão. A parede foi erguida até a metade e já não é possível ver o que os habilidosos pedreiros fazem em seus andaimes. E novamente o guarda caminha penosamente pela plataforma e boceja, e quando passa por mim com o rosto virado para o outro lado, sinto que ele está envergonhado – ele me odeia. E eu fico olhando para os seus braços fortes, oscilando frouxamente dentro das mangas, para as suas esporas que tilintam desafinadamente e para o cassetete pendente – e tenho a impressão de que tudo isso não é real, que na bainha não há, absolutamente, um cassetete com o qual é possível golpear até a morte, e no coldre não há um revólver com o qual se pode disparar um tiro fatal numa pessoa. E o próprio uniforme dele também não é real, mas assim, só por diversão, um tipo estranho de baile de máscaras em plena luz do dia, diante do sol veraz de abril, em meio às pessoas comuns que trabalham e galinhas azafamadas que ciscam grãos sob o vagão adormecido. Mas às vezes… às vezes, fico com medo de que alguma coisa aconteça com alguém. Ele fica mesmo tão entediado…

(1903)

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É bela a vida para os ressuscitados

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lguma vez você já caminhou pelos cemitérios? Há uma poesia própria, muito peculiar e lúgubre, nesses recantos cercados, silenciosos e cobertos por uma vegetação exuberante,

tão pequenos e tão gananciosos. Dia após dia, novos defuntos são levados até eles, e eis que uma cidade inteira, viva, imensa e barulhenta foi transferida para lá, e as novas pessoas que nasceram já estão aguardando a sua vez. Enquanto isso, esses lugares permanecem iguais, pequenos, silenciosos e gananciosos. Neles, o ar, o silêncio são especiais, e o balbuciar das árvores ali também é diferente: elegíaco, pensativo, terno. É como se essas bétulas brancas não pudessem esquecer todos aqueles olhos inchados de tanto chorar que buscavam o céu por entre seus ramos verdejantes, e como se suspiros profundos e não o vento continuassem a agitar o ar e a folhagem fresca. Também você caminha silencioso e pensativo pelo cemitério. Seu ouvido capta os ecos abafados dos gemidos profundos e das lágrimas, enquanto seus olhos se detêm sobre ricos jazigos, modestas cruzes de madeira e desconhecidas sepulturas mudas, que abrigam em si pessoas que por toda a sua vida foram mudas, desconhecidas e imperceptíveis. E você fica lendo as inscrições nas lápides, e todas essas pessoas que desapareceram do mundo vão surgindo na sua imaginação. Você os vê jovens, rindo, amando; você os vê vigorosos, falantes, ousadamente confiantes na infinitude da vida. Leonid Andrêiev

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E elas morreram, essas pessoas. Mas será necessário sair de casa para visitar um cemitério? Para isso não será suficiente que a escuridão da noite o envolva e absorva os sons diurnos? Quantos jazigos, ricos e suntuosos! Quantas sepulturas mudas e desconhecidas! Mas será que a noite é necessária para se estar num cemitério? Para isso não bastaria o dia, agitado, barulhento, com a sua cota de preocupações urgentes? Dê uma espiada dentro de sua alma e, seja dia ou noite, encontrará ali um cemitério. Pequeno, ganancioso, que a tantos engoliu. E você ouvirá um sussurro baixo e triste, um reflexo dos gemidos penosos do passado, quando era querido o morto que estava sendo depositado na cova, e você ainda não havia tido tempo de deixar de amá-lo nem de esquecê-lo; então, você verá os jazigos, e as inscrições parcialmente apagadas pelas lágrimas, e as silenciosas e ermas sepulturas, pequenos e sinistros montículos sob os quais se esconde aquilo que já foi vivo, ainda que você não soubesse de sua existência e nem tivesse notado sua morte. E talvez, isso fosse o que havia de melhor em sua alma… Mas para que eu digo: “dê uma espiada”? Acaso você já não perscruta o seu cemitério todo dia, tanto quanto há desses dias em um longo e penoso ano? Talvez, ontem mesmo, você tenha se lembrado dos falecidos queridos e chorado por eles; talvez, ontem mesmo, você tenha enterrado alguém que ficou gravemente doente por muito tempo e que foi esquecido enquanto ainda vivia. Aqui, sob o mármore pesado, cercado por uma espessa grade de ferro fundido, repousa o amor pelas pessoas e sua irmã, a fé nelas. Como elas eram belas e maravilhosamente boas, essas duas irmãs! Que fogo brilhante ardia em seus olhos, que poder incrível possuíam suas mãos brancas e suaves! Com que ternura essas mãos brancas levavam uma bebida gelada aos lábios ressecados de sede, e alimentavam os famintos; com que doce cuida78

É bela a vida para os ressuscitados


do tocavam as úlceras do doente e as tratavam! E elas morreram, essas irmãs, elas morreram de resfriado, de acordo com o que está escrito no jazigo. Elas não suportaram o vento enregelante com o qual a vida as varreu. E mais adiante, uma cruz torta marca o lugar aonde o talento está enterrado no chão. Como ele era animado, barulhento, alegre; tinha disposição para qualquer coisa, queria fazer tudo e estava certo de que conquistaria o mundo. E morreu, de uma forma imperceptível e silenciosa. Certo dia, saiu para lidar com as pessoas, durante um longo tempo andou sumido por aí e voltou frustrado e triste. Chorou longamente e durante muito tempo teve ímpetos de dizer alguma coisa, mas acabou morrendo assim, sem ter dito nada. Eis uma longa fileira de pequenos montículos. Quem estará ali? Ah, sim. São as crianças. Pequeninas, brincalhonas: esperanças travessas. Eram tantas, e por causa delas a alma era tão alegre e cheia de movimento. Mas, uma após a outra, elas foram morrendo. Eram tantas, e como a alma se alegrava com elas! O silêncio reina no cemitério, e as bétulas farfalham tristemente com suas folhas. Que os mortos ressuscitem! Escancarem-se, túmulos sombrios! Desintegrem-se, pesados jazigos, e abram-se, ó grades de ferro! Ao menos por um dia, ao menos por um instante, deem liberdade àqueles que vocês sufocam com seu peso e escuridão! Vocês pensam que eles estão mortos? Mas não, eles estão vivos. Eles ficaram calados, mas estão vivos. Vivos! Permita-lhes ver o azul intenso do céu sem nuvens, respirar o ar puro da primavera, embriagar-se de calor e amor. Venha a mim, meu talento adormecido. Por que você está esfregando os olhos desse jeito tão engraçado, o sol te cegou? Como ele brilha forte, não é mesmo? Você está rindo? Ah, ria, ria, falta riso às pessoas. Também vou rir Leonid Andrêiev

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com você. Veja, uma andorinha voando, vamos voar atrás dela! Você ficou mais pesado na sepultura? E que estranho horror é esse que vejo em seus olhos, como um reflexo da escuridão sepulcral? Não, não, pare com isso. Não chore. Não chore, estou dizendo! Afinal, a vida é tão bela para os ressuscitados! E vocês, minhas pequenas esperanças! Que rostinhos queridos e divertidos vocês têm. Quem é você, pimpolho gordinho e engraçado? Eu não te reconheço. E do que está rindo? Ou nem a sepultura te assustou? Calma, minhas crianças, calma. Por que você a está insultando? Não vê como ela é pequena, pálida e frágil? Vivam em paz e não me deixem tonto. Acaso vocês não sabem que eu também já estive na sepultura? E agora minha cabeça está rodando por causa do sol, do ar, da alegria. E vocês, imponentes e maravilhosas irmãs, vieram também. Permitam-me beijar suas mãos brancas e suaves. O que estou vendo? Trazem pão? A escuridão sepulcral não assustou vocês, sensíveis, femininas e frágeis, e ali, sob essa pesada massa vocês ainda pensaram no pão para os famintos? Permitam-me beijar seus pezinhos. Eu sei para onde eles irão agora, seus leves e rápidos pés, e sei que lá, por onde eles passarem, crescerão flores, maravilhosas e perfumadas flores. Vocês estão chamando para eu ir junto? Então vamos. Venha cá, meu talento ressuscitado. Por que ficou olhando pasmo para as nuvenzinhas fugidias? Venham cá, minhas pequeninas e travessas esperanças. Parem! Ouço uma música. Mas pare de gritar, pimpolho! De onde vêm esses sons maravilhosos? Tranquilos, bem delineados, insanamente alegres e tristes. Eles falam sobre a vida eterna… …Não, não se assustem. Isso já vai passar. É de alegria que estou chorando! Ah, como é bela a vida para os ressuscitados! (1900)

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É bela a vida para os ressuscitados


A cidade

E

ra uma cidade enorme aquela em que eles viviam: Pietróv, funcionário de um banco comercial, e o outro, sem nome ou sobrenome. Eles se encontravam uma vez por ano, na Páscoa, quando ambos

visitavam o mesmo lugar, a casa dos senhores Vassílievskiy. Pietróv também fazia visitas no Natal, mas provavelmente, aquele outro com quem ele encontrava vinha em outro horário no Natal e eles não se viam. Nas primeiras duas ou três vezes, Pietróv não o notara entre as outras visitas, mas no quarto ano seu rosto lhe pareceu familiar, e eles se cumprimentaram com um sorriso, e no quinto ano Pietróv sugeriu que brindassem. — Saúde! – ele disse afavelmente e estendeu a taça. — Saúde! – o outro respondeu sorrindo e estendendo também sua taça. Mas Pietróv nem pensou em perguntar o nome dele e, quando saiu para a rua, esqueceu-se completamente de sua existência e não se lembrou dele durante todo o ano. Todos os dias ele ia ao banco, onde já trabalhava há dez anos, no inverno frequentava ocasionalmente o teatro, no verão viajava para a datcha1 de seus amigos e por duas vezes contraiu gripe – a segunda vez, pouco antes da Páscoa. E quando já estava subindo as escadas dos Vassílievskiy, de fraque e com uma cartola dobrável debaixo do braço, lembrou-se de que veria o outro e ficou muito surpreso por não conseguir imaginar seu rosto e sua figura. O próprio Pietróv era baixo, levemente 1  Casa de campo típica russa. (N. da T.)

Leonid Andrêiev

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encurvado, de modo que muitos o tomavam por um corcunda, e seus olhos eram grandes e negros, com as escleróticas amareladas. De resto, ele não diferia muito de todos os outros que, duas vezes por ano, vinham visitar os senhores Vassílievskiy e, quando eles esqueciam seu nome, simplesmente o chamavam de “corcundinha”. O outro já estava lá e estava prestes a ir embora, mas quando viu Pietróv, sorriu afavelmente e ficou. Ele também estava de fraque e também tinha uma cartola dobrável, e Pietróv não teve tempo de observar mais nada, pois ficou ocupado com a conversa, a comida e o chá. Mas eles saíram juntos, ajudaram-se mutuamente a vestir os casacos, como amigos; educadamente cederam caminho um ao outro e ambos deram cinquenta copeques2 ao porteiro. Na rua eles pararam um pouco e o outro disse: — É um tributo! Não há o que se fazer. — Não há o que se fazer – respondeu Pietróv – é uma obrigação! E como não havia mais nada para se dizer, eles sorriram gentilmente, e Pietróv perguntou: — Para onde o senhor vai? — Para a esquerda, e o senhor? — Para a direita. No coche, Pietróv lembrou que novamente não tivera tempo de perguntar o nome dele nem de examiná-lo. Ele se virou: carruagens se moviam para frente e para trás – as calçadas enegreciam por causa das pessoas que passavam e, nessa massa ininterrupta em movimento, era impossível encontrar aquele outro, como é impossível encontrar um grão de areia entre outros grãos de areia. E, mais uma vez, Pietróv se esqueceu dele e durante o ano todo não pensou mais nele. Há muitos anos ele vivia nos mesmos cômodos mobiliados, e lá não gostavam nem um pouco dele, pois era carrancudo e irritadiço, e também o chamavam de “baleia-corcunda”. Frequentemente, ele ficava sentado em seu apartamento e não se sabia o que estava fazendo, porque o camareiro 2  Um copeque designa a centésima parte de um rublo, moeda da Rússia. (N. da T.)

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A cidade


Fiodót não considerava um livro ou uma carta como ocupação. Às vezes, Pietróv saía para passear à noite, e o porteiro Ivan não entendia esses passeios, pois Pietróv sempre voltava sóbrio e sempre sozinho, sem uma mulher. Mas Pietróv ia passear à noite porque tinha muito medo da cidade em que vivia e, mais do que tudo, tinha medo dela de dia, quando as ruas estavam apinhadas de gente. A cidade era enorme e populosa, e havia algo obstinado, invencível e indiferentemente cruel nessa multidão e nessa enormidade. Com o peso colossal de suas casas de pedra desmesuradas, a cidade esmagava a terra em que estava, e as ruas entre as casas eram estreitas, tortas e profundas, como rachaduras em uma rocha. E parecia que todas elas estavam tomadas de pânico e tentavam correr para longe do centro, para o campo aberto, mas não conseguiam encontrar o caminho e se emaranhavam, se enrolavam como cobras, e cortavam umas às outras, e tomadas por um desespero irremediável se precipitavam de volta. Era possível andar horas a fio por essas ruas quebradas, sufocadas, congeladas em uma terrível convulsão, e mesmo assim não conseguir sair da linha das volumosas casas de pedra. Altas e baixas, ora avermelhadas pelo o sangue frio e líquido dos tijolos frescos, ora pintadas com cores claras e escuras, com inabalável firmeza elas permaneciam em volta, recebiam e se despediam com indiferença, apinhavam-se formando uma densa multidão, tanto na frente, como atrás, perdiam o aspecto próprio e ficavam parecidas umas com as outras – e o transeunte começava a ficar com medo: como se ele tivesse ficado imobilizado no mesmo lugar e as casas estivessem passando por ele em uma fila interminável e ameaçadora. Certa vez, Pietróv caminhava calmamente pela rua quando, de repente, sentiu como era espessa a camada de casas de pedra que o separava do campo amplo e livre, onde uma terra livre respira facilmente sob o sol e o olho humano consegue ver longe. E ele teve a impressão de estar ficando asfixiado e cego, e quis fugir para se libertar dos abraços de pedra, e era assustador pensar que, por mais que corresse, por toda parte seria escoltado por casas e casas, e acabaria se sufocando antes de fugir da cidade. Pietróv se escondeu no primeiro restaurante que apareceu no caminho, mas mesmo lá, por um longo tempo, parecia-lhe estar sufocando, e ele bebia água gelada e esfregava os olhos com um lenço. Leonid Andrêiev

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Mas o mais terrível era que em todas as casas viviam pessoas. Havia muitas delas, e todas elas eram desconhecidas e estranhas, e todas viviam a própria vida, uma vida que não era visível, nasciam e morriam, e não havia começo nem fim para esta torrente. Quando Pietróv ia trabalhar ou caminhar, ele via as casas que já conhecia e que lhe eram familiares e tudo lhe parecia habitual e simples; mas bastava concentrar sua atenção em algum rosto, mesmo que por um instante apenas, e tudo mudava de forma dramática e ameaçadora. Com uma sensação de medo e impotência, Pietróv olhava atentamente para todos os rostos e percebia que os via pela primeira vez, que ontem havia visto outras pessoas e as que veria amanhã também seriam diferentes, e assim seria sempre, a cada dia, a cada minuto, ele veria novos e desconhecidos rostos. Eis que o senhor gordo que Pietróv estava observando desapareceu por trás da esquina, e Pietróv nunca mais o veria. Nunca mais. E se ele quisesse encontrá-lo, poderia procurar a vida inteira e ainda assim não o encontraria. E Pietróv tinha medo da cidade enorme e indiferente. Naquele ano, Pietróv novamente pegou uma gripe muito forte, com complicações, e frequentemente estava com coriza. Além disso, o médico diagnosticou nele uma gastrite, e quando mais uma Páscoa chegou e Pietróv foi visitar os senhores Vassílievskiy, durante o caminho, ele ficou pensando no que comeria lá. E, ao ver o outro, alegrou-se e disse a ele: — E eu, meu caro, estou com gastrite. E aquele, o outro, balançou a cabeça com pena e respondeu: — Veja só! E, mais uma vez, Pietróv não ficou sabendo como ele se chamava, mas começou a considerá-lo um bom amigo e lembrava-se dele com uma sensação agradável. Pietróv o chamava de “aquele”, mas quando tentava se lembrar de seu rosto, em sua mente só aparecia o fraque, o colete branco e o sorriso, e como não conseguia, absolutamente, se lembrar de seu rosto, acabava tendo a impressão de que eram o fraque e o colete que sorriam. No verão, Pietróv frequentemente ia a uma datcha, usava gravata vermelha, tingia o bigode e dizia a Fiedót que se mudaria para outro apartamento no outono, 84

A cidade


depois deixou de ir à datcha e ficou se embebedando durante um mês inteiro. Ele bebia ridiculamente, com lágrimas e escândalos: certa vez quebrou um vidro em seu quarto, outra vez assustou uma senhora: ele entrou em seu apartamento à noite, ajoelhou-se e a pediu em casamento. A dama desconhecida era uma prostituta e a princípio o escutou atentamente e até riu, mas quando ele começou a falar sobre sua solidão e a chorar, ela o tomou por um louco e começou a gritar de medo. Pietróv foi retirado dali; ele resistia, puxava Fiedót pelos cabelos e gritava: — Todos nós somos pessoas! Todos somos irmãos! Já tinham decidido despejá-lo, mas ele parou de beber e, novamente, à noite, o porteiro ficava xingando ao abrir e fechar a porta atrás dele. No ano novo, Pietróv recebeu um aumento de salário: 100 rublos por ano, e ele se mudou para o apartamento vizinho, que custava cinco rublos a mais e cujas janelas davam para o pátio. Pietróv pensava que ali não ouviria o ruído forte do tráfego na rua, e poderia pelo menos esquecer quantas pessoas desconhecidas e estranhas o cercavam e viviam perto dele suas vidas singulares. E durante o inverno havia silêncio naquele apartamento, mas quando a primavera chegou e a neve foi removida das ruas, o estrondo do tráfego começou novamente e as paredes duplas não o salvavam dele. Durante o dia, enquanto Pietróv estava ocupado com alguma coisa e ele próprio se movia e fazia barulho, ele não notava o ruído forte, apesar deste não cessar nem por um minuto; mas a noite chegava, tudo se acalmava na casa, e a rua estrondosa irrompia imperiosamente no quarto escuro e tomava dele sua paz e privacidade. Ouvia-se o tilintar e o ruído pouco vigoroso de carruagens isoladas; o ruído fraco e débil nascia em algum lugar distante, ficava mais e mais forte e vigoroso e diminuía gradualmente, mas era substituído por um novo, e assim por diante, sem interrupção. Às vezes, ouviam-se batidas nítidas e ritmadas de ferraduras e não havia som de rodas – era uma carruagem com pneus de borracha que passava e, frequentemente, o ruído de carruagens isoladas se fundia em um poderoso e terrível estrondo, com o qual as paredes de pedra começavam a tremer levemente e os vidros tiniam no armário. E tudo isso eram pessoas. Elas estavam sentadas em caleches e carruagens, viajavam não se sabe de onde, nem para onde, Leonid Andrêiev

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desapareciam nas profundezas desconhecidas da cidade imensa, e para substituí-las surgiam outras pessoas, novas e diferentes, e não havia fim para esse movimento ininterrupto e terrível em sua ininterruptibilidade. E cada pessoa que passava era um mundo separado, com suas próprias leis e objetivos, com sua própria alegria e tristeza, e cada uma delas era como um fantasma que aparecia por um momento e, sem ter sido desvendado, sem ter sido reconhecido, desaparecia. E quanto mais havia pessoas que não se conheciam, mais terrível se tornava a solidão de cada uma delas. E naquelas noites negras e barulhentas, frequentemente, Pietróv tinha vontade de gritar de medo, de se enfiar em algum porão profundo e permanecer lá completamente sozinho. Então seria possível pensar apenas naqueles que você conhece e não se sentir tão infinitamente sozinho em meio a uma multidão de pessoas estranhas. Na Páscoa, aquele outro não esteve presente na casa dos Vassílievskiy, e Pietróv só percebeu isso no final da visita, quando começou a se despedir e não encontrou o sorriso familiar. E seu coração ficou inquieto, e de repente ele sentiu uma vontade imensa de ver aquele outro e lhe dizer algo sobre sua solidão e suas noites. Mas ele se lembrava muito pouco do homem que procurava: apenas que ele era de meia-idade, provavelmente louro e sempre vestido de fraque. Mas com apenas essas características, os senhores Vassílievskiy não conseguiam adivinhar de quem estava falando. — Recebemos tanta gente nos feriados que não sabemos os sobrenomes de todos – disse a senhora Vassílievskiy – no entanto… não seria Siemiónov? E ela listou alguns nomes dobrando os dedos: Smírnov, Antónov, Nikíforov; depois, sem sobrenomes: o careca, que trabalha em algum lugar, parece que nos correios; o de cabelos louros; o que era completamente grisalho. E todos eles não eram aquele de quem Pietróv falava, mas até poderiam ser. Acabaram não o encontrando. Neste ano nada aconteceu na vida de Pietróv, apenas seus olhos começaram a ficar ruins, de modo que ele teve que usar óculos. À noite, se o tempo estivesse bom, ele ia dar uma volta e escolhia caminhos calmos e desertos para a caminhada. Mas lá também ele encontrava pessoas que nunca tinha 86

A cidade


visto antes e nunca mais veria depois, e nas laterais despontavam casas formando uma parede inteiriça, e dentro delas todos os espaços estavam cheios de pessoas estranhas, que dormiam, conversavam, brigavam; alguém estava morrendo atrás dessas paredes, e perto desse alguém, uma nova pessoa estava vindo ao mundo, para se perder por um tempo em sua infinidade em movimento e depois morrer para sempre. Para se consolar, Pietróv listava todos os seus conhecidos, e seus rostos próximos e bem-estudados eram como uma parede que o separava do infinito. Ele tentava se lembrar de todos: dos porteiros conhecidos, dos lojistas e dos cocheiros, até dos transeuntes dos quais se lembrava acidentalmente, e a princípio lhe parecia que conhecia muitas pessoas, mas, quando começava a contar, o total era terrivelmente pequeno: em toda sua vida ele conheceu apenas duzentas e cinquenta pessoas, incluindo aquele outro. E isso era tudo o que ele tinha de próximo e familiar no mundo. Talvez, ainda existissem pessoas que ele tinha conhecido, mas das quais havia se esquecido e isso era como se elas não tivessem existido. Aquele outro ficou muito feliz quando viu Pietróv na Páscoa. Ele usava um fraque novo e botas novas que rangiam e, apertando a mão de Pietróv, ele disse: — E eu, quase morri, sabia? Peguei uma pneumonia, e agora aqui – ele deu uns tapinhas no próprio flanco –, aqui em cima, parece que algo não está muito bem. — Ah, não me diga! – Pietróv lamentou sinceramente. Eles passaram a conversar sobre diferentes doenças, e cada um falou sobre as suas, e quando estavam se despedindo, ficaram apertando as mãos por muito tempo, mas se esqueceram de perguntar os nomes. E na Páscoa seguinte, Pietróv não veio visitar os Vassílievskiy, e o outro ficou muito preocupado e perguntou à senhora Vassílievskiy quem era aquele corcunda que os visitava. — Ah, eu sei – ela disse – o sobrenome dele é Pietróv. — E qual é o seu nome? Leonid Andrêiev

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A senhora Vassílievskiy queria dizer o nome dele, mas descobriu que não sabia e ficou muito surpresa com isso. Tampouco sabia onde Pietróv trabalhava: se nos correios, ou em alguma agência bancária. Depois foi aquele outro que não apareceu, e então ambos vieram, mas em horários diferentes e não se encontraram. E depois, eles deixaram de comparecer definitivamente, e os senhores Vassílievskiy nunca mais os viram, mas não pensavam nisso, pois eles recebiam muita gente e não poderiam se lembrar de todos. A enorme cidade se tornou ainda maior e lá, onde um campo se espalhava largamente, novas ruas se estendem incontrolavelmente, e nas laterais suas casas de pedra, volumosas e dilatadas, pressionam pesadamente o chão em que estão. E aos sete antigos cemitérios da cidade foi adicionado um novo, o oitavo. Nele não há qualquer vegetação e, por enquanto, apenas as pessoas pobres são enterradas lá. E quando chega a longa noite de outono, o silêncio cai sobre o cemitério, e apenas o barulho do tráfego nas ruas, que não cessa nem de dia, nem de noite, ecoa ao longe.

(1902)

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A cidade


A ressurreição de todos os mortos

O

Devaneio

clamor dos clarins dos arcanjos anunciava ao mundo a vindoura ressurreição de todos os mortos. Amanhã de manhã, o Senhor todo poderoso virá em toda sua glória, e os mortos se erguerão

de seus túmulos. E a partir desse momento a Terra começou a se transformar. O novo ainda não havia chegado, mas o velho já acabara, derretera como fumaça, desaparecera, como um doloroso sonho milenar. Era como se esses anos nunca tivessem existido: foram-se todas as preocupações com a vida, sofrimento e tristeza, doenças e morte; e não havia outra preocupação para os seres viventes senão, amanhã de manhã, receber em meio à alegria e beleza o Senhor que está por vir. Rápida e facilmente a Terra se despia de seus andrajos, das roupas cinzas e tristes. As forças obscuras e misteriosas, irreconciliáveis ​​e impiedosas, que costumavam ser chamadas de leis da natureza, ainda agiam na Terra e subjugavam tudo ao seu poder severo e terrível, mas seu ritmo pesado tornava-se cada vez mais lento e suas manifestações, cada vez mais inseguras. É assim que um veículo desacelera ao se aproximar da última parada; é assim que o rio desacelera suas águas ao desembocar no mar; é dessa maneira indolente, indecisa, gentil e fraca que os reis ordenam quando estão deixando o trono. Eles ainda dão ordens, mas já não esperam Leonid Andrêiev

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que elas sejam cumpridas e são indiferentes às consequências. E o mar escuro ainda continuava ruidoso, e o vento se movia em seus círculos, mas já não havia mais ira no eterno barulho do mar, e os navios não eram destruídos: o mar estava se acalmando, marulhava discretamente, jazia tranquilo. E em alguns lugares os incêndios ainda ardiam, mas não havia mais fúria e poder no fogo: a chama brilhava com sua luz sangrenta, mas já não abrasava mais, não incinerava, não queimava até a dor, mas vagueava em círculo, quase que ternamente, amainando. E ainda havia o espaço, o infinito divisível, o horror do eterno retorno, e quem quisesse dividi-lo como antes, continuava dividindo-o, e quem queria ir a pé, ou usando um meio de transporte, ou correndo, este ia e corria; mas já não havia mais nem o espaço, e a pessoa ia parar lá onde queria estar: aqui, ali, em todo lugar – e aqui, e ali, e em todo lugar. As pessoas ainda não sabiam como fazê-lo, mas já o faziam: de repente todos os navios entraram em seus próprios portos, suas próprias enseadas, baías e ancoradouros – eles retornaram instantaneamente dos países mais distantes; e no crepúsculo vespertino, janelas reluzentes de imensos navios, gigantes terrenos, pendiam em forma de guirlandas sobre o mar tranquilo. E, em alguns lugares, os numerosos trens com inúmeros passageiros ainda corriam pelos trilhos, em outras partes eles voavam pelo ar, ou, ainda, instantaneamente iam parar no lugar desejado. E ainda havia o tempo, o infinito divisível, o horror do eterno retorno: os ponteiros se moviam em círculo, os relógios soavam nos campanários, a escuridão estava chegando e já não havia mais nem o tempo: estava começando o eterno, que não se mede, não se move, não flui, mas permanece para sempre, um em tudo e tudo em um. E já não havia mais nem a parte de cima, nem a parte de baixo; nem ontem nem hoje; nem aqui nem ali – um em tudo, e tudo em um, a imagem verdadeira e eterna. Silenciosa e rapidamente a Terra ia se transformando submetida ao poder do novo Rei, o Senhor todo poderoso, a acha indulgente. E por toda Terra se espalhou a escuridão, mas não era aquela antiga noite terrível que, como uma sombra da morte, cai sobre um lado da Terra e se 90

A ressurreição de todos os mortos


arrasta por ela como um réptil: todos os lados redondos e encantadores da Terra com seus oceanos azuis e terra firme dourada foram envolvidos por trevas silenciosas e transparentes, uma escuridão azul e límpida, uma luz suave. E não era para causar medo que ela estava lá, nem para que fossem cometidos atos maldosos que eram comuns durante a noite, nem para que houvesse devassidão e sonhos enganosos e torturantes, como antigamente, e sim, para dar à Terra e às pessoas uma cobertura gentil e tímida: para que o mundo se preparasse em silencioso segredo, se enfeitasse rápida e alegremente com a beleza, vestisse trajes de núpcias, trajes festivos, roupas claras. Quem tiraria a alegria de uma noiva, que recatadamente se enfeita para a chegada do noivo? Todos estão convidados para o banquete e o gentil anfitrião espera pelos convidados bem vestidos e sorridentes. Apressadamente, a Terra despia a roupa do histrião morto, a máscara perecível. E o novo ainda não havia chegado, mas o velho já acabara, acabou de uma vez e para sempre, derretera como fumaça, desaparecera, como um doloroso sonho milenar, foi-se silenciosamente e para sempre. E ninguém sequer pensava nele, tão silenciosa e imperceptível tinha sido sua partida, tão clara e compreensível para todos se tornara a mentira sombria dos milênios; e ninguém sequer se lembrava dele, e não havia nenhum homem na Terra que, com alegria ou raiva, saudade ou maldição, olhasse para trás, para a erma escuridão daquilo que se foi. O ser humano soube de tudo e entendeu tudo, perdoou tudo e amou tudo, encontrou tudo o que procurava: o ser humano compreendeu tudo e soube de tudo. E não havia mais pessoas tristes, nem doentes, nem pesarosas, e não havia mais nada milagroso, nem estranho, nem surpreendente; e não havia mais nem o bem, nem o mal. A própria memória do passado pereceu e todas as atividades cessaram. Todos os trens e barcos, todos os veículos que flutuavam, corriam e voavam foram parando e pararam. Todas as fábricas, usinas, todas as máquinas que faziam e criavam, bilhões de forças de ferro, foram parando e pararam. E silenciou o terrível estrondo, o retinir e o zumbido, as batidas e os tinidos, os uivos e os assobios, o chiado e o ruído, foi silenciando e silenciou a voz terrível e triste das incontáveis forças de ferro que giravam em um turbilhão de movimento constante. Leonid Andrêiev

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Abriu-se tudo o que estava trancado, todas as portas e portões: das prisões e dos palácios, das casas e das igrejas, das jaulas de ferro e dos canis – todas as portas se abriram e permaneceram abertas. Os prédios ainda se mantinham em pé, massas enormes de jaulas de pedra, colocadas uma sobre a outra; e ainda havia ruas que passavam entre as casas, e ainda havia cidades, mas já não havia mais casas, nem ruas, nem cidades: as muralhas, outrora pesadas, elevavam-se em forma de leves espectros, tecidos de névoa; em alguns lugares elas já estavam se derretendo e desapareciam silenciosamente. E ainda havia pessoas e animais; ainda havia reis e mendigos, escravos e senhores, homens e mulheres, crianças e velhos, doentes e saudáveis; mas já não havia reis nem mendigos, nem homens, nem mulheres, nem crianças, nem velhos. E os animais já saíram das florestas – isso mesmo, eles saíram, deixaram suas tocas, seus ninhos e covis: entraram andando, rastejando e voando nas cidades, animais ternos e belos, amigos até então desconhecidos. E as ruas, envolvidas pela escuridão azul e transparente, ficaram lindas quando, em meio aos trajes festivos das pessoas, começaram a aflorar as belas manchas dos tigres, e o brilho suave das escamas e da pele das cobras entrelaçou-se com a escuridão da multidão e as luzinhas verdes dos olhos maravilhosos dos animais começaram a brilhar embaixo e em cima, na frente e atrás. E muitas paredes de pedra imediatamente se tornavam transparentes, derretendo rápida e silenciosamente, quando junto delas se acendia a luz dos olhos dos animais: as cidades estavam desaparecendo, como espectros rancorosos – a grandiosa e última manhã não deveria encontrar nem uma única cidade. Vieram todos os animais, e só o urso se atrasou: estava dormindo profundamente e, durante muito tempo, não conseguia acordar, embora estivesse ouvindo o clamor dos arcanjos em meio ao sono; e, quando acordou, imediatamente entendeu tudo e soube de tudo e saiu manquejando apressadamente em suas patas curvadas, não havia lembrado ainda que poderia nem andar, nem se mover, poderia simplesmente estar lá. E os mortos ainda repousavam em seus túmulos. E todos queriam muito passear, mas não havia tempo: era necessário se enfeitar, estar pronto para a manhã. E nunca houve tamanha pressa na

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A ressurreição de todos os mortos


Terra, nem mesmo no grandioso dia de sua criação: em uma única noite curta todas as coisas vivas e tudo que existe deveria se embelezar com toda a beleza. A noite está quente e transparente, mas a noite é curta: e com um farfalhar suave, como estandartes à noite, as folhas se abriram nas árvores, a grama rastejou de dentro da terra morna, árvores gigantescas inteiras, florestas inteiras surgiam num instante e se alinhavam em fileiras festivas, conversando baixinho sobre como se colocar de maneira mais bonita. As flores, um exército incalculável de filhos de Deus, brancas e vermelhas, azuis e lilases, se abriam às pressas: e cada flor ponderava cuidadosamente sobre sua beleza, verificava as pétalas e os pistilos – e havia muitas delas – um exército incalculável de filhos de Deus! As pedras também se esforçaram: duros basaltos, granitos frios, pórfiros cruéis – alinhavam seus cristais apressadamente, seu maravilhoso tecido de pedra; e mesmo aquele pedregulho insignificante, que há anos jazia na praça sob os pés, também se esforçava: fazia alguma coisa dentro de si, perdendo o fôlego por causa da pressa. Também as águas dos mares, dos rios, dos lagos e dos pântanos se apressavam: fluíam mais lindamente, reverberavam cores, procurando a melhor, preparavam-se para reflexos inusitados, limpavam seu espelho mais puro. E mesmo aquela pequena poça, que ainda ontem adoecia de secura e se preparava para a morte, começou a se agitar preocupada: fazia alguma coisa dentro de si, perdendo o fôlego por causa da enorme pressa. Também os animais se enfeitavam com beleza: ajeitavam suas peles douradas e cheias de manchas, escovavam-se com suas caudas felpudas, experimentavam a luz de seus olhos uns nos outros – apressavam-se. Enfeitavam-se aves e répteis; e os misteriosos monstros do mar e subterrâneos limpavam carinhosamente seus escudos e carapaças, ajeitavam as verrugas e os calos dos abdômens coriáceos – ponderavam sobre sua indumentária. E seus olhos proféticos, até então condenados à escuridão e ao mistério, abriram-se amplamente para o mundo, emitindo um brilho aguado na bruma azul e transparente que pairava sobre o oceano azul-marinho. Os insetos também se enfeitavam: cada um, e cada uma, ponderavam meticulosamente sobre sua indumentária insanamente complexa; e as borboletas versicolores, o incalculável exército de filhos de Deus, cobriram apressadamente com pólen suas asinhas novas, experimentavam voar, colocavam-se o mais

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lindamente possível nos prados que já haviam ascendido, entre as flores que já floresciam, suas irmãs em Deus. E aquelas miríadas incontáveis, invisíveis aos olhos humanos, mas visíveis aos olhos de Deus, também elas arrumavam-se apressadamente: faziam alguma coisa dentro de si que as tornava festivas também, merecedoras de atenção e louvor. E o silêncio já estava chegando, mas ainda não havia chegado: de algum lugar dos confins da Terra e das alturas acima da Terra vinha um estrondo e ruído surdo. Ora eram os trovões do céu se preparando para a saudação, ora as montanhas que moviam-se, alinhando-se em fileiras festivas; ora eram as geleiras dos polos frios que erguiam arcos e pontes de cristal e verificavam suas margens embotadas; ora eram os trovões celestes que estavam se preparando para a saudação, retumbando com moderação, como gigantes no ensaio de um coro. E, apressadamente, as pessoas se enfeitavam com a beleza. Ainda nem todos sabiam o que era beleza, mas isso nem era necessário saber: a beleza era tudo aquilo que queria ser a beleza e a alegria da saudação. Apressada e alegremente se pintavam os polinésios, colocando novos fragmentos de madeira em suas orelhas e narizes, tatuavam-se sem dor; os árabes limpavam os cavalos negros e, em seus alvíssimos albornozes, gineteavam no deserto, preparando-se e aquecendo os cavalos; os ingleses faziam a barba cuidadosamente, passando a navalha duas vezes pelo mesmo lugar; as mulheres vestiam saias de lã multicoloridas, e os generais vestiam condecorações e estrelas. E vestiam o que quer que considerassem festivo e bonito; e não havia diferença na beleza entre uma antiga coroa real, cravejada de pérolas, e uma camisa rasgada de lona de linho grosso, e uma tatuagem florida sobre um corpo da cor do bronze. E aquele pequeno reizinho negro, que usava uma lata de conserva na cabeça, vestiu ela mesmo; e aqueles que eram militares vestiram seus uniformes completos, decorados com botões e cordões dourados e brilhantes; e aqueles que usavam fraques pretos, vestiram fraques pretos; e muitas senhoras vestiram vestidos decotados de baile e fizeram penteados; e aquela senhora triste e pecaminosa, cujo rosto estava pintado e possuía apenas um chapéu excessivamente grande, pintou

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novamente seu rosto cinzento e vestiu o chapéu excessivamente grande. Até os policiais vestiram seus uniformes, já que para eles ele era o que havia de mais bonito; e cada um ponderava cuidadosamente sobre sua indumentária, procurando pelo melhor. E, o que quer que todo mundo usasse, tudo era bom, bonito e apropriado: era belo tudo aquilo que queria ser a beleza e a alegria da saudação. Não havia sono na Terra naquela última e azul noite; ela emitia um ruído baixinho como um formigueiro, e cada pequeno formigueiro, um Estado florestal, emitia um ruído sobre ela: vestia-se com beleza, preparava-se para a saudação. Pois, na manhã seguinte, o Senhor chamaria cada indivíduo, quem quer que fosse, pelo seu nome. Pois cada indivíduo, quem quer que fosse, quão pequeno fosse, quantos dele existissem na Terra: cada grão de areia individual, cada protozoário, o menor e mais modesto inseto, cada um deles, o Senhor chamaria pelo nome na manhã seguinte. E cada indivíduo sabia sobre a alegria e o grande respeito que lhe estava sendo preparado, e se apressava com todas as suas forças, não achava que ele era ruim por ser pequeno e imperceptível. O Senhor todo poderoso verá cada um, notará cada um, mostrará respeito a cada um, a acha indulgente, a bondade infinita, o amor infinito. E a terna e tímida escuridão se dissolvia imperceptivelmente, transformava-se na luz rosada que antecede o amanhecer. Os céus iam clareando com a luz, clareavam de forma regular, por toda parte: ainda havia o espaço e o tempo, mas já não havia nem tempo, nem espaço, nem ocidente, nem oriente, e o Sol surgia em de toda parte – um Sol único entre muitos sóis; como se toda a Terra redonda tivesse se transformado em uma planície florida, uma única reunião de todos os reunidos. E conforme clareava o céu, acalmava-se na Terra a encantadora agitação que antecede as festas – todos já estavam prontos, não havia atrasados nem retardatários, todos já estavam prontos. Juntamente com a luz, o silêncio descia à Terra e, tanto quanto havia de luz, havia de silêncio; e a luz foi se tornando imensa e imenso foi se tornando o silêncio. Mas os mortos ainda repousavam em seus caixões corrompidos. E eis que o Sol surgiu no céu e chegou a manhã da alegria prometida. Leonid Andrêiev

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E chegou aquele imenso, grandioso e incomum silêncio de quando tudo está quieto: tanto a terra quanto o céu, e toda voz se cala, o mar é um espelho e o vento cessou, e não há nem um farfalhar, nem um marulho, nem um único som, nem mesmo um riso de criança. E todos esperavam em silêncio, admirando a beleza da Terra. Mas os mortos ainda repousavam em seus caixões corrompidos! E todos esperavam em silêncio, admirando a beleza da Terra. As cidades se derreteram junto com a névoa, e toda a Terra se transformou em um jardim maravilhoso, toda a sua planície florida; as vigorosas árvores, arredondadas e exuberantes, se espalharam em belos bosques, sem atrapalhar ninguém e sem incomodar ninguém; e a grama verde e rica germinou, e as flores multicoloridas exalavam perfume recatada e suavemente, e as borboletas agitavam silenciosamente suas asinhas – um incalculável exército de filhos de Deus! Todos esperavam. Mas o próprio ar esperava em cada partícula viva sua – também se preparou durante a noite, enfeitou-se com a beleza aérea. Mas até os céus estavam esperando, se prepararam durante a noite, renovaram o azul e aprofundaram sua profundidade. E os belos animais espalharam livremente seus corpos flexíveis, sem atrapalhar ninguém e sem incomodar ninguém, como flores multicoloridas, e pessoas belas se misturaram com flores e pássaros no jardim único do Senhor. A Terra, bela, admirava a própria beleza. Mas os mortos ainda não haviam acordado, mas os mortos ainda repousavam em seus caixões corrompidos! A Terra, bela, admirava a própria beleza; e todos esperavam. Lentamente, acendia-se uma luz tênue, estava raiando a manhã da alegria; e todos esperavam. E eis que uma enorme nuvem branca, o pedestal do trono celeste, um estandarte de prata, postou-se imóvel no meio do céu azul. E todos sabiam que não era uma simples nuvem, nem uma condensação de vapores úmidos e frios, mas algo especial projetado para decoração. Era enorme e radiante; suas bordas arredondadas e brilhantes estavam maravilhosamente delineadas, e toda a sua imagem era indescritivelmente bela; e o céu azul, que a amparava, rejubilava-se com a sua beleza; e ela permanecia 96

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imóvel – um estandarte de prata, o pedestal do trono do Celeste. Assim, o Senhor enviara de sua parte um adorno para alegria e entretenimento dos olhares que esperavam. E todos esperavam. E, lentamente, se acendia uma luz tênue, estava raiando a manhã da alegria prometida. E eis que a manhã já se aproximou, vai raiar agora. E os trovões ficaram em estado de alerta, moveram silenciosamente sua boca trovejante, pensaram consigo mesmos: hosana! E eis que os céus se abriram e… ………………………………………………………………………………………………………………… Aqui terminou o que era humano e os mortos ressuscitaram.

(1914)

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Círculo literário Quarta-feira. Da esquerda para a direita, em pé: Skitalets e Górki. Sentados: Andrêiev, Shalyapin, Bunin, Teleshov e Chirikov. (1902)


Duas cartas

V

I. Tudo chega tarde demais

ocê queria uma explicação, aqui está ela. Sei que sentirá frio e dor, irá chorar a noite inteira e, quem sabe, amanhã também, mas não sinto pena de você, não sinto. Você é jovem demais para que eu

tenha pena de você. O seu coração é jovem, seu riso é jovem e suas lágrimas são jovens, e eu não posso sentir pena de você, não diga que estou sendo seco. Com uma jovem como você, eu vi uma carta como a minha, ou do mesmo tipo, e sobre a carta havia marcas das lágrimas dela. E na mesma carta, havia outra marca, mais tardia: o círculo de uma xícara de café, que a jovem gostava de tomar… e sabe quantos anos se passaram entre as lágrimas amargas e o acolhedor café? Um ano. Um ano, minha querida. Agora você acredita que estou cansado? Somente os cansados são tão indiferentes às lágrimas jovens, a um ano inteiro de luto jovem e bonito; somente a mão fria deles é tão pesada. Um defunto não brande o punho e não bate, mas a queda de seu braço murcho é mais pesada que um golpe. Sim, estou cansado. Ontem, quando você ficou batendo na minha porta, eu estava em casa, sozinho, no escuro e não estava dormindo. E eu ouvi a sua voz e o farfalhar de seu adorável vestido… e quase ouvi as batidas tristes e assustadas de seu coração colidindo contra a porta fechada e muda. Mas não me levantei e não abri a porta para você, você poderia ficar batendo em uma lápide e teria o mesmo resultado: daqui não se sai. Não, este não é o Leonid Andrêiev

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cansaço de uma pessoa que esteve trabalhando, pelo qual você repreendeu-me tão gentilmente ao afastar de mim o meu trabalho, este não é o sono de uma força extenuada, a calma que antecede o movimento: este é o cansaço de uma vida inteira, e por toda uma vida, uma calma pesada depois do movimento, um corredor frio, no final do qual encontra-se a porta da Morte. Parece que todos os anos vividos desabaram de uma só vez sobre mim, parece que no decorrer de uma hora eu dei todos os meus passos com os quais caminhei pelo globo terrestre, pintei todos os meus quadros, experimentei todas as tristezas e alegrias da minha existência turbulenta. O coração não quer mais bater, você entende, querida? Cansou-se com cada uma de suas próprias batidas, como um velho relógio de torre, que foi usado para mostrar as horas por um tempo demasiadamente longo. Há dias assim na vida dos cansados. Hoje eu já estou me mexendo, e meus olhos desejam olhar, estão espiando a beleza das nuvens, e minha mão já está querendo alcançar os pincéis, e a tela esticada parece sedutora. O que os olhos devem fazer, senão olhar? O que a mão deve fazer, senão trabalhar? E hoje já dei uma passada no cabeleireiro, oh, quanto trabalho os coiffeurs1 terão no dia da ressurreição dos mortos! E, ao final do ritual, o meu Jean fez um comentário certeiro: “Pronto, o senhor rejuvenesceu”. Sim, eu rejuvenesci, meus olhos estão mentindo de forma brilhante e nítida, e eu inteiro sou como um cavalo dos ciganos numa feira, que encanta os compradores com sua aparência garbosa; e será preciso um olhar muito perverso e muito atento para notar a sombra de uma fadiga mortal neste rosto que reluz pacificamente. Vou me expressar poeticamente: durante a noite inteira uma serpente dormiu no meio das flores, mas quem desconfia disso na manhã seguinte? E se você tivesse batido à minha porta hoje, provavelmente eu a teria aberto com demasiada rapidez e, novamente, no decorrer de toda a longa noite, enganaria com êxito a você e a mim, a Deus e às pessoas, à morte e ao amor. Lembra-se de nosso passeio, quando, passando à sua frente, eu subi com tanta disposição uma colina bem alta? Arfando por causa do descompasso do coração, esse tipo de experiência é muito perigosa para os 1  Palavra francesa para “cabeleireiro”. (N. da T.)

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Duas cartas


idosos, fiquei lá em cima esperando receber os louros de suas mãos, como um jovem grego num torneio, mas você nem notou a minha agilidade, para você isso era algo tão natural! Claro que isso foi incrivelmente estúpido e a minha mentira de hoje teria sido mais habilidosa, já posso sentir em minha boca o seu gosto doce, de clorofórmio, narcotizante. Eu falaria sobre minhas futuras pinturas. Como um tenor da moda que durante um encontro cantarola pequenas árias em falsete – o que deve um tenor fazer, senão cantar? – eu pintaria quadros em falsete, meus olhos brilhariam, ficaria inspirado e mentiria para Deus e as pessoas, como o pior dos trapaceiros. Para aquecer seus olhos doces e infantilmente sábios, estou disposto a me transformar num gênio durante uma hora inteira! Mas isso é uma simples fraude, minha amiga, uma simples fraude. Eu não sou um gênio. Que quadros? Não pintarei mais NENHUM quadro. Estou cansado. Não diga isso aos meus clientes na feira de arte, pois ainda tenho que segurar as pontas até terminar meu dia de trabalho… mas estou terrivelmente cansado. Tudo chegou tarde demais na minha vida, e não fique brava, minha querida, não chore, minha menina: eu não preciso do seu amor. E que bom que nenhuma palavra foi pronunciada a respeito dele e a maldita semente da mentira não brotou: que flores horríveis e desprezíveis teriam sido! Minha querida, eu via tudo. Já faz um mês, ou mais, que você procura penosamente um pretexto e um momento adequado para se abrir comigo e dizer: eu te amo. Já faz um mês que eu, como um habilidoso Don Juan e o mais imprestável covarde, desfruto da visão desta luta, incentivo você, com gestos de hipnotizador induzo a um amor ainda maior, levo até o limite e então corro assustado, simplesmente fujo. O cabelo se arrepia em minha cabeça, estou tragicamente assustado, pois as Eumênides2 me perseguem, mas minha corrida é um trote miúdo, como o de um batedor de carteiras patético acossado pela polícia. Já reparou que, no início de cada uma de nossas noites, quem fala é você, e eu fico quieto, mas quando vai se aproximando o fim começo a tagarelar, como se estivesse possuído pela loquacidade, como um argumentador em uma peça ruim, e você permanece em silêncio, desnorteada, muda, triste, sem saber a que se agarrar nesse 2  Ou também Erínias, eram, na mitologia grega, as personificações da vingança, encarregadas de punir os mortais. Eram três: Tisífone (Castigo), Megera (Rancor) e Alecto (Inominável). (N. da E.)

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mar de palavras. E assim, calada, faço você sair pela porta, hipocritamente me demoro segurando sua mão, fria de tristeza e perplexidade, e me tranco apressadamente: por hoje estou salvo. Será que você se afasta da porta imediatamente ou fica parada por mais tempo? Eu me afasto imediatamente. Mas na semana passada, você se lembra? Eu fiquei uns dez minutos em pé diante dessa porta estúpida, pela qual havia acabado de escoltar minha última, mas muito, muito tardia felicidade. Tenho a impressão de que eu entendi pela primeira vez o que é uma porta quando fiquei uns dez minutos olhando para a sua superfície plana e iluminada; e se eu tivesse escutado um suspiro seu… não! Tudo chega tarde demais. Meu trem partirá apenas de manhã, as malas estão prontas e a caixa de tintas está longe, e eu não tenho o que fazer pelo resto da noite: situação perfeita para um último arroubo de retórica. Escute o que isso quer dizer. Quando eu era um menino de uns sete ou oito anos, era apaixonado pelos biscoitos de hortelã baratos que eram vendidos em uma pequena mercearia que ficava na nossa erma rua. Por algum motivo eles eram chamados de jamkas, e por um copeque3 você podia levar duas unidades. Não sei por que, mas eu nunca tinha copeques suficientes para comer até estar satisfeito: meus pais não eram pobres na época e de resto não me faltava nada, porém eu nunca tinha o suficiente para os jamkas. Claro que isso era uma pequena loucura, uma mania de criança. Mas recordo-me de como sonhava com os jamkas e da negra inveja que sentia daqueles que os comiam; lembro-me de seu sabor incomum e de sua aparência, da casquinha fininha de glacê, que quebrava suavemente sob os dedos, lembro-me de meu anseio por um milhão de jamkas, por uma montanha inteira de biscoitos! Provavelmente, eu comia muito deles, mas queria ainda mais e mais; e até hoje, depois de muitas décadas, minha fome permanece insaciada. Você entende isso? Eu posso comprar um milhão de jamkas e, às vezes, eu realmente compro uma ou duas libras, mas são os empregados que comem: eu não quero esses, eles são estranhos, e o sabor deles não me é familiar. 3  Um copeque designa a centésima parte de um rublo, moeda da Rússia. (N. da E.)

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Chegou, mas tarde demais. Tudo chega tarde demais, e os meus queridos jamkas foram apenas o sinal de chamada para o início desse estúpido espetáculo. Eu queria viajar mais… e como queria! Você entende essa paixão por novos países e novas fronteiras, e quando eu contava sobre minhas andanças pela Europa e pela América, mais de uma vez notei em seus olhos aquele brilho insano de curiosidade, a sede de movimento sem fim, a submissa e sagrada ganância da alma humana, largada na Terra para vagar. Nos nômades e nos aventureiros natos, esse brilho se transforma em uma chama devoradora, mas em mim, provavelmente, ele só ardia a fogo lento, como é apropriado para um jovem culto, criado para ser útil à pátria e um consolo para os pais; e eu não fui a lugar nenhum até terminar todas as etapas de formação que deveria. E, quando eu fui… É verdade que é muito agradável e confortável viajar em um vagão internacional, ou passear pelo Tirol4 com um solado feito especialmente para turistas, e isso se parece exatamente com uma viagem, tanto que chega a enganar completamente. Mas por que, quando olho pela janela espelhada do vagão, sempre vejo o fantasma de um estudante com olhos famintos, que rápida e desesperadamente precipita-se atrás do trem, desaparece sem deixar vestígios nas estações barulhentas e corre novamente atrás do trem, lampeja como uma pequena sombra sobre os ensolarados vales do Arno5, sobre as corredeiras da Noruega, sobre a turbulenta vastidão de Atlântida6? Pois ele persegue os navios da mesma forma que os trens, e apenas nos Grandes Hotéis e nos magníficos Hotéis Excelsior você jamais o verá. E como torna-se monótono o mundo em que o turista substituiu o aventureiro, e quem transporta as almas mortas no lugar de Caronte7 é James Cook8! 4  Região histórica da Europa, situada entre o Sul da Áustria e o Norte da Itália. (N. da E.) 5  Rio italiano que nasce nos Montes Apeninos, atravessa a região da Toscana e passa por Florença e Pisa antes de desaguar no Mar Tirreno. (N. da E.) 6  Ilha ou continente lendário, cuja menção mais remota encontra-se nas obras de Platão “Timeu ou a Natureza” e “Crítias e Atlântida”. Do grego, “filha de Atlas”. (N. da E.) 7  Na mitologia grega, era o barqueiro de Hades, deus do reino dos mortos, que fazia a travessia dos recém mortos pelo Rio Estige, divisa entre o reino dos vivos e o reino dos mortos. (N. da E.) 8 James Cook (1728-1779) foi um explorador, navegador e cartógrafo inglês. Entre suas principais conquistas estão o primeiro contato europeu com a costa Leste da Austrália e o Arquipélago do Havaí e a primeira circum-navegação registrada da Nova Zelândia. Morreu durante uma batalha com os nativos havaianos na sua terceira viagem exploratória pelo Pacífico. (N. da E.)

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Chegou, mas tarde demais. Tudo chega tarde demais, e essa é a chave do meu desespero. O amor… sim, o amor. Aí está um país amaldiçoado por Deus, onde o atraso é lei, onde nenhum trem chega no horário, e os chefes da estação de bonés vermelhos são todos loucos ou idiotas. Mas ali até os guardas ficaram loucos por causa dos acidentes! Todas as declarações de amor e beijos se atrasam, estão sempre chegando cedo demais para um e tarde demais para outro, mentem a cada hora e encontro e, como uma roda de fantasmas bêbados, alguns correm em círculo, outros vão atrás, agarrando o ar com os braços estendidos. Tudo no mundo chega tarde demais, mas somente o amor consegue transformar um minuto de atraso na eternidade sem fim da separação eterna! Pouco lhe contei sobre o meu longo passado e, mesmo agora, não irei revolvê-lo: nele há muitos mortos e começo a sentir simpatia pelos mortos, e a paz deles parece-me digna de respeito. Mas para certa mulher, eu não teria dado descanso nem na sepultura, tão tola, inconcebivelmente tola era essa mulher; e se ela morrer, e eu ainda estiver vivo, contratarei um homem com uma vara que o tempo todo, dia e noite, irá bater em sua lápide e não a deixará dormir nem de dia, nem de noite. Imagine você, minha querida, que ela conseguiu se atrasar seis anos inteiros! Durante seis anos busquei o amor dela, coloquei todas as forças da minha alma a seu serviço, e ela ficou resistindo por seis anos, atrasava-se para os encontros obtidos à custa de súplicas, casava-se com alguém, divorciava-se, voltava a casar-se. E a última pessoa no mundo em quem ela pensava era em mim, com o meu amor. Seis anos inteiros! Eu não vou despertar seu doce ciúme com uma história longa demais sobre bobagens que eu fiz com um semblante patético e insano… sim, eu era patético e insano, como todos nesse maldito país de horários imprecisos e trens que colidem a cada minuto. Direi apenas que minha última loucura foi o haxixe, que arrastou meu coração a um país ainda mais selvagem, de horrores fascinantes e encantos aterrorizantes; e quando voltei de lá, eu estava ossudo como um manequim, amarelo como ocre, e calmo como um turco. Você já chegou a ver árvores velhas, que foram atingidas por um raio, em uma estrada: o verde dos galhos, e uma cavidade preta e carbonizada no lugar do cerne. Eu 104

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queimei o meu amor, querida, e até hoje, se não há nada melhor para fazer, fico lembrando-me com orgulho de minha luta heroica e gloriosa vitória. E ela? Ela, enquanto isso, apaixonou-se por mim. Nada significava o fato de que havia dois mil quilômetros de distância entre nós e que um segundo ou terceiro marido saracoteava junto dela – ela começou a me amar, do mesmo jeito que uma Margarida um pouco usada amou o não tão jovem Fausto9. Eu não frequento o gabinete do diabo e não conheço seus planos; e certamente não posso explicar a você qual foi o propósito de seu empreendimento: provavelmente, o usual desejo de causar um malefício, nada mais. Mas ela me encontrou e veio em um trem rápido – ela estava com muita pressa! – e, durante duas semanas, sob o magnífico céu da Itália, foi encenada uma das mais estúpidas comédias que o gênio humano poderia criar. Perdoe essa mulher tola, minha querida: ela chorou e sofreu tanto. Sim, foi uma época de extraordinária sorte para o manequim amarelo como ocre. Ao mesmo tempo que a mulher, aparentemente no mesmo trem rápido, veio a mim outra amante tardia: minha fama. Eu lhe contei muitas coisas sobre aquela época, e você se lembra dessa rápida série de lampejos deslumbrantes: uma exposição em Roma, uma exposição em Veneza e em Paris, e meu nome em todo lugar, cartazes cor de fogo e fogos de artifício, simplesmente uma maravilha! Sim, e ainda uma cadeira na academia, muito dinheiro e muitos retratos em papel vagabundo de jornais baratos, onde pareço um negro pálido… Recentemente, eu fiquei rindo de uma dessas imagens inofensivas enquanto você me olhava com surpresa e censura: aquela mancha tipográfica suja parecia-lhe o máximo da beleza e da glória humanas. É natural, todos estão vendo, até aqueles que não precisam. Mas o que mais devo listar como prova de minha fama? Ah, sim, o carro próprio, que por pouco não acabou comigo; eu vendi esse assassino. Uma vila com reumatismo à beira do mar? Flores vivas sobre a mesa, que estragavam o ar do meu estúdio? Antes, eu amava as flores… antes, antes! Devo dizer para você, minha luz, que isso também veio tarde demais? De maneira tão sincera e ingênua você venera minha fama outonal, em seus 9  Margarida e Fausto, personagens do poema “Fausto, uma tragédia”, do escritor alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832), cuja primeira parte foi publicada integralmente em 1808. Após fazer um pacto com o Diabo, Fausto vê a bela Margarida na rua e pede a Mefistófeles que a consiga para ele. (N. da E.)

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olhos límpidos há orgulho e brilho quando anda ao meu lado, e como você, que está tão encantada, poderia compreender que essa maravilhosa e deliciosa fama pode de repente ser desnecessária? Mas é assim, minha luz, e há muito tempo prefiro uma governanta boa e inteligente a essa patroa ruidosa e desleixada, que não consegue preparar nem mesmo um almoço tolerável. E como são indisciplinados os empregados! E quantas pegadas sujas acabam permanecendo no meu parquete: em vez de limpá-los com um pano molhado, minha estúpida patroa contorna-os com carvão e cobre-os com um fixador… caso contrário, os novos visitantes podem não acreditar na minha fama! No entanto, todos os maridos velhos gostam de repreender as suas jovens esposas, e é bem possível que a minha jovem fama não seja de modo algum uma meretriz e que ela até mesmo seja uma pessoa séria com pequenas esquisitices inocentes. Uma esposa honesta. Mas essa esposa honesta cometeu uma falha: chegou tarde demais e não quando era tão ardentemente desejada, não naquele momento. Onde ela estava quando eu chamava por ela dia e noite? Onde ela se escondia quando eu procurava por ela em todas as minhas telas e buscava-a nos olhos indiferentes que matavam minhas pinturas, tiravam a linguagem das minhas tintas? Estava vagabundeando com os outros, que da mesma forma não a queriam? Perdoe-me pela palavra grosseira, minha querida, em sua amargura está a minha desculpa: Deus esteja com ela, com esta retardatária, deixe que faça barulho e dance. Estou cansado, como um escavador quando se aproxima o pôr do sol, minhas malas estão prontas para a longa jornada e vou me separar de você para sempre, e é por isso que estou tão zangado e sendo revoltantemente injusto. Deixe que faça barulho. Mas permita-me uma coisa, de forma alguma posso deixar de censurá-la: por que ela elevou tanto o preço das minhas pinturas? Você compreende isso: eu tenho muito dinheiro, mas não sou rico o suficiente para comprar minhas próprias pinturas… tão caras elas são, acessíveis apenas para os ricaços! E especialmente aquelas primeiras, apagadas, não reconhecidas na época, que eu vendia por um feixe de lenha para o fogão de ferro do meu estúdio congelado. Os colecionadores valorizam especialmente essas e, não faz muito tempo, num 106

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acesso de sentimentalismo senil, eu fiquei admirando um desses preciosos esboços: o bondoso colecionador me deixou entrar para ver, explicou quais eram os seus méritos e prometeu que me deixaria entrar para ver futuramente, quando eu quisesse – um ignorante muito gentil e bondoso, o colecionador. É uma pena que eu não tenha ido com você; o sol brilhava tão agradavelmente através das janelas, e dava para ver o pátio coberto de grama verde. Tudo chega tarde demais, e esta é a explicação para o leito no vagão e para as malas prontas. Não, isso não são objetos de viagem, isso é a minha velhice, meu desespero e cansaço mortal, que arrastarei para algum lugar, e em vão os carregadores irão reclamar de seu peso, e eu mesmo gostaria que fossem um pouco mais leves, um pouco mais leves. A noite está chegando ao fim… você já entendeu tudo, minha querida? Oh, não, claro que você não entendeu, e você está certa. O que você tem a ver com uma mulher tola que se atrasou seis anos, com o meu cansaço e com as queixas rabugentas contra a fama tão bonitinha? Isso é apenas um prefácio para você, com paginação especial, e o presente começará somente no ponto aonde eu começar a falar sobre você: isso sim será pertinente, e então você concordará em entender. Não é verdade, minha querida? Que assim seja: encerremos o prefácio e passemos para o romance. Então, você me ama. Isso é verdade? Sim, é verdade, e eu me emociono despudoradamente ao riscar essa palavra: amor. Que seu significado tenha se perdido para mim há muito tempo, mas no próprio som dela há tanta magia, tanta feitiçaria sagrada que o coração de um mortal não pode permanecer calmo, e reage com batidas, como um relógio que acordou no meio da noite. Doze, ele diz. Meia-noite, ele diz: o sol está do outro lado da Terra, adormeça de novo, o sol está do outro lado da Terra… Ora, estou perdendo o fio da meada e dando continuidade ao irritante prefácio, pois para minha leitora a questão não está no fato de ela me amar, ela já sabe disso, mas naquilo o que eu lhe direi. Sim, o que direi a ela? Perdoe-me, estou um pouco emocionado e… sim, eu também amo você. Não há o que fazer, amo. Mas estou terrivelmente cansado… não, não é Leonid Andrêiev

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isso. Você não acha que nasceu um pouco tarde para mim, sim, tarde demais? Já calculei há muito tempo: está vinte e oito anos atrasada, quero dizer, você se atrasou exatamente vinte e oito anos para nascer. Entende, querida: você ainda não existia, simplesmente não existia, quando eu já existia, e existia há muito tempo. Você não acha que há algum tipo de absurdo nisso? Eu chamaria até de crime, se eu soubesse quem era o criminoso. Eu já sabia de tudo, usava barba, e já tinha um cabeleireiro, andava sozinho de carruagem de aluguel e mais algumas coisas: bebia vinho, enfim, eu existia, mas você ainda não. Imagine só: as sementes de fadiga já haviam sido jogadas em minha alma, mas você ainda não existia, ainda não! Depois, uma menina com duas trancinhas frequentava uma escola pequena e brincava de boneca, era você que tinha surgido no mundo. Mas tão pequena que não vale a pena falar sobre isso: tranças e bonecas. Meu Deus, tranças e bonecas! Depois, tendo tornado-se bela, você veio até mim. Simplesmente, certa vez, a porta se abriu e nela apareceu você, que tinha tornado-se bela. Você não acha que aqui também há um disparate: por que você, e justo você, nasceu assim tão bela, exatamente do jeito que eu sempre precisei? Eu já estava achando que não existia alguém assim, do jeito que eu precisava, e de repente a porta se abriu… incontáveis vezes ela se abriu como uma porta comum qualquer, mas o que aconteceu com ela dessa vez? Quem ela deixou entrar? Acredite em mim, querida; não precisei de anos para reconhecê-la – em um instante reconheci você e descobri que você chegou tarde demais, que isso era uma desgraça. Assim Dante viu sua Beatriz10… mas você chegou tarde demais para encontrar um pedaço da alma dele, ele distribuiu toda ela para os outros, ele é um mendigo, Beatriz! Ele é um mendigo, Beatriz – eu escrevi. Antigamente, se eu escrevesse uma coisa dessas, provavelmente teria começado a chorar ou ido procurar veneno, mas agora… agora olhei para o relógio e refleti profundamente se teria tempo para tomar o café da manhã antes de sair: eu fico mal pelo res10  Beatriz Portinari (c. 1266-1290) foi, segundo alguns críticos literários, a figura histórica que inspirou a personagem Beatriz de “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri (1265-1321). Há poucos registros diretos sobre sua vida, o que faz com que praticamente nenhuma informação possa ser comprovada, sendo as informações existentes obtidas principalmente através do testamento de seu pai, um banqueiro italiano, e da obra “Vita Nuova”, do próprio Dante, que a conheceu muito cedo, aos 9 anos de idade. Mesmo nunca a tendo em seus braços, Dante demonstrava um profundo amor espiritual por sua querida Beatriz, presente em todas as suas obras. (N. da E.)

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to do dia se não como nada de manhã. Você entende ou ainda não entendeu nada? Isso significa que eu menti para você, dizendo que também a amo. Eu não amo ninguém e não quero nada, exceto solidão e paz, paz e morte, ou seja como for que chamam esse lugar aonde ninguém perturba, e não chama, e não chega nem tarde, nem cedo. Estou cansado. E mais uma vez peço desculpas pela rispidez involuntária, minha querida: uma noite sem dormir repercute nos nervos e dá a luz um simulacro de algum tipo de horrores e paixões. Eles não existem em mim, isso é uma simples atuação, e há apenas uma coisa: o cansaço de um escavador no fim do dia, quando o sol rubro se põe. Vou segui-lo também, e isso é tudo, e não há mais nada para perguntar ou dizer… mais nada, minha querida! Adeus. Eu beijo sua mão. Sim, é verdade: beijo sua mão. O que mais? Você virá aqui e meu quarto estará vazio… Não, não é isso. Chega. Adeus. Seja bela para os outros, mas para mim você chegou tarde demais… tudo chega tarde demais, minha querida, tudo chega tarde demais! Meu nome é uma mentira e eu não vou assiná-lo. Me chame de: O Que Partiu.

II. Eu não quero que seja tarde demais Isso é revoltante! De repente, você partiu sem falar comigo e sequer deixou um endereço para onde eu possa escrever. Eu simplesmente não entendo o que devo fazer agora. E além disso, você sabe perfeitamente que eu não escrevo bem, e que verdade pode haver em uma carta? Escute aqui, por que você fez tudo isso sem ter falado comigo? Que bobagem. Se eu soubesse que você poderia agir tão repentinamente, eu não teria saído de perto da sua porta, e teria vigiado você dia e noite. Você foi embora de manhã? Na verdade, eu cheguei aí antes de receber sua carta e o apartamento estava vazio, e isso me pareceu terrível, eu simplesmente não enxergava o caminho quando estava voltando, poderia ter sido esmagada por um automóvel. Graças a Deus você ainda está vivo… mas onde está você? Em um barco ou num trem? Eu estava tão acostumada a sempre saber onde você está, e agora tudo é muito estranho para mim. Pelo fato de Leonid Andrêiev

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eu não saber onde está e simplesmente ter perdido você, como se fosse um porta-moedas, às vezes tenho a impressão de que perdi a língua e fico calada. Falar com quem? Hoje, por via das dúvidas, liguei para o seu telefone, e claro, me responderam que o telefone está fora do gancho, ninguém atende. Naturalmente! Você é tão inteligente, mas como não entendeu que eu sei de tudo? Em primeiro lugar, aquela vez, na colina, percebi perfeitamente que era difícil para você subir correndo o morro, e fui andando mais devagar de propósito para que você não se apressasse, mas mesmo assim você correu e, claro, ficou sem fôlego. Você estava tão encantador naquela ocasião, e eu senti muito por você ter ficado pálido, porque isso não era de modo algum necessário. Por acaso eu não sei quantos anos você tem? Você mesmo repetiu isso mil vezes, então não há como não se lembrar, mas até parece que isso significa algo para mim! Como se para mim fosse necessário você conseguir subir o morro rapidamente! E eu também sabia que quando bati em sua porta você estava em casa e não me atendia de propósito, porque você estava muito cansado e não queria ver ninguém, especialmente eu. Mas é realmente tão ruim quando uma pessoa está cansada? Pois eu digo que, se o seu cansaço tivesse mãos, eu as teria beijado do mesmo modo que beijo as de minha mãe, mas você é muito, muito complicado! Por exemplo, você pensou naquela noite que eu iria vir e querer que me fizesse a corte, e isso seria difícil para você. Isso é natural, quando um homem está tão cansado que se sente quase morto! Não, eu sequer olharia para você, apenas ficaria sentada quieta em outro quarto e leria, nem mesmo me mexeria, para não farfalhar com meu vestido, e só um feixe estreito de luz viria da porta – esta seria eu sentada. Aliás, você se esforçava tanto em falar à toa, de qualquer jeito eu sabia que você me amava, e junto à porta, quando você ficou parado por dez minutos, eu também fiquei parada do outro lado, mas não fiquei suspirando, e sim sorria de felicidade. Você era tão encantador, eu o amava tanto! Mas sua atitude é insana. Insana! Utilizemos a lógica. Se a sua vida é tão infeliz que tudo nela chega tarde demais, então é necessário combater isso e não você mesmo fazer com que tudo chegue tarde demais também para os 110

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outros. Você entende? Eu não quero que seja tarde demais para mim. E o que teria acontecido de bom se eu tivesse nascido vinte e oito anos antes, isso de acordo com o seu cálculo. Não, que bobagem! Sem mencionar que agora eu seria uma velha e que poderíamos nem ter nos apaixonado um pelo outro quando tivéssemos nos encontrado. É bem possível. Quem era você naquela época? Um jovem cabeludo que estava sempre apaixonado por alguém, indiscriminadamente, só por estar. Por acaso esses cabeludos são raros hoje em dia? E por que não são eles que eu amo e sim você? Como você é ilógico e insano! E você se parece mais com uma mulher do que eu. Como, sem ter procurado esclarecer direito as coisas, você imediatamente fugiu Deus sabe para onde! Entenda que isso aconteceu assim de propósito, para que eu nascesse mais tarde, e para que, em nosso encontro, quando a porta se abriu, você fosse exatamente como é, e eu, como sou. Eu também me lembro de quando essa porta se abriu e vi você, pela primeira vez na vida. Você tem um sorriso cuja existência você mesmo desconhece, porque um sorriso assim jamais pode surgir na frente do espelho, e então, quando você sorriu assim, toda a minha vida anterior se encerrou imediatamente. E da sua fama eu gosto apenas porque ela não é uma recompensa pelo seu talento, como você acha, mas por esse seu sorriso, cuja existência você nem suspeita. Você é tão encantador! E agora estou com medo, você foi embora. Que atitude insana! E se de repente eu nunca encontrar você, e se de repente você nunca ler o que estou escrevendo, ou se a carta chegar tarde demais? Como isso é terrível! Eu não entendo como algo assim pode chegar tarde demais, mas você me assustou, estou tão triste e com tanto medo, e tamanha é a saudade que aperta meu coração. Coração jovem, você disse, mas isso por acaso faz com que doa menos? Não, eu não vou chorar sobre a carta como a jovem que descreveu, e não colocarei uma xícara de café sobre as lágrimas, mas se eu pudesse ser uma bala, eu alcançaria você e entraria no seu coração. Que enterrem junto o assassinado e a bala! Você é um ingrato, obtuso e até um pouco cruel. Você é meu querido… De repente, ele escreve para mim, ele mesmo está se torturando e escreve que é tarde demais. Eu não quero discutir. Que seus biscoitos de hortelã e aquela mulher infeliz no trem rápido tenham chegado tarde demais, mas Leonid Andrêiev

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não eu. Eu não quero que seja tarde demais. Ah, se eu soubesse escrever bem, mas tenho tão pouca habilidade nesse campo, e quando escrevo, tenho a impressão de que sou loira e tenho uma fita azul no cabelo… odeio loiras e fitas azuis! E eu inclusive não gosto muito quando você me chama de “minha luz”, não, eu sou toda escura e na minha alma eu tenho uma escala diferente da das loiras, em todo caso, devo ser tocada nas teclas pretas. Mas você sabe disso, do contrário você não me amaria, mesmo assim fica me torturando com palavras cruéis e vãs. Eu não quero que seja tarde demais, não quero! Pois bem, eu era uma menina de trancinhas e brincava de boneca enquanto você andava sozinho de carruagem de aluguel… um jovem cabeludo e bastante desagradável, um misto de adolescente e homem! Foi o que tinha que ser para nós dois. Não me agrada nem um pouco a ideia de que poderia encontrar aquela infeliz dama do trem rápido e até competir com ela, não, em sua alma eu quero ser a única e a última, como você no meu universo – único, primeiro, último. Chega a ser engraçado: o primeiro e o último… como se fosse possível haver dois mundos, dois significados, dois sóis. Primeiro sol, segundo sol, que bobagem! Acaso você não gosta do fato de que somente você ilumina toda a minha alma? Mas é tão horrível você ter ido embora. Agora eu me arrependo de não ter lhe falado antes sobre o meu amor. Você acha que eu estava com muito medo de lhe contar? É verdade, eu estava com um pouco de medo, mas meu desejo de ver você sorrir era maior, e eu achava que daria tempo. Afinal, você nem sabia que todo esse tempo eu estava loucamente feliz, e ficava calada ao final da nossa noite não de tristeza nem perplexidade, mas porque uma música totalmente incomum invadia gradualmente o meu ser. Então eu dormia de olhos abertos e não ouvia nada do que você dizia sobre seus futuros quadros, perdoe-me, mas eu só via você e escutava essa minha música. Não, como você é terrivelmente obtuso. Estou com muito medo, querido, estou com muito medo. Aonde você poderia ter ido? Eu agora reli sua carta novamente, e é terrível que você esteja escrevendo sobre seu cansaço, sobre seu desespero. Graças a Deus que você está vivo… você está vivo, não é, meu querido? Onde você está? Enviarei esta carta pelo serviço de “posta-restante” e escreverei mais dez iguais a ela e 112

Duas cartas


as enviarei em direções diferentes, que percorram todas as estradas, que persigam você, que vigiem e aguardem. Pode ser que o seu cansaço passe quando estiver em terras estranhas e, de repente, você queira reclamar alguma carta, dar uma passadinha no correio, por via das dúvidas – e, de repente, lá estará a minha! Eu não quero que seja tarde demais, e todo dia vou enviar cartas para cidades diferentes, uma carta para cada cidade… afinal, uma é o suficiente para você voltar, não é verdade, querido? Você voltará? Lembre-se de como sou e volte logo, logo. É horrível ficar sozinha e sem você, você me assustou. Acredito que a minha carta irá alcançá-lo a tempo, mas de repente, por algum motivo, pode acabar sendo tarde demais… não sei, isso pode acontecer? Por que isso poderia acontecer? Talvez eu possa morrer antes de você ler e vir? Ou o quê? O que mais acontece? O que poderia ser? Não consigo escrever com esses pensamentos horríveis. E se algo acontecer com você ou já aconteceu? Afinal, eu não sei de nada, onde você está, quem está perto de você, como você está viajando. O mar, ele é tão terrível. A terra também é terrível e os trens correm tão rápido. Sozinho, sem mim. E se quando você receber a carta e quiser voltar e já estiver vindo, acontecer um acidente… não, é insuportável pensar nisso, eu não quero! Volte imediatamente. Envie um telegrama assim que você receber esta carta, vou ficar esperando. Ou então eu mesma irei até você, será mais tranquilo, ficarei esgotada, querido, tenha piedade de mim! Eu não choro sobre a carta, mas sinto tanta dor e medo que você não pode deixar de sentir pena de mim. Eu não quero que seja tarde demais. Volte imediatamente, telegrafe, apresse-se, apresse-se! Estou esperando. Sua M.

(1916)

Leonid Andrêiev

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Na névoa

N

aquele dia, desde o amanhecer, havia uma névoa estranha e imóvel nas ruas. Ela era leve e transparente, não toldava totalmente os objetos, mas tudo o que passava através dela se coloria de uma

alarmante cor amarelo-escura, e o corado fresco das faces das mulheres, bem como os borrões de cores vivas formados por seus trajes, transpareciam através dela como se estivessem por trás de um véu negro: escuros e nítidos ao mesmo tempo. Ao sul, onde o sol baixo de novembro se escondia atrás de um dossel de nuvens, o céu estava claro, mais claro que a terra, mas ao norte ele descia em forma de uma cortina larga que ia escurecendo uniformemente e, bem próximo à terra, ele se tornava amarelo-escuro e opaco, como a noite. Contra o seu fundo pesado, os prédios escuros pareciam cinza-claros, e duas colunas brancas na entrada de um algum jardim devastado pelo outono eram como duas velas amarelas colocadas junto a um defunto. E os canteiros de flores nesse jardim estavam revirados e pisoteados por pés rudes e, nos caules quebrados, flores tardias, que tinham um brilho doentio, morriam silenciosamente em meio à névoa. E, seja lá quantas pessoas havia nas ruas, todas se apressavam, e todas estavam sombrias e caladas. Triste e terrivelmente perturbador era esse dia fantasmagórico que se sufocava na névoa amarela. Na sala de jantar o relógio bateu meio dia, depois deu uma breve batida marcando 12h30, mas no quarto de Pável Rybákov estava escuro como duLeonid Andrêiev

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rante o crepúsculo, e sobre tudo derramava-se o reflexo de uma reverberação de matiz negro-amarela. Por causa dela ficavam amarelados, como velhos ossos de marfim, os cadernos e papéis espalhados sobre a mesa, e o problema de álgebra não resolvido em um deles, com seus números patentes e letras misteriosas, dava a impressão de ser tão velho, tão abandonado e desnecessário, como se muitos anos tediosos tivessem passado voando sobre ele; também o rosto de Pável, deitado na cama, ficava amarelado por causa desse reflexo. Seus braços fortes e jovens, jogados acima de sua cabeça, estavam despidos quase até o cotovelo; o livro aberto, com a capa para cima, jazia sobre o peito, e seus olhos escuros observavam fixamente o teto modelado, decorado com pinturas. Na variedade e nos tons sujos de seu colorido havia algo de entediante, aborrecido e de mal gosto, que lembrava as dezenas de pessoas que moraram neste apartamento antes dos Rybákovs, pessoas que dormiam, conversavam, pensavam, faziam algo próprio delas e que deixaram sua marca estranha em tudo. E essas pessoas lembravam Pável de centenas de outras pessoas, de professores e amigos, das ruas barulhentas e lotadas por onde caminhavam mulheres, e também daquilo – que era o mais difícil e terrível para ele – daquilo que se tem vontade de esquecer e não pensar mais a respeito. — Que tédio… que tééédio! – diz Pável de maneira arrastada, fecha os olhos e se estica tanto que as pontas de suas botas tocam as barras de ferro da cama. Os cantos de suas grossas sobrancelhas se entortaram e todo o seu rosto se arreganhou em uma careta de dor e repulsa, distorcendo e desfigurando estranhamente suas feições; quando as rugas se suavizaram, ficou evidente que seu rosto era jovem e belo. E especialmente bonitos eram os contornos ousados dos lábios cheios, e o fato de, devido a sua tenra idade, não haver bigodes sobre eles, tornava-os asseados e encantadores, como os de uma jovem moça. Mas era ainda mais doloroso ficar deitado de olhos fechados, e enxergar na escuridão das pálpebras cerradas todas aquelas coisas horríveis que você quer esquecer para sempre, então, os olhos de Pável se abriram com força. Por causa de seu brilho desnorteado, algo de senil e alarmante surgiu em seu rosto. 116

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— Pobre de mim! Pobre de mim! – ele se lamentou em voz alta, com pena de si mesmo, e voltou os olhos para a janela, procurando avidamente por luz. Mas ela não está lá, e uma penumbra amarela rasteja persistentemente para dentro das janelas, espalha-se pela sala e é tão claramente sentida que é como se pudesse ser tocada com os dedos. E, novamente, no alto, o teto se exibiu diante dos olhos. A cornija do teto era modelada e representava uma aldeia russa: havia uma cabana virada de canto para a frente, de um jeito que não existe na realidade; ao lado estava um camponês imobilizado com uma perna levemente levantada, e o bastão em suas mãos era mais alto do que ele, e ele mesmo era mais alto do que a cabana; mais à frente estava uma pequena igreja torta, e junto a ela se sobressaía de modo exagerado uma enorme carroça com um cavalo tão pequeno que parecia não ser um cavalo e, sim, um cão de caça. E o focinho dele era pontudo, como o de um cachorro. Depois, novamente, seguindo a mesma ordem: uma cabana, um camponês grande, a igreja e a carroça enorme, e assim ao redor de todo o quarto. E tudo isso era pintado em amarelo sobre um fundo rosa sujo, disforme e entediante, e não lembrava uma aldeia, mas a vida triste e desprovida de sentido de alguém. Suscitava repulsa o mestre que havia modelado a aldeia e não lhe dera uma única árvore. — Se ao menos chegasse logo a hora da refeição! – sussurrou Pável, embora não estivesse com a menor vontade de comer, e se virou impaciente para o lado. Ao se mexer, o livro caiu no chão e suas folhas ficaram dobradas, mas Pável não esticou os braços para erguê-lo. Na lombada, em letras douradas sobre o fundo negro, estava escrito: “Buckle. História da civilização1”, e isso lembrava algo velho, um monte de pessoas que durante séculos querem ajeitar as suas vidas e não conseguem; lembrava uma vida na qual tudo é incompreensível e se realiza sob extrema necessidade, e daquela coisa triste e opressiva, como um crime cometido, sobre a qual Pável não queria pensar. E ele desejou tanto a luz, ampla e clara, que seus olhos até começaram a doer. 1  Henry Thomas Buckle (1821-1862) foi um historiador britânico. Autodidata, está associado ao positivismo historiográfico, tendo influenciado muitos intelectuais brasileiros do final do século XIX. O livro em questão, “History of Civilization in England”, foi publicado originalmente em dois volumes, em 1857 e 1865, respectivamente, e no Brasil, em cinco volumes, em 1900, com o título “História da civilização na Inglaterra”. (N. da E.)

Leonid Andrêiev

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Pável deu um pulo, contornou o livro caído e começou a puxar as cortinas da janela, tentando abri-las ao máximo. — Mas que diabo! – ele xingava e afastava a cortina, mas, sendo pesada, ela teimosamente caía para trás em pregas retas e indiferentes. De repente, tendo se cansado e perdido toda a energia, Pável a puxou preguiçosamente para o lado e se sentou no frio parapeito da janela. A névoa permanecia e o céu além dos telhados cinzas era preto-amarelado, e sua sombra caía sobre as casas e a rua pavimentada. Uma semana atrás, havia caído a frágil primeira neve que derretera e, desde então, uma sujeira grudenta e cinza jazia na rua. Em alguns lugares, as pedras molhadas do calçamento refletiam o céu negro e brilhavam com um brilho oblíquo e escuro, e sobre elas rodavam as carruagens, estremecendo e balançando. O estrondo não era audível de cima – ele se extinguia na névoa, sem forças para se elevar acima do solo, e esse movimento silencioso sob o céu negro, em meio às casas escuras e úmidas, parecia sem sentido e monótono. Mas havia mulheres entre os que caminhavam e entre os que andavam de carruagem, e a presença delas dava à imagem um significado secreto e perturbador. Elas estavam indo resolver algum assunto próprio e pareciam ser tão comuns e imperceptíveis; mas Pável via seu isolamento estranho e terrível: elas eram estranhas ao resto da multidão e não se dissolviam nela, mas eram como luzinhas em meio à escuridão. E tudo era para elas: as ruas, as casas e as pessoas, e tudo se precipitava na direção delas, ansiava por elas – e não entendia. A palavra “mulher” havia sido pirogravada em letras de fogo no cérebro de Pável; era a primeira palavra que ele via em cada página aberta; as pessoas falavam em voz baixa, mas quando se deparavam com a palavra “mulher”, elas pareciam gritá-la – e, para Pável, essa era a palavra mais incompreensível, mais fantástica e assustadora. Com um olhar afiado e desconfiado, ele perscrutava cada uma das mulheres e olhava de um jeito como se agora mesmo ela fosse se aproximar da casa e explodi-la junto com todas as pessoas ou fazer algo ainda mais terrível. Mas, quando seu olhar se deparou acidentalmente com um belo rostinho feminino, seu rosto assumiu uma expressão bonita e atraente, ele se aprumou todo e ordenou com os olhos que ela se virasse e olhasse para ele. Mas ela não se virou e, 118

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novamente, dentro de seu peito ficou vazio, escuro e assustador, como numa casa devastada pela morte, que foi transpassada por uma terrível peste que matou a todos e tampou as janelas com tábuas. — Que tééédio! – disse Pável de maneira arrastada e deu as costas para a rua. Na sala de jantar, que ficava perto, há muito tempo já andavam, conversavam e faziam barulho com a louça. Depois tudo se aquietou, e se ouviu a voz grave, gutural e indulgente do senhor da casa, Serguei Andrêitch, pai de Pável. Os primeiros sons da voz dele, arredondados e agradáveis, como que trouxeram o aroma de bons charutos, de um livro inteligente e de roupa de baixo limpa. Mas agora havia nela algo estridente e distorcido, como se também na laringe de Serguei Andrêitch tivesse penetrado aquela névoa de um amarelo sujo, entediante. — E o nosso jovem, resolveu dormir até agora? Pável não conseguiu ouvir a resposta da mãe. — E não se dignou, é claro, a ir à missa na escola? Mais uma vez, a resposta não pôde ser ouvida. — Ah, é claro – continuou o pai com ironia – é um costume antiquado e… Pável não ouviu o final da frase, pois Serguei Andrêitch tinha se virado; mas, provavelmente, algo engraçado foi dito e Lília deu uma risada sonora. Quando o pai de Pável tinha algum descontentamento secreto contra ele, repreendia-o por levantar-se tarde nos feriados e não ir à missa, embora ele mesmo fosse completamente indiferente à religião e não frequentasse a igreja há uns vinte anos – desde que se casou. E desde o verão, quando eles passaram a temporada na casa de campo, ele tinha algo contra Pável e este achava que o pai suspeitava do que acontecera. Mas agora ele decidiu sombriamente: — Deixa ele! Pegando um caderno da mesa, ele fingiu estar lendo. Mas seus olhos estavam direcionados para a sala de jantar de maneira hostil e vigilante, Leonid Andrêiev

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como os de uma pessoa acostumada a se esconder e que está constantemente à espera de um ataque. — Chame o Pável! – disse Serguei Andrêitch. — Pável! Pávlucha2! Pável se levantou rapidamente e é provável que tenha causado forte dor a si mesmo: ele se dobrou, seu rosto se contorceu em uma careta de sofrimento e as mãos convulsivamente pressionaram a barriga. Lentamente, ele se endireitou, cerrou os dentes, o que fez os cantos de sua boca se aproximarem do queixo e, com as mãos trêmulas, ajeitou a jaqueta. Depois, seu rosto ficou pálido e perdeu toda expressão, como o de um homem cego, e ele foi para a sala de jantar, caminhando resolutamente, mas mantendo em seu caminhar vestígios da dor cruel que havia experimentado. — O que você estava fazendo? – Serguei Andrêitch perguntou laconicamente: eles não tinham o hábito de se cumprimentar pela manhã. — Estava lendo – respondeu Pável, igualmente lacônico. — O quê? — Buckle. — Sei, Buckle – disse Serguei Andrêitch, olhando ameaçadoramente para o filho através do pincenê. — E o que é que tem? – disse Pável de maneira resoluta e provocativa e olhou diretamente nos olhos do pai. Este ficou calado por um tempo e depois declarou significativamente: — Nada. Então, Lílietchka3, que tinha ficado com pena do irmão, se intrometeu: — Pávlia4, você vai estar em casa à noite? Pável permaneceu calado. — Quem não responde quando perguntam geralmente é chamado de 2  Variante carinhosa para o nome Pável. (N. da T.) 3  Diminutivo para o nome Lília. (N. da T.) 4  Outra variante carinhosa para o nome Pável. (N. da T.)

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malcriado. Qual é a sua opinião sobre esse assunto, Pável Sergueievitch? – perguntou o pai. — Para que isso, Serguei Andrêitch?! – interveio a mãe – coma, ou os bolinhos de carne vão esfriar. Que tempo horrível, é caso de acender as luzes! Nem sei como vou sair. — Vou estar… – respondeu Pável para Lílietchka, e Serguei Andrêitch ajeitou o pincenê e disse: — Eu não suporto essa melancolia, essa dor do mundo… Um garoto decente deve ser animado e alegre. — Não dá para ficar sempre alegre – respondeu Lílietchka, que estava sempre alegre. — Eu não estou exigindo que as pessoas fiquem alegres forçadamente. Por que você não está comendo? Perguntei para você, Pável! — Não quero. — Por que não quer? — Estou sem apetite. — E onde esteve ontem à noite? Perambulando por aí? — Estava em casa. — Sei, em casa! — E onde mais eu estaria? – perguntou Pável com petulância. Serguei Andrêitch respondeu com polidez venenosa: — Como é que eu vou saber todos os lugares – ele frisou a palavra “lugares” – que Pável Sergueiêvitch se dispõe a frequentar? Pável Sergueiêvitch é adulto; Pável Sergueiêvitch logo terá bigodes; pode ser que Pável Sergueiêvitch até já ande bebendo vodca, como é que eu vou saber? A refeição prosseguiu em silêncio e tudo que a luz da janela tocava parecia amarelo e estranhamente sombrio. Serguei Andrêitch olhava atentamente e de maneira perscrutadora para o rosto de Pável e pensava: “E esses círculos sob os olhos… mas será possível que isso é verdade e ele tem tido intimidades com mulheres, um menino desses?” Leonid Andrêiev

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Essa questão estranha e torturante, que Serguei Andrêitch não tinha forças para examinar até o fim, havia aparecido recentemente, no verão, e ele se lembrava vividamente de como isso havia acontecido e nunca o esqueceria. Atrás de um pequeno galpão, onde havia grama espessa e uma bétula branca lançava sua fresca sombra azul, ele por acaso viu uma folhinha de papel meio rasgada e amassada. Havia algo peculiar e alarmante naquela folha: daquela forma são rasgados e amassados os papéis que despertam ódio e ira, e Serguei Andrêitch o levantou, desamassou e analisou. Era um desenho. No começo ele não entendeu, sorriu e pensou: “É um desenho do Pável! Ele desenha muito bem!”. Então ele virou o papel de lado e distinguiu claramente uma imagem revoltantemente cínica e suja. — Mas que porcaria é essa?! – disse ele com raiva e largou o papel. Dez minutos depois, ele voltou para pegá-lo, levou-o para o escritório e o examinou por um longo tempo, tentando resolver um enigma cáustico e doloroso: teria sido Pável quem o desenhou, ou fora outra pessoa? Ele não podia admitir que Pável havia desenhado uma coisa tão vulgar e suja e, desenhando-a, conhecesse todas as coisas cruéis e vis que haviam nela. Na ousadia das linhas, era visível uma mão experiente e depravada, que sem hesitar se aproximava do mais íntimo, daquilo que as pessoas inocentes se envergonham de pensar; na diligência com que a imagem foi corrigida com uma borracha e matizada com um lápis vermelho, havia a ingenuidade de uma queda profunda e inconsciente. Serguei Andrêitch olhava e não acreditava que seu Pável, seu menino inteligente e esclarecido, cujos pensamentos ele conhecia totalmente, pudesse desenhar tal imundície e conhecer e entender tudo o que ele desenhava com sua própria mão, com a mão bronzeada de um jovem forte e puro. E como era muito assustador pensar que havia sido Pável quem desenhara aquilo, ele decidiu que fora alguma outra pessoa; porém, guardou o pedaço de papel. E quando viu Pável, que havia saltado de sua bicicleta – alegre, animado e ainda repleto de aromas puros dos campos pelos quais ele tinha passado correndo – mais uma vez decidiu que não foi Pável quem fez aquilo, e se alegrou. Mas a alegria passou logo e, meia hora depois, Serguei Andrêitch olhava para Pável enquanto refletia: quem é esse jovem estranho e desconhecido, 122

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estranhamente alto, estranhamente parecido com um homem? Ele fala com uma voz rude e máscula, come muito e com avidez, coloca vinho no copo de maneira calma e independente e brinca com Lília com ar protetor. Ele se chama Pável, e seu rosto é o rosto de Pável, e sua risada é a risada de Pável, e quando agora há pouco ele roeu a casquinha do pão, ele a roeu como Pável roía – no entanto, Pável não está mais presente nele. — Com quantos anos você está, Pável? – perguntou Serguei Andrêitch. Pável deu uma risadinha. — Já estou velho, papai! Logo farei dezoito anos. — Bem, ainda vai demorar para você chegar nos dezoito – corrigiu a mãe – só em seis de dezembro você completará dezoito. — E não tem bigode! – disse Lília. E todos começaram a gracejar com o fato de Pável ainda não ter bigode e ele fingia que chorava; depois do almoço colocou algodão sobre os lábios e ficou dizendo com uma voz senil: — Onde está a minha velha? E ficou andando como se estivesse debilitado. E então, Lília ainda observou que Pável estava particularmente alegre; depois disso Pável franziu a testa, tirou o bigode e foi para o seu quarto. E, desde aquele momento, Serguei Andrêitch passou a procurar o menino de antigamente, amável e que ele conhecia tão bem, mas esbarrava em algo novo e misterioso e ficava dolorosamente perplexo. E, naquela ocasião, ele também descobriu mais uma coisa nova em Pável: o fato de que seu filho apresentava constantemente alterações de humor: um dia ficava alegre e brincalhão, mas depois ficava carrancudo por horas inteiras, tornava-se irritável e insuportável e, ainda que se contivesse, era evidente que estava sofrendo por algum motivo desconhecido. E era muito difícil e desagradável ver que uma pessoa tão próxima estava triste e não saber o motivo, e por causa disso essa pessoa próxima se tornava distante e alheia. Só pelo jeito com que Pável entrava, bebia o chá sem apetite, esfarelava o pão com os dedos, e ficava olhando para o lado, para a floresta vizinha, Leonid Andrêiev

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o pai já sentia o seu mau humor e ficava indignado. E ele queria que Pável percebesse isso e compreendesse que desgosto o seu mau humor dava a seu pai; mas Pável não percebia e, depois de terminar o chá, ia embora. — Aonde você vai? – perguntava Serguei Andrêitch. — À floresta. — De novo à floresta! – o pai observava irritado. Pável se surpreendia levemente: — E o que é que tem? Todo dia eu vou à floresta. O pai se virava em silêncio, Pável saía e, observando suas costas largas, que oscilavam calmamente, podia-se ver que ele sequer tinha parado para pensar sobre o motivo de seu pai estar bravo e que se esquecera completamente da existência dele. E já há muito tempo que Serguei Andrêitch queria conversar de maneira decisiva e franca com Pável, mas a conversa que se aproximava era muito dolorosa e ele a adiava dia após dia. E quando voltaram para a cidade, Pável ficou particularmente sombrio e nervoso, e Serguei Andrêitch tinha receio de não conseguir falar de modo suficientemente calmo e convincente. Mas naquele dia, durante a longa e entediante refeição, decidiu que teria essa conversa sem mais delongas. “Talvez ele esteja simplesmente apaixonado, como todos esses garotos e garotas vivem apaixonados”, ele acalmava a si mesmo. “A própria Lília está apaixonada por um tal de Avdêiev; e eu nem me lembro de como ele é. Parece que é um estudante do ginásio”. — Lília, Avdêiev virá hoje? – perguntou Serguei Andrêitch com indiferença forçada e exagerada. Lília ergueu os longos cílios assustada, deixou cair uma pera que tinha nas mãos e sussurrou: — Ah... – depois se enfiou debaixo da mesa para pegar a pera e, quando voltou de lá, estava toda vermelha, e até sua voz dava a impressão de estar vermelha – Tinov virá, Pospielov virá… e Avdêiev também virá. O interior do quarto de Pável ficou um pouco mais claro, e a aldeia mol124

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dada no teto se sobressaiu mais intensamente e olhava com uma presunção estúpida e ingênua. Pável se virou com raiva e pegou o livro, mas logo o colocou sobre o peito e começou a pensar no que Lílietchka havia dito: os alunos do ginásio viriam. Isso significava que Kátia5 Reimer também viria – a sempre séria, sempre atenciosa, sempre sincera Kátia Reimer. Esse pensamento era como uma fogueira sobre a qual seu coração caiu e, com um gemido, ele rapidamente se virou e enterrou o rosto no travesseiro. Depois, assumindo a posição anterior com a mesma rapidez, limpou duas lágrimas cáusticas dos olhos e fixou o olhar no teto, mas não estava mais vendo nem o camponês grande com o comprido bastão, nem a carroça enorme. Ele se lembrou da datcha6 e da noite escura de julho. Aquela tinha sido uma noite escura, e as estrelas tremeluziam no abismo azul-escuro do céu, e uma nuvem negra que despontava no horizonte ia apagando-as por baixo. E na floresta, onde ele estava deitado atrás dos arbustos, estava tão escuro que ele não enxergava a própria mão, e às vezes parecia-lhe que ele mesmo não existia, mas que havia apenas uma escuridão calada e espessa. O mundo se estendia para longe em todas as direções, e era infinito e escuro, e Pável sentia sua extensão imensurável e alheia com todo o seu coração solitário e dolorido. Ele permanecia deitado e esperava que Kátia Reimer passasse pela trilha com Lílietchka e outras pessoas alegres e despreocupadas que vivem num mundo que é alheio a ele e que são, elas próprias, alheias a ele. Não tinha ido com eles, porque amava Kátia Reimer com um amor puro, bonito e triste, e ela não sabia desse amor e jamais poderia compartilhá-lo. E ele queria ficar sozinho e perto de Kátia, para sentir mais profundamente seu encanto distante e toda a profundidade de seu próprio pesar e de sua solidão. E ele ficou deitado em meio aos arbustos, na terra, um forasteiro para todas as pessoas e um estranho para a vida, que com toda a sua beleza, canções e alegria passava por ele, passava por ele naquela noite escura de julho. Ele estava deitado há um bom tempo e o negrume da noite havia se tornado mais espesso e escuro quando, muito à frente, escutou vozes, risos, estalidos de galhos sob os pés, e ficou claro que muitas pessoas jovens e 5  Variante carinhosa para o nome Iekatierina ou Katierina. (N. da T.) 6  Casa de campo típica russa. (N. da T.)

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alegres estavam andando. E tudo isso estava avançando em uma multidão de sons alegres e chegou bem próximo. — Oh, meu pai! – dizia Kátia Reimer em um contralto denso e sonoro – desse jeito a gente pode rachar a cabeça. Tinov, ilumine aqui! Da escuridão, guinchou uma voz estranha e engraçada de bufão: — Perdi os fósforos, Katierina Eduárdovna! Em meio à risada soou outra voz, um baixo jovem e contido: — Permita-me, Katierina Eduárdovna, eu iluminarei! Kátia Reimer respondeu, e sua voz ficou séria e diferente: — Sim, por favor, Nikolai Pietróvitch! O fósforo brilhou e queimou por um segundo com uma luz branca e brilhante, destacando da escuridão apenas a mão que o segurava, como se esta última estivesse pairando no ar. Então ficou ainda mais escuro, e todos com seus risos e piadas prosseguiram caminho. — Me dê sua mão, Katierina Eduárdovna! – soou aquele mesmo jovem baixo e contido. Um minuto de silêncio, enquanto Kátia Reimer dava sua mão, e depois pesados passos masculinos, e ao lado deles o discreto farfalhar de um vestido. E a mesma voz perguntou baixinho e suavemente: — Por que está tão triste, Katierina Eduárdovna? Pável não escutou a resposta. As pessoas que caminhavam se viraram de costas para ele; as vozes imediatamente se tornaram mais abafadas, se inflamaram mais uma vez, como uma chama que está se apagando na fogueira, e se extinguiram. E quando parecia que nada restava além da espessa escuridão e do silêncio, com sonoridade inesperada soou uma risada feminina, tão clara, inocente e estranhamente astuta, como se não fosse uma pessoa que estivesse rindo, mas uma jovem bétula escura ou alguém escondido em seus galhos. E esgueirou-se pela floresta como um sussurro que se dispersa, e tudo caiu em expectante silêncio quando uma voz masculina, como ouro, suave, brilhante e sonora, começou a cantar alto e apaixonadamente: 126

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— Você me disse: sim, eu te amo… Tão incrivelmente brilhante, tão cheia de força de viver era essa voz que a floresta parecia se alvoroçar, e algo cintilante, como vaga-lumes dançando, brilhou nos olhos de Pável. E mais uma vez aquelas mesmas palavras, e elas ressoavam juntas como um gemido, como um grito, como um suspiro profundo e indivisível. — Você me disse: sim, eu te amo… E de novo e de novo, com insana perseverança, o cantor repetia a mesma frase breve e demorada, como se a cravasse na escuridão. Parecia que ele não conseguia parar; e a cada repetição o apelo ardente se tornava mais forte e mais incontrolável; já a crueldade soava nele – o rosto de alguém estava empalidecendo, e a felicidade estava se tornando tão parecida com uma tristeza mortal. Um minuto de negro silêncio – uma risada feminina, distante, que cintilava silenciosamente, misteriosa como um relâmpago – e tudo ficou quieto, e a escuridão pesada como que comprimiu os passantes. O ambiente ficou silencioso e deserto, como no espaço vazio, mil quilômetros acima da Terra. A vida passou por ele com todas as suas canções, amor e beleza – passou por ele naquela noite escura de julho. Pável se levantou de trás dos arbustos e sussurrou baixinho: — Por que está tão triste, Katierina Eduárdovna? – e as lágrimas silenciosas brotaram em seus olhos. — Por que está tão triste, Katierina Eduárdovna? – ele repetia, e seguia em frente sem rumo certo, adentrando na escuridão da noite que se aprofundava. Em um dado momento, ele passou tão perto de uma árvore que chegou a tocá-la e parou perplexo. Então, envolveu o tronco áspero com o braço, apertou o rosto contra ele como se ele fosse um amigo e ficou imóvel, tomado por um desespero silencioso, privado de lágrimas e de gritos furiosos. Depois, ele se afastou silenciosamente da árvore que o aconchegara e seguiu em frente. — Por que está tão triste, Katierina Eduárdovna? – ele repetia como uma Leonid Andrêiev

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canção lamuriosa, como uma silenciosa oração desesperada e, nesses sons, toda a sua alma se debatia e chorava. Uma terrível penumbra a envolvia e, repleta de um grande amor, ela rezava por algo iluminado, que ela própria não conhecia, e, por isso, sua oração era tão intensa. Já não havia paz nem silêncio na floresta: o sopro de uma tempestade agitou o ar, e os cumes das árvores começaram a estrondear, e o vento percorreu as folhas como uma risada seca. Quando Pável chegou à borda da floresta, o vento quase arrancou seu chapéu e, imperiosamente, acertou-o no rosto com o frio, o frescor e o cheiro de centeio. O ambiente era majestoso e ameaçador. Atrás, a floresta se erguia como uma massa negra que emitia um gemido abafado, e, à frente, uma nuvem de trovoada se aproximava, pesada e negra, como a escuridão que havia tomado forma. E sob ela se estendia o campo de centeio, e ele era completamente branco, e por ser tão branco em meio às trevas, apesar de não estar sendo iluminado por nenhuma luz, suscitava um medo incompreensível e místico. E quando surgia um relâmpago e as nuvens se delineavam em forma de um delgado e inquieto aglomerado de sombras, um amplo fogo vermelho-dourado se estendia sobre o campo de ponta a ponta, e as espigas fugiam, inclinando as cabeças, como um rebanho assustado – fugiam naquela terrível noite de julho. Pável subiu em um barranco alto, abriu os braços e era como se estivesse convidando para o próprio peito o vento, a nuvem negra e todo o céu, tão belo em sua ira ardente. E o vento girava em torno de seu rosto, como se estivesse o apalpando, e com um assobio atingiu os montes de folhas flexíveis; e a nuvem se acendia e estrondeava, e, curvando-se bastante, as espigas fugiam. — Então vai! Vai! – gritava Pável, e o vento capturava suas palavras e, ferozmente, enfiava-as de volta em sua garganta e, em meio ao estrondo do céu, não eram audíveis essas palavras rebeldes e suplicantes com as quais um pequeno ser humano se dirigia ao grandioso desconhecido. Isso aconteceu no verão, em uma escura noite de julho. Pável olhava para o teto, sorria com um sorriso comovido e orgulhoso e lágrimas brotaram em seus olhos. — Que chorão me tornei! – ele sussurrou, balançando a cabeça, e enxu128

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gou os olhos com os dedos de maneira ingênua e infantil. Ele se voltou para as janelas esperançosamente, mas a suja névoa da cidade olhava de lá de maneira entediante e sombria e, por causa dela, tudo ficava amarelo: o teto, as paredes e o travesseiro amassado. E as imagens puras do passado, espantadas por ela, começaram a se agitar, ficaram cinzas e caíram em algum buraco negro, se empurrando e gemendo. — Por que está tão triste? – dizia Pável como uma súplica, como um pedido de misericórdia; mas este era impotente diante das imagens novas, ainda vagas, mas já conhecidas e assustadoras. Como uma névoa podre sobre um pântano cor de ferrugem, elas se erguiam daquele buraco negro e, imperiosamente, a memória desperta trazia mais e mais imagens novas. — Não quero! Não quero! – sussurrava Pável e se debatia, e se contorcia de dor. Ele viu a datcha novamente, só que era dia – estranho, ruim e terrível. Estava calor, o sol brilhava e de algum lugar vinha um alarmante cheiro de queimado; e ele havia se escondido nos arbustos na margem e, tremendo de medo, observava através de binóculos as mulheres se banhando. E ele viu as manchas de seus corpos num tom de rosa intenso, e um céu azul, que parecia vermelho, e a si mesmo, pálido, com mãos trêmulas e joelhos sujos de terra. Depois ele viu a cidade de pedra e novamente mulheres, indiferentes, cansadas, com olhos insolentes e frios. Uma fileira formada de seus rostos pintados e pálidos desaparecia nas profundezas do passado, e entre eles surgiam fisionomias masculinas de bigodes, garrafas de cerveja e copos com restos de bebida, e sombras iluminadas rodopiavam, dançando em meio a uma espécie de fumaça, e impertinentemente tinia o piano, lançando sons de polca melancólicos e irritantes. — Não quero! – Pável sussurrava baixinho, já se rendendo. E as memórias penetraram em sua alma como uma faca afiada na carne viva. E todas eram mulheres. Seus corpos, destituídos de alma, repugnantes como a sujeira pegajosa dos terreiros e estranhamente fascinantes em sua sujeira e acessibilidade indisfarçadas. E eles estavam por toda parte. Eles estavam em conversas e anedotas sem sentido, cínicas e cáusticas, como ácido sulfúrico, que ele ouvia dos outros e contava ele próprio com tanta maestria; eles estavam nas imagens que ele desenhava e mostrava rindo Leonid Andrêiev

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aos seus companheiros; eles estavam em pensamentos e sonhos solitários, penosos como um pesadelo e atraentes como ele. E, como se fosse viva, como algo que nunca poderá ser esquecido, uma noite surgiu diante dele – uma impetuosa e embriagante noite. Naquela noite, dois anos atrás, ele entregou seu corpo puro e seus primeiros beijos puros para uma mulher promíscua e sem vergonha. Seu nome era Luísa; ela vestia um traje de hussardo e reclamava constantemente que as calças estavam apertadas. Pável mal se lembrava de como tinha ficado com ela, e só se lembrava bem de sua casa, para onde voltou tarde, pouco antes do amanhecer. A casa estava escura e silenciosa; na sala de jantar havia uma janta preparada para ele e um gordo bolinho de carne estava coberto com uma camada de gordura branca solidificada. Ele estava sofrendo de náuseas por causa da cerveja e, quando se deitou, o teto modelado, parcamente iluminado por uma vela, começou a balançar, a girar e foi deslizando. Ele saiu algumas vezes, cambaleando, tentando não fazer barulho e se agarrando às cadeiras, e o chão sob seus insólitos pés descalços estava terrivelmente frio e escorregadio, e por causa desse frio extraordinário ficava especialmente claro que há muito já era noite e que todos dormiam em silêncio, e apenas ele estava andando atormentado pela dor, que era alheia a esta casa limpa e boa. Pável olhou com ódio para o seu quarto e para o repugnante teto modelado e, submisso diante das lembranças que afluíam, rendeu-se ao seu terrível poder. Ele se lembrou de Pietróv, um jovem bonito e autoconfiante, que falava das mulheres da vida com absoluta calma e sem paixão, e ensinava aos seus companheiros: — Eu nunca me permitirei beijar uma prostituta. Só se pode beijar aquelas que se ama e se respeita, mas não esse tipo de lixo. — E se ela fica te beijando? – perguntou Pável. — Deixa ela! Eu viro o rosto. Pável sorria amarga e tristemente. Ele não sabia se comportar como Pietróv e beijava aquelas mulheres. Seus lábios tocavam seus corpos frios, e uma vez – e era terrível de se lembrar – ele, em um estranho desafio a si 130

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mesmo, beijou uma mão flácida que cheirava a perfume e a cerveja. Ele beijou como se estivesse punindo a si mesmo; beijou como se seus lábios pudessem produzir um milagre e transformar uma mulher prostituída em pura, bela, digna de um grande amor, pelo qual ele ansiava com uma avidez que queimava seu coração. Mas, ela disse: — Como você é beijoqueiro! E foi por causa dela que ele ficou doente. Ele adoeceu com uma doença vergonhosa e suja da qual as pessoas falam em segredo, com um sussurro escarnecedor, escondendo-se atrás de portas fechadas, uma doença sobre a qual não se pode pensar sem sentir horror e aversão a si mesmo. Pável pulou da cama e foi até a mesa. Lá ele ficou remexendo nos papéis e cadernos, abria-os e fechava-os novamente e suas mãos tremiam, enquanto seus olhos, olhando de esguelha e tensos, perscrutavam aquele lugar da mesa onde os acessórios para o tratamento estavam trancados e cuidadosamente ocultos por papéis. “Se eu tivesse um revólver, atiraria em mim mesmo agora. Bem nesse lugar…”, ele pensou e encostou o dedo do lado esquerdo do peito, onde batia o coração. E, olhando concentradamente diante de si, pensando em com qual dos amigos poderia arrumar uma arma, ele foi até o leito desarrumado e se deitou. Depois, passou a refletir sobre se conseguiria acertar o coração e, abrindo o casaco e a camisa, começou a observar com interesse o peito jovem, ainda não completamente desenvolvido. — Pável, abra! – ele escutou a voz de Lílietchka atrás da porta. Estremecendo assustado, pois agora ele se assustava com qualquer som inesperado e grito, Pável rapidamente se recompôs e destravou o ferrolho da porta relutantemente. — O que você quer? – ele perguntou mal-humorado. — Ora, te dar um beijo. Por que você fica se trancando toda hora? Tem medo de ser roubado? Pável se deitou na cama e Lílietchka, fazendo uma tentativa frustrada de se sentar ao lado dele, disse: Leonid Andrêiev

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— Chegue para lá! Que malvado, não quer dar lugar para a irmãzinha. Pável se moveu em silêncio. — Hoje eu estou entediada – disse Lílietchka – nada demais, só não me sinto muito bem. Deve ser por causa do tempo: eu gosto do sol, mas isso aqui está uma porcaria. Dá vontade de sair por aí mordendo de raiva. E, acariciando com cuidado sua cabeça, cujos cabelos cortados bem curto espetavam, ela o olhou suavemente nos olhos e perguntou: — Pávlia! Por que você se tornou tão triste? Pável desviou os olhos e lançou uma resposta taciturna: — Eu nunca fui alegre mesmo. — Não, Pávlia, eu realmente sei. Isso vem daquela época, quando voltamos da datcha. Você fica se escondendo de todo mundo, nunca ri. Parou de dançar. — Dançar é um passatempo estúpido… — Mas antes você dançava! Você dança tão bem mazurca, melhor que todos; e todas as outras modalidades você também dança bem. Vamos, Pávlia, me diz, por que isso? Diz para mim, meu estimado, meu querido, meu formoso, meu lindo! E ela o beijou na bochecha, perto da orelha que tinha ficado vermelha. — Não toque em mim! Afaste-se! – e, encolhendo os ombros, acrescentou baixinho: – eu estou sujo… Lílietchka riu e, fazendo cócegas atrás de sua orelha, disse: — Você é limpinho, Pávlia! Lembra de quando a gente tomava banho junto na banheira? Você era branquinho, que nem um porquinho, tão limpo lim-pi-nho! — Afaste-se, Lílietchka! Por favor! Pelo amor de Deus! — Não me afasto enquanto você não se alegrar. Você tem pequenas costeletas perto das orelhas, só agora reparei. Deixa eu dar um beijo nelas! — Afaste-se, Lília! Não toque em mim! Estou te falando – dizia Pável com voz abafada, escondendo o rosto – eu estou su… sujo… sujo! – ele exalou do132

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lorosamente a palavra perturbadora e estremeceu todo, da cabeça aos pés, por causa de um soluço que surgiu momentaneamente e foi contido. — O que foi, Pávlia, querido? – Lílietchka se assustou – quer que eu chame o papai? Pável respondeu com voz abafada, mas calmamente: — Não, não precisa. Está tudo bem. Só estou com um pouco de dor de cabeça.

Lílietchka, incrédula e suavemente, acariciava a nuca proeminente coberta de cabelos cortados rente e olhava pensativa para ele. Depois, disse em um tom indiferente: — Ontem a Kátia Reimer perguntou de você. Após permanecer certo tempo em silêncio, Pável perguntou, sem se virar: — O que ela perguntou? — Ah, o normal: como você está, o que anda fazendo, por que nunca vai visitá-los. Pois eles tinham convidado você, não é mesmo? — Até parece que ela precisa disso… — Não, Pávlia, não fale assim! Você não a conhece. Ela é muito inteligente e madura, e se interessa por você. Você pensa que ela só gosta de dançar, mas ela lê bastante e quer organizar um grupo de leitura. Ela vive me dizendo: “Como o seu irmão é inteligente.” — Ela é uma coquete… e um lixo. Lílietchka corou, empurrou Pável com raiva e se levantou. — Você é que é mau por falar assim. — Mau? Sim, e daí? – disse Pável desafiadoramente, olhando para sua irmã com olhos ferozes e brilhantes. — Daí que não ouse falar desse jeito! Não ouse! – gritou Lílietchka, toda vermelha, com olhos igualmente ferozes e brilhantes. — Mas, já que sou mau! – insistiu Pável. — Rude, insuportável, está envenenando a vida de todos… egoísta! Leonid Andrêiev

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— E ela é um lixo, a sua Kát… Kátia. E todas vocês são uns lixos, escória! Lágrimas brilharam nos olhos de Lílietchka. Segurando a maçaneta da porta, ela reprimiu o tremor em sua voz e disse: — Eu estava com pena de você e por isso vim. Mas você não merece isso. E nunca mais venho ver você. Está escutando, Pável? A nuca proeminente permanecia imóvel. Lília acenou com a cabeça para ele raivosamente e foi embora. Expressando completo desdém em seu rosto, como se algo imundo tivesse saído pela porta, Pável travou o ferrolho cuidadosamente e caminhou ao redor do quarto. Ele estava se sentindo mais aliviado por ter insultado Kátia e Lílietchka e ter dito o que todas elas são: lixo e escória. E, andando cautelosamente, ele começou a refletir sobre como todas as mulheres são criaturas vis, egoístas e limitadas. Veja a Lília. Ela não conseguiu entender que ele estava infeliz, e por isso falava daquele jeito, e o xingou como se fosse uma feirante qualquer. Ela está apaixonada por Avdêiev, mas três dias atrás Pietróv veio visitá-los, e ela brigou com a camareira, depois com a mãe, porque elas não conseguiam encontrar sua fitinha vermelha. E Kátia Reimer é igual: ela é pensativa, séria, interessada nele, Pável, e diz que ele é inteligente; mas se o mesmo Pietróv for visitá-la, ela colocará uma fita azul para agradá-lo, ficará se penteando na frente do espelho e estampando uma expressão bonita no rosto. E tudo isso para agradar Pietróv; e Pietróv é um tipo vulgar, autoconfiante e estúpido, e o ginásio inteiro sabe disso. Ela é pura e apenas suspeita, mas não se permite pensar a respeito do fato de que existem mulheres devassas e doenças – doenças terríveis e vergonhosas, por causa das quais um ser humano se torna infeliz e tem nojo de si mesmo, e atira com um revólver nele mesmo, tão jovem e formoso! E no verão ela mesma ficou usando um vestido decotado em público, e quando ela anda de braços dados, se aconchega bem pertinho, bem pertinho. Talvez ela já tenha beijado alguém… Pável cerrou os punhos e sussurrou entredentes: — Que porcaria! 134

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É provável que tenha beijado… Ele, Pável, não se atreve nem mesmo a olhar para ela, mas ela beijou, e, provavelmente, beijou Pietróv – ele é autoconfiante e descarado. E depois, algum dia ela lhe dará seu corpo, e farão com ele o mesmo que fazem com as mulheres prostituídas. Que abominação! Que vida vil, em que não há nenhuma luz para a qual um olhar obscurecido pela tristeza e pela melancolia poderia se voltar! Como saber, talvez agora, agora mesmo, Kátia já tenha… um amante. — Não pode ser! – gritou Pável, mas alguém dentro dele continuava calma e maldosamente, e suas palavras eram terríveis: “Sim, tem, algum cocheiro ou lacaio. Conhece-se casos em que essas moças puras tinham amantes lacaios, e ninguém sabia disso, e todos as consideravam imaculadas; mas, à noite, elas corriam para os encontros, pés descalços no chão terrivelmente frio. Depois se casavam e mentiam. Isso acontece – ele já leu a respeito. Os Reimer têm um lacaio, rapaz moreno e bonito…” Pável se vira bruscamente e começa a andar para o outro lado. Ou Pietróv… ela foi a um encontro com ele e Pietróv – ele é descarado e corajoso – disse a ela: “Está frio aqui, vamos para algum lugar mais quente!”, e ela foi. Pável não consegue imaginar além disso. Ele está parado junto à janela e é como se estivesse se engasgando com a repugnante névoa amarela que se arrasta sombria e imperiosamente para dentro do quarto, como um réptil disforme de barriga amarela. Pável está sendo sufocado pela raiva e desespero, mas ainda assim ele se sente aliviado em pensar que não é o único condenável, mas que todos são, o mundo todo. E a doença dele não lhe parece mais tão terrível e vergonhosa. “Isso não é nada”, ele pensa, “Pietróv ficou doente duas vezes, Samóilov três vezes até, Schmidt e Pomierántsev já se curaram e eu irei me curar também”. — Vou ser como eles e tudo vai ficar bem – decidiu ele. Pável testou o ferrolho, foi até a mesa e segurou o puxador da gaveta; mas, então, em sua mente surgiram todos aqueles instrumentos escondidos lá no fundo, frascos com líquidos turvos e repulsivas etiquetas amarelas, e a maneira como ele os tinha comprado na farmácia, queimando de vergoLeonid Andrêiev

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nha, enquanto o farmacêutico se afastava dele, como se também ele estivesse envergonhado; e como foi ao médico, um homem com um rosto nobre e extraordinariamente limpo, tanto que era até estranho que um homem tão limpo fosse obrigado a lidar constantemente com doenças sujas e repugnantes. E a mão estendida de Pável despencou e ele pensou: — Não! Eu não vou me tratar. É melhor que eu morra… Ele se deitou e os frascos com etiquetas amarelas permaneciam diante de seus olhos, e vendo-os, ficou claro que todas as coisas ruins que ele tinha pensado sobre Kátia Reimer eram uma mentira detestável e vil, tão repugnante e suja quanto a doença dele. E ele sentia-se envergonhado e com medo por ter pensado assim daquela que amava e diante da qual era indigno até de se ajoelhar; por ter pensado e se alegrado com seus pensamentos sujos, e por ter achado que eram verdadeiros, e em sua sujeira colher um orgulho estranho e terrível. E ele ficou com medo de si mesmo. “Será possível que este seja eu e estas mãos sejam as minhas?” – ele pensava enquanto examinava seu braço que ainda conservava o bronzeado do verão e que estava sujo de tinta perto de onde começava a mão. E tudo se tornou incompreensível e terrível, como em um sonho. Era como se ele tivesse visto pela primeira vez seu quarto, e o teto modelado e suas botas, que se apertavam contra as barras da cama. Elas eram estilosas, com pontas longas e estreitas, e Pável moveu o dedão para se certificar de que era o seu pé que estava encarcerado nelas, e não os de outra pessoa. E então, se certificou de que era ele mesmo, Pável Rybákov, e compreendeu que era um homem perdido, para quem não há esperança. Foi ele quem pensou tão mal de Kátia Reimer; é ele quem tem uma doença vergonhosa; é ele quem vai morrer em breve, e é por ele que irão chorar. — Perdoe-me, Kátia! – sussurrou ele com os lábios pálidos ressecados. E ele sentiu a sujeira que o envolvia e se infiltrava em todo o seu ser. Ele começou a senti-la desde que adoeceu. Todas as sextas-feiras, Pável vai à bánia7, duas vezes por semana troca a roupa de baixo, e tudo o que veste é novo, caro e não está puído; mas parece que todo ele, inclusive a cabeça, 7  Espécie de sauna típica russa. (N. da T.)

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está deitado em uma lavagem fedorenta, e quando ele anda, deixa um traço fétido no ar. Ele examina com medo e estranho interesse cada pequena manchinha que aparece na jaqueta, e com muita frequência começa a sentir coceira, ora nos ombros, ora na cabeça e sua roupa de baixo parece grudar no corpo. E às vezes isso acontece durante o almoço, em público, e então ele se percebe tão terrivelmente solitário, como um leproso em sua podridão. Seus pensamentos são igualmente sujos e parece que, se abrissem seu crânio e retirassem o cérebro dali, ele estaria sujo como um trapo, como os cérebros dos animais que se encontram jogados nos matadouros, na lama e no esterco. E as mulheres estão sempre presentes, cansadas, excessivamente pintadas, com olhos frios e impudentes! Elas o perseguem na rua e ele tem medo de sair, especialmente à noite, quando a cidade está repleta dessas mulheres, como uma carne decomposta cheia de vermes; elas entram na cabeça dele como se estivessem entrando no quarto sujo delas, e ele não consegue afastá-las. Quando ele dorme e é impotente para controlar seus sentimentos e desejos, elas surgem das profundezas de seu ser em forma de visões ardentes; quando está acordado, uma força terrível o toma em suas mãos de ferro e o joga nos braços sujos de mulheres sujas, cego, alterado, sem se parecer consigo mesmo. “Isso é porque eu sou um libertino”, pensou Pável, tomado por um desespero plácido. “Mas não por muito tempo, em breve eu vou me matar. Eu vou ver Kátia Reimer hoje e me matar. Ou não: vou só ouvir a voz dela do meu quarto e, quando me chamarem, não vou sair.” Arrastando as pernas pesadamente, como um homem doente, Pável se aproximou da janela. Algo escuro, terrível e sem esperança, como o céu de outono, olhava de lá, e parecia que não teria fim, e que sempre existira, e que em nenhum lugar no mundo havia alegria, nem uma paz pura e iluminada. — Se apenas houvesse luz! – diz Pável com tristeza e, como última esperança, lembra-se do diário. Ele também está bem escondido e não foi aberto desde que Pável ficara doente: quando os pensamentos estão sujos e a pessoa não ama a si mesma, nem a sua alegria e a sua dor, ela não tem nada para escrever em seu diário. Pável pega o diário cuidadosa e gentilmente, como se pega uma criança doente, e se deita com ele na cama. O diário está Leonid Andrêiev

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belamente encadernado e a borda do papel é dourada; o próprio papel é branco, limpo e não há sequer uma mancha suja em todas as páginas escritas; Pável o folheia com respeito e cuidado, e das páginas brilhantes, pouco flexíveis, exala o cheiro da primavera, da floresta, da luz do sol e do amor. Ali estão reflexões sobre a vida, tão sérias e decisivas, com tantas palavras estrangeiras inteligentes que Pável tem a impressão de que não foi ele quem as escreveu, mas alguém idoso e terrivelmente inteligente; ali está o primeiro palpitar do pensamento cético, as primeiras dúvidas e questões puras dirigidas a Deus: onde estais, ó Senhor? Ali está uma doce tristeza de amor insatisfeito e não correspondido e a decisão de ser orgulhoso, nobre e amar Kátia Reimer por toda a longa vida, até o túmulo. Ali está uma pergunta ameaçadora e terrível sobre o propósito e o significado da existência, e uma resposta franca, da qual emanam a primavera e o brilho do sol: é preciso viver para amar as pessoas, que são tão infelizes. E nem uma palavra sobre aquelas mulheres. Apenas ocasionalmente, como reflexos de uma nuvem negra sobre uma terra verde e risonha, há notas curtas, sublinhadas e lacônicas: está difícil. Pável sabe seu significado secreto e triste, corre os olhos por cima delas e rapidamente vira a página que foi desonrada por elas. E o tempo todo parecia a Pável que não era ele quem havia escrito aquilo, mas alguma outra pessoa, boa e inteligente; ela agora está morta, essa pessoa, e por isso é tão significativo tudo o que foi escrito por ela e, por isso, causa tanta lástima ler o que escreveu. E um silencioso pesar pela pessoa morta encheu o coração dele; e pela primeira vez em muitos dias, Pável sentiu-se em casa, na própria cama, sozinho, e não na rua, entre milhares de vidas hostis e alheias. Já estava escurecendo e a estranha reverberação amarelada se extinguiu; envolta em névoa, a longa noite de outono crescia silenciosamente e, como que assustadas, casas e pessoas se aproximavam. Os lampiões da rua se acenderam com uma luz pálida e indiferente, e essa sua luz era fria e triste; em alguns lugares as janelas das casas se iluminaram com uma luz tépida, e cada uma dessas casas, onde a luz brilhava em pelo menos uma janela, parecia estar iluminada por um sorriso amigável e terno e se tornava 138

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grande, negra e carinhosa, como um velho amigo. Como antes, as carruagens rodavam oscilando e os transeuntes se moviam apressadamente, mas agora era como se cada um deles tivesse um objetivo: chegar mais rapidamente no lugar onde há calor, aquela terna luz e pessoas carinhosas. Pável fechou os olhos e em sua mente surgiu a imagem vívida do que tinha visto antes de deixar a datcha, quando, sozinho à noite, havia ido dar uma volta: o crepúsculo silencioso de outono que caía do céu junto com uma chuva macia e uma estrada longa e reta. Com seus extremos, ela submergia na escuridão e falava de algo infinito, como a vida; e na estrada, indo em direção a Pável, moviam-se rapidamente dois latoeiros atrelados a uma pequena carroça. A carroça rangia fracamente; os latoeiros faziam pressão com o peito e caminhavam rapidamente, mexendo a cabeça no ritmo do passo; e bem ao longe, à frente deles, quase no horizonte, cintilava uma luzinha em forma de um ponto claro e brilhante. Em um minuto eles estavam perto de Pável; e quando ele se virou para segui-los com o olhar, a estrada estava deserta e escura, como se nunca tivessem passado por ali pessoas atreladas a uma carroça. Pável via a estrada e o crepúsculo, e isso era tudo o que preenchia seus pensamentos. Foi um momento de calmaria, quando uma alma rebelde e perturbada, esgotada pelas tentativas de romper o círculo férreo de contradições, deslizou fácil e silenciosamente para fora dele e se elevou. Isso era a paz, o silêncio e o distanciamento da vida, algo tão bom e triste que não podia ser transmitido pela fala humana. Por mais de meia hora, Pável ficou sentado na poltrona, quase sem se mover; ficou escuro no quarto, e as manchas claras dos lampiões e de mais alguma outra coisa começaram a dançar no teto; mas ele permanecia sentado e, no escuro, seu rosto parecia pálido e diferente do habitual. — Pável, abra! – ouviu-se a voz do pai. Pável deu um pulo e, por causa do movimento rápido, a mesma dor aguda e cortante fez com que perdesse o fôlego. Dobrando-se e pressionando as mãos frias na barriga encovada, ele cerrou os dentes e respondeu mentalmente: “Estou indo”, já que não conseguia falar. Leonid Andrêiev

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— Pávlucha, está dormindo? Pável abriu. Serguei Andrêitch entrou, um pouco embaraçado, um pouco hesitante, mas, ao mesmo tempo, imperiosamente, como entram os pais que estão conscientes do seu direito de entrar no quarto do filho a qualquer momento, mas também desejam ser cavalheiros e respeitam estritamente a inviolabilidade do espaço privado de outra pessoa. — O que foi, meu caro, estava dormindo? – perguntou gentilmente Serguei Andrêitch e, de maneira desajeitada, no escuro, deu um tapinha no ombro de Pável. — Não, só… estava cochilando – respondeu Pável relutantemente, porém, do mesmo modo gentil, ainda repleto de tranquila paz e sonhos indistintos. Ele compreendeu que seu pai havia vindo até ele para fazer as pazes e pensou: “Para que tudo isso?” — Por favor, acenda a lâmpada! – pediu o pai – a única salvação da névoa é quando as luzes se acendem. Hoje fiquei nervoso o dia inteiro. “Está se desculpando…” pensou Pável, levantando o vidro da lâmpada e acendendo o fósforo. Serguei Andrêitch se sentou em uma poltrona ao lado da mesa, endireitou o abajur e, notando o caderno com a inscrição: “Diário”, delicadamente o colocou de lado e até o cobriu com um papel. Pável observava em silêncio os movimentos do pai e esperava. — Me dê um fósforo! – pediu Serguei Andrêitch, pegando um cigarro. Ele tinha fósforos no bolso, mas queria dar ao filho o prazer de servi-lo. Ele começou a fumar, lançou um olhar para a capa preta do livro de Buckle e começou: — Eu discordo radicalmente de Tolstói e de outros defensores da simplicidade que lutam infrutiferamente contra a civilização e exigem que voltemos a andar de quatro. Mas não se pode deixar de concordar que o reverso da civilização inspira preocupações muito – ele levantou a mão e abaixou 140

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– muito sérias. Assim, se olharmos para o que está acontecendo agora, por exemplo, na própria maravilhosa França8 … Serguei Andrêitch era um homem inteligente e bom, e pensava tudo aquilo que pensavam as pessoas inteligentes e boas de seu país e de seu tempo, que haviam estudado nas mesmas escolas e que liam os mesmos bons livros, jornais e revistas. Ele era um inspetor da companhia de seguros “Fênix”, e frequentemente deixava a capital a negócios; e quando estava em casa, mal tinha tempo de se encontrar com seus numerosos conhecidos, ir ao teatro, visitar exposições e se inteirar das novidades literárias. Mesmo com tudo isso, ele conseguia arranjar um tempo para passar com as crianças, especialmente com Pável, pois atribuía particular importância ao seu desenvolvimento, por ser o desenvolvimento de um menino. Além disso, ele não sabia sobre o que conversar com Lília e, por isso, era mais carinhoso com ela. Ele não dava carinho a Pável, já que ele era um menino, mas, em compensação, conversava com ele como com um adulto, como com um conhecido próximo, com a única diferença de que nunca dedicava a conversa às pequenas coisas do dia a dia, mas tentava direcioná-la para assuntos sérios. Por isso, ele se considerava um bom pai e, quando começava a conversar com Pável, sentia-se como um professor no púlpito. Tanto ele como Pável gostavam muito disso. Ele não se atrevia nem mesmo a fazer perguntas detalhadas sobre o desempenho de Pável na escola, pois temia que isso quebrasse a harmonia de suas relações e conferisse a elas o caráter sórdido de gritos, repreensões e recriminações. Ele se envergonhava por um longo tempo de suas raras explosões e as justificava como produtos de seu temperamento. Ele conhecia todos os pensamentos de Pável, seus pontos de vista, as suas convicções que estavam se definindo e achava que conhecia Pável, todo ele. E ficou muito surpreso e triste quando, de repente, deu-se conta de que Pável não estava nessas convicções e pontos de vista, mas em 8  No período em que a novela foi escrita, a França vivia a Terceira República (1870-1940), um período de relativa calma e estabilidade da sua história, exceto pela Primeira Guerra Mundial. Provavelmente, Andrêiev refere-se ao famoso caso Dreyfus, que sacudiu a política e a sociedade francesas entre 1894 e os primeiros anos do novo século, com repercussão internacional. (N. da E.)

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algum lugar fora deles, em certos humores misteriosos, em alguns desenhos repugnantes, sobre a origem dos quais era imprescindível exigir uma explicação. Mais cedo ou mais tarde, mas era imprescindível fazê-lo. E agora ele também estava falando muito bem e sabiamente sobre o fato de que a cultura melhora aspectos parciais da vida, mas no todo deixa certa dissonância, algum lugar vazio e escuro que todo mundo sente, mas não sabe como nomear. Porém, seu discurso soava inseguro e claudicante, como o de um professor que não tem certeza da atenção de seu público e o sente imerso num clima inquieto e distante da palestra. E havia algo mais em seu discurso: algo que ia se aproximando sorrateiramente, algo deslizante e que testava com preocupação. Ele se dirigia a Pável com maior frequência do que habitualmente: — O que você acha, Pável? Concorda comigo, Pável? E ficava extraordinariamente feliz quando Pável expressava concordância. Ele como que tateava algo com seus dedos brancos e rechonchudos, que se moviam no ritmo de seu discurso e se estendiam ameaçadoramente para Pável; de maneira cautelosa e astuta, ele se aproximava sorrateiramente de algo, e as palavras que pronunciava eram como um traje largo de baile de máscaras, sob o qual se percebe o contorno de outras palavras ainda desconhecidas e assustadoras. Pável compreendia isso e, sentindo um medo vago, olhava para o pincenê que brilhava calmamente, para a aliança de casamento no dedo grosso, para a perna oscilante com uma bota lustrosa. O medo crescia, e Pável já sentia, já sabia sobre o que o pai iria começar a falar agora, e seu coração batia calmamente, mas as batidas ressoavam, como se seu peito estivesse vazio. O traje largo oscilava e ia caindo, e as palavras cruéis tentavam convulsivamente irromper de debaixo dele. Eis que o pai terminou de falar sobre alcoólatras e acendeu um cigarro com a mão levemente trêmula. “É agora!”, pensou Pável e se encolheu todo, da mesma forma que um corvo negro com uma asa ferida se encolhe em sua gaiola, quando, através da portinhola, a enorme mão arreganhada de alguém se estende para ele. Serguei Andrêitch respirou pesadamente e começou: 142

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— Mas há algo ainda pior do que o alcoolismo, Pável… “É agora!” – pensou Pável. — Mais terrível do que guerras assassinas, mais devastador do que a peste e a cólera… “É agora! É agora!” – pensava Pável, encolhendo-se e sentindo todo o seu corpo, da mesma forma que sentiria se estivesse imerso em água muito gelada. — É a promiscuidade! Você, Pável, já teve a oportunidade de ler livros específicos sobre esse assunto interessante? “Vou me matar com um tiro!” – pensou rapidamente Pável, mas em voz alta disse calmamente e com decoroso interesse: — Específicos não, mas, pensando bem, sim, já me deparei com alguma coisa. A mim interessa muito essa questão, pai. — É mesmo? – o pincenê de Serguei Andrêitch brilhou – sim, esta é uma questão terrível, e estou convencido, Pável, de que o destino de toda a humanidade culta depende do tipo de solução encontrada para ela. De fato… a degeneração de gerações inteiras, até mesmo de países inteiros; transtornos psíquicos com todos os horrores da loucura e do marasmo… Pois então… E, finalmente, inúmeras doenças que destroem o corpo e até mesmo a alma. Você, Pável, não pode sequer imaginar que coisa ruim é uma doença deste tipo. Um amigo meu da universidade – depois ele entrou para a academia militar de direito, um certo Skvortsóv, Aleksander Pietróvitch – ficou doente, quando estava no segundo ano, e na verdade nem adoeceu gravemente, mas ficou tão assustado que derramou sobre si uma garrafa inteira de querosene e ateou fogo. Mal conseguiram salvá-lo. — Ele ainda está vivo, pai? — Claro que está vivo, mas terrivelmente desfigurado. Pois então… o professor Berg9 em sua principal obra nos fornece dados estatísticos surpreendentes… 9  Fredrik Theodor Berg (1806-1887) foi um médico e estatístico sueco, pioneiro em pediatria e famoso, aparentemente, pelo uso que fez da estatística na medicina. (N. da E.)

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Eles permaneciam sentados e conversavam com calma, como dois bons conhecidos debruçados sobre um assunto muito interessante. Pável expressava perplexidade e horror em seu rosto, fazia perguntas e, ocasionalmente, exclamava: “Que diabos, como pode ser! Mas será possível que suas estatísticas não estejam mentindo?” E por dentro ele se sentia tão mortalmente calmo, como se em seu peito não estivesse batendo um coração vivo, como se não fosse sangue o que percorria suas veias, era como se todo ele fosse forjado de um único pedaço de ferro frio e indiferente. Aquilo que ele próprio pensava sobre o terrível significado de sua doença e de sua queda estava sendo assustadoramente confirmado pelos livros, nos quais ele acreditava e que continham inteligentes palavras estrangeiras e números, inabaláveis e firmes como a morte. De fora, alguém grande, inteligente e onisciente estava discorrendo sobre a sua morte e, na calma impassividade de suas palavras, havia algo de fatal, que não deixava esperanças a uma pessoa digna de lástima. Serguei Andrêitch também estava alegre: ria, arredondava as palavras e os gestos, balançava a mão presunçosamente – e, consternado, sentia que na verdade de suas palavras se escondia uma mentira terrível e elusiva. Com raiva reprimida, ele deitava olhares sobre Pável, todo esparramado, e queria muito que ele não fosse um bom amigo, com quem é tão fácil conversar, mas um filho; que houvesse lágrimas, houvesse gritos, houvesse censuras, mas não esta conversa calma e falsa. O filho novamente estava escapando dele e não havia qualquer pretexto ao qual se agarrar para que pudesse gritar com ele, bater com os pés no chão, talvez, até mesmo, dar um tapa nele, mas encontrar algo necessário, sem o qual é impossível viver. “O que estou dizendo é útil, eu estou prevenindo-o”, Serguei Andrêitch tranquilizava a si mesmo; mas sua mão, com impaciência gananciosa, se estendia em direção ao bolso lateral, onde, em uma carteira, ao lado de uma nota de cinquenta rublos, estava o desenho que tinha sido amassado e posteriormente alisado. “Vou perguntar agora, e estará tudo acabado”, ele pensou. Mas então entrou a mãe de Pável, uma mulher encorpada e bonita, com o rosto empoado e olhos como os de Lílietchka: cinzentos e ingênuos. Ela tinha acabado de chegar em casa e sua face e nariz estavam avermelhados pelo frio. 144

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— Que tempo horrível! – ela disse – de novo essa névoa, não dá para ver nada. Iefim por pouco não atropelou alguém na esquina. — Você estava dizendo, setenta por cento? – perguntou Pável para o pai. — Sim, setenta e dois por cento. E como vão os Sokólov? – perguntou Serguei Andrêitch para a esposa. — Vão indo, como sempre. Estão entediados. Ánietchka está um pouco doente. Amanhã à noite querem vir aqui. Anatóliy Ivánovitch chegou, mandou lembranças. Ela olhou com satisfação para os rostos alegres deles, para suas posturas amigáveis, e beliscou de leve a bochecha do filho; e ele, como sempre, pegou a mão dela no ar e a beijou. Ele amava sua mãe quando a via; mas quando ela não estava, esquecia-se completamente de sua existência. E assim a tratavam todos, parentes e conhecidos, e se ela morresse, todos teriam chorado um pouco por ela e imediatamente a esqueceriam – esqueceriam de toda ela, começando pelo rosto bonito e terminando com o nome. Nem cartas ela nunca recebia. — Estavam papeando? – ela observava alegremente pai e filho – Bem, eu estou muito feliz. É tão desagradável quando pai e filho ficam virando a cara um para o outro. De fato, “pais e filhos”. E você o perdoou por não ter ido à missa? — Isso foi por causa da névoa… – sorriram Serguei Andrêitch e Pável. — Sim, que tempo horrível! Parece que todas as nuvens caíram na Terra. E eu digo para o Iefim: “Por favor, mais devagar!” Ele fala: “Certo, senhora.”, e corre. Mas onde está a Lílietchka? Lílietchka! Digam para ela vir jantar! Senhores pais e filhos, passem para a sala de jantar! Serguei Andrêitch pediu: — Um minuto, já vamos. — Mas já são sete… — Eu sei, eu sei. Vão servindo! Nós já vamos. Iúlia Pietróvna saiu e Serguei Andrêitch deu um passo em direção ao filho. Involuntariamente, Pável também deu um passo à frente e perguntou Leonid Andrêiev

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de modo sombrio: — O que foi? Agora eles estavam frente a frente, aberta e diretamente, e tudo o que havia sido dito antes foi embora para algum lugar, para não retornar mais: o professor Berg, as estatísticas, os setenta e dois por cento. — Pável… Pávlucha! A Lílietchka me contou que você está chateado com alguma coisa. E eu também tenho percebido que nos últimos tempos você mudou. Você por acaso não está com algum problema na escola? — Não, está tudo bem. Serguei Andrêitch queria dizer: “Meu filho!”, mas pareceu estranho e artificial e ele disse: — Meu amigo! Pável ficou em silêncio e, com as mãos nos bolsos, desviou o olhar. Serguei Andrêitch corou, endireitou o pincenê com a mão trêmula e tirou a carteira. Com repugnância, ele puxou com dois dedos o desenho amassado e posteriormente alisado e, sem dizer nada, o estendeu para Pável. — O que é isso? – perguntou Pável. — Veja! Pável olhou por cima do ombro, sem tirar as mãos dos bolsos. O papel dançava na mão rechonchuda e branca de Serguei Andrêitch, mas Pável o reconheceu e instantaneamente se inflamou com uma sensação terrível de vergonha. Algo retumbou em seus ouvidos, como milhares de pedras caindo de uma montanha; seus olhos pareciam ter sido chamuscados e ele não conseguia nem desviar o olhar do rosto de Serguei Andrêitch, nem fechar os olhos. — Foi você? – de algum lugar ao longe perguntou o pai. E com uma raiva súbita, Pável orgulhosa e abertamente respondeu: — Fui eu! Os dedos de Serguei Andrêitch soltaram o desenho e, ondulando com 146

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as pontas, ele caiu silenciosamente no chão. Depois o pai se virou e saiu rapidamente, e na sala de jantar ouviu-se sua voz alta e que estava se distanciando: “Jantem sem mim! Preciso resolver alguns negócios sem falta”. E Pável aproximou-se do lavatório e começou a derramar água em suas mãos e rosto, sem sentir nem o frio, nem a água. — Que tortura! – ele sussurrava, ofegando, enquanto um jato alto de água espirrava em seus olhos e boca. Depois do jantar, por volta das oito horas, as alunas do ginásio vieram ver Lília, e Pável ouvia de seu quarto como elas tomavam chá na sala de jantar. Havia muitas delas; elas riam, e suas vozes sonoras e jovens tiniam umas contra as outras, como as asas de libélulas que brincavam, e não parecia uma sala em uma noite chuvosa de outono, mas um prado verde, quando o sol o observa a partir do céu do meio-dia no mês de julho. E os alunos do ginásio zumbiam em tom grave, como os besouros de maio. Pável escutava atentamente as vozes, mas entre elas não estava a voz sonora e sincera de Kátia Reimer, porém ele continuou esperando e estremecendo quando alguém novo, recém-chegado, começava a falar. Ele suplicava para que ela viesse, e uma vez aconteceu de ele ouvir claramente a voz dela: “Aqui estou eu!”, e quase começou a chorar de alegria; mas a voz se misturou com as outras e, por mais que ele apurasse o ouvido, ela não se repetiu mais. Depois, tudo se acalmou na sala de jantar e os criados começaram a falar em voz abafada, e sons do piano de cauda vieram voando do salão. Suaves e leves como uma dança, mas estranhamente pesarosos e tristes, eles rodopiavam sobre a cabeça de Pável, como vozes baixas de um mundo estranho, maravilhoso e para sempre abandonado. Lílietchka entrou correndo, corada por causa da dança. Sua testa imaculada estava úmida e seus olhos brilhavam, e as dobras do vestido marrom do uniforme pareciam ainda ter mantido vestígios do balanço rítmico. — Pávlia! Eu não estou brava com você! – disse ela e rapidamente o beijou com lábios quentes, envolvendo-o com uma onda de respiração igualmente quente e imaculada – vamos dançar! Venha logo! — Não estou com vontade. Leonid Andrêiev

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— Pena que nem todos vieram: a Kátia não veio, nem a Lídotchka, e o Pospélov resolveu ir ao teatro. Vamos, Pávlia, depressa. — Eu nunca vou dançar. — Que bobagem! Vamos logo! Venha, eu vou esperar. Já à porta, ela ficou com pena do irmão e voltou, beijou-o mais uma vez e, tranquilizada, correu para fora. — Venha logo, Pávlia! Venha logo! Pável fechou a porta e começou a andar pelo quarto a passos largos. — Ela não veio! – dizia ele em voz alta – ela não veio! – ele repetia, rodando pelo quarto – ela não veio! Bateram em sua porta e ele escutou a voz autoconfiante e ousada de Pietróv: — Pável! Abra! Pável ficou quieto e segurou a respiração. — Pável, não seja estúpido! Abra! Foi a Elizaviéta Sergueievna quem me mandou. Pável continuou em silêncio. Pietróv bateu mais uma vez e disse calmamente: — Que nojento é você, meu irmão! Que imaturo… Kátienka10 não está, e ele fica todo chateado. Bobão! E Pietróv ousa dizer com seus lábios sujos: “Kátienka!” Depois de esperar um minuto, quando começaram a tocar novamente no salão, Pável espiou cuidadosamente a sala de jantar vazia, passou por ela e, perto do banheiro, onde estava pendurado um amontoado de roupas desnecessárias, encontrou seu velho sobretudo de verão. Depois, passou rapidamente pela cozinha e desceu a escada dos fundos até o pátio, e dali saiu para a rua. 10  Variante carinhosa para Kátia. (N. da T.)

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Imediatamente veio a sensação de umidade, frio e desconforto, como se Pável tivesse descido para o fundo de um vasto porão, onde o ar fica parado e pesado e tatuzinhos-de-jardim rastejam pelas paredes altas e escorregadias. E parecia surpreendente o fato de que nessa névoa plúmbea, cheirando a podridão, continua a fluir um tipo peculiar de vida, incansável e ativa; ela está no ruído das carruagens invisíveis e nas enormes bolas de luz que se alargam gradualmente, no centro das quais ardem os lampiões, tênue e uniformemente, ela está nos contornos apressados e sem forma, semelhantes a manchas de tinta apagadas em um papel cinza, que surgem da névoa e novamente desaparecem nela, e com frequência são percebidas apenas por aquela estranha sensação, que indica inequivocamente a presença próxima de uma pessoa. Alguém invisível deu um rápido empurrão em Pável e não se desculpou; uma mulher esbarrou o cotovelo nele ao passar e olhou de perto para o seu rosto. Pável estremeceu e recuou com raiva. Ele parou no beco deserto, em frente à casa de Kátia Reimer. Costumava ir lá com frequência e agora veio para mostrar como era infeliz e solitário, e como tinha sido vil a atitude de Kátia Reimer, que não viera em um momento de tristeza e horror mortais. As janelas transpareciam fracamente através da névoa e em seu olhar embaçado havia um escárnio selvagem e furioso, como se alguém sentado à uma mesa festiva, com os olhos inchados de saciedade, estivesse olhando para alguém faminto e sorrisse preguiçosamente. E, sufocando com a névoa podre, tremendo de frio em seu velho casaco, Pável, com ódio faminto, deleitava-se com esse olhar. Ele via Kátia Reimer claramente: como ela, imaculada e inocente, está sentada entre pessoas imaculadas e sorri, e lê um bom livro e não sabe nada sobre a rua, onde, em meio à sujeira e ao frio, está parado um ser humano que está morrendo. Ela é imaculada e vil em sua pureza; agora mesmo ela pode estar sonhando com algum herói nobre, e se Pável fosse até ela e dissesse: “Sou sujo, estou doente, sou depravado, e é por isso que sou infeliz, estou morrendo; me apoie!”, ela viraria o rosto enojada e diria: “Vá embora! Tenho pena de você, mas você me causa repulsa. Vá embora!”. E ela começaria a chorar; imaculada e bondosa, ela começaria a chorar… expulsando. E com a esmola de suas lágrimas puras e sua orgulhosa compaixão, ela teria matado aquele que lhe pedia um amor humano, que não olha para trás e não tem medo da sujeira. Leonid Andrêiev

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— Eu te odeio! – sussurrava a estranha e disforme mancha de uma pessoa, envolta em névoa e arrancada do mundo dos vivos – eu te odeio! Alguém passou por Pável sem notá-lo. Pável, assustado, se apertou contra a parede molhada e se moveu apenas depois que os passos silenciaram. — Odeio… A voz se sufoca na névoa, como se estivesse envolta por algodão. A mancha disforme da pessoa se afasta lentamente, um botão de metal reluziu junto ao lampião e tudo se dissolveu, como se nada disso nunca tivesse existido, e somente houvesse a névoa opaca e fria. O Nievá11 congelava irremediavelmente sob a pesada névoa e estava silencioso, como morto; nem o assobio de um navio, nem o ruído de uma onda vinham de sua ampla e escura superfície. Pável se sentou num dos bancos semicirculares e encostou as costas no granito úmido, calmo e frio. Um arrepio o percorreu, os dedos enregelados quase não se dobravam, e os cotovelos e as mãos estavam dormentes; mas a ideia de ir para casa repugnava-o: na música e na diversão alheia havia algo que lembrava Kátia Reimer, algo absurdo e ofensivo, como o sorriso de um transeunte ocasional no funeral de alguém. A alguns passos de Pável sombras de pessoas flutuavam vagamente na névoa; uma tinha um pequeno pontinho de luz perto da cabeça, obviamente um cigarro; a outra, pouco visível, provavelmente calçava galochas de couro sólido que a cada passo batiam: tchek-tchek! E durante muito tempo se ouviu como caminhava. Uma sombra parou indecisa; ela tinha uma cabeça enorme, desproporcional, de contornos deformados e fantásticos, e quando ela se moveu em direção a Pável, ele ficou aterrorizado. De perto, o formato estranho mostrou-se ser um grande chapéu com penas brancas recurvadas, do tipo que pode ser encontrado em carruagens funerárias, e a própria sombra era uma mulher comum. Como Pável, ela estava tremendo de frio e em vão escondia as mãos grandes nos bolsinhos da blusa curta de tecido grosso de lã; enquanto ela estava de pé, não parecia alta, mas quando se sentou perto de Pável, ela ficou quase uma cabeça mais alta que ele. 11  Grande rio que corta a cidade de São Petersburgo. (N. da T.)

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— Belo jovem, me empresta um cigarro! – pediu ela — Desculpe, bela jovem, eu não fumo – Pável respondeu sem constrangimento e com entusiasmo. A mulher deu uma risada estridente, bateu os dentes de frio e soprou sobre Pável um hálito de vinho. — Vem comigo – disse a mulher e sua voz era estridente assim como sua risada – vamos! Me ofereça uma dose de vodca! Algo amplo, turbilhonante, rápido, como uma queda de uma montanha, agora se abria diante de Pável, algumas luzes amarelas em meio à escuridão oscilante, uma certa promessa de estranha alegria, loucura e lágrimas. E de fora penetrava nele a névoa úmida e os cotovelos estavam ficando rígidos. E com uma polidez na qual havia um desafio, um escárnio e lágrimas de desespero mortal, ele disse: — Oh, minha deusa! Você quer tanto assim minhas carícias apaixonadas? Isso pareceu insultante para a mulher; ela se virou irritada, bateu os dentes e se calou, apertando com raiva os lábios finos. Ela havia sido expulsa do bar porque se recusara a beber uma cerveja azeda e tinha virado o copo com ela sobre o atendente; as galochas altas estavam furadas nas pontas e deixavam a água penetrar, e por causa de tudo isso ela tinha vontade de se ofender e ralhar com alguém. De lado, Pável via seu perfil irritado, com um nariz curto e um queixo largo e carnudo, e sorria. Ela era exatamente como as mulheres que o perseguiam, e ele estava achando engraçado, e um sentimento estranho o aproximava dela. E ele estava gostando do fato de ela estar com raiva. A mulher se virou e falou de maneira ríspida: — E então? Se é pra ir, vamos de uma vez, que diabo! E Pável rindo, respondeu: — Você está certa, minha senhora: que diabo! Por que diabos você e eu não devemos ir tomar uma vodca e nos entregarmos a prazeres requintados? Leonid Andrêiev

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A mulher liberou a mão do bolsinho e meio zangada, meio amigável, deu-lhe um tapinha no ombro: — Continue tagarelando, ninguém está ligando! Bem, eu vou na frente e você atrás. — Por quê? – espantou-se Pável – por que atrás e não ao seu lado, minha deusa… – ele hesitou um pouco – Kátia? — Eu me chamo Mánietchka. Porque caminhar ao meu lado será vergonhoso para você. Pável a pegou pelo braço e a arrastou consigo, e o ombro da mulher começou a bater desajeitadamente no peito dele. Ela ria e não conseguia acompanhar seus passos, e agora dava para ver que ela estava levemente embriagada. No portão de uma casa, ela libertou a mão e, pegando um rublo de Pável, foi conseguir a vodca com o zelador. — Não demore, Kátienka! – pediu Pável, perdendo de vista o contorno dela na abertura negra e nebulosa do portão. Então, ouviu-se sua voz vinda de longe: — É Mánietchka, não Kátia! Havia ali um lampião aceso e Pável apertou a face contra o seu poste frio e úmido e fechou os olhos. Seu rosto estava imóvel, como o de um homem cego, e dentro dele estava tão calmo e quieto quanto em um cemitério. Um momento assim acontece com um homem condenado à morte, quando seus olhos já estão vendados, e o som de passos agitados sobre a madeira ressoante silenciaram em torno dele e, em meio ao terrível silêncio, o grande mistério da morte já se encontra semirrevelado. E, como um sinistro rufar de tambores, uma voz soou abafada e distante: — Então é aí que você está? E eu fiquei procurando você, procurando… Cada pessoa que eu abordava, descobria que não era você. Achei até que você tinha ido embora, e eu mesma já pensei em me mandar. Pável se retesou, sacudiu algo de si e lançou uma pergunta alegre em voz alta: 152

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— E a vodca? O mais importante é a vodca! Pois o que somos nós, Kátienka, sem a vodca? — E você como se chama? Queria chamar pelo nome, mas você não tinha dito. — Meu nome é um pouco estranho, Kátietchka: Porcento, é como eu me chamo. Porcento. Você pode me chamar de Porcentinho, assim soa mais carinhoso, e nossas relações íntimas permitem isso – dizia Pável, arrastando a mulher. — Não existe tal nome. Só cachorros é que são chamados assim. — Mas o que é isso, Kátietchka! Até meu pai me chama assim: Porcentinho, Porcentinho! Juro pelo professor Berg e pela santa estatística! A névoa e as luzes se moviam, e de novo os ombros da mulher batiam contra o peito de Pável, e uma grande pena recurvada balançava diante de seus olhos, do tipo que pode ser encontrado em carruagens funerárias; então algo negro, podre, e fedorento os engolfou, e uns degraus oscilaram, para cima e para baixo novamente. Em um certo ponto, Pável quase caiu e a mulher o apoiou. Depois, algum tipo de quarto abafado, que cheirava fortemente a produtos de sapateiro e sopa de repolho azedo, uma lamparina ardia, e atrás da cortina de chita alguém roncava de forma entrecortada e zangada. — Silêncio! – sussurrava a mulher, levando Pável pela mão – aqui dorme o locatário, um diabo, sapateiro, uma alma perdida! E Pável ficou com medo desse sapateiro que, em algum lugar atrás da cortina, roncava de forma tão entrecortada e zangada, e dava passos cautelosos com as galochas molhadas e pesadas. Depois, subitamente, a escuridão profunda, o som do vidro sendo removido e de repente a forte luz ofuscante de uma pequena lamparina pendurada na parede. Embaixo da lamparina havia uma mesinha, e nela jaziam um pente com cabelos finos emaranhados entre seus dentes, pedaços secos de pão, uma grande faca com miolo de pão grudado e um prato fundo, no interior do qual havia rodelas de batata e cebola picada mergulhadas em uma camada de óleo amarelo de girassol. E toda a atenção de Pável foi atraída para essa mesa. Leonid Andrêiev

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— Chegamos em casa! – disse Mánietchka – pode tirar o casaco! Eles ficaram sentados, rindo e bebendo, e Pável, com uma das mãos, abraçava a mulher seminua: e bem próximo de seus olhos estava um ombro branco e gordo com uma tira de camisa suja e um botão quebrado, e ele o beijava avidamente, grudando os lábios úmidos e quentes. Depois ele beijou seu rosto e, estranhamente, não conseguia nem visualizá-lo direito, nem guardá-lo na memória. Enquanto olhava para ele, parecia familiar e há muito conhecido, até o último traço, até a pequena espinha na têmpora; mas, quando ele se virava, esquecia imediatamente e completamente, como se a alma não quisesse receber essa imagem e expulsava-a com força. — Direi somente uma coisa – falava a mulher, tentando tirar da batata um comprido fio de cabelo que tinha grudado nela e, de vez em quando, beijava Pável na bochecha, com os lábios gordurosos, indiferentemente – direi apenas uma coisa: não vou beber cerveja azeda. Pode dar para quem quiser, mas eu não vou beber. Que eu sou uma miserável, isso é verdade, mas tomar cerveja azeda eu não vou. E eu vou dizer a todos abertamente, mesmo sob o rufar de tambores: eu não vou tomar! — Vamos cantar, Kátietchka! – pedia Pável. — E se você não gostou que eu joguei cerveja na sua cara, então por favor vá até a delegacia, mas eu não permitirei que me espanquem. Tenho caráter orgulhoso e, talvez, eu já tenha visto mil tipos assim como você e não me intimidei – a mulher se dirigia ao atendente do bar que a ofendera. — Deixa para lá, Kátietchka, esquece! – pedia Pável – eu acredito, você é orgulhosa como uma rainha espanhola, e isso é maravilhoso. Agora vamos cantar! Boas canções, boas canções! — E não é Kátietchka, é Mánietchka. E não podemos cantar: o locatário aqui é o diabo, um sapateiro, alma perdida, não permite. — Tanto faz, Kátietchka ou Mánietchka. Por Deus, tanto faz, quem diz isso sou eu, Pável Rybákov, bêbado e depravado. Você me ama, minha rainha orgulhosa, não é mesmo? — Amo. Só não permitirei que me chame de Kátietchka – a mulher 154

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repetia teimosamente. — Pois bem! – Pável sacudiu a cabeça – vamos cantar! Vamos cantar boas canções, aquelas que eles cantam. Ah, eu conheço uma boa canção! Mas não dá para cantar ela assim. Feche os olhos, Kátienka, feche os olhos, feche-os e imagine que você está na floresta, e está uma noite escura, bem escura… — Eu não gosto da floresta. De que floresta você está me falando? Fale de outras coisas e não sobre a floresta! Ela que vá para o inferno! Vamos beber, é melhor, e você não me deixe triste, não gosto disso… – Mánietchka dizia sombriamente, servindo e derramando vodca. Pelo visto, ela sofria de dispneia e respirava pesadamente e com dificuldade, como se estivesse nadando em águas profundas. E seus lábios ficaram mais finos e ligeiramente azulados. — Uma noite escura, bem escura! – continuava Pável com os olhos fechados – e imagine que estão caminhando, e você está caminhando, e alguém está cantando bonito… espere, como era? “Você me disse: sim, eu te amo!” Não, eu não consigo, não sei cantar. — Não grite, vai acordar o locatário. Que diabo! — Não, eu não sei cantar. Não sei! – Pável falou com desespero e segurou a cabeça. Fitas de fogo se enrolavam e se desenrolavam diante de seus olhos fechados, se enrodilhavam em padrões bizarros e terríveis, e tudo era amplo, como no campo, e abafado, como no fundo de um buraco estreito e profundo. Mánietchka olhava para ele com desprezo por cima do ombro e dizia: — Beba, que diabo! — Sim, eu te amo… sim, eu te amo… não, não sei! Ele abriu bem os olhos e, com seu fogo oculto, chamuscou o rosto da mulher. — Afinal, você tem coração? Tem, Kátietchka? Então me dê sua mão! Me dê! – ele sorriu através das lágrimas que brotaram e, com os lábios quentes, se colou à mão que resistia hostilmente. Leonid Andrêiev

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— Pare com essas bobagens! – a mulher disse irritada e tirou dele a sua mão – está tristinho, seu moleirão! Se é para dormir, vamos dormir e não ficar fazendo isso! — Kátietchka! Kátietchka! – ele sussurrava implorando, e as lágrimas o impediam de ver o rosto sonolento e zangado que o encarava com repugnância – Kátietchka, minha pombinha, minha querida, tenha pena de mim, por favor! Eu sou tão infeliz e não tenho nada, nada. Por Deus, tenha pena de mim, Kátietchka! A mulher afastou-o abruptamente e levantou-se cambaleando. — Vá pro inferno! – ela gritou, ofegante – eu odeio! Bebeu como um gambá e fica fazendo fita… Kátietchka! Kátietchka! – ela arremedou, apertando os finos lábios azulados – eu sei de que Kátietchka você precisa, então se mande para junto dela! Fica lambendo a gente, e depois: Kátietchka, Kátietchka! U-u, menininho, filhote de cachorro, focinho de boneca! Você não deveria ter permissão de chegar perto de uma mulher, e fica aí: Kátietchka, Kátietchka! Pável sussurrava alguma coisa balançando a cabeça abaixada, e sua nuca com cabelos cortados rente estremecia suavemente. — Está ouvindo ou o quê? – gritou a mulher. Pável olhou para ela com os olhos molhados e embaçados e começou a balançar novamente a cabeça com a uniformidade de uma pessoa que está com dor de dente – direita, esquerda. Bufando desdenhosamente, a mulher foi até a cama e começou a arrumá-la. A caminho, uma saia listrada de baetilha escorregou dela e ela a chutou com os pés. — Kátietchka! Kátietchka! – dizia ela, amassando o travesseiro com raiva – então vá para a Kátietchka! E eu fui batizada como Mánietchka e, talvez, eu já tenha visto mil filhotes de cachorro do seu tipo e não me intimidei. Ora! Ele acha que porque deu um rublo, então vou ficar mostrando todo tipo de truque para ele. Talvez eu mesma tenha três rublos na caixinha. Bem, venha dormir, fazer o quê? Ela se deitou sobre o cobertor e ficou olhando para Pável com ódio, para a sua nuca proeminente e bem-aparada, que estremecia por causa do choro. 156

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— Ah! Estou cansada de todos vocês, demônios nojentos! Vocês me extenuaram! Por que está chorando? Está com medo da mamãe? – dizia ela em um tom de escárnio preguiçoso e maldoso – o menino vai apanhar? Está com medo, mas bem que gosta do docinho. Gosta… sim. Eu conheço vocês, Porcentos, diabos. Tem vergonha de falar o próprio nome, então ele fica inventando. Porcento! Como um cachorro. E quando for para a sua Kátietchka ranhosa, é claro, vai mandar chamar de Vássietchka: Vássietchka, querido! E ele para ela: Kátietchka, meu anjinho! Conheço esse bom menino! E ainda quer ficar beijando a mãozinha, e se com essa mesma mãozinha eu der na sua cara? Não ria, filhote, não ria! Pável permanecia em silêncio e estremecia. — Bem, fazer o quê? Venha dormir, estou te dizendo! Ou então eu vou te expulsar, por Deus, vou te expulsar! Não sinto pena dos dois rublos e não vou permitir tirar sarro de mim, escutou? Tire a roupa! Ele acha que porque deu dois rublos, então comprou a mulher inteira. Ora, que rei que me apareceu. Pável desabotoou lentamente a jaqueta e começou a tirá-la. — Você não entende… – ele deixou escapar, em voz baixa e sem encará-la. — Ah, é assim?! – gritou a mulher com raiva – sou tão burra que não consigo nem entender nada! E se eu for até aí e dar na sua cara? Por trás da divisória, uma voz grossa, rouca e irritada gritou ameaçadoramente: — Machka! De novo, satanás, está aprontando das suas? Sem algazarra, senão vai ver só! — Fique quieta, lixo! – sussurrou Pável, empalidecendo. — Eu sou lixo? – sibilou a mulher, se erguendo um pouco. — Está bem, está bem, deite! – disse Pável de maneira conciliatória, sem tirar os olhos ardentes do corpo nu dela – estou indo, estou indo… — Eu sou lixo? – a mulher repetia, ofegando e cuspindo saliva. — Mas chega, chega! – implorava Pável. Seus dedos tremiam e não enconLeonid Andrêiev

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travam os botões. Ele via apenas o corpo; aquele corpo de mulher, terrível e incompreensível em seu poder, que ele via em seus sonhos ardentes, que era repulsivo a ponto de sentir um veemente desejo de pisoteá-lo, e fascinante, como a água em uma poça para o sedento – mas chega! – ele repetiu – eu estava brincando… — Fora daqui! – a mulher declarou decididamente, afastando-o com a mão – fora! Fora! Seus olhares se encontraram e seus olhos ardiam com patente ódio, tão abrasador, tão profundo e que esgotava tão completamente suas almas doentes, como se não tivessem se reunido em um encontro casual, mas tivessem sido inimigos a vida inteira e por toda a vida estivessem um à procura do outro e finalmente se encontraram. E, tomados por uma alegria selvagem, temem acreditar que realmente se encontraram. E Pável ficou com medo. Ele baixou os olhos e balbuciou: — Escute, Mánietchka. Entenda afinal! — Aah! – alegrou-se a mulher, escancarando os largos dentes brancos – Aah! Agora virei Mánietchka! Fora! Fora! Ela pulou da cama e, cambaleando, mostrando a Pável sua nuca gorda e cabeluda, começou a erguer a jaqueta dele. — Fora! Fora! — Escute aqui, demônio! – gritou Pável raivosamente. E então algo inesperado e selvagem aconteceu: a mulher embriagada e seminua, vermelha de raiva, jogou a jaqueta e, num ímpeto, deu um tapa na face de Pável. Ele a agarrou pela camisa, rasgou-a e os dois rolaram embolados no chão. Eles rolavam, derrubando cadeiras e arrastando atrás de si o cobertor que fora arrancado, e pareciam uma criatura estranha e fundida, com quatro braços e quatro pernas, que se agarravam e se estrangulavam freneticamente. As unhas afiadas arranhavam o rosto de Pável e pressionavam seus olhos; por um segundo ele viu acima de si um rosto enfurecido, com olhos ferozes e que estava vermelho como sangue; e com toda a força ele apertava a garganta de alguém. No segundo seguinte,

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ele se desgrudou da mulher e ficou de pé. — Cadela! – ele gritou, limpando o rosto ensanguentado. E já batiam na porta e alguém gritava: — Abram! Diabos, anátemas! Mas a mulher voltou a atacar Pável por trás, derrubou-o e eles voltaram a rolar e girar pelo chão, calados, ofegando, incapazes de gritar porque estavam tomados por uma fúria frenética. Eles se levantaram, caíram e se levantaram novamente. Pável derrubou a mulher sobre a mesa, e sob o pesado corpo dela o prato deu um estalido, e perto da mão de Pável tilintou a longa faca com miolo de pão grudado. Com a mão esquerda, Pável a agarrou, mal conseguiu segurá-la e a enfiou de lado em algum lugar. E a lâmina fina se dobrou. Ele enfiou a faca pela segunda vez, e as mãos da mulher estremeceram e imediatamente ficaram moles, como trapos. Com os olhos quase saltando para fora das órbitas, ela começou a gritar bem no rosto de Pável de uma maneira rouca e estridente, permanecendo o tempo todo na mesma nota, como gritam os animais quando são abatidos: — Aaaah! — Fique quieta! – grasnou Pável e mais uma vez enfiou a faca em algum lugar, e mais outra vez ainda. A cada golpe, a mulher se sacudia como uma marionete de palhaço pendurada nas cordas, e escancarava mais a boca de dentes largos e brancos, entre os quais inchavam bolhas de espuma ensanguentada. Ela já permanecia calada, mas Pável ainda escutava seu uivo estridente e terrível, e ele ofegava: — Fique quieta! E, mudando a faca da mão esquerda, molhada e escorregadia, para a direita, golpeou de cima uma vez e mais outra vez. — Fique quieta! O corpo caiu pesadamente da mesa e bateu com força a nuca cabeluda. Pável inclinou-se e olhou para ele: a barriga nua e alta ainda estava arfando, e Pável a cutucou com a faca, como a uma bolha, da qual é preciso liberar o ar. Depois Pável se endireitou e, com a faca na mão, todo vermelho, como um

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açougueiro, com o lábio rasgado na briga, virou-se para a porta. Ele esperava vagamente gritos, barulho, exclamações frenéticas, ira e vingança – e o estranho silêncio o surpreendeu. Não havia nenhum som, nenhum suspiro, nenhum farfalhar. O pêndulo balançava no relógio e seu movimento não era audível; grossas gotas de sangue caíam da ponta da faca para o chão – e deveriam fazer barulho, mas não faziam. Era como se todos os sons do mundo e todas as suas vozes vivas de repente tivessem cessado e morrido. E algo misterioso e terrível estava acontecendo com a porta fechada. Ela estava se estufando silenciosamente, como a barriga que havia acabado de ser perfurada, tremia em agonia silenciosa e recuava. E de novo se estufava, recuava com um tremor que se extinguia pouco a pouco, e a cada vez a abertura escura acima ia se tornando mais larga e mais sinistra. Havia um horror inconcebível nessa pressão silenciosa e terrível; horror e uma força terrível, como se todo o mundo estranho, incompreensível e maligno, silenciosa e freneticamente, estivesse arrombando a fina porta. Concentrada e apressadamente, Pável afastou do peito os trapos grudentos da camisa e golpeou a si mesmo com a faca no flanco, contra o coração. Por alguns segundos ele permaneceu de pé e, com olhos grandes e brilhantes, olhava para a porta que inchava convulsivamente. Então ele se dobrou, agachou-se como na brincadeira infantil eixo-badeixo, e desabou… Naquela noite, até o amanhecer, a fria cidade ficou se sufocando em uma névoa plúmbea. Suas ruas profundas estavam desertas e silenciosas, e, em um jardim devastado pelo outono, flores tristes e solitárias morriam silenciosamente nos caules quebrados. (1902)

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O ladrão

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iódor Iurássov, ladrão, três vezes julgado por roubo, pretendia visitar sua ex-amante, uma prostituta que vivia a uns setenta quilômetros de Moscou. Na estação, ficou sentado em um buffet de pri-

meira classe, comeu pasteizinhos e bebeu cerveja, e um homem de fraque o serviu; depois, quando todos começaram a se dirigir para os vagões, misturou-se na multidão e, de modo impensado, seguindo a agitação geral, surrupiou a carteira de uma pessoa que estava ao seu lado, um senhor idoso. Iurássov tinha dinheiro suficiente, até mais do que suficiente, e esse roubo ocasional e irrefletido somente poderia prejudicá-lo. E assim aconteceu. O senhor pareceu notar o roubo, porque olhou para Iurássov de modo muito atento e estranho e, apesar de não ter parado, voltou-se algumas vezes para olhá-lo. Foi pela janela do vagão que ele viu esse senhor pela segunda vez: muito agitado e desnorteado, com o chapéu nas mãos, ele caminhava rapidamente pela plataforma e perscrutava os rostos, olhava para trás e procurava alguém nas janelas dos vagões. Felizmente, soou o terceiro sinal e o trem começou a se mover. Iurássov espiou com cuidado: o senhor, ainda com o chapéu nas mãos, estava em pé no final da plataforma e examinava atentamente os vagões que passavam, como se estivesse contando-os; e em suas pernas gordas, dispostas desajeitadamente, ao acaso, sentia-se a mesLeonid Andrêiev

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ma desorientação e espanto. O senhor estava parado, mas, provavelmente, tinha a impressão de estar andando: tão engraçada e incomum era a maneira com que suas pernas estavam afastadas. Iurássov se endireitou, estendeu os joelhos para trás, o que o fez se sentir ainda mais alto, aprumado e garboso e, com uma doce confiança, endireitou o bigode com ambas as mãos. Seu bigode era bonito, enorme, claro, como duas foices douradas que se sobressaíam nas extremidades do rosto; e, enquanto os dedos passeavam sentindo a agradável sensação dos pelos macios e fofos, os olhos cinzas, com uma rudeza ingênua e indefinida, olhavam para baixo, para os trilhos entrelaçados das vias vizinhas. Com seus reflexos metálicos e meandros silenciosos, eles se assemelhavam a cobras fugindo apressadamente. Após contar o dinheiro roubado no banheiro – vinte e quatro rublos e mais algumas moedas – Iurássov virou com desprezo a carteira nas mãos: era velha, ensebada e não fechava bem e, ao mesmo tempo, cheirava a perfume, como se tivesse ficado nas mãos de uma mulher por muito tempo. Este cheiro, um pouco impuro, mas excitante, trouxe a Iurássov a agradável lembrança daquela com quem estava indo se encontrar e, dando um sorriso, ele se dirigiu ao vagão, alegre, despreocupado, com disposição para uma conversa amigável. Agora ele tentava ser como todo mundo, educado, decente, discreto; vestia um casaco feito de legítima lã inglesa e sapatos amarelos, e acreditava neles, no casaco e nos sapatos, e tinha certeza de que todo mundo o tomava por um jovem alemão, contador de alguma casa comercial respeitável. Ele sempre acompanhava a bolsa de valores pelos jornais, conhecia a cotação de todos os títulos, sabia conversar sobre negócios e, às vezes, achava que realmente não era o camponês Fiódor Iurássov, um ladrão, julgado três vezes por roubo e que cumpriu pena na prisão, mas um jovem e decente alemão, cujo sobrenome era Walter e o nome, Heinrich. Heinrich, era assim que ele era chamado por aquela a quem estava indo ver; os amigos o chamavam de “alemão”. — Esse lugar está livre? – perguntou educadamente, embora fosse óbvio que o lugar estava livre, já que havia apenas duas pessoas sentadas nos as162

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sentos: um oficial aposentado, velhinho, e uma dama com compras, aparentemente indo a uma datcha1. Ninguém lhe respondeu e, com refinado esmero, ele se sentou sobre as molas suaves do assento, esticou cuidadosamente as longas pernas, deixando à mostra os sapatos amarelos, e tirou o chapéu. Então, ele olhou amigavelmente para o velho oficial e para a dama e pousou a mão larga e branca no joelho, para que logo notassem o anel com um enorme diamante no dedo mindinho. O diamante era falso e brilhava com diligência e descaradamente, e todos realmente notaram, mas não disseram nada, não sorriram e nem se tornaram mais amistosos. O velho virou uma página do jornal, a dama, jovem e bonita, ficou olhando fixamente pela janela. E já com um vago pressentimento de que foi descoberto, de que, mais uma vez, por algum motivo, ele não conseguiu se passar por um jovem alemão, Iurássov escondeu disfarçadamente a mão, que lhe parecera grande e branca demais, e perguntou num tom de voz bastante decoroso: — A senhora está indo para a datcha? A dama fingiu que não ouviu e que estava mergulhada em pensamentos. Iurássov conhecia bem essa desagradável expressão facial, quando uma pessoa maliciosamente e sem sucesso tenta esconder a atenção aguçada e se torna uma estranha, penosamente estranha. E, virando-se, ele perguntou ao oficial: — O senhor poderia, por gentileza, verificar no jornal quanto estão valendo as Rybinskie2? Não estou conseguindo me lembrar no momento. O velho afastou devagar o jornal e, repuxando os lábios para baixo com severidade, fitou-o com olhos míopes, como que ofendidos. — O quê? Não estou escutando! Iurássov repetiu e, enquanto falava, separando diligentemente as pala1  Casa de campo típica russa. (N. da T.) 2  Refere-se, provavelmente, às ações da Sociedade da Ferrovia Moscou-Vindavo-Rybinskie, uma das maiores companhias ferroviárias do Império Russo no final do século XIX. Fundada em 1869 como Sociedade Ferroviária Rybinskie-Bologovski, mudou de nome em 1895 para Sociedade da Ferrovia Rybinskie e, novamente, em 1897, para o nome mencionado. (N. da E.)

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vras, o velho oficial mediu-o com o olhar, com ar de desaprovação, como se ele fosse um neto que tinha aprontado alguma coisa ou um soldado que não estava em forma e, aos poucos, começou a ficar zangado. A pele que cobria seu crânio, entre raros cabelos grisalhos, ficou vermelha e seu queixo começou a tremer. — Não sei – ele grunhiu bravo – não sei. Não há nada disso aqui. Não entendo, cada coisa que as pessoas perguntam. E, já segurando novamente a folha de jornal, baixou-a algumas vezes para lançar um olhar irritado para o cavalheiro importuno. E então, Iurássov teve a impressão de que todas as pessoas no vagão eram más e distantes, e lhe pareceu estranho o fato de estar sentado na segunda classe em um macio assento de molas, e com tristeza e raiva veladas ele ficou se lembrando de como, constantemente e por toda parte, ele encontrava essa inimizade entre as pessoas decentes, às vezes dissimulada, mas frequentemente manifesta e explícita. Ele estava usando um casaco de legítima lã inglesa e sapatos amarelos e um anel precioso, mas eles pareciam não ver isso, e sim algo diferente, próprio deles, algo que ele não conseguia encontrar nem no espelho, nem na consciência. No espelho ele é como todos, e até melhor. Não está escrito em sua testa que ele é o camponês Fiódor Iurássov, um ladrão julgado três vezes por roubo, e não o jovem alemão Heinrich Walter. E essa ameaça esquiva, incompreensível e traiçoeira, que todos veem nele e apenas ele mesmo não vê e não conhece, desperta nele a habitual ansiedade velada e o medo. Ele tem vontade de correr e, olhando em volta de maneira desconfiada e cortante, sai a passos largos e fortes, agora sem se parecer em nada com um honesto contador alemão.

II Era o começo do mês de junho e tudo diante dos olhos, até a mais distante e imóvel faixa de florestas, verdejava jovem e forte. Verdejava a grama, verdejavam as mudinhas que despontavam nas hortas ainda desnudas e tudo estava tão absorto, tão ocupado consigo mesmo, tão profundamente imerso no silencioso pensamento criador que, se a grama e as árvores ti164

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vessem um rosto, todos os rostos estariam voltados para a terra, todos os rostos estariam pensativos e alheios, todos os lábios imobilizados por um enorme silêncio insondável. E Iurássov, pálido, triste, parado solitariamente na vacilante varanda do vagão, sentiu, alarmado, esse pensamento imensurável dos elementos da natureza, e dos belos, silenciosos e misteriosos campos, soprou sobre ele o mesmo frio distanciamento que vinha das pessoas no vagão. Bem acima dos campos pairava o céu e também ele olhava para dentro de si mesmo; em algum lugar atrás de Iurássov, o sol estava se pondo e estendia raios longos e retos por toda a vastidão da terra – e ninguém olhava para ele naquele deserto, ninguém pensava nele, nem o conhecia. Na cidade onde Iurássov nasceu e cresceu, casas e ruas têm olhos e com eles ficam olhando para as pessoas, algumas com hostilidade e maldade, outras de forma carinhosa, porém, aqui ninguém olha para ele e não sabe nada sobre ele. E os vagões são pensativos: aquele em que Iurássov se encontra corre inclinado e balança zangadamente; o outro, o que vem atrás, não corre nem mais rápido, nem mais devagar, como se corresse por si só, e também parece estar olhando para a terra e escutando atentamente. E embaixo, sob os vagões, soam variados rugidos e barulhos: ora como uma canção, ora como uma música, ora como uma conversa estranha e incompreensível de alguém – e tudo sobre coisas estranhas, tudo sobre coisas distantes. Também há pessoas aqui. Pequenas, elas se ocupam com alguma coisa neste deserto verde e não têm medo. E é até divertido para elas: eis que o trecho de uma canção veio voando de algum lugar e submergiu no rugido e na música das rodas. Também há casas aqui. Pequenas, elas estão espalhadas livremente e suas janelas olham para o campo. Se você se aproximar da janela à noite, verá o campo – um campo aberto, livre e escuro. E hoje, e ontem, e todos os dias e todas as noites passam trens por aqui, e todos os dias esse campo silencioso com pessoas e casas pequenas se estende aqui. Ontem, a esta hora, Iurássov estava sentado no restaurante “Progresso3” e não pensava em campo algum, mas o campo era o mesmo de hoje, silencioso e bonito da mesma forma e mergulhado em algum pensamento. Eis que pas3  Provável alusão ao Restaurante Progresso, fundado em 1837 e instalado, na época, no Boulevard Chistoprudny nº 5, em Moscou. Neste mesmo Boulevard, nos números 21 e 23, viveu, entre 1898 e 1913, Nicolai Teleshov, fundador do Círculo Literário “Quarta-Feira”, do qual faziam parte Andrêiev, Górki, Bunin, Serafimovich, Veresaev, Skitalets e Kuprin, entre outros. (N. da E.)

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sou um pequeno bosque de velhas bétulas grandes, com ninhos de gralhas nos topos verdes. E ontem, enquanto Iurássov estava sentado no restaurante “Progresso”, bebendo vodca, fazendo alarido com seus companheiros e observando o aquário onde nadavam peixes insones, essas bétulas permaneciam, do mesmo modo, profundamente calmas, e havia escuridão debaixo e ao redor delas. Com o estranho pensamento de que só a cidade é real e tudo isso não passa de fantasmas, e que se você fechar os olhos e depois abri-los, não haverá campo algum – Iurássov fechou os olhos com força e ficou quieto. E imediatamente veio uma sensação tão boa e extraordinária que ele já não queria mais abrir os olhos novamente, nem era necessário: os pensamentos, as dúvidas e a constante ansiedade reprimida desapareceram; o corpo balançava involuntária e docemente no ritmo da respiração do vagão, e a brisa quente e cautelosa dos campos fluía suavemente pelo rosto. Ela erguia com confiança o bigode felpudo e farfalhava em seus ouvidos, e embaixo, sob seus pés, espalhava-se o ruído uniforme e melodioso das rodas, parecido com uma música, uma canção, uma conversa de alguém sobre o distante, o triste e o querido. E Iurássov devaneava que a partir de seus pés, da cabeça inclinada e do rosto, que sentia apaixonadamente o vazio macio do espaço, começava um abismo verde-azulado, repleto de palavras silenciosas e carícias tímidas e dissimuladas. E era tão estranho – como se uma chuva silenciosa e morna estivesse caindo em algum lugar distante. O trem diminuiu a velocidade e parou por um momento, por um minuto. E, por todos os lados, simultaneamente, Iurássov foi envolvido por um silêncio tão imenso e fantástico, como se o trem não tivesse parado por um minuto, mas por anos, décadas, uma eternidade. E tudo estava em silêncio: a pequena pedra escura, coberta de óleo, aconchegada ao trilho de ferro, o canto da plataforma vermelha coberta, baixinha e deserta, a grama no declive. Cheirava a folhas de bétula, prados, esterco fresco – e esse cheiro era o mesmo imensurável silêncio de todos os tempos. Agarrando-se desajeitadamente aos corrimãos, um passageiro saltou na faixa contígua e foi embora. E ele era tão estranho e extraordinário em meio a esse silêncio, como um pássaro que sempre voa e agora decidiu andar. Aqui era preciso 166

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voar, e ele estava andando, e o caminho era longo, desconhecido, e seus passos eram pequenos e curtos. E era tão engraçado o movimento que ele fazia com os pés, em meio a esse imensurável silêncio. O trem se moveu silenciosamente, como se ele próprio estivesse envergonhado de sua sonoridade, e somente um quilômetro depois da pacata plataforma, quando ela desaparecera sem deixar vestígios no verde da floresta e dos campos, ele começou a rugir livremente com todos os elos de seu torso de ferro. Iurássov, aflito, caminhou pela varanda do vagão, tão alto, magro e flexível, alisando inconscientemente o bigode, olhando para algum lugar acima com os olhos brilhantes, e avidamente se encostou ao fecho de ferro da janela, daquele lado do vagão onde o enorme sol vermelho se punha abaixo da linha do horizonte. Ele encontrou algo; ele entendeu algo que durante toda a vida havia lhe escapado e tornado essa vida tão desajeitada e pesada quanto aquele passageiro que precisava voar como um pássaro, mas que estava andando. — Sim, sim – ele repetia séria e ansiosamente, e balançava levemente a cabeça, de maneira resoluta – claro, é assim. É sim. É sim. E as rodas confirmavam sonoras e dissonantes: “Claro, é assim, é sim, é sim”. “Claro, é assim, é sim, é sim.” E era como se o apropriado fosse não falar, mas cantar. Então, Iurássov começou a cantar, a princípio suavemente, depois cada vez mais e mais alto, até sua voz se fundir com o tilintar e o estrondo das rodas de ferro. E o ritmo dessa canção era dado pela batida das rodas, e a melodia era toda essa onda de sons, flexível e transparente. Mas não havia palavras. Não havia tempo para elas tomarem forma; longínquas e vagas, e terrivelmente amplas, como o campo, elas passavam correndo em algum lugar com rapidez insana, e a voz humana as seguia livre e facilmente. A voz se erguia e caía; e se estendia pela terra, deslizando pelos prados, penetrando no coração da floresta; e facilmente subia ao céu, perdida em sua vastidão. Quando libertam um pássaro na primavera, ele deve voar como esta voz: sem um objetivo, sem uma estrada, procurando riscar, abraçar e sentir toda a sonora vastidão do espaço celestial. Provavelmente, os próprios campos verdes teriam começado a cantar assim, se eles tivessem Leonid Andrêiev

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uma voz; é assim que cantam, nas noites calmas de verão, aquelas pequenas pessoas que se ocupam com alguma coisa no deserto verde. Iurássov cantava, e o reflexo rubro do sol poente brilhava em seu rosto, em seu casaco de lã inglesa e nos sapatos amarelos. Ele cantava, despedindo-se do sol, e sua canção se tornava cada vez mais triste: como se o pássaro tivesse sentido a vastidão sonora do espaço celestial, estremecido com um anseio desconhecido e estivesse chamando por alguém: venha. O sol se pôs e uma cinzenta teia de aranha se estendeu sobre a terra e o céu silencioso. A teia cinzenta se estendeu sobre o seu rosto, estão se dissipando nele os últimos vislumbres do pôr do sol e ele está entorpecendo. Venha para mim! Por que você não vem? O sol se pôs e os campos estão escurecendo. E o coração solitário sente tanta solidão e dor. Tanta solidão, tanta dor. Venha. O sol se pôs. Os campos estão escurecendo. Venha afinal, venha! Assim chorava sua alma. Enquanto isso, os campos escureciam mais e mais, e apenas o céu sobre o sol que se pôs se tornava ainda mais luminoso e profundo, como um belo rosto voltado para aquele que é amado e que está indo embora silenciosamente, bem silenciosamente.

III Procedeu-se o controle de passagens e, ao passar, o fiscal observou rispidamente a Iurássov: — É proibido ficar na varanda. Entre no vagão. E se foi, batendo a porta irritado. E, igualmente irritado, Iurássov retrucou em seu encalço: — Cabeça-dura! Ele pensou que tudo isso, as palavras rudes e o bater irritado da porta, tudo isso vem de lá, das pessoas decentes no vagão. E mais uma vez, sentindo-se o alemão Heinrich Walter, ele ergueu os ombros de maneira ofendida e irritada e disse a um respeitável senhor imaginário: 168

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— Mas que grosseirão! Todos sempre ficam parados na varanda do vagão, e ele diz: é proibido. Sabe Deus por quê! Depois houve uma parada, com seu silêncio repentino e dominador. Agora, com a proximidade da noite, a grama e a floresta exalavam um odor ainda mais forte, e as pessoas que desciam não pareciam tão engraçadas e pesadas: era como se o crepúsculo transparente tivesse lhes dado asas, e duas mulheres em vestidos claros não pareciam andar e sim voar como cisnes. E, novamente, veio a sensação de bem-estar e tristeza, e ele ficou com vontade de cantar, mas a voz não obedecia, palavras desnecessárias e tediosas vinham à boca, e a música não saía. Ele queria refletir, chorar doce e inconsolavelmente, mas no lugar disso lhe vinha à mente um cavalheiro respeitável, a quem ele falava de maneira inteligível e convincente: — E o senhor notou como estão subindo as Sormovskiy4? E os campos negros em movimento novamente pensavam em algo próprio, eram incompreensíveis, frios e estranhos. As rodas batiam dissonantes e incoerentes, e parecia que todas elas se enroscavam e atrapalhavam umas às outras. Algo batia entre elas e emitia um rangido enferrujado, algo fazia um entrecortado que lembrava um arrastar de pés: parecia uma multidão de pessoas bêbadas e estúpidas que vagueavam incoerentemente. Depois, essas pessoas começaram a se juntar em um amontoado, a se reorganizar, e todas começaram a figurar em trajes brilhantes de cabaré. Depois, elas se moveram para frente e, todas de uma vez, gritaram num coro bêbado e dissoluto: — Minha Malania, de olhos sal-ta-dos… E esta canção que Iurássov ouvira em todos os parques da cidade, que era cantada por seus companheiros e por ele mesmo, aflorou em sua memória de maneira tão repugnantemente vívida que ele teve vontade de afastá-la 4  Refere-se, provavelmente, às ações da empresa Fábrica de Máquinas Sormovskiy, fundada em 1849 por uma associação entre a Fábrica de Máquinas Nizhny-Novgorod e a Empresa de Transporte de Reboque e Importação Volga-Kama. Desde seu início, até os dias atuais, a empresa é uma das maiores fabricantes de equipamentos pesados da Rússia, produzindo desde navios e submarinos até maquinas a vapor, trens, plataformas e pontes ferroviárias, entre outros. (N. da E.)

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fazendo com as mãos os movimentos que são feitos para se proteger de algo vivo, de pedras atiradas de trás de uma esquina. E havia um poder tão cruel nessas palavras terrivelmente absurdas, pegajosas e insolentes, que todo o longo trem, com sua centena de rodas que giravam passou a acompanhá-las: — Minha Malania, de olhos sal-ta-dos… Algo sem forma e monstruoso, turvo e pegajoso, grudava em Iurássov com milhares de lábios grossos, dava-lhe beijos impuros e úmidos, gargalhava. E berrava com milhares de bocas, assobiava, uivava, rolava no chão feito doido. As rodas pareciam largas caras redondas e, em meio a risadas desavergonhadas, arrastadas por um turbilhão embriagado, cada uma delas batia e uivava: — Minha Malania, de olhos sal-ta-dos… E apenas os campos permaneciam em silêncio. Frios e calmos, profundamente imersos em puro pensamento criativo, eles não sabiam nada sobre o homem que vinha da distante cidade de pedra e eram alheios à sua alma, alarmada e atordoada por lembranças torturantes. O trem estava levando Iurássov para frente, mas essa canção insolente e absurda chamava-o de volta para a cidade, arrastava-o rude e cruelmente, como a um fugitivo fracassado, preso no limiar da prisão. Ele ainda resiste, ainda estende as mãos em direção à vastidão feliz e inexplorada, mas em sua cabeça já surgem, como fatal inevitabilidade, imagens cruéis do cativeiro entre paredes de pedra e grades de ferro. E o fato de os campos serem tão frios e indiferentes e não quererem ajudá-lo, como se ele fosse um estranho, preenche Iurássov com uma sensação de irremediável solidão. E Iurássov fica assustado – tão inesperado, tão grande e terrível é esse sentimento que o expulsa da vida, como se ele estivesse morto. Se ele tivesse dormido por mil anos e acordado em um mundo novo e entre pessoas novas, não estaria mais sozinho, mais alheio a tudo do que agora. Ele quer invocar na memória algo próximo, querido, mas não há, e a canção insolente ruge no cérebro escravizado e dá à luz memórias tristes e terríveis que lançam uma sombra sobre toda a vida dele. 170

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Por exemplo, aquele mesmo parque onde estavam cantando essa “Malania”. Também nesse parque ele tinha roubado alguma coisa e estavam tentando pegá-lo, e todos estavam bêbados: ele e aqueles que o perseguiam com gritos e assobios. Ele havia se escondido em algum lugar, em algum canto escuro, em um buraco negro, e o perderam de vista. Ele ficou ali por um longo tempo, perto de algumas tábuas velhas de onde despontavam pregos, ao lado de um barril quebrado de cal seca; sentia-se a frescura e a paz da terra solta, e um jovem álamo cheirava forte, e não muito longe dele, pessoas bem-vestidas passeavam pelos caminhos, e soava uma música. Uma gata cinzenta passou por perto, pensativa, indiferente às vozes e à música, tão inesperada neste lugar. E ela era uma gata boazinha: Iurássov a chamou: “Pss, pss” e ela se aproximou, ronronou, esfregou-se nos joelhos dele e permitiu que ele a beijasse no focinho macio, que cheirava a pelo e arenque. Após o beijo dele, ela começou a espirrar e foi embora, tão importante e indiferente quanto uma dama de alto escalão, e depois disso ele saiu de seu esconderijo e foi preso. Mas lá pelo menos havia uma gata, enquanto aqui só havia campos indiferentes e bem alimentados, e Iurássov começa a odiá-los com todas as forças de sua solidão. Se lhe dessem poder, atiraria pedras neles; reuniria mil pessoas e ordenaria que pisoteassem, até completa aniquilação, a tenra vegetação mentirosa que alegra a todos, mas que bebe até a última gota de sangue de seu coração. Para que ele foi partir? Agora ele estaria sentado no restaurante “Progresso” bebendo vinho, conversando e rindo. E ele começa a odiar aquela a quem está indo ver, a namorada miserável e suja de sua vida suja. Agora ela está rica e ela mesma mantém garotas para vender; ela o ama e dá dinheiro a ele, tanto quanto ele quiser, e ele vai chegar e bater nela até tirar sangue, até ela grunhir como uma porca. E depois ele vai ficar bêbado e chorar, estrangular a própria garganta e cantar, soluçando: — Minha Malania… Mas as rodas já não estão mais cantando. Fatigadas, como crianças doentes, elas ressoam lamuriosamente e como que se aconchegam umas às outras, procurando carinho e paz. Do alto, um severo céu estrelado olha calLeonid Andrêiev

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mamente para ele, e por todos os lados ele é abraçado pela escuridão dos campos, severa e virginal, e nela, as luzes solitárias são como lágrimas de pura piedade em um belo rosto pensativo. E muito à frente é visível o brilho das luzes da estação, e de lá, desse ponto luminoso, junto com o ar quente e fresco da noite, chegam os sons suaves e delicados de uma música. O pesadelo desapareceu e, com a habitual leveza de uma pessoa que não possui um lugar na Terra, Iurássov imediatamente se esquece dele e, alvoroçado, apura o ouvido, captando uma melodia familiar. — Estão dançando! – ele diz e sorri entusiasticamente e olha em volta com olhos felizes, passando as mãos sobre o corpo como se estivesse se lavando – estão dançando! Ah, que diabos! Estão dançando! Endireita os ombros, arqueia-se discretamente ao ritmo da dança familiar, enche-se todo com uma sensação viva de belo movimento rítmico. Ele adora dançar e quando dança, torna-se muito bom, carinhoso e terno, e já não personifica o alemão Heinrich Walter, nem Fiódor Iurássov, que está constantemente sendo julgado por roubo, mas uma terceira pessoa, sobre a qual ele não sabe nada. E quando, com uma nova rajada de vento, o enxame de sons é arrastado para o campo escuro, Iurássov tem medo de que seja para sempre e quase chora. Mas os sons retornam ainda mais altos e mais alegres, como se tivessem reunido forças no campo escuro, e Iurássov sorri alegremente: — Estão dançando. Ah, que diabos!

IV Estavam dançando bem perto da estação. Os veranistas, frequentadores das datchas, organizaram um baile: convidaram músicos, penduraram lanternas vermelhas e azuis no entorno da pista, expulsando a escuridão da noite até o topo das árvores. Alunos do ginásio, senhoritas em vestidos claros, estudantes universitários, algum jovem oficial com esporas, tão jovem que é como se ele tivesse se fantasiado de militar, rodopiavam harmoniosamente pela pista ampla, levantando areia com os pés e com os vestidos esvoaçantes. Sob a enganosa luz crepuscular das lanternas, todas as pessoas 172

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pareciam bonitas, e os próprios dançarinos eram algum tipo de criaturas incomuns, comoventes em sua leveza e pureza. A noite está em todo lugar e eles estão dançando; se uma pessoa se afastar apenas dez passos de distância do círculo, a imensa escuridão onipotente a engolirá – e eles estão dançando, e a música toca para eles de forma tão encantadora, tão pensativa e doce. O trem para por cinco minutos e Iurássov se mistura na multidão de curiosos: eles rodearam a pista formando um anel escuro e incolor e agarraram-se tenazmente ao arame, tão desnecessários, incolores. E alguns deles sorriem com um sorriso estranho e cauteloso, outros estão sombrios e tristes – sentindo aquela tristeza pálida especial que nasce nas pessoas ao verem a alegria alheia. Mas Iurássov está alegre: com o olhar inspirado de um conhecedor, ele olha atentamente para os dançarinos, aprova, bate levemente com o pé e de repente decide: — Não vou mais. Vou ficar e dançar. Duas pessoas saem do círculo empurrando negligentemente a multidão: uma moça de branco e um jovem alto, quase tão alto quanto Iurássov. Belos, eles seguem ao longo dos vagões sonolentos em direção ao final da plataforma de tábuas, onde as trevas se acumulam cautelosas e carrancudas, e é como se levassem consigo um fragmento de luz: a Iurássov parece positivamente que a moça está brilhando, tão branco é seu vestido, tão negras são as sobrancelhas em seu rosto branco. Com a confiança de um homem que dança bem, Iurássov alcança os dois e pergunta: — Por favor, onde posso conseguir um ingresso para as danças? O jovem não tem bigode. Ele mede Iurássov com um olhar severo e responde: — Aqui só conhecidos. — Eu sou um viajante. Meu nome é Heinrich Walter. — Já lhe disse, aqui só conhecidos. Leonid Andrêiev

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— Meu nome é Heinrich Walter, Heinrich Walter. — Escute aqui! – o jovem para ameaçadoramente, mas a moça de branco o leva embora. Se ela apenas tivesse olhado para Heinrich Walter! Mas ela não olha e, toda branca, brilhando como uma nuvem contra a lua, por um longo tempo ainda brilha na escuridão e silenciosamente se dissolve nela. — Também não precisa! – Iurássov sussurra orgulhosamente no encalço deles, mas em sua alma tudo se torna tão branco e frio, como se neve tivesse caído ali – neve branca, limpa e morta. O trem ainda está parado por algum motivo e Iurássov caminha ao longo dos vagões, tão bonito, severo e importante em seu frio desespero que agora ninguém o tomaria por um ladrão julgado três vezes por roubo e que esteve na prisão por muitos meses. E ele está calmo, vê tudo, ouve e entende tudo, e apenas suas pernas parecem ser de borracha – elas não sentem a terra, e na alma algo está morrendo, silenciosamente, calmamente, sem dor e tremor. E eis que esse algo morreu. A música está tocando novamente, e fragmentos de uma conversa estranha e assustadora se misturam aos seus harmoniosos sons dançantes: — Ouça, fiscal, por que o trem não está saindo? Iurássov desacelera o passo e escuta. O funcionário atrás responde indiferente: — Se está parado, certamente há um motivo. O maquinista foi dançar. O passageiro ri e Iurássov segue em frente. No caminho de volta, ele ouve dois fiscais de trem falando: — Pode ser que ele esteja nesse trem. — E quem o viu? 174

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— Mas ninguém viu. O guarda é que falou. — Esse seu guarda está mentindo, isso sim. Não é mais esperto que o resto das pessoas… Toca o sinal de partida e Iurássov fica indeciso por um minuto. Mas, do lado onde estão dançando, a moça de branco está andando de braço dado com alguém, e ele pula para a plataforma e passa para o outro lado dela. Assim ele não vê nem a moça de branco, nem as pessoas que estão dançando; só a música envolve por um instante sua nuca com uma onda de sons quentes e tudo se perde na escuridão e no silêncio da noite. Ele está sozinho na frágil varanda do vagão, entre as vagas silhuetas da noite; tudo está se movendo, tudo vai para algum lugar, sem tocá-lo, tão diferente e fantasmagórico quanto as imagens de sonhos para uma pessoa adormecida.

V Empurrando Iurássov com a porta e nem tendo notado isso, um fiscal com uma lanterna atravessou rapidamente a varanda do trem e desapareceu atrás da porta seguinte. Nem seus passos, nem mesmo a batida da porta, podiam ser ouvidos em meio ao estrondo do trem, mas toda a sua figura vaga e difusa, com movimentos que avançavam apressadamente, causou a impressão de uma exclamação instantânea, que foi interrompida bruscamente. Iurássov ficou frio, pensando rapidamente em algo e, como fogo, um enorme e terrível pensamento faiscou em seu cérebro, em seu coração, em todo o seu corpo: eles o estão perseguindo. Mandaram um telegrama sobre ele, ele foi visto, ele foi reconhecido e agora estão fazendo buscas nos vagões. Aquele “ele”, sobre quem os fiscais de trem falavam tão misteriosamente, é precisamente Iurássov: e é tão assustador se reconhecer e se encontrar em algum “ele” impessoal, sobre o qual pessoas estranhas e desconhecidas estão falando. E agora eles continuam falando sobre “ele”, procurando por “ele”. Sim, eles vêm de lá, do último vagão, ele sente isso com o instinto de um animal experiente. São três ou quatro, com lanternas, que examinam atentamente os passageiros, checam cantos escuros, despertam os que estão dormindo, Leonid Andrêiev

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sussurram entre si – e, passo a passo, com gradualidade fatal, com implacável inevitabilidade aproximam-se “dele”, Iurássov, daquele que está parado na varanda e escuta atentamente, esticando o pescoço. E o trem corre com velocidade feroz, e as rodas não cantam mais e nem falam. Elas gritam com vozes de ferro, elas sussurram secreta e abafadamente, elas soltam ganidos selvagemente extasiadas com a maldade – uma matilha frenética de cães despertos. Iurássov aperta os dentes e, forçando-se a ficar imóvel, reflete: é impossível saltar a essa velocidade, a parada mais próxima ainda está longe; é preciso ir para a frente do trem e esperar lá. Enquanto eles procuram em todos os vagões, algo pode acontecer – uma parada daquelas e uma desaceleração, e ele pula fora. E ele entra calmamente pela primeira porta, sorrindo para não parecer suspeito, deixando pronto na ponta da língua um “pardon!” refinadamente educado e convincente – mas o escuro vagão da terceira classe está tão lotado, tão emaranhado em um caos de sacolas, baús, pernas esticadas vindas de todo lugar, que ele perde a esperança de chegar à saída e se perde na sensação de um novo medo inesperado. Como passar através dessa parede? As pessoas estão dormindo, mas suas pernas tenazes se estendem de todos os lugares até o corredor e o bloqueiam: elas saem de algum lugar abaixo, pendem dos assentos, tocando a cabeça e os ombros, passam de um leito a outro – murchas, como se fossem maleáveis,​​ e terrivelmente hostis em seu anseio de voltar ao lugar de origem, assumir a postura anterior. Como molas, elas se dobram e se endireitam novamente, empurrando Iurássov de maneira rude e inanimada, aterrorizando-o com sua resistência despropositada e ameaçadora. Finalmente ele está diante da porta, mas, como parafusos de ferro, duas pernas em enormes botas franzidas a bloqueiam; maldosamente largadas, elas estúpida e obstinadamente se voltam para a porta, apoiam-se nela, arqueiam-se de um jeito como se não tivessem nenhum osso, e Iurássov mal consegue se esgueirar para dentro da estreita abertura. Ele achava que ali já seria a varanda, mas era apenas um novo compartimento do vagão, com a mesma rede espessa de coisas empilhadas e membros humanos como que desprendidos do corpo. E quando, curvando176

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-se como um touro, ele consegue chegar à varanda, seus olhos estão inanes, como os do touro, e o horror sombrio do animal que está sendo acossado e que não está entendendo nada o envolve com um negro círculo enfeitiçado. Ele respira pesadamente, escuta atentamente, procura no ruído das rodas os sons da perseguição que se aproxima e, curvando-se como um touro, superando o horror, segue em direção à porta escura e silenciosa. E atrás dela novamente a luta estúpida, novamente a resistência despropositada e ameaçadora das maldosas pernas humanas. No vagão da primeira classe, um grupo de passageiros que já se conhecem se apinha no estreito corredor, junto à janela aberta. Eles estão parados em pé, sentados nos assentos puxados, e uma jovem dama de cabelos encaracolados está olhando pela janela. O vento agita a cortina, joga para trás os anéis de cabelo, e parece a Iurássov que o vento cheira a algum tipo de perfume pesado, artificial e urbano. — Pardon! – ele fala com ansiedade – pardon! Os homens lenta e relutantemente abrem caminho, perscrutando Iurássov com os olhos, com ares de poucos amigos; a dama na janela não ouve, e outra dama, risonha, fica cutucando por bastante tempo o seu ombro redondo, envolvido por um tecido colante. Finalmente, ela se vira e, antes de abrir caminho, de maneira lenta e por um tempo terrivelmente longo examina Iurássov, seus sapatos amarelos e o casaco de genuína lã inglesa. Em seus olhos há a escuridão da noite, e ela os aperta, como se estivesse refletindo se deveria dar passagem a esse cavalheiro ou não. — Pardon! – diz Iurássov em tom suplicante, e a dama, com sua saia de seda farfalhante, afasta-se em direção à parede com má vontade. E depois, mais uma vez, estes terríveis vagões de terceira classe – é como se ele já houvesse passado por dezenas, centenas deles, e à frente estão novas varandas, novas portas teimosas e pernas tenazes, malignas e ferozes. Finalmente, a última varanda e diante dela a parede escura e vazia do vagão de bagagem, e Iurássov fica imóvel por um minuto, como se deixasse de existir por completo. Alguma coisa passa correndo por perto, algo ressoa estrondosamente e o chão balança sob as pernas bambas e trêmulas. Leonid Andrêiev

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E de repente ele sente: a parede, a parede fria e dura, sobre a qual ele se apoiou extenuado, empurra-o para longe de maneira silenciosa e persistente. Dá um empurrão e, em seguida, dá outro – como se estivesse viva, como uma inimiga astuta e cautelosa, que não se atreve a atacar abertamente. E tudo o que Iurássov já tinha experimentado e visto se entrelaçou em seu cérebro formando um único quadro absurdo de uma enorme perseguição implacável. Parece-lhe que o mundo inteiro, que ele considerava indiferente e alheio, agora se levantava e o perseguia, ofegando e uivando de raiva: e aqueles campos bem alimentados e hostis, e a dama pensativa na janela, e essas pernas entrelaçadas, estupidamente teimosas e más. Agora elas estão sonolentas e moles, mas serão erguidas e se lançarão atrás dele, com todo o seu pisotear colossal, pulando, saltando, esmagando tudo o que encontrarem pelo caminho. Ele é um e elas são milhares, milhões, elas são o mundo inteiro: elas estão atrás dele e à sua frente, por todos os lados, e em nenhum lugar existe qualquer escapatória. Os vagões correm depressa, balançando raivosamente, empurrando-se, e se assemelham a monstros raivosos de ferro sobre perninhas curtas que se dobraram, engenhosamente se aproximaram do chão e passaram a correr. Está escuro na varanda e em nenhum lugar há indício de luz, e o que passa voando diante dos olhos é disforme, opaco e incompreensível. Certas sombras com longas pernas caminhando no encalço dele, certos amontoados fantasmagóricos, ora chegando bem perto do vagão, ora desaparecendo instantaneamente na escuridão uniforme e sem fim. Os campos verdes e a floresta morreram, somente seus fantasmas sinistros pairam silenciosamente sobre o trem ruidoso, e lá, alguns vagões atrás, talvez uns quatro ou talvez há apenas um, do mesmo modo silencioso, aqueles outros seguem furtivamente. Eles são três ou quatro que, com lanternas em mãos, examinam cuidadosamente os passageiros, trocam olhares entre si, sussurram e, com uma lentidão absurda, grotesca e aterrorizante, aproximam-se dele. Eis que eles abriram mais uma porta… mais uma… Fazendo um último esforço, Iurássov se obrigou a ter calma e, olhando ao redor lentamente, começou a subir no teto do vagão. Ele ficou de pé so-

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bre a estreita faixa de ferro que fechava a entrada e, debruçando-se, jogou os braços para cima; ele está quase pendurado sobre o vazio turvo, vivo e sinistro, que envolvia as suas pernas com um vento frio. As mãos escorregam sobre o ferro do teto, agarram-se à calha e ela se verga suavemente, como se fosse de papel; suas pernas em vão procuram apoio e os sapatos amarelos, duros como madeira, esfregam-se desesperadamente ao redor do poste liso e igualmente duro, e por um segundo Iurássov experimenta uma sensação de queda. Mas já no ar, tendo arqueado seu corpo como um gato em queda, ele muda de direção e acaba caindo de volta na varanda do vagão, ao mesmo tempo sentindo uma dor severa no joelho com o qual ele bateu em alguma coisa e ouvindo o ruído de tecido se rasgando. Era o casaco que havia se enganchado em algum lugar e se rasgado. E sem pensar na dor, e sem pensar em nada, Iurássov apalpa o farrapo rasgado, como se isso fosse a coisa mais importante, balança a cabeça tristemente e estala a língua em reprovação: tsc, tsc! Após a tentativa frustrada, Iurássov se sente enfraquecido, e ele tem vontade de se deitar no chão, começar a chorar e dizer: podem me levar. E ele já estava escolhendo um lugar para se deitar, quando em sua memória surgiram os vagões e as pernas que se entrelaçam, e ele escuta nitidamente: aqueles três ou quatro com lanternas estão vindo. E mais uma vez, um horror animalesco e insensato toma conta dele e o joga para lá e para cá pela varanda, como se fosse uma bola, de uma ponta à outra. E mais uma vez, repetindo-se inconscientemente, ele quer subir no teto do vagão, quando um rugido ardente e rouco, vindo de uma boca escancarada, não se sabe se um assobio ou um grito, que não se parece com nada, invade os seus ouvidos e apaga a sua consciência. Foi o apito do trem sobre a sua cabeça, saudando outro trem que vinha em sentido contrário, mas Iurássov teve a impressão de que era algo infinitamente terrível, pertencente ao mais alto grau de terror, irrevogável. Era como se o mundo o tivesse alcançado e, com todas as suas vozes, exclamado um único e sonoro: — Á-hááá!

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E quando das trevas à frente veio em resposta o rugido crescente, que se aproximava cada vez mais e, nos trilhos da faixa contígua, derramou-se a luz insinuante do trem expresso que avançava, ele afastou a barra de ferro e pulou para onde, bem próximos, serpenteavam os trilhos iluminados. Ele bateu dolorosamente os dentes contra alguma coisa, rolou algumas vezes, e quando ergueu o rosto com o bigode amarrotado e a boca desdentada, bem acima dele pendiam três lanternas, três lâmpadas pálidas por trás de vidros salientes. O significado delas, ele não entendeu.

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Na distância sombria

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á há quatro semanas ele vivia na casa e, há quatro semanas, na casa reinavam o medo e a ansiedade. Todos tentavam falar e agir como sempre falavam e agiam, e não percebiam que suas falas soavam

mais abafadas, que seus olhos pareciam culpados e ansiosos e, com frequência, voltavam-se na direção em que ficava o quarto destinado a ele. Na parte da casa oposta ao quarto, eles pisavam forte, de um jeito artificial, e da mesma forma afetada riam alto, mas quando acontecia de passarem em frente às portas brancas, que durante o dia inteiro ficavam trancadas por dentro e eram tão inóspitas, como se não houvesse nada vivo atrás delas, eles suavizavam o passo e moviam o corpo todo para o lado, como se estivessem esperando por um golpe. E, embora aqueles que passavam pusessem o pé todo no chão, seu passo era mais leve e mais silencioso do que se estivessem andando na ponta dos pés. E ninguém o chamava pelo nome, mas simplesmente pelo pronome “ele”, e como todos pensavam nele a cada minuto, essa denominação indefinida se mostrava mais clara do que seu nome completo, e nunca era preciso perguntar de novo. Por alguma razão, parecia desrespeitoso e informal demais chamá-lo como se chama aos outros, enquanto que a palavra “ele” exprimia com precisão e nitidez o medo que sua figura alta e sombria inspirava. E apenas a velha avó, que vivia no andar de cima, chamava-o de Kólia1, mas também ela sentia a tensa atmosfera de 1  Variante carinhosa do nome Nikolai. (N. da T.)

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medo e de espera por alguma desgraça que havia tomado conta da casa toda, e chorava com frequência. Certa vez, perguntou à camareira Kátia por que a neta não estava tocando piano naquele dia, mas Kátia a olhou surpresa e não respondeu, e, quando saiu, balançou a cabeça, como se não aprovasse a pergunta em si. Ele chegou num dia cinzento de novembro, ao meio-dia, quando todos estavam em casa tomando chá, exceto Piêtia2, que há muito havia ido para o ginásio. Fazia frio no pátio, e nuvens baixas e densas semeavam chuva, de modo que, apesar das grandes janelas, estava escuro nos cômodos altos, e em alguns até ardiam as lâmpadas. Ele tocou a campainha de modo cortante e imperioso, e o próprio Aleksandr Antónovitch estremeceu; ele pensou que algum de seus clientes importantes tinha vindo e foi lentamente ao seu encontro, abrindo um sorriso afável e brando em seu rosto cheio e sério. Mas esse desapareceu imediatamente quando, na penumbra do corredor, viu um homem malvestido e sujo, diante do qual estava parada a camareira embaraçada, bloqueando timidamente seu caminho. Provavelmente, ele tinha vindo a pé da estação e só em alguns lugares tomado o bonde puxado por cavalos, porque seu casaco curto e gasto estava molhado, e a barra de sua calça toda salpicada e envergada por causa da água e da sujeira. E sua voz era rouca, rude, não se sabe se por causa da umidade e do resfriado ou por ter ficado um longo tempo em silêncio no vagão sacolejante. — Por que está calada? Estou lhe perguntando, Aleksandr Antónytch3 Barsukov está em casa? – o recém-chegado repetiu sua pergunta. Mas foi Aleksandr Antónovitch quem respondeu. Sem entrar na antessala, ele olhou de soslaio para o homem que considerava ser um dos inúmeros peticionários e disse severamente: — O que é que você quer aqui? — Não me reconheceu, pai? – perguntou ironicamente o recém-chegado, porém com um tremor na voz – mas sou eu, Nikolai, e Aleksandrytch é o

2  Variante carinhosa do nome Piótr. (N. da T.) 3  Antónytch é uma maneira encurtada de se pronunciar o patronímico Antónovitch. Encurtar os patronímicos desta maneira é típico do linguajar popular. (N. da T.)

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meu patronímico4. — Qual… Nikolai? – Aleksandr Antónovitch deu um passo para trás. Mas, enquanto perguntava, ele já sabia qual Nikolai estava diante dele. A imponência desapareceu de seu rosto, que foi tomado por uma terrível palidez senil, parecida com a morte, e suas mãos subiram ao peito, de onde todo o ar havia subitamente saído. Em seguida, ambos os braços abraçaram Nikolai em um movimento impetuoso, e a barba grisalha e bem cuidada tocou a barba negra e molhada, e os velhos lábios, que não estavam mais acostumados a beijar, procuravam os lábios jovens e viçosos e com insaciável avidez se cravavam neles5. — Espera, pai, deixa eu tirar o casaco – Nikolai dizia gentilmente. — Perdoou? Perdoou? – Aleksandr Antónovitch tremia com o corpo inteiro. — Que bobagem! – disse Nikolai, com secura e severidade, afastando seu pai – de que perdão você está falando? Quando eles estavam entrando na sala de jantar, Aleksandr Antónovitch se sentia envergonhado de seu arroubo, ao qual seu coração bondoso se rendeu com uma força tão irreprimível. Mas a alegria do reencontro, embora envenenada, fervia em seu peito e procurava uma saída, e a visão do filho, que andara desaparecido ou sumido, não se sabe onde, durante sete anos inteiros, tornava seus passos rápidos e juvenis e seus movimentos impetuosos e insólitos. E ele riu com sinceridade quando Nikolai parou em frente à sua irmã e, esfregando as mãos geladas, perguntou: — E essa senhorita? É minha irmã? Ninotchka6, uma moça de dezessete anos, magrinha e pálida, estava parada em seu lugar e, embaraçada, passava os dedos pela mesa, fixando os olhos grandes e assustados no irmão. Ela adivinhou que era Nikolai, de quem ela se lembrava mais do que o próprio pai, e agora ela não sabia o que fazer. 4  Os russos, além de nome e sobrenome, têm o chamado “patronímico”, que remete ao primeiro nome do pai. Por isso Nikolai, filho de Aleksandr, chama-se Nikolai Aleksándrovitch (ou Aleksándrytch, como ele pronuncia). (N. da T.) 5  Trocar beijos na face era um costume comum entre os homens russos, em especial antigamente. (N. da T.) 6  Diminutivo do nome Nina. (N. da T.)

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E quando Nikolai, em vez de lhe dar um beijo, apertou sua mão, ela respondeu com um forte aperto e por pouco, não fez uma reverência dobrando os joelhos, como era costume entre as estudantes do Instituto. — E este senhor é o estudante Andrei Iegórytch, o preceptor de Pietka7 – apresentou Aleksandr Antónovitch. — Pietka? – surpreendeu-se Nikolai – então, ele já está estudando! Excelente! Depois ele foi apresentado a uma senhora de rosto afilado, que servia o chá e a quem simplesmente chamavam de Anna Ivánovna, e depois todos começaram a analisá-lo avidamente, enquanto ele, por sua vez, olhava ao redor da sala, querendo saber se tudo estava como há sete anos. Havia algo de estranho nele que não podia ser definido. Com sua grande estatura, sua maneira orgulhosa de girar a cabeça e o olhar penetrante dos olhos negros sob as sobrancelhas proeminentes e arqueadas, ele lembrava uma jovem águia. Seu cabelo caprichosamente despenteado recendia selvageria e liberdade; todos os seus movimentos confiantes, leves e silenciosos emanavam a graça arrebatadora do predador mostrando suas garras; e suas mãos, sem hesitação, encontravam e pegavam o que precisavam. Como se não soubesse da estranheza de sua posição, ele olhava nos olhos de todos de maneira profunda e calma, mas, mesmo naquele momento em que seu olhar era terno, nele transparecia algo oculto e perigoso, algo que sempre se vê nos olhos de um predador que está fazendo um afago. E ele falava de modo imperativo e simples, visivelmente sem medir suas palavras, como se elas não fossem os sons passíveis de erro e inconscientemente mentirosos da fala humana, e sim o soar direto do pensamento em si. O sentimento de arrependimento não poderia ter lugar na alma de tal pessoa. Mas se era uma águia, então suas penas tinham sido amassadas em uma luta, da qual ele dificilmente saíra vencedor. Isso era evidenciado pelo seu traje que carregava vestígios de pernoite, sujo e que não foi ajustado de acordo com o seu corpo; e havia nesse traje algo sutilmente predatório, perturbador, forçando todas as pessoas bem vestidas a ter uma vaga sensação de apreensão. E, às vezes, o tremor momentâneo de um estranho medo per7  Outra variante carinhosa para o nome Piótr. (N. da T.)

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corria seu corpo imponente e forte; então, o corpo inteiro parecia ter ficado menor, e se tinha a impressão de que seu cabelo se arrepiava na nuca, como o pelo de uma fera eriçada; e seus olhos rápida e maldosamente percorriam todos os presentes. Ele bebia e comia com voracidade, como um homem que teve que passar fome por um longo tempo ou que nunca tinha o suficiente para se saciar e, portanto, estava pronto para comer a cada minuto e tudo o que era servido na mesa. E, tendo terminado, ele disse: “Excelente!” – e acariciou a própria barriga de modo levemente zombeteiro. Recusando o charuto de seu pai, ele pegou um cigarro do estudante (ele mesmo não tinha um cigarro) e ordenou: “Me contem tudo!”. Nina foi quem começou a contar, precisamente sobre como havia se formado no Instituto e como tinha sido sua vida ali. No início, ela estava tímida, mas como já havia contado aquilo várias vezes, ela facilmente se lembrou de todas as palavras espirituosas e ficou muito satisfeita consigo mesma. Não dava para saber se Nikolai estava ouvindo ou não; ele sorria, mas nem sempre naqueles momentos onde havia palavras espirituosas, e o tempo todo percorria a sala com seus olhos salientes. Às vezes, ele interrompia o discurso com perguntas fora de contexto. — Quanto deu pelo quadro? – ele perguntou ao pai, que estava calado e também sorria de modo levemente zombeteiro. — Não me lembro. — Dois mil – Anna Ivánovna, que até então permanecera em silêncio, respondeu demonstrando consideração pelo dinheiro e olhou temerosamente para Aleksandr Antónovitch. E ambos sorriram – o pai e Nikolai, e algo hostil transpareceu no sorriso. Agora Aleksander Antónovitch já não estava agitado, portanto, tornou-se severo e com ares de importância. — Como vão os negócios? – Nikolai perguntou laconicamente para o pai. — Não estão mal. Vão indo. — Ele comprou uma casa nova. Na rua Italiánskaia, de três andares. E ainda comprou uma fábrica – disse Anna Ivánovna, quase num sussurro. Leonid Andrêiev

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Ela tinha medo de Aleksandr Antónovitch, mas não podia se conter, pois estava sempre ocupada comparando seu capital de quinhentos e cinquenta e seis rublos, guardado em uma poupança no banco, com o capital de Barsukov, que tinha casas, fábricas e ações. — Bem, Ninotchka, continue – disse Nikolai, mas Ninotchka há muito havia se entediado. Ela novamente tinha começado a sentir pontadas no flanco e permanecia sentada, magra, pálida, quase transparente, mas estranhamente linda e tocante, como uma flor que estava começando a murchar. E ela exalava algum perfume estranho e leve, que lembrava um outono amarelado e uma morte bonita. O estudante tímido e bexiguento a observava atentamente e também parecia empalidecer à mesma medida que a cor se esvaía do rosto de Ninotchka. Ele era médico e, além disso, amava Ninotchka com a intensidade do primeiro amor. Mas então apareceu Fienoguén Iványtch, um velho lacaio. Sua cara surgiu de trás da porta como uma lua que estava despontando e, como ela, era larga, vermelha e lisa. Ele tinha estado na bánia8, depois bebido um pouco e, ao voltar para casa, ficou sabendo pela camareira da chegada do patrãozinho, com quem, outrora, ele havia brincado de cavalinho. Chorando um pouco, não se sabe se por causa da vodca ou do amor, ele vestiu o fraque, perfumou a careca, como fazia o patrão, e cerimoniosamente se dirigiu à sala de jantar. Por um tempo, permaneceu de pé atrás da porta e, com as bochechas solenemente infladas, como se diante da chegada do próprio governador, apresentou-se perante Nikolai. — Fienogueshka9! – gritou Nikolai alegremente, e sua voz soou como a de uma criança. — Patrãozinho! – guinchou Fienoguén e, derrubando as cadeiras, correu para Nikolai. A princípio, ele queria beijá-lo no ombro, mas como Nikolai em vez disso apertou sua mão, então Fienoguén recuou solenemente e respondeu com um forte, até doloroso, aperto. Ele se permitia pensar que não era um cria8  Espécie de sauna típica russa. (N. da T.) 9  Variante carinhosa do nome Fienoguén. (N. da T.)

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do, mas amigo de Nikolai, e ficou satisfeito com o reconhecimento público desse seu mérito. Mas, mesmo assim, era imprescindível beijar. — E ainda por cima bêbado! – disse Nikolai, com um alegre espanto pela constância do hábito de Fienoguén, sentindo o cheiro de vodca. — Como é? – Aleksandr Antónovitch perguntou severamente. Movendo a cabeça em negativa, Fienoguén Iványtch recuava educadamente de marcha à ré e enviesava os olhos para descobrir onde estava a porta, mas, apesar disso, primeiro deu com a parede que separava duas portas, e de lá é que conseguiu, às apalpadelas, chegar até porta. Tudo isso levou um tempo bastante significativo. Na antessala, Fienoguén Iványtch fez uma pausa, examinou com ternura a mão que Nikolai havia apertado e, carregando-a diante de si, como se fosse algo completamente estranho a ele, frágil e valioso, retirou-se para o quarto destinado aos empregados. Ele sempre respeitou a si próprio, mas no momento, a parte mais respeitada de seu corpo era a mão direita. Neste dia, Aleksandr Antónovitch não foi para a sede do Conselho Administrativo e, depois do almoço, no qual ele bebeu muito vinho, estava se sentindo bem-humorado e dócil. Tendo abraçado Nikolai pela cintura, levou-o até a biblioteca, acendeu um charuto e, preparando-se para ouvir por um longo tempo, disse gentilmente: — Agora me conte: onde esteve, o que fez? Nikolai não respondeu imediatamente. Mais uma vez o mesmo estranho tremor de medo percorreu seu corpo e os olhos lançaram um olhar para a porta, mas sua voz permanecia calma e séria. — Não, pai. Peço que deixe para lá a conversa sobre as minhas aventuras. — Eu vi que você está com uma carteira produzida no exterior. Esteve no exterior? — Estive – respondeu laconicamente Nikolai – mas já chega, pai. Aleksandr Antónovitch franziu as sobrancelhas e se levantou do sofá. Colocando as mãos atrás das costas, sob a sobrecasaca, caminhou pela sala e, Leonid Andrêiev

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sem olhar para o filho, perguntou: — Você continua o mesmo? — Como você está vendo. E você, pai? — Como você está vendo. Me dê licença, preciso resolver umas coisas. Quando Nikolai saiu, Aleksandr Antónovitch trancou a porta atrás de si, olhou em volta e, aproximando-se da lareira, deu um soco no ladrilho branco e brilhante, sem dizer nada, mas com força. Depois limpou a mão com um lenço, no qual uma tirinha branca de cal havia ficado presa, e se sentou para trabalhar. E novamente seu rosto se destacava com aquela terrível palidez que lembra a morte. Ninguém viu o encontro de Nikolai com sua avó, mas ele saiu dele sombrio e como que um pouco comovido. E por um momento todos se sentiram aliviados quando as portas brancas de seu quarto bateram atrás de Nikolai, mas a partir daquele momento ele deixou de ser visita e, daquele mesmo momento em diante, surgiu aquela estranha inquietude que foi crescendo e logo dominou a casa inteira. Como se alguém misteriosamente perigoso, mais desconhecido que qualquer outra pessoa da rua, e mais terrível do que um ladrão à espreita, tivesse entrado na casa e ocupado lá um lugar para sempre. E apenas Fienoguén não sentiu isso, já que havia bebido mais de alegria e agora estava dormindo na cama do cozinheiro, e mesmo durante o sono conservava a aparência de total autorrespeito e mantinha a mão direita um pouco afastada. Enquanto isso, na sala de estar, Ninotchka contava baixinho ao estudante sobre o que havia acontecido há sete anos. Naquela época, por conta de uma história, Nikolai foi demitido do Instituto Tecnológico junto com alguns companheiros, e apenas as conexões de seu pai o salvaram de uma punição maior. Durante uma acalorada discussão com o filho, o irascível Aleksandr Antónovitch deu um tapa nele e, naquela mesma noite, Nikolai saiu de casa e retornou apenas hoje. E ambos – a narradora e o ouvinte – balançavam as cabeças e baixavam a voz, e o estudante, para encorajar Ninotchka, até segurou sua mão e passou a acariciá-la. 188

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II Nikolai não incomodava ninguém; ele mesmo falava pouco e não se pode dizer que ouvia os outros com má vontade e sim, com certa indiferença arrogante, como se soubesse de antemão o que poderiam lhe dizer. Às vezes, no meio de uma história, ele saía e o tempo todo seu rosto carregava uma expressão, como se estivesse ouvindo algo que está longe, algo importante e que somente podia ser ouvido por ele. Ele não ria de ninguém e não censurava ninguém, mas quando saía da biblioteca, onde ficava sentado a maior parte do dia, e vagava distraidamente pela casa, entrando no quarto dos empregados, da irmã e do estudante, ele espalhava frieza com suas maneiras e forçava as pessoas a pensar em si mesmas como se tivessem feito algo muito ruim e até mesmo criminoso, e que seriam julgadas e punidas. Agora ele estava muito bem vestido, mas nem nos trajes rebuscados ele não se fundia com a esplêndida magnificência dos cômodos, mas permanecia à parte, como algo estranho e hostil. E se todas essas coisas caras pudessem sentir e falar, diriam que morrem de medo quando ele se aproxima ou pega uma delas em suas mãos e as examina com uma curiosidade estranha. Ele nunca deixava cair nada e colocava o objeto no lugar, exatamente como estava, mas era como se o toque de sua mão privasse a graciosa estatueta de todo o seu valor, e depois que ele saía ela ficava vazia e inútil. Sua alma, criada pela arte, derretia-se nas mãos dele e restava apenas um pedaço desnecessário de bronze ou argila. Uma vez Nikolai foi ver Ninotchka durante sua aula de desenho, quando ela estava copiando muito bem e fielmente do quadro de alguém a figura de um mendigo que pedia esmola. — Desenhe, Nina. Eu não vou te atrapalhar – disse ele, sentando-se perto, em um sofá baixo. Ninotchka sorriu timidamente e continuou a pintar por algum tempo, pegando as cores erradas. Então desistiu e disse: — Estou cansada. Você gostou? — Sim, ficou bom. Você também toca bem. Leonid Andrêiev

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Por causa desse frio elogio, a impressionável Ninotchka se sentiu entediada. Inclinando a cabeça criticamente para o lado, ela examinou seu desenho, suspirou e disse: — Pobre mendigo. Tenho tanta pena dele. Você também? — Sim, também. — Eu participo de duas instituições de caridade. Há muito trabalho – ela disse calorosamente. — O que vocês fazem lá? – perguntou Nikolai com indiferença. Ninotchka começou a contar em mais detalhes, depois mais laconicamente, depois parou por completo. Nikolai ficou em silêncio e folheou um álbum no qual conhecidos de Ninotchka anotavam versos. — Eu queria fazer um curso, mas o papai não deixa – disse Ninotchka subitamente, como se procurasse um meio de chamar a atenção do irmão. — É uma boa iniciativa. E como ficou? — O papai não deixa. Mas eu vou conseguir o que quero. Nikolai saiu e o peito de Ninotchka ficou vazio e melancólico. Ela jogou o álbum para o lado, olhou tristemente para o quadro que havia começado e este lhe pareceu uma pintura grosseira e repugnante que não faria falta a ninguém. Incapaz de conter seus impulsos, Ninotchka pegou um pincel e usando tinta azul riscou a tela de ponta a ponta com dois traços formando um “X” e, ao fazer isso, decepou a metade da cabeça do mendigo. Desde o primeiro dia, quando Nikolai apertou sua mão, ela o amou, mas ele nunca lhe deu um beijo sequer. Se ele a tivesse beijado, Ninotchka teria aberto para ele todo o seu pequeno, mas já doído coração, no qual ora cantavam pequenos e alegres passarinhos, ora crocitavam negros corvos, como ela escrevera em seu diário. E até seu diário ela teria dado a ele, e no diário, em cada página havia o relato de como ela era infeliz e como ninguém precisava dela. Ele achava que ela estava satisfeita com sua pintura, com a música e com a caridade, mas estava enganado: ela não precisava de pintura, nem de música, nem de instituições de caridade. 190

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Nikolai só ria nas aulas que Pietka tinha com o estudante, e Pietka o odiava por rir. Em sua presença, ele deliberadamente levantava os joelhos ainda mais, de modo que quase caía de costas com a cadeira, apertava os olhos desdenhosamente, enfiava o dedo no nariz, embora soubesse perfeitamente que isso não deveria ser feito e, com frieza, dizia impropérios intoleráveis para o estudante. O rosto marcado do preceptor ficava vermelho e suava; ele quase chorava e quando Pietka saía, ficava reclamando que o menino não tinha a menor vontade de estudar. — Eu não sei o que será dele – dizia o estudante – e agora, também a camareira andou se queixando para mim que ele fica lhe dizendo obscenidades. — Um patife, é o que vai ser – Nikolai determinou o futuro de seu irmão sem estar visivelmente decepcionado. — Você batalha, batalha, gasta seus nervos, e para quê?! – o estudante estava quase chorando ao recordar uma longa série de humilhações e vergonha por que havia passado, situações em que queria desaparecer da face da Terra ou dar uma boa surra no aluno. — Deixe-o! — Mas preciso comer! – exclamou Aleksey Iegórovitch em desespero. — Pois então, coma o que lhe é servido. Mas Nikolai não entrava em debates com o estudante, apesar dos esforços deste último. Tanto Ninotchka quanto Aleksey Iegórovitch faziam frequentes tentativas de decidir quem realmente era o irmão Nikolai, e chegavam a imagens tão fantásticas que os dois acabavam rindo. Mas, quando se separavam, surpreendiam-se com o próprio riso, e as suposições mais fantásticas pareciam verdadeiras, e no dia seguinte, ambos com medo e veemente curiosidade esperavam Nikolai aparecer, pensando que exatamente naquele dia a questão aflitiva seria resolvida. Mas Nikolai aparecia e, no entanto, a questão continuava como antes, longe de uma solução. Especialmente coloridas e inverossímeis eram as suposições feitas no quarto dos empregados, e na frente de todos os especuladores estava FieLeonid Andrêiev

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noguén Iványtch. Quando ele bebia um pouco, sua imaginação trabalhava incontrolavelmente e criava imagens incríveis diante das quais ele mesmo parava com perplexidade e medo. — Ele é um ladrão! – disse, certa vez, Fienoguén Iványtch e seu rosto vermelho empalideceu de medo. — Que ladrão o quê!… – não acreditou o cozinheiro, mas também olhou de relance para a porta. — Que rouba apenas os ricos – emendou Fienoguén Iványch, que uma vez ouvira do próprio Nikolai, então ainda menino, sobre a existência de tais ladrões. — Por que ele iria roubar quando seu pai tem rios de dinheiro? – duvidou o cocheiro, uma pessoa muito ponderada. — Três fábricas, quatro casas, ações que rendem diariamente – sussurrou Anna Ivánovna, que agora tinha exatamente quinhentos e sessenta rublos na poupança, pois há pouco tempo ela havia depositado mais quatro rublos. A suposição de Fienoguén Iványtch colapsou. Anna Ivánovna vasculhou todas as coisas de Nikolai e não encontrou nada, exceto roupa. E exatamente o fato de ela não ter encontrado nada, exceto a roupa, era ainda mais assustador e perturbador. Se houvesse armas, balas e facas na mala e Nikolai realmente se revelasse um ladrão, isso não seria tão assustador quanto o fato de não conhecer absolutamente a ocupação de alguém cujo rosto e maneiras não se parecem, de forma alguma, com as de outras pessoas: ouve, mas ele mesmo não fala, e olha para todos como um carrasco. A ansiedade crescia e se transformava em um medo supersticioso que percorria a casa na forma de uma onda gelada. Foi ouvida uma conversa curta entre Nikolai e seu pai, que não dissipou o medo, mas tornou ainda mais densa a nebulosa atmosfera de perplexidade e mistério. — Uma vez você disse que odeia a vida que nós levamos – perguntou o pai, proferindo separadamente cada palavra – e agora, você 192

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continua a odiá-la? A resposta séria de Nikolai soava igualmente compassada e lenta: — Sim, eu a odeio do início ao fim. Eu a odeio e não entendo. — Você encontrou uma melhor? — Sim, encontrei. Sim, encontrei – Nikolai repetiu firmemente. — Fique conosco. — Isso é impensável, pai. E você sabe disso. — Nikolai! – ressoou o grito zangado de Aleksandr Antónovitch. E, depois de um minuto de tenso silêncio, a resposta um tanto triste de Nikolai, pronunciada em voz baixa: — Você continua o mesmo, pai. De pavio curto e bondoso. E o Natal nesta casa rica veio angustiante e sem alegria. A presença de uma pessoa que de modo algum compartilhava os pensamentos e sentimentos das pessoas ao seu redor pairava como um pesadelo sombrio sobre todos e tirava do feriado não apenas seu caráter alegre, mas também o próprio significado. Parecia que o próprio Nikolai havia notado o peso que era para os outros e quase não saía do quarto, mas longe dos olhos ele parecia ainda mais assustador do que quando podia ser visto. Poucos dias antes do Natal, algumas visitas se reuniram casualmente na casa dos Barsukovs; Nikolai não saiu para vê-los, como normalmente não saía para ver qualquer pessoa estranha, e, vestido, permanecia deitado na cama, ouvindo os sons da música. Abafados pelas paredes espessas, eles pareciam melodiosos e ternos, como o canto distante de vozes puras e sem pecado, e entravam tão suavemente no ouvido que era como se o próprio ar cantasse. Nikolai ouvia com atenção e relembrava aquela época, quando ele ainda era pequeno e sua mãe estava viva, e eles recebiam convidados, e ele também ouvia música de longe e fantasiava – não com imagens, mas com outra coisa em que sons e imagens se entrelaçavam formando um todo rutilante e dolorosamente bonito, e isso serpenteava como uma colorida fita cantante. E na época ele entendia o que significava aquela coisa rutilante, mas não conseguia Leonid Andrêiev

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explicar para ninguém, nem para si mesmo, e apenas tentava ficar acordado por mais tempo, sem adormecer – mas acabava adormecendo. Certa vez ele tinha adormecido dessa maneira, sem ser notado por ninguém, na antessala, sobre os casacos de pele, e agora ele sentiu nitidamente o cheiro da pele felpuda e que fazia cócegas. E novamente um arrepio de horror incompreensível percorreu seu corpo em forma de pontadas de agulhas frias, porém outra coisa, mais suave e calorosa, iluminou seu rosto e, como uma mão carinhosa e acariciante, alisou as sobrancelhas franzidas. Seu rosto ficou imóvel, mas calmo, dócil e complacente, como o de um morto. Era impossível adivinhar se ele estava acordado ou dormindo, se estava vivo ou morto, mas uma coisa poderia ser dita: aquele homem estava descansando. A véspera de Natal chegou e, quando o sol se punha, Fienoguén Iványtch foi ter com Nikolai. Ele estava quase sóbrio, sombrio e desviava o olhar, e nos olhos era possível perceber vestígios do que pareciam ser lágrimas. — Vá ver a vovó – disse ele da porta. — O quê? – espantou-se Nikolai. Fienoguén Iványtch suspirou e repetiu: — Vá ver a vovó. Nikolai subiu as escadas – e acabara de cruzar o limiar da porta, quando dois braços finos de moça envolveram seu pescoço; um rostinho suave de olhos úmidos e bem abertos se aproximou de seu rosto, e uma voz sufocada por soluços sussurrou: — Kólia, Kólia, como você nos afligiu! Kólia, Kólia, meu irmãozinho querido, faça as pazes com o papai, e comigo, e fique conosco, Kólia, Kólia! E o corpo pequenino e magro palpitava em suas mãos e o coraçãozinho pequenino, do qual ninguém precisava, tornou-se tão enorme que nele caberia todo o infinito sofrimento do mundo. Nikolai, sombrio e carrancudo, lançou olhares para os lados. Da cama, as mãos da avó, terríveis em sua pálida magreza, estendiam-se para ele, e uma voz em que já se ouviam ecos de outra vida, rogava num som rouco e soluçante: — Kólia, Kólia!… 194

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E na soleira da porta Fienoguén Iványtch chorava. Ele havia perdido todo seu ar de importância, fungava e movia a boca e as sobrancelhas; e havia tantas lágrimas e elas fluíam como um rio por seu rosto, como se não estivessem saindo de seus olhos, como em todas as pessoas, mas vazassem de todos os poros de seu corpo. — Meu amigo! Nikólienka10! – ele sussurrava em tom de súplica, estendendo para frente as mãos com um lenço vermelho imobilizado nelas. Nikolai sorria desamparada e dolorosamente, sem saber que de seus olhos de águia, agora sem brilho, caíam lágrimas escassas e parcas. E então, de um canto escuro, veio para a luz a cabeça impotente, tomada por um tremor senil, daquele que era seu pai, cuja vida ele odiava e não entendia. Mas que agora ele entendeu. Com a mesma loucura de amor, com a qual estava impregnado o seu ódio, Nikolai se lançou em direção ao pai, arrastando Ninotchka consigo. E todos os três, formando um aglomerado vivo e choroso, expondo seus corações, emocionados, por um instante se transformaram em um grande ser, com um só coração e uma só alma. — Ficou! – gritava a velha em voz rouca e triunfante – ficou! — Meu amigo! Nikólienka! – Fienoguén Iványtch sussurrava em tom de súplica. — Sim! Sim! – dizia Nikolai, sem entender a quem e a que ele respondia Sim! Sim! – repetiu ele, beijando a mão velha e trêmula, que acariciava sua cabeça e seu rosto com ternura silenciosa – Sim! Sim! – ele ainda repetia, já sentindo como em sua alma já crescia um ameaçador e implacável, lacônico e obtuso “não!”. A noite já estava se aproximando e toda a enorme casa, desde o quarto dos empregados até os quartos dos patrões, brilhava com luzes alegres. As pessoas conversavam alegremente e suas vozes altas ecoavam, e os bibelôs caros, frágeis e desnecessários já não temiam por si. De seus lugares elevados, eles olhavam orgulhosamente para as pessoas que se azafamavam e 10  Outra variante carinhosa para o nome Nikolai. (N. da T.)

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exibiam sua beleza sem receio e, nesta casa, tudo parecia servir a eles e se curvar diante de sua dispendiosa existência. Aleksandr Antónovitch, Ninotchka e até mesmo o estudante ainda estavam sentados no quarto da avó e ora falavam sobre sua felicidade, ora ficavam calados apreciando-a. Fienoguén Iványtch, que tinha bebido mais um pouco de alegria, saiu para o ar livre com o objetivo de refrescar ligeiramente a cabeça e, enquanto acariciava a careca vermelha, na qual os flocos de neve derretiam como em um fogão quente, ficou surpreso ao ver Nikolai. Segurando uma pequena rede nas mãos, Nikolai estava vindo de trás do canto da casa onde ficava a porta dos fundos e também ficou desagradavelmente surpreendido ao ver Fienoguén Iványtch. — Ah, Fienogueshka! – ele disse em voz baixa – bem, me acompanhe até o portão. — Meu amigo… – murmurou desnorteado Fienoguén Iványtch. — Silêncio. Conversaremos lá. Àquela hora, a rua estava deserta e ambas as extremidades estavam perdidas na neblina esbranquiçada da neve que caía lenta e silenciosamente. Parando em frente a Fienoguén Iványtch e o encarando com os olhos proeminentes e brilhantes, Nikolai pôs a mão no ombro dele e disse devagar, como se estivesse se dirigindo a uma criança: — Diga ao meu pai, diga-lhe que Nikolai Aleksándrovitch manda expressar o seu apreço e dizer que partiu. — Para onde? — Simplesmente partiu, adeus. Nikolai deu um tapinha no ombro do lacaio e se afastou dele. Mas, não eram necessárias palavras para que Fienoguén Iványtch soubesse aonde Nikolai estava indo e, com toda a força que tinha em suas mãos, agarrou-o: — Não permitirei! Por Deus, não permitirei! Nikolai o afastou e o olhou surpreso. Mas Fienoguén Iványtch juntou as mãos em súplica e perguntou com uma voz chorosa: 196

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— Nikólienka! Meu único amigo! Deixe tudo pra lá, não vá. O que é que tem lá? Tem dinheiro. Três fábricas. Casas. Ações que rendem diariamente – ele repetia em vão as palavras da governanta. — Que besteiras você está dizendo? – Nikolai franziu o cenho e começou a andar rapidamente. Mas Fienoguén Iványtch, todo festivo em seu fraque novo, porém, todo desengonçado e como que envelhecido, correu atrás dele, agarrou suas mãos e implorou: — Eu também vou! Leve-me junto. O que é isso, por Deus! Querido! Se é para virar ladrão, que assim seja! – e Fienoguén Iványtch agitou desesperadamente a mão, dizendo adeus ao mundo das pessoas honestas. Nikolai parou e olhou silenciosamente para o criado, e nesse olhar cintilou algo tão terrível, friamente feroz e desesperado, que Fienoguén Iványtch ficou mudo e seus pés grudaram no chão. A figura alta de Nikolai foi ficando acinzentada e foi se encolhendo, como se estivesse se derretendo na névoa cinzenta. Mais um minuto e ele desapareceu para sempre naquela mesma distância sombria e sinistra de onde havia chegado de repente. E já não se via nada vivo no espaço deserto, mas Fienoguén Iványtch ainda continuava parado em pé e olhava. O colarinho engomado de sua camisa amoleceu e grudou no pescoço; os flocos de neve derretiam lentamente na careca vermelha que tinha esfriado e rolavam junto com as lágrimas pelo rosto largo e barbeado.

(1900)

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Leonid Andrêiev e sua primeira esposa Aleksandra, em Butovo, próximo a Moscou, logo após seu casamento, em 1902.


De uma história que nunca será concluída

E

xtenuado pela terrível incerteza do dia, eu havia adormecido vestido sobre a cama quando minha esposa me acordou. Uma vela oscilava em sua mão e, no meio da noite, ela me pareceu brilhante como

o sol. E, por trás da vela, oscilava um queixo pálido e se vislumbrava olhos enormes, imóveis e que me eram estranhos. — Sabe – ela disse – sabe, estão construindo barricadas na nossa rua. Fazia silêncio, e ficamos olhando um para o outro, bem nos olhos que nos eram estranhos, e eu sentia como meu rosto empalidecia. A vida se foi para algum lugar – e retornou novamente com as batidas ruidosas do coração. Fazia silêncio, e a chama da vela oscilava, e era pequena, fraca, mas afiada, como uma espada curva. — Você está com medo? – eu perguntei. O queixo pálido estremeceu, mas os olhos permaneceram imóveis e olhavam para mim sem piscar, e só nesse momento eu vi como esses olhos me eram estranhos e como eram terríveis. Por dez anos olhei para eles e os conhecia melhor do que os meus, mas agora havia algo novo neles que eu não saberia nomear. Orgulho, eu chamaria, porém havia outra coisa, nova, completamente nova. Eu segurei sua mão: estava fria, ela me respondeu com um forte aperto, e havia algo novo nele que eu não conhecia. Ela nunca havia apertado minha mão daquele jeito. Leonid Andrêiev

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— Faz tempo? – perguntei. — Já faz uma hora mais ou menos, e o irmão já foi. Provavelmente ele estava com medo de que você não o deixasse ir e saiu de fininho. Mas eu vi. Quer dizer que é verdade: chegou. Eu me levantei e, por algum motivo, fiquei me lavando durante muito tempo, como fazia de manhã, quando ia trabalhar, e minha mulher ficou iluminando o ambiente para mim. Então apagamos a vela e fomos até a janela que dava para a rua. Era primavera, era maio, e pela janela aberta irrompeu uma rajada de ar diferente, como nunca havia existido na velha e enorme cidade. Já fazia vários dias que as fábricas e as linhas ferroviárias não funcionavam e o ar, livre da fumaça do carvão, estava impregnado com o aroma do campo e de jardins floridos, e talvez de orvalho. Eu não sei o que cheira tão bem nas noites de primavera, quando você vai para longe, bem longe da cidade. E não há nem um único lampião, nem uma única carruagem, nem um único som urbano sobre a interminável superfície de pedra – se você fechar os olhos, pode realmente pensar que se trata de uma aldeia. Um cachorro está latindo! Veja só! Eu nunca havia escutado como um cachorro late na cidade e comecei a rir de felicidade. — Escute, um cachorro! Minha esposa me abraçou e disse: — Eles estão ali na esquina. Nós nos inclinamos sobre o peitoril da janela e lá, na profundeza escura e transparente, vimos algum tipo de movimento. Não pessoas, mas movimento. Quebravam algo, construíam algo. Alguém se movia, incapturável como uma sombra. De repente, começaram a soar batidas: de um machado ou de um martelo. Tão alto e alegremente – como na floresta, como no rio, quando estão consertando um barco ou construindo uma barragem. E, pressentindo um trabalho alegre e harmônico, eu abracei minha esposa com força, e ela olhava por cima das casas, por cima dos telhados, para a lua nova pontiaguda que já estava se pondo. Tão jovem, tão engraçada – como uma moça que sonha e tem medo de contar a alguém sobre seus sonhos, e brilha apenas para si mesma. 200

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— Quando ela se tornar cheia… — Não fale! Não fale – minha esposa me interrompeu com um medo incompreensível – não se deve falar sobre o que virá. Para quê? O que está para vir teme as palavras. Vamos entrar. Dentro do quarto estava escuro e ficamos em silêncio por um longo tempo, sem que víssemos um ao outro, mas pensando na mesma coisa. E, quando eu falei, pareceu-me que alguma outra pessoa tinha dito isso: eu não estava com medo, mas essa outra pessoa tinha uma voz rouca, como se estivesse sufocando de sede. — Então, como vai ser…? — E eles? — Você ficará com eles, para eles é suficiente ter mãe. E eu não posso. — E eu posso? Eu sei que ela não saiu do lugar, mas eu senti claramente: ela estava indo embora, ela estava longe – ela estava longe. E ficou tão frio que eu estendi minhas mãos, mas ela as afastou. — A cada cem anos aparece uma festa para as pessoas e você quer me privar dela. Por quê? – disse ela. — Mas podem matar você. E nossas crianças estarão perdidas. — A vida será benevolente com eles. Mas mesmo se elas morrerem… E quem estava dizendo isso era ela, minha esposa, a mulher com quem vivi dez anos! Ainda ontem ela não falava de outra coisa a não ser dos filhos, estava cheia de medo por eles; ainda ontem ela tentava captar, horrorizada, os ameaçadores sinais do futuro – o que aconteceu com ela? Ontem… mas também eu me esqueci de tudo o que aconteceu ontem. — Você quer vir comigo? — Não fique bravo! – Ela pensou que eu estivesse bravo – não fique bravo! Hoje, quando eles começaram a bater lá e você ainda estava dormindo, eu entendi, entendi de repente, que marido, filhos, tudo isso é corriqueiro, Leonid Andrêiev

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tudo isso é transitório. Eu amo você, muito – ela encontrou minha mão e a apertou com aquele mesmo aperto novo e estranho para mim – mas você está ouvindo? Eles estão batendo. Eles batem e é como se caíssem, caíssem algumas paredes, e tudo ficou tão amplo, tão vasto, tão livre! É noite agora, e me parece que o sol está brilhando. Tenho trinta anos e já sou velha, mas tenho a impressão de que tenho dezessete anos e estou amando alguém com a força de meu primeiro amor – um amor tão grande e tão sem limites! — Que noite! – eu disse – parece que a cidade não existe. É verdade, eu também esqueci quantos anos tenho. — Eles batem, e é como uma música, como um canto, com que sonhei toda a minha vida. E eu não sei a quem eu amo com um amor tão louco que quero chorar e rir e cantar. É tão amplo, tão vasto. Não tire a felicidade de mim, deixe-me morrer com aqueles que estão trabalhando lá e tão corajosamente clamam pelo futuro e tentam despertar o passado perdido, enclausurado nos caixões. — Não há tempo. — O que está dizendo? — Não há tempo. Quem é você? Eu não a conhecia. Você é um ser humano? Ela deu uma risada tão sonora, como se tivesse dezessete anos. — Sim, pois nem eu sabia disso. E você, também é um ser humano? Como isso é estranho e bonito: ser humano. Isso sobre o que estou escrevendo já aconteceu há muito tempo, e aqueles que agora dormem o pesado sono de uma vida cinzenta e morrem, sem terem despertado – não acreditarão em mim: não havia tempo naqueles dias. O sol nascia e se punha, e o ponteiro do relógio se movia em círculo, mas não havia tempo. E muitas outras coisas incríveis e grandiosas aconteceram naqueles dias, e aqueles que agora dormem o pesado sono de uma vida cinzenta e morrem sem despertar não vão acreditar em mim. — Preciso ir – eu disse. — Espere, vou servir algo para você comer. Afinal, não comeu nada hoje. 202

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E você está vendo como eu sou prudente: irei amanhã. Eu vou dar as crianças e vou encontrá-lo. — Camarada – eu disse. — Sim, camarada. O ar dos campos e o silêncio escorriam pelas janelas abertas, assim como, ocasionalmente, a batida sonora e alegre de um machado, eu permanecia sentado à mesa e observava e ouvia, e tudo era tão misteriosamente novo que eu tinha vontade de rir. Eu olhava para as paredes e elas pareciam transparentes para mim. Como se, ao cingir com um único olhar toda a eternidade, eu visse como elas iriam desmoronar, e apenas eu sempre existi e sempre existirei. Tudo passará – mas eu existirei. E tudo parecia estranho e engraçado para mim – tão irreal: a mesa, a comida e tudo que estava fora de mim. Transparente e leve, existindo apenas de brincadeira, apenas por enquanto. — Por que você não está comendo? – perguntou minha esposa. Eu sorri: — Pão, isso é tão estranho. Ela olhou para o pão, para o pedaço de pão amanhecido e seco e, por algum motivo, seu rosto ficou triste. Ainda olhando para ele, ela silenciosamente ficou endireitando o avental com as mãos e sua cabeça se virou um pouquinho, bem pouquinho, na direção em que as crianças dormiam. — Você está com pena deles? – eu perguntei. Ela balançou a cabeça, sem tirar os olhos do pão. — Não. Mas eu pensei sobre o que era a vida, o que era antes. Como é incompreensível! E tudo – espantada, ela olhou ao redor da sala, como se tivesse acordado depois de um longo sono –, e tudo é tão incompreensível. Nós vivíamos aqui. — Você era minha esposa. — E lá estão os nossos filhos. — Aqui, por trás desta parede, morreu seu pai. Leonid Andrêiev

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— Sim, morreu. Morreu, sem ter despertado. A menorzinha começou a chorar, assustada com algo que tinha sonhado. E pareceu tão estranho esse simples grito infantil, que insistentemente exigia o que desejava – entre essas paredes fantasmagóricas, enquanto ali embaixo construíam barricadas. Ela chorava e exigia o que desejava: carinho, algumas palavras e promessas engraçadas que a acalmavam. E rapidamente se acalmou. — Bem, vá logo! – sussurrou minha esposa. — Eu queria dar um beijo neles. — Tenho medo que vá acordá-los. — Não, não tem problema. Revelou-se que o mais velho não estava dormindo, ouviu e entendeu tudo. Ele tinha apenas nove anos de idade, mas havia entendido tudo – tão profundo e sério era o olhar com que me recebeu. — Você vai levar a espingarda? – ele perguntou pensativo e sério. — Sim, vou. — Ela está embaixo do fogão? — E como você sabe? Bem, me dê um beijo. Você vai se lembrar de mim? De um pulo ele ficou em pé na cama em seu camisolão curto, todo quente do sono, e abraçou forte meu pescoço. E suas mãos eram quentes e tão macias e tenras. Eu levantei o cabelo em sua nuca e beijei o pescocinho fino e quente. — Vão te matar? – ele sussurrou bem na minha orelha. — Não. Eu vou voltar. Mas por que ele não estava chorando? Às vezes ele chorava se eu apenas saísse de casa, será que aquilo que estava acontecendo também o tocou? Quem sabe – tantos milagres aconteceram naqueles grandes dias! Olhei para as paredes, para o pão, para a vela, cuja chama continuava a 204

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oscilar, e segurei minha esposa pela mão. — Bem, até mais. — Sim, até mais. E isso é tudo, depois eu saí. A escada estava escura e cheirava a algum tipo de sujeira antiga; e, cercado por todos os lados de pedras e escuridão, tateando os degraus, com um imenso sentimento de alegria e plenitude eu senti o novo, desconhecido e alegre, para onde estou indo. (1907)

Leonid Andrêiev

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Dia da Ira

Canto Primeiro

Q

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uem compôs este canto livre sobre os terríveis dias de justiça e punição fui eu, da melhor maneira que sabia, eu – Gerônimo Pascania, bandido siciliano, assassino, ladrão e criminoso.

Tendo composto da melhor maneira que sabia, desejava cantá-lo bem alto, como se cantam as boas canções, mas o carcereiro não me permitiu. O carcereiro tem a orelha coberta de pelos, uma passagem apertada e estreita: para palavras mentirosas, sinuosas, capazes de se arrastar sobre a barriga, como criaturas baixas. Já as minhas palavras andam em linha reta, elas têm um peito saudável e costas largas – oh, como elas dilaceravam dolorosamente a delicada orelha do carcereiro, coberta de pelos. — Se o ouvido está trancado, então procure outra entrada, Gerônimo – eu disse a mim mesmo de uma forma amigável; e pensei, e procurei, e inventei, e encontrei, porque Gerônimo não é nada bobo. E eis o que encontrei: eu encontrei uma pedra. E eis o que eu fiz: esculpi a canção na pedra, acendi seu coração frio com golpes de ira. E quando a pedra ganhou vida e olhou para mim com olhos quentes de ira, eu a carreguei cuidadosamente e a coloquei na beira do muro da prisão. Leonid Andrêiev

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Você percebeu com o que eu estou contando? Eu sou inteligente, conto que em breve um golpe amigável abalará a terra novamente e destruirá sua cidade mais uma vez; então os muros desmoronarão, minha pedra cairá para baixo e esmagará a cabeça do carcereiro. Tendo esmagado, irá imprimir minha canção livre no cérebro cinza-sanguinolento, macio como cera, e irá introduzi-la à força como um selo real, como um novo mandamento de ira… e com isso o carcereiro irá para o túmulo. Ei, carcereiro, não tranque o ouvido! Eu passarei através do seu crânio.

2 Se eu estiver vivo na ocasião, irei rir de alegria; se eu estiver morto, meus ossos começarão a dançar no túmulo frágil. Ora que tarantela divertida será! Mas, por acaso, você pode jurar que isso nunca acontecerá? Antes disso, com aquele mesmo golpe eu serei jogado sobre a terra: meu caixão podre, minha carne fétida, todo eu – morto, enterrado para sempre, fortemente comprimido. Afinal, isso já tinha acontecido nesses dias grandiosos: a terra se acomodou no cemitério e os silenciosos caixões se arrastaram para fora. Caixões silenciosos são visitas que não foram convidadas em um banquete.

3 Aqui estão os nomes dos camaradas que se tornaram meus amigos durante essas breves horas: professor Pasquale, Giuseppe, Pinccio, Alba. Eles foram fuzilados pelos soldados. Havia ainda outro jovem, prestativo e tão bonito que dava pena de olhar; eu o considerava como um filho e ele me respeitava como a um pai, mas eu não sei o nome dele: não tive tempo de perguntar, ou talvez eu tenha me esquecido. Ele também foi fuzilado pelos soldados. Parece que havia mais um ou dois, também amigos… não me lembro. Quando o jovem estava sendo fuzilado, eu não fugi para longe, me escondi aqui mesmo, atrás de uma cerca quebrada, junto de um cacto esmagado. E eu vi e ouvi tudo. E quando estava indo embora, o cacto esmagado cravou em mim um espinho morto – afinal, ele havia sido colocado junto à 208

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cerca para não deixar os ladrões passarem. Que ótimos servos os ricos têm!

4 Eles foram fuzilados pelos soldados. Lembre-se daqueles nomes que eu lhe citei, e sobre os outros, que não têm nome, apenas pense: eles foram fuzilados. Mas nem cogite em fazer o sinal da cruz em sua testa e, pior do que isso: não encomende uma missa – eles não gostavam disso. Honre os fuzilados com o silêncio da verdade, mas se quiser mentir, então minta de alguma forma mais divertida, qualquer coisa menos missa: eles não gostavam disso.

5 Esse primeiro golpe, que destruiu a prisão e a cidade, tinha a voz de uma força extraordinária e de uma importância inumana muito peculiar: ela rugia vinda de baixo, de debaixo da terra, era imensa e continha uma ameaça surda; e tudo balançava e caía. E ainda não tendo entendido o que estava acontecendo, eu já sabia que tudo havia acabado, talvez toda a Terra tivesse acabado. Mas eu não me assustei muito – por que eu deveria me assustar muito, mesmo se toda a Terra tivesse acabado? Ele rugiu por um longo tempo, esse corneteiro surdo e subterrâneo. E de repente a porta se abriu educadamente.

6 Eu permaneci na prisão por muito tempo e sem esperança. Eu já havia tentado fugir, mas não consegui. E nem você teria conseguido fugir, nem pense nisso: tão solidamente foi construída a maldita prisão! E eu me acostumei ao ferro das grades e à pedra das paredes, e eles me pareciam eternos, e aquele que os construiu, o mais forte do mundo. Eu nem queria pensar se ele era justo ou não, tão forte e eterno ele era. Nem mesmo em sonhos eu via a liberdade – eu não acreditava, não esperava, não sentia. Leonid Andrêiev

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E tinha medo de chamar por ela. É perigoso chamar a liberdade: enquanto você ficar quieto, ainda conseguirá viver; mas se ao menos uma vez você chamar a liberdade, mesmo que seja em voz bem baixa, então será preciso ou alcançá-la ou morrer. Isso é verdade, o professor Pasquale também diz isso. E eu estava na prisão, assim desesperançoso, quando a porta se abriu de repente. Educadamente e por si mesma; em todo caso, não tinha sido uma mão humana que a abrira.

7 A rua se estendia em meio às ruínas, em terrível desordem. Todo o material a partir do qual se constrói algo voltou a ser o que tinha sido anteriormente e assim jazia, como no começo. As casas se esfarelavam, estouravam, e oscilavam como bêbadas; sentavam-se na terra, sobre as próprias pernas esmagadas. Outras se precipitavam sombriamente, de cabeça no calçamento – bum! Abriram-se as caixas em que moram as pessoas, essas caixas tão pequenas e bonitas, revestidas de papel. Os quadros ainda estavam pendurados nas paredes, mas já não havia pessoas; elas caíram, foram jogadas para fora, jaziam debaixo das pedras. E a terra se sacudia convulsivamente – o fato é que o corneteiro subterrâneo começou a tocar novamente, um diabo surdo a quem tudo parece pouco por causa da surdez. Um diabo querido, diligente e de grande estatura. Pois eu estava livre e não entendia isso: ainda não ousava me afastar da maldita prisão. Permanecia em pé e olhava estupidamente para as ruínas. E os meus camaradas se reuniram ali mesmo e também não saíam, amontoavam-se com perplexidade, como crianças junto de uma mãe que andou na farra, estava bêbada e que havia caído na terra. Que bela mãe! De repente o professor Pasquale disse: — Vejam. Uma parede, que considerávamos eterna, havia sido rasgada ao meio; e também a janela e as grades de ferro foram rasgadas ao meio. O ferro foi torcido, rasgado como um trapo podre – o ferro, imagine só! Nas minhas 210

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mãos, ele nem sequer rangia, fingindo ser eterno, o mais forte, e agora não valia um cuspe – o ferro, imagine só! Então eu e todos os outros compreendemos que estávamos livres.

8 Livres!

9 É mais difícil para você dobrar uma palha do que para ele dobrar três trilhos de ferro colocados um sobre o outro. Três ou cem, para ele tanto faz. É mais difícil para você erguer e levar uma caneca de água aos lábios do que para ele erguer um mar inteiro de água, sacudi-lo, levantar os sedimentos e derramá-lo na terra; obrigar algo frio a ferver. É mais difícil para você partir com os dentes um torrão de açúcar do que para ele uma montanha inteira. É mais difícil para você rasgar uma fina linha podre do que para ele três cabos de ferro entrelaçados em uma trança. Você vai suar e ficar vermelho antes de conseguir remexer, ao menos um pouco, um formigueiro com uma vara, enquanto ele destruiu sua cidade com um empurrão. Ele ergueu um navio de ferro, como você ergue com a mão uma pequena pedra, e o jogou na praia – você já tinha visto tamanha força?

10 Tudo o que estava aberto, ele fechou; a porta da sua casa se encravou nas paredes da sua casa e, juntas, elas te sufocaram: as suas paredes, a sua porta, o seu teto. E foi ele mesmo que abriu as portas da prisão que você trancou com tanto afinco. Você, rico, que eu tanto odeio!

11 Se eu colher, em todo o mundo, todas as boas palavras, gentis discursos e sonoras canções que as pessoas têm, e os lançar, como um bando de Leonid Andrêiev

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pássaros, no ar alegre; Se eu colher todos os sorrisos das crianças, o riso das mulheres ainda não magoadas por ninguém, os carinhos das mães de cabelos grisalhos, o forte aperto de mão de um amigo… e fizer uma coroa imperecível para a bela cabeça de alguém; Se eu contornar toda a Terra e colher todas as flores que existem na Terra: nas florestas, nos campos e prados, nos jardins dos ricos, nas profundezas das águas, no fundo azul do oceano; se eu colher todas as pedras preciosas cintilantes, minerá-las nos profundos desfiladeiros, na escuridão das minas profundas, arrancá-las das coroas reais e das orelhas das ricas – e com tudo isso, pedras e flores, formar uma montanha cintilante; Se eu reunir todas as luzes que se acendem no universo, todas as luzes, todos os raios, todos os lampejos, explosões e silenciosas cintilações e com o clarão de um único grande incêndio iluminar os mundos que estremeceram; Mesmo assim, ainda não terei te qualificado, te coroado, te louvado o suficiente – oh, liberdade!

12 Liberdade!

13 Acima da minha cabeça havia o céu, e o céu é sempre livre, aberto ao vento e ao movimento das nuvens; sob os meus pés havia uma estrada, e a estrada é sempre livre – ela foi feita para que as pessoas caminhassem sobre ela, movessem as pernas, fossem para frente e para trás, deixassem uma coisa e encontrassem outra. A estrada, veja você, é a amada de quem é livre: você precisa beijá-la quando a encontrar e chorar por ela ao se despedir. E quando minhas pernas começaram a se mover pela estrada, eu achei que havia acontecido um milagre. Olho e vejo que Pasquale também está movendo as pernas – o professor! Olho e vejo que também aquele rapaz jovenzinho está movendo as pernas jovens, se apressa, se atrapalha e de 212

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repente sai correndo. — Para onde? Mas Pasquale me parou severamente: — Não o bombardeie com perguntas: você vai quebrar as pernas dele. Afinal, você e eu estamos velhos, Gerônimo – e começou a chorar. E de repente o corneteiro surdo começou a soar sua corneta de novo.

Canto Segundo 1 Nós caminhamos pela cidade por um longo tempo e vimos muitas coisas surpreendentes, incomuns e terríveis.

2 O fogo também não pode ser aprisionado – isso quem diz sou eu, Gerônimo Pascania. Se você quer ficar sossegado, então o apague completamente, mas não o aprisione nem em pedra, nem em ferro, nem em vidro – ele irá fugir quando um infortúnio acontecer com a sua resistente casa. Quando a sua resistente casa cair e a sua vida se extinguir, só ele irá arder, conservará o calor e a vermelhidão quente, todo o poder da chama. Ficará deitado na terra por um tempo e até irá se fingir de morto; depois vai levantar a cabeça sobre o pescoço fino e olhará – para a direita e para a esquerda, para trás e para frente. E dará um salto. E mais uma vez irá se esconder, e olhar de novo, se aprumar, jogar a cabeça para trás e, de repente, engordará terrivelmente. E já não será apenas uma cabeça sobre o pescoço fino, mas milhares delas. E ele já não está mais rastejando devagarinho, mas correndo, andanLeonid Andrêiev

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do com passos enormes. Antes ele estava em silêncio, mas agora ele canta, assobia, grita, dá ordens à pedra e ao ferro, afasta todo mundo do caminho! De repente começa a rodopiar.

3 Vimos mais pessoas mortas do que vivas, e os mortos estavam tranquilos: eles não sabiam o que havia acontecido com eles e estavam tranquilos. E o que estava acontecendo com os vivos? Imagine, que coisa engraçada nos disse um louco, para quem também se abriu a porta naqueles grandiosos dias de terrível igualdade. Você acha que ele estava surpreso? Não. Ele olhava de maneira atenta e benevolente, e a barba grisalha em seu rosto amarelo eriçava-se de orgulhosa alegria – como se ele mesmo tivesse feito tudo aquilo. Eu não gosto de malucos e queria seguir em frente, mas o professor Pasquale me parou; e respeitosamente perguntou ao orgulhoso: — Com o que está tão contente, signore? Pasquale certamente não era uma pessoa de pequena estatura, mas o louco ficou um longo tempo procurando por ele com os olhos, como se estivesse procurando em um monte de areia um grãozinho que tinha começado a falar; finalmente ele encontrou. E, mal movimentando os lábios – de tão orgulhoso que estava – repetiu a pergunta: — Com o que estou tão contente? – então ele majestosamente fez um movimento com o braço que abarcava tudo ao redor e disse: — Esta é que é a verdadeira ordem. Há tanto tempo nós queríamos ordem. Aquilo era o que ele chamava de ordem! Eu ri; mas então se aproximou um monge gordo e completamente fora de si, e tudo ficou ainda mais engraçado.

4 Por muito tempo eles nos exibiram a sua comédia em meio às ruinas, um monge e um louco, enquanto permanecíamos sentados sobre as pedras e ríamos e os encorajávamos, gritando “bravo”. 214

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— Um embuste! Eu fui ludibriado! – berrava o monge gordo. Ele era obeso tal qual você provavelmente nunca viu igual, terrivelmente gordo. Era repugnante observar como pulava e chacoalhava de raiva e medo a gordura amarela de suas bochechas e de sua pança redonda. — Essa é que é a verdadeira ordem! – elogiava o louco, mal movimentando os lábios. — Um embuste! – berrava o monge. E de repente ele começou a amaldiçoar a Deus – um monge, imagine!

5 ……………………………………………… ………………………………………………

6 Ele assegurava a todos nós que Deus o havia ludibriado e chorava. Jurava, como um mau jogador de cartas, que aquilo era um pagamento ruim por suas orações e fé. Batia os pés no chão e xingava como um tocador de burros quando sai do botequim e vê de repente que todos os burros fugiram. E inesperadamente o professor Pasquale ficou zangado. Ele me pediu uma faca e disse ao monge, que já havia se sentado para descansar depois das proferidas maldições: — Escute aqui! Eu vou cortar a sua pança agora mesmo, e se eu encontrar lá nem que seja uma fatia de galeto ou uma gota de vinho… — E se não encontrar? – o monge perguntou com raiva. — Então nós iremos canonizá-lo. Segure-o aqui pelos pés, Gerônimo. O monge ficou assustado e saiu resmungando: — E eu pensei que vocês fossem cristãos. Blasfêmia! Blasfêmia! O louco o seguia com um olhar benevolente e elogiava: — Essa é que é a verdadeira ordem. Nós esperamos muito tempo pela ordem. Leonid Andrêiev

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7 E durante muito tempo ainda ficamos andando pela cidade e vimos muitas coisas incomuns. Mas o dia era um dia curto e a noite caiu sobre a Terra mais cedo do que nunca; e os soldados, quando estavam fuzilando Pasquale, tinham tochas acesas.

8 Quando Pasquale já tinha sido colocado junto ao paredão, na parte que restara dele, e os soldados ergueram as armas, o oficial perguntou a ele: — Bem, você vai morrer agora; diga, por que não está com medo? Afinal, é assustador, isso o que aconteceu, e todos nós estamos pálidos de medo, exceto você. Por quê? Pasquale permanecia em silêncio: estava à espera de que o oficial perguntasse algo mais, para responder de uma vez a tudo. — E de onde você tira coragem: se curvar e pegar o que é de outra pessoa agora, quando as pessoas esqueceram de si mesmas e até de seus filhos de tanto medo? E por acaso você não sente pena das mulheres e crianças que morreram? Vimos gatos que enlouqueceram de terror, mas você é uma pessoa. Agora eu vou ordenar que fuzilem você. Isso foi muito bem-dito, mas nosso Pasquale sabia falar tão bem quanto ele. Agora ele já foi fuzilado, ele morreu, mas algum dia, na ressurreição de todos os mortos, você ouvirá seu discurso – e você irá chorar, se suas lágrimas não se esgotarem até lá, ser humano! Ele disse: — Eu pego o que é dos outros porque eu não tenho o que é meu. Tirei a roupa do morto para vestir meu corpo vivo, mas você viu isso e me despiu novamente; e aqui estou nu diante de suas armas. Atirem, soldados! Mas o oficial não permitiu que os soldados atirassem e pediu que falasse mais. 216

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9 — Aqui estou nu diante de suas armas e não tenho medo de nada, nem mesmo de suas armas. E vocês estão pálidos de medo e têm medo de tudo, até de suas armas, até de meu corpo nu. Quando se ouviu o tremor, ele destruiu e matou sua cidade, sua felicidade, seus filhos e esposas – mas para mim ele abriu a prisão. Então, de que eu teria medo? No mundo inteiro eu não tenho nada que seja meu. Estou nu.

10 — E se toda a Terra desmoronasse, e os animais uivassem de horror, e os peixes adquirissem voz de tanto pesar, e os pássaros caíssem de medo no chão, mesmo assim eu não me assustaria. Para todos o tremor teria destruído a Terra, mas para mim ele só teria aberto a prisão. Então, por que eu deveria ter medo? Estou nu.

11 — E se o universo tivesse desmoronado, o céu e o inferno, e o horror reinasse em toda a infinidade de seres vivos, então, mesmo assim, eu não me assustaria. Para todos o universo teria sido destruído, mas para mim a prisão teria se aberto. Então, por que eu deveria ter medo? Estou nu!

12 — E agora, quando, com uma única saraivada de suas armas, vocês destruirão de uma só vez a Terra e o universo para mim, nem mesmo agora eu tenho medo. Para todos vocês, um corpo humano estará sendo destruído e cairá, mas para mim a prisão se abrirá. Atirem, soldados! Estou nu.

13 As tochas estavam queimando. Esse foi o dia mais curto que eu já vi: a noite caiu sobre a Terra mais cedo do que nunca. Leonid Andrêiev

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— Agora vá você para o paredão – ordenou o oficial, quando o professor Pasquale caiu. Verdade seja dita – eles não me pegaram fazendo nada, e eu de modo algum deveria ser morto. Mas por acaso é possível argumentar com eles? E eu fui, mas senti pena da noite – você entende, da noite. Aqui ela havia sido estragada pelas tochas e pelo incêndio, mas lá para frente, além das tochas e do incêndio, além das ruínas e dos cadáveres, ela era tão profunda, inabalável e escura quanto na minha juventude. Eu gosto da noite, nela eu não me enxergo e posso pensar tudo o que eu quiser. O dia só diz respeito às minhas roupas, mas não vai além, tropeça na escuridão do corpo e fica cego; mas a noite alcança o próprio coração – e por isso à noite é tão bom amar, é o que todos lhe dirão. Se eu pudesse ficar apenas uma hora em meio à noite verdadeira, boa e escura, não mais. Mas por acaso é possível argumentar com eles? E eu fui. Mas também é bom amar de dia, quando o sol está ardendo. O amor, veja só, é como a noite, e também alcança o coração; e no amor você igualmente não enxerga a si mesmo, como à noite. E se nessa hora você ficar olhando nos olhos – diretamente nos olhos negros – e ficar olhando, sem parar… De repente, o oficial se zangou com os soldados por algum motivo e gritou para mim: — Suma daqui!

14 Passou-se mais um dia. E neste dia os soldados fuzilaram aquele novinho, que me chamava de pai.

15 Chegou a noite e eu fui embora da cidade dos mortos. 218

Dia da Ira


16 — Dies irae1 – o dia da ira, o dia da vingança e do terrível acerto de contas, o dia do Horror e da Morte.

17 Esta procissão, que eu vi por de trás da parede, tinha um aspecto incomum e terrível. Eles carregavam as estátuas de seus santos, mas não sabiam se deveriam erguê-las ainda mais ou chocá-las contra o chão e esmagar os estilhaços com os pés. Alguns ainda estavam amaldiçoando enquanto outros já estavam rezando, mas caminhavam todos juntos, filhos de um mesmo pai e uma mesma mãe, o Horror e a Morte. Saltavam por cima das rachaduras e caíam nas depressões. E, os santos oscilavam como bêbados. — Dies irae… – alguns cantavam, outros choravam e também havia alguns que riam; uivavam como loucos. Acenavam com as mãos e todos se apressavam. Monges gordos corriam. De quem eles estavam correndo? – no caminho atrás deles não havia ninguém; as ruínas se aqueciam ao sol docilmente, e o fogo estava indo embora para dentro da terra, fumegando cansadamente.

18 De quem eles estavam correndo? – atrás deles não havia ninguém.

19 Basta tocar a árvore com a mão e já cai uma laranja madura… uma, duas, três. Haverá uma colheita gloriosa. Uma boa laranja é como um pequeno sol, e quando há muitas delas, dá vontade de sorrir, como em um dia ensolarado. E as folhas são tão escuras como a noite atrás do Sol – não, elas são verdes, elas são verde-escuras. Por que dizer mentiras, Gerônimo? Elas são verdes. 1  Referência ao hino litúrgico medieval Dies irae, usado na tradição católica na missa para os mortos. (N. da T.)

Leonid Andrêiev

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Mas como é cauteloso o diabo surdo, o corneteiro subterrâneo, para quem tudo parece ser pouco por causa da surdez: destruiu a cidade, mas deixou que a laranja ficasse pendurada no galho, esperando pelo Gerônimo. Basta tocar com a mão no tronco, e já cai uma laranja madura… uma, duas, três. Elas serão levadas por mar para países distantes. E naqueles países distantes, onde há frio e neblina, as pessoas olharão para elas e pensarão: vejam só como pode ser o Sol.

20 Professor Pasquale – nós o chamávamos assim: il professore, porque ele era sábio, sabia compor poesia e falava com dignidade sobre tudo. Ele morreu.

21 Por que eu estou ficando com medo? Estou caminhando cada vez mais rapidamente. Lá eu não tinha medo.

22 Eu nem sabia que minhas pernas gostavam tanto de andar. Elas gostam de cada um de seus passos e é com tristeza que se afastam de cada passo que dão, gostariam de voltar atrás; e elas são tão insaciáveis que o caminho mais longo parece curto, o mais largo parece estreito. Elas têm pena – imagine! – de não poderem andar, simultaneamente, para frente e para trás, para a direita e para a esquerda. Se lhes dessem vontade própria, cobririam toda a Terra com pegadas, não deixariam nem um pedacinho; e ainda estariam procurando por um novo. E eis outra coisa que eu não sabia: não sabia sobre os meus olhos, que eles conseguem respirar. É possível ver o mar ao longe. 220

Dia da Ira


23 O que mais posso lhe contar? Os guardas me capturaram.

24 Mais uma vez você trancou as portas da minha prisão, homem. Quando você teve tempo de construí-la? Sua casa ainda jaz em ruínas, os ossos de seus filhos ainda não ficaram expostos no túmulo, e você já bate com um martelo, cola com cimento a pedra obediente, estende diante do rosto o ferro submisso. Como você constrói rápido as prisões, ser humano! Suas igrejas ainda estão em ruínas, mas a cadeia já está pronta. Suas mãos ainda estão tremendo de medo, mas já se agarram à chave, fazem soar a fechadura, trancam. Você é um músico: diante do tinido do ouro você também precisa do tinido dos grilhões – que esse seja um baixo. O cheiro de carniça ainda está em seu pálido nariz, mas você já está farejando alguma coisa, mexe o nariz pra lá e pra cá. Como você constrói rápido as prisões, ser humano!

25 O ferro nem sequer soa – ele é tão forte e frio ao toque, como o coração gelado de alguém. A pedra das paredes também permanece em silêncio, tão orgulhosa, eterna e poderosa; e fria ao toque, como o pensamento gelado de alguém. Na hora marcada, o carcereiro vem e me joga a ração, como para um animal selvagem. E eu arreganho os dentes – por que eu não deveria arreganhar os dentes? Estou com fome e nu. Deram corda no relógio e ele bate as horas. Você está satisfeito, meu senhor, ser humano?

26 Mas eu não acredito na sua prisão, meu senhor, ser humano. Mas eu não acredito em seu ferro, eu não acredito em sua pedra, em sua força, Leonid Andrêiev

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meu senhor, ser humano. Aquilo que eu vi destruído, nunca mais se reconstruirá novamente. Assim diria também o professor Pasquale.

27 Dê corda no relógio – ele mostra bem o tempo, enquanto não para. Tilinte as chaves – afinal, também o próprio paraíso você trancou à chave. Tilinte as chaves e tranque – elas trancam bem enquanto há uma porta. E ande com cuidado ao redor. E quando ficar silencioso, você dirá: agora está bom, agora está tudo quieto, e você irá se deitar para dormir. “Agora está tudo quieto”, você dirá, e “eu escuto como ele rói o ferro com os dentes, mas o ferro é mais forte” – você dirá e irá se deitar para dormir. E quando você adormecer, apertando as chaves com sua mão feliz, de repente o corneteiro subterrâneo rugirá, o acordará com o estrondo, o erguerá com a força do horror, o colocará em pé com uma mão forte: para que, morrendo, você veja a morte. Seus olhos se abrirão amplamente, como o dia – o terror os rasgará; e em seu coração crescerão orelhas – para que, morrendo, você ouça a morte. E o relógio irá parar.

28 Liberdade!

(1910)

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Dia da Ira


A história da serpente sobre como ela ganhou dentes venenosos

C

alma, calma, calma. Chegue mais perto. Olhe nos meus olhos.

Eu sempre fui uma criatura encantadora, gentil, sensível e grata. E sábia. E nobre. E tão flexível nas voltas de meu corpo

esguio, que você ficará feliz em olhar para a minha dança silenciosa; eis que me enrolo em anéis, dou um lampejo tênue com as escamas, com ternura enlaço a mim mesma e no terno e frio abraço multiplico meu corpo de aço. Uma entre muitas! Uma entre muitas! Calma. Calma. Olhe nos olhos. Você não gosta do meu balançar e do meu olhar direto e aberto? Oh, minha cabeça é pesada, por isso eu balanço devagar. Oh, minha cabeça é pesada e, por isso, olho diretamente, balançando. Chegue mais perto. Dê-me um pouco de calor, acaricie minha testa sábia com os dedos: em seus belos contornos, você encontrará a imagem de um cálice para o qual flui a sabedoria, orvalho das flores noturnas. Quando risco o ar serpenteando, um rastro permanece nele, o padrão da teia mais fina, o entrelaçar de feitiços sonolentos, o encanto do movimento silencioso, o assobio inaudível das linhas deslizantes. Eu fico calada e balanço, encaro e balanço – que peso estranho é esse que carrego no pescoço? Eu amo você. Leonid Andrêiev

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Eu sempre fui uma criatura encantadora e amei com ternura aqueles a quem amei. Chegue mais perto. Você vê meus pequenos dentes brancos, afiados e encantadores? – ao beijar, eu mordia. Não machucava, não: só mordia um pouquinho. De ternura, num ato de carinho, mordia um pouco até surgirem as primeiras gotículas límpidas, até surgir um grito, parecido com uma risada, dado quando se faz cócegas. Isso é muito agradável, não duvide: do contrário, aqueles a quem eu beijara não teriam voltado para mim, em busca de mais beijos. Agora é que eu posso beijar apenas uma vez – que triste: apenas uma vez. Um beijo para cada um… como é pouco para um coração amoroso, para uma alma sensível que anseia por uma grandiosa união. Mas somente eu, a triste, beijo uma vez e, novamente, tenho que sair em busca de amor – porém, ele já não conhecerá outro amor, para ele é indissolúvel e eterno o meu beijo nupcial, terno e único. Eu falo com você com credulidade; e quando terminar minha história… vou beijar você. Eu amo você. Olhe nos meus olhos. Que esplêndido, que majestoso é o meu olhar, não é verdade? E duro. E direto. E firme como aço fincado no coração… Eu encaro e balanço, encaro e encanto, nos olhos verdes eu colho seu medo, sua melancolia amorosa, cansada, submissa. Chegue mais perto. Agora é que sou rainha, e você não ousa deixar de ver minha beleza, mas houve uma época estranha… oh, que época estranha! Fico nervosa só de lembrar – oh, que época estranha! Não gostavam de mim. Não me respeitavam. Fui perseguida, pisoteada na lama e escarnecida com uma ferocidade cruel – ah, que época estranha! Uma entre muitas! Uma entre muitas! Estou lhe dizendo: chegue mais perto. Por que não gostavam de mim? Se também naquela época eu era uma criatura encantadora, sem malícia, terna, que dançava maravilhosamente. Contudo me torturavam. Eu era queimada com fogo. Animais pesados e ​​ rudes me pisoteavam com pés rombudos que pertenciam a pernas incrivelmente pesadas, presas frias de bocas ensanguentadas rasgavam meu corpo delicado. E, tomada por uma angústia impotente, eu roía areia, engolia o pó da terra e morria em desespero. Todos os dias eu morria pisoteada. Todos os dias eu morria em desespero. Oh, que época vil! A floresta 224

A história da serpente sobre como ela ganhou dentes venenosos


estúpida esqueceu tudo e não se lembra dessa época, mas você tenha pena de mim. Chegue mais perto. Tenha pena de mim, a ofendida. A triste. A amorosa. A que dança maravilhosamente. Eu amo você. Como eu poderia me defender? Eu tinha apenas meus dentinhos branquinhos, maravilhosos e afiados – eles são adequados apenas para beijos. Como eu poderia me defender? Agora é que meu pescoço carrega esse peso terrível da cabeça e meu olhar é imperativo e direto, mas naquele tempo minha cabeça era leve e meu olhar era dócil. Naquela época eu ainda não tinha veneno. Ah, é penoso para a minha cabeça e é difícil para mim segurá-la! Ah, estou cansada do meu olhar, há duas pedras em minha testa, esses são os meus olhos. Que sejam pedras preciosas cintilantes, mas é penoso carregá-las em vez dos olhos dóceis, elas pressionam o cérebro… é penoso para minha cabeça! Eu encaro e balanço, vejo você em uma névoa verde – você está tão longe. Chegue mais perto. Você vê: mesmo na tristeza eu sou bela e meu olhar é langoroso devido ao amor. Olhe para a pupila: vou estreitá-la e expandi-la, e dar-lhe um brilho especial, o cintilar da estrela da noite, o jogo de cores de todas as pedras preciosas: diamantes, verdes esmeraldas, topázios amarelados, rubis vermelho-sangue. Olhe nos meus olhos: sou eu, a rainha, coroada com a minha coroa, e o que brilha, queima e cai, tirando a minha razão, minha vontade e minha vida, é o veneno. Esta é uma gotinha do meu veneno. Como isso aconteceu? Eu não sei. Eu não alimentava qualquer maldade em relação aos seres viventes. Eu vivia e sofria. Calava-me. Permanecia oculta. Escondia-me com pressa, quando podia me esconder, e rastejava para longe apressadamente. Mas não me viram chorar, não sei chorar; e minha dança silenciosa foi ficando cada vez mais rápida e mais bela. Sozinha em meio ao silêncio, sozinha nos confins da floresta, com angústia no coração, eu dançava – eles odiavam minha dança rápida e de bom grado teriam matado a mim, a que dançava. E de repente minha cabeça começou a ficar pesada – como isso é estranho! – minha cabeça começou a ficar pesada. Continuava a ser do mesmo modo pequena e bonita, Leonid Andrêiev

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sábia e bela, mas, de repente, se tornou terrivelmente pesada, inclinou meu pescoço até o chão, me machucou. Agora é que eu me acostumei um pouco, mas no começo foi terrivelmente incômodo e doloroso. Eu pensei que estivesse doente. E de repente… chegue mais perto. Olhe nos meus olhos. Calma, calma, calma. E de repente meu olhar ficou pesado, tornou-se perscrutador e estranho… eu até me assustei! Eu quero dar uma olhada e me virar – e não posso: olho para tudo diretamente, cravo meu olhar cada vez mais fundo, como se estivesse me transformando em pedra. Olhe nos meus olhos. É como se eu estivesse me transformando em pedra, e tudo aquilo para o que eu olho também estivesse se transformando em pedra. Olhe nos meus olhos. Eu amo você. Não ria de minha narrativa crédula, ficarei brava. Toda hora eu abro meu coração sensível, mas todas as minhas tentativas são vãs, estou sozinha. Meu único e último beijo é cheio de uma tristeza ressoante, e não há mais o amado, e novamente busco o amor, e enuncio em vão: não pode o coração se expor, mas o veneno aflige e a cabeça vai se tornando mais pesada. Sou bela em meu desespero, não é verdade? Chegue mais perto. Eu amo você. Certa vez, estava me banhando em um pântano podre da floresta – eu gosto de estar limpa, isso é um sinal de origem nobre, e eu me banho frequentemente. E enquanto me banhava, dançando na água, vi minha imagem e, como sempre, me apaixonei. Eu gosto tanto de beleza e sabedoria! E de repente vi, na testa, entre outros ornamentos naturais, que um novo e estranho sinal havia aparecido… não seria dele que vinha o peso, o olhar pétreo e este gosto doce em minha boca? Bem aqui, destaca-se uma cruz escura em minha testa, bem aqui – veja! Chegue mais perto. É muito estranho, não é verdade? Mas eu não entendi naquele momento, e gostei: que seja, um enfeite a mais. E naquele mesmo dia, naquele mesmo dia terrível, quando surgiu a cruz, o meu primeiro beijo se tornou também o último – meu beijo se tornou fatal. Uma entre muitas! Uma entre muitas! Ah! Você ama pedras preciosas, mas pense, amado: o quanto a minha gotinha de veneno é mais preciosa. Ela é tão pequena – alguma vez você já viu? Nunca, 226

A história da serpente sobre como ela ganhou dentes venenosos


nunca. Mas você a conhecerá. Pense, amado: quanto sofrimento, dura humilhação, raiva impotente, me remoendo, tive que passar para dar à luz essa gota. Eu sou uma rainha! Eu sou uma rainha! Em uma gotinha, parida por mim, eu carrego a morte para todos os seres viventes, e meu reino não tem limites, como é ilimitada a tristeza e a morte. Eu sou uma rainha! Meu olhar é inflexível. Minha dança é assustadora. Eu sou bela! Uma entre muitas! Uma entre muitas! Ah! Não caia. Eu ainda não terminei. Chegue mais perto. Olhe nos meus olhos. E foi aí que rastejei para dentro da floresta estúpida, para dentro do meu reino verde, de um jeito novo e terrível! Eu era dócil como uma rainha; e benevolente, como uma rainha, curvava-me para os lados: à direita e à esquerda. E eles… fugiam! Benevolente, como uma rainha, curvava-me: à direita e à esquerda, e eles, ridículos, fugiam. O que você acha: por que eles fugiam? O que você acha? Olhe nos meus olhos. Você vê algum tipo de cintilação e brilho? – são os raios da minha coroa que cegam seus olhos, você está se transformando em pedra, você morreu. Agora vou dançar minha última dança – não caia. Eis que vou me enrolar em anéis, darei um lampejo tênue com as escamas, com ternura enlaçarei a mim mesma e no terno e frio abraço multiplicarei meu corpo de aço. Aqui estou eu! Receba meu beijo nupcial e último – nele está contida a angústia mortal de todas as vidas oprimidas! Uma entre muitas! Uma entre muitas! Incline-se para mim. Eu amo você. Morra. (1907)

Leonid Andrêiev

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O que a gralha viu Dos temas natalinos

U

ma gralha sobrevoava a interminável planície nevada, alçando-se pesadamente com as asas cansadas. Acima dela se erguia um céu pálido-esverdeado que, de um lado,

fundia-se com a Terra em uma bruma esfumaçada e, de outro lado, aquele em que o sol acabara de se pôr, os últimos reflexos do pôr do Sol feneciam. Para a gralha ainda era visível a esfera opaca, vermelho púrpura, do Sol poente, mas lá embaixo já se tornava densa a escuridão de uma longa noite invernal. Até onde era possível alcançar com o olhar, vislumbrava-se um campo cinzento, agrilhoado pelo frio forte e pungente. O silêncio imóvel do ar cortante era levemente quebrado por ondas frias impulsionadas pelas batidas das asas cansadas que levavam a gralha para uma floresta, visível apenas para ela e onde tinha decidido pernoitar hoje. As estrelas já brilhavam e a escuridão da noite cobria o solo gelado com uma mortalha fria, quando a gralha finalmente alcançou a densa floresta, que se destacava vagamente na clareira branca. De cima era possível ouvir como as árvores estalavam com o frio, os galhos estendidos, carregados de neve fina e solta. Gravetos rangeram sob a pata cautelosa de algum animal da floresta que estava saindo para caçar. Vindos da distância escura, sons desalentados e lúgubres do uivo longo e selvagem de um lobo chegaram até a gralha. Com uma guinada abrupta, a gralha muLeonid Andrêiev

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dou o rumo do voo e, empregando as últimas forças, voou em disparada para onde ela sentia que havia uma estrada transitável. Ela gostava da companhia humana e os confins da floresta não lhe agradavam. Eis a estrada. Era possível reconhecê-la pelos montinhos escuros e cheirosos de esterco de cavalo, que a gralha não teria deixado de aproveitar se não estivesse com tanto sono. Não muito longe negrejavam os corrimões de uma ponte que se estendia sobre uma ravina profunda, mas que agora não era visível. A gralha conhecia essa ravina por causa de uma amarga decepção que ela tinha lhe proporcionado. Não mais do que um ano atrás, nessa mesma época, ela conseguiu bicar os olhos, incrivelmente deliciosos, de um jovem rapaz de bigode negro. Apesar do frio, ele, totalmente despido, estava tranquilamente deitado sobre a neve compactada e levemente congelada. De sua cabeça rachada ainda escorria sangue grosso e vermelho. Apenas um leve movimento do dedo mindinho mostrou à gralha que ela havia começado seu trabalho antes da hora e estava bicando olhos que ainda enxergavam – mas tais ninharias não podiam desconsertar o pássaro acostumado à companhia humana. No dia seguinte, tendo convidado algumas gralhas, suas conhecidas, ela voltou com o intuito de fazer uma refeição mais substancial, e quão intensa foi a indignação que ela e suas amigas sentiram, quando, em vez de um cadáver congelado, encontraram apenas uma mancha escura de sangue e um monte de pegadas de lobo. Esses senhores não hesitaram em rasgar em pedaços a propriedade da gralha e, pelo visto, algum infeliz retardatário tentou comer até a neve encharcada de sangue. Somente com uma manifestação tempestuosa e crocitante a gralha pôde expressar seu ressentimento e dar alguma satisfação espiritual ao estômago vazio. Tendo escolhido a árvore mais conveniente, a gralha se sentou confortavelmente em um galho fino, que se curvou sob seu peso, deixando cair uma neve fina e seca. Crocitando para limpar a garganta resfriada e se enrodilhando de tal maneira que seu amigo, o frio, apenas encolheu os ombros, sem ver qualquer possibilidade de encontrar pelo menos algum lugar desprotegido, a gralha fechou docemente primeiro um, depois o outro olho negro e adormeceu imediatamente. 230

O que a gralha viu


Por carecer de relógio, a gralha não podia determinar se muito ou pouco tempo havia se passado, mas o fato é que ela acordou, sentindo que ainda não tinha dormido o suficiente e, por isso, acordou aborrecida. Ela foi despertada pela sensação de que próximo a ela havia humanos. Junto à ponte, destacavam-se dois vultos cinzentos, bem agasalhados. Curiosa, como todas as mulheres, a gralha voou até a árvore mais próxima e ouviu a conversa. — Mas quem o diabo irá carregar numa noite como esta? – disse por entre os dentes um deles, o mais alto, soltando uma nuvem de vapor através do bigode e da barba congelados – mas que frio! — Vamos esperar meia horinha – respondeu o outro, dando batidinhas com as mãos. Curvando-se, os dois vultos desapareceram sob a ponte. Para a gralha é tão fácil adormecer quanto acordar. Decepcionada, ela havia adormecido quando um som a acordou novamente. Além da curva da estrada, ouvia-se o rangido de lâminas de trenó sobre a neve dura da estrada aplanada. Surgiu um trenó pequeno. Um cavalinho barrigudo, de baixa estatura, trotava animadamente com as patas geladas. Um homem cabisbaixo estava sentado na boleia; algo escuro se avistava no trenó e também parecia ser uma pessoa… — Pare! Os dois vultos que estavam sentados, escondidos sob a ponte, saltaram rapidamente para a estrada. A gralha, interessada, crocitando discretamente para si de satisfação, voltou sua atenção para escutar. O cavalinho parou. O cocheiro disse alguma coisa ao homem que estava sentado no trenó e ele se ergueu um pouco. A gola do casaco de pele escondia seu rosto e a cabeça. Um dos primeiros conhecidos da gralha pegou o cavalo pelo freio e o outro, o mais alto, gritou: “Pare!” e se aproximou do trenó. Em sua mão abaixada ele segurava algo pesado. — Saudações, sua graça! – ele falou rudemente – vamos, saiam do trenó, chegaram! — Facínora, bandido – ouviu-se uma voz surda detrás da gola do casaco de pele – o que você quer fazer? Leonid Andrêiev

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— Você vai ver. — Escute, meu bom homem, deixe a gente em paz – disse o que estava sentado na boleia. – verdade, não vale a pena. — Cale a boca, enquanto está vivo! – gritou o alto, fulminando ameaçadoramente com os olhos negros – para fora do trenó! — Escute, meu bom homem… O alto ergueu algo que estava em sua mão e que brilhou sob a fraca cintilação das estrelas. O cocheiro desceu aos trambolhões da boleia e, vendo que o machado continuava erguido, sussurrou para si mesmo: “Vejam só como ele está bravo, o filho da mãe!”. O que estava sentado no trenó também saiu e, curvando-se, ficou desembrulhando algo que estava no assento. Depois, pegando o objeto desembrulhado em sua mão e o segurando à sua frente, ele lentamente se dirigiu para o indivíduo alto, que aguardava com impaciência o fim desses procedimentos. Nunca antes algo tinha surpreendido tanto a gralha! Como se estivesse vendo um fantasma, o alto começou a recuar diante do homem de cabelos compridos que caminhava em sua direção. Ele foi recuando até chegar em seu companheiro que, vendo o que o homem de cabelos compridos segurava diante de si, e que aquilo brilhava sob uma luz que vinha não se sabe de onde, soltou o cavalo e também começou a recuar. Eles continuaram a se mover assim: o de cabelos compridos fazendo recuar os dois ladrões. Então um deles levantou a mão hesitante, tirou o chapéu; o outro, com um movimento rápido, tirou o dele. O homem de cabelos compridos parou, e eles também. O que antes estava sentado na boleia pegou o machado do chão e disse: — Eu avisei para deixar a gente em paz. Está vendo? Estou levando um padre. Seu imbecil, cérebro de passarinho! A gralha crocitou insultada, mas os que estavam parados um diante do outro não ouviram nem o crocitar dela, nem a fala do cocheiro. — Hoje é o dia em que Cristo nasceu e o que vocês estão fazendo, facínoras, bandidos? – disse uma voz baixa e senil. 232

O que a gralha viu


Silêncio. — Eu, indigno servo de Deus, estou levando a Sagrada Comunhão a um moribundo. E vocês também vão morrer um dia, quem irá julgá-los? Silêncio, apenas o galho rangeu sob a gralha, que tinha se mexido. — Cristo mandou amar uns aos outros, e o que vocês fazem? Derramam sangue cristão, arruínam suas próprias almas. Os assassinados entrarão no reino dos céus, mas e vocês? Os joelhos do mais alto se dobraram e ele se prosternou. Seu companheiro o imitou rapidamente. Ficaram assim deitados na neve, sem sentir como os seus dedos ficavam dormentes, e sobre eles soava a voz baixa e senil: — Não me reverenciem e sim a Ele, o Misericordioso, que me enviou ao encontro de vocês. Ele ama a humanidade, perdoou o assassino e o ladrão. — Padre, perdoe-nos – sussurrou o alto. — Perdoe-nos, padre, não faremos, por Deus, não faremos mais – o segundo se juntou a ele, erguendo a cabeça. O padre se virou em silêncio e foi em direção ao trenó. A gralha não queria admitir para si mesma que estava pessoalmente interessada em como as coisas iriam acabar. Crocitando de maneira desaprovadora, ela pensava que estava apenas guardando os interesses de sua classe. Realmente, as gralhas terão uma vida muito boa se as pessoas começarem a fazer cerimônias umas com as outras! Eriçando as penas ironicamente, a gralha fingiu não olhar para a estrada, mas imediatamente burlou a lei e olhou de canto para os violadores dos direitos “interanimais”. — Eu disse, meu bom homem, deixe a gente em paz. Ora! Tire o cinto! O homem alto desatou obedientemente o cinto e o entregou ao cocheiro, que lenta e habilmente amarrou as mãos dele nas costas. — Bem, e você? Por que está choramingando? Me passe o cinto – ele se dirigiu ao outro. — Não, não! – protestou fracamente o outro, olhando enviesado para o Leonid Andrêiev

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padre, mas desatou o cinto e o entregou. — Deixe-os ir, Stepan – disse o padre. — Como isso é possível, padre Ivan? A sua esposa1 vai me repreender. — Solte. Não responderão às pessoas e sim a Deus. Stepan desamarrou o alto relutantemente, deu um pequeno safanão no pescoço de seu companheiro e se sentou na boleia. — Mas diga adeus ao machado, meu bom homem – disse ele, tocando o cavalo. Logo o trenó e os seus ocupantes desapareceram na névoa da noite, de onde ainda se ouviram as palavras: — Eu disse para deixar a gente em paz. Ora… Extremamente espantada e indignada, a gralha, inclinando a cabeça para o lado, olhava com curiosidade para os que ficaram, na vaga esperança de que a situação ainda poderia ser reparada. O homem alto permanecia calado, com os olhos baixos. O companheiro tocou sua mão. — Vamos! O homem alto começou a andar em silêncio e seu companheiro o seguiu com passos apressados. Logo, também eles desapareceram na escuridão, e a gralha, que tanto gostava da companhia humana, ficou sozinha. Aliás, desta vez ela não gostou nem um pouco da companhia humana.

(1898)

1  No cristianismo ortodoxo, os padres devem ser casados, sendo o celibato adotado geralmente entre os que desejam se tornar monges. (N. da T.)

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O que a gralha viu


Conversa noturna

Parte 1

A

quele foi um dia cheio de fúria1. Durante dois dias, as tropas alemãs, movendo-se em direção à Paris, atacaram sem sucesso a cidadezinha belga de N.2, protegida

por tropas mistas constituídas por ingleses, belgas e franceses. Massas de pessoas pálidas com horripilantes capacetes pontiagudos iam ao ataque e morriam no meio do caminho; elas eram substituídas por novas massas de gente igualmente pálida e de capacetes pontiagudos, e que morriam da mesma forma: a saraivada de balas das metralhadoras e da artilharia superava em frequência as gotas de chuva e as pedras de granizo, e era mais fácil não ficar encharcado na chuva torrencial do que evitar as balas e estilhaços. E acontecia de uma pessoa que já estava morta ser atingida por várias outras balas enquanto caía, percorrendo o seu curto caminho até o chão; o ar estava saturado delas, elas voavam louca e predatoriamente, como se a fúria da mão que havia puxado o gatilho tivesse passado para elas. Mas o estoque de capacetes pontiagudos parecia inesgotável, e a avalanche deles crescia cada vez mais. Tragando as balas com os corpos, absorvendo a morte do ar e se 1  Este conto, escrito após o início da Primeira Guerra Mundial, traz elementos de fatos e ficção sobre o conflito. (N. da E.) 2  Possível alusão à cidade de Namur, cujo cerco e tomada pelas tropas alemãs ocorreu entre 20 e 25 de agosto de 1914, sob o comando de Karl von Bülow (1846-1921) e Max von Hause (1846-1922). (N. da E.)

Leonid Andrêiev

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impregnando com ela como esponjas, eles diminuíam a frequência do fogo e criavam espaços vazios através dos quais fluíam novas massas de pessoas pálidas; e isso continuou durante dois dias – de dia com o brilhar do Sol, à noite com a luz azul dos holofotes, na qual os rostos dos vivos e dos mortos pareciam iguais, e a partir da pilha de cadáveres se estendiam sombras negras e imóveis. Durante dois dias, Guilherme II3 não comeu quase nada, dormiu mal e ficou observando a batalha através dos binóculos, torcendo o rosto convulsivamente. Quando a cidadezinha foi tomada e seus defensores foram parte exterminados, parte aprisionados, ele percorreu suas ruas com seu séquito e parou no Grand Hotel4; lá ele ficou recebendo congratulações durante o dia todo, distribuiu prêmios e gracejou com os generais. A cidadezinha ainda estava respirando o sangue evaporado, e em todos os lugares havia um cheiro azedo, de fumaça de melinite que ainda não tinha baixado; parte da cidade ainda estava em chamas e, ao anoitecer, as janelas do Grand Hotel refletiam o vermelho da rua; depois, as pesadas cortinas foram fechadas e as velas acesas, mas o cheiro de melinite e do sangue continuava presente, e o veneno azul da fumaça pairava sob o teto alto, e era como se um enorme grupo de pessoas tivesse acabado de ter uma reunião ali, durante a qual todas elas tinham fumado charutos malcheirosos e azedos. Por ordem de Guilherme, reféns foram fuzilados à tarde, doze eminentes cidadãos. Eles haviam sido capturados ainda pela manhã, assim que os alemães entraram na cidadezinha, mas à tarde alguém atirou em um soldado saqueador prussiano que estava pilhando uma casa, e os reféns foram fuzilados. Devido ao fato de que o tiro tinha sido apenas um, que o atirador foi imediatamente abatido, e que o soldado era um saqueador, integrantes do estado-maior decidiram perguntar ao próprio Guilherme, mas ele respondeu resolutamente: — O sangue do pior soldado prussiano vale o sangue de toda a Bélgica. Expliquem isso a eles, para que entendam, e então fuzilem. E assim fizeram. 3  Guilherme II (1859-1941) foi o último Imperador da Alemanha e Rei da Prússia entre 1888 e 1918. (N. da E.) 4  Na cidade de Namur há o Grand Hotel de Flandre, construído em 1904. (N. da E.)

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Conversa noturna


Ao anoitecer, a cidadezinha ocupada se aquietou, e não sobrou ninguém nas proximidades do incêndio: sozinho, em meio ao silêncio e à ausência de pessoas, o fogo crepitava e se enrugava, diminuindo. Todos aqueles cujo serviço não incluía vigília dormiam um sono de infinito cansaço, de fadiga da alma; e parecia mais fácil acordar um morto no campo do que alguém que estivesse dormindo assim. Alguns poucos, enquanto dormiam, deliravam com o que tinham vivenciado, mas suas vozes eram abafadas e mortas, como vozes de assombrações do outro mundo: a batalha ainda prosseguia em suas cabeças, mas em torno delas pairava o silêncio. Como caixinhas de música escondidas sob o travesseiro, os hospitais militares temporários, onde ficavam os feridos, estavam repletos de vozes, gritos e gemidos em seu interior, mas pouco disso era trazido para fora: tudo permanecia por trás dos muros de pedra, e aquele que saía do hospital para a rua tinha a impressão de ter afundado de uma só vez no silêncio, como se fosse na água, e quem vinha de fora e entrava nos aposentos iluminados tinha a impressão de ter ido parar em algum tipo de centro de dor, onde milhares de pessoas sentiam doer os dentes, os nervos, a pele rasgada e os ossos fragmentados. Um silêncio peculiar pairava em torno do Grand Hotel: o imperador há muito sofria de insônia, e todas as medidas eram tomadas para salvaguardar sua paz: os guardas trocavam de posto sem a algazarra habitual, os comboios rangiam pelas ruas mais distantes e nenhum som ressurgia sem que fosse absolutamente necessário. Ao longe, onde as tropas alemãs ainda estavam perseguindo os aliados em retirada, os tiros de armamento pesado zuniam de maneira harmoniosa e coesa: como se alguns gigantes tivessem se agachado, inflado as bochechas e produzindo um ruído abafado num ritmo regular, ficassem soltando o ar das bochechas, um contra o outro, sem raiva e sem uma paixão especial, antes de um jeito pacífico e meio bobo. Para os afortunados que estavam dormindo, a quem a vida persistentemente extraía das imagens da morte, este distante ruído surdo transformava-se em sonhos iluminados sobre uma tempestade de verão e trevos cheirosos em campos rosados; outros simplesmente não o ouviam, como o moleiro não ouve o moinho. Também o imperador não ouvia os tiros, mas Leonid Andrêiev

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às vezes a audição como que despertava, o barulho tornava-se nítido e claro – mas em vez de perturbar, isso acalmava Guilherme: da mesma forma que é agradável ouvir no meio da noite e do silêncio noturno a matraca do vigia noturno, velando o sono dos que dormem. Mas não era por causa do barulho que o imperador não dormia. Na verdade, ele até dormia melhor com barulho, e muitas vezes falou, e até ordenou, que fizessem barulho, mas não acreditavam nele, porque não conseguiam entender; e bastava a notícia de que o imperador havia se retirado para o quarto se espalhar por seu palácio temporário para que, imediatamente, as vozes abaixassem por si só e a gesticulação em silêncio aumentasse. E assim tinha acontecido agora: ele havia acabado de entrar no quarto, ainda estava esperando pela insônia, e tudo ao redor se aquietou, como que entorpecido, e o rodeou com o silêncio de um sarcófago. Um velho camareiro entrou e irritou Guilherme por ter começado a falar sussurrando. — Você pensa o quê, imbecil? Que eu estou andando e dormindo? Saia daqui. O camareiro escapou rapidamente para fora, mas continuou a falar em sussurros no outro cômodo, sem entender o motivo da ira do imperador. E Guilherme continuava a andar, embora a região lombar e as pernas já estivessem doendo por causa do longo dia fatigante; mas como Ashver, o Judeu Errante5, ele não podia parar e tinha que continuar andando – de uma parede à outra. E ele não conseguia parar os pensamentos: eles também se moviam sem um caminho definido e se batiam contra as paredes; e por todo o corpo se derramava um desejo vago, agudo, mas notoriamente irrealizável. Irrealizável, a começar pelo fato de ele ser desconhecido. E é exatamente assim que começa a insônia. Depois, o andar dos pensamentos de parede a parede se transformará em uma corrida louca, na dança das bruxas em Brocken6, e o desejo irrealizável agarrará pela garganta e começará a sufocar até que venha um grito; se tornará insuportável. 5  Personagem mítico que faz parte da tradição oral cristã. Segundo a lenda, Ashver teria insultado ou agredido Jesus durante a via crucis, que, então, o amaldiçoou e o condenou a vagar pelo mundo, sem nunca morrer, até sua volta no fim dos tempos. (N. da E.) 6  O Monte Brocken, localizado na Cordilheira do Harz, é o ponto mais alto do Norte da Alemanha. Segundo as lendas folclóricas, é neste local que as bruxas se reúnem para realizar suas festas. (N. da E.)

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O champanhe tomado no almoço tardio também causava inquietação, obrigando a metade da alma a rir, enquanto a outra estava impotentemente zangada consigo mesma e exigia descanso; irritava a sutil evaporação do sangue, tinha vontade de falar, tinha vontade de ordenar, tinha vontade de continuar indefinidamente o dia interminável. E eles estão dormindo! E se acordasse alguém e o obrigasse a ouvir, ele ficaria escutando, mas seu rosto permaneceria sonolento e abobalhado, e as respostas seriam impossíveis de tão estúpidas. “Ele quer dormir!” Mas, ainda não tinha desaparecido do rosto do imperador a careta desdenhosa que ele fizera ao pensar nos que queriam dormir, quando outra sensação envolveu sua alma em calor e ternura: como se alguém tivesse transformado o pensamento desagradável sobre os que dormiam e lhe desse um novo e tocante significado. Comprimida em um único feixe de luz, surgiu momentaneamente diante dos olhos uma imagem multicolorida das batalhas cansativas que duraram dois dias, do trabalho árduo para a glória do imperador e da Alemanha – como eles trabalharam, como estão cansados, como querem dormir e como seus corpos exaustos dormem bem! “Bravos soldados” – Guilherme declarou brevemente e seu peito se expandiu e se elevou com o influxo de força e extraordinária felicidade. Bravos soldados! A felicidade estava ficando mais intensa, ia crescendo como uma nuvem e o arrancava do chão – e de repente, nos olhos de Guilherme, brotaram lágrimas enternecidas suscitadas pela ideia momentânea e vívida de uma grandeza extraordinária, pela imagem soberana e brilhante na qual se fundiram os traços de todos os soberanos do mundo, todos os tronos, todas as terras e mares, todos os nomes misteriosamente fascinantes dos antigos potentados. Como a escada luminosa de Jacó7, no alto da qual, em seu último degrau que se derrete, encontra-se ele, o imperador alemão e de todo o mundo. — O texto, o texto – Guilherme pensava alegremente, ao abrir a Bíblia de campanha – é preciso encontrar um texto, é preciso ler um sermão, é preciso, é preciso… 7  Escada mencionada na Bíblia (Gn 28,11-19), como o meio utilizado pelos anjos para subir e descer do Céu. Foi imaginada em sonho pelo patriarca Jacó, depois de fugir da confrontação com seu irmão Esaú. (N. da E.)

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Mas o que ele encontrou no texto não era o que precisava, e imediatamente sentiu um pesar tão intenso que beirava o desespero, um frio e uma tristeza mortais. Depois, novamente, veio a sensação de felicidade. Então, mais uma vez, desespero e tristeza. Era a insônia que estava começando, com suas convulsões e sua aversão à vida. E ele ainda nem tinha se despido – o que acontecerá quando ele se deitar? Tristeza! Tristeza! E então um pensamento feliz veio à sua mente: entre os prisioneiros capturados hoje, provavelmente havia alguém com cabeça, com quem se pode conversar e até mesmo debater. Isso é ótimo: debater! Ele permitirá que o prisioneiro expresse seus pensamentos, e então ele mesmo falará e irá encantar o sujeito, que não está habituado a conversar com os reis. Até irá libertá-lo: que vá até os seus e conte ao mundo tudo o que o imperador Guilherme pensa, tão grandioso e assustador e tão simples. Mas é indispensável que seja alguém que tenha cabeça!

Parte 2 Era um revolucionário russo, imigrante, que já há muitos anos vivia na Bélgica e que ocupava uma cátedra da Universidade de Bruxelas. Ele já não era tão jovem, mas tinha entrado voluntariamente para o pequeno exército belga, já participara de algumas batalhas e havia se destacado; ele foi preso em uma batalha com baionetas e, por um feliz acaso, que sempre o salvava, não recebera um único ferimento. Ele também não estava dormindo quando foi muito educadamente convidado para o palácio que o Grand Hotel havia se tornado; se não se soubesse que era russo, ele poderia facilmente ser confundido com um belga ou um francês do norte; e se esse fato fosse conhecido, tanto a pequena barba clara, como os olhos cinzas, cansados ​​por causa da leitura, davam a impressão de serem algo extremamente russo, que não se parecia com qualquer outra coisa. Mas ele ainda não havia entrado nas listas de prisioneiros; até os seus o consideravam um belga, e foi 240

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dessa forma que ele foi levado até Guilherme. Aliás, foi ordenado que apenas ingleses8 não deveriam ser trazidos. O prisioneiro se curvou em cumprimento, Guilherme também. Por hábito, Guilherme olhava direta e atentamente, e o prisioneiro também, tanto pelo imenso interesse que o imperador despertava nele, quanto por hábito. Ele estava desarmado e havia sido revistado minuciosamente antes de entrar para falar com o imperador, e Guilherme sabia de tudo isso e tinha ordenado que fossem deixados a sós. — Você está cansado? Sente-se – ordenou Guilherme. O prisioneiro se sentou – quer fumar? – perguntou Guilherme, abrindo um sorriso. — Quero – respondeu o prisioneiro, também abrindo um sorriso, e continuava a olhar da mesma maneira direta para o rosto de Guilherme, amarelo e com tiques nervosos. Este último, de acordo com o costume alemão, passou-lhe um charuto com a mão: “está cortado, fume”. Ele próprio tomou um gole de champanhe do cálice e se sentou, virando bruscamente a aba da sobrecasaca. “Mas será que ele está bêbado?” – pensou o prisioneiro com perplexidade. Guilherme perguntou: — É belga? — Eu ocupo uma cátedra da Universidade de Bruxelas. Sou professor catedrático, doutor em direito. — Ah! Muito prazer, senhor professor. É da reserva das Forças Armadas? — Não, sou voluntário. Guilherme sorriu levemente: — Ah, que interessante! Quer dizer que está contra mim? — Sim, estou contra o senhor. “Ele não me chama pelo devido título, mas tem cabeça! Isso é óbvio”. E, tendo pensado um pouco, perguntou: 8  Embora fosse neto da rainha Vitória e primo do rei Jorge V, era pública e notória a dificuldade de relacionamento de Guilherme II com os ingleses. (N. da E.)

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— E como está se sentindo o rei Alberto9? — Eu não sei como está se sentindo o rei Alberto. Provavelmente, mal. Ele respondeu de maneira simples e calma, e por causa dessa calma em suas palavras e em sua voz, de repente, se tornou perceptível que sua mão, com a qual ele segurava o charuto, seu rosto e sua perna suja com a bota rasgada, jogada sobre a outra perna, tudo isso tremia com um leve e ininterrupto tremor, e algo nele se contorcia levemente, saltava e se agitava sutilmente. Isso lembrava o próprio Guilherme e era desagradável. — Você está ferido? – perguntou ele abruptamente, com insatisfação. — Não. Estou cansado e, é claro, não muito bem. — Não consegue dormir? — Não. Em alguns momentos até dá vontade, mas depois passa. Eu me permito perguntar: foi por ordem sua que fuzilaram os reféns? Foi o que nos disseram. Nos obrigaram a assistir, eu vi. — Sim, fui eu quem deu a ordem. O sangue do pior soldado prussiano vale o sangue de toda a Bélgica – repetiu Guilherme e, após pensar, acrescentou – para mim, é claro. Já na Bélgica, provavelmente, pensam o contrário. — Não, na Bélgica não pensam assim. — Besteira; pensam, mas não têm coragem de falar. Besteira! Eu os conheço. E conheço o pequeno rei deles. Eu não tenho pena dele: isso é um heroísmo tolo, indigno das habilidades comerciais dos belgas. Você não acha, professor, que existe também um heroísmo tolo? — Eu não sei o que… — Você gosta de Nansen10? Eu o adoro: que grande pessoa! Os ingleses e noruegueses não lhe deram o devido valor. Eu adoro o livro dele. Ir para o polo, para o inferno, qualquer tolo pode ir, mas ele se preparou, oh, como ele se preparou! Eu também. Eu sou o único que tem um exército e vocês têm 9  Alberto I (1875-1934), foi o rei dos Belgas de 1909 até sua morte. (N. da E.) 10 Fridtjof Nansen (1861-1930) foi um cientista, explorador polar, aventureiro e político norueguês. Quando delegado norueguês na Liga das Nações, criou o passaporte Nansen para os refugiados, tendo recebido prêmio Nobel da Paz em 1922. (N. da E.)

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voluntários e uma turba, e, por isso, eu estou dando uma surra em vocês e vou continuar dando. Estou dando uma surra em vocês e vou continuar dando! E novamente o sentimento de alegria extraordinária tomou conta do imperador: ele sorriu e se preparou para dizer alguma coisa gentil ao infeliz prisioneiro, tão exausto e humilhado, porém viu o charuto em sua mão trêmula e deu um grito assustado: — Ei! Você vai deixar cair as cinzas! Tome mais cuidado. O prisioneiro estremeceu com o grito e franziu o cenho levemente, ficando vermelho. Ele se lembrou dos reféns e do modo como um deles chorou e implorou para que não o matassem – um que, aparentemente, que não entendia nada nem de guerra, nem de heroísmo. — E por que é preciso fazer isso: dar uma surra? – perguntou o prisioneiro e ficou ainda mais vermelho. — Como por quê? – o imperador se espantou e não entendeu – eu não entendi, se expresse de maneira mais clara, senhor professor! — Por que é preciso fazer isso: dar uma surra? – insistiu o prisioneiro com certa brusquidão. Guilherme entendeu e olhou desdenhosamente – acima dos olhos e da cabeça. — Ah, você é um pacifista! Que tolice. Foi por isso você se rendeu à prisão? Mas o prisioneiro não prestou atenção no significado ofensivo das últimas palavras, que mal foram ouvidas. Por alguma razão, ele também foi tomado por um sentimento de felicidade extraordinária, como em um sonho, e se espreguiçou. Depois riu baixinho, olhando diretamente para Guilherme com olhos cansados e ternos. — O que você tem? Você está faltando com o respeito. — E por acaso isso não é um sonho? — Não. Que tolice! Isso não é um sonho. Leonid Andrêiev

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— Pois por um momento tive a impressão de que isso era um sonho e eu quis falar como em um sonho. Aliás, eu nem sou belga. — Como assim? — Eu sou russo, imigrante. Político. Em 1906 fui condenado à morte, mas consegui escapar. Desde então estou na Bélgica, e agora… estou aqui com o senhor. Eu sou russo. — Isso já é outra coisa – Guilherme disse friamente – cometeram um erro e você pode ir, senhor11… — Professor. Mas por que o senhor não quer falar comigo? O senhor parece querer conversar, e eu também. — Porque você imediatamente começará a interpretar o Marquês de Posa12, e Posa é uma invenção demasiadamente alemã para que eu acredite nela. — “Made in Germany”. — Para exportação, mas não para uso próprio. Revolucionário, imigrante, russo! Que disparate é esse? Meu caro senhor, preciso de um homem de ordem, preciso de um bom e antigo sangue latino, com o qual o meu sangue alemão discute, preciso de um homem dessa velha cultura tola e não de um russo semisselvagem. Com você, eu não discuto, assim como não discuto com turcos. O que são russos? Eles eu surro… com o meu traseiro. O imperador riu alto por causa da palavra bem empregada e repetiu, enfatizando as palavras com um gesto brusco: — Eles eu surro com o traseiro! Mas seus olhos cinzentos ainda estavam brilhando com um sorriso zombeteiro quando já haviam penetrado em sua alma a repulsa, o frio e a tristeza, e um sentimento de enorme inutilidade de tudo isso: da guerra, da paz, da morte e da vida. Ele se levantou, sentindo uma dor aguda na região lombar e começou a andar pelo escritório. Isto é fadiga e insônia. Elas são 11  Embora Guilherme II fosse primo da imperatriz Alexandra da Rússia (1872-1918), suas relações com o imperador Nicolau II (1868-1918) não eram cordiais. (N. da E.) 12  Personagem da peça "Don Carlos", de Friedrich Schiller (1759-1805). (N. da T.)

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exigentes, essas tais fadiga e insônia, elas querem o que é delas, e se indignam com cada palavra decisiva, cada pensamento claro e ousado; com seu veneno elas contaminam a vontade e convidam ao sono, à morte, ao descanso. Mas ele não se submeterá ao seu poder. Amanhã, ele irá até os locais onde estão posicionadas as tropas, dormirá, descansará, e tudo ficará bem e grandioso de novo… E novamente se agitou nele a alegria excitante, os passos ficaram mais rápidos e mais firmes, o som das esporas, mais claro e distinto; e assentindo com a cabeça com prazer, ele ouviu uma frase do russo: — Eu sou doutor em direito, professor catedrático belga, fale comigo como se estivesse falando com um belga ou um cientista. E eu sou casado com uma belga. — Isso é bom – aprovou o imperador – e você fale comigo como se fosse num sonho, certo? Você quer ser franco? Fale francamente: aqui não há etiqueta – há guerra. Guerra! Vocês, revolucionários russos, pacifistas, doutores em direito e assim por diante, ficam vociferando contra a guerra, mas o que, além da guerra, poderia ter lhe dado a possibilidade de tal conversa? Pense, professor, em como isso é extraordinário, como isso é feliz: à noite, juntos, um revolucionário… e o imperador alemão! Pois que seja um sonho, mas não a rotina, entende? Para o inferno com a rotina! Onde está sua cátedra? Onde está meu trono? Você vê: este ridículo e antigo hotel belga onde os comerciantes se hospedam é o meu palácio. Isso não é incrível? — O senhor sofre de insônia? — Sobre as minhas enfermidades eu converso com meu médico. Deixe a rotina, senhor professor! Ou você tem pena do seu palanque de madeira, da elevação barata com dois degraus acima do chão? Ou você sente pena de seus alunos sem bigodes e com cadernos? Hoje eu sou seu ouvinte. Ensine o imperador, propagandeie, comporte-se… livremente! O imperador riu e se sentou, cruzando as pernas. Bebeu champanhe e, com o cálice, apontou na direção da janela: — Está escutando? São as minhas armas. O seu pessoal está fugindo e as minhas tropas os perseguem. Amanhã ficaremos sabendo de alguma noviLeonid Andrêiev

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dade. Hoje foi sua primeira batalha? — Não. Não sei dizer o número exato. Nós estamos o tempo todo em batalha. — Vejam só! É, pensando bem, vocês são poucos. Possui condecorações? — Sim. Duas. — Bravo! Bravo! Eu respeito os corajosos, sejam eles quem forem. Mas esse heroísmo tolo… não, ele eu não respeito. Ou vocês não sabiam que eu certamente – ele enfatizou essa palavra – inevitavelmente esmagaria a Bélgica? Que eu não consiga comer os ovos, como argumentam os seus sonhadores, mas a casca deve ser quebrada! Não é assim? — Mas e o senhor, sente o cheiro de sangue? — O que é isso, uma ironia? O começo de uma palestra? — Não, é uma simples pergunta. O tempo todo eu sinto o cheiro de sangue, muito específico e muito nítido. Eu o sinto também enquanto durmo, esse cheiro tinge a minha comida. Se eu continuar vivo, acho que vou senti-lo pelo resto da minha vida: o cheiro de sangue fresco dos cadáveres em decomposição. Houve um tempo em que me dediquei à medicina, à anatomia, e para mim esse cheiro terrível de cadáver não é novidade – mas aqui há cadáveres demais, seu fedor contamina o ar por dezenas de quilômetros, países inteiros viraram necrotérios, salas de dissecação e de estudo de anatomia, onde um novato fica enjoado. É claro que o senhor não fica enjoado, está acostumado e eu também… mas estou falando de outra coisa. O senhor provavelmente já notou que há algo… quase sacrílego no cheiro de um corpo humano em decomposição? Um animal é outra coisa: ele só cheira repugnantemente, e basta tapar o nariz para se sentir melhor. Mas, e o cadáver de um homem, depois de um tempo? O terrível está no fato de que alguém querido e próximo pode cheirar tão horrivelmente. Não é verdade? Guilherme sorriu: — Em vez de uma palestra sobre direito, uma palestra sobre cheiros? — O senhor ri? Bem, é sobre isso que quero perguntar, sobre essa sua 246

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risada. Nós, pessoas comuns, não gostamos e tememos o cheiro de sangue fresco e o cheiro de um cadáver. Mas e o senhor, imperador? Como ele age sobre o senhor? Você o sente, e com o que ele lhe parece? Agora mesmo – o prisioneiro inspirou o ar e fez uma careta – o senhor está sentindo o cheiro aqui, ou não? Pois ele é muito ruim! — Sim, o ar está viciado – concordou o imperador e também fez uma careta – e não se pode abrir as janelas: de lá vem um cheiro ainda pior. Mas você está perguntando como eu me sinto em relação a isso? Eu estou acima desse cheiro, entende? Acima! Por que o cheiro de um cadáver não é algo habitual e inspira medos e pensamentos supersticiosos em pessoas de nervos fracos? Apenas porque é costume enterrar cadáveres, isto é, tudo depende de ninharias, costumes, hábitos conhecidos. Você pode imaginar, caro professor, que cheiro colossal teria surgido de todos os bilhões que já morreram na Terra, que fedor terrível, que fedentina, se não tivessem sido escondidos tão rapidamente no solo? Eles são escondidos, e só por isso que eles não fedem. — Quantos cadáveres há a nossa volta? É noite e eles estão deitados. É como se eu os visse – falou o russo pensativamente. — Pois eu não os vejo, e amanhã eles serão enterrados. Você já ouviu falar dos meus arados motorizados, que cavam sepulturas? Os tolos riem deles e ficam aterrorizados; eles precisam de um tradicional coveiro shakespeariano13, que obrigatoriamente teria cavado um buraco com as mãos falando bobagens enquanto isso, um preguiçoso! Tudo isso é um romantismo barato, o sentimentalismo de uma velha e estúpida Europa, uma carola lasciva que perdeu a razão devido à velhice e à libertinagem. Eu vou dar um fim a ela. Por que queimar cadáveres, jogando querosene neles, como fazem seus amigos franceses, é mais moral e bonito do que colocá-los em um sulco limpo e profundo, como grãos? Ou você é tão ingênuo, professor, que ainda quer me perguntar sobre piedade: será que eu tenho piedade? Confesse! — Sim, quero. Hoje um dos reféns, já velho, chorou… 13  Referência à peça “Hamlet”, onde há dois coveiros como personagens. (N. da E.)

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— Chorou? — Sim, chorou e implorou que não o matassem. Assim, um velho qualquer. Ele não estava entendendo nada… provavelmente, ele jamais tinha pensado em qualquer guerra. Eu tive pena dele. — Pff! Tenha vergonha, professor! Mas apesar de tudo o fuzilaram, eu espero… — Sim. — Bravos soldados! Não diga nada, sei o que está pensando: sim, claro, claro, ele era inocente. Como pode um insignificante homem velho, que nunca pensou em guerra, ser culpado pelo fato de outra pessoa, algum jovem temperamental, ter atirado no meu soldado? Mas por acaso eram culpados os mártires durante o reinado de Trajano14 e por acaso são culpados, ao seu ver, os meus soldados, em quem vocês atiraram hoje? Por que você não chora pelos mártires? Chore! A voz de Guilherme se tornou cortante e irritada: — Todos os humanistas ficam gritando para mim sobre a piedade. Piedade! Piedade! Isso é uma tolice, professor, uma tolice! Por que eu devo ter pena de quem se tornou um cadáver hoje, mas não devo ter piedade de quem se tornou um cadáver trezentos anos atrás? Qual é a diferença entre eles? Que o diabo os carregue, em cinco mil anos tantos sofreram, correram, passaram fome, perderam crianças, morreram, foram executados, mortos em guerras, queimados na fogueira, que, se você sentir pena de todos eles… onde está a diferença? Não há diferença! Se bem que você é russo; você não entende isso. Russos são privados de consciência; eles vivem de emoções, como mulheres e crianças, eles têm muitos olhos, mas nenhum cérebro. Suas lágrimas são baratas e aleatórias. Eles choram por um cachorro atropelado diante de seus olhos por um carro de aluguel e fumam calmamente enquanto conversam sobre a morte de Cristo! Você não é judeu? — Não. 14  Marco Úlpio Nerva Trajano (53-117), foi imperador romano entre 98 e 117. Não está claro se Andrêiev refere-se a cristãos, que, durante o reinado de Trajano, foram tolerados, após um período de perseguições durante o reinado de Nero, entre 54-68. (N. da E.)

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— Parabéns. Mas o que você acha dos pogroms15 contra judeus na Rússia? Um prego na cabeça, por exemplo, hã? O prisioneiro olhou de maneira profunda e séria, bem dentro das pupilas dos frios olhos cinzas e abaixou a cabeça em silêncio.

Parte 3 O prisioneiro ficou em silêncio, olhando para o charuto apagado, e experimentou sua ponta fria com o dedo. A canhonada tinha se afastado ou, então, silenciado, e na sala reinava o silêncio, e parecia que o cheiro de fumaça e de queimado havia diminuído. Guilherme olhava severamente para a cabeça dele: ele tinha a impressão de ver nela uma espécie de teimosia, que ele ainda não havia vencido; e as botas rasgadas e sujas eram indecentes, como as de um mendigo. Russo! — Pegue um novo. Aqui estão os charutos e os fósforos. Fume senão irá adormecer. Quer um cálice de vinho? — Não. — Sim, é melhor que não beba, ficará embriagado. Você já ouviu falar que o vinho foi proibido na Rússia16? Que pessoas fracas de caráter são! São parecidos com um alcoólatra que fez uma promessa e tem medo até de vinagre; eles só conseguem não se embebedar quando penduram um cadeado no vinho. Mas bastará acabar a guerra que os assustou e, novamente, eles irão morrer por causa do álcool, como os esquimós. Vocês não devem beber. Com um sorriso de escárnio, ele tomou um gole do copo. O russo permanecia calado, e isso era um pouco irritante. Guilherme sorriu ironicamente mais uma vez e depositou o cálice com um estrondo, de modo que o prisioneiro se sobressaltou e o encarou.

15  Violentos ataques organizados contra determinadas comunidades de diferentes grupos étnicos ou religiosos. (N. da T.) 16  Por conta do início da guerra, um decreto imperial editado em 31 de julho de 1914 proibia a produção e venda de álcool na Rússia durante o período do conflito. (N. da E.)

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— Não paguei por este vinho e não pagarei nenhum pfennig17. Você também não gosta disso, professor? Mas isso é bom, que você permanece calado. E é bom que você não tenha respondido sobre Cristo. O que você poderia responder? O que toda a Europa poderia responder? Eu leio jornais ingleses e franceses diariamente, e isso é engraçado – você entende! – tão engraçado a ponto de dar cólicas no estômago. Os jornais de vocês eu não leio, mas provavelmente são iguais, certo? E eles provavelmente desenham meu bigode do mesmo jeito, certo? E também discorrem sobre humanidade e Cruz Vermelha18, e me chamam de pirata e bandido enquanto eles mesmos roubam no preço da madeira, do pão e do papel sobre o qual escrevem? Ah sim, claro, também. Diga-me: vocês têm casas de tolerância na Rússia? Têm! E elas ainda não foram fechadas? Oh não, claro – isso é uma necessidade natural; provavelmente Noé na arca fez o mesmo, dizem eles, e era o dilúvio! Você não acha, senhor professor, que a Europa atual é uma extraordinária e inédita coleção de trapaceiros? — Em parte, parece que sim. Há muitos trapaceiros. Mas o senhor também inclui a Alemanha? — Não: nós somos ladrões e piratas. Você falou sobre o cheiro de cadáveres, que você sente de maneira tão peculiar e nobre, mas e o cheiro de uma mentira colossal, você não sente? A verdade na Europa morreu há muito tempo – você não sabia? – e seu cadáver está se decompondo, esse é o cheiro da mentira. E apenas os países cheiram a cadáveres, mas e o cheiro da mentira? – oh, esse fedor nauseabundo se espalha de um polo a outro. Por que você não sente esse cheiro? Por que vocês não perceberam, professores e humanistas, como sua cultura depauperada morreu e continuam a manter seu cadáver, putrefato e fétido? Ou na Europa não sobrou ninguém, além de trapaceiros e tolos? Não, eu não sou vilão, nem assassino. Só se mata o que está vivo, só se torturam os inocentes. Eu sou o coveiro da velha Europa, enterro seu cadáver e salvo o mundo do seu fedor – sim, senhor, o mundo! E se meus professores que leram Shakespeare – de quem eu mesmo gosto, e 17  Centavo alemão, usado antes da introdução do euro. (N. da T.) 18  Organização humanitária internacional fundada em 1863 em Genebra, Suíça, com o propósito de proteger a vida e saúde humanas, assegurar o respeito por todos os seres humanos e prevenir e aliviar humana sofrimento. Sendo uma das pioneiras entre as organizações humanitárias, teve papel preponderante durante a Primeira Guerra Mundial. (N. da E.)

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muito! – ainda se esforçam para ser coveiros de Hamlet e discutem alguma coisa sobre o crânio de Yorick; se meus democratas ainda são um pouco… zierlich-manierlich19, entende? E douram cada bala com irmandade e Marx20, então eu, Guilherme II e o Grande, sou direto e franco, como a própria morte. Eu sou um grande coveiro, senhor. Eu sou um arado para os mortos, com a força de um milhão, que está arando a terra. E quando esses sulcos profundos, limpos e bonitos cobrirem toda a Europa, você mesmo, professor, vai me chamar de o Grande! — E a insônia? — De novo sobre a insônia? E meu trabalho? Esqueça o meu bigode e me diga honestamente: ainda há alguém na Europa que possa conter e superar tanto quanto eu, o imperador alemão? Quantos inimigos a Alemanha tem, você sabe? E ela está sozinha – sozinha no mundo inteiro. Sozinha e está vencendo. Além da Alemanha, que Estados do mundo antigo e do novo poderiam resistir a tal batalha: um contra todos? E a Alemanha sou eu. Oh, como eu estaria feliz, professor, no seu lugar: você viu Guilherme nesta hora fatídica, você o ouviu! Vale a pena pagar por isso não só com a liberdade, mas também… com a vida. — Mania de grandeza? — Sim. Cada alemão, começando por mim, tem o direito de ter mania de grandeza. Vocês não, para vocês restam as outras enfermidades, você concorda? Guilherme riu e até deu um leve tapinha no ombro do prisioneiro, olhando de esguelha para o revólver que estava sobre uma mesa redonda, não muito longe do professor. Era o revólver carregado do próprio Guilherme, estupidamente colocado e esquecido sobre a mesa por alguém. E ele continuou, rindo: — Que noite interessante, não é verdade? Talvez seja melhor que a sua cátedra, professor! Na Europa há tantos desses palanques de madeira para atores da humanidade… mas eis uma circunstância estranha, muito estra19  Do alemão, “afetados” ou “excessivamente cerimoniosos”. (N. da T.) 20  Karl Marx (1818-1883), alemão, foi filósofo, sociólogo, historiador, economista, jornalista e revolucionário socialista. Um dos principais inspiradores do movimento revolucionário russo. (N. da E.)

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nha, professor… você não explicaria? Eu mesmo fiz um curso universitário e sei que todos os professores ensinam sobre a razão, justiça, direito, bondade, beleza e assim por diante. Todos! E, no entanto, ninguém ensinou sobre o mal e a traição. Mas por que todos os seus alunos são trapaceiros e mentirosos tão terríveis? Vocês os ensinam errado, ou eles não estão anotando corretamente nos cadernos? — E o que eles ensinaram ao senhor? Eu gostaria de ver os seus cadernos. O imperador deu uma risada: — Excelentes cadernos, professor; minha esposa se orgulha deles. Eles me ensinaram a não acreditar neles. Acaso você mesmo acredita em um ator ou chora enquanto escuta um gramofone? São papéis, professor, apenas papéis nas bocas de atores incompetentes, e até a plebe já está começando a dar uns assobios para eles. Você está interpretando o papel de um doutor em direito – eu não estou enganado? – mas quem é que, em seu perfeito juízo, irá acreditar que você é mesmo um doutor em direito? Agora você assumiu um novo papel: trocou de caracterização e está vestindo um uniforme de soldado belga, mas… – Guilherme deu uma rápida olhada no revólver – mas, também neste caso, eu não diria que você tenha revelado um talento especial. Você não possui simplicidade e persuasão suficientes! Guilherme riu e continuou, incapaz de lidar com a estranha e pesada alegria que o dominara, por trás da qual já havia uma sombra de tristeza – ele sabia disso: — Você é doutor em direito. Você é doutor em direito e por acaso não gostaria que eu lhe revelasse um importante segredo estatal, relativo ao direito? Você sabe quem queria e quem começou a guerra? Eu! Está satisfeito? Eu! A Alemanha e eu. Que coisa importante para a ciência do direito, para todos os palanques de madeira, com dois degraus, e para todos os gramofones, não é verdade? — Agora isso não importa. — Não, é importante, meu senhor, mas não no sentido que você supõe. Não, isso é muito importante: afinal, o Juízo Final virá para o mundo não por convite, mas na hora que foi determinada nas alturas – e não foram 252

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vocês que a determinaram! O imperador franziu a testa e olhou severamente para o prisioneiro: — Eu declarei a guerra, eu queria a guerra, eu conduzo a guerra. Eu e minha jovem Alemanha. E todos vocês – vocês apenas se defendem. Oh, claro, do ponto de vista da lei de vocês, isso é maravilhoso, isso até mesmo transforma os seus intendentes em santos e como que asperge os seus canhões com um hissope; mas na vida há algo de maior valor – o poder. Você é professor; não permita que seus santarrões, ignorantes e carolas formulem uma pergunta estúpida: o que está acima: o poder ou a lei? Afinal, você sabe que o poder é a lei. Você é um revolucionário e, claro, um democrata? — Democrata. — É claro! Diga-me como uma pessoa honesta, não um ator: você respeita as leis existentes? — Não. Nem todas. — É claro! Você não é um idiota para respeitar uma lei pela qual você – inocente, de seu ponto de vista – foi condenado à pena de morte! Ou respeitar a lei contra as greves! Ou respeitar as leis sobre roubo, já que a propriedade em si é um roubo. Onde está o seu respeito pela lei, senhor doutor em direito? — As leis existentes não são uma expressão do direito. — Ah claro, para você! Pois as leis existentes são apenas a vontade do forte, imposta a você pelo forte contra quem está lutando. Quando você ganhar e se tornar forte, você escreverá suas leis; e elas também não serão ruins, mas alguém ainda estará insatisfeito com elas e assegurará, com uma bomba nas mãos, que o país do verdadeiro direito está mais além. Não é assim? Por que, então, não posso dar à Europa minhas leis, já que eu detenho a força? O Código de Guilherme, o Grande – de cima da cátedra isso não soará pior, nem menos legítimo do que o Código de Napoleão21. Seus alunos terão que adquirir novos cadernos, senhor professor! 21  Como ficou conhecido o Código Civil Francês outorgado por Napoleão Bonaparte (1769-1821) em 1804. (N. da E.)

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— E o senhor está convicto de que detém a força? — Esta é finalmente uma pergunta razoável, à qual eu respondo de boa vontade. Você gostaria de outro charuto, senhor professor? — Obrigado. — Por favor! Os charutos não são ruins. Que nome se dá a isso: quando o imperador que, sem rodeios, é praticamente chamado de facínora, oferece educadamente um charuto para um revolucionário e prisioneiro, que esteve atirando há pouco, e o revolucionário agradece educadamente? Acho que é cultura… – o imperador riu e novamente olhou rapidamente para o revólver – estou brincando, fume tranquilo, simplesmente quero que você não adormeça e elogie meus charutos. Sim, o poder está comigo, porque eu declarei, quis e comecei a guerra. E eu quis a guerra, e não poderia deixar de querê-la, porque entre todos os outros países, a Alemanha é a única que tem uma ideia que a move. Uma ideia, você entende? Um povo sem uma ideia é um corpo morto, você sabe disso? — Isso há muito tempo foi dito pelo nosso escritor Dostoiévski22. — Não sei, nunca ouvi falar… todos vocês tinham armas, soldados e ministérios de guerra – e por que vocês atacavam? Não queriam derramar sangue? Não é verdade. Vocês atacavam, mas os mais fracos: os franceses atacavam os árabes, os britânicos atacavam os bôeres, vocês atacavam os japoneses, os italianos atacavam os turcos… se bem que vocês cometeram um erro com os japoneses23. Parece que os veneráveis belgas não atacavam ninguém, mas, em compensação, fabricavam revólveres para todo mundo. Por que vocês não atacaram a Alemanha? Porque para atacar a Alemanha é preciso uma ideia, mas para aqueles outros basta um simples apetite, o desejo de ter um almoço mais farto. Porém eu atrapalhei o seu almoço: eu mesmo quero devorar aqueles que estão comendo. A Alemanha tem um coração de leão… e um apetite de leão! O imperador riu e olhou com benevolência para o prisioneiro. Ele sabia que, por causa da insônia, seus olhos brilhavam com um intenso brilho 22  Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski (1821-1881) foi um escritor, filósofo e jornalista do Império Russo, considerado um dos maiores romancistas e pensadores da história. (N da E.) 23  A Rússia havia sofrido uma derrota humilhante na Guerra Russo-Japonesa de 1904-05. (N. da E.)

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majestoso e peculiar e ele queria que o russo notasse isso. Parece que o russo notou. — Você é um nobre? – perguntou o imperador e, sem esperar resposta, continuou: – guerra com a Alemanha! Para isso não basta ter centenas de inválidos, mercenários e meninos que marcham mal. Apenas um povo, um povo inteiro, com crianças, velhos e velhas, pode travar guerra contra a Alemanha – e qual dos povos da corrupta Europa é capaz disso? Qual dos povos conta com tamanha explosão de energia, com tal coragem? Declarar guerra é declarar uma tempestade, meu senhor, é agitar os oceanos, o céu e a terra! Declarar guerra é, com orgulho, lançar a si mesmo na balança da justiça divina, é não ter medo de nada: nem da anarquia, nem da morte, nem da consciência, nem de Deus. E eu declarei guerra! Eu ataco. Eu sou Guilherme II, o Grande, o coração de leão da jovem Alemanha! Ele aprumou orgulhosamente o peito e continuou, com os olhos brilhando intensamente: — Onde está a ideia da França? Onde está a ideia da Inglaterra? Eles só defendem o passado, eles só queriam sossego e uma tranquila saciedade, a paz dos comerciantes sem escrúpulos e dos trapaceiros. Agora até os ladrões de carteira estão indignados com Guilherme: ele os impediu de trabalhar! O que sua França defende? As ideias do ano de 9324? Beleza e liberdade? Não, meu senhor, ela defende seus bancos de poupança, seus agiotas e libertinas vindos de todo o mundo, seu direito sagrado de se degenerar de maneira espirituosa e brilhante. Vocês, revolucionários russos, acusam-me de suprimir com a minha influência a sua revolução minúscula e cega, seu impulso neurótico pela liberdade, mas sou um alemão parcimonioso, eu apenas dei conselhos – Guilherme riu – mas o dinheiro para as forcas de vocês quem deu foi a França! Protejam-na, protejam-na, e quando vocês conseguirem defender esta caixa de empréstimos, ela novamente construirá patíbulos para vocês, ela não irá esquecer de agradecê-los! Mas eu não vou permitir isso. Aqui está o meu plano – você quer ouvir? Vou tomar a França costeira para mim, o resto vou declarar como neutro… você sabe o que significa um 24  Provável alusão ao período da história da França conhecido como “Reino do Terror”, que teve início em 1793, com as execuções de Luís XVI e Maria Antonieta e instituição do Tribunal Revolucionário pela Convenção Nacional. (N. da E.)

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Estado neutro? É um prato que ainda está na cozinha, enquanto aqui estão arrumando a mesa. Eu vou comê-lo depois, quando estiver suficientemente cozido. E não tenha medo – eu conservarei sua Paris. Afinal, não existe Monte Carlo? Por que não existir também Paris, a livre cidade de cocotas, mulheres que não dão à luz, decadentes e ociosos de todas as partes do mundo? Será uma grande cidade de deleites espirituosos, êxtases sexuais e tagarelice sobre arte; nela se reunirão eunucos de ambos os sexos, e eu mesmo a protegerei! Eu mesmo! Pois que seja, como o algodão em uma ferida, que ela absorva toda a podridão e a abominação da decomposição, pois que ela exista então… enquanto não chegar um sombrio anarquista russo e explodir tudo isso, mandando para o diabo! A voz de Guilherme tornou-se novamente estridente e aborrecida: — Um povo em que as mulheres se recusam a dar à luz e os homens não querem produzir, não deveria existir! Eunucos são bons para o harém, mas você já viu alguma nação de eunucos, algum Estado de cocotas? Eu tenho oito filhos, e tenho orgulho disso, e aperto a mão de todo alemão honesto que durante o dia faz armas e canhões e à noite faz jovens soldados! E o que seria de sua patética Rússia se vocês não se reproduzissem tão persistentemente e não criassem com isso suas massas, sua blindagem popular que, por enquanto, nem os meus 4225 conseguem penetrar! O prisioneiro objetou de maneira cansada e relutante: — Mas na Alemanha vocês também estão começando a tomar medidas contra o excesso de nascimentos… — Esta não é a Alemanha! – Guilherme se levantou e ficou vermelho – antes da guerra, não havia um único piolho em toda a Alemanha – nem um único piolho, meu senhor! – mas seus soldados os trouxeram. Estes piolhos, por acaso, são a Alemanha? E por isso tenho pressa de aniquilar a França, porque suas “ideias” de devassidão impune, sua contaminação hedionda, também recaem sobre meu povo saudável e forte. Excesso de nascimentos! – desculpe, professor, mas isso é estúpido, alguém te pregou uma peça, pro25  Provável referência ao canhão de cerco “M-Gerk”, popularmente conhecido como “Big Bertha”, arma pesada projetada para bombardear fortificações, cidades e outros alvos fixos, e que possuía o calibre de 42 cm. (N. da E.)

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fessor. Você tem filhos? — Quatro. Por enquanto, eu não estou defendo a França. Mas no que consiste a ideia da Alemanha? — Em se tornar uma Alemanha grandiosa. — Isso todo povo quer. — Não é verdade! Apenas palestrantes, professores e jornalistas gritam sobre isso enquanto o povo dorme. Mas quando cada pessoa de um povo – entende, cada uma! – começa a querer e almejar a grandeza, quando uma nobre paixão pela supremacia se torna a paixão predominante entre velhos e crianças, quando todo desejo pessoal dirige-se para um único centro e todo cérebro pensa na mesma coisa, então o devaneio estéril dos sonhadores se torna uma ideia popular! A Alemanha quer ser grandiosa – essa é a ideia dela, meu senhor! E aqui está a força dela, diante da qual vocês tremem! — Supremacia para os senhores? Isso é pouco. Guilherme olhou com atenção para o prisioneiro e para o revólver – e sorriu. — Se isso é pouco para você, então há ainda outra coisa, professor. O que você diz sobre a ideia de renascimento? O que você acha de uma coisa, professor, como… um retorno à barbárie? — Isso é uma piada ou ironia? — É o mesmo tipo de piada que o cheiro do sangue e dos cadáveres, o qual você sente com seriedade suficiente e, parece que, até excessiva. Não, eu não estou brincando. Por acaso você não sabe que eu sou alemão? Um bárbaro? Ah, sim. Aquele mesmo alemão que, ainda na floresta de Teutoburg26, estava batendo nos cultos romanos. Desde então, aprendemos algo com os latinos, mas, ao mesmo tempo, também nos infectamos com muitos piolhos latinos – precisamos nos lavar direito, bem direitinho, meu senhor! 26  Referência à Batalha da Floresta de Teutoburg, na Alemanha, em 9 d.C., onde uma aliança de tribos germânicas dizimou três legiões romanas, estabelecendo o Rio Reno como fronteira do Império Romano pelos séculos seguintes e provocando uma distância entre as culturas germânica e romana. (N. da E.)

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— Com sangue? — Se você gosta de expressões tão dramáticas, então… com sangue. Por acaso você não sabe que ele lava melhor do que qualquer sabão? Eu sou um bárbaro, sou representante de uma raça jovem e forte, odeio as rugas de sua Europa decrépita, já obsoleta e impotentemente mentirosa. Por que ela mente? Por que ela não morre, assim como a Sarah Bernard27 de vocês, mas continua a fazer micagens no palco? Que vá para a cova, para a cova! Vocês comeram mais do que podem digerir, estão cheios de contradições históricas, vocês são simplesmente um absurdo! Morram e eu serei seu herdeiro: alguma coisa vocês têm. Deixem para mim seus museus e bibliotecas: meus cientistas vão selecionar esses trastes e, talvez, deixem algo – mas, mesmo que joguem tudo fora, isso só me deixará contente. Eu não preciso de uma herança sobre a qual pesa uma quantidade excessiva de dívidas! Que vá para a cova! Para a cova!

Parte 4 — O senhor está errado – disse o prisioneiro – o senhor será derrotado. — Quem? — O senhor não detém a força. Será derrotado. Guilherme ficou em silêncio. Depois disse de maneira fria e severa: — Tenho vergonha por você, meu senhor. Você está falando sobre a fome com a qual querem derrotar a Alemanha? Você se lembrou das nossas cascas secas de pão, sobre as quais toda a feliz Europa está gritando agora, calculando o dia em que não teremos nada para comer? Tenha vergonha! Eu fico vermelho quando leio os artigos em seus jornais. Vocês deveriam se afastar, como fez Jafé28, mas em vez disso ficam às portas da Alemanha, 27  Henriette Rosine Bernardt (1844-1923), conhecida por Sarah Bernhardt, foi uma atriz francesa e considerada por alguns como "a mais famosa atriz da história". Bernhardt fez sua reputação nos palcos da Europa na década de 1870, e logo passou a ser exigida pelos principais palcos do continente e dos Estados Unidos. Conquistou fama de atriz dramática, ganhando o epíteto de "A Divina Sarah". (N. da E.) 28  Jafé, terceiro filho de Noé. Segundo a Bíblia(Gn 9,20-23), após o fim do dilúvio, sabendo estar Noé embriagado e nu, Jafé afastou-se para não ver a nudez do pai. (N. da E.)

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escutando clandestinamente o que falam as donas de casa dela, e riem de sua nobre parcimônia, como lacaios desperdiçadores. Eu não sou nem um pouco inclinado ao sentimentalismo, senhor, mas choro, eu, o imperador, choro quando penso nas mulheres e crianças alemãs; e quando os traidores britânicos, do alto de suas cátedras, calculam quanto leite há no seio de nossas jovens mães, e quanto tempo ele irá durar, e quão logo nossos bebês começarão a morrer, então, eu choro de orgulho pela minha grande nação. Mas que os britânicos não cantem vitória! O seio da mãe alemã é inesgotável! E quando não restar leite em seu seio, as lobas da floresta alimentarão os bebês, como Rômulo e Remo29! O prisioneiro, corando levemente, rebateu: — Mas eu não estou falando de pão. Como o senhor pode explicar a enorme resistência que lhe foi oposta? O senhor contava com ela? O imperador permanecia em silêncio. Ao prisioneiro pareceu que ele havia empalidecido um pouco. — Ou para ela não lhe parece tão grande? Guilherme deu de ombros: — Instinto de autopreservação! — Só isso? — E o que mais? Eles estão se defendendo. É verdade, vou ser franco com você: eu não esperava tanta obstinação da parte do… — Cadáver? Guilherme novamente deu de ombros: — Sim, do cadáver, se quer assim. O homem morto é mais pesado do que eu pensava e requer um túmulo mais espaçoso. Mas por acaso eu não o estou cavando? Ouça as vozes dos meus coveiros, elas soam bastante… sérias. O zumbido de uma distante canhonada se transformou em um rugido 29  Segundo a mitologia romana, Rômulo e Remo, irmãos gêmeos filhos do deus Marte e da mortal Reia Silvia, foram lançados no Rio Tibre ao nascer, sendo resgatados por uma loba, que os alimentou. Mais tarde, Rômulo se tornaria o fundador e primeiro rei de Roma. (N. da E.)

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contínuo e pesado. Ou a batalha estava se inflamando novamente, ou o vento, alterando sua direção, estava trazendo mais completamente os sons, mas todo aquele lado, onde ficava o Ocidente, estava transtornado pelos sons e zumbia, trovejava e uivava. Era como se lá, onde ficava o Ocidente, terminasse tudo o que era humano e surgisse uma cachoeira gigante e desconhecida que precipitava num sorvedouro pesadas massas de água, pedras, ferro, lançando pessoas, cidades e povos no abismo. — Está escutando meus coveiros? – repetiu Guilherme severamente. Empalidecendo, o russo respondeu em voz baixa: — Tenho a impressão de que estamos flutuando… e que isso são as cataratas do Niágara30. Tudo cai nelas. O imperador riu: — Não, isso não é uma cachoeira. Isso são os rugidos dos meus rebanhos de ferro! O som de suas vozes é terrível, não é verdade? E eu sou um pastor, e tenho um chicote em minha mão, e eu vou tocá-los ainda mais, ainda mais! Está ouvindo? E eu os obrigarei a rugir com as vozes do inferno… oh, eles ainda não estão furiosos o suficiente. Por acaso isso é fúria? Hum! É preciso rugir de modo que todo o globo terrestre trema como se estivesse com febre, de modo que – ele ergueu a mão – lá, em Marte, me escutem, o grande coveiro da Europa! Para a cova! Para a cova! Pressionando os lábios com força e arrogância, como se tivesse esquecido de que não estava sozinho, Guilherme começou a andar pela sala em silêncio. O peito dele estava estufado para a frente, a mão enfiada por trás da lapela, a cabeça jogada para trás, seus passos eram nítidos e precisos – ele marchava, media o chão e a cada passo reivindicava seu poder de César31 sobre o mundo derrotado. E seu olhar era extasiado e insano. O russo disse: — O senhor é uma pessoa terrível. 30  Localizadas entre os lagos Erie e Ontário, na fronteira entre os EUA e o Canadá. (N. da E.) 31  Caio Júlio César (100 a.C. – 44 a.C.) foi um patrício, líder militar, político romano, tendo governado Roma como ditador entre 49 a.C. e 44 a.C. (N. da E.)

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— Você compreende isso? – disse Guilherme, de maneira entrecortada e sem encarar. Provavelmente, ele não tinha compreendido o significado das palavras pronunciadas, e, para seu coração, elas soavam de modo amplo, alegre e distanciado, como uma voz de reconhecimento, como um tímido tributo da admiração e da reverência mundial. E mais uma vez, como uma visão ofuscante, a escada luminosa de Jacó surgiu diante dele e, no último, no mais alto degrau evanescente, estava ele, Guilherme, o imperador da Alemanha e do mundo inteiro. E abaixo dele, o povo alemão, incontável, maravilhoso, brilhando com espadas e capacetes, formidável e imperioso. Até os limites extremos da visão, agita-se seu majestoso trigal, onde cada espiga é a brilhante baioneta de um soldado e se perde vagamente na névoa azul dos oceanos, no dourado e verde das ilhas férteis e ainda em países desconhecidos, cheios de fascínio sedutor. E o sol que brilha formidavelmente é como uma coroa do mundo, exatamente acima de sua cabeça. Temendo espantar o sonho com um movimento descuidado, semicerrando os olhos por causa do brilho das velas, quase tateando, Guilherme chegou a uma poltrona profunda e se sentou. E ficou sentado por um longo tempo, sem se mexer, mal respirando, com os olhos fechados, mas era como se eles ainda continuassem a ver. Uma profunda reflexão, parecida com um sonho, tomou posse dele e, como um sonho, gentilmente o atraía para a profundidade flutuante de imagens obscuras, reflexos luminosos e majestosos, semelhantes ao brincar do sol sobre a água ondulante. A audição se extinguia aos poucos. Primeiro, a terrível canhoneira passou a soar mais baixo do que o tique-taque do pêndulo do relógio – foi cortada pelo silêncio – e silenciou definitivamente em meio à mudez dos espectros altos, flutuantes, iluminados e majestosos. De repente, um leve espasmo percorreu seu corpo. De maneira silenciosa e rápida, como se submetidos a uma forte rajada de vento quente, os espectros iluminados começaram a correr, a se lançar de um lado para outro e se dissiparam, e a alma se vestiu com a profunda serenidade do céu estrelado e com a superfície infinita das águas do mar, descansando. Parece-lhe que em uma noite clara, ele está cortando silenciosamente a água macia e profunda em seu encouraçado de ferro. E o bater ritmado da máquina, e a rápida rotação da hélice, e o toque cuidadoso das ondas espumosas contra as escorregadias laterais de aço – tudo isso se Leonid Andrêiev

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funde em um único som rítmico, como a batida do próprio coração dele, que deixa de ser som e se torna respiração. Agora ele mesmo é o ferro, o aço e os canhões do navio; agora ele mesmo é sua abrasadora caldeira, suas poderosas alavancas, sua forte hélice que gira firmemente; agora ele mesmo é a sua ponta afilada de aço, chocando-se poderosamente contra a água e o espaço. Um corpo, uma única vontade, um único objetivo. Mas quanta força é necessária para respirar, quando, em vez do coração, há uma máquina com milhões de potência e as costelas são forjadas em aço? O imperador adormeceu. Três ou cinco minutos se passaram em silêncio. Por um minuto também o russo fechou os olhos e ajeitou as pernas esticadas para que ficassem mais confortáveis, mas o sono não vinha até ele e a fadiga pareceu se tornar menor. Esticando o pescoço, do lugar onde estava, com um olhar míope, ele perscrutou o rosto imóvel de Guilherme, escutou sua respiração pesada, mas regular em meio ao sono, e sorriu. Então chamou baixinho: — Majestade! Não houve resposta. E com um sentimento novo de especial interesse em tudo ao seu redor, quase com curiosidade infantil, o prisioneiro se levantou silenciosamente e caminhou ao redor da sala. Olhou com cuidado pela janela, puxando ligeiramente a borda da cortina: lá embaixo estava escuro e silencioso, mas por trás do telhado da casa em frente havia o clarão cintilante de um incêndio próximo. Escutou atentamente a canhonada – tudo a mesma coisa. Ele soltou a cortina, endireitou-a e parou por um instante diante de um mapa estratégico enorme e todo riscado, pregado na parede; e pensou: “como eu entendo pouco!” Afastou-se lentamente em direção à mesa redonda onde estava o revólver carregado e, cuidadosamente, sem olhar para o homem que estava dormindo, pegou-o na mão e olhou para o tambor: sim, estava carregado. Quanta estupidez e descuido! Segurando o revólver com ambas as mãos, inclinando fortemente a cabeça sobre ele, como se perscrutando o mais íntimo segredo de seu conteúdo, o russo permaneceu por um minuto em completa imobilidade, refle262

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tindo sobre algo de modo profundo e concentrado; nem um único cabelo, nem uma única dobra se moveu durante esse tempo. Depois, cuidadosa e silenciosamente, ele devolveu o revólver ao lugar de origem – e só então lançou um olhar para o imperador. O imperador dormia. Demasiado sério para sorrir ou mesmo dar de ombros, o prisioneiro voltou ao seu lugar, sentou-se e olhou ao redor da sala novamente. Agora ela era nova e diferente, e o rugido pesado das armas além das paredes de repente perdeu todo o seu terrível significado sinistro: era difícil de acreditar que lá estivessem atirando com cartuchos de verdade e não com cartuchos de festim, e matando. Mas o cansaço do prisioneiro desapareceu completamente, suas mãos e pernas já não tremiam mais, e sua voz era alta, calma e firme quando ele chamou Guilherme pela segunda vez: — Escute… acorde, Majestade! Guilherme abriu os olhos, sem entender nada. Porém, de repente ele entendeu tudo e com o coração palpitando fortemente ficou em pé de um salto. O russo também se levantou involuntariamente e com o gesto habitual de um soldado estendeu os braços ao longo do corpo e juntou os pés.

Parte 5 As perguntas do imperador foram entrecortadas e ríspidas: — Eu adormeci? — Sim. — Dormi muito? — Uns oito ou dez minutos. Talvez mais. — Você se levantou? Leonid Andrêiev

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— Me levantei. — Andou? — Andei. — Como você ousou! — Eu o chamei, mas o senhor não ouviu. — Você deveria ter chamado os outros! — Eu não queria que eles vissem isso. Ele calmamente indicou o revólver com o olhar. Guilherme olhou para o mesmo lugar rapidamente e repetiu: — Sim, isso. Possivelmente você esteja certo. Sim, isso. Sente-se. Você o pegou na mão? Ele não estava nessa posição antes. — Sim, peguei. — E o colocou de volta? Obrigado. Por que você não se senta? Sente-se, por favor. E, claro, agora você está livre, entende? Pode ir a qualquer lugar. Eu nem irei exigir sua palavra de que você não vai lutar comigo novamente. Lute! — Obrigado. Eu vou lutar. Guilherme inclinou a cabeça polidamente: — Eu sinceramente sinto por isso, senhor professor. Você é uma pessoa nobre. Minha esposa saberá o que aconteceu essa noite. O russo também se inclinou polidamente. Guilherme olhou favoravelmente para seu rosto pálido, excessivamente modesto, excessivamente erudito, e acrescentou: — Mas a Alemanha não saberá disso. Ela certamente não precisa saber que seu imperador por dez minutos foi… um mortal comum, não é mesmo? Eu vou tocar a campainha. Quero ver alguém dos meus agora, você entende? Quando o ajudante de ordens entrou, o imperador, ruborizado de rai264

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va, por muito tempo o mediu com os olhos faiscantes, e gritou tão alto que tanto o ajudante quanto o prisioneiro se sobressaltaram: — Vinho! E ainda ficou zangado por muito tempo e em silêncio, corando, até que o velho e inocente camareiro, criado pessoal do imperador, não trouxe uma nova garrafa de champanhe; mas também para ele lançou o mesmo olhar colérico e gritou igualmente alto: — E então? Pra fora, rápido! – e riu alegremente, indicando com o olhar as costas assustadas e encurvadas do velho – você vê como eles são? Não entendem nada! Pegue um charuto e fume. Que esse seja o nosso cachimbo da paz. — Ou da trégua? – sorriu o russo. — Também é uma coisa excelente! – o imperador respondeu resolutamente, soltando a fumaça do charuto – fume. Precisamos dar um descanso ao sistema nervoso. O velho Hindenburg32 diz que resistirá a esta guerra quem tiver os nervos mais fortes! Silence! Durante alguns minutos, ambos fumaram em silêncio. E só agora, quando a voz humana, sempre alheia e perturbadora, não estava quebrando o silêncio da sala erma, o imperador sentiu todo o deleite da vida que lhe foi devolvida. Os pensamentos eram vagos e corriam em algum lugar acima, como nuvens em um dia ensolarado, e todo o corpo estava feliz até o langor, até o desejo de rir e cantar. Com uma sensação de prazer extraordinário, Guilherme olhou ao redor da sala e com benevolência deteve o olhar no prisioneiro, bondosamente avaliando-o como uma pessoa muito boa, e concentrou a atenção no mapa estratégico. Dele vinha um sopro de vastidão e frescor, como de um dia de primavera, que chamava para uma longa caminhada; suas linhas confusas e fracas cores convencionais, seus pequenos nomes mal visíveis convertiam-se em florestas e montanhas, em amplos rios, sobre os quais foram lançadas pontes, em milhares de cidades e povoações repletas de movimento barulhento e apressado. 32  Paul von Hindenburg (1847-1934) foi um militar alemão, comandante do Exército Imperial Alemão durante a Primeira Guerra Mundial. (N. da T.)

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Em algum lugar atrás da porta estava sendo substituída a sentinela. O sussurro abafado da equipe, o cauteloso, mas medido e preciso som de botas com solado de ferro, o bater da coronha no chão de madeira – e novamente o silêncio. O Grand Hotel dormia. E a canhonada diminuía, afastando-se, ou, para aqueles que lutavam, estava chegando aquele momento de fadiga invencível que vem antes do amanhecer, quando o corpo e o espírito cansados ​​são involuntariamente tomados por torpor. Como cães grandes em um sonho, canhões solitários latiam espasmodicamente. Dominado por alegre ansiedade, Guilherme foi até a janela e afastou as cortinas. Queria abrir a janela, mas a moldura firme não cedeu ao esforço das mãos fracas, e o prisioneiro educadamente o ajudou empurrando a moldura com a palma da mão. Pela janela aberta entrou um sopro com o frescor da noite quase de verão e o cheiro de queimado. — Preciso de um pouco de ar – disse o imperador, sorrindo. — Sim, aqui está muito abafado – concordou o russo. Os dois estavam parados junto à janela, Guilherme bem próximo ao peitoril, o prisioneiro um pouco atrás. O clarão acima do telhado ainda cintilava vagamente e o céu estava negro; mas as pedras redondas do pavimento clarearam ligeiramente – a noite estava chegando ao fim. E lá embaixo tudo também estava silencioso e sem movimento; mas, pelas ruas distantes, com o estrondo constante de uma catarata, que nunca dormia, ribombavam os comboios. Escutando atentamente, era possível distinguir o ribombar pesado e opressivo das armas do ruído das carroças e das cozinhas de campanha, o bater frequente dos cascos da cavalaria e o som rítmico da infantaria, quase inaudível, mas poderoso em sua continuidade. Em meio à alvorada, os automóveis abriam o caminho para si com toques úmidos de buzinas. Em algum lugar nas alturas e ao longe, os aviões zuniam como cordas tensas, e todo o ar morno estava repleto de insônia e anseios aflitivos. “Para Paris!” – pensou o imperador, e seu coração começou a bater mais regularmente e mais alto, como sob a mão de um tocador de tambores. Por um momento, a cidade cosmopolita surgiu diante dele em forma de uma pequena estrela no mapa, sem ruas, nem pessoas, e para lá se movia essa torrente de gente, arrastando atrás de si sua alma, gananciosa como a alma 266

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de um bárbaro em busca de conquistas e de despojos. O sorriso desapareceu de seu rosto pálido; seu bigode se arrepiou predatoriamente. “Para Paris!”, murmurava cada vez mais alto as palavras mágicas, estremecendo com os aflitivos desejos predatórios e, ​​ virando-se, quis dizer alto alguma coisa para o seu ajudante de ordens, que respirava baixinho às suas costas. Mas esse não era o seu ajudante de ordens, o imperador havia se desligado da realidade. Era um soldado belga, um prisioneiro, sabe Deus o que mais! O rosto de Guilherme se contorceu em uma careta e as palavras não ditas caíram como uma pedra na alma. — O senhor queria dizer algo? – perguntou o russo. — Nada. Feche a janela! – o imperador ordenou irritado, afastando-se. O prisioneiro obedeceu à ordem e perguntou: — Deseja que eu feche a cortina também? — Sim! – Guilherme respondeu de modo igualmente cortante e, contra a vontade, acrescentou – por favor. As pesadas cortinas se fecharam. O ambiente ficou sombrio, pesado e abafado, e as chamas oscilantes das velas, agitadas pelo ar fresco, eram desagradáveis em sua dança e suas flexões silenciosas e incoerentes. Se não fosse por esse russo, ele teria aberto a janela novamente e por um longo tempo ficaria ouvindo com prazer o enérgico barulho das massas armadas em movimento, teria ficado completamente sozinho, apagaria as velas e ficaria escutando por muito tempo, alimentando a alma com imagens de vitória e grandeza… mas esse senhor! E não podia simplesmente mandar ele sair; aqueles dez minutos em que ele teve em suas mãos a vida do imperador e o destino da Europa deram a ele alguns direitos estranhos e muito especiais. — Por que você não se senta? Sente-se. O prisioneiro sentou, cruzando as pernas. Guilherme, apertando os olhos, olhou para a sua bota rasgada e perguntou: — Mas me diga, senhor professor: você se comportou daquela forma com Leonid Andrêiev

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o revólver… não foi por covardia? Ah, é claro, estou falando da covardia moral, entende? - Não. Guilherme pensou e, com certa solenidade, declarou: — Eu acredito em você de bom grado. Seria excessivamente estúpido e insignificante. Mas será que você adivinha, senhor professor e verdadeiro humanista – Guilherme endureceu o olhar e fixou-o diretamente nos olhos do prisioneiro – mas será que você adivinha exatamente quem salvou a mim, o Imperador da Alemanha? Não? Bem, quem conteve a sua mão, que já havia pegado isso? Não? Quem, afinal, dirigiu sua vontade por um… caminho inescrutável? O prisioneiro, perplexo, sacudiu a cabeça em negativa, enquanto Guilherme se levantou, aprumou-se como se estivesse diante do front, e ergueu solenemente o curto braço esquerdo em direção ao teto: — Deus! Ele é quem salvou o imperador da Alemanha. E inclinou bastante a cabeça, quase teatralmente, como se estivesse sussurrando uma oração de agradecimento. O russo deveria ter se levantado durante a breve oração, mas ele não se levantou, e essa falta de respeito não agradou ao imperador. Sentando-se lentamente na poltrona, ele lançou um olhar hostil para o rosto pensativo do prisioneiro e disse concisamente: — Você é ateu, é claro? — Não sei, não. — Ah! Isso é sincero. “Não sei!”. Mas, admitindo a existência de Deus… – o imperador mexeu ironicamente seu bigode – você em hipótese alguma consegue admitir que Deus quisesse salvar o imperador alemão. Não é verdade? O prisioneiro pensou por um minuto e respondeu com seriedade: — Também não sei! Não se surpreenda. Todo o meu pensamento segue por um caminho diferente, e a mim, é claro, jamais teria ocorrido aquilo o que o senhor disse tão diretamente e com tanta confiança. Deus! Mas quando o senhor se levantou e levantou a mão para o céu, de repente me pareceu que isso… é muito sério. O senhor me permite ser um pouco ríspido? 268

Conversa noturna


Guilherme respondeu resolutamente: — À vontade. — Eu tentarei não abusar… — Pode abusar. Aquele grande mal que você deixou de cometer lhe dá o direito a esse pequena maldade. Então? — Então, antes eu responderia que foi a minha vontade que salvou o senhor. Mas, durante este curto período da guerra, aprendi muito sobre coisas em que eu não havia pensado antes, e enxerguei minha alma sob uma nova luz. Então por que não admitir que o senhor esteja protegido pela vontade maior de alguém? É bem possível. Mas o senhor não acha que poderia não ser Deus, mas o diabo? — O diabo?! Mas você enlouqueceu. — Isso o insulta? Mas, levando em conta tudo ao meu redor, esta incessante canhonada de sangue, os sofrimentos que testemunhei, esses reféns fuzilados… eu simplesmente não consigo relacionar isso com o nome de Deus de maneira alguma. No entanto, não insisto; talvez até tenha sido Deus, por que também não admitir Deus? Guilherme encolheu os ombros, totalmente perplexo. — Estranho! Muito estranho! Você vê uma diferença tão pequena entre um e outro? — Mais precisamente, nenhuma. E esse segundo nome, o diabo, surgiu em minha mente apenas como um eco das velhas e generalizadas ideias religiosas: uma rotina dos pensamentos, você entende? O importante é que admiti a vontade maior de alguém. Mas eu a admiti ainda antes da sua exclamação, quando você ainda estava dormindo, e na minha mão havia um revólver e a possibilidade de mudar instantaneamente todo o curso dos acontecimentos. Mas eu pensei: que direito eu tenho de mudar o curso de todos os acontecimentos? E então, também ficou claro para mim que não tenho esse direito e não posso tê-lo, que minha designação na guerra está firmemente limitada àquela posição que eu ocupo e não pode ser de outra forma. Como soldado, devo lutar bravamente, ser firme, matar certo número de seus soldados e Leonid Andrêiev

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ser morto, isso é meu direito e dever, mas não mais que isso. Caso contrário, é um absurdo selvagem e a solução errada para o problema! Guilherme deu de ombros com desdém: — Fatalismo ocidental? — Não, apenas o conhecimento do próprio lugar no processo e um senso racional de proporção. Para a solução correta de um problema sem precedentes colocado diante do mundo, cada número deve significar aquilo mesmo que ele significa e assumir firmemente seu lugar em uma determinada série. Eu senti isso claramente já há muito tempo, no dia em que disse a mim mesmo: agora eu tenho que ser um voluntário belga e lutar contra os prussianos, e nada mais: ser voluntário e vencer os prussianos. O rosto de Guilherme expressava impaciência. Diante das últimas palavras do prisioneiro, ele pulou de seu lugar e começou a andar furiosamente pela sala, lançando frases coléricas: — Vencer os prussianos! É assim que eles falam. Voluntários! Combatentes patéticos, que só irritam meus bravos soldados! Ou você não entende, meu senhor, que pela sua nobre participação está aumentando a resistência deste pequeno povo comerciante, que de outra maneira há muito já teria reconhecido a minha vontade? É você e outros cegos semelhantes a você, que estão me forçando a varrê-los da face da Terra! Onde está a sua Bélgica, que você tão corajosamente ajudou? Eu estou destruindo suas últimas pedras. Vencer os prussianos! Você ouve o rugido à nossa frente? Enquanto nós conversamos, meus bravos homens estão se movendo para Paris – para Paris, meu senhor! – em duas semanas, todos vocês serão varridos para o mar como lixo! — Pode ser. Mas quando ocorre uma explosão, as partículas da matéria circundante devem oferecer resistência ao gás em expansão. Caso contrário, não haverá explosão, entende? E quanto mais densa a matéria, mais forte é sua resistência, mais violenta é a explosão. E eu, eu sou apenas uma partícula de matéria, que está oferecendo resistência. Nisso consiste meu dever. 270

Conversa noturna


Guilherme olhou com atenção para o rosto pálido e sério do prisioneiro e exclamou meio que brincando, com a rudeza do quartel: — Mil demônios nesta cabeça russa, eu não estou entendendo nada! Uma partícula de matéria que oferece resistência. Resistir, para morrer mais precisamente! Garanto a você, senhor russo, que nenhum de seus camaradas no front pensa como você. Talvez eles sejam apenas estúpidos, mas eles querem vencer, não morrer… para a correta solução do problema. Você confundiu a metralhadora com a cátedra, senhor professor, isso é simplesmente absurdo! O russo respondeu: — Por que o senhor pensa que eu não quero a vitória? Não, eu também quero vencer, do contrário eu seria um mau soldado e trairia o meu significado numérico. Eu já lhe disse: o senhor será vencido! Guilherme se aprumou arrogantemente. — Quem? — Partículas de matéria que oferecem resistência. Voluntários e combatentes patéticos. Mulheres e crianças. Ar, pessoas, pedras, troncos e areia, tudo o que sua explosão jogou para o alto… e dali cairão sobre a sua cabeça. O senhor morrerá debaixo dos escombros e sua morte é inevitável!

(1915)

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A vida de Vassíli Fiveiski

U

I

ma inflexível e enigmática fatalidade pairou sobre Vassíli Fiveiski durante toda a sua vida. Como se amaldiçoado por um feitiço desconhecido, desde a juventude ele carregou um pesado fardo de

tristeza, doença e pesar, e as feridas que sangravam em seu coração jamais cicatrizavam. Ele se sentia solitário em meio às pessoas, como um planeta em meio aos outros planetas, e parecia que um ar peculiar, destrutivo e pernicioso, rodeava-o como uma nuvem invisível e transparente. Filho de um pai resignado e paciente, um padre provinciano, ele mesmo também era paciente e resignado e passou um longo tempo sem notar aquela sinistra e enigmática predestinação com a qual as desgraças confluíam para se derramarem sobre sua feia e desgrenhada cabeça. Caía rapidamente e se levantava devagar; caía novamente e mais uma vez se levantava devagar – e graveto por gaveto, grãozinho de areia por grãozinho de areia, ele restaurava laboriosamente seu frágil formigueiro junto à grande estrada da vida. E quando ele se tornou padre, casou-se com uma boa moça e teve com ela um filho e uma filha, pensou que tudo tinha ficado bem e estável, como era com as outras pessoas, e que permaneceria assim para sempre. E deu graças a Deus, pois acreditava nele solene e simplesmente: como sacerdote e como homem com uma alma complacente. E isso aconteceu no sétimo ano de sua vida próspera, numa tarde quente Leonid Andrêiev

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de julho: os meninos da aldeia foram se banhar no rio e com eles o filho do padre Vassíli, que também se chamava Vassíli e era moreno e quieto como o pai. E Vassíli se afogou. A jovem esposa1 do padre, que veio correndo junto com o povo para a margem do rio, gravou para sempre na memória a simples e terrível imagem da morte humana: as batidas do seu coração, langorosas e surdas, como se cada uma delas fosse a última; a incomum transparência do ar, no qual se moviam vultos de pessoas, conhecidos, simples, mas agora isolados e como que desprendidos da terra; e a desconexão de discursos vagos, quando cada palavra dita rodopia no ar e se derrete lentamente em meio às novas palavras que emergem. E pelo resto de sua vida ela sentiu medo dos dias luminosos e ensolarados. Nesses dias, ela parece ver as costas largas, iluminadas pelo sol, os pés descalços, firmemente estacionados entre as cabeças partidas de repolhos e o adejar de algo branco, brilhante, no fundo do qual rolava de um lado a outro um corpinho leve, terrivelmente próximo, terrivelmente distante e eternamente estranho. E muito tempo depois, quando Vássia2 foi enterrado e a grama cresceu em seu túmulo, a esposa do padre ainda repetia a oração de todas as mães infelizes: “Senhor, leve a minha vida, mas devolva meu filho!” Logo todos na casa do padre Vassíli também começaram a temer os luminosos dias do verão, quando o sol arde de forma excessivamente forte e o traiçoeiro rio, incendiado por ele, brilha insuportavelmente. Em dias assim, quando as pessoas, animais e campos ao redor se alegravam, todos os habitantes da casa do padre Vassíli olhavam atemorizados para sua esposa e, deliberadamente, conversavam alto e riam, enquanto ela se levantava, preguiçosamente e sem brilho, olhava nos olhos de maneira fixa e estranha, fazendo com que evitassem seu olhar, e vagava languidamente pela casa, procurando qualquer coisa: as chaves, ou uma colher, ou um copo. Tentavam deixar à vista todas as coisas que fossem necessárias, mas ela continuava procurando e, à medida que o sol alegre e brilhante ia ganhando altura no céu, essa procura se tornava cada vez mais persistente, cada vez mais ansiosa. Ela se aproximava do marido, colocava a mão fria no ombro dele e 1  Na tradição do cristianismo ortodoxo, os padres devem ser casados, sendo o celibato adotado geralmente apenas entre os que desejam se tornar monges. (N. da T.) 2  Variante carinhosa para o nome Vassíli. (N. da T.)

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A vida de Vassíli Fiveiski


perguntava repetidas vezes: — Vássia! E o Vássia? — O que foi, querida? – respondia o padre Vassíli de maneira resignada e desesperançada, e com dedos trêmulos, bronzeados e com unhas não aparadas sujas de terra, ajeitava os cabelos desalinhados dela. Ela ainda era jovem e bonita, e sobre a humilde batina que o marido usava em casa, sua mão repousava como se fosse de mármore: branca e pesada – o que foi, querida? Talvez deva tomar um chazinho. Você ainda não tomou? — Vássia, e o Vássia? – ela repetia interrogativamente, retirava a mão do ombro dele, como se ela fosse algo supérfluo e desnecessário, e voltava a procurar cada vez mais impaciente, mais inquieta. Da casa, tendo percorrido todos os seus cômodos desarrumados, ela ia para o jardim, do jardim para o pátio, depois de volta para a casa, enquanto o sol ia subindo cada vez mais alto, e era possível ver através das árvores como brilhava o rio tranquilo e tépido. E, atrás dela, passo a passo, agarrando obstinadamente com a mão o vestido da mãe, arrastava-se a filha, Nástia3, séria e sombria, como se sobre seu coração de seis anos de idade também já repousasse a sombra negra do que estava por vir. Ela adequava diligentemente seus pequenos passos aos passos largos e distraídos da mãe, de olhos baixos olhava com tristeza em volta do jardim, familiar, mas sempre misterioso e atraente, e sua mão livre se esticava melancolicamente para a groselha espinhosa e arrancava as bagas imperceptivelmente, arranhando-se nos espinhos pontudos. E por causa desses espinhos pontudos como agulhas e da azeda groselha espinhosa que estalava, ficava ainda mais chateada e tinha vontade de ganir, como um filhotinho de cachorro abandonado. Quando o sol se elevava até o zênite, a esposa do padre cerrava totalmente as venezianas de seu quarto e, no escuro, bebia até ficar embriagada, extraindo de cada cálice a tristeza pungente e a lembrança abrasadora do filho morto. Ela chorava e narrava com uma voz langorosa e desajeitada com a qual leitores ineptos leem um livro difícil, narrava sempre a mesma coisa, sempre a mesma coisa, sobre o garotinho moreno e tranquilo que vivera, 3  Diminutivo do nome Anastassía. (N. da T.)

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rira e morrera; e em suas sonoras palavras livrescas, ressuscitavam os olhos dele, e o sorriso, e a fala sensata como a de um homem idoso. “Vássia, eu digo a ele, Vássia, por que você está maltratando a gatinha? Não pode maltratar, querido. Deus mandou que tivéssemos compaixão de todos: dos cavalinhos, dos gatinhos e dos pintinhos. E ele, meu querido, ergueu os olhinhos límpidos para mim e disse: e por que a gata não tem compaixão dos passarinhos? As pombinhas estavam criando vários filhotinhos, mas a gata comeu as pombas, e os filhotinhos ficam procurando, procurando pela mamãe”. E o padre Vassíli a escutava de maneira resignada e deseperançada, e do lado de fora, sob a veneziana fechada, em meio à bardana, à pegamassa e à urtiga-branca, Nástia ficava sentada no chão e brincava melancolicamente com as bonecas. E a brincadeira dela sempre era que a boneca propositalmente não a obedecia, e ela a castigava: torcia os braços e as pernas dela dolorosamente e a açoitava com a urtiga. Quando o padre Vassíli viu a esposa embriagada pela primeira vez e, pelo seu rosto rebeldemente agitado e amargamente alegre, percebeu que aquilo era para sempre, ele se encolheu todo e, esfregando as mãos secas e quentes, começou a rir e sua risada soava baixo e sem sentido. Ele riu por um longo tempo e por um longo tempo esfregou as mãos; resistia, tentava segurar a risada imprópria e, virando a cabeça para não ser visto pela esposa que chorava amargamente, ele deixava escapar o riso disfarçadamente como um colegial. Mas, depois, ele ficou sério de imediato, e suas mandíbulas se trancaram como se fossem de ferro: não conseguia dizer sequer uma palavra de consolo à esposa que se jogava de um lado para outro, não conseguia lhe dizer sequer uma palavra de carinho. Quando ela adormeceu, o padre fez o sinal da cruz sobre ela três vezes, encontrou Nástia no jardim, acariciou friamente a cabeça dela e foi para o campo. Durante muito tempo, ele ficou andando pela vereda em meio ao centeio que crescia alto e olhando para baixo, para a poeira branca e macia, que retinha em alguns lugares marcas profundas de saltos de botas e contornos vivos e redondos dos pés descalços de alguém. As espigas mais próximas do caminho estavam curvadas e quebradas, algumas se encontravam caídas atravessando a vereda e estavam esmagadas, escuras e achatadas. 276

A vida de Vassíli Fiveiski


Em uma curva do caminho, padre Vassíli parou. Adiante e ao redor, ao longe e por todos os lados, pesadas espigas ondulavam sobre finas hastes, sobre a cabeça se erguia o ilimitado céu flamejante de julho, embranquecido pelo calor – e nada mais: nem uma árvore, nem uma construção, nem uma pessoa. Ele estava sozinho, perdido entre as densas espigas, diante da face do céu alto e flamejante. Padre Vassíli levantou os olhos para o alto – eles eram pequenos, fundos, negros como carvão, e a chama celestial refletida neles ardia com uma luz ofuscante – colocou as mãos no peito e quis dizer alguma coisa. As mandíbulas de ferro cerradas estremeceram, mas não cederam: rangendo os dentes, o padre as separou com força e, com esse movimento de sua boca, semelhante a um bocejo convulsivo, as palavras soaram alto e precisamente: — Eu creio. Esse brado em forma de oração, tão incrivelmente parecido com um desafio, perdeu-se no deserto do céu e das densas espigas sem qualquer repercussão. E, como se estivesse objetando a alguém, como se estivesse convencendo e alertando a alguém apaixonadamente, ele repetiu mais uma vez: — Eu creio. E, ao voltar para casa, novamente, graveto por graveto, começou a restaurar seu formigueiro destruído: observou como as vacas estavam sendo ordenhadas, penteou ele mesmo o cabelo comprido e áspero de Nástia e, apesar da hora tardia, percorreu dez quilômetros até chegar ao médico local para aconselhar-se sobre a doença de sua esposa. E o médico deu a ele um frasquinho com gotas.

II Ninguém gostava do padre Vassíli – nem os paroquianos, nem os clérigos. Ele conduzia mal o serviço religioso, sem esplendor: tinha uma voz seca, falava indistintamente, ora se apressava de tal modo que o diácono mal conseguia acompanhá-lo, ora era incompreensivelmente lento. Ele não era coLeonid Andrêiev

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biçoso, mas aceitava dinheiro e oferendas tão desajeitadamente que todos o consideravam muito ganancioso e zombavam dele pelas costas. E todas as pessoas ao seu redor sabiam que sua vida era muito infeliz, e o evitavam com aversão, acreditando que cada encontro e conversa com ele era um mau agouro. Ele havia convidado muitas pessoas para o almoço em comemoração de seu onomástico4, celebrado no dia 28 de novembro, e todos tinham respondido afirmativamente ao seu convite feito com profundas reverências, porém apenas os clérigos vieram e nenhum dos honoríficos paroquianos compareceu. O padre se sentiu envergonhado perante o clero, mas quem ficou mais sentida foi sua esposa, que teve que arcar com o desperdício dos aperitivos e dos vinhos trazidos da cidade. — Ninguém quer vir à nossa casa – dizia ela, sóbria e triste, enquanto os convidados, que não tinham dado o devido valor aos vinhos caros, nem aos aperitivos, mandando tudo goela abaixo sem distinção, estavam indo embora, embriagados e insolentes. O administrador da paróquia5, Ivan Porfírytch Koprov, era quem mais destratava o padre; ele desprezava abertamente o desafortunado, e depois que na aldeia ficaram sabendo dos terríveis acessos de bebedeira de sua esposa, ele passou a se recusar a beijar a mão do padre. E o benevolente diácono tentava convencê-lo em vão: — Tenha vergonha! Não é o homem que você está reverenciando, mas a função que ele desempenha. Mas Ivan Porfírytch teimosamente se recusava a separar a pessoa da função e objetava: — Ele é um homem que não vale nada. Não sabe sustentar controlar a si próprio, nem à sua esposa. Por acaso é certo isso, a esposa de um clérigo ter acessos de bebedeira, sem vergonha, sem consciência? Se a minha experimentasse beber, eu iria mostrar o que é bom pra ela! 4  Na Rússia, além do aniversário, é costume cada pessoa celebrar um dia associado ao seu nome próprio, dado em homenagem a algum santo. É o “dia do nome”, “onomástico”, dia do santo cujo nome a pessoa leva.. (N. da T.) 5  Geralmente eleito entre os paroquianos mais respeitáveis, responsável pela administração de recursos, conservação dos bens e manutenção da ordem da igreja e da área circundante. (N. da T.)

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O diácono sacudia a cabeça em tom de reprovação e contava sobre Jó, o sofredor: como Deus o amava e o entregou a Satanás para uma provação, e depois o recompensou completamente por todo o sofrimento. Mas Ivan Porfírytch sorria ironicamente sob a barba e sem constrangimento interrompia o discurso que não era de seu agrado: — Não precisa ficar contando, já sabemos disso tudo. Só que Jó é um homem justo e santo, e este quem é? O que há de justo nele? E você, diácono, é melhor que se lembre de outra coisa: Deus marca o tratante. Esse provérbio também não deixa de ser inteligente. — Bem, espere só: você vai ver o que o padre irá fazer com você se não beijar a mão dele. Vai expulsá-lo da igreja. — Veremos. — Veremos. E eles apostaram um quarto6 de vodca com infusão de cerejas para ver se o padre expulsaria ou não. O administrador da paróquia foi quem venceu: ele virou o rosto com irreverência, e a mão estendida para ele, marrom por causa do queimado do sol, permaneceu solitária no ar, enquanto isso, o padre Vassíli corou intensamente, mas não disse uma palavra. E após este acontecimento, sobre o qual toda a aldeia ficou falando, Ivan Porfírytch se convenceu firmemente de que o padre era uma pessoa ruim e indigna, e começou a incitar os camponeses a reclamarem do padre Vassíli na diocese e a pedirem para si outro padre. O próprio Ivan Porfírytch era um homem rico, muito feliz e respeitado por todos. Ele tinha um rosto imponente, com bochechas firmes e salientes e uma enorme barba negra, e um pelo igualmente negro cobria todo o seu corpo, especialmente as pernas e o peito, e ele acreditava que esse pelo lhe trazia uma felicidade especial. Ele acreditava nisso tão fortemente como em Deus, considerava-se o escolhido entre as pessoas, era orgulhoso, presunçoso e constantemente alegre. Em um acidente ferroviário terrível, onde muitas pessoas morreram, ele perdeu apenas o seu quepe sugado pelo barro. 6  Na antiga medida de volume de líquidos, correspondia a um quarto do volume contido em um balde, aproximadamente 3 litros. (N. da T.)

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— E ele já era velho mesmo! – acrescentava jactancioso e ostentava esse episódio como se fosse um mérito seu, especial. Ele sinceramente considerava que todas as pessoas eram canalhas e tolas, não conhecia o sentimento de piedade em relação a nenhuma delas, e enforcava pessoalmente os filhotes que a cadelinha preta, Cigana, paria em abundância todos os anos. Um dos filhotes, o que fosse mais graúdo, ele deixava para ser reprodutor e, se pedissem, dava os restantes de bom grado, pois considerava os cães animais úteis. Ivan Porfírytch era rápido e infundado ao formar juízos, e facilmente recuava em relação a eles, muitas vezes sem ele mesmo perceber, mas suas ações eram firmes, decididas e quase sempre infalíveis. E tudo isso tornava o administrador da paróquia assustador e incomum aos olhos do padre intimidado. Quando se encontravam, ele era o primeiro a tirar o chapéu de abas largas com uma pressa indecorosa e, ao ir embora, sentia como seus passos se tornavam mais frequentes e açodados, passos de um homem envergonhado e assustado, e como suas pernas magras se atrapalhavam sob a longa batina. Como se todo seu cruel e misterioso destino encarnasse nesta enorme barba negra, nos braços peludos e no seu andar firme e reto, e se padre Vassíli não se encolhesse todo, não ficasse de lado, não se escondesse atrás de suas paredes, esse corpanzil ameaçador iria esmagá-lo como a uma formiga. E tudo o que pertencia a Ivan Porfírytch Koprov e tinha a relação com ele interessava ao padre de tal maneira que, às vezes, por dias inteiros ele não conseguia pensar em outra coisa senão no administrador da paróquia, em sua esposa, em seus filhos e em sua riqueza. Trabalhando no campo junto com os camponeses, assemelhando-se ele mesmo a um camponês, com suas botas grosseiras e alcatroadas e sua camisa de cânhamo, o padre Vassíli frequentemente se voltava para a aldeia, e a primeira coisa que via depois da igreja era o telhado de ferro vermelho da casa de dois andares do administrador da paróquia. Depois, em meio à folhagem cinzenta dos salgueiros-brancos, dobrada por causa do vento, ele encontrava com dificuldade o escurecido telhado de madeira de sua casinha, e nesses dois telhados tão diferentes havia algo que fazia surgir no coração do padre um sentimento de terror e desesperança. 280

A vida de Vassíli Fiveiski


Certa vez, no dia da Festa da Exaltação da Santa Cruz, a esposa do padre veio da igreja em lágrimas e contou que Ivan Porfírytch a havia insultado. Quando ela estava indo para o seu lugar, ele falou tão alto de trás da escrivaninha que todos ouviram: — Essa bêbada jamais deveria ter permissão para entrar na igreja. Que vergonha! Ela chorava enquanto contava, e padre Vassíli via com impiedosa e terrível clareza como ela havia envelhecido e decaído durante os quatro anos que se seguiram à morte de Vássia. Ela ainda era jovem, mas fios prateados já permeavam o seu cabelo, e seus dentes brancos escureceram, e seus olhos estavam inchados. Agora ela fumava, e era estranho e doloroso ver em suas mãos o cigarro que ela segurava desajeitadamente, de um jeito feminino, entre dois dedos esticados. Ela fumava e chorava, e o cigarro tremia em seus lábios, inchados por causa das lágrimas. — Deus, por quê? Oh, Deus! – ela repetia com tristeza e olhava obtusa e fixamente pela janela, através da qual se via a garoa de setembro. O vidro estava embaçado por causa da água e uma bétula que se tornara pesada oscilava em forma de uma sombra fantasmagórica que se alastrava. Dentro da casa ainda não haviam acendido o fogo, para economizar a lenha, e o ar estava úmido, frio e desconfortável, como no quintal. — O que fazer com eles, Nástienka7! – justificava-se o padre, esfregando as mãos quentes e secas – é preciso ter paciência. — Deus! Deus! E não há ninguém para me defender! – lamentava-se a esposa do padre; e no canto, através do cabelo áspero e emaranhado, imóveis e frios, brilhavam os olhos de lobo da taciturna Nástia. À noite, a esposa do padre embebedou-se, e então começou para o padre Vassíli aquilo que era mais terrível, repugnante e deplorável, sobre o que ele não conseguia pensar sem casto horror e insuportável vergonha. Na mórbida penumbra das venezianas fechadas, em meio aos monstruosos devaneios nascidos do álcool, sob os sons langorosos das falas obstinadas sobre 7  Outra variante carinhosa para o nome Anastassía. (N. da T.)

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o falecido primogênito, um pensamento insano ocorreu à sua esposa: dar à luz um novo filho, e nele irá ressuscitar o que foi morto precocemente. Ressuscitará seu doce sorriso, ressuscitarão seus olhos, que cintilavam com uma luz tranquila, e sua fala calma e sensata, ele inteiro ressuscitará na beleza de sua infância imaculada, do jeito que ele era naquele terrível dia de julho, quando o sol ardia intensamente e o rio traiçoeiro cintilava ofuscantemente. E, ardendo em insana esperança, toda bela e repulsiva por causa do fogo que a havia envolvido, a esposa do padre exigia carícias do marido, implorava por elas de maneira humilhante. Ela se embelezava e flertava com ele, mas o horror não deixava o rosto sombrio dele; ela tentava dolorosamente se tornar novamente terna e desejável como tinha sido dez anos atrás, e fazia uma cara recatada de mocinha e sussurrava ingênuas falas de mocinha, mas sua língua embriagada não a obedecia, o fogo do desejo incontrolável cintilava ainda mais intensa e claramente através dos cílios abaixados, e o horror não deixava o rosto sombrio do marido. Ele cobria com as mãos a cabeça que queimava e sussurrava debilmente: — Não! Não! Então ela ficava de joelhos e implorava roucamente: — Tenha piedade! Devolva-me o meu Vássia! Devolva-me, padre! Devolva-me, estou te dizendo, maldito! E a chuva de outono batia teimosamente nas venezianas bem fechadas, e a noite chuvosa suspirava pesada e profundamente. Separados das pessoas e da vida pelas paredes e pela noite, eles pareciam estar girando em um turbilhão de um sonho selvagem e sem saída, e com eles giravam, sem morrer, queixas e maldições selvagens. A própria loucura estava à porta; sua respiração era o ar abrasador, seus olhos eram o fogo rubro de uma lâmpada que sufocava nas profundezas do vidro preto, coberto de fuligem. — Não quer? Não quer? – gritava a esposa do padre e, na sede feroz de maternidade, rasgava as suas roupas, expondo-se toda desavergonhadamente, ardente e terrível, como uma bacante, comovente e digna de pena, como uma mãe sofrendo pela perda de seu filho – não quer? Então diante de Deus eu te digo: eu vou para a rua! Vou nua! Vou me pendurar no pescoço do primeiro 282

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homem que passar. Devolva-me o Vássia, maldito! E a paixão dela vencia o casto padre. Sob os longos gemidos da noite de outono, ao som das falas insanas, quando a própria vida eternamente mentirosa parecia expor suas entranhas escuras e enigmáticas, na turvada consciência dele se acendia esporadicamente, como um relâmpago, um pensamento monstruoso: o pensamento sobre uma ressurreição miraculosa, uma possibilidade distante e maravilhosa. E ele, casto e tímido, respondia à paixão insana da esposa com igual paixão insana, na qual havia tudo: a esperança iluminada, a oração e o imensurável desespero de um grande criminoso. Tarde da noite, quando a esposa adormeceu, padre Vassíli pegou o chapéu e o cajado e, sem se vestir, usando apenas a batina de algodão grosseiro, dirigiu-se para o campo. Uma fina poeira de água jazia sobre a terra encharcada em forma de uma camada fria e úmida; o céu estava negro, assim como a terra, e a noite de outono exalava a grande inospidez. Em sua escuridão um homem desapareceu sem deixar vestígios; o cajado bateu em uma pedra que surgiu no caminho, e tudo ficou quieto, e reinou um longo silêncio. Com seus abraços gelados, a morta poeira de água sufocava qualquer acanhado som, e a folhagem amortecida não se mexia, e não havia nem uma voz, nem um grito, nem um gemido. Reinava um longo e lúgubre silêncio. E, muito além da aldeia, a muitos quilômetros de casa, uma voz invisível soou na escuridão. Ela era entrecortada, sufocada e surda, como o gemido da maior inospidez. Mas as palavras ditas por ela eram tão intensas quanto o fogo celestial. — Eu creio – disse a voz invisível. Nela havia ameaça e oração, cautela e esperança.

III Na primavera, a esposa do padre engravidou, não bebeu durante o verão inteiro e na casa de Vassíli reinou uma paz tranquila e alegre. Como antes, o inimigo invisível infligia golpes: um porco castrado de quase duzentos quiLeonid Andrêiev

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los, pronto para ser vendido, morreu; então, algum tipo de impigem cobriu todo o corpo de Nástia e não respondia ao tratamento, mas tudo isso era suportado com facilidade e, no fundo de sua alma, a esposa do padre até se alegrava: ainda duvidava de sua enorme felicidade, e todos esses problemas lhe pareceram o preço a ser pago por ela. Ela tinha a impressão de que se o porco caro morresse, Nástia adoecesse um pouco e alguma outra infelicidade acontecesse, então, ninguém se atreveria a tocar nem ferir seu futuro filho. E por ele, ela teria dado com alegria àquele ente invisível e impiedoso, que exigia incansáveis vítimas, ​​ não só a casa e Nástia, como também a si mesma e a sua alma. Ela ficou mais bonita, deixou de ter medo de Ivan Porfírytch e, na igreja, indo para o seu lugar, orgulhosamente exibia a barriga arredondada e lançava olhares corajosos e autoconfiantes para as pessoas. A fim de não prejudicar a criança de forma alguma, ela deixou de fazer o trabalho pesado em casa e passava dias inteiros colhendo cogumelos em uma floresta pública nas vizinhanças. Ela tinha muito medo do parto e fazia adivinhações com os cogumelos para ver se ele iria transcorrer bem ou não: na maioria das vezes o resultado era que o parto seria bem-sucedido. Às vezes, entre a folhagem comprimida do ano anterior, escura e aromática, sob a impenetrável abóboda verde de galhos altos, ela descobria uma família de cogumelos brancos; eles se aconchegavam bem perto uns dos outros e, ingênuos, com suas cabecinhas escuras, pareciam-lhe semelhantes a crianças pequenas e suscitavam uma vívida ternura e comoção. Com aquele sorriso especial e verdadeiro que as pessoas ostentam quando têm bons pensamentos e estão sozinhas, ela cuidadosamente cavava a terra fibrosa e cinzenta em torno das raízes, sentava-se perto dos cogumelos e os admirava por um longo tempo, um pouco pálida por causa das sombras verdes da floresta, mas bonita, calma e bondosa. Depois, caminhava novamente com aquele andar gingado e cauteloso de mulher grávida, e a densa floresta na qual os pequenos cogumelos se escondiam lhe parecia viva, inteligente e afetuosa. Uma vez ela levou Nástia consigo, mas a menina ficou pulando, fazendo barulho, correndo por entre os arbustos como um alegre filhote de lobo, e com isso atrapalhava o fluir dos pensamentos da mãe, então, ela deixou de levá-la. 284

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E o inverno transcorria bem e tranquilamente. À noite, a esposa do padre fazia pequenos pagãozinhos e cueiros, endireitando pensativamente os tecidos com os dedos brancos iluminados pela luz forte da lâmpada. Ela endireitava e alisava o tecido macio com a mão, como se o acariciasse, e pensava em alguma coisa dela, especial, maternal, e na sombra azul do abajur seu belo rosto parecia ao padre como que iluminado de dentro com algum tipo de luz suave e delicada. Temendo espantar os pensamentos maravilhosos e alegres dela com um movimento descuidado, o padre Vassíli andava lentamente pela sala, e seus pés em pantufas macias pisavam silenciosa e gentilmente. Ele olhava ora para o cômodo acolhedor, benevolente e agradável, como um amigo, ora para a esposa, e tudo estava bem, como acontecia com as outras pessoas, e de tudo emanava uma paz alegre e profunda. E a alma dele sorria silenciosamente, e ele não percebia e não sabia que em sua testa, em algum lugar entre as sobrancelhas, jazia sem alarde a sombra transparente do grande pesar. Pois, também nesses dias de paz e descanso pairava sobre a vida dele a fatalidade inflexível e enigmática. Na noite do dia em que se comemorava a Festa da Epifania, a esposa do padre teve um parto bem-sucedido e deu à luz a um menino que foi chamado de Vassíli. Ele tinha uma cabeça grande e pernas fininhas e havia algo estranhamente obtuso e sem sentido no olhar fixo de seus olhos arredondados. O padre e sua esposa passaram três anos tendo medo, dúvidas e esperança, mas depois de três anos ficou claro que o novo Vássia havia nascido com retardo mental grave. Concebido na insanidade, insano ele veio à luz.

IV Mais um ano se passou em um excruciante estupor de pesar, e quando as pessoas voltaram a si e olharam ao redor, a terrível imagem de um retardado reinava sobre todos os seus pensamentos e suas vidas. Como antes, acendiam-se os fogões e realizavam-se os afazeres domésticos, e as pessoas conversavam sobre os seus assuntos, mas havia algo de novo e terrível; ninLeonid Andrêiev

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guém mais tinha ânimo de viver e, por causa disso, tudo estava ficando desarranjado. Os trabalhadores tinham preguiça, não faziam o que lhes mandavam e muitas vezes largavam o serviço sem motivo, e os novos depois de dois ou três dias eram acometidos pela mesma estranha melancolia e indiferença, e eles se tornavam malcriados. O almoço era servido ora tarde, ora cedo demais, e sempre faltava alguém à mesa: ou a esposa do padre, ou Nástia, ou o próprio padre Vassíli. De algum lugar surgiu um monte de roupas de baixo e vestes rasgadas, e a esposa do padre ficava repetindo que tinha que cerzir as meias do marido, e parecia que estava cerzindo, no entanto, as meias estavam sempre rasgadas, e padre Vassíli esfolava o pé. E à noite todos se remexiam e sofriam com os percevejos; eles saíam de todas as fendas, rastejavam pela parede diante dos olhos, e nada conseguia impedir sua invasão repulsiva. E onde quer que as pessoas fossem, o que quer que fizessem, elas não esqueciam nem por um minuto que lá, no quarto mal iluminado, vivia alguém inesperado e medonho, nascido da insanidade. Quando elas saíam de dentro de casa para a luz do dia, tentavam não se virar e não olhar para trás, mas não conseguiam aguentar e se viravam – e então lhes parecia que a própria casa de madeira tinha consciência da terrível mudança: era como se ela inteira tivesse se encolhido e se contorcido e estivesse prestando atenção naquilo terrível que estava contido nas profundezas dela, e todas as suas janelas arregaladas e portas bem fechadas detivessem com dificuldade um grito de pavor mortal. A esposa do padre saía frequentemente para fazer visitas e ficava sentada durante horas com a esposa do diácono, mas nem mesmo lá encontrava paz: como se entre ela e o filho retardado tivessem sido esticados fios finos e semelhantes a uma teia, ligando-os firmemente e para sempre. E se ela fosse para o fim do mundo, se escondesse atrás dos altos muros de um mosteiro ou até morresse, também ali, na escuridão da sepultura, os fios finos, como teias de aranha, se estenderiam atrás dela e a envolveriam com preocupação e medo. As noites deles também não eram tranquilas: os rostos dos que dormiam estavam impassíveis, mas sob o crânio deles, em terríveis devaneios e pesadelos, crescia o monstruoso mundo da insanidade, e seu soberano era aquela mesma imagem enigmática e medonha do ser que era meio criança, meio animal. 286

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Ele estava com quatro anos de idade, mas ainda não havia começado a andar e só sabia dizer uma única palavra: “dá”; era zangado e exigente e, se não lhe dessem alguma coisa, ele berrava alto e seu berro era raivoso e animalesco e esticava as mãos para frente com os dedos crispados predatoriamente. Em seus hábitos ele era desasseado, como um animal, não controlava suas necessidades fisiológicas, fazia tudo sobre o colchonete forrado e trocá-lo era sempre um tormento: com astúcia maldosa ele esperava o momento em que a cabeça de sua mãe ou irmã se inclinava para ele e cravava os dedos nos cabelos, arrancando mechas inteiras. Certa vez ele mordeu Nástia; ela o jogou na cama e o espancou longa e impiedosamente, como se ele não fosse uma pessoa, nem uma criança, mas um pedaço de carne raivosa; e depois desse acontecimento, ele passou a gostar de morder e arreganhava os dentes ameaçadoramente, como um cachorro. Era igualmente difícil alimentá-lo. Ganancioso e impaciente, ele não sabia calcular seus movimentos: virava a tigela, se engasgava e esticava raivosamente os dedos crispados em direção ao cabelo. E sua aparência era repugnante e terrível: sobre os ombros estreitos e ainda completamente infantis, havia um pequeno crânio com um rosto enorme, imóvel e largo, como o de um adulto. Havia algo de perturbador e assustador nessa absurda disparidade entre a cabeça e o corpo, e parecia que a criança havia vestido, por algum motivo, uma enorme e terrível máscara. E a esposa do padre, exaurida, começou a beber como antes. Ela bebia muito, até perder a consciência e ficar doente, mas nem o poderoso álcool conseguia tirá-la do círculo de ferro, no meio do qual reinava a imagem medonha e incomum do ser que era meio criança, meio animal. Como antes, ela procurava na vodca por lembranças abrasadoras e pesarosas do falecido primogênito, mas elas não vinham, e o vazio pesado e morto não lhe dava nenhuma imagem ou som. Com todas as forças de seu cérebro excitado, ela evocava o rosto querido do garoto tranquilo, cantarolava as canções que ele havia cantado, sorria como ele havia sorrido, imaginava como ele se sufocava e se engasgava com a água silenciosa; e já parecia que ele estava se tornado mais próximo, e despertava em seu coração o grande pesar desejado ardentemente – quando, de repente, de um jeito que não podia ser percebido pela Leonid Andrêiev

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visão ou audição, tudo se perdia, tudo desaparecia, e no vazio frio e morto surgia a máscara medonha e imóvel do filho retardado. E para a esposa do padre parecia que ela enterrara Vássia pela segunda vez e o enterrara profundamente; e ela tinha vontade de quebrar a cabeça, em cujas profundezas reinava descaradamente a imagem estranha e repulsiva. Com medo, ela corria de um lado para outro do quarto e chamava o marido: — Vassíli! Vassíli! Venha, rápido! Padre Vassíli entrava e silenciosamente se sentava num canto pouco iluminado; e permanecia tão indiferente e calmo, como se não houvesse choro, nem insanidade, nem medo. E não era possível ver seus olhos, e sob o pesado arco supraciliar negrejavam imóveis duas manchas profundas, por causa dos quais a face descarnada parecia semelhante a uma caveira. Apoiando o queixo sobre a mão ossuda, ele congelava em pesado silêncio e imobilidade, enquanto a esposa, acalmada, com insana diligência bloqueava a porta atrás da qual se encontrava o retardado. Ela movia as mesas e cadeiras, jogava travesseiros e vestidos, mas isso lhe parecia pouco. E com a força de uma pessoa bêbada, ela arrancava do lugar uma pesada cômoda antiga e a levava até a porta, arranhando o chão. — Afaste as cadeiras! – ela gritava para o marido, arquejando, e ele silenciosamente se levantava, desocupava o lugar e se sentava novamente em seu canto. Por um momento, a esposa do padre se acalmava e se sentava, contendo com a mão a respiração pesada, mas logo se levantava de um salto e, afastando da orelha o cabelo que tinha se soltado, aterrorizada, tentava ouvir aquilo que em seus delírios estava por trás da parede. — Está escutando? Vassíli, está escutando? Duas manchas negras e imóveis olhavam para ela e uma voz indiferente e distante respondia: — Está tudo quieto lá. Ele está dormindo. Acalme-se, Nástia. A esposa do padre sorria de maneira alegre e iluminada, como uma criança, e se sentava hesitantemente na ponta da cadeira. 288

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— Verdade? Está dormindo? Você mesmo viu? Não minta: mentir é pecado. — Sim, eu vi. Ele está dormindo. — Então quem está falando lá? — Não tem ninguém lá. Você teve a impressão de ter ouvido. E a esposa do padre ficava tão alegre que ria alto, balançava a cabeça de maneira brincalhona e fazia movimentos vagos com as mãos para afugentar alguém, como se alguém maldoso quisesse fazer uma brincadeira com ela e assustá-la, e ela tivesse entendido sua piada e agora estava rindo. Mas sem uma repercussão, como uma pedra atirada em um abismo sem fim, a risada solitária diminuía e imediatamente morria, e sua boca ainda se curvava com o riso enquanto nos olhos dela já crescia um medo frio. E reinava tal silêncio, como se nunca ninguém tivesse rido naquele cômodo, e a partir das almofadas espalhadas, das cadeiras reviradas, tão estranhas quando se olha para elas de baixo, da cômoda pesada, desajeitadamente parada em um lugar incomum, de todos os lugares, olhava para ela uma expectativa faminta de alguma desgraça terrível, de uns horrores desconhecidos, ainda não experimentados pelo ser humano. Ela se virava para o marido – no canto escuro, vislumbrava-se algo cinzento e opaco, comprido, reto, vago, como se fosse um fantasma; ela se inclinava para mais perto – um rosto olhava para ela, mas não estava olhando com os olhos, escondidos pela sombra negra das sobrancelhas, mas com as manchas claras das maçãs do rosto aguçadas e da testa. Respirando de maneira frequente e ruidosa, denotando medo, ela se queixava baixinho: — Vássia! Estou com medo de você. Como você é, ora! Venha para cá, para a luz. Padre Vassíli obedientemente deu um passo em direção à mesa, e a luz morna da lâmpada caiu sobre seu rosto, mas não o aqueceu. Mas ele estava tranquilo, não havia medo nele, e isso era o suficiente para a sua esposa. Aproximando os lábios dos ouvidos do padre Vassíli, ela perguntou com um sussurro: — Padre, ah, padre! Você se lembra do Vássia… daquele Vássia? Leonid Andrêiev

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— Não. — Ah! – alegrava-se a esposa – também não. Eu também não. Você tem medo, padre? Hein? Tem medo? — Não. — E por que você geme enquanto dorme? Por que você geme? — Não é nada. Devo estar doente. A esposa deu uma risada irritada. — Você? Doente? É você quem está doente? – ela apontou um dedo para seu peito ossudo, mas largo e firme – por que você está mentindo? Padre Vassíli permanecia em silêncio A esposa olhou raivosamente para o rosto frio dele, para a barba que há muito tempo não era aparada e que se sobressaía em tufos transparentes nas faces encovadas, e remexeu os ombros com repulsa: — Hum! No que você se transformou! Tornou-se repugnante, malvado, frio como um sapo. Hum! Por acaso é minha culpa que ele tenha nascido assim? Vamos, fale. Sobre o que você está pensando? Sobre o que você fica constantemente pensando, pensando, pensando? Padre Vassíli permanecia em silêncio e com um olhar atento e irritante estudava o rosto pálido e extenuado da esposa. E quando os últimos sons de sua fala incoerente se extinguiam, o silêncio sinistro e inquebrável envolvia a cabeça e o peito dela com argolas de ferro e parecia espremer dali palavras apressadas e inesperadas: — Mas eu sei… mas eu sei! Eu sei, padre. — Sabe o quê? — Sei sobre o que você fica pensando. Você… – a esposa do padre parou e se afastou do marido com medo – você… não acredita em Deus. É isso! E quando já havia falado, ela sentiu o quão terrível era aquilo que tinha dito, e um sorriso deplorável, que pedia perdão, separou seus lábios inchados e mordidos, queimados de vodca e vermelhos como sangue. E ela se alegrou 290

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quando o padre, que tinha ficado pálido, respondeu de maneira áspera e edificante: — Isso não é verdade. Pense antes de falar. Eu acredito em Deus. E de novo a quietude, de novo o silêncio – mas nele havia algo de carinhoso, que envolvia suavemente a esposa do padre num abraço, como água morna. E, abaixando os olhos, ela pedia embaraçada: — Vássia, posso beber um pouquinho? Depois adormecerei mais rápido, pois já está tarde. Ela enchia um quarto de copo de vodca, hesitantemente adicionava mais e bebia até o fim, em pequenos goles contínuos, como bebem as mulheres. O peito se aquecia, surgia o desejo de algum tipo de diversão, barulho e luz, e de vozes ruidosas de pessoas. — Sabe o que vamos fazer, Vássia? Vamos jogar cartas, jogar duratchki8. Chame a Nástia. Vai ser ótimo; eu adoro jogar duratchki. Vássietchka9, querido, chame a Nástia! Eu te darei um beijo por isso. — Está tarde. Ela já está dormindo. A esposa do padre bateu o pé. — Acorde-a! Ora, vá lá. Nástia veio, magra, alta como o pai, com mãos grandes, que se tornaram grosseiras por causa do trabalho; ela estava com frio, agasalhava-se, friorenta, com um xale curto e conferia em silêncio o baralho ensebado. E calados se sentaram para jogar o jogo divertido e engraçado – no caos das coisas arrastadas de seus lugares e entornadas, em meio à noite já avançada, quando tudo já estava dormindo há muito tempo: pessoas, animais e campos. A esposa do padre brincava, ria, surrupiava cartas trunfos do baralho e tinha a impressão de que todos estavam rindo e brincando; mas, bastava o último som de sua fala se extinguir que o mesmo silêncio inquebrantável e ameaçador se fechava sobre ela e a sufocava. 8  Tradicional jogo de cartas russo, duratchki significa patetinhas ou tolinhos. Atualmente seu nome foi simplificado para Durak. (N. da T.) 9  Outra variante carinhosa para o nome Vassíli. (N. da T.)

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E era assustador olhar para os dois pares de mãos mudas e ossudas, movendo-se silenciosa e lentamente pela mesa, como se apenas essas mãos estivessem vivas e não houvesse pessoas a quem elas pertencessem. Estremecendo, ela olhava por cima da mesa, numa expectativa bêbada e desvairada de algo sobrenatural – dois rostos frios, dois rostos pálidos, dois rostos sombrios se sobressaíam solitários na escuridão e balançavam em uma dança estranha e muda – dois rostos frios e sombrios. Resmungando alguma coisa, a esposa do padre bebia vodca, e novamente as mãos ossudas se moviam silenciosamente, e o silêncio começava a zumbir, e alguém novo, uma quarta pessoa, surgia à mesa. Dedos crispados predatoriamente examinavam as cartas, depois se moviam em direção à esposa do padre, corriam como aranhas pelos joelhos dela, aproximavam-se da garganta… — Quem está aqui? – gritava a esposa do padre e se levantava e se espantava por todos já terem se levantado e a estarem olhando com medo. E eles eram apenas dois: o marido e Nástia. — Acalme-se, Nástia. Só nós estamos aqui. Mais ninguém. — E ele? — Ele está dormindo. A esposa do padre se sentou e por um minuto tudo parou de girar e voltou firmemente ao seu lugar. E o rosto do padre Vassíli estava bondoso. — Vássia! E o que vai ser de nós quando ele começar a andar? Nástia respondeu: — Hoje eu estava preparando o jantar dele e vi: ele estava mexendo a perninha. — Mentira – disse o padre, mas essa palavra soou distante e surda. E imediatamente tudo começou a girar em um furioso turbilhão, luzes e escuridão dançaram, e de todos os cantos surgiram fantasmas sem olhos que se balançavam sobre a esposa do padre. Eles se balançavam e cegamente subiam nela, a apalpavam com dedos crispados, rasgavam suas roupas, apertavam sua garganta sufocando-a, agarravam seus cabelos e a arrastavam para 292

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algum lugar. E ela aferrava-se ao chão com as unhas quebradas e gritava. A esposa do padre batia a cabeça, tentava correr para algum lugar e rasgava seu vestido. E tornou-se tão forte na insanidade que a dominava que padre Vassíli e Nástia não conseguiam contê-la, e tiveram que chamar o cozinheiro e um empregado. Em quatro a dominaram, amarraram suas mãos e pés com toalhas e a deitaram na cama, e então padre Vassíli ficou a sós com ela. Ele ficou imóvel ao lado da cama e observava como ela arqueava e contorcia o corpo convulsivamente, enquanto lágrimas escorriam de debaixo das pálpebras fechadas. Com a voz rouca de tanto gritar, ela implorava: — Ajudem-me! Ajudem-me! O grito solitário por socorro era terrivelmente lastimoso e assustador, e não houve resposta de nenhum lugar. O silêncio opressivo e impassível o cobria como um sudário e ele estava morto nessa roupa dos mortos; as cadeiras entornadas erguiam disparatadamente seus pés e reluziam timidamente com seus assentos; a velha cômoda se curvava desnorteada e a noite permanecia calada. E o grito solitário por socorro estava ficando cada vez mais fraco, mais lastimoso: — Ajudem-me! Está doendo! Ajudem-me! Vássia, meu querido Vássia… Com um gesto frio e estranhamente calmo, sem se mover do lugar, padre Vassíli ergueu as mãos e tomou nelas a própria cabeça, como sua esposa tinha feito meia hora antes, e com a mesma lentidão e calma baixou as mãos e, entre seus dedos, tremiam fios compridos e grisalhos de cabelo.

V Em meio às pessoas, seus afazeres e conversas, padre Vassíli era tão visivelmente isolado, alheio a tudo de maneira tão inconcebível, que era como se ele não fosse um homem, mas apenas seu invólucro ambulante. Ele fazia tudo o que faziam os outros, falava, trabalhava, bebia e comia, mas às vezes parecia que ele apenas imitava as ações das pessoas vivas, enquanto ele mesmo vivia em outro lugar, onde ninguém mais tinha acesso. E qualquer um que o via, Leonid Andrêiev

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sempre se perguntava: sobre o que esse homem está pensando? Tão nitidamente estava impresso em todos os seus movimentos esse profundo pensar. Ele estava em seu andar pesado, na lentidão de seu discurso trôpego, quando entre duas palavras pronunciadas se escancaravam as lacunas negras do pensamento distante que se escondia; ele pendia sobre seus olhos em forma de um pesado véu, e o olhar distante era enevoado, cintilando palidamente sob as sobrancelhas hirsutas. Às vezes era necessário chamá-lo duas vezes até que ele ouvisse e respondesse; ele também esquecia de cumprimentar as pessoas e, por isso, começaram a considerá-lo orgulhoso. De modo que, certa vez, ele não cumprimentou Ivan Porfírytch; este de início ficou surpreso, depois rapidamente alcançou o padre que caminhava vagarosamente. — Ficou orgulhoso, padre! Não quer mais cumprimentar – ele falou zombeteiramente. Padre Vassíli o olhou com perplexidade, corou levemente e se desculpou: — Desculpe-me, Ivan Porfírytch: não o vi. O administrador da paróquia queria olhar para o padre de cima a baixo com severidade, e então pela primeira vez percebeu que o padre era mais alto do que ele, embora ele mesmo se considerasse o homem mais alto do distrito. E algo de agradável surgiu momentaneamente nessa descoberta e, inesperadamente para si mesmo, o administrador fez um convite: — Venha me visitar um dia desses. E por um longo tempo ele ficou se virando e medindo o padre com o olhar. Também padre Vassíli experimentou uma sensação agradável, mas só por um momento: já depois de dois passos, aquele mesmo pensamento constante, pesado e duro, como a mó de um moinho, comprimiu a lembrança das palavras gentis do administrador da paróquia e esmagou o sorriso tímido e silencioso a caminho dos lábios. E novamente ele ficou imerso em pensamentos – pensava em Deus e nas pessoas e nos misteriosos destinos da vida humana. E o seguinte episódio aconteceu durante uma confissão: agrilhoado por seu pensamento fixo, padre Vassíli fazia com indiferença as costumeiras perguntas a uma velha, quando, subitamente, foi surpreendido por uma sin294

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gularidade que não havia notado antes: ele está aí parado e calmamente pergunta sobre os intentos e sentimentos mais íntimos, e um ser humano olha para ele assustado e responde a verdade – aquela verdade que a ninguém mais é dada a saber. E o rosto enrugado da velha imediatamente tornou-se especial e refulgente, como se em volta fosse noite e a luz do dia caísse apenas sobre ele. E, inesperadamente, interrompendo-a no meio de uma palavra, ele perguntou: — Está mesmo dizendo a verdade, senhora? Mas, o que quer que a velha tenha respondido, ele não ouviu. A névoa que cobria seu rosto se desfez e, com olhos brilhantes, como se tivessem sido lavados, ele olhou espantado para o rosto da mulher, um rosto que era especial – nele estava inscrita uma verdade clara e, ao mesmo tempo, enigmática sobre Deus e sobre a vida. Na cabeça da velha, sob um lenço de chita, padre Vassíli notou a risca – uma listrinha cinzenta de pele dividindo o cabelo cuidadosamente penteado. E essa mísera risca, essa velada preocupação com a cabeça velha, feia, para a qual ninguém ligava, também era uma verdade – uma triste verdade sobre a vida humana, eternamente solitária, eternamente triste. E então, pela primeira vez, no quadragésimo ano de sua existência, padre Vassíli entendeu, com seus olhos, com sua audição e com todos os seus sentidos, que, além dele, existem outras pessoas na Terra – seres semelhantes a ele, e eles têm sua própria vida, seus próprios infortúnios, seu próprio destino. — A senhora tem filhos? – ele perguntou rapidamente, interrompendo mais uma vez a velha. — Morreram, padre. — Todos morreram? – surpreendeu-se o padre. — Todos morreram – repetiu a mulher, e seus olhos se avermelharam. — E como você faz para viver? – perguntou padre Vassíli com perplexidade. — Mas que vida? – a velha começou a chorar – tem gente que me dá uma esmolinha e vou vivendo disso. Leonid Andrêiev

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Esticando o pescoço para frente, padre Vassíli, do topo de sua enorme estatura, cravava os olhos na velha e permanecia em silêncio. E seu rosto longo e ossudo, emoldurado pelos cabelos que pendiam, pareceu incomum e assustador para a velha, e as mãos dela, cruzadas sobre o peito, ficaram frias. — Bem, pode ir – soou sobre ela a voz severa. … Dias terríveis começaram para o padre Vassíli, e coisas sem precedentes aconteciam em sua mente. Até então havia sido assim: existia um pequeno pedaço de terra e nele padre Vassíli vivia sozinho com seu enorme infortúnio e suas enormes dúvidas – e parecia que as outras pessoas não viviam ali absolutamente. Agora a terra havia crescido, tornado-se imensa e toda habitada por pessoas semelhantes ao padre Vassíli. Havia muitas delas, e cada uma vivia à sua maneira, sofria à sua maneira, tinha esperança e duvidava à sua maneira, e entre elas o padre Vassíli se sentia como uma árvore solitária em um campo, em torno da qual uma floresta infinita e densa crescera subitamente. Não havia mais solidão, mas junto com ela desaparecera o sol e as luminosas distâncias vazias, e a escuridão da noite se tornara mais densa. Todas as pessoas diziam a ele a verdade. Quando ele não ouvia as suas falas verdadeiras, via suas casas e rostos: e tanto nas casas quanto nos rostos estava inscrita a inexorável verdade da vida. Ele sentia essa verdade, mas não sabia como nomeá-la e procurava avidamente novos rostos e novas falas. Não havia muitas pessoas que se confessavam na época do jejum que antecede o Natal, mas o padre mantinha cada uma delas na confissão por horas inteiras e as interrogava inquisitivamente, persistentemente, penetrando nos cantos mais reservados da alma, para os quais a própria pessoa olhava raramente e com medo. Ele não sabia o que estava procurando, e impiedosamente revirava tudo o que sustenta a alma e tudo aquilo do que ela vive. Em suas perguntas ele era impiedoso e descarado, e o pensamento que havia nascido nele não conhecia o medo. E padre Vassíli logo entendeu que aquelas pessoas que lhe diziam apenas a verdade, como ao próprio Deus, não conheciam, elas mesmas, a verdade sobre suas vidas. Através de milhares de suas pequenas, dispersas e hostis verdades, vislumbravam-se os contornos nebulosos de uma grande verdade que tudo solucionava. Todos a sentiam e todos esperavam por ela, mas ninguém sabia como nomeá-la com uma palavra humana – essa gran296

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diosa verdade sobre Deus e sobre as pessoas e sobre os enigmáticos destinos da vida humana. Padre Vassíli começou a senti-la, e sentia-a ora como um desespero e um medo insano, ora como compaixão, raiva e esperança. E, como antes, sua aparência era severa e fria, enquanto sua mente e coração já se fundiam no fogo da verdade incognoscível e uma nova vida estava entrando no velho corpo. Na terça-feira da última semana antes do Natal, padre Vassíli retornou tarde da igreja; na escura e fria antessala, a mão de alguém o deteve, e uma voz rouca sussurrou: — Vassíli, não vá para lá. Pelo medo que continha a voz ele soube que era a esposa quem falava e parou. — Eu já estou te esperando há uma hora. Congelei toda! – ela bateu os dentes com um arrepio repentino. — O que aconteceu? Vamos. — Não! Não! Escute! A Nástia… eu entrei, e ela estava diante do espelho fazendo uma cara como a dele, e as mãos, como ele… — Vamos. Ele levou à força a esposa que resistia para o interior da casa e lá, olhando em volta, tremendo de frio e medo, ela contou. Havia entrado na sala para regar as flores e visto: Nástia estava parada em frente ao espelho, e no espelho era possível ver seu rosto, mas ele não era o mesmo de sempre, e sim estranhamente apalermado, com a boca distorcida e os olhos vesgos. Então, silenciosamente, Nástia levantou as mãos e, contraindo fortemente os dedos, como o retardado, levou-os em direção a sua imagem – e tudo ao redor estava tão quieto, e tudo aquilo era tão assustador, e de tal forma não se parecia com a realidade, que a esposa do padre deu um grito e derrubou o regador. E Nástia fugiu. E agora ela não sabia ao certo se realmente aquilo havia acontecido ou se havia sido um sonho. — Chame a Nástia e venha você também – ordenou o padre. Leonid Andrêiev

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Nástia veio e parou junto à soleira. Seu rosto era longo, ossudo, como o do pai, e ela ficava de pé como ele costumava fazer quando conversava: esticando o pescoço um pouco para o lado, com um olhar sombrio sob as sobrancelhas. E, como ele, segurava as mãos atrás do corpo. — Nástia! Por que você faz isso? – padre Vassíli perguntou de maneira severa, porém calma. — O quê? — Sua mãe te viu diante do espelho. Para que fazer isso? Sendo que ele é doente. — Não, ele não é doente. Ele puxa meus cabelos. — E por que você o está imitando? Por acaso gosta do rosto como o dele? Nástia olhou sombriamente para o lado. — Não sei – ela respondeu. E, com uma estranha franqueza, olhou nos olhos do pai e acrescentou resolutamente: – gosto. Padre Vassíli olhava-a atentamente e permanecia em silêncio. — E você não gosta? – Nástia perguntou quase que afirmando. — Não. — Então para que você pensa nele? Eu o mataria. Padre Vassíli teve a impressão de que também agora Nástia estava fazendo uma cara como a do retardado: algo obtuso e animalesco percorreu suas maçãs do rosto e deslocou os olhos. — Saia! – ele falou secamente. Mas Nástia não se moveu do lugar e, com a mesma estranha franqueza, ficou olhando diretamente nos olhos do seu pai. E o rosto dela não estava parecido com a repulsiva máscara do retardado. — E em mim você não pensa – ela falou simplesmente, como uma verdade indiferente. E então, na crescente escuridão do crepúsculo de inverno, entre eles, tão 298

A vida de Vassíli Fiveiski


parecidos e diferentes, ocorreu uma conversa curta e estranha: — Você é minha filha? Por que é que eu não sabia disso? Você sabe? — Não. — Venha e me dê um beijo. — Não quero. — Você não me ama? — Não. Eu não amo ninguém. — Como eu! – e as narinas do padre se inflaram por causa do riso contido. — Você também não ama ninguém? E a mamãe? Ela bebe muito. Eu também a mataria. — E a mim? — Você não. Você conversa comigo. Às vezes eu tenho pena de você. Sabe, é muito difícil quando se tem um filho assim, um abobalhado. Ele é terrivelmente mau. Você ainda não sabe como ele é mau. Ele come baratas vivas. Eu dei dez para ele, e ele comeu todas. Sem se afastar da porta, ela se sentou cuidadosamente na beirada da cadeira, como uma empregada, colocou as mãos sobre os joelhos e ficou esperando. — É enfadonho, Nástia! – o padre falou pensativamente. Sem pressa e solenemente, ela concordou: — Claro que é enfadonho. — E você reza para Deus? — Claro, eu rezo. Apenas à noite, pois de manhã não dá tempo, há muito trabalho. Varra, limpe a cama, lave os pratos, prepare o chá para o Vássia, sirva. Você sabe o quanto há a se fazer. — Como uma empregada – disse o padre Vassíli de maneira indefinida. — Como assim? – Nástia não entendeu. Leonid Andrêiev

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Padre Vassíli permanecia em silêncio, com a cabeça bem abaixada; e ele era enorme e negro contra a janela que branquejava tenuamente, e suas palavras pareciam a Nástia negras e brilhantes, como miçangas. Ela esperou por bastante tempo, mas seu pai permaneceu em silêncio, e ela timidamente o chamou: — Papai! Sem levantar a cabeça, padre Vassíli imperativamente acenou com a mão – uma e outra vez. Nástia suspirou e se levantou, e foi só se virar para a porta que algo farfalhou atrás dela, duas mãos fortes e ossudas a levantaram no ar, e uma voz engraçada sussurrou em seu ouvido: — Me abrace pelo pescoço. Eu vou te levar. — Como assim? Eu já sou grande. — Não faz mal! Segure-se. Era difícil respirar por causa das mãos que a apertavam como arcos de ferro, era preciso se abaixar ao passar pela porta para não bater a cabeça, e ela não sabia se aquilo era bom ou apenas estranho. E ela não sabia se havia imaginado ou se o pai realmente tinha sussurrado: — Tenha pena da mamãe. Mas, preparando-se para dormir e já tendo feito as preces a Deus, Nástia ficou por um longo tempo sentada na cama, refletindo. Suas costas magras, com escápulas pontudas e vértebras da coluna bem demarcadas, estavam fortemente arqueadas; a camisa suja escorregou do ombro pontudo; abraçando os joelhos com as mãos e se balançando de leve, parecida com um pássaro preto zangado que foi alcançado pelo frio enregelante em um campo, ela olhava para a frente com seus olhos que não piscavam, simples e enigmáticos, como os olhos de uma fera. E com teimosia pensativa ela sussurrou: — Mas, apesar de tudo, eu a mataria. Tarde da noite, quando todo mundo estava dormindo, padre Vassíli entrou silenciosamente no quarto e seu rosto era frio e severo. Sem olhar para Nástia, ele deixou o lampião no chão e se inclinou sobre o filho retardado que 300

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dormia em silêncio. Ele estava deitado de costas, inflando o peito de maneira disforme, com os braços estendidos, e sua pequena cabeça comprimida estava jogada para trás, branquejando com o pequeno queixo que parecia ter sido cortado. Dormindo, sob a pálida luz refletida que descia do teto, com as pálpebras fechadas, escondendo a insensatez dos olhos, seu rosto não parecia tão assustador quanto de dia. E ele estava cansado, como o rosto de um ator, extenuado por causa de um papel difícil, e em torno da enorme boca fechada havia a sombra de uma tristeza severa. Como se houvesse duas almas nele, e quando uma dormisse, a outra, onisciente e triste, despertasse. Padre Vassíli se aprumou lentamente e, com o mesmo rosto severo e impassível, sem olhar para Nástia, foi para o seu quarto. Ele caminhava devagar e com calma, com o passo pesado e morto de um pensamento profundo, e a escuridão se dispersava à sua frente, corria para trás em forma de longas sombras e maliciosamente se esgueirava em seu encalço. Seu rosto branquejava intensamente sob a luz da lâmpada, e seus olhos estavam olhando atentamente para a frente, bem à frente, para as profundezas do espaço sem fim – enquanto suas pernas caminhavam lenta e pesadamente. Era tarde da noite e já havia soado o segundo cantar dos galos.

VI Chegou a época do jejum que antecede a Páscoa. O sino que emitia um som surdo começou a tilintar monotonamente, e seus sons cinzentos, tristes e que chamavam discretamente, não conseguiam romper o silêncio do inverno que ainda pairava sobre os campos cobertos de neve. Eles pulavam timidamente da torre do sino para o meio do ar nebuloso, caíam e morriam, e por muito tempo nenhuma pessoa respondeu ao chamado baixo, mas cada vez mais persistente, cada vez mais exigente da pequena igreja. No final da primeira semana, vieram duas velhas, cinzas, nebulosas, surdas, como o próprio ar do inverno agonizante, durante muito tempo ficaram resmungando com as bocas desdentadas e repetiam, repetiam infinitas vezes Leonid Andrêiev

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queixas vagas e entrecortadas que não tinham começo e nem chegavam a um fim. Era como se também as lágrimas e as palavras tivessem envelhecido durante o longo tempo de serviço e desejassem paz. Seus pecados já haviam sido perdoados, mas elas não entendiam isso e continuavam pedindo por algo – surdas e nebulosas, como fragmentos de um sono pesado. Atrás delas veio toda uma série de pessoas; e muitas lágrimas jovens e quentes, muitas palavras jovens, aguçadas e cintilantes, cravaram-se na alma do padre Vassíli. Quando o camponês Semión Mossiáguin se curvou até o chão três vezes e, caminhando com cuidado, seguiu em direção ao padre, este olhava-o de maneira atenta e cortante e permanecia parado numa posição que não era apropriada para o lugar: esticando o pescoço para a frente, cruzando as mãos sobre o peito e beliscando a barba com os dedos de uma delas, Mossiáguin chegou bem perto e ficou surpreso: o padre olhava para ele e ria baixinho, inflando as narinas como um cavalo. — Eu estava te esperando há bastante tempo – disse o padre, dando uma risadinha – por que veio, Mossiáguin? — Me confessar – Mossiáguin respondeu rápido e de bom grado e arreganhou amigavelmente os dentes brancos, tão alinhados que era como se tivessem sido cortados sob medida. — E então, vai se sentir mais leve quando se confessar? – continuava o padre e sorria de maneira alegre e amigável, era essa a impressão que Mossiáguin tinha. E ele respondeu com um sorriso igual: — É claro que vou me sentir mais leve. — E é verdade que você vendeu o cavalo, vendeu a última ovelha e penhorou a carroça? Mossiáguin olhou para o padre com seriedade e insatisfação: seu rosto estava impassível e seus olhos abaixados. E ambos permaneceram em silêncio. Padre Vassíli se virou lentamente para o atril e ordenou: — Bem, diga quais são os seus pecados. Mossiáguin limpou a garganta, fez uma cara de quem estava em serviço e, cautelosamente, inclinando o peito e a cabeça em direção ao padre, começou 302

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a falar em um sussurro alto. E à medida que ele falava, o rosto do padre ia se tornando cada vez mais inacessível e severo, como se estivesse se petrificando sob a saraivada de palavras do camponês que atingiam dolorosamente e que eram entediantes. E ele respirava profundamente e com frequência, como se estivesse sufocando naquela coisa disparatada, estúpida e absurda que era chamada de vida de Semión Mossiáguin e que o cingia como os negros anéis de uma cobra desconhecida. Era como se a própria severa lei da causalidade não tivesse poder sobre essa vida simples e fantástica: tão inesperadamente, tão absurda e burlescamente, ao longo dela se entrelaçavam um pequeno pecado e um grande sofrimento, uma vontade forte e espontânea voltada para uma atividade criadora igualmente espontânea e poderosa – e uma disforme estagnação em algum lugar no limiar entre a vida e a morte. Com a mente clara e levemente zombeteiro, forte como um animal da floresta e tão resistente como se três corações estivessem batendo em seu peito e, quando um deles morria de sofrimento insuportável, os outros dois davam vida a um novo – parecia que ele podia virar de cabeça para baixo a própria terra na qual os seus pés estavam apoiados, desajeitada mas firmemente. Mas, na realidade o que acontecia era o seguinte: ele passava fome constantemente, sua esposa, seus filhos e o gado passavam fome; e seu pensamento perturbado vagueava, como um bêbado que não consegue encontrar a porta de sua própria casa. Nas tentativas desesperadas de construir alguma coisa, de criar alguma coisa, ele se estatelava sobre a terra – e tudo se desfazia, tudo desmoronava, tudo lhe respondia com cruel zombaria e escárnio. Ele era compassivo e acolheu um órfão que adotou, e todos o repreendiam por isso; e o órfão viveu pouco e morreu de constante fome e doença, e então ele mesmo começou a repreender a si mesmo e deixou de entender se era preciso ou não ser compassivo. Parecia que as lágrimas não deveriam secar nunca nos olhos deste homem, gritos de raiva e indignação não deveriam cessar nunca em seus lábios, mas em vez disso ele estava constantemente alegre e brincando e até tinha uma barba absurdamente alegre, vermelho-fogo, na qual todos os pelos pareciam rodopiar e se entrelaçar em uma dança interminável e engenhosa. Participava das rodas de dança em pé de igualdade com jovens moças e rapazes; cantava tristes canções com uma voz aguda e cambiante, e aquele que o ouvisse tinha vontade de chorar, mas ele sorria Leonid Andrêiev

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silenciosa e zombeteiramente. E seus pecados eram insignificantes, formais: que o agrimensor, que ele tinha transportado durante o jejum que antecede o dia de São Pedro, deu-lhe uma torta com ingredientes proibidos no jejum e ele a comeu – e ele ficou falando sobre isso por tanto tempo, como se não tivesse comido uma torta, mas cometido um assassinato; que no ano anterior, antes da comunhão, ele fumou um cigarro – e ele ficou falando sobre isso por muito tempo e penosamente. — Terminei! – disse Mossiáguin alegremente, com outra voz, e limpou o suor da testa. Padre Vassíli virou lentamente para ele a cabeça ossuda. — E quem te ajuda? — Quem ajuda? – repetiu Mossiáguin – ora, ninguém ajuda. O povo mal se alimenta, o senhor sabe. Aliás, Ivan Porfíritch ajudou – o camponês piscou cautelosamente o olho para o padre – deu três puds10 de farinha e vai dar quatro no outono. — E Deus? Semión suspirou e seu rosto se tornou triste. — Deus? Devo concluir que não mereci. Mossiáguin ficou entediado com as perguntas desnecessárias do padre: olhou por cima do ombro para a igreja vazia, contou cautelosamente os fios na barba rala do padre, notou os dentes podres e negros e pensou: “Ele deve comer muito açúcar”. E suspirou. — O que você está esperando? — O que estou esperando? E o que posso esperar? E novamente silêncio. Dentro da igreja estava escurecendo e estava frio, e o frio penetrava sob a camisa do mujique. — Quer dizer que tudo continuará assim? – perguntou o padre, e suas palavras soavam distantes e surdas, como punhados de terra sobre um caixão 10  Medida russa equivalente a 16,38 quilos. (N. da T.)

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que foi colocado na sepultura. — Quer dizer que tudo continuará assim. Quer dizer que tudo continuará assim – repetiu Mossiáguin, escutando as próprias palavras. E aquilo o que havia em sua vida se apresentou diante dele: os rostos famintos das crianças, as censuras, o trabalho árduo e o peso crônico sob o coração, que suscita a vontade de beber vodca e de brigar; e assim será novamente, será por muito tempo, continuamente, até que venha a morte. Piscando várias vezes com os cílios brancos, Mossiáguin ergueu um olhar úmido e enevoado para o padre e encontrou seus olhos brilhantes e afiados – e eles viram um no outro algo de próximo, familiar e terrivelmente triste. Com um movimento inconsciente, eles se inclinaram um para o outro, e padre Vassíli pousou a mão no ombro do camponês; pousou-a leve e suavemente, como uma teia de outono11. Mossiáguin mexeu o ombro amigavelmente, ergueu os olhos com credulidade e disse, sorrindo tristemente com metade da boca: — Mas, quem sabe, as coisas ficarão melhores? O padre silenciosamente retirou a mão e permaneceu calado. Os cílios brancos piscaram mais rápido, os fios na barba vermelho-fogo dançaram ainda mais alegremente, e a língua começou a balbuciar algo inarticulado e ininteligível. — Sim. Então, as coisas não ficarão melhores. É claro, é verdade o que está dizendo… Mas o padre não permitiu que ele terminasse. Batendo moderadamente o pé no chão, ele fuzilou o camponês com um olhar hostil e irado e sibilou para ele como uma cobra-de-água zangada: — Não chore! Não ouse chorar! Ficam chorando como bezerros desmamados. O que eu posso fazer? – ele apontou o dedo para o próprio peito – o que eu posso fazer? Por acaso sou Deus? Peça a Ele. Vamos, peça! Estou te dizendo. Ele deu um empurrão no homem. — Fique de joelhos. 11  No outono, jovens aranhas costumam ser transportadas pelo vento em suas teias, fenômeno que promove sua dispersão no ambiente. (N. da T.)

Leonid Andrêiev

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Mossiáguin postou-se de joelhos. — Reze! Atrás, avançava a igreja desolada e escura e acima da cabeça o padre zangado gritava: “Reze, reze!” E, sem se dar conta, Mossiáguin rapidamente fez o sinal da cruz e começou a fazer reverências até o chão. Por causa dos movimentos rápidos e monótonos da cabeça, da extraordinariedade de tudo o que estava acontecendo, da consciência de que agora ele todo estava subordinado a algum tipo de vontade forte e enigmática, o camponês sentia medo e, por isso, sentia-se especialmente aliviado. Pois neste mesmo medo diante de alguém poderoso e severo nascia a esperança de intercessão e misericórdia. E cada vez mais furiosamente ele pressionava a testa contra o chão frio, quando o padre ordenou brevemente: — Basta. Mossiáguin se levantou, fez o sinal da cruz diante de todos os ícones mais próximos e, quando ele se aproximou novamente do padre, os fiozinhos vermelho-fogo começaram a dançar e a rodopiar alegremente, com feliz prontidão. Agora ele sabia com certeza que as coisas iriam melhorar e ficou esperando calmamente por mais ordens. Mas padre Vassíli só olhou para ele com uma curiosidade severa e o absolveu de seus pecados. Ao sair, Mossiáguin virou-se: no mesmo lugar, escurecia vagamente a figura solitária do padre; a luz fraca de uma vela de cera não conseguia envolvê-la por inteiro, parecia imensa e negra, como se não tivesse limites e contornos definidos e fosse apenas uma parte da escuridão que preenchia a igreja. A cada dia apareciam mais e mais pessoas para se confessar e diante de padre Vassíli se alternavam continuamente rostos enrugados e rostos jovens. Ele seguia interrogando-os de maneira igualmente insistente e severa, e por horas inteiras entravam em seu ouvido falas tímidas e confusas, e a essência de cada discurso era o sofrimento, o medo e uma grande expectativa. Todos falavam mal da vida, mas ninguém queria morrer, e todos esperavam por algo, intensa e apaixonadamente, e não havia um começo para essa espera, e parecia que ela vinha do primeiro ser humano. Ela havia passado por todas 306

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as mentes e corações que já haviam desaparecido do mundo e por aqueles que ainda estavam vivos, e é por isso que ela havia se tornado tão imperiosa e poderosa. E ela se tornou amarga, porque absorveu toda a tristeza das esperanças que não se concretizaram, toda a amargura da fé enganada, toda a angústia ardente da solidão sem limites. A seiva do coração de todas as pessoas, vivas e mortas, a alimentavam, e ela se estendeu sobre a vida como a copa de uma vigorosa árvore. E, em alguns minutos, perdendo-se entre as almas, como um viajante em meio a uma floresta sem fim, ela perdia tudo o que tinha sofrido e que coroava sua cabeça com um pesar severo, e ela própria começava a esperar por algo – esperar impacientemente, esperar ameaçadoramente. Agora ele não queria mais lágrimas humanas, mas elas se derramavam incontrolavelmente, independentemente de sua vontade, e cada lágrima era uma exigência, e todas elas, como agulhas envenenadas, penetravam em seu coração. E com uma vaga sensação de íntimo horror, ele começou a perceber que não era o senhor das pessoas, nem seu vizinho, mas seu criado e escravo, e os olhos brilhantes de grande espera o procuravam e lhe ordenavam – chamavam seu nome. Cada vez mais frequentemente, ele dizia com uma raiva contida: — Peça a Ele! Peça a Ele! E se virava. À noite, as pessoas vivas se transformavam em sombras fantasmagóricas e em uma multidão silenciosa caminhavam junto com ele, pensavam junto com ele – e tornavam transparentes as paredes da casa dele e ridículos todos os cadeados e esteios. E sonhos torturantes e absurdos flamulavam dentro de sua cabeça em forma de uma fita de fogo. Na quinta semana do jejum, quando já era possível sentir o sopro da primavera vindo do campo e o crepúsculo se tornara azul e límpido, a esposa do padre teve um acesso de bebedeira. Durante quatro dias seguidos, ela ficou bebendo, gritando de medo e se debatendo, e no quinto dia, no sábado à noite, ela apagou a lamparina em seu quarto, fez um laço com uma toalha e tentou se enforcar. Mas, assim que o laço começou a sufocá-la, ela ficou assustada Leonid Andrêiev

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e gritou e, como as portas estavam abertas, padre Vassíli e Nástia imediatamente vieram correndo e a soltaram. Tudo se limitou apenas a um susto, e nada mais poderia ter acontecido, já que a toalha estava amarrada desajeitadamente e teria sido impossível se enforcar com ela. A esposa do padre foi quem mais se assustou: ela chorava e implorava por perdão; suas mãos e pés tremiam, a cabeça estremecia e, durante toda a noite, ela não deixava o marido se afastar e tentava se sentar mais perto dele. A seu pedido, acenderam novamente a lamparina apagada em seu quarto e, em seguida, as que estavam diante de todas as imagens12, e parecia que era a véspera de algum grandioso e iluminado feriado. Depois do primeiro minuto de susto, padre Vassíli ficou calmo e friamente afetuoso, até brincou; contou algo muito engraçado sobre sua vida no seminário, depois passou para a tão distante infância e para como costumava roubar maçãs com os meninos. E era tão difícil imaginar que um vigia o levara puxando pela orelha que Nástia não acreditou e não riu, embora o próprio padre Vassíli estivesse rindo e seu riso fosse baixinho e infantil e seu rosto tivesse uma expressão verdadeira e bondosa. Pouco a pouco, a esposa do padre se acalmou, parou de olhar de esguelha para os cantos escuros, e quando Nástia foi mandada para a cama, ela perguntou ao marido, sorrindo de leve e timidamente: — Se assustou? O rosto do padre Vassíli tornou-se rancoroso e insincero, e apenas os lábios sorriram quando ele respondeu: — Claro que me assustei. Que ideia foi essa? A esposa estremeceu, como se por causa de uma brisa repentina, e, desfazendo a franja de seu cachecol quente com dedos trêmulos, pronunciou hesitante: — Não sei, Vássia. Bem, é muita tristeza. E tenho medo de tudo. Tudo me dá medo. Alguma coisa está acontecendo, mas eu não entendo nada, como acontece. Agora está chegando a primavera, depois dela virá o verão. Depois, novamente o outono, o inverno. E de novo nós vamos nos sentar, como estamos sentados agora, você naquele canto, e eu nesse. Não fique bravo, Vássia, eu 12  Na tradição do cristianismo ortodoxo russo, é comum que dentro das casas as pessoas possuam ícones diante dos quais acendem velas. (N. da T.)

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entendo que não pode ser de outra forma. Mas mesmo assim… Ela suspirou e continuou, sem tirar os olhos do cachecol: — Antes pelo menos eu não temia a morte, pensava: quando eu me sentir totalmente mal, vou morrer e pronto. Mas agora também temo a morte. O que posso fazer, Vássienka13, querido? Beber… de novo? Perplexa, ela ergueu os olhos tristes para o padre Vassíli, e neles havia uma tristeza mortal e um desespero sem limites, e um vago e resignado pedido por misericórdia. Na cidade onde Fiveiski havia estudado, certa vez ele viu como um tártaro ensebado levava um cavalo a um esfoladouro: seu casco estava quebrado e pendia preso a alguma coisa, e ele pisava nas pedras diretamente com o osso ensanguentado; estava frio, mas um vapor branco o envolvia em uma nuvem, o pelo molhado de suor brilhava, e seus olhos olhavam fixamente à frente – e eles eram terríveis em sua submissão. E assim eram os olhos da esposa do padre. E ele pensou que, se alguém cavasse uma sepultura, jogasse essa mulher nela com as próprias mãos e a cobrisse viva com terra, estaria procedendo corretamente. A esposa tentava em vão acender com os lábios trêmulos um cigarro apagado há muito tempo e continuava: — De novo ele. Você sabe de quem estou falando. Claro que é uma criança e a gente sente pena dele, mas logo ele vai começar a andar. Ele vai me dilacerar com os dentes. E não recebo ajuda de nenhum lugar. Eu reclamo com você, mas e daí? Nem sei o que fazer. Ela suspirou e fez um gesto com as palmas das mãos para mostrar que não sabia o que fazer. E com ela suspirou todo o cômodo baixo e comprimido, e a multidão silenciosa de sombras noturnas que cercava padre Vassíli começou a se agitar. Elas soluçavam loucamente, estendiam as mãos enfraquecidas e imploravam por misericórdia, por piedade, pela verdade. — Aaa! – respondeu com um gemido longo o peito ossudo do padre. Ele se levantou de um salto, derrubando uma cadeira com o movimento brusco e começou a andar rapidamente pela sala, estremecendo as mãos cru13  Outra variação carinhosa para o nome Vassíli. (N. da T.)

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zadas, sussurrando algo, esbarrando em cadeiras e paredes, como um cego ou um louco. E, esbarrando na parede, ele a apalpava rapidamente com os dedos ossudos e corria de volta; e assim ele circulava na estreita gaiola de paredes mudas, como se fosse uma das sombras fantásticas que tivesse assumido uma imagem terrível e incomum. E, contradizendo estranhamente o movimento frenético do corpo, seus olhos permaneciam imóveis, como os de um homem cego, e havia lágrimas neles – as primeiras lágrimas desde a morte de Vássia. Esquecendo-se de si mesma, a esposa do padre observava o marido com terror e gritava: — Vássia, o que você tem? O que você tem? Padre Vassíli se virou de maneira abrupta, aproximou-se rapidamente da esposa, como se quisesse esmagá-la, e pousou sobre sua cabeça uma pesada mão inquieta. E, permanecendo em silêncio, ele a manteve por um longo tempo, como se estivesse abençoando e protegendo do mal. E falou, e cada som alto dentro da palavra era como o soar de uma lágrima metálica: — Coitada, coitada dela. E de novo começou a caminhar rapidamente, enorme e terrível em seu desespero, como uma fera da qual estão tomando os filhotes. Seu rosto se contorcia freneticamente, e os lábios inquietos quebravam palavras entrecortadas e infinitamente pesarosas: — Coitada. Coitada dela. Todos são coitados. Todos ficam chorando. E não existe ajuda! Oooh!Ele parou e, levantando o olhar parado, transpassando com ele o teto e as trevas da noite de primavera, gritou de modo estridente e frenético: — E você tolera isso! Você tolera! Então, veja só… Ele ergueu alto o punho cerrado, mas a seus pés, agarrando os joelhos com as mãos, a esposa se debatia acometida de histeria e balbuciava, engasgando com lágrimas e gargalhadas: — Pare com isso! Pare! Meu amor, meu querido. Não vou mais fazer is310

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so!O retardado acordou e começou a mugir; Nástia, assustada, veio correndo e os maxilares do padre fecharam-se como se fossem de ferro. Em silêncio e aparentando frieza, ele cuidou da esposa, colocou-a na cama e, quando ela adormeceu, segurando a mão dele em ambas as mãos, ele permaneceu sentado ao lado da cama dela até a manhã seguinte. E durante a noite inteira, até a chegada da manhã, as lamparinas ficaram acesas diante das imagens e parecia ser véspera de um grandioso e iluminado feriado. No dia seguinte, padre Vassíli parecia o mesmo de sempre: frio e calmo, e sem emitir sequer uma palavra sobre o que havia acontecido. Mas em sua voz, quando ele falava com a esposa, no olhar voltado para ela, havia uma ternura discreta que apenas ela podia captar com seu coração atormentado. E essa ternura viril e silenciosa era tão forte que o coração exausto sorriu timidamente e, como o presente mais precioso, conservou o sorriso nas profundezas. Eles falavam pouco entre si, e suas falas concisas eram simples e comuns; eles raramente ficavam juntos, separados pela vida, mas estavam constantemente procurando um pelo outro com o coração cheio de sofrimento; e parecia que nenhuma pessoa, nem mesmo o próprio destino cruel, podia adivinhar com que tristeza desesperançada e ternura eles se amavam. Há muito tempo, desde o nascimento do retardado, eles haviam deixado de ser marido e mulher, e pareciam dois apaixonados ternos e infelizes que não têm esperança de alcançar a felicidade e até o próprio sonho não se atreve a assumir uma forma viva. E a timidez perdida e o desejo de ser bela voltaram para a mulher; ela corava quando o marido via seus braços nus e fez alguma coisa com o rosto e o cabelo que os tornou jovens e novos e estranhamente belos em sua severa tristeza. E quando vinha o terrível acesso de bebedeira, a esposa do padre desaparecia na escuridão de seu quarto, como se escondem os cães que sentiram que a raiva está começando, e suportava sozinha e silenciosamente a luta contra a insanidade e os fantasmas que dela haviam nascido. E toda noite, quando todos dormiam, a esposa do padre se esgueirava furtivamente até a cama do marido e fazia o sinal da cruz sobre sua cabeça, afastando dela a tristeza e os pensamentos malignos. Ela gostaria de beijar a Leonid Andrêiev

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mão dele, mas não se atrevia, e voltava silenciosamente, branquejando vagamente branca na escuridão, como aquelas imagens nebulosas e tristes que, à noite, se erguem sobre os pântanos e sobre as sepulturas das pessoas mortas e esquecidas.

VII O sino quaresmal continuava a soar da mesma forma monótona e triste e parecia que a cada golpe surdo ele adquiria um novo poder sobre a consciência das pessoas; um número cada vez maior delas se reunia, e de toda parte vultos silenciosos e desprovidos de cor, como o badalar do sino, fluíam para a Igreja. A noite ainda reinava sobre os campos desnudos, e os riachos congelados ainda não tinham começado a ranger quando, em todas as veredas, em todas as estradas, iam surgindo pessoas que se moviam em direção a um mesmo objetivo invisível, solitárias e conectadas de alguma maneira, formando uma fila severa e triste. E todos os dias, desde manhã cedo até tarde da noite, diante do padre Vassíli se postavam rostos humanos, ora vivamente iluminados, com todas as suas rugas, pelas chamas amarelas das velas, ora se sobressaindo vagamente dos cantos escuros, como se o próprio ar da Igreja tivesse se transformado em pessoas que esperavam por misericórdia e verdade. As pessoas se apinhavam, se empurrando e batendo os pés no chão desajeitadamente, caíam de joelhos em movimentos desarmônicos e discrepantes, suspiravam e com inexorável perseverança traziam para o padre seus pecados e seu sofrimento. Cada uma delas possuía tanto sofrimento e pesar que seria suficiente para uma dezena de vidas, e o padre atordoado, perdido, tinha a impressão de que todo o mundo vivo lhe trouxe suas lágrimas e tormentos e espera por sua ajuda, espera humildemente, espera imperiosamente. Outrora ele tinha buscado a verdade e agora estava se sufocando com ela, com essa inclemente verdade do sofrimento, e em meio à dolorosa consciência de sua impotência ele tinha vontade de fugir para o fim do mundo, para morrer, para não ver, não ouvir, não saber. Ele chamou para si o sofrimento humano – e o sofrimento veio. Sua alma ardia como um altar da oferta queimada e ele tinha vontade de envolver em um abraço fraterno cada pessoa que se aproximava dele e 312

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dizer: “pobre amigo, vamos lutar juntos e chorar e procurar. Porque o ser humano não recebe ajuda de lugar algum”. Mas não era isso que as pessoas exauridas pela vida esperavam dele, e com angústia, com raiva, com desespero, ele ficava repetindo: — Peça a Ele! Peça a Ele! Elas acreditavam nele com tristeza e iam embora e novas fileiras cinzas avançavam para substituí-las e, novamente, como num frenesi, ele repetia as palavras terríveis e impiedosas: — Peça a Ele! Peça a Ele! E algumas horas, que passavam enquanto ele ouvia a verdade, pareciam-lhe anos, e aquilo que tinha se passado de manhã, antes da confissão, tornava-se pálido e fosco, como todas as imagens do passado distante. Quando ele saía da igreja, era o último a sair, já reinava a escuridão e as estrelas cintilavam tranquilamente e o ar silencioso da noite primaveril acariciava com suavidade. Mas ele não acreditava na tranquilidade das estrelas; ele tinha a impressão que também de lá, daqueles mundos distantes, vinham gemidos e gritos e súplicas surdas por misericórdia. E ele sentia tanta vergonha que era como se tivesse cometido todos os crimes que existem no mundo, tivesse derramado todas as lágrimas, tivesse destruído e rasgado em pedaços os corações humanos. Tinha vergonha das casas comprimidas diante das quais passava, tinha vergonha de entrar em sua casa, onde, por obra do mal e da insanidade, indivisível e descaradamente, reinava a terrível imagem de um ser que era meio criança, meio animal. E, pela manhã, ele ia para a igreja como as pessoas vão para uma execução terrível e vergonhosa, onde todos são carrascos: o céu impassível, o povo perplexo que ri irracionalmente e o seu próprio pensamento inclemente. Cada pessoa que estava sofrendo era um carrasco para ele, servo impotente do Deus todo-poderoso – e havia tantos carrascos quanto pessoas, e havia tantos açoites quanto olhares crédulos e expectantes. Todos estavam implacavelmente sérios e ninguém caçoava do padre, mas a cada minuto ele esperava com temor a explosão de um o riso satânico terrível e tinha receio de virar de costas para as pessoas. Tudo que é cruel nasce pelas costas da pessoa, mas Leonid Andrêiev

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enquanto ela está olhando ninguém se atreve a atacá-la. E ele olha, torturando com seu olhar e, frequentemente, lança olhares para o lado em que Ivan Porfírytch Koprov está atrás de sua escrivaninha. Ele era o único que falava em voz alta na igreja, vendia velas tranquilamente e mandava o vigia e os garotos recolherem dinheiro duas vezes. Em seguida, ficava contando as moedas que tilintavam alto e as organizava em pilhas e frequentemente produzia estalidos com o cadeado; quando todos caíam de joelhos, ele apenas abaixava a cabeça e fazia o sinal da cruz; e era evidente que ele se considerava um homem próximo e necessário a Deus e sabia que sem ele Deus teria dificuldade de ajeitar tudo tão bem e de maneira tão organizada. Fazia tempo, desde o início da quaresma, que ele estava zangado com o padre Vassíli porque ele levava tanto tempo para ouvir as confissões: ele não conseguia entender que grandes e interessantes pecados essas pessoas poderiam ter, sobre os quais valesse a pena conversar por um longo tempo. E atribuía isso à falta de habilidade do padre Vassíli de viver e de lidar com as pessoas. — Você acha que elas irão valorizar isso? – ele dizia ao benevolente diácono, exausto, como todos os clérigos, por causa do pesado trabalho quaresmal – que nada. Vão é caçoar dele. Mas ele gostava do fato de o padre Vassíli ser severo, bem como de sua grande estatura; ele tinha a impressão de que um verdadeiro sacerdote parecia com um rigoroso e honesto gerente, que deve exigir um relatório preciso e fiel. O próprio Ivan Porfírytch se confessava e tomava a comunhão sempre na última semana da quaresma e começava a se preparar para a confissão bem antes, tentando se lembrar e reunir todos os pecados, por menores que fossem. E estava orgulhoso de si mesmo porque seus pecados estavam tão organizados quanto os seus negócios. Na quarta-feira da Semana Santa, quando as forças já começaram a abandonar o padre Vassíli, havia um número especialmente grande de pessoas que queriam se confessar. O último era Trífon, um homem imprestável, aleijado, que vagueava com suas muletas por Znamensk e outras aldeias que ficavam nos arredores. Em vez das pernas, esmagadas há muito tempo, na época em que trabalhava em uma fábrica, e que foram amputadas quase na altura da 314

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barriga, ele tinha pequenos cotos revestidos de pele; a cabeça suja, como que coberta por estopa, estava profundamente assentada sobre os ombros levemente erguidos por causa das muletas e tinha uma barba igualmente suja e emaranhada e olhos insolentes de mendigo, bêbado e ladrão. Era repugnante e sujo, como um animal, rastejava no pó e na sujeira como um réptil, e sua alma era igualmente escura e enigmática, como as almas dos animais. Era difícil entender como ele poderia viver sendo desse jeito, mas ele vivia, embebedava-se, brigava e até tinha mulheres, algumas mulheres ficcionais, implausíveis, tão pouco parecidas com seres humanos como ele próprio. Padre Vassíli teve que se inclinar bastante para tomar a confissão do aleijado e através do fedor abertamente calmo de seu corpo, dos parasitas que rastejavam pegajosamente por sua cabeça e pescoço como ele próprio rastejava pela terra, revelou-se ao padre toda a terrível e inadmissível miséria vergonhosa dessa alma ferida. E com uma clareza temível ele entendeu de que maneira horrível e irrevogável esse homem havia sido privado de tudo o que era humano e a que ele tinha o mesmo direito que os reis em seus palácios, que os santos em suas celas. E estremeceu. — Pode ir! Deus perdoará seus pecados – ele disse. — Espere, tenho mais a dizer – disse o mendigo em voz rouca, erguendo o rosto que tinha ficado rubro. Então contou como dez anos antes havia estuprado uma adolescente na floresta e deu a ela, que chorava, três copeques14; mas depois ficou com pena de seu dinheiro, estrangulou a garota e a enterrou. Jamais a encontraram. Ele já havia contado essa história dez vezes para dez sacerdotes diferentes e por causa de tantas repetições, ela começou a lhe parecer simples, comum e como que não relacionada a ele, como uma lenda qualquer. Às vezes ele diversificava a história: substituía o verão pelo outono e descrevia a menina ora como loira, ora como morena, mas os três copeques permaneciam inalterados. Alguns não acreditavam e riam dele, alegavam que nenhuma garota havia desaparecido, nem sido assassinada nas redondezas dez anos atrás; o pegavam em incontáveis e grosseiras contradições e argumentavam com obviedade que ele havia inventado toda essa terrível história por causa da 14  Um copeque designa a centésima parte de um rublo, moeda da Rússia. (N. da T.)

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bebedeira, enquanto ficava largado na floresta. E isso o levava à fúria: ele gritava, jurava por Deus, mencionando o diabo tão frequentemente quanto mencionava Deus, e começava a contar detalhes tão repugnantes e sórdidos que até os padres mais velhos coravam e ficavam indignados. E agora ele esperava para ver se o padre de Znamienskoie acreditaria ou não, e ficou satisfeito quando o padre acreditou: se afastou dele, ficou pálido e levantou a mão, como para dar um golpe. — Isso é verdade? – padre Vassíli perguntou em voz surda. O mendigo começou a fazer o sinal da cruz rapidamente: — Sim, por Deus, é verdade. Raios me partam se… — Mas o castigo por uma coisa dessas é o inferno! – gritou o padre – você entende? O inferno! — Deus é misericordioso – o mendigo resmungou sombriamente e com ar de ofendido. Mas em seus olhos rancorosos e assustados era possível ver que ele mesmo esperava pelo inferno e já se acostumara com isso, assim como com sua estranha história sobre a garota estrangulada. — Na terra, o inferno, no céu, o inferno. Onde está o seu paraíso? Se você fosse um verme, eu o esmagaria com o pé, mas você é um homem! Um homem! Ou um verme? Ora, quem é você, diga! – gritava o padre, e seu cabelo balançava como se movido pelo vento – onde é que está o seu Deus? Por que ele te abandonou? “Ele acreditou!”, pensava alegremente o mendigo, sentindo-se sob as palavras do padre como se estivesse sob água quente. Padre Vassíli ficou de cócoras e, extraindo um orgulho estranho e doloroso da humilhação de sua pose incomum, começou a sussurrar veementemente: — Ouça! Não tenha medo, não vai ter inferno. Isso eu te digo com certeza. Eu mesmo matei uma pessoa. Uma menina. O nome dela é Nástia. E não vai ter inferno! Você vai para o paraíso. Entende, com os santos, com os justos. Acima 316

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de todos. Acima de todos, estou te dizendo! Naquela noite, padre Vassíli voltou para casa tarde, quando todos já tinham jantado. Ele estava muito cansado e pálido, e molhado até os joelhos, e coberto de lama como se tivesse ficado vagando pelos campos úmidos por um longo tempo, sem rumo e sem olhar por onde andava. Em casa se preparavam para a Páscoa, e a esposa do padre estava ocupada, mas, a cada vez que surgia da cozinha por um minuto, olhava com preocupação para o marido. E ela tentava se mostrar alegre e escondia a preocupação. Mas à noite, quando, como de costume, ela veio na ponta dos pés e, tendo feito o sinal da cruz três vezes sobre a cabeceira da cama, quis ir embora, foi impedida por uma voz baixa e assustada, que não se parecia com a voz severa do padre Vassíli: — Nástia! Eu não posso ir para a igreja. Havia horror na voz e algo de infantil e suplicante. Era como se o infortúnio fosse tão enorme que já não era possível e nem necessário se cobrir de orgulho e das palavras escorregadias e enganosas atrás das quais as pessoas escondem seus sentimentos. A esposa ficou de joelhos junto da cama do marido e o olhou no rosto: sob a luz levemente azulada da lamparina, este parecia imóvel e pálido como o de um cadáver, e apenas os olhos negros olhavam de esguelha para ela; e ele estava deitado de costas, como alguém gravemente doente ou uma criança que se assustou com um sonho terrível e não ousa se mover. — Reze, Vássia! – sussurrou a esposa, acariciando suas mãos frias e dobradas sobre o peito, como as de um defunto. — Não posso. Estou com medo. Acenda a luz, Nástia! Enquanto ela acendia a lâmpada, padre Vassíli começou a se vestir, lenta e desajeitadamente, como alguém gravemente doente, que há muito não se levanta da cama. Não conseguia abotoar sozinho os colchetes de gancho da batina e pediu à esposa: — Abotoe pra mim. — Aonde você vai? – se espantou a esposa. Leonid Andrêiev

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— A lugar algum. Só me vesti. E ele começou a andar lentamente pelo quarto, com passos inseguros e dobrando debilmente as pernas. Sua cabeça estremecia com tremores regulares e quase imperceptíveis, e seu queixo pendia sem forças; ele o erguia com esforço, passando a língua pelos lábios ressecados e ásperos, mas depois de um minuto ele caía novamente e expunha o orifício negro da boca. Algo imenso e inexprimivelmente terrível se aproximava, como um vazio e um silêncio sem limites. E não havia terra, nem povo, nem mundo além das paredes da casa – lá havia o mesmo fosso escancarado e sem fundo e o mesmo silêncio eterno. — Vássia! Isso é mesmo verdade? – perguntou a esposa, gelando de medo. Padre Vassíli olhou para ela com olhos opacos, sem brilho, e tomado por uma momentânea onda de força, acenou com a mão: — Deixa disso. Deixa disso. Fique quieta. E novamente começou a andar, e novamente o queixo pendeu sem forças. E assim ele ficou andando devagar, como o próprio tempo, e na cama, a mulher pálida, gelando de medo, permanecia sentada e, lentamente, como o tempo, seus olhos se moviam e observavam. E algo enorme se aproximava. Eis que veio e tomou forma e os envolveu com um olhar vazio e abrangente – enorme como o vazio, terrível como o silêncio eterno. Padre Vassíli parou diante da esposa e, olhando-a com olhos embaciados, disse: — Está escuro. Acenda mais uma luz. “Ele está morrendo”, pensou a esposa e, com as mãos trêmulas, deixando cair os fósforos, acendeu uma vela. E ele pediu novamente: — Acenda outra. E ela acendia e continuava acendendo e já ardiam muitas lâmpadas e velas. Como uma pequena estrela azul, a lamparina se perdia no brilho vivo e ousado do fogo, e parecia que o grande e brilhante feriado já havia chegado. E lento como o tempo, ele silenciosamente se movia em meio ao vazio radiante. Agora que o vazio brilhava, a esposa viu e entendeu por um momento curto, mas terrível, que ele era solitário, não pertencia a ela e nem a ninguém, e nem ela nem ninguém podia mudar isso. Se as pessoas boas e fortes de todo 318

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o mundo se reunissem, o abraçassem e lhe dissessem palavras de consolo e afeição, ele permaneceria igualmente solitário. E novamente pensou, sentindo-se gelar: “Ele está morrendo”. Assim a noite foi passando. E quando ela estava se aproximando de seu fim, os passos de padre Vassíli se tornaram mais firmes, ele se aprumou, olhou algumas vezes para a esposa e disse: — Por que tantas luzes? Apague-as. A esposa apagou as velas e lâmpadas e começou a falar hesitantemente: — Vássia! — Amanhã conversamos. Bem, vá para seu quarto. Precisa dormir. Mas a esposa não ia embora e implorava por algo com os olhos. E, ainda alto e forte como antes, ele se aproximou e, acariciou a cabeça dela como se ela fosse uma criança. — É isso, mulher! – ele disse e sorriu. Mas seu rosto estava pálido com a palidez transparente da morte e ao redor dos olhos havia círculos negros: como se a noite tivesse se escondido lá e não quisesse ir embora. De manhã padre Vassíli anunciou para sua esposa: ele deixará de ser padre e, no outono, após juntar dinheiro, eles irão para longe – ainda não se sabia para onde. E o retardado ficará: ele será deixado com alguém que irá criá-lo. E a esposa do padre chorava e ria, e pela primeira vez após o nascimento do retardado ela beijou o marido nos lábios, corando encabulada. Nessa época Vassíli Fiveiski tinha quarenta anos e sua mulher trinta e quatro.

VIII Por três meses a alma deles descansou; e novamente a esperança e a alegria perdidas retornaram à casa deles. Com toda a força dos sofrimentos vivenciados, a esposa do padre acreditou em uma nova vida, uma vida comLeonid Andrêiev

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pletamente nova e especial, que outras pessoas não têm e nem podem ter. Ela sentia vagamente o que estava acontecendo no coração de seu marido, mas via sua disposição diferente, calma e equilibrada, como a chama de uma vela; via o brilho diferente de seus olhos, que não existia antes, e acreditava em sua força. Algumas vezes, padre Vassíli tentava conversar com ela sobre aonde iriam e como viveriam, mas ela não queria escutá-lo: palavras precisas e definidas afugentavam seu sonho amplo e sem forma, e de alguma maneira estranha e terrível aproximavam o futuro do passado doloroso. Ela só queria uma coisa: que fosse longe, além dos limites do mundo que ela conhecia e que continuava assustador. Como antes, aconteciam acessos de bebedeira, mas passavam rapidamente, e ela não tinha medo deles: acreditava que logo deixaria de beber por completo. “Lá vai ser diferente, lá não vou precisar beber”, pensava ela, iluminada pela luz de um sonho indefinido e belo. Quando o verão chegou, ela começou a ir ao bosque e ao campo novamente e passava lá dias inteiros, retornava ao anoitecer e esperava no portão o padre Vassíli voltar da ceifa do feno. A escuridão da curta noite de verão aumentava silenciosa e lentamente; e parecia que a noite nunca chegaria e nunca extinguiria o dia; e apenas ao olhar para os contornos vagos das mãos, pousadas sobre os joelhos, ela sentia que havia algo entre ela e as suas mãos, e esse algo era a noite com sua névoa transparente e misteriosa. E quando ela já começava a se preocupar, chegava o padre Vassíli, alto, forte, alegre, cercado por um cheiro forte e agradável de grama e campo. Seu rosto estava escuro por causa da noite, mas seus olhos brilhavam carinhosamente, e em sua voz moderada parecia estar escondida a incomensurável imensidão dos campos e dos cheiros de ervas e a alegria de um longo trabalho. — É bom estar no campo – dizia ele e ria discretamente, com um riso enigmático e vago, como se estivesse zombando de alguém ou de si mesmo. — É, Vássia. Claro que é bom! – dizia a esposa de maneira convincente, e eles iam jantar. Depois da vastidão dos campos, padre Vassíli tinha a impressão de que a pequena sala era apertada; ele se envergonhava de seus longos braços e pernas, e os movia de uma maneira tão desajeitada e engraçada que a esposa brincava alegremente: 320

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— Seria divertido obrigá-lo a escrever um sermão. Você não conseguiria nem segurar a pena agora – dizia ela. E eles riam. Mas quando o padre Vassíli ficava só, seu rosto se tornava sério e severo: sozinho com seus pensamentos, ele não ousava fazer piadas e rir. E em seu olhar havia severidade e uma espera orgulhosa, pois ele sentia que também nestes dias de paz e esperança a mesma fatalidade cruel e enigmática pairava sobre a sua vida. No dia vinte e sete de julho, à noitinha, padre Vassíli e um empregado estavam trazendo feixes de feno do campo. A sombra da floresta próxima se tornou oblíqua e comprida, e sombras igualmente longas e oblíquas vinham de todos os lugares e cobriam o campo inteiro, quando um som fino e quase inaudível, estranho por sua extemporaneidade, veio do lado de Znamienskoie. Padre Vassíli se virou rapidamente: lá, onde, em meio aos salgueiros, escurecia o telhado de sua casinha, pairava imóvel uma espessa nuvem de fumaça negra e resinosa, e abaixo dela serpenteava uma chama como que comprimida, rubra, sem luz. Levaram um tempo para jogar os feixes da carroça e cavalgar até a aldeia, e quando chegaram já escurecia e o incêndio estava acabando: os negros pilares carbonizados queimavam como velas, os azulejos do fogão desnudo branquejavam vagamente e a fumaça branca, parecida com vapor, se estendia próximo ao chão. Ela envolvia as pernas dos homens que apagavam o fogo e, contra o pano de fundo do clarão do incêndio que se extinguia, eles pareciam pairar no ar em forma de sombras planas e escuras. A rua toda estava tomada por pessoas; os homens se empurravam em meio à sujeira recente, causada pela água derramada, conversavam alto e agitadamente e olhavam atentamente uns para os outros, como se não reconhecessem de imediato nem os rostos familiares, nem as vozes. Haviam trazido o rebanho do campo e ele se agitava aflito. As vacas mugiam, as ovelhas olhavam fixamente com seus olhos vidrados e proeminentes, mantinham-se próximas às pernas das pessoas e recuavam bruscamente com medo irracional, levantando poeira com os cascos intermitentemente. As mulheres Leonid Andrêiev

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corriam atrás delas, e por toda a aldeia se ouvia um chamado uniforme: kiti-kiti-kiti. E dessas figuras escuras com faces escuras, como que de bronze, desse chamado uniforme e estranho, das pessoas e dos animais fundidos em um único sentimento elementar de medo, soprava algo selvagem, primitivo. O dia estava sem vento e só a casa do padre havia queimado. Segundo contaram, o fogo começou no quarto onde descansava a esposa do padre, que estava bêbada – provavelmente a partir de um cigarro ou de um fósforo jogado descuidadamente. Todas as pessoas estavam no campo; e conseguiram salvar apenas o retardado assustado e algumas coisas, mas a própria esposa do padre se queimou gravemente, e eles a tiraram quase sem vida, inconsciente. Quando estavam contando isso ao padre Vassíli, esperavam por uma explosão de pesar e lágrimas, e ficaram surpresos: esticando o pescoço para a frente, ele escutava atento e concentrado, com os lábios cerrados tensamente; e sua aparência era tal, que era como se já soubesse o que estava sendo dito e só estivesse confirmando a história. Como se nessa curta e louca hora, enquanto galopava furiosamente na carroça saltitante, permanecendo em pé, com os cabelos despenteados e os olhos fixos na coluna de fogo, ele tivesse adivinhado tudo: por que deveria acontecer o incêndio, e por que todos os bens e a esposa deveriam ser destruídos, mas o retardado e Nástia ficar incólumes. Ele permaneceu em silêncio com os olhos baixos por um momento e, jogando a cabeça para trás, de maneira resoluta e direta, atravessou a multidão até a casa do diácono, onde a esposa moribunda havia encontrado abrigo. — Onde ela está? – ele perguntou em voz alta para as pessoas caladas. E calados eles lhe indicaram onde. Ele se aproximou, abaixou-se bastante em direção à massa disforme que gemia abafadamente, viu a bolha branca inteiriça que terrivelmente substituía o rosto familiar e querido, recuou bruscamente, tomado pelo horror, e cobriu o rosto com as mãos. A esposa do padre começou a se agitar ligeiramente; provavelmente, ela havia voltado a si e precisava dizer alguma coisa, mas, em vez de palavras, um som rouco, abafado e entrecortado saía de sua garganta. Padre Vassíli tirou as mãos do rosto: não havia lágrimas nele, havia inspiração e severidade, como no rosto de um profeta. E quando ele falou, pausadamente e em voz alta, como falam com os surdos, em sua voz ressoava uma fé inabalável e terrível. 322

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Nela não havia nada de humano, trêmulo e próprio dela; apenas alguém que havia experimentado a inexplicável e terrível proximidade de Deus poderia falar assim. — Em nome de Deus, você está me escutando? – ele exclamou – estou aqui, Nástia. Estou aqui, perto de você. E as crianças também estão aqui. Aqui está Vassíli. Aqui está Nástia. Olhando para o terrível e imóvel rosto da esposa do padre, não era possível dizer se ela conseguia ou não escutar alguma coisa. E, aumentando ainda mais o tom de voz, padre Vassíli continuou, voltando-se para a massa disforme e queimada: — Me perdoe, Nástia. Eu destruí você em vão. Destruí. Me perdoe, meu único amor. E abençoe as crianças em seu coração. Aqui estão eles: aqui está a Nástia, aqui está o Vassíli. Abençoe. E vá em paz. Não tenha medo da morte. Deus te perdoou. Deus te ama. Ele te dará paz. Vá em paz. Lá você verá o Vássia. Vá em paz. Todos foram embora, sofrendo e chorando, e levaram o retardado adormecido. Apenas padre Vassíli ficou com a moribunda – por toda a curta noite de verão, em cuja chegada a esposa do padre não havia acreditado. Ele ficou de joelhos e, pousando a cabeça perto da moribunda, sentindo o cheiro leve e terrível da carne queimada, começou a chorar derramando lágrimas silenciosas e abundantes de insuportável pena. Ele chorava por ela, jovem e bonita, que credulamente esperava por alegria e carinho; por ela, que havia perdido o filho; por ela, insana e digna de pena, envolvida pelo medo, perseguida por fantasmas; ele chorava por ela, que esperava por ele no crepúsculo de verão, dócil e iluminada. Era o corpo dela, um corpo mal-amado e terno que o fogo havia devorado, e ele estava cheirando daquele jeito. O que ela havia feito: gritado, se debatido, chamado pelo marido? Padre Vassíli olhou em volta ferozmente com os olhos embaçados e se levantou. Tudo estava quieto – tão quieto como somente acontece quando se está na presença da morte. Ele olhou para a esposa: ela estava imóvel com aquela peculiar imobilidade de um cadáver, quando todas as dobras de roupas e cobertores parecem esculpidas de pedra fria, quando as cores vibranLeonid Andrêiev

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tes da vida desbotam nas roupas e são como que substituídas por pálidas cores artificiais. A esposa do padre havia morrido. A noite morna e suave entrava pela janela aberta e, em algum lugar distante, enfatizando o silêncio do quarto, os grilos estridulavam harmoniosamente. Perto da lamparina, agitavam-se silenciosamente as mariposas que haviam entrado pela janela, caíam e, com doentios movimentos tortuosos, lançavam-se novamente em direção ao fogo, às vezes desaparecendo na escuridão, às vezes branquejando como flocos de neve rodopiantes. A esposa do padre havia morrido. — Não! Não! – o padre falou alto e com medo – não! Não! Eu creio. Você está certo. Eu creio. Ele caiu de joelhos, depois encostou o rosto no chão manchado, em meio a tiras de algodão sujo e curativos – como que sedento por se transformar em cinzas e se misturar a elas. E com o deleite da humilhação sem limites, banindo de sua fala a própria palavra “eu”, disse: — Creio! E rezou novamente, sem palavras, sem pensamentos, com a oração de todo o seu corpo mortal, que no fogo e na morte conhecera a inexplicável proximidade de Deus. Ele não sentia mais sua própria vida – como se a eterna ligação entre corpo e espírito tivesse se rompido e, livre de todas as coisas terrenas, livre de si mesmo, o espírito subisse a alturas desconhecidas e misteriosas. Os horrores da dúvida e dos pensamentos torturantes, a raiva passional e os ousados gritos de orgulho indignado de uma pessoa – tudo foi jogado às cinzas, junto com o corpo caído; e apenas o espírito, tendo rompido os apertados grilhões de seu “eu”, vivia uma misteriosa vida de contemplação. Quando padre Vassíli se ergueu, já estava claro, e um raio de sol, comprido e vermelho, pousava como uma mancha brilhante sobre as roupas petrificadas da defunta. E isso o surpreendeu, já que a última coisa de que ele se lembrava era de uma janela escura e de mariposas voando ao redor do fogo. Algumas mariposas queimadas jaziam em montes escuros perto da lâmpada, 324

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que ainda ardia com uma luz amarela quase imperceptível; uma cinzenta, peluda, com uma cabeça grande e feia, ainda estava viva, mas não tinha forças para voar e rastejava impotente pelo vidro. Ela provavelmente sentia dor, agora ela estava procurando a noite e a escuridão, mas de todos os lados a luz impiedosa se derramava sobre ela e queimava o pequeno e feio corpo, nascido para a escuridão. Com desespero, ela começava a estremecer as asinhas curtas e chamuscadas, mas não conseguia se elevar no ar e, novamente, com movimentos angulosos e tortos, pendendo para um lado, ficava rastejando e procurando. Padre Vassíli apagou a lâmpada, jogou pela janela a mariposa trêmula e, bem-disposto, como depois de um sono profundo, repleto de uma sensação de força, novidade e calma incomum, foi ao jardim do diácono. Lá ele ficou andando por uma vereda reta durante um longo tempo, com as mãos postadas atrás das costas, tocando com a cabeça os galhos baixos de macieiras e cerejeiras, caminhando e pensando. O sol começou a aquecer a cabeça dele através dos espaços entre a folhagem das árvores e, ao fazer a curva, a luz penetrava em seus olhos numa torrente de fogo e o cegava; as maçãs parcialmente comidas por larvas caíam, com um som abafado, e sob as cerejeiras uma galinha com uma dúzia de pintinhos amarelos e fofos cavava a terra seca e solta e cacarejava – mas ele não via nem o sol, nem as maçãs caindo, e pensava. E seus pensamentos eram esquisitos – brilhantes e limpos, eram como o ar de uma manhã clara, e eram novos: pensamentos assim nunca haviam passado por sua cabeça, obscurecida por pensamentos amargos e pesarosos. Ele pensava que onde ele via o caos e um contrassenso maligno, ali um caminho correto e reto havia sido traçado por uma mão poderosa. Através do crisol de desastres, separando-o forçadamente de casa, de sua família, das preocupações fúteis com a vida, uma poderosa mão o conduzia a um grande feito, a um grande sacrifício. Deus transformara toda a sua vida em um deserto, mas apenas para que ele não ficasse vagueando por velhas e trilhadas estradas, por caminhos tortuosos e ilusórios, como as pessoas ficam vagueando, mas buscasse na ilimitada e livre vastidão um caminho novo e ousado. A coluna de fumaça e fogo de ontem – será que não foi a mesma coluna de fogo que havia mostrado o caminho para os judeus no deserto sem estradas? Ele pensava: “Deus, será que minhas parcas forças serão suficientes?” – mas a resposta foi Leonid Andrêiev

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uma chama que iluminou sua alma, como um novo sol. Ele havia sido eleito. Ele, Vassíli Fiveiski, aquele que insana e sacrilegamente se queixava de seu destino, havia sido eleito para realizar um feito desconhecido e um sacrifício desconhecido. Ele havia sido eleito. Mesmo que a terra se abra sob os seus pés e o inferno olhe para ele com seus olhos vermelhos e astutos, ele não irá acreditar no próprio inferno. Ele havia sido eleito. E acaso a terra sob os seus pés não é firme? Padre Vassíli parou e bateu o pé no chão. A galinha assustada se pôs em guarda e começou a cacarejar com preocupação, chamando os pintinhos. Um deles estava longe e correu rapidamente para atender ao chamado, mas no caminho foi capturado e erguido por mãos grandes, ossudas e quentes. Sorrindo, Padre Vassíli soprou no pintinho amarelinho seu hálito quente e úmido, juntou suavemente as mãos em concha, como um ninho, pressionou-as cuidadosamente contra o peito e, novamente, começou a caminhar pela longa vereda. — Que feito? Eu não sei. Mas será que posso arrogar-me o direito de saber? Ora, eu tinha ciência do meu destino e o chamava de cruel, e esse meu saber era uma mentira. Ora, eu pensei que ia ter um filho e um monstro, disforme, sem razão, entrou em minha casa. Ora, pensei em multiplicar meus bens e abandonar a minha casa, mas ela me abandonou antes, queimada pelo fogo celeste. E este é o meu saber. E ela, uma mulher imensamente infeliz, ultrajada em seu próprio ventre, que derramara todas as lágrimas e que se estarrecera com todos os horrores? Ora, ela estava esperando por uma vida nova na terra e essa vida seria pesarosa – e agora ela está deitada lá, morta e agora sua alma está rindo e chama o seu saber de mentira. Ele sabe. Ele me deu muito: ele me deu a chance de ver a vida e experimentar o sofrimento e com o gume de minha tristeza penetrar no sofrimento das pessoas; ele me deu a chance de sentir sua grande expectativa e me deu o amor por elas. Acaso elas não estão esperando, e eu não as amo? Queridos, irmãos! O Senhor apiedou-se de nós, chegou a hora da misericórdia divina! Ele beijou a cabecinha fofa do pintinho e continuou: 326

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— O meu caminho. Mas será que uma flecha lançada por uma mão forte pensa sobre seu caminho? Ela voa e perfura o alvo, submissa à vontade de quem a enviou. Foi-me dado ver, foi-me dado amar, e o que resultar desta visão e deste amor será a sua santa vontade, será o meu feito, o meu sacrifício. O pintinho, aquecido pela mão morna, toldou os olhos e adormeceu, e o padre sorriu. — Veja só, basta apertar as mãos e ele morrerá. Mas ele está deitado em minhas mãos, junto ao meu peito e dorme credulamente. E acaso eu não estou na mão Dele? E será que posso me atrever a não acreditar na misericórdia divina, quando esse pintinho acredita na minha bondade humana, no meu coração humano?Ele riu suavemente, revelando os dentes pretos e podres e o sorriso se espalhou em milhares de ruguinhas iluminadas por seu rosto severo e inacessível, como se um raio de sol tivesse começado a cintilar sobre a água escura e profunda. E foram-se os grandiosos e importantes pensamentos, assustados pela felicidade humana, e por muito tempo havia apenas a alegria, apenas o riso, a luz do sol e o delicado e fofo pintinho adormecido. Mas eis que as rugas desapareceram, o rosto tornou-se severo e solene, e os olhos começaram a brilhar com inspiração. O maior, o mais importante se apresentou diante dele e seu nome era: milagre. Lá, seu pensamento ainda humano, demasiadamente humano, não ousava espiar. Lá era a fronteira do pensamento. Lá, nas profundezas sem fim do sol, um mundo novo estava se delineando de maneira pouco nítida e ele já não era mais terreno. Um mundo de amor, um mundo de justiça divina, um mundo de rostos sem medo, não maculados por rugas de sofrimento, fome e doenças. Esse mundo brilhava nas profundezas sem fim do sol como um diamante enorme e monstruoso, e era doloroso e assustador olhar para ele com olhos humanos. E, curvando humildemente a cabeça, padre Vassíli pronunciou: — Que seja feita a sua santa vontade. Apareceram várias pessoas no jardim: o diácono, sua esposa e muitas outras. Elas viram o padre de longe e, acenando amigavelmente com a cabeça, dirigiram-se apressadamente ao seu encontro, ao chegarem mais perto diminuíram o passo e pararam aturdidas, como se para diante do fogo, diante Leonid Andrêiev

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da água enfurecida, diante do olhar tranquilo e enigmático de alguém que conheceu a verdade. — Por que estão olhando assim para mim? – padre Vassíli perguntou surpreso. Mas as pessoas não se moviam e continuavam olhando. Diante delas estava um homem alto, completamente desconhecido, totalmente estranho e que os distanciava de si com algo poderosamente calmo. Ele era sombrio e assustador, como uma sombra de outro mundo, mas um faiscante sorriso se espalhava por sua face em pequenas rugas iluminadas, como se o sol estivesse cintilando na água negra e profunda. E nas grandes mãos ossudas ele segurava um pintinho rechonchudo e amarelo. — Por que estão olhando assim para mim? – repetiu, sorrindo – por acaso sou algum prodígio?

IX Todos podiam ver que padre Vassíli Fiveiski estava se desfazendo apressadamente das últimas coisas que o ligavam ao passado e às preocupações fúteis com a vida. Sem demora, ele trocou correspondências com sua irmã, que morava na cidade, e providenciou a partida de Nástia para que fosse morar com ela; e não hesitou nem mesmo por um dia em mandar a filha à cidade, temendo que o amor de pai se fortalecesse em seu coração e tirasse muito do que deveria dispensar às pessoas. Nástia partiu sem alegria, nem tristeza; ela tinha ficado satisfeita por sua mãe ter morrido e só lamentava o fato de o retardado não ter morrido queimado também. Já sentada na carroça, usando um vestido antiquado, ajustado a partir de um vestido de sua mãe, e um chapéu infantil que tinha sido colocado torto, mais parecida com uma moça feia, estranhamente vestida, do que com uma adolescente, ela olhava indiferentemente com seus olhos de lobo para o diácono que se azafamava e falava com a voz seca de seu pai: — Deixe disso, senhor diácono. Estou bem acomodada, vou chegar bem. 328

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Adeus, papai. — Adeus, Nástienka. Estude, não seja preguiçosa. A carroça deu um solavanco, sacudindo Nástia, porém, já no momento seguinte ela voltou a ficar aprumada, como uma vara, e não balançava para os lados quando a carroça passava pelos sulcos da estrada, mas apenas dava pulinhos no assento. O diácono tirou um lenço para acenar para a menina que partia, mas Nástia não se virou; e, abanando a cabeça com censura, o diácono com um longo suspiro assoou seu nariz no lenço e o colocou de volta no bolso. Assim ela se foi para nunca mais voltar a Znamienskoie. — E você, padre Vassíli, deveria enviar seu filho também. Pois será difícil para você com apenas uma cozinheira para ajudar. Ela é uma mulher simplória e ainda por cima surda – disse o diácono, quando a poeira já havia assentado após a carroça passar. Padre Vassíli olhou pensativamente para ele. — E jogar o meu pecado sobre as costas de outras pessoas? Não, diácono. O pecado é meu e sou eu quem tem o dever de ficar com ele. De alguma forma vamos conseguir sobreviver, o velho e a criança, não é mesmo, diácono? Ele sorriu terna e amigavelmente, achando graça, inofensivamente, de alguma coisa que só ele sabia, e deu um tapinha no ombro rechonchudo do diácono. Padre Vassíli transferiu aos clérigos o direito ao uso de sua terra, acordando para manter consigo uma pequena quantia para a subsistência, “pensão de viúva”, como ele a chamava. — Talvez, nem isso vou cobrar – ele disse enigmaticamente, com um sorriso amigável, achando graça, inofensivamente, de alguma coisa que só ele sabia. E ele fez ainda mais uma coisa: designou Mossiáguin, que já estava ficando inchado por causa da fome, para ser empregado de Ivan Porfírytch. Este último a princípio enxotou Mossiáguin quando ele o procurou, mas, depois de falar com o padre, não apenas aceitou o camponês, como também enviou ao próprio padre Vassíli tábuas para a construção da casa. E para a sua esposa, Leonid Andrêiev

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eternamente calada e eternamente grávida, disse: — Lembre-se das minhas palavras: esse padre ainda vai aprontar alguma coisa. — Que coisa? – a esposa perguntou com indiferença. — Alguma coisa. Só que como não me diz respeito eu fico calado. Senão… – ele olhou de maneira evasiva pela janela, para a estrada que levava à cidade provincial. E não se sabe de onde, se das palavras enigmáticas do administrador da paróquia, ou se de outra fonte qualquer, rumores vagos e alarmantes sobre o padre de Znamienskoie começaram a correr pela aldeia e depois se espalharam por outros lugares. Como a fumaça cheia de fuligem de um incêndio florestal distante, eles se moviam devagar e silenciosamente, e ninguém percebia sua chegada, e só depois de olharem uns para os outros e para o sol desbotado as pessoas entendiam que algo novo, incomum e alarmante havia chegado. Em meados de outubro, a nova casa havia sido reconstruída, mas só tiveram tempo de cobrir o telhado e fazer o acabamento completo em apenas metade dela; a outra metade, sem a armação do telhado e sem o assoalho de tábuas, com as janelas vazias sem batentes, prendia-se à parte habitada como um esqueleto a uma pessoa viva, e à noite parecia abandonada e assustadora. O padre Vassíli não providenciou móveis novos: em todos os quatro quartos, entre as paredes nuas de toras, onde as gotículas de resina âmbar ainda não tinham tido tempo de endurecer, havia duas banquetas sem pintura, uma mesa e as camas. A cozinheira surda e atoleimada não acendia direito o fogão à lenha e as estufas, os quartos sempre cheiravam a fumaça, e muitas vezes a cabeça doía por causa da fumaça, que rastejava pelo chão sujo, cheio de pegadas, em forma de uma nuvem plúmbea. E era frio lá dentro. Em dias de frio mais severo, o lado interior dos vidros ficava coberto por uma camada branca de geada fofa, e uma meia-luz branca e fria reinava na casa; desde o começo do inverno, grandes pedaços de gelo tinham se formado nos peitoris das janelas, e fios de água corriam pelo chão a partir deles. Até mesmo os camponeses despretensiosos que vinham ter com o padre para encomendar 330

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serviços religiosos de cunho particular, embaraçados e com ar de culpa, olhavam de esguelha para a miséria da morada do padre, e o diácono, zangado, a chamava de “desolação e abandono”. Quando padre Vassíli entrou na casa nova pela primeira vez, por um longo tempo ele ficou andando alegremente pelos quartos vazios e frios, como um celeiro, e disse animadamente para o retardado: — Vamos ter uma boa vida, você e eu, Vassíli! O idiota lambeu os lábios com sua longa língua, como a de um animal, e começou a emitir sons saltitantes, invariáveis e altos: — Gu-gu! Gu-gu! Ele estava se sentindo alegre e ria. Mas logo sentiu o frio, a solidão e o tédio da habitação malcuidada, ficava zangado, gritava, batia nas próprias bochechas e tentava escorregar para o chão, mas caía e se machucava dolorosamente. De tempos em tempos, ele caía em um estado de grave estupor, semelhante a um estranho e terrível devaneio. Apoiando a cabeça com os dedos longos e finos, pondo uma pontinha da língua para fora, ele ficava olhando fixamente para a frente, sob as pálpebras estreitinhas e animalescas. E então tinha-se a impressão de que ele não era, absolutamente, um retardado, e que estava pensando em algo extraordinário, diferente dos pensamentos do restante das pessoas; e que ele sabia de algo também extraordinário, simples e enigmático, algo que nenhuma delas sabia. E, olhando para o seu nariz achatado, com narinas largas e viradas, para a sua nuca como que cortada e que se fundia diretamente às costas de maneira animalesca, vinha à mente o pensamento de que se fossem dadas a ele pernas fortes e rápidas, ele correria para a floresta e começaria a viver a misteriosa vida silvestre, repleta de brincadeiras, crueldade e sabedoria obscura da floresta. E lado a lado com ele, eternamente juntos, eternamente sozinhos, ora atordoado por seu grito rancoroso e desavergonhado, ora perseguido pelo olhar pétreo e enigmático, o padre Vassíli começou a viver a igualmente enigmática vida de um espírito que renunciara à carne. Ele queria ser puro para o grande feito e para o grande sacrifício ainda desconhecido, e todos os seus dias e noites se transformaram em uma mesma oração ininterrupta, um mesmo Leonid Andrêiev

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desabafo silencioso. Desde a morte da esposa, ele impôs a si mesmo um jejum estrito: não bebia chá, não comia carne e peixe, e nos dias de jejum, às quartas e sextas-feiras, alimentava-se apenas de pão amolecido na água. E com uma severidade incompreensível, semelhante a uma vingança, impôs o mesmo jejum estrito ao retardado, e este sofria como um animal faminto: gritava, arranhava e até chorava com parcas lágrimas caninas, mas não conseguia obter sequer um pedaço a mais para si. O padre via poucas pessoas, e apenas se necessário, reduzindo diligentemente o tempo gasto com elas, e todas as horas, com curtas pausas para descanso e sono, dedicava a passar orando de joelhos. E quando ele se cansava, sentava-se e lia o Evangelho, os Atos dos Santos Apóstolos e relatos sobre as vidas dos santos. Normalmente, as missas na igreja eram celebradas apenas nos feriados – agora ele celebrava diariamente uma liturgia pela manhã. O idoso diácono recusou-se a acompanhá-lo nessas celebrações e ele era assistido por um acólito, um velho sujo e solitário que há muito tempo fora destituído da posição de diácono por causa das bebedeiras. Tremendo com o frio da manhã, padre Vassíli fazia seu caminho até a igreja quando ainda estava escuro. Não era longe, mas levava muito tempo para chegar: muitas vezes, durante a noite, acumulavam-se montes de neve, as pernas afundavam e escorregavam na massa seca e cintilante, e cada passo custava dez. A igreja não era aquecida adequadamente, e o frio era feroz – aquele frio extraordinário e penetrante, que é característico de edifícios não residenciais no inverno; quando se respirava, saía um denso vapor, e era doloroso tocar em coisas de metal. O acólito, que também era vigia, acendia uma estufa apenas para o padre e, diante de sua portinhola aberta, de cócoras, padre Vassíli aquecia as mãos: do contrário, a cruz não se sustentava entre os dedos inflexíveis e endurecidos. Ali, naqueles dez minutos, ele brincava com o velho fazendo referências ao frio e ao suor cigano, e o acólito o ouvia de maneira sombria e condescendente; por causa da constante embriaguez e do frio, o nariz do acólito era rubro-azulado, e o queixo eriçado, que ele havia começado a barbear depois de ter sido destituído, movia-se uniformemente, como quando se mastiga algo. Depois, padre Vassíli vestia a velha casula, na qual, no lugar onde havia os 332

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bordados dourados, sobressaíam-se linhas gastas; um pedacinho de incenso era jogado no incensário e, à meia-luz, distinguindo vagamente um do outro, mas movendo-se com confiança, como cegos num lugar familiar, eles davam início à celebração. Dois tocos de cera – um com o acólito, outro no púlpito diante da imagem do Salvador – apenas engrossavam a escuridão; e suas chamas finas balançavam lentamente para os lados, obedecendo ao movimento das duas pessoas sem pressa. Eles celebravam durante um longo tempo, celebravam devagar e com firmeza; e cada palavra tremia e se espalhava em seus contornos, captada pelo eco frio da igreja deserta. E havia apenas o eco e a escuridão e duas pessoas servindo a Deus; e gradualmente algo se inflamava no peito do velho acólito bêbado. Posicionando melhor a orelha, ele capturava cuidadosamente cada palavra do padre e começava a mover seu queixo eriçado bem antes; e a velhice solitária e suja se ia para algum lugar, e se ia a vida infeliz e sombria – e o que vinha em troca era incomum e trazia uma alegria que levava às lágrimas. Muitas vezes, durante um longo tempo, não se ouvia resposta para a exclamação do acólito no altar; vinha um demorado e severo silêncio, e as linguinhas afiadas das velas reluziam amarelas e imóveis; depois, uma voz vinha de longe, repleta de lágrimas e alegria. E novamente as duas figuras sem pressa se moviam confiantemente à meia-luz, e as chamas oscilavam, obedecendo a seus movimentos vagarosos e compassados. Quando a celebração terminava, o dia já estava clareando, e padre Vassili dizia: — Veja, Nikon, como esquentou. E de sua boca saía vapor. As rugas nas faces de Nikon estavam coradas; ele olhava para o padre severa e inquisitivamente e perguntava com desconfiança: — E amanhã, viremos? Ou será que não vai dar? — Mas é claro que viremos, Nikon, viremos sim. Ele acompanhava respeitosamente o padre até a porta e ia para sua casinha, que também servia de guarita. Lá, uma dezena de cachorros, adultos e filhotes, vinham recebê-lo com ganidos e latidos; cercado por eles como por Leonid Andrêiev

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crianças, ele os alimentava e acariciava enquanto pensava no padre. Pensava no padre e se admirava. Pensava no padre e sorria, sem abrir a boca e virando o rosto para que nem os cachorros pudessem ver o seu sorriso. E ficava pensando e pensando, até o anoitecer. E na manhã seguinte esperava para ver se o padre não iria enganá-lo e se não se renderia à escuridão e ao frio enregelante. Mas o padre chegava, tremendo de frio, mas alegre, e novamente da boca do fogão saía uma faixa vermelho-rubro em direção às profundezas da igreja escura, e uma sombra negra e esmaecida se estendia ao longo dela. Inicialmente, tendo ouvido falar das estranhezas do padre, muitos vinham apenas com o intuito de vê-lo e ficavam admirados. Alguns dos espectadores o achavam louco, outros se comoviam e choravam, mas havia aqueles, e eram muitos, em cujos corações crescia uma sensação de alarme, aguda e indefinida. Pois, no olhar direto, destemidamente aberto e iluminado do padre, eles haviam captado a cintilação de um mistério, extremamente profundo e íntimo, repleto de ameaças inexplicáveis e ​​ promessas sinistras. Mas logo os curiosos se cansaram e a igreja permanecia vazia por um longo tempo nas escuras horas que antecediam o amanhecer, e ninguém perturbava a paz das duas pessoas que oravam. Mas passou-se ainda mais algum tempo e em resposta às exclamações do padre começaram a vir da escuridão suspiros tímidos e contidos; os joelhos de alguém batiam surdamente contra o chão de pedra; os lábios de alguém sussurravam; as mãos de alguém colocavam uma pequena vela, e entre os dois tocos ela era como uma jovem e esbelta bétula em meio às árvores cortadas. E começaram a se fortalecer os alarmantes rumores surdos e sem rosto. Eles se arrastavam por toda parte, onde quer que houvesse pessoas, e deixavam algo para trás, algum resíduo de medo, esperança e expectativa. Falavam pouco, falavam vagamente, o que mais faziam era balançar a cabeça e suspirar, mas já na província vizinha, a cem quilômetros de Znamienskoie, alguém cinzento e silencioso subitamente começou a falar bem alto sobre uma “nova fé” e novamente se escondeu no silêncio. E os rumores continuaram se movendo – como o vento, como nuvens carregadas, como a fumaça cheia de fuligem de um incêndio em uma floresta distante. Por último, os rumores chegaram até a cidade, como se fosse doloroso 334

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e difícil para eles abrirem caminho através das paredes de pedra ao longo das ruas barulhentas e cheias de gente. E eles chegaram como que despidos e esfarrapados, como ladrões – falava-se que alguém havia ateado fogo a si mesmo, que uma nova seita de fanáticos havia surgido. Pessoas em uniformes vieram até Znamienskoie, não encontraram nada, e as casas e os rostos impassíveis também não lhes disseram nada – e eles voltaram, tinindo os sininhos dos arreios. E depois dessa visita, os rumores tornaram-se ainda mais persistentes e maldosos, mas todas as manhãs padre Vassíli celebrava o serviço religioso.

X Todas as longas noites de inverno padre Vassíli passava junto ao retardado, confinado com ele na gaiola branca de paredes e teto de pinheiro, como se estivessem dentro de uma mesma casca. Do passado ele conservou o amor à luz forte – e na mesa, aquecendo o quarto, uma grande lâmpada com vidro abaulado ardia com uma chama branca. As janelas congeladas, cobertas de geada, brilhavam sob o fogo e faiscavam, eram impenetráveis, como paredes, e separavam as pessoas da noite cinzenta. Ela cingia a casa com um aro incomensurável, pressionava-a de cima, procurava orifícios onde pudesse enfiar sua garra cinzenta e não encontrava. Ela enfurecia-se à porta, tateava as paredes com mãos mortas, soprava o frio, erguia com ira miríades de flocos de neve secos e maldosos e, num ímpeto, atirava-os contra o vidro – e então, possessa, corria para o campo, dava cambalhotas, cantava e jogava-se de bruços na neve, abraçando a terra enregelada com os braços abertos formando como que uma cruz. Depois ela se erguia, se postava de cócoras e, por um longo tempo e silenciosamente, ficava olhando para as janelas iluminadas, rangendo os dentes. E novamente, com um ganido, ela se jogava contra a casa, uivando na chaminé com um uivo faminto de insaciável raiva e tristeza e mentia: ela não tinha filhos, ela os devorara e os enterrara no campo, no campo… Leonid Andrêiev

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— Que nevasca – dizia padre Vassíli, apurando os ouvidos, e novamente abaixava os olhos para o livro. Ela encontrou. O fogo da lâmpada grande perfurou um círculo na blindagem felpuda de geada, e o vidro molhado começou a brilhar e, com um olho cinza e incolor, ela se colou a ele do lado de fora. São dois deles, dois, dois… paredes nuas descascadas com gotículas de resina âmbar, o vazio radiante do ar e seres humanos. São dois deles. Curvando o pequeno e apertado crânio, o retardado estava colando caixinhas de papelão: cobria-as de cola, segurando o pincel pela ponta longa, e cortava papel, e cada ruído da tesoura, alto e nítido, se difundia ao redor da casa vazia. As caixinhas saíam malfeitas, tortas, sujas, o papel ficava eriçado e descolando, mas ele não sabia disso e continuava a trabalhar. Ocasionalmente, ele levantava a cabeça e, com um olhar fixo sob as estreitas pálpebras animalescas, olhava para o espaço iluminado do quarto. Lá os sons se empurravam, se jogavam de um lado para outro e rodopiavam. Rangidos, farfalhares, estalos, suspiros prolongados. Eles esvoaçavam sobre ele, tocavam seu rosto como se fossem uma teia de aranha e penetravam em sua cabeça – rangidos, farfalhares e longos e demorados suspiros. E a pessoa diante dele estava imóvel e silenciosa. — Bum! – disparava a árvore que estava secando e, estremecendo, padre Vassíli tirava os olhos das páginas brancas. E então ele via as paredes nuas, e as janelas cobertas de geada, e o olho cinza da noite, e o retardado, imóvel, com uma tesoura nas mãos. Tudo surgia e desaparecia momentaneamente, como uma visão – e novamente, diante dos olhos abaixados, se descortinava um mundo inconcebível e prodigioso, o mundo do amor, o mundo da dócil compaixão e do maravilhoso sacrifício. — Pa-pa – o retardado murmurava a palavra recém-descoberta enquanto olhava de soslaio para o pai, de um jeito zangado e ansioso. Mas o homem não ouvia e permanecia em silêncio, e seu rosto iluminado estava inspirado. Ele devaneava com as maravilhosas quimeras de uma insanidade iluminada como o sol; ele acreditava – com a fé daqueles mártires que iam para a fogueira como se estivessem indo se deitar em um leito alegre 336

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e que morriam louvando. E ele amava – com o poderoso e irrestrito amor do Senhor, daquele que comanda a vida e a morte e não conhece a agonia da trágica impotência do amor humano. Alegria, alegria, alegria! — Pa-pa! Pa-pa! – o idiota murmurou mais uma vez, mas não recebeu resposta e novamente pegou a tesoura. Mas logo ele a deixou de lado e, olhando fixamente com os olhos imóveis, ele mexeu as orelhas grandes para ouvir melhor e pacientemente ficou captando os sons que corriam. Silvo e sussurro, ganido e assobio. E riso. Ela estava brincando. Ela se sentava nos troncos da armação da parte abandonada da casa e se balançava e caía com estrondo na neve, e silenciosamente se esgueirava até um canto e cavava ali uma sepultura – para estranhos, para estranhos. E cantava: para estranhos, para estranhos. E com alegria, jogava-se para o alto e abria largas asas cinzentas, olhava atentamente; caía como uma pedra e, rodopiando, entrava voando nas janelas escuras da armação da casa coberta de geada, com ganidos e assobios. Ela perseguia os flocos de neve e, pálidos de medo, esticando-se para frente, eles fugiam silenciosamente. — Pa-pa! – o retardado gritava alto – pa-pa! O homem ouve e levanta a cabeça, com longos cabelos grisalhos envolvendo seu rosto como a nevasca e a noite. Por um minuto, surgem à sua frente as paredes nuas e o rosto zangado e assustado do retardado, e o ganido da nevasca que se desencadeara – e enchem sua alma de um doloroso enlevo. Está acontecendo – aconteceu! — O que foi, Vassíli? Por que não está colando? Cole! — Pa-pa! — Por que está agitado? É a nevasca? Sim, sim. É uma nevasca. Padre Vassíli se aproximou do vidro, olho no olho com a noite cinzenta, e ficou olhando. E sussurrou com horror: — Por que ele não está soando? E se alguém estiver perdido no campo? Ela chora: no campo, no campo, no campo!— Espere, Vassíli. Eu vou ver o Nikon. Eu já volto. Leonid Andrêiev

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— Pa-pa! A porta bate, deixando entrar os sons. Eles se amontoam junto à porta – mas não há ninguém lá. Está claro e vazio. Um atrás do outro, eles se esgueiram em direção ao retardado – pelo chão, pelo teto, pelas paredes – olham em seus olhos animalescos, cochicham, riem e começam a brincar. Cada vez mais alegremente, mais ligeiros. Eles correm uns atrás dos outros, saltam e caem; fazem alguma coisa no quarto ao lado onde está escuro, brigam e choram. Não há ninguém. Está claro e vazio. Não há ninguém. — Boom! – em algum lugar acima cai o primeiro golpe pesado do sino e dispersa os sons pequenos e assustados – boom! – cai o segundo, surdo, tenaz e rasgado, como se o vento tivesse invadido a boca larga do sino e ele se engasgara e estava gemendo. Os pequenos sons fugiram. — Aqui estou eu! – diz padre Vassíli. Ele está todo branco e tremendo. Os dedos vermelhos e endurecidos não conseguem de modo algum virar a página branca. Ele sopra sobre eles, esfrega um contra o outro, e novamente as páginas farfalham baixinho, e tudo desaparece: as paredes nuas, a horrenda máscara do retardado e os sons uniformes e surdos do sino. Seu rosto queima novamente com um enlevo insano. Alegria, alegria! — Booom! Ela está brincando com o sino. Ela captura seus sons ressoantes e densos, envolve-os com silvos e assobios, rasga, espalha – ela os faz rolar pesadamente para o campo, enterra-os na neve e fica escutando atentamente com a cabeça inclinada para o lado. E corre novamente ao encontro dos novos sons, incansável, zangada e tão astuta como um demônio. — Pa-pa! – grita o retardado e joga no chão a tesoura que tilinta. — O que foi? Ora, se acalme. — Pa-pa! O silêncio no quarto, os assobios e o silvo maldoso da nevasca e as batidas surdas e tenazes. O retardado move sua cabeça com dificuldade, e seus pés 338

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finos e sem vida, com dedos flexionados e a sola delicada que desconhece o contato com a terra, mexem-se debilmente num impotente ímpeto de correr. E ele chama: — Pa-pa! — Está bem, pare com isso. Escute o que vou ler para você. Padre Vassíli virou de volta uma página e começou a ler com a voz severa e imponente, como na igreja: — “E, ao passar, viu um homem, cego de nascença…” Ele levantou a mão e, empalidecendo, olhou para Vássia. — Você entende? Cego de nascença. Nunca viu o sol, nem o rosto dos amigos e dos entes queridos. Veio para a vida e a escuridão o envolveu. Pobre homem! Um homem cego! A voz do padre soa com forte fé e com enlevo da compaixão saciada. Ele fica calado e observa com um olhar que sorri silenciosamente, como se não quisesse se separar desse pobre homem que era cego de nascença, não via o rosto de um amigo e não pensava em como a misericórdia divina estava próxima a ele. Misericórdia – e compaixão e compaixão!— Boom! — Bem, escute, filho. “Seus discípulos perguntaram a Ele: ‘Rabi, quem pecou para que este homem nascesse cego: ele ou seus pais?’ Jesus respondeu: ‘Nem ele, nem seus pais pecaram, mas isto se deu para que a obra de Deus nele se manifestasse’”. A voz do padre fica mais forte e enche todo o quarto nu com suas reverberações. E seus sons amplos transpassam o silvo silencioso, e o farfalhar, e o assobio, e o ruído surdo, esticado, rasgado e errante do sino engasgado. O retardado fica alegre com a voz chamejante, com os olhos brilhantes, com o barulho, os assobios e o ruído surdo. Ele bate nas próprias orelhas protuberantes, muge e uma saliva grossa escorre pelo seu queixo baixo lembrando duas mangas sujas. — Pa-pa! Pa-Pa! — Escute, escute. “Tenho que fazer as obras Daquele que Me enviou, enLeonid Andrêiev

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quanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar”. “Enquanto Estou no mundo, Sou a luz do mundo”. Pelos séculos dos séculos, pelos séculos dos séculos! – ele lança para a noite e para a nevasca apaixonados gritos triunfantes – pelos séculos dos séculos! O sino errante chama e em sua impotência chora sua voz velha e dolorida. E ela balança em seus sons cegos e negros e canta: são dois deles, são dois deles! E corre para a casa, batendo em suas portas e janelas e uiva: são dois deles, são dois deles! E padre Vassíli a escuta vagamente e pergunta com severidade ao retardado: — O que você está balbuciando? Mas o retardado fica quieto, e, olhando mais uma vez para ele com desconfiança, padre Vassíli continua: — “Eu sou a luz do mundo. Tendo dito isto, Ele cuspiu na terra, e com a saliva fez lodo, e untou com o lodo os olhos do cego. E disse-lhe: Vai, lava-te no tanque de Siloé (que significa o Enviado). Ele foi e lavou-se, e voltou enxergando”. Enxergando, Vássia, enxergando! – o padre gritou ferozmente e, levantando do lugar de maneira brusca, começou a andar rapidamente pelo quarto. Depois ele parou no meio dele e bradou: – eu creio, ó Senhor! Eu creio! E tudo ficou quieto. E uma risada alta e saltitante quebrou o silêncio, atingindo o padre nas costas – e ele se virou com medo. — O que você tem? – ele perguntou assustado, recuou. O retardado estava rindo. O riso maldoso e sem sentido havia rasgado até as orelhas a enorme máscara imóvel, e do largo orifício da boca irrompia incontrolavelmente uma gargalhada estranhamente vazia e saltitante: “Gu-gu-gu! Gu-gu-gu!”

XI Na véspera do dia da Santíssima Trindade, na véspera do brilhante e alegre feriado primaveril, estavam buscando areia vermelha para polvilhar os 340

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caminhos. Os poços profundos, de onde os camponeses de Znamienskoie extraíam areia para si já há alguns anos, ficavam a uns dois quilômetros da aldeia, em meio aos locais de corte de bétulas, choupos-tremedores e carvalhos, com árvores não muito altas, mas densamente distribuídas. Ainda era apenas o início do mês de junho, mas a grama já se erguia até a cintura e cobria até a metade a vegetação exuberante e poderosa dos arbustos de folhas grandes, verdes e úmidas que haviam se espalhado pelo local. E havia muitas flores naquele ano, e as abelhas voavam de todos os lados buscando as flores, e um zumbido uniforme e quente e um aroma simples e delicado fluíam para o interior da escavação profunda, com paredes que descamavam e deslizavam. E já há alguns dias tudo estava à espera da tempestade e a pressentia. Ela estava no ar abrasador e sem vento, nas noites sem orvalho e abafadas; ela era chamada pelo gado extenuado que mugia suplicantemente, erguendo as cabeças. E para as pessoas estava abafado, mas ao mesmo tempo bom. O ar imóvel pressionava e oprimia, mas algo inquieto pedia movimento, barulhentas conversas fragmentadas e risadas sem motivo. Duas pessoas estavam trabalhando: o acólito Nikon, que levava a areia para a igreja, e o empregado do administrador da paróquia, Semión Mossiáguin. Ivan Porfírytch gostava de ter muita areia, tanto na rua em frente à sua casa, quanto no pátio pavimentado, e Semión já havia conseguido trazer uma carroça de manhã, mas agora estava enchendo outra, lançando vigorosamente pás cheias de bonita areia dourada. Ele estava alegre com o zumbido quente, com o aroma e o trabalho agradável; ele olhava desafiadoramente para o acólito sombrio que cutucava a areia preguiçosamente com uma pá lascada, e o provocava: — É, irmão Nikon Iványtch, estamos gastando nossa beleza à toa! — Repita isso – respondia o acólito com uma ameaça preguiçosa e indefinida, e, enquanto falava, o cachimbo fumegante pendia de sua boca sobre o queixo coberto de barba cerrada e grisalha e balançava. — Olhe aí, vai deixar cair a chupeta! – alertou Semión. Nikon não respondeu nada, e Semión, sem se ofender, continuou a cavar alegremente. Após seis meses de vida com Ivan Porfíritch ele havia ficado rechonchudo e roliço, como um pepino fresco, e o trabalho leve não conseLeonid Andrêiev

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guia ocupar toda a sua força e atenção; ele rapidamente fincava a pá, cavava e jogava a areia, e com a agilidade e a rapidez de uma galinha ciscando grãos, reunia os grãos espalhados de areia dourada, movendo a pá como se fosse uma língua larga e ágil. Mas o poço, do qual já tinham extraído areia no dia anterior, se esgotou, e Semión cuspiu nele resolutamente. — Bem, aqui não vai dar para extrair grande coisa. Será que dou uma cutucada ali? – ele olhou para uma espécie de caverninha baixa, solapada em uma parede frágil e que estampava estratos vermelhos e cinza-esverdeados, e seguiu resolutamente em direção a ela. O acólito olhou para a caverninha e pensou: “Vai é desmoronar”, mas não disse nada. Mas Semión sentiu esse pensamento na forma de um vago alarme, semelhante a uma súbita e leve náusea, e parou. — O que você acha, não vai desmoronar? – ele perguntou, voltando-se para o outro. — E eu vou saber! – respondeu o acólito-vigia. Na escuridão do orifício oval, que lembrava uma bocarra aberta, havia algo traiçoeiro, que esperava, e Semión hesitou. Mas de cima, do lugar onde um carvalho pendia sobre o buraco e delineava nitidamente suas folhas trêmulas e recortadas contra o céu azul, vinha um aroma excitante de folhagem e flores, instigando a fazer algo corajoso e alegre. Depois de cuspir nas palmas das mãos, Semión pegou a pá e, logo na segunda fincada, algo estalou fracamente e a parede inteira deslizou silenciosamente e o cobriu. E somente o carvalho, sustentado por suas raízes, começou a balançar debilmente as suas folhas e uma bolinha redonda e compactada de areia rolou até os pés do vigia, que havia empalidecido, e parou, tão simples e inocente. Duas horas depois, Semión foi desenterrado morto. A boca bem aberta, com dentes limpos e alinhados, como se tivessem sido cortados sob medida, estava repleta de areia dourada; e por todo o rosto – nas órbitas dos olhos, entre os cílios brancos, nos cabelos castanho-claros e na barba vermelho-fogo, vislumbrava-se o amarelo da mesma areia bonita e dourada. E os pelos ruivos da barba ainda continuavam a se enrolar e dançar da mesma maneira, e essa dança disparatadamente alegre e fanfarrona em torno do rosto pálido e morto refletia 342

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um escárnio cruel. O filho do falecido Mossiáguin, Sienka, veio correndo com o povo que tinha se reunido. Não o levaram a cavalo, e por todo o caminho ele correu atrás dos que cavalgavam, de modo que era audível sua respiração pesada e, enquanto desenterravam seu pai, ele permanecia imóvel, de lado, sobre um monte de argila, e seus olhos, cravados na montanha arenosa que se desfazia, permaneciam igualmente imóveis. O defunto foi colocado na carroça, por cima da areia dourada que ele havia extraído, cobriram com uma esteira e foram levando a passo lento para Znamienskoie pela estrada da floresta repleta de raízes que afloravam e tocos de árvores; atrás, divididos, os camponeses caminhavam dispersos por entre as árvores, e suas camisas sob os raios de sol fulguravam como uma chama vermelha. E quando eles passaram diante da casa de dois andares de Ivan Porfírytch, o acólito sugeriu que deixassem o morto com ele: — Era empregado dele, então ele que deve enterrá-lo. Não havia ninguém nas janelas nem nos arredores da casa, e a loja estava trancada com um cadeado de ferro pendurado. Eles bateram por um longo tempo no portão alto onde salientavam-se as cabeças dos pregos de ferro, grandes e pretas, depois tocaram a grande campainha, e era possível ouvir o quão alto e agudamente ela soava em algum lugar atrás do canto da casa, e como os cachorros latiam no quintal, mas ninguém aparecia. Finalmente, uma cozinheira velha saiu e disse que o senhor havia mandado levar Mossiáguin para a casa dele e que daria dez rublos para o funeral, além do seu salário. Enquanto ela se explicava com a multidão, o próprio Ivan Porfíritch, zangado e assustado, olhava por trás das cortinas para a terrível esteira e dizia à esposa num sussurro: — Lembre-se de minhas palavras: se o padre me oferecer um milhão, eu não estenderei minha mão para pegá-lo, prefiro que ela seque. Ele é uma pessoa terrível. E não se sabe de onde – se das enigmáticas palavras do administrador da paróquia e de sua recusa em acolher o homem morto, ou de outra fonte desconhecida – na vila, rapidamente, começaram a rastejar e a sibilar por toda Leonid Andrêiev

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parte rumores desordenados e assustadores. Falavam sobre Semión, sobre sua inesperada e terrível morte, mas pensavam no padre e nem eles mesmos sabiam por que estavam pensando nele e o que esperavam dele. Quando padre Vassíli estava indo celebrar as exéquias, pálido e onerado por algum pensamento indistinto, mas alegre e sorridente, as pessoas se afastavam abrindo um largo caminho e durante muito tempo não se atreviam a ocupar o lugar onde as pegadas de seus pés, pesados e grandes, ardiam invisíveis. Eles se lembraram do incêndio e conversaram sobre isso por um longo tempo; se lembraram da esposa queimada e de seu filho, um retardado que não andava, e por trás das palavras simples e claras corriam os espinhos afiados do medo. Uma mulher começou a chorar tomada por um intenso e vago sentimento de comiseração e foi embora; os que ficaram olhando por um longo tempo para as costas trêmulas dela e, em silêncio, sem olhar uns para os outros, se dispersaram. Refletindo a comoção dos adultos, no crepúsculo, as crianças reuniam-se na eira e nos quintais e ficavam contando histórias assustadoras sobre defuntos, negrejando com os grandes olhos arregalados; e já há muito que a voz familiar e agradavelmente zangada chamava para que viessem para casa, mas elas não se atreviam a desvencilhar os pés descalços sobre os quais estavam sentadas e correr através da névoa transparente e assustadora. E, durante os dois dias que antecederam o funeral, toda hora iam ver o homem morto, que rapidamente estava ficando azulado e inchando por causa do calor. E durante as duas noites que transcorreram antes do funeral, a terra exalava um calor enfadonho, e os prados secos, que já estavam começando a ficar queimados sob o sol abrasador, continuavam sem orvalho. O céu estava limpo, mas escuro, e raras estrelas cintilavam embaciadas; e sobre tudo pairava o estalido seco e incessante dos grilos. Quando, depois das primeiras exéquias noturnas, padre Vassíli saiu da cabana, já estava escuro e não havia luzes na rua adormecida. Ele tirou o chapéu preto de abas largas e caminhou em silêncio, pisando silenciosamente, como em um tapete macio e felpudo. E, mais pela ansiedade exacerbada que não o deixava, assim como não deixava os outros, do que pela audição, ele sentiu que, atrás dele, a alguns passos de distância, alguém o seguia. Ele olhou para trás: alguém escuro e alto estava andando atrás dele, aparentemente, regulando seus passos de acordo com o 344

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andar lento do padre. O padre parou – o outro, atrás, sem prever isso, deu alguns passos e também parou, inclinando-se bruscamente para trás. — Quem é você? – perguntou padre Vassíli O homem permaneceu em silêncio. Em seguida, virou-se de repente e começou a voltar depressa, sem refrear os passos; e em um minuto apenas a escuridão da noite o havia engolido completamente. Na noite seguinte, repetiu-se a mesma coisa. Um homem alto e moreno seguiu padre até o portão da casa dele e, por algo em seu modo de andar e pela compleição da figura atarracada, pareceu ao padre que aquele era Ivan Porfírytch, o administrador da paróquia. — Ivan Porfírytch, é você? – ele exclamou. Mas o homem não respondeu e voltou para trás. E quando padre Vassíli já havia se despido para dormir, alguém bateu de leve na janela; o padre saiu e não havia uma alma perto da casa. “Por que ele se joga de um lado para outro como um espírito maligno?”, padre Vassíli pensou com desagrado, postando-se de joelhos para uma longa oração. E nela ele se esqueceu do administrador da paróquia, da noite, que se estendia aflitivamente sobre a Terra, e de si mesmo – ele estava orando pelo falecido, por sua esposa e filhos, pela concessão à Terra e às pessoas da grandiosa misericórdia divina. E nas profundezas sem fim do sol delineava-se vagamente um novo mundo, e ele não era mais a Terra. E, enquanto ele rezava, o retardado arrastou-se para fora da cama, movendo ruidosamente suas pernas, ainda fracas, mas que estavam ganhando vida. Ele havia começado a engatinhar desde o começo da primavera e mais de uma vez padre Vassíli, ao retornar, o encontrara na soleira, onde ficava sentado imóvel, como um cachorro diante de portas trancadas. Agora ele estava se dirigindo para a janela aberta e se movia lentamente, com esforço, balançando a cabeça concentradamente. Ele se arrastou, lançou as mãos fortes e tenazes para a janela e, erguendo-se sobre elas, ficou olhando sombria e avidamente para a escuridão da noite. E estava escutando alguma coisa. Enterraram Mossiáguin na segunda-feira, no Dia do Espirito Santo, e esse dia tinha começado sinistro e estranho, como se a pesada e disforme inquieLeonid Andrêiev

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tude na natureza fosse uma resposta à inquietude presente entre as pessoas. Desde a manhã estava muito abafado, e o calor era tanto que a grama se enrolava e desbotava quase que diante dos olhos, como sob a ação de um forte fogo. E o denso céu opaco pairava baixo e ameaçador sobre a terra, e era como se todo o seu azul turvado fosse transpassado por pequenas veias finas vermelho-sangue – tão rubro, sonoro e repleto de iridação e reflexos e metálicos ele estava. O sol imenso flamejava calor, e era muito estranho porque ele brilhava intensamente, mas em nenhuma parte havia sombras definidas e tranquilas características de um dia ensolarado, como se entre o sol e a terra pendesse uma cortina invisível, mas densa, e que interceptava os raios. E havia um silêncio mudo e pesado, como se alguém grande estivesse refletindo desalentadamente, tivesse baixado os olhos e se calado. As jovens bétulas cortadas pela raiz, com folhas enroladas, estavam espalhadas pela aldeia em fileiras cinzentas; havia tristeza e uma ansiedade incompreensível nessa procissão sem sentido de jovens árvores cinzas, que estavam morrendo silenciosamente de sede e de calor e que não produziam sombra, como os fantasmas. Há muito que a areia dourada polvilhada nos caminhos havia se transformado em poeira amarela, e as festivas casquinhas das sementes de girassol jogadas no dia anterior surpreendiam os olhos; elas falavam sobre algo pacífico, simples e alegre, quando na natureza imóvel tudo era tão severo, tão doloroso, tão pensativo e ameaçador. Quando padre Vassíli estava vestindo os paramentos para celebrar a missa, Ivan Porfírytch entrou no altar. Através do suor e das manchas vermelhas com as quais o calor cobria o seu rosto, despontava temerosamente uma palidez de um cinza terroso; os olhos estavam inchados e brilhavam com um fogo febril; penteados às pressas, aderidos por causa do kvass15, os cabelos tinham secado em alguns lugares e se eriçavam parecendo pinceizinhos desnorteados, como se esse homem não tivesse dormido durante algumas noites, atormentado por um horror inumano. Ele parecia estar exausto e desnorteado; havia esquecido as sutilezas de lidar com as pessoas, não se aproximou do padre para uma bênção, nem sequer o cumprimentou. 15  Bebida fermentada típica produzida a partir do pão e que pode conter em seu preparo mel, frutas e ervas diversas. O kvass também era aplicado nos cabelos para efeitos cosméticos. (N. da T.)

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— O que há com o senhor, Ivan Porfírytch? Não se sente bem? – perguntou atenciosamente o padre Vassíli, tirando o cabelo de debaixo da gola apertada de sua casula; ele mesmo estava pálido, apesar do calor, e concentrado. O administrador da paróquia tentou sorrir. — Mais ou menos. Na verdade, não muito bem. Queria falar com o senhor, padre. — Era o senhor ontem?— Sim, eu. E há três dias, também era eu. Desculpe-me. Eu não tinha qualquer intenção… Ele respirou pesadamente e, mais uma vez esquecendo todas as sutilezas de tratamento, aterrorizado, disse abertamente e em voz alta: — Estou com medo. Nunca tive medo de nada. E agora estou com medo. Estou com medo. — Do que está com medo? – perguntou, surpreso, o padre. Ivan Porfirych olhou por cima do ombro do padre, como se alguém silencioso e terrível estivesse se escondendo ali, e sussurrou: — Da morte. Eles ficaram olhando um para o outro em silêncio. — Da morte. Ela chegou no meu quintal. Louca, irracional, vai levar a todos. Todos! Na minha casa, desculpe-me, nem mesmo uma galinha se atreve a morrer sem motivo: se eu mandar matá-la para que se faça uma sopa, só então é que ela irá morrer. Mas e o que é isso? Como pode ser assim? Desculpe-me. Mas eu não entendi de imediato. Desculpe-me. — Você está falando do Semión? — E sobre quem mais? Sobre Sidor e Evstignei? Você, preste atenção no seguinte – o administrador da paróquia começou a falar rudemente, perdendo o controle de medo e raiva – deixe de fazer essas coisas. Não há idiotas aqui. Vá embora por bem, enquanto não lhe aconteceu nada! Vá embora! Ele agitou a cabeça vigorosamente em direção à porta e acrescentou: — Rápido! Leonid Andrêiev

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— O que você tem? Ficou maluco? — Isso ainda não sabemos, quem é que ficou louco: você ou eu. Por que você fica inventando moda todas as manhãs? “Eu rezo, eu rezo” – disse em voz anasalada, imitando a fala dos clérigos durante o serviço religioso – não é assim que se reza. Você deve esperar, você deve sofrer, mas não isso: “eu rezo”. Seu bastardo, voluntarioso, quer fazer as coisas do seu jeito. Mas agora você se deu mal: onde está o Semión? Diga, onde está o Semión? Por que destruiu o homem? Onde está o Semión? Fale! Ele se moveu bruscamente em direção ao padre – e ouviu uma ordem curta e severa: — Saia do altar, ímpio! Vermelho de raiva, Ivan Porfírytch olhou de cima para o padre – e congelou de boca aberta. Olhos de uma profundidade sem fim, negros e assustadores como a água do pântano, olhavam para ele, e a vida poderosa de alguém pulsava por trás deles, e a terrível vontade de alguém saía dali como uma espada aguçada. Apenas olhos. Ivan Porfírytch não via nem o rosto, nem o corpo. Apenas os olhos, enormes como uma parede, como um altar, escancarados, enigmáticos, imperativos, estavam olhando para ele e, como se tivesse sido queimado, ele agitou inconscientemente a mão, como que para afastar algo, e saiu, esbarrando no lintel com o ombro gordo. E os olhos negros e assustadores continuavam se cravando em suas costas enregeladas, como se atravessassem uma parede de pedra.

XII As pessoas entravam em silêncio, pisando com cuidado, e se postavam em qualquer local, não em seu lugar habitual, onde queriam e onde estavam acostumadas a ficar, como se fosse inadequado e inoportuno seguir quaisquer hábitos e se preocupar com qualquer tipo de conforto nesse dia horripilante e aflitivo. Elas se postavam e por um longo tempo não ousavam virar a cabeça para olhar ao redor. Já estava difícil respirar por causa do aperto e por trás 348

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elas eram pressionadas por novas fileiras silenciosas que se aproximavam; e todas permaneciam caladas e todas aguardavam, sombrias e ansiosas, mas a estreita intimidade não trazia alívio: o cotovelo de uma tocava o cotovelo de outra, mas parecia que a pessoa estava sozinha no vazio sem fim. Atraídas pelos estranhos rumores, vieram pessoas de aldeias distantes, de outras paróquias; elas eram mais ousadas e falavam alto, mas logo também se calavam, zangadas e surpresas, mas impotentes, como todas as outras, para romper as amarras invisíveis do silêncio de chumbo. Todas as altas janelas ogivais estavam abertas para permitir a entrada do ar, e um céu ameaçador e vermelho acobreado olhava por elas; parecia que ele se entreolhava sombriamente de janela em janela, e jogava reflexos metálicos secos em tudo. E nessa luz dispersa, pesada, mas intensa, o velho douramento da iconóstase cintilava de maneira tênue e indecisa, irritando os olhos com o caos e a indefinição dos reflexos. De trás de uma janela, um jovem bordo verdejava, imóvel e impassível, e muitos olhos fitavam insistentemente suas folhas largas e ligeiramente caídas: elas pareciam ser amigas, velhas amigas tranquilas em meio a esse silêncio, em meio a essa contida confusão de sentimentos, em meio a esses contornos amarelos e provocadores. E sobre todos os habituais e silenciosos aromas da igreja, sobre a fragrância de incenso e cera reinava um repugnante, terrível e definido cheiro de putrefação. O cadáver estava se decompondo rapidamente, e era doloroso e assustador se aproximar do caixão negro que abraçava essa alastrante massa de corpo apodrecido e fedorento. Bastava se aproximar para ver as quatro pessoas que permaneciam lá, imóveis como o próprio caixão: a viúva do falecido e seus três filhos. Talvez eles estivessem sentindo o cheiro, mas não acreditassem nele; talvez eles não o sentissem, e pensassem e acreditassem que estavam enterrando um vivo – como pensam todas as pessoas quando uma delas, tão próxima, tão cara, tão inseparável, é levada por uma morte inesperada e rápida. Mas eles permaneciam em silêncio – e tudo ao redor também permanecia em silêncio, e o ameaçador céu vermelho acobreado se entreolhava de janela em janela acima das cabeças da multidão e semeava reflexos secos e desnorteados. Leonid Andrêiev

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Quando a missa começou, solene e simples como sempre, e o diácono gordo e complacente acenou para a multidão com o turíbulo, a respiração se tornou mais fácil, o ambiente ficou mais alegre e leve. Alguns trocaram sussurros; alguém, decidida e pesadamente, deu um passo com os pés adormecidos; alguns, que estavam mais perto da porta, foram até o átrio para relaxar e fumar. Porém, fumando e conversando em voz baixa sobre a semeadura, sobre a seca iminente, sobre dinheiro, de repente se davam conta de que perderiam algo importante e inesperado que aconteceria na igreja e se assustavam, jogavam fora os cigarros inacabados e irrompiam na igreja, rasgando a multidão com os ombros, como se fossem cunhas. E paravam: a missa prosseguia solene e simples, antes de começar sua fala o diácono soltava uns leves gemidos e limpava a garganta tranquilamente, procurava na multidão quem estava conversando e ameaçava-os com um dedo grosso e curto. Aqueles que haviam ido lá fora antes do final da missa tinham notado que, acima da floresta, do lado em que se encontrava o sol, subia uma nuvem azulada e esfumaçada, que se destacava fracamente sob os raios do sol, e fizeram o sinal da cruz alegremente. Entre eles estava Ivan Porfírytch, pálido e que parecia estar doente; ele também fez o sinal da cruz quando viu a nuvem e na mesma hora baixou os olhos sombriamente. No curto intervalo entre a missa e a missa de corpo presente, quando o padre Vassíli estava trocando o paramento que usava por uma casula preta de veludo, o diácono estalou os lábios e disse: — Eh! Seria bom colocarmos um gelinho, pois está fedendo muito. Mas onde conseguir esse gelo? Acho que deveríamos ter uma reserva aqui na igreja, para casos como esse, diga isso ao administrador da paróquia. — Está fedendo? – perguntou o padre, sem se virar, e sua voz soou surdamente. — E o senhor não está sentindo? Mas que nariz o senhor tem. Eu simplesmente não aguento mais. Agora, na época do verão, não será possível tirar esse cheiro por uma semana. Cheire: até a barba está fedendo. Juro por Deus! Ele levou até o nariz uma pontinha da barba grisalha, cheirou e concluiu 350

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com desaprovação: — Mas que gente, ora essa! Começou a missa de corpo presente. E novamente o silêncio plúmbeo oprimiu a multidão e chumbou cada um em seu lugar, separou do resto das pessoas e entregou à torturante espera na qualidade de presa. O velho acólito estava fazendo a leitura. Ele havia visto a morte daquele que agora assustava a todos de dentro do caixão negro; lembrava claramente do pedaço inocente de terra compactada, e do carvalho, que sacudiu as folhas recortadas, e as palavras antigas, familiares e amortecidas voltavam à vida em sua boca ciciante e golpeavam certeira e dolorosamente. E ele também pensava no padre, com preocupação e tristeza, porque durante estas horas de horror que avançavam, ele era o único entre os presentes que amava o padre Vassíli com um amor tímido e terno e era íntimo de sua grandiosa alma rebelde. — … Certamente tudo é vaidade e a vida não passa de uma sombra e de um sonho. Em vão, pois, se agita tudo o que é da terra, como diz a Escritura. Porque, ainda que ganhemos o mundo, só habitaremos o túmulo, onde moram juntos reis e pobres. Por isso, ó Cristo Deus, dá repouso ao Teu servo pela Tua benevolência… O interior da igreja estava escurecendo com a inquieta escuridão pardo-azulada do dia que havia se eclipsado, e todos a sentiram, mas demoraram a notá-la com os olhos. E somente aqueles que estavam olhando insistentemente para as amigáveis folhas do bordo viram como atrás delas surgiu lentamente algo cinza-ferro e desgrenhado, espiou o interior da igreja com olhos mortos e se arrastou mais para o alto, em direção à cruz. — Onde está o apego ao mundo? Onde estão os sonhos sobre bens efêmeros? Onde está o ouro e a prata? Onde estão os muitos servos ruidosos? Tudo é pó, tudo é cinza, tudo é ilusão… – as palavras amargas estremeciam nos trêmulos lábios senis. Agora todos haviam notado a crescente escuridão e se voltaram para as janelas. Atrás do bordo, o céu estava negro e as folhas largas deixaram de parecer tão verdes: tinham ficado pálidas e já não havia nelas, assustadas e peLeonid Andrêiev

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trificadas, mais nada de amigável e calmo. As pessoas olhavam para os rostos, procurando conforto, e todos os rostos estavam acinzentados, todos os rostos eram pálidos e estranhos. E parecia que toda a escuridão, que entrava pelas janelas numa torrente silenciosa e larga, havia sido absorvida pelo negro caixão e pelo negro padre: tão negro era esse caixão mudo, tão negro era esse homem alto, frio e severo. Ele se movia com confiança e calma, e a negrura de suas vestes parecia luz em meio ao dourado que cegava, aos rostos cinzentos e às janelas altas, que semeavam a escuridão. Mas em alguns momentos uma incompreensível hesitação e indecisão se apoderavam dele; ele diminuía os passos e, esticando o pescoço, olhava com surpresa para a multidão, como se essa multidão entorpecida fosse algo de inesperado nessa na igreja, onde ele costumava rezar sozinho; depois ele esquecia-se da multidão, esquecia-se de que estava celebrando a missa e seguia distraidamente até o altar. Era como se algo estivesse se duplicando nele; como se ele estivesse esperando por uma palavra, uma ordem ou um sentimento poderoso e resoluto – mas ele não vinha. — … Eu choro e derramo meu pranto toda vez que penso na morte e vejo a nossa beleza, criada à imagem de Deus, deitada em um caixão, hedionda, inglória e disforme. Que assombro! Que fenômeno misterioso sucede conosco? Como nos entregamos à decomposição? Como nos unimos à morte? Certamente, como está dito nas Escrituras, isto ocorre a mando de Deus que… Em meio à espessa escuridão, as velas ardiam intensamente, como no crepúsculo, e já lançavam sobre os rostos reflexos avermelhados, e muitos notaram essa rápida e incomum transição do dia para a noite – sendo que ainda era meio-dia. Padre Vassíli também sentiu a escuridão, mas não a entendeu: estranhamente ele teve a impressão de que aquela era uma manhã de inverno quando ficava sozinho com Deus, e um sentimento grande e poderoso lhe inspirava, como a um pássaro, como a uma flecha, que voava infalivelmente em direção ao alvo. E ele estremeceu, sem enxergar, como um cego, mas começando a compreender. Milhares de pensamentos desiguais e entrelaçados, milhares de sentimentos inacabados desaceleraram sua corrida frenética: desaceleraram, pararam, congelaram – um instante de vazio terrível, de 352

A vida de Vassíli Fiveiski


queda rápida, de morte – e algo enorme, inesperadamente alegre, inesperadamente encantador, despertou no peito. O coração, que havia parado por um momento, ainda estava dando as primeiras batidas de modo rigoroso e sólido, e ele já sabia. Era ele! Ele: o sentimento poderoso, que resolvia tudo, que comandava a vida e a morte, que ordenava às montanhas: movam-se do lugar! E as velhas montanhas zangadas saem do lugar. Alegria, alegria! Ele olha para o caixão, para a igreja, para as pessoas e compreende tudo, compreende com a maravilhosa perspicácia que alcança ao âmago das coisas, que acontece apenas em um sonho e desaparece com os primeiros raios de luz sem deixar vestígios. Então é isso! Eis a grandiosa solução! Ó alegria, alegria, alegria! Jogando a cabeça para trás, erguendo as mãos em direção à montanha, como Moisés ao ver Deus, ele ri baixo e ameaçadoramente, com curtos suspiros em cadência decrescente – ele vê o rosto assustado do diácono lá embaixo, com o dedo levantado em advertência, vê as costas encolhidas das pessoas que notaram sua risada e apressadamente aumentam buscam caminhos por entre a multidão, como minhocas – e cerra os lábios com a timidez inesperada e comovente de uma criança. — Eu não vou! – ele sussurra para o diácono, e um arrebatamento terrível faz jorrar fogo de todos os poros de seu rosto. E ele chora, cobrindo o rosto com as mãos. — Seria bom tomar umas gotas! Tome umas gotas, padre Vassíli! – o diácono sussurra desnorteado em seu ouvido e exclama em desespero: – Ah, meu Deus, agora não é hora disso! Escute, padre Vassíli!O padre afasta ligeiramente do rosto as mãos cruzadas e, de esguelha, por trás da proteção delas, olha para o diácono – o diácono estremece e, na ponta dos pés, afasta-se a passos largos para o lado, esbarra com a barriga na grade e, tateando, encontra a porta e sai. — Vinde irmãos, e agradecendo a Deus, daremos o último beijo ao falecido. Eis que ele deixou sua família e segue para o sepulcro, não se importando mais com vaidades, com a carne, sujeita às paixões. Onde estão os parentes e amigos agora? Eis que estamos nos separando…Há uma movimentação na multidão. Alguns saem escondidos, sem trocar uma palavra com os restantes, Leonid Andrêiev

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e o interior da igreja escura já se torna menos apertado. Somente perto do caixão negro as pessoas se amontoam silenciosamente, fazem o sinal da cruz, inclinam-se para algo terrível, repugnante, e se afastam com rostos sofridos. A viúva também diz adeus ao morto. Ela já acredita que ele está morto e sente o cheiro, mas seus olhos estão fechados para as lágrimas, e não há voz em sua garganta. E as crianças olham para ela – três pares de olhos silenciosos. E então notaram que o diácono se esgueirava perplexo pela multidão, enquanto o padre Vassíli permanecia parado no ambão e observava. E aqueles que o viram naquele momento ficaram com sua aparência incomum marcada para sempre em suas memórias. Ele segurava a grade com as mãos com tal força que as pontas de seus dedos haviam ficado brancas como as do morto; esticando o pescoço para a frente, com todo o corpo inclinado sobre a grade, ele inteiro com um enorme olhar se lançava para o local onde estavam a viúva e as crianças. E é estranho: parecia que ele se deleitava com o intenso sofrimento dela – tão alegre, tão exultante, tão ousadamente feliz era seu olhar impetuoso. — … Oh, que separação, irmãos! Que dor insuportável, que pranto amargo nesta hora! Vinde beijar aquele que há pouco esteve entre nós, ele entrega-se à sepultura, cobre-se com uma lápide, passa a morar na escuridão, fica enterrado com os mortos e separa-se agora de todos os parentes e amigos. Oremos ao Senhor para que lhe dê repouso…— Ora, pare, seu louco! – soou uma voz queixosa vinda do ambão – não vê que aqui não há nenhum morto?! E então se realizou aquilo grandioso e conturbado que, com tanto horror e tão enigmaticamente, todos esperavam. Padre Vassíli jogou para trás a portinha que tilintou e, através da multidão, cortando a variedade de roupas dela com seu traje preto e solene, dirigiu-se ao negro caixão que esperava silenciosamente. Ele parou, levantou imperativamente a mão direita e falou, de maneira apressada, para o corpo em decomposição: — Eu lhe digo, levanta-te! Houve confusão, barulho, clamores e gritos de medo mortal. Em pânico, as pessoas correram para a porta e se transformaram em um rebanho: elas se 354

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agarravam umas às outras, ameaçavam com os dentes arreganhados, sufocavam e rosnavam. E jorravam da porta tão lentamente quanto água de uma garrafa virada. Restaram apenas o acólito, que havia deixado cair o livro, a viúva com os filhos e Ivan Porfírytch. O último olhou para o padre por um minuto – e se arrancou do lugar, e cravou-se na cauda da multidão, emitindo novos gritos de horror e raiva. Com um brilhante e feliz sorriso de lástima por sua descrença e medo, brilhando inteiro com o poder da fé ilimitada, padre Vassíli exclamou uma segunda vez, com solene e majestosa simplicidade: — Eu lhe digo, levanta-te! Mas o defunto permanecia imóvel, e seus lábios cerrados guardavam impassivelmente o eterno mistério. E fez-se silêncio. Nenhum som na igreja deserta. Mas agora, passos assustados e dispersos batem na pedra: a viúva e seus filhos também estão saindo. Em seu encalço corre trotando o velho acólito, por um momento se vira junto à porta, ergue as mãos – e mais uma vez faz-se silêncio. “Vai ser melhor assim: não é bom para ele se levantar nesse estado na frente da esposa e dos filhos”, pensa padre Vassíli rápida e casualmente, e fala pela terceira vez, em voz baixa e severa: — Semión! Eu lhe digo, levanta-te! Ele abaixa a mão lentamente e aguarda. Do lado de fora da janela, alguém rangeu esmagando areia, e o som estava tão próximo que era como se tivesse soado dentro do caixão. Ele aguarda. Os passos soaram mais próximos, passaram pela janela e silenciaram. E voltou o silêncio junto a um suspiro longo e doloroso. Quem suspirou? Ele se inclina em direção ao caixão, procura algum movimento que revele vida no rosto inchado; ordena aos olhos: “Vamos, abram-se!” – inclina-se para mais perto, mais perto, agarra com as mãos as bordas cortantes do caixão, quase resvala nos lábios azuis e sopra neles o sopro da vida – e o cadáver responde a ele com o hálito fétido, frio e feroz da morte. Ele recua calado e, por um momento, vê e entende tudo. Sente o cheiro Leonid Andrêiev

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de cadáver; entende que o povo fugiu com medo, e na igreja só restava ele e o morto; vê que está escuro do lado de fora das janelas, mas não imagina por que e se vira. Vislumbra a lembrança de algo terrivelmente distante, de algum tipo de risada primaveril, que uma vez soou e silenciou. Lembra-se da nevasca. Do sino e da nevasca. E da máscara imóvel do retardado. São dois deles, são dois deles, dois… E tudo desaparece novamente. Os olhos apagados se inflamam com fogo frio e saltitante, o corpo magro se enche de uma sensação de força e de uma resistência ferrenha. E, escondendo os olhos sob o pétreo arco das sobrancelhas, ele fala com muita calma, muito baixo, como se tivesse medo de acordar alguém: — O Senhor está querendo me enganar? E permanece calado, com os olhos baixos, como se estivesse esperando por uma resposta. E mais uma vez fala muito baixo, com aquela sinistra expressividade de uma tempestade, quando toda a natureza já está em seu poder, e ela hesita e balança uma pena no ar, majestosa e suavemente: — Então, por que eu acreditei? Então, por que o Senhor me deu amor e compaixão pelas pessoas, para caçoar de mim? Então, por que durante toda a minha vida o Senhor me manteve cativo, escravo, acorrentado? Nenhum pensamento livre sequer! Nenhum sentimento! Nenhum suspiro! Só existia o Senhor, tudo era para o Senhor. Só existia o Senhor! Pois bem, apareça agora, estou esperando! E em uma pose de orgulhosa resignação ele aguarda por uma resposta – sozinho diante do caixão preto, ferozmente triunfante, sozinho diante do rosto ameaçador do imenso e imponente silêncio. Sozinho. O fogo das velas se crava na névoa com pontas imóveis, e em algum lugar ao longe cantarola, se afastando, a nevasca: são dois deles, são dois deles… Silêncio. — Não quer? – ele pergunta do mesmo modo baixo e resignado e, de repente, grita como um louco, revirando os olhos, dando ao rosto aquela terrível franqueza de expressão que é característica dos moribundos e dos que estão dormindo profundamente. Grita, abafando com seu grito o terrível silêncio e 356

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o último horror de uma alma humana que agoniza: — O Senhor deve! Devolva a vida a ele! Leve a de outros, mas devolva a dele! Eu Lhe peço. Ele se dirige ao calado corpo em decomposição e ordena com raiva e desprezo: — Você! Peça a Ele! Peça! E grita de maneira blasfêmica, ameaçadoramente: — Ele não precisa do paraíso. Os filhos dele estão aqui. Eles vão chamar: pai. E ele dirá: tire da minha cabeça a coroa celestial, pois lá, lá estão cobrindo as cabeças dos meus filhos com pó e sujeira. Ele dirá! Ele dirá! Com raiva agita o pesado caixão preto e grita: — Ora, fale, carne amaldiçoada! Olha com espanto, agudamente – e em horror silencioso se inclina para trás, jogando as mãos tensas em busca de proteção. Semión não está no caixão. O cadáver não está no caixão. Lá está deitado o retardado. Segurando as bordas do caixão com seus dedos como garras, levantando levemente a cabeça disforme, ele olha de esguelha para o padre com os olhos apertados – e em torno das narinas abertas, em torno da enorme boca cerrada, paira uma risada silenciosa e que está sendo engendrada. Fica calado e olha e lentamente se projeta do caixão – indescritivelmente terrível na fusão incompreensível da vida e da morte eternas. — Para trás! – grita padre Vassíli, e sua cabeça se torna enorme por causa dos cabelos que ficaram em pé – para trás! E novamente o cadáver imóvel. E novamente o retardado. E assim, em um jogo monstruoso, a massa podre se duplica insanamente e exala horror. E em uma raiva selvagem ele diz em voz rouca: — Quer me assustar! Então veja só… Mas suas palavras não são audíveis. De repente, queimando com uma luz ofuscante, a máscara imóvel se rasga até as orelhas, e a risada, semelhante a Leonid Andrêiev

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um trovão, enche a igreja silenciosa. Ribomba, quebra as abóbadas de pedra, joga pedras e com seu rugido terrível abraça o homem solitário. Padre Vassíli abre os olhos cegados, levanta a cabeça e vê: tudo está caindo. Lenta e pesadamente as paredes se inclinam e se aproximam, deslizam os arcos, a cúpula alta desmorona silenciosamente, o chão balança e se verga – o mundo está ruindo em seus próprios alicerces e cai. E então, com um rugido selvagem, ele corre para as portas. Mas ele não as encontra e se joga de um lado para outro e se bate contra as paredes, contra os cantos de pedras pontudas – e ruge. Ele cai no chão com uma porta que se abriu de repente, se levanta de um salto alegremente e as mãos trêmulas e tenazes de alguém o abraçam e seguram. Ele se debate e guincha e, liberando a mão, bate com uma força ferrenha na cabeça do acólito que tentava segurá-lo e, afastando o corpo com um chute, salta para fora. O céu está em chamas. Nele nuvens rasgadas redemoinham e se jogam selvagemente e caem sobre a terra perplexa com toda a sua massa gigantesca – o mundo está ruindo em seus próprios alicerces. E de lá, do rodopiante caos de fogo, vem uma enorme gargalhada trovejante, estrondos e gritos de uma alegria selvagem. No ocidente, ainda brilha uma faixa azul e, sufocando, ele corre em direção a ela. Suas pernas se enroscam na longa casula, ele cai, rola no chão, ensanguentado, assustado e sai correndo de novo. A rua está deserta, como à noite – não se vê uma única pessoa nem junto às casas, nem nas janelas, nem uma única criatura viva: nem um animal, nem um pássaro. “Todos morreram!” – relampeja o último pensamento. Ele deixa para trás os limites da aldeia e sai na larga estrada bem trilhada. Sobre a cabeça dele, uma nuvem negra rodopiante lança para frente três longas ramificações, como três garras curvadas e predatórias; atrás, alguma coisa estrondeia surda e ameaçadoramente – o mundo está ruindo em seus próprios alicerces. Bem mais à frente, um homem e duas mulheres retornam de Znamienskoie em uma carroça. Eles veem o homem vestido de negro correndo rápido, param por um segundo, mas, reconhecendo o padre, batem no cavalo e seguem rapidamente. A carroça pula nos sulcos, e duas rodas se erguem no ar, 358

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mas as três pessoas silenciosas e encolhidas, tomadas pelo terror, chicoteiam desesperadamente o cavalo – e pulam e pulam com a carroça. Padre Vassíli caiu a três quilômetros da aldeia, no meio da estrada larga e bem trilhada. Ele caiu de bruços, com o rosto ossudo no pó cinza à beira da estrada, batido pelas rodas e pelos pés de pessoas e animais. E em sua pose ele conservou o ímpeto de correr; as mãos pálidas e mortas esticavam-se para a frente, uma perna se dobrou sob o corpo e a outra, em uma velha bota desgastada com uma sola furada, longa, reta e magra ficou jogada para trás, tensa e reta, como se mesmo morto ele tivesse continuado a correr.

(1904)

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AndrĂŞiev e TolstĂłi, em Yasnaya Polyana. 22 de abril de 1910. Foto de VF Bulgakov.


Teatro



As belas sabinas

U

Cena I

m terreno selvagem, não urbanizado. Está amanhecendo. Os romanos armados arrastam de trás da montanha as sabinas raptadas, belas mulheres seminuas. Elas resistem, guincham, arranham; e apenas uma está completamente calma e parece estar dormindo nos braços do romano que a carrega. Gritando de dor a cada novo arranhão, os raptores despejam apressadamente as mulheres no chão, formando um amontoado com elas, enquanto eles próprios saltam rapidamente para o lado e tentam se recompor, mal conseguindo respirar. Os guinchos silenciam. As mulheres também estão se recompondo enquanto seguem com desconfiança os movimentos dos sequestradores, sussurram, tagarelam baixinho. OS ROMANOS CONVERSAM1. — Por Hércules, estou encharcado de suor, pareço um rato d’água. Tenho a impressão que a minha pesa não menos do que duzentos quilos. — Não precisava ter perseguido a maior delas. Eu peguei uma pequenininha, magrinha e… — E o que aconteceu com o seu rosto? Será possível que a pequenininha e 1  Nos textos para teatro, normalmente as falas são identificadas com cada uma das personagens que as pronuncia. Não é o caso aqui neste texto de Andrêiev, onde falas de diversos trechos de diálogos estão sem identificação explicita. Talvez o autor tenha entendido que essa identificação seja natural pela evolução do diálogo. Fizemos um esforço para destacar as personagens de cada fala, onde isso foi possível, mas preservando o texto original (N. da E.).

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magrinha foi quem fez isso? — Infelizmente! Ela arranha como uma gata. — Todas elas arranham como gatas! Eu já estive em mais de cem batalhas: fui atingido por espadas, paus, pedras, muralhas e portões, mas jamais fiquei em um estado tão lamentável. Temo que meu nariz romano agora não sirva mais para nada. — E se eu não costumasse raspar toda a minha barba, como todos os romanos antigos, não me teria restado um único fio. Elas têm, você sabe, encantadores dedos finos com unhas incrivelmente afiadas. Você diz: gatas! Ah, mas o que são gatas perto delas? A minha conseguiu ficar arrancando até mesmo o meu pelo e se dedicou a isso diligentemente durante todo o caminho. Até se calou! UM ROMANO ALTO E GORDO (fala em timbre baixo): — E a minha se enfiou por baixo da armadura e ficou me fazendo cócegas debaixo dos braços. Eu fiquei o caminho todo gargalhando. Entre as sabinas ouve-se uma risadinha baixa e venenosa. — Fale baixo, elas estão nos escutando. Senhores, tratem de se recompor e deixar para lá as reclamações; não vai ser bom se desde o primeiro dia elas deixarem de nos respeitar. Vejam o Paulo Emílio: eis um homem que se porta com dignidade. — Ele está radiante como a própria Aurora! — Por Hércules! Ele não tem nem um arranhão. Como você conseguiu isso, Paulo? PAULO (com fingida modéstia): — Não sei. Desde o primeiro momento ela se apegou a mim como se eu fosse seu marido. Eu a ergui em meus braços, ela prontamente envolveu meu pescoço e a única coisa que temi foi ela me sufocar com o abraço: ela tem braços finos, mas muito fortes. — Que sortudo! 364

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— Mas é muito simples! Seu crédulo coração inocente lhe sussurrou que eu a amo e a respeito sinceramente, e vocês provavelmente não vão acreditar: ela dormiu como uma pedra durante metade do caminho. O ROMANO GORDO: — Mas permitam-me, senhores romanos: como agora cada um de nós irá reconhecer a sua? Nós as raptamos no escuro, como galinhas de um galinheiro. Do amontoado de sabinas caladas, surge uma exclamação indignada: “Que comparação vil!” — Fale baixo, elas estão nos escutando. O ROMANO GORDO (abaixando a voz em uma oitava): — Como vamos resolver isso agora? A minha era muito alegre, e eu não vou cedê-la a ninguém. Eu não costumo levar desaforo pra casa. — Que besteira! — A minha eu vou reconhecer pela voz: acho que não serei capaz de esquecer seus gritos estridentes até o dia do nascimento de Cristo. — A minha eu reconhecerei por suas unhinhas. — A minha, pelo maravilhoso aroma de seus cabelos. PAULO: — E eu vou reconhecer a minha pela mansidão e beleza da alma. Ó, romanos, aqui estamos no limiar de uma nova vida! Adeus, penosa solidão! Adeus, noites sem fim com seus malditos rouxinóis! Que cante agora um rouxinol ou qualquer outro pássaro, eu estou pronto. O ROMANO GORDO: — Sim, é hora de começar uma vida em família. DO LADO DAS MULHERES uma exclamação irônica: “Ah é, quero ver, experimentem se aproximar”. — Mais baixo, elas estão nos escutando. Leonid Andrêiev

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— Está na hora, está na hora. — Senhores romanos, quem será o primeiro? Silêncio. Todos permanecem imóveis. Entre as mulheres ouve-se uma risada baixa e venenosa. O ROMANO GORDO: — Eu já gargalhei o suficiente. Deixe que outros gargalhem agora. E eu não costumo levar desaforo pra casa. Ei, você, Paulo, vá lá! — Seu monstro! Não está vendo que a minha ainda está dormindo? Ali, veja: aquela forma escura enrolada sob a pedra, é ela. Oh, coração inocente! CIPIÃO: — Pela postura de vocês, senhores romanos, cheios de indecisão e justa preocupação, vejo que ninguém se atreverá a se aproximar sozinho dessas criaturas impiedosas. Então escutem aqui o meu plano, senhores antigos romanos… O ROMANO GORDO: — Esse Cipião tem cabeça! CIPIÃO: — Eis o meu plano: vamos nos mover todos de uma vez, nos escondendo uns atrás dos outros e sem pressa. Se nem dos maridos delas tivemos medo… O romano gordo: — Hum, os maridos. Eles são outra história! Entre as mulheres ouvem-se suspiros altos e um choro ostensivo. — Mais baixo, elas estão ouvindo. — Você de novo com essa sua língua, Marco Antônio! Enfim, é preciso evitar essa palavra infeliz: maridos – vocês veem que efeito terrível ela tem sobre as pobres mulheres. Então, senhores, concordam com o meu plano? — Concordamos, concordamos. — Pois então, senhores! 366

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Os romanos se preparam para o ataque e as mulheres, para a defesa: em vez de rostos encantadores, se veem apenas unhas afiadas, prontas para grudarem no rosto e nos cabelos. Um sibilar baixo, como o das cobras. Os romanos avançam de acordo com o plano, isto é, escondendo-se uns atrás dos outros; mas isso os leva ao fato de que todos eles vão recuando e acabam por desaparecer atrás da cortina. Entre as mulheres ouve-se o riso, os romanos saem desnorteados. — Pelo visto, existe alguma falha no seu plano, Cipião. Com o propósito de chegar, fomos embora, como diria Sócrates. O ROMANO GORDO: — Eu não estou entendendo nada. PAULO: — Senhores romanos, sejamos corajosos. Afinal, o que são um ou dois arranhões perto da felicidade celestial que temos à frente? Avante, senhores romanos, ao ataque! A dissonante multidão de romanos – com exceção de Paulo, que está sonhadoramente olhando para o céu – se lança sobre as mulheres, mas depois de um momento de combate silencioso, eles recuam apressadamente. Silêncio. Todos apalpam os próprios narizes. CIPIÃO (com voz anasalada): — Vocês repararam, senhores, que elas sequer gritaram? Mau sinal! Eu prefiro uma mulher quando ela grita. — O que fazer, então? — Eu quero uma vida em família! — Eu quero o aconchego de uma família! Que tipo de vida se pode ter quando não há o aconchego de uma família? Já chega, que diabos, nós fundamos Roma, também precisamos de um descanso! CIPIÃO: — Infelizmente entre nós, senhores antigos romanos, não há sequer um homem que conheça bem a psicologia feminina. Ocupados com as guerras e a Leonid Andrêiev

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fundação de Roma, ficamos embrutecidos, perdemos o brilho e esquecemos o que é uma mulher… PAULO (humildemente): — Nem todos. CIPIÃO: — Mas, afinal, essas mulheres tinham maridos que ontem nós derrotamos, não é mesmo? E disso concluo: existe uma maneira especial e misteriosa de se aproximar de uma mulher que não conhecemos. Como descobri-la? O ROMANO GORDO: — É preciso perguntar para as próprias mulheres. — Elas não vão contar. Entre as mulheres ouve-se a risada venenosa. — Mais baixo, elas estão escutando! CIPIÃO: — Vejam o plano que inventei… O ROMANO GORDO: — Esse Cipião tem cabeça! — Nossas encantadoras raptoras… Vocês não acham, senhores, que não fomos nós que as raptamos, mas elas a nós? Ocupadas em arranhar nossos rostos, arrancar os pelos, fazer cócegas sob os braços, elas simplesmente não podem nos ouvir. E já que elas não conseguem nos ouvir, então, nós não podemos convencê-las. E se nós não podemos convencê-las, então, elas não podem ser convencidas. Isso é fato! Os romanos, repetindo “isso é fato”, caem em um estado sombrio. As mulheres escutam atentamente. CIPIÃO: — Eis o meu plano: escolheremos um embaixador em nosso meio, de acordo com os costumes militares, e vamos propor às nossas encantadoras ini368

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migas que façam o mesmo. Espero que, sob a proteção da bandeira branca, os representantes das partes em conflito, estando em completa segurança (cutuca o próprio nariz) terão condições de chegar a um certo, falando em latim, modus vivendi. E então… Os romanos interrompem seu brilhante discurso, explodindo em gritos: “Urra!” Eles unanimemente escolhem CIPIÃO como embaixador, e este, com uma bandeira branca, vai se aproximando cautelosamente das mulheres, enquanto olha para trás e diz: “Mas vocês não se afastem muito, rapazes”. CIPIÃO (insinuante): — Belas sabinas, por favor, por favor, não saiam do lugar: como podem ver, eu estou sob a proteção da bandeira branca. A bandeira branca é sagrada, eu garanto a vocês, e minha pessoa goza de imunidade, palavra de honra! Belas sabinas, foi apenas ontem que tivemos o prazer de raptá-las, e hoje já surgiram desentendimentos entre nós, desavenças, estranhos mal-entendidos. CLEÓPATRA: — Que audácia! Não pense que, só porque você pendurou esse trapo branco em uma vara, pode vir aqui nos dizer todo tipo de vilanias! CIPIÃO (insinuante): — Perdoe-me, que vilanias? Pelo contrário, eu estou muito feliz, isto é, mais precisamente, estamos todos muito infelizes e (com desesperada determinação) ardendo de amor, juro por Hércules! Minha senhora, eu estou vendo, você solidariza-se conosco, e eu me atrevo a lhe pedir um pequeno favor: escolha, em seu meio, uma embai… CLEÓPATRA: — Estamos cientes, já escutamos, não precisa fingir. CIPIÃO: — Mas nós falamos baixinho, não falamos? VOZES FEMININAS: — Mas nós ouvimos mesmo assim. Leonid Andrêiev

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CLEÓPATRA: — Volte com o seu trapo para o seu lugar e espere. Nós vamos discutir a questão entre nós. Não, não, por favor, mais para longe. Não queremos que nos ouçam. E quem é esse fedelho de boca aberta? (Aponta para o sonhador Paulo). Tirem ele daqui, por favor. Sussurrando “as coisas estão melhorando”, os romanos se afastam na ponta dos pés, alguns tapam seus ouvidos conscienciosamente.

A CONVERSA DAS SABINAS — Que atrevimento! Que escárnio! Usar sua força de forma tão abominável – oh, nossos pobres maridos! — Eu juro: prefiro arrancar milhares de olhos com as unhas do que trair nem mesmo um pouquinho meu infeliz marido! Durma em paz, querido companheiro, eu permaneço em vigília zelando por sua honra! — Eu também juro! — Eu também juro! CLEÓPATRA: — Ah, minhas queridas amigas, todas nós juramos, mas de que servem esses juramentos? Essa gente é tão mal-educada e rude que não é capaz de dar valor a juramentos. Eu roí o nariz do meu… — E você lembra do seu? CLEÓPATRA (com ódio): — Eu me lembrarei dele até a morte! Fedia tanto à armadura e à espada, enfim, a soldado grosseiro, ele me apertava tão descuidadamente… Meu pobre e querido marido! — Todos eles fedem a soldado. — E todos eles ficam apertando a gente terrivelmente! Talvez seja o 370

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costume deles? — Quando eu ainda era uma menina, um soldadinho apareceu em casa e disse que ele era daquela região distante onde … CLEÓPATRA: — Senhoras! Agora não é hora para recordações! — Mas esse soldadinho… — Ah, Juno, por Vênus, não queremos saber do seu soldado, quando temos o nosso próprio pendurado no pescoço! O que faremos, queridas amigas? Eis o que eu proponho a vocês… VERÔNICA, uma sabina de respeitável idade, descarnada e que tinha acabado de acordar, se aproxima e, piscando os olhos languidamente, interrompe: — Mas onde eles estão? Por que estão tão longe? Eu quero que eles cheguem mais perto. Fico muito envergonhada quando eles estão longe. Eu estive o tempo todo desmaiada e agora não consigo encontrar: onde está o meu menino, o que me carregou? Ele cheirava a soldado! CLEÓPATRA: — Ali está ele, de boca aberta. VERÔNICA: — Eu vou até ele: estou envergonhada. CLEÓPATRA: — Segurem-na! Ah, Verônica, será possível que você já se esqueceu de seu infeliz marido? VERÔNICA: — Eu juro, vou amá-lo eternamente. Mas por que não vamos para lá? Vocês estão preocupadas com alguma coisa, queridas amigas? No entanto, eu concordo com tudo: deixe que eles mesmos venham até aqui. Os homens ficam inadmissivelmente convencidos assim que você olha para eles sem raiva. Leonid Andrêiev

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CLEÓPATRA: — Então, minhas queridas amigas: a primeira coisa que proponho é que juremos nunca trair nossos queridos e infelizes maridos. Deixe-os fazer o que quiserem conosco, mas permaneceremos fiéis, como a rocha Tarpeia2. Quando eu lembro como ele sente minha falta agora, como diante do leito vazio ele clama em vão: “Cleópatra! Oh, onde está você, Cleópatra!”, quando eu me lembro como ele me amava… Todas choram. — Então, vamos jurar, queridas amigas, pois eles estão esperando. — Juramos, juramos! Que façam o que quiserem conosco, mas nós permaneceremos fiéis! CLEÓPATRA: — Agora eu estou tranquila pelos nossos maridos. Durmam tranquilos, caros companheiros! Prosseguindo, queridas amigas: de acordo com o que eles pediram, vamos escolher uma embaixadora, e que ela… — Arranque os olhos dele com as unhas! — Não, que ela diga ao desgraçado toda a verdade. Pois eles pensam que nós só sabemos arranhar – deixem que eles saibam como nós podemos falar! VERÔNICA (encolhendo os ombros magros): — Falar de que, se a força está do lado deles! CLEÓPATRA: — Segurem-na! Ah, Verônica, a força ainda não consiste no direito, como é dito na lei Romana. Deixem que eu vá, e irei provar a eles que não têm o direito de nos prender, que são obrigados a nos deixar ir. Que de acordo com as leis divinas e humanas, enfim, como se diz, eles se comportaram como uns porcos. 2  Na Roma antiga, a rocha Tarpeia era um local destinado a execuções onde os condenados eram lançados dessa enorme rocha para a morte. (N. da E.)

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VOZES: — Vá, vá, Cleópatra. — Segurem a Verônica. CLEÓPATRA: — Ei, você, embaixador com o trapo branco! Venha cá, preciso falar com você. CIPIÃO: — Deseja que eu solte a espada? CLEÓPATRA: — Não, para quê? Não pensem que temos medo de suas espadas. Venha, por favor, não tenha medo: eu não vou mordê-lo… No entanto, ontem, quando à noite você irrompeu em nosso pacífico lar e rudemente me arrancou dos braços do meu infeliz marido, você não estava se comportando de forma tão covarde… Ora, venha logo de uma vez! Cipião se aproxima com cuidado. Os romanos e as sabinas, posicionados nas laterais do palco em dois grupos simétricos, acompanham atentamente a conversa. CIPIÃO: — Estou tão feliz, minha senhora… CLEÓPATRA: — Você está feliz? Pois eu lhe digo o seguinte: você é um desgraçado, você enlouqueceu, você é um bandido, um ladrão, um assassino, um vilão, um monstro, um algoz! Isso fere os princípios divinos, é repugnante, revoltante, nunca se ouviu nem se viu tal coisa! CIPIÃO: — Minha senhora! CLEÓPATRA: — Você me causa repulsa, nojo, não posso nem ver você na minha frente, Leonid Andrêiev

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você fede a soldado! Se o seu nariz não estivesse tão arranhado, eu iria… — Perdoe-me, mas foi você mesma quem o arranhou! — Eu! Então você é aquele mesmo que… (olha para ele com desdém) perdão, eu não o reconheci. — (Alegremente) pois eu a reconheci imediatamente. Não é verdade que seus cabelos cheiram a verbena? — E o que você tem com isso, com o cheiro que eles têm? Verbena é um perfume tão bom quanto os outros. — É isso que estou dizendo… — Não me interessa o que você diz. Eu não fico falando sobre como você cheira – e, afinal, que conversa estranha é essa sobre cheiros? Peço-lhe, caro senhor, como a uma pessoa honesta, que nos diga direta e abertamente: o que vocês querem de nós? Cipião baixa os olhos com ar modesto; mas não consegue se conter e bufa no punho fechado tentando disfarçar o riso. Todos os romanos bufam e entre as mulheres reina a indignação. CLEÓPATRA (ficando vermelha): — Bufar não é resposta! Isso é torpe! Eu lhe pergunto: o que vocês estão tentando conseguir da gente? Vocês, eu espero, estão cientes de que todas nós somos casadas? — Como lhe dizer, minha senhora…? Por outro lado, nós também temos a pretensão de pedir as mãos de vocês e de oferecer-lhes nossos corações… — Ah! Quer dizer que isso é sério? Mas vocês ficaram loucos! — Minha senhora! Dê uma olhada em nós: não somos quaisquer cortejadores da avenida Niévski! Acabamos de fundar Roma e estamos ardendo de desejo de imortalizar… Coloque-se em nosso lugar, minha senhora, e tenha piedade de nós! Vocês realmente não teriam piedade, por exemplo, de seus maridos, se um belo dia eles ficassem completamente desprovidos de mulheres? Nós estamos sozinhos, minha senhora! 374

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O romano gordo: — Sozinhos! Verônica (enxugando os olhos): — Estou com pena deles. CIPIÃO: — Em meio às tormentas das intempéries da guerra, ocupados com a tarefa de fundar Roma, nós deixamos passar, por assim dizer, o momento em que… Minha senhora, nós sentimos sinceramente por seus maridos… CLEÓPATRA (com dignidade): — Você me alegra, senhor. — Mas por que diabos eles as entregaram? Os romanos apoiam alegremente: “isso, isso aí, Cipião!”, mas as mulheres ficam indignadas. Escutam-se exclamações: “Isso é torpe! Ele está ofendendo nossos maridos! São insinuações!” CLEÓPATRA (secamente): — Se quer continuar com as conversações, então eu lhe peço que fale de nossos maridos com respeito. CIPIÃO: — Com prazer! Mas, minha senhora, não importa o quanto os respeitemos, não podemos deixar de reconhecer que eles são indignos de vocês! Enquanto vocês partem nossos corações com seus sofrimentos inumanos; quando suas lágrimas quentes, suscitadas pela perda, jorram como os rios vindos das montanhas na primavera; quando até as pedras, estremecendo de pena, murmuram e gemem; quando seus encantadores narizes, perdendo a forma, começam a inchar por causa das lágrimas cruéis… — Isso não é verdade! — Quando toda a natureza e assim por diante, mas onde é que estão seus maridos neste momento? Eu não os estou vendo, não estão aqui! Eles estão ausentes! Eles as abandonaram! E digo mais, arriscando provocar sua ira: eles Leonid Andrêiev

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as traíram torpemente! Os romanos orgulhosamente põem as mãos nos quadris. Entre as mulheres, comoção e lágrimas. A voz calma de Proserpina: “Realmente, por que eles não estão vindo? Já não era sem tempo!” CLEÓPATRA: — Isso soa muito orgulhosamente, caro senhor, e eu não posso recusar a beleza da sua postura, mas como vocês iriam agir se eles quisessem nos raptar à noite? CIPIÃO: — Nós vamos ficar em vigília a noite toda! — E de dia? — E de dia vocês não conseguirão ir embora sozinhas. A voz lânguida de Verônica: “Por que eles estão tão longe? Sinto vergonha quando eles estão tão longe. Eu quero que eles estejam mais próximos!” E o sussurro das mulheres: “Segurem-na!” CLEÓPATRA: — Quanta autoconfiança! Mas sinto pena de você, senhor: é verdade que não posso lhe negar um sentimento de reverência e respeito pelo nosso sofrimento, mas a sua juventude faz com que incorra em erros. Agora eu lhe darei um argumento que destruirá imediatamente o seu maravilhoso sonho e, espero, irá até fazer você corar. E os filhos, meu caro senhor?! CIPIÃO: — Que filhos? — Os filhos que nós deixamos! — Confesso, minha senhora, que esta é uma questão séria. Permita que me afaste por um minuto para uma reunião com meus companheiros. Cleópatra volta para as mulheres. Cipião para os homens. Aconselham-se entre sussurros. 376

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CIPIÃO: — Minha senhora! CLEÓPATRA: — Estou ouvindo! — Meus companheiros, senhores antigos romanos, depois de uma longa reunião, instruíram-me a lhes comunicar que vocês terão novos filhos. CLEÓPATRA (espantada): — Ah! É isso que vocês pensam? — Nós juramos! Senhores, jurem! Os romanos juram em um coro desafinado. CLEÓPATRA: — Mas esse lugar de vocês é muito feio. Cipião (ofendido): — O nosso lugar? — Sim, uma região horrível! Montanhas, barrancos, enfim, algo incompreensível. Por que esta pedra está aqui? Leve-a embora, por favor. — Minha senhora (tirando a pedra). — E umas árvores! Deus sabe que estou sufocando aqui! Por favor, que tipo de árvore estúpida é essa? Você está confuso, caro senhor? No entanto, permita que me afaste: parece que devo dar-lhe algum tipo de resposta. CIPIÃO: — Como assim: algum tipo? — Tenho a impressão de que você perguntou sobre alguma coisa. — Eu? Perdão, minha senhora, eu estou um pouco atordoado! Sobre o que eu lhe perguntei? — Ora essa! Agora você está me ofendendo. Leonid Andrêiev

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— Eu? — Mas é claro. Você está dizendo que ficou atordoado! — Eu? — Eu que não! Você está passando dos limites, caro senhor! — Eu? — Ademais, estou me retirando. Recomponha-se, caro senhor, enquanto nós vamos discutir o que fazer: dá pena olhar para você! Você tem um lenço? Limpe seu rosto: está tão suado que parece que andou carregando pedras o dia todo! Faz menção de se retirar. CIPIÃO: — Não, minha senhora, permita-me: parece que andei carregando certa pedra de fato, mas foi a senhora que me obrigou a fazê-lo! CLEÓPATRA: — Eu? De jeito nenhum! — Permita-me, minha senhora, mas qual é o problema? — E como é que eu vou saber? O problema é seu, não meu! — Tenho a impressão que você está zombando de mim. — E você reparou? — Eu não permitirei que zombe! — E como você fará isso? — Eu, graças a Deus, ainda não sou um marido! — Ah! Agora já é “graças a Deus”! Nada mal, senhor! Que tolas seríamos se tivéssemos acreditado em seus juramentos. (Para as mulheres) vocês estão escutando: eles já estão ficando felizes por não sermos suas esposas! — Não, assim não é possível! Ou você para… — Ou… 378

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— Ou vá para casa! Sim, sim, vá para casa, minha senhora! Chega! Por Hércules, não fundamos Roma para isso, para ficarmos atolados em suas divagações disparatadas como moscas na geleia! — Disparatadas? — Sim, sim, idiotas! CLEÓPATRA (chora): — Você está me ofendendo. — Ó, Júpiter, agora ela está chorando! O que você quer, minha senhora? Por que você cismou comigo? Apesar de eu ser um romano antigo, mas, por Deus, estou ficando louco agora! Mas pare de chorar, eu não estou entendendo nada do que você está murmurando aí! CLEÓPATRA (chorando): — Vocês vão nos deixar ir? — Sim, sim! Companheiros! Senhores antigos romanos! Vocês escutaram? Eu não tenho mais forças! O ROMANO GORDO: — Deixe que vão: nós iremos tomar as esposas dos etruscos. CIPIÃO: — Isso não são mulheres, são… Cleópatra (chorando): — Palavra de honra? CIPIÃO: — Que palavra de honra? — Vocês vão nos deixar ir? Você não está dizendo isso de propósito, para vocês nos agarrarem, assim que quisermos sair? — Não, não, podem ir. Ora, não me deixa em paz! — E vocês vão nos carregar de volta? Leonid Andrêiev

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— O quê? — Claro que sim, como você não entende? Uma vez que foram vocês que nos carregaram até aqui, vocês é que devem nos carregar de volta. Aqui estamos muito longe. As mulheres se riem venenosamente. Cipião, engasgado de raiva, lança olhares furiosos, deseja dizer alguma coisa, mas bate com o pé no chão e vai até seus homens. Todos os romanos dão as costas às mulheres ostensivamente e assim permanecem sentados dali em diante. As mulheres debatem calmamente entre si. CLEÓPATRA: — Vocês escutaram, queridas amigas: vão nos libertar. VERÔNICA: — Sim, isso é terrível! — Não, melhor dizendo: estão nos expulsando! Isso é ultrajante: raptar mulheres totalmente inocentes, agitar a casa toda no meio da noite, virar todos os móveis, acordar as crianças, e agora vejam só: eles não precisam de nós! — E nossos pobres maridos! Então, por que razão eles foram vitimados? — Não, vocês imaginem só, tarde da noite, quando todos estavam dormindo! — E você sabe o caminho daqui? — E você acha mesmo que eu fiquei observando o caminho? É claro que não. Só sei que estamos terrivelmente longe. — Mas eles não vão nos carregar de volta. Uma risada baixinha. VERÔNICA suspira. — Ah, meu pobre menino! Vejam: eles o fizeram se sentar de costas para nós. Eu vou até ele. — Mas espere aí, Verônica: o seu menino não vai fugir de você. Nós precisamos conversar. 380

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PROSERPINA: — Pois eu acho que tanto faz quem sejam os maridos, esses ou aqueles. Tanto aqueles quanto esses são farinha do mesmo saco. Afinal, eu sei que a primeira coisa que vão exigir de mim é que eu cozinhe uma sopa quente. E até me agrada a ideia de que terei um novo marido: o anterior já estava enjoado do meu cardápio, porém esse basbaque ficará satisfeito. CLEÓPATRA: — Que cinismo, Proserpina! A história irá nos condenar. — Ah, a história entende muito dos nossos assuntos. E este lugar deles até que não é nada mal. CLEÓPATRA: — Você é terrível, Proserpina! Ah, se eles nos escutassem! Mas eis o meu plano, queridas amigas: acabou, iremos imediatamente para casa, para nossos queridos e plácidos maridos. Mas o caminho é tão longo, estamos tão cansadas… — Meus nervos estão completamente abalados! — Não há saúde que aguente isso. De repente, no meio da noite, badernar toda a casa… CLEÓPATRA: — Vamos ficar aqui por uns dois dias e descansar, afinal isso não vai nos comprometer a nada, certo? E eles ficarão tão felizes e, vendo nosso temperamento alegre e dócil, irão se separar de nós mais facilmente. Eu admito, fiquei com um pouco de pena do meu: o nariz dele está num estado horrível! — Mas só por dois dias! — Eu acho até que um só será suficiente. Nós passearemos um pouco… vá logo, Cleópatra, parece que eles já dormiram. CLEÓPATRA: — Senhor! Leonid Andrêiev

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CIPIÃO (sem se virar): — Pois não? — Venha cá um minuto. — Às suas ordens. — Decidimos aproveitar sua oferta generosa e vamos partir imediatamente. Você não está bravo? — Não. — Mas antes nós gostaríamos de descansar um pouco. Vocês nos permitem ficar por um ou dois dias, enquanto nos recuperamos? A região de vocês é muito bonita. Todos os romanos se viram imediatamente e se põem de pé. CIPIÃO (em êxtase): — Cara senhora, que região! Que… ó, Júpiter! Minha senhora, por Hércules! Por Vênus! Por Baco! Minha senhora, que eu seja três vezes amaldiçoado se… por Afrodite! Senhores antigos romanos! Ao ataque! CLEÓPATRA: — Nós vamos passear um pouco, não é? — Minha senhora! Senhores antigos romanos! Marchando! Seguir em fila! Esquerda, direita! Fileiras duplas! Toma Cleópatra sob o braço e a arrasta para as montanhas. Atrás dele, seguindo as ordens, os restantes marcham orgulhosamente após tomarem cada um a sua sabina. — Esquerda, direita, esquerda, direita! Um, dois, um, dois! Apenas PAULO EMÍLIO vai de um lado para outro no palco, exclamando lamuriosamente: — Onde está ela? Senhores antigos romanos, esperem! Eu a perdi! Mas onde está ela? Verônica permanece parada, baixando os olhos recatadamente, como uma noiva. PÁVEL, por não enxergar direito, colide com ela. 382

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— Desculpe! Senhora, você não a viu? — Seu tolo! — Eu? — Sim! Você é um tolo. — Por que é que está me xingando? — Xingando? Ó… tolo! Por acaso você não está vendo? Ó meu querido menino, eu esperei trinta anos por você. Tome, pegue. — O quê? — A mim! Pois eu sou ela, ó tolinho! — Você? Não, você não é. — Sim, sou eu. — Não, você não é. Senta-se no chão e chora. Verônica: — Escute: nós ficamos para trás sozinhos, estou envergonhada. Vamos. — Não é você. — Pois eu estou lhe dizendo que sou eu, que diabos! Vejam só: faz trinta anos que o outro fica repetindo que não sou eu, agora esse fedelho também! Me dê a mão! Paulo (uiva com horror): — Não é você! Ai, ai, ai, socorro! Ela está me rap-tan-do! Fecham as cortinas

Cena II Uma cena sombria até o último detalhe, retratando o triste estado dos maridos que foram roubados. É bem possível que esteja chovendo, o vento Leonid Andrêiev

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esteja assobiando e nuvens negras toldem o céu, mas é bem possível que tudo isso apenas pareça estar acontecendo. É terrível! (Seria desejável mostrar na própria paisagem que os maridos querem uivar de saudade.) Quando as cortinas abrem, os atores se encontram da seguinte maneira: nas laterais, em dois grupos simétricos, parte dos sabinos se ocupa em fazer ginástica. Seguindo os movimentos dos braços, eles sussurram concentradamente: “Quinze minutos de exercício diário e você estará completamente saudável”. No meio, em um longo banco, os maridos que possuem filhos estão sentados próximos uns aos outros, e cada um segura nas mãos um bebê. As cabeças estão tristemente inclinadas para o lado, a pose toda expressa um desespero estilizado. É terrível! Por um longo tempo, escuta-se apenas o sussurro sinistro: “quinze minutos de exercício diário e você…” Entra Anco Márcio, mostrando de longe uma carta. MÁRCIO: — O endereço, senhores sabinos! Recebemos o endereço de nossas esposas! O endereço, senhores, o endereço! VOZES BAIXAS: — Escutem! Escutem! O endereço, recebemos o endereço! ANCO MÁRCIO rapidamente tira do bolso um sininho e o toca. — Silêncio! Silêncio! MÁRCIO: — Senhores sabinos! A história não poderá nos censurar, nem por lentidão, nem por indecisão. Nem a lentidão, nem a indecisão são inerentes ao caráter dos sabinos, cujo temperamento violento e impetuoso mal pode ser contido pelas barragens da prudência e da experiência. Vocês se lembram, maridos roubados, para onde corremos naquela memorável manhã que se seguiu àquela memorável noite em que esses ladrões raptaram de maneira vil as nossas desafortunadas esposas? Vocês se lembram, sabinos, para onde nossas ágeis pernas nos levaram, devorando o espaço, destruindo os ocasionais obstáculos e enchendo o país com seu estrondo? Sim, lembrem-se, 384

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senhores! Os sabinos se calam humildemente. — Pois então! Lembrem-se, senhores! UMA VOZ TÍMIDA: — Proserpininha, minha querida, onde está você? Olá-á! Os sabinos permanecem em silêncio e com a excitação da espera fitam a boca do orador. ANCO MÁRCIO, sem esperar por uma resposta, exclama pateticamente: — À seção de endereços! Eis para onde fomos! Mas lembrem-se, senhores, de nossa desgraça: a seção de endereços, esta instituição obsoleta, ainda não sabia de nada e nos informou apenas o antigo endereço! E por uma semana inteira ela ficou nos fornecendo a mesma informação mortalmente irônica, até que finalmente deu essa, amarguíssima (lê): “Foram-se não se sabe para onde”. Mas nós nos acalmamos, sabinos? Lembrem-se! Os sabinos permanecem calados. — Não, nós não nos acalmamos! Aqui está uma lista enxuta, mas eloquente do que fizemos neste breve um ano e meio. Colocamos um anúncio nos jornais honestos com a promessa de dar uma recompensa a quem as encontrasse. Convidamos todos os astrólogos disponíveis, e toda a noite eles ficavam adivinhando, com a ajuda das estrelas, o endereço de nossas infelizes esposas… — Proserpininha, querida, olá-á! — Nós matamos milhares de galinhas, gansos e patos, cortamos a barriga de todos os gatos, tentando adivinhar o fatídico endereço por meio das vísceras dos pássaros e dos animais. Mas – ai! – nossos esforços inumanos, pela vontade dos deuses, não foram coroados de sucesso. Lembrem-se, senhores sabinos… pensando bem, não é preciso, eu digo o seguinte: nem o conhecimento experiente, nem o inexperiente nos deu qualquer resposta. Os próprios corpos celestes, para os quais nossos olhos se voltaram com tristeza e questionamento, concordaram em responder, mas não mais do que a seção de Leonid Andrêiev

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endereços: se foram, se foram, se foram… mas para onde? Não se sabe! Os sabinos choram baixinho. A voz tímida: — Proserpininha, olá-á! — Sim, senhores sabinos: uma resposta estranha da parte dos astros celestes, se levarmos em conta que não dá para enxergar de lá! Mas… continuo a listar orgulhosamente nossos esforços. Lembrem-se, senhores, o que nossos eruditos juristas fizeram enquanto os astrólogos adivinhavam lendo as estrelas? Vamos! Os sabinos permanecem em silêncio. — Vamos, lembrem-se, senhores! É tão difícil falar com vocês! Ficam parados como figurantes, por Deus! Tenho certeza de que se lembram, apenas estão com vergonha de falar. Vamos, senhores! E aí? E aí? Vamos, lembrem-se: o que nossos advogados fizeram, enquanto… — Proserpininha, olá-á! — Dá para parar, não me atrapalhe com a sua Proserpininha! Bem, eu vou ajudá-los, senhores: lembrem-se, para que vocês praticavam ginástica? E então? UMA VOZ TÍMIDA vinda das fileiras mais atrás: — Para desenvolver os músculos. — Mas é claro! Ótimo… bem, e por que precisamos de músculos? Vamos, digam! Com vocês, senhores, não há paciência que chegue. Lembrem-se: por que nós, sabinos, precisamos de músculos? UMA VOZ INSEGURA: — Para lutar? MÁRCIO, em desespero, levanta as mãos para o céu. — Ó, céus! Para lutar! E isso é dito por um sabino, um amigo da lei, um pilar da ordem, o único modelo genuíno de consciência legal no mundo! Para lutar! Tenho vergonha deste truque de vândalo, digno de um ladino romano, um vil 386

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ladrão de esposas legitimíssimas! — Proserpininha, olá-á! — E você cale a boca com essa sua Proserpininha! Temos aqui uma questão sobre princípios e ele fica falando de Proserpininhas! Estou vendo, senhores, que a perda eclipsou, em parte, sua brilhante memória e repito sucintamente: precisamos de músculos para que, pondo-se a marchar sobre os romanos, depois que soubermos o endereço – estão entendendo? – possamos levar por todo o caminho um código de leis muito pesado, uma coletânea de leis e sentenças de cassação, assim como – estão entendendo agora? – aqueles quatrocentos volumes de pesquisas que nossos advogados elaboraram sobre a legalidade de nossos casamentos – e então, entenderam? – e a ilegalidade do rapto! Nossas armas, senhores sabinos, são a nossa lei e a consciência limpa! Nós provaremos aos infames raptores ​​ que eles são raptores; às nossas esposas provaremos que elas foram raptadas de fato. E o céu tremerá, pois o endereço foi recebido e a questão está no papo. É isso! Ele sacode a carta, os sabinos ficam na ponta dos pés para espiar. — Carta registrada com a seguinte assinatura: raptor arrependido. Nele, um amigo desconhecido expressa seu arrependimento sobre o ato impensado, assegura que ele nunca mais raptará e implora que o destino tenha misericórdia dele. O nome é ilegível; um grande borrão, aparentemente causado por lágrimas. Isso é o que significa consciência! A propósito, ele comunica que os corações de nossas esposas estão partidos… — Proserpini… — Escute de uma vez por todas: com essa sua Proserpininha você não me deixa dizer uma palavra! Entenda que a sua Proserpina é um detalhe. Enquanto todos nós, com tamanho entusiasmo, estamos abordando questões gerais, criando um plano – eu já vou falar sobre ele – nos preparando para a derrota ou para a morte, você fica se lamuriando sobre não sei o que Proserpininha! Em nome dos aqui reunidos, eu lhe expresso uma reprimenda. Então, senhores, ao caminho! Ouçam o comando! Formem as fileiras… ei, mais

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rápido, senhores! Isso é revoltante, vocês até hoje ainda não distinguem a direita da esquerda! Aonde vão? Aonde vão? Parem! Agarra um sabino que se atrapalhou e ensina: — Para saber onde é a direita, vire – olhe para mim! – vire o rosto para o norte… ou não, vire o rosto para o sul, e as costas para o leste… mas onde é que está o seu rosto? Pois isso não é o rosto e sim as costas, ah, aqui está o seu rosto! Você entendeu? – bem, eu não posso mais, observe os vizinhos para saber onde está a direita. Agora, senhores, quem tem canivetes? Revirem os bolsos. Isso! E palitos de dente? Deixem aqui! Nem uma alusão à violência, senhores, nada que espete ou corte: nossas armas são a nossa lei e a consciência limpa! Agora cada um pega um volume de leis e pesquisas… isso… seria preciso encadernar, mas vamos deixar para depois… eis o que significam músculos! Isso, isso! Corneteiros, vão em frente! Lembrem-se: a marcha dos maridos roubados! Primeiro… Perdão, vocês se lembram como marchar? Os sabinos permanecem em silêncio. — Não? Bem, eu vou lembrá-los. Dois passos para frente, um passo para trás. Dois passos para frente, um passo para trás. Nos dois primeiros passos nós devemos expressar, sabinos, todo o fervor indomável de nossas almas impetuosas, a vontade firme, nosso empenho incontrolável de seguir adiante. O passo para trás é o passo da prudência, o passo da experiência e de uma mente madura! Dando esse passo, nós refletimos sobre o que está por vir; dando esse passo, estaremos como que mantendo uma grande conexão com a tradição, com nossos ancestrais, com nosso grandioso passado. A história não dá saltos! E nós, sabinos, neste grande momento, somos a história! Corneteiros, corneteiem! As cornetas uivam lamuriosamente, ora avançando fervorosamente, ora voltando suavemente e arrastando atrás de si todo o exército de maridos roubados. Dando dois passos para frente e um passo para trás, eles atravessam o palco lentamente. Fecham-se as cortinas. As cornetas uivam lamuriosamente, e a Cena II se transforma na Cena III. 388

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Cena III O primeiro cenário selvagem. Rudimentos de urbanização. Perto de uma das cabanas há um romano que está parado em uma pose que denota a maior preguiça e cutuca o nariz com deleite. De trás dos bastidores à esquerda, surge o exército de maridos, marchando concentradamente no mesmo ritmo inicial: dois passos para frente, um passo para trás. No primeiro minuto, ao vê-los, o romano parece se animar um pouco e até detém a prospecção no nariz, olhando com curiosidade complacente; mas, aparentemente, o movimento lento o faz adormecer de novo: ele boceja, se espreguiça languidamente e vai se abaixando lentamente até se sentar sobre uma pedra. Ao sinal de Anco Márcio, as cornetas silenciam. ANCO MÁRCIO (grita desesperadamente): — Parem, senhores sabinos! Parem, parem! Os sabinos param e permanecem imóveis. ANCO MÁRCIO: — Parem! Ó, deuses, com que forças se pode segurar uma avalanche em queda? Com que forças… Graças a Deus, pararam! Escutem as ordens! Corneteiros, para trás! Professores, para frente! Os demais, sentido! Os corneteiros dão um passo para trás, os professores um passo para frente e os demais permanecem imóveis. ANCO MÁRCIO: — Professores, preparar! Os professores rapidamente se agacham, abrem pequenas mesinhas dobráveis, colocam um livro grosso sobre cada uma delas e abrem os livros jogando as capas para trás com estrondo – isso resulta em uma sequência de sons que lembram uma bateria. O romano, CIPIÃO, tendo despertado está visivelmente interessado e pergunta solícito: Leonid Andrêiev

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— Qual é o problema, senhores? Poderia ser lhes útil… mas se isso é um circo, devo avisá-los: o Coliseu ainda não foi concluído. ANCO MÁRCIO (indiferente): — Cale-se, vil raptor. (Aos seus) pois bem, chegamos ao nosso ardentemente desejado objetivo, senhores sabinos. Atrás de nós está o caminho de longas dificuldades, fome, solidão, alimentos em conserva; adiante, está uma batalha inédita na história. Inspirem-se, senhores sabinos, assumam o controle de si mesmos, acalmem-se, reprimam o sentimento de natural indignação e esperem calmamente pelo resultado fatal. Lembrem-se, sabinos: por que nós viemos até aqui? Os sabinos permanecem em silêncio. — Ora, lembrem-se, senhores! Por acaso foi para passear que viemos aqui com esses livrões? Lembrem-se, lembrem-se, senhores: por que nós viemos até aqui? CIPIÃO: — Vamos, vamos! Lembrem-se, senhores! ANCO MÁRCIO (para Cipião): — Imagine você, é assim o tempo todo! CIPIÃO: — Não pode ser! ANCO MÁRCIO: — Palavra de honra! Ficam parados como estátuas, piscam os olhos e é só. Imagine só: é possível fazer um bom discurso sem recorrer nenhuma vez à exclamação “lembrem-se”? CIPIÃO (balançando a cabeça gentilmente): — Dificilmente, que discurso seria esse?! ANCO MÁRCIO: — Está vendo, até você entende isso. Mas esses senhores… 390

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DAS FILEIRAS DE SABINOS ecoa uma voz trêmula: — Proserpininha, minha querida, onde está você? Olá-á! CIPIÃO (indeciso): — Parece que ele se lembrou. ANCO MÁRCIO (com desprezo): — Ah, disso, disso ele lembra toda hora. (Aos seus) sentido! Agora nós exigiremos nossas esposas. Ai de seus raptores, se a consciência deles ainda não despertou: nós os obrigaremos a agir de acordo com a lei. Ei, vil raptor! Chame seus vis camaradas e prepare-se para responder pelo seu erro de uma forma terrível. CIPIÃO: — Vou chamar minha esposa agora. Dirige-se à cabana, gritando: “Cleopatrinha, saia, querem resolver um assunto com você”. PAULO EMÍLIO espia de trás de um canto e, reconhecendo os sabinos, uiva de alegria: — Os maridos vieram! Os maridos vieram! Senhores antigos romanos, acordem: os maridos vieram! Lança-se em direção a Márcio e, em lágrimas, pendura-se em seu pescoço; Márcio está perplexo. Paulo segue em frente correndo com o mesmo grito de alegria: “Os maridos vieram!”. Os sonolentos romanos rastejam para fora e ocupam o lado direito do palco. Márcio, beligerante, com as mãos nos quadris, espera arrogantemente enquanto eles se reúnem. O ROMANO GORDO: — Por Baco! Eu estava dormindo tão bem, como no primeiro dia da fundação de Roma. Que espantalhos são esses? — Fale baixo: são os maridos. — Ah! Estou com sede! Proserpininha, sirva kvass3, minha querida! 3  Bebida fermentada típica produzida a partir do pão e que pode conter em seu preparo mel, frutas e ervas diversas. (N. da T.)

Leonid Andrêiev

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DAS FILEIRAS DE SABINOS soa uma humilde exclamação: — Proserpininha, olá-á! O ROMANO GORDO: — E esse quer o quê? Ele também está chamando minha mulher. — Fale baixo, esse é o marido dela. — Ah! Eu tinha esquecido. Oh, céus! Como estou com sede, depois dessa sopa e desse sono profundo estou pronto para beber uma represa inteira! Como cozinha a Proserpina! Realmente, senhores antigos romanos, isso é um dom divino! — Fale baixo! — Ah! Eu tinha esquecido. Mas que sonho estranho tive hoje: sonhei que estava dormindo e de repente vejo Roma começando a cair, cair, cair… e acabou caindo. — Mas onde estão nossas esposas? Viemos vê-las, e elas nem aparecem, isso é embaraçoso. — Devem estar se vestindo. — Oh, essa coquetice feminina! Podíamos pensar: grande coisa, um ex-marido! Mas mesmo nesta situação elas precisam mostrar seu eterno feminino. Não, nunca entenderei a psicologia feminina! — Ó, céus! Como estou com sede. Essas estátuas vão ficar aí muito tempo? Podiam pelo menos tocar: eles têm cornetas. Olhem, olhem, eles estão se movendo. ANCO MÁRCIO: — Senhores romanos, agora que estamos frente a frente, vocês, eu espero, não irão se esconder mais e nos darão uma resposta direta e honesta. Lembrem-se, romanos, do que vocês fizeram na noite do vigésimo para o vigésimo primeiro dia de abril? Os romanos trocam olhares desnorteados e permanecem em silêncio. — Vamos, lembrem-se! Será possível que também vocês não se lembram? 392

As belas sabinas


Pois façam um esforço para se lembrar, senhores! Entendam que eu não posso prosseguir enquanto vocês não se lembrarem. O ROMANO GORDO, assustado, sussurra a outro: “Talvez você se lembre, Agripa? Deve ter sido alguma coisa importante, não?”, “Não, não me lembro!”, “Eu devo estar com a memória falha por causa do sono”, “É melhor eu ir embora, depois você me conta”, “Mas o que ele quer?” — (Em voz alta) Então eu os lembrarei, romanos: na noite do vigésimo para o vigésimo primeiro dia de abril aconteceu o maior crime de que a história tem conhecimento: alguém, de quem falarei mais adiante, raptou de maneira vil nossas esposas, as belas sabinas! OS ROMANOS, lembrando-se, confirmam com alegres acenos de cabeça: “Sim, sim; sim, sim. Então essa é a questão! Está completamente certo: precisamente no dia vinte de abril!” O ROMANO GORDO (respeitosamente): — Esses sabinos têm cabeça! ANCO MÁRCIO: — E esses raptores são vocês, romanos! Ah, eu sei, vocês vão começar a se justificar, a rejeitar os fatos, a distorcer vilmente as normas legais, recorrendo àquela repugnante casuística que inevitavelmente acompanha qualquer violação da lei. Mas nós estamos prontos. Senhores professores, comecem! O PRIMEIRO PROFESSOR a partir da ponta começa a falar com uma voz regular, que está além do tempo e do espaço: — Dos crimes contra a propriedade. Tomo primeiro, seção primeira, capítulo um, página um. Sobre o roubo em geral. Nos tempos antigos, ainda mais antigos do que o tempo presente, quando pássaros, insetos e besouros flutuavam sem receio nos raios de sol e nenhuma transgressão da lei penetrava na consciência – uma vez que não havia consciência – naqueles tempos distantes… ANCO MÁRCIO: — Escutem, escutem! Leonid Andrêiev

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CIPIÃO: — Isso não pode ser mais breve? ANCO MÁRCIO: — Não pode! — Mas eles vão dormir. — Você acha? — Veja você mesmo: eles já estão cochilando. E quando eles cochilam, eles não escutam nada. Será que só o final não basta? Por gentileza, seja direto e diga o que querem. — Uma disputa verdadeiramente estranha! Mas que assim seja. Condescendendo com a fraqueza de seus amigos, serei direto: queremos provar que vocês estavam errados ao raptarem nossas esposas, que vocês, romanos, são raptores, que não podem justificar sua ação desprezível com nenhum truque de sofisma. E o céu irá tremer! CIPIÃO: — Permita-me, permita-me, respeitável senhor: mas nós não estamos discutindo. ANCO MÁRCIO: — Não?! Então para que viemos até aqui? — Não sei. Estavam passeando, talvez? — Não, nós viemos precisamente para provar isso. Que estranho! Então vocês estão de acordo sobre serem raptores? — Completamente; acho a palavra muito bem colocada: raptores. — Mas talvez vocês não estejam plenamente certos disso. Então o professor prontamente… não é verdade, professor, você pron… — Não, não, não é preciso! Nós estamos plenamente seguros disso! Senhores romanos, me apoiem aqui, ou ele vai começar tudo de novo. ROMANOS: — Estamos de acordo! Estamos de acordo! 394

As belas sabinas


ANCO MÁRCIO: — Então qual é o problema? — Eu não sei. — Que estranho mal-entendido! Senhores sabinos, regozijem-se: os culpados confessaram. A mera visão de nossos formidáveis preparativos despertou neles a poderosa voz da consciência legal, e o céu tremeu! A nós nos resta apenas, com a sensação de dever cumprido, nos virar e… A voz trêmula: “E a Proserpininha?” — Ah, sim! Mesmo que a expressão não tenha sido inteiramente feliz, o pensamento, no entanto, é correto – você está com a razão, camarada! Senhores romanos, aqui está a lista detalhada e precisa de nossas esposas – deem-se ao trabalho de devolvê-las. Pelo extravio, por qualquer dano e… como está aí, professor? PROFESSOR: — Pelo escoamento, por secagem… — Ah, não é nada disso, pelo prejuízo! Sim, vocês são responsáveis por qualquer prejuízo. Leia os artigos, professor. No entanto… eis nossas mulheres! Atenção, sabinos, controlem-se, eu imploro, reprimam o impulso do amor até que a questão do direito esteja terminada… dois passos para frente, um passo para trás, seen-tido! Olá, esposas sabinas! Olá, Cleópatra! As mulheres ocupam o meio do palco, elas baixaram os olhos e sua aparência é humilde, mas cheia de dignidade e submissão. CLEÓPATRA (sem levantar os olhos): — Se você veio nos censurar, Anco Márcio, nós não merecemos suas censuras. Lutamos por muito tempo e, se nos rendemos, foi apenas à violência. Eu juro, querido Márcio, não paro de lamentar por você nem por um minuto! Chora, e atrás dela choram todas as sabinas. ANCO MÁRCIO: — Acalme-se, Cleópatra. Eles já confessaram que são raptores. Vamos para casa, Cleópatra. Leonid Andrêiev

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CLEÓPATRA (sem levantar os olhos): — Eu tenho medo que você nos recrimine. Mas já estamos tão acostumadas com esse lugar. Você gosta de montanhas, Márcio? ANCO MÁRCIO: — Eu não estou entendendo, Cleópatra. O que têm as montanhas tem a ver com isso? — Receio que você fique com raiva, mas é verdade, não temos culpa. Eu já lamentei por você, Márcio, e agora eu absolutamente não consigo entender o que você quer. Mais lágrimas? Ah, quantas vocês quiserem. Queridas amigas, eles acham que ainda não choramos o suficiente por eles – vamos provar o contrário. Oh, chorem, chorem, queridas amigas! Eu te amava tanto, Márcio! Todas as mulheres se desfazem em lágrimas. CIPIÃO: — Cleopatrinha, acalme-se, em seu estado isso pode fazer mal. Caro senhor, você escutou? Podem dar a meia volta. Venha, Cleopatrinha, deite-se um pouco e acalme-se – eu mesmo cuidarei da sopa. ANCO MÁRCIO: — Mas, com licença, o que a sopa tem a ver com essa história? Acalme-se, Cleópatra, aqui há um mal-entendido. Você obviamente não está entendendo que foi raptada! CLEÓPATRA (chorando): — Bem, eu disse que você vai repreender. Cipinho, você está com o meu lencinho? — Aqui está, benzinho. ANCO MÁRCIO: — Mas, com licença, o que o lencinho tem a ver com essa história? CLEÓPATRA (chorando): — E uma cena dessas por causa de um lencinho! Eu não posso ficar sem 396

As belas sabinas


um lencinho, se estou chorando… por culpa sua. Isso é cruel, você é um monstro, Anco Márcio. Agora todos choram: as sabinas, os sabinos e até alguns dos romanos. — Proserpininha, olá-á! ANCO MÁRCIO (com voz retumbante): — Acalmem-se, senhores sabinos, controlem-se. Não saiam do lugar! Eu já vou resolver tudo. Aparentemente, aqui há um mal-entendido de natureza jurídica. A infeliz mulher acha que a estão culpando de raptar um lencinho e não percebe que ela própria é vítima de um rapto. Já vamos provar isso para ela. Senhor professor, prossiga. Os professores se preparam. Os romanos ficam aterrorizados. Cipião agarra Cleópatra pela mão. — Confesse, Cleópatra! Rápido. Ó, céus! Ele já vai começar. CLEÓPATRA (chorando): — Eu não tenho o que confessar. Isso é uma calúnia! ANCO MÁRCIO: — Senhor professor, estamos esperando. CIPIÃO: — Rápido! Confesse! Oh, Júpiter! Ele já está abrindo a boca, ele já está abrindo… Senhores sabinos, parem, ela confessou! Fechem a boca do professor, ela confessou. CLEÓPATRA: — Está bem então: eu confessei. (Para as mulheres) queridas amigas, vocês também? CIPIÃO (apressadamente): — Todas, todas confessaram. Pronto, está resolvido. Leonid Andrêiev

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ANCO MÁRCIO (perplexo): — Mas, com licença! Você, Cleópatra, reconhece que você e as outras mulheres sabinas foram raptadas na noite do vigésimo para o vigésimo primeiro dia de abril, não é isso? CLEÓPATRA (venenosamente): — Não, nós é que fugimos. ANCO MÁRCIO: — Bem, estão vendo, ela não entende. Senhor profe… CLEÓPATRA: — Isso é torpe, Márcio! Foram vocês mesmos que ficaram dormindo enquanto éramos raptadas, não nos defenderam, nos deixaram, esqueceram, abandonaram – e agora nos acusam de termos fugido! Nós fomos raptadas, Márcio, torpemente raptadas! Você pode ler sobre isso em qualquer livro didático, sem falar (chora) do dicionário enciclopédico. CIPIÃO (grita): — Mas fechem a boca do professor! Mas a boca do professor permanece aberta. Os romanos estão em pânico, alguns fogem. ANCO MÁRCIO: — Senhores romanos, senhores sabinos, seen-tido! Eu já vou resolver tudo. Aqui há um mal-entendido de natureza mecânica. Deixe-me examiná-lo, senhor professor… Pois é, está claro, eu sabia: o obturador quebrou e ele não consegue fechar a boca. Mas isso não é nada, em casa vamos consertar tudo. Agora eu ouvi com meus próprios ouvidos: elas confessaram que foram raptadas. O objetivo foi alcançado e o céu estremeceu. Vamos para casa, Cleópatra! CLEÓPATRA: — Não quero ir para casa! SABINAS: — Não queremos ir para casa! Nada de casa! Nós vamos ficar aqui! Que 398

As belas sabinas


ofensa! Querem nos raptar! Socorro! Ajudem! Nos protejam! Os romanos, tinindo com as armas, se posicionam entre as mulheres e os sabinos e, aos poucos, vão empurrando as mulheres de volta para a parte de trás do palco. Lançam olhares furiosos para o sabinos. VOZES: “Às armas, romanos! Em defesa das nossas esposas! Às armas, romanos!” ANCO MÁRCIO (toca o sininho): — Qual é o problema? Agora vai ter luta. Minha mente está confusa. Senhores sabinos, minha mente está confusa! PROSERPINA se apresenta e fala de maneira calma e decidida: — Acalmem-se, romanos. Eu falarei sozinha com Márcio. DAS FILEIRAS DE SABINOS soa a voz trêmula, um melancólico chamado de amor: — Proserpininha, querida, olá-á! PROSERPINA (decididamente): — Olá-á, meu querido, como está de saúde? Venha cá, Anco Márcio, não tenha medo: seu exército não vai embora. Você entendeu que nem a sua esposa, Cleópatra, nem eu, nem as outras sabinas desejamos voltar, você está entendendo? ANCO MÁRCIO: — Minha mente está confusa. Como eu vou ficar sem minha Cleópatra? Não posso ficar sem a Cleópatra. Ela é minha esposa absolutamente legítima. Você acha que ela não virá de jeito nenhum? PROSERPINA: — De jeito nenhum. ANCO MÁRCIO: — O que eu faço? Eu a amo. Como vou viver sem ela? (Chora) PROSERPINA: — Acalme-se, Márcio. (Sussurra) estou com pena de você, então vou te contar em segredo que existe ainda outra saída, uma única: raptá-la. Leonid Andrêiev

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MÁRCIO: — E ela virá? PROSERPINA (dando de ombros): — Como ela poderia deixar de ir, se você estaria raptando-a? MÁRCIO: — Mas isso é torpe! Você está me sugerindo recorrer à força! O que faço com a minha consciência legal? Ou para vocês, mulheres, o direito está onde está a força? Ó, mulheres, mulheres! PROSERPINA: — Já ouvimos isso antes: ó, mulheres, mulheres! Ah, Márcio: os deuses te criaram em um mau momento, você é terrivelmente idiota! Sim, quero o forte, o mais forte, mas só porque quero ser fiel. Você acha que gostamos de ser raptadas, roubadas, exigidas de volta, devolvidas, perdidas, encontradas… — Proserpininha, minha querida, olá-á! PROSERPINA: — Olá-á, querido, como vai sua saúde? Acha que gostamos que nos tratarem como objetos? Acabo de me acostumar com um, vem outro e me leva embora; acabo de me acostumar com esse, vem o antigo e exige que eu volte. Ah, Márcio, se você quer que uma mulher seja sua, o que você tanto aspira, então seja o mais forte, não a entregue a ninguém, lute por ela com unhas e dentes e, até mesmo, morra protegendo-a. Acredite em mim, Márcio, para uma mulher não há alegria maior do que falecer sobre o caixão do marido, que morreu defendendo-a. E aprenda, Márcio, que uma mulher trai apenas quando foi traída pelo homem. ANCO MÁRCIO: — Eles têm espadas e nós estamos desarmados. PROSERPINA: — Armem-se. — Eles têm músculos fortes, nós não temos. 400

As belas sabinas


— Tornem-se fortes. Enfim, Márcio, você é um idiota instransponível. ANCO MÁRCIO (sobressaltando-se): — E você, mulher, é louca e desprezível. Viva a lei! Pois que tirem de mim a minha esposa por meio da força bruta, que destruam minha casa, apaguem a minha lareira – eu não trairei a lei! Que o mundo inteiro ria dos infelizes sabinos, eles não trairão a lei. Até mesmo em andrajos, a virtude honrosa! Sabinos, deem meia volta! E chorem, sabinos, com lágrimas amargas, solucem, batam no peito e não se envergonhem das lágrimas! Deixem que joguem pedras em vocês, deixem que riam de vocês – vocês chorem! Deixem que joguem sujeira em vocês – chorem, sabinos, porque vocês estão chorando pela lei violada. Adiante, sabinos! Seeen-tido! Corneteiros, toquem. Dois passos para frente, um passo para trás. Dois passos para frente, um passo para trás! As mulheres começam a chorar. CLEÓPATRA: — Márcio, espere! ANCO MÁRCIO: — Saia, mulher, eu não a conheço. Maar-chando! As cornetas uivam tristemente. As mulheres, chorando e gritando alto, estendem os braços para seus ex-maridos, mas os romanos as retêm à força. Gargalhadas dos vencedores. Sem dar atenção nem às lágrimas, nem às risadas, curvados sob o peso das leis, os sabinos se afastam lentamente: dois passos para frente, um passo para trás. Fecham-se as cortinas.

(1912)

Leonid Andrêiev

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Títulos originas e fontes Petka no campo*

Петька на даче (Pietka na datchie) (1899) Presentinho*

Гостинец (Gostiniets) (1901) No porão*

В подвале (V podvalie) (1901) No trem*

В поезде (V poiezdie) (1965 [1901]) Na estação**

На станции (Na stantsii) (1903) É bela a vida para os ressuscitados**

Прекрасна жизнь для воскресших (Priekrasna jizn dlia voskrieschikh) (1900) Leonid Andrêiev

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A cidade*

Город

(Gorod) (1902) A ressurreição de todos os mortos**

Воскресение всех мертвых

(Voskriesieniie vsiekh miortvykh) (1914) Duas cartas**

Два письма (Dva pisma) (1916) Na névoa*

В тумане (V tumanie) (1902) O ladrão**

Вор

(Vor) (1904) Na distância sombria*

В тёмную даль

(V tyomnuyu dal) (1900) De uma história que nunca será concluída**

Из рассказа, который никогда не будет окончен (Iz rasskaza, kotoryi nikogda nie budiet okontchen) (1907) 404

Títulos originas e fontes


Dia da Ira**

День гнева (Dien gnieva) (1910) A história da serpente sobre como ela ganhou dentes venenosos**

Рассказ змеи о том, как у неё появились ядовитые зубы (Rasskaz zmei o tom, kak u nieio poiavilis iadovityie zuby) (1907) O que a gralha viu**

Что видела галка (Chto vidiela galka) (1898) Conversa noturna**

Ночной разговор (Nochnoi razgovor) (1915) A vida de Vassíli Fiveiski**

Жизнь Василия Фивейского (Jizn Vasiliya Fiveiskovo) (1904) As belas sabinas**

Прекрасные сабинянки (Priekrasnye sabinyanki) (1912)

Leonid Andrêiev

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Fontes: * Novelas e Contos em Dois Tomos. Moscou : Editora Literatura Artística, 1971.

Повести и рассказы в двух томах. Москва : Художественная литература, 1971.

(Povesti i Raskazi v Dvukh Tomakh. Moscou : Khudojestvenaia Literatura, 1971.)

** Coletânea das Obras em Seis Tomos. Moscou : Editora Literatura Artística, 1990.

Собрание сочинений в шести томах. Москва : Художественная литература, 1990.

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(Sobranie Sotchinienie v Chiest Tomakh. Moscou : Khudojestvenaia Literatura, 1990.)

Títulos originas e fontes


Sobre o autor

L

eonid Nicolaievich Andrêiev nasceu em 9 de agosto de 1871 (21 de agosto, no calendário atual) na cidade provinciana de Oriol. Sua infância foi feliz e sem nuvens, o que tornou a dura transição

para a vida adulta ainda mais dolorosa. Após a morte prematura do pai, em 1889, aos 42 anos de idade, o escritor tornou-se o único a sustentar a mãe e os cinco irmãos mais novos. Enquanto fazia carreira após graduar-se em Direito, Andrêiev tentou a mão como repórter do tribunal policial, achando essa linha de trabalho muito mais envolvente. Em 1898, seu primeiro conto, uma peça de Páscoa dickensiana intitulada “Bargamot e Garaska”, publicado no jornal Correio, marca o início de sua carreira de escritor, seguida de rápida ascensão à fama literária. Menos de dez anos depois, em 1907, ele seria apelidado de “principal homem de letras da Rússia – com exceção de Tolstói, é claro.” A vida de Andrêiev era cheia de extravagâncias. Andava apaixonado ou enamorado a maior parte de seus dias. Ele teve cinco filhos com duas esposas. O legado de sua atividade como fotógrafo equivale a mais de 400 fotos coloridas, das quais cerca de 300 sobreviveram, e 1.000 fotos em preto e branco(!). Ele teve seu retrato feito por pintores famosos da Rússia, como Iliá Leonid Andrêiev

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Repin e Valentin Seróv, mas ele próprio era um talentoso artista, com estilo parecido com o de Arnold Böcklin, Alfred Kubin, expressionistas, e até com Zdzisław Beksiński. Enquanto enriquecia, projetou e mandou construir uma grande mansão para os Andrêievs em Vammelsuu, Finlândia, mansão esta que testemunhou seu senhor escrevendo algumas de suas obras-primas.

Apesar de acolher a primeira fase da Revolução Russa em fevereiro de 1917, Andrêiev ressentiu-se dos bolcheviques que chegaram ao poder no outubro seguinte, liderados por Vladimir Lenin. Naquele ano, ele retornou para a propriedade na Finlândia para passar o resto de sua vida em amarga pobreza e miséria, lutando para chamar a atenção do mundo para o resultado da Revolução Bolchevique. Andrêiev veio a falecer em 12 de setembro de 1919 de hemorragia cerebral, provavelmente como resultado de estresse e angústia. Sua última grande obra foi "O diário de Satanás", um relato das desgraças do Diabo no mundo traiçoeiro dos humanos.

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Sobre o autor


Cronologia

Leonid Andrêiev

Ano

1861 1863 1864 Nasce na cidade de Oriol, em 9 de agosto (Calendário Juliano)

História da Rússia Reforma da emancipação de 1861 Revolta de janeiro Guerra do Cáucaso

1871 1873 1876 1876 1876 1877

Início da Rebelião Narodnik Revolta de abril Demonstração de Kazan Surgimento do grupo revolucionário Terra e Liberdade Julgamento dos 193 Início da Guerra Russo-Turca

1878

Fim da Guerra Russo-Turca

1879

Grupo Terra e Liberdade se divide na Repartição Negra, moderada, e no grupo terrorista radical Vontade do Povo Alexander II concorda com a nova Constituição, mas não tem a chance de assiná-la

1881

Leonid Andrêiev

Alexandre II é assassinado por Ignacy Hryniewiecki, da Vontade do Povo. Seu filho, Alexandre III, torna-se czar

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Alexander III introduz inspeções de fábricas e restringe as horas de trabalho para mulheres e crianças Ingressa no Ginásio de Oriol

1882

Morte prematura de seu pai, Nicolai, aos 42 anos de idade

1889

Conclui os estudos do Ginásio Ingressa no curso de Direito da Universidade de São Petersburgo

1891

Inicia a escrita e publicação de contos, porém sem grandes resultados Comete tentativa de suicídio após ser rejeitado por uma moça que amava

1892

Afasta-se da Universidade

Alexandre III introduz as Leis de Maio, que expulsa os judeus russos de áreas rurais e pequenas cidades e restringem severamente seu acesso à educação

Grave surto de fome afeta quase metade das províncias da Rússia

Grande Surto de Witte de crescimento industrial Mulheres são proibidas de trabalhar nas minas e crianças menores de 12 anos de trabalhar em fábricas

Transfere-se para a Universidade de Moscou Volta a morar com sua família em Moscou

1894

Alexandre III morre. Seu filho Nicolau II o sucede como czar

Conhece Aleksandra Veligorskaya, futura esposa Conclui a graduação em Direito na Universidade Moscou. Inícia uma breve carreira jurídica. Torna-se repórter jurídico no jornal O Correio

1897

Publica "Bargamot e Garaska", que marca o início da carreira de escritor

1898

Conhece Maksim Górki, que o introduz nos círculos literários. Com sua ajuda, inicia a publicação de seus trabalhos no Jornal Paratodos

1899

410

Cronologia

O Partido Operário Social-Democrata da Rússia Marxista (RSDLP) realiza seu primeiro Congresso


Publica "A mentira"

Com a ajuda de Górki, publica a primeira coletânea de histórias, que foi reimpressa diversas vezes e vendeu dezenas de milhares de cópias até 1905

1900

1901

Publica "O riso"

Como parte da Russificação da Finlândia, Nicholas emite o Manifesto da Linguagem de 1900, tornando o russo a língua oficial da administração finlandesa Russificação da Finlândia: Lei do Serviço Militar unifica os exércitos finlandês e russo Fundação do Partido Socialista-Revolucionário

Publica "O muro" Casa-se com Aleksandra Veligorskaya Nasce Vadim, primeiro filho Publica "O pensamento" (conto)

1902 Pogrom de Kishinev, que deixará quarenta e sete judeus mortos

Publica "O abismo"

Publica "Na neblina"

Publica "A vida de Vassíli Fiveiski" Publica "Os espectros"

1903

1904

No segundo congresso do RSDLP, o partido divide-se em duas facções: os bolcheviques , liderados por Vladimir Lenin , e os mencheviques menos radicais Início da Guerra Russo-Japonesa

É preso por quase um mês por permitir a realização de uma reunião do comitê do proscrito Partido Social-Democrata em seu apartamento

Revolução 1905: uma greve começa na Cia Putilov, em São Petersburgo .

Viaja para Berlim para fugir dos Centenas Negros, grupo paramilitar de direita

Domingo de sangue: manifestantes pacíficos chegam ao Palácio de Inverno em São Petersburgo para apresentar uma petição ao czar, levando foi um padre chamado Georgi Gapon. A Guarda Imperial dispara contra a multidão, matando cerca de 200 e ferindo 800

1905

Viaja para Munique e Suíça

Leonid Andrêiev

Fim da Guerra Russo-Japonesa, com derrota da Rússia

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Revolução de 1905: formação do primeiro soviete

Publica "O ladrão" Publica "O governador" Publica "Assim foi" Publica "O riso vermelho"

1905

Revolução de 1905: motim a bordo do encouraçado Potemkin Revolução de 1905: Manifesto de Outubro, expandindo as liberdades civis e criando a primeira Duma (Congresso do Império Russo)

Publica "Para as estrelas", 1ª peça completa de teatro Publica "Savva", 2ª peça de teatro Envolve-se com movimentos de contestação do regime e novamente viaja para o exterior, para a Suécia e Noruega. Depois para Berlim, onde encontra-se com Aleksandra

Eleição legislativa russa: as primeiras eleições livres para a Duma dão maioria aos partidos liberais e socialistas

Retorna à Rússia, para a região do Grão-Ducato da Finlândia

Leis Fundamentais são emitidas, reafirmando a supremacia autocrática do czar

Nasce Daniil, segundo filho

1906 A primeira Duma é instalada, sendo dissolvida três meses depois.

Morte de Aleksandra por complicações pós-parto Publica "Lázaro" Publica "A vida do homem" (teatro)

O Partido Democrático Constitucional (Kadets) emite o Manifesto de Vyborg

Publica "Judas Iscariotes" "Para as estrelas" e "Savva" são encenadas em Viena

Início da reforma de Stolypin

Daniil, seu segundo filho, volta para a Rússia em companhia da avó materna, com quem irá viver distante do pai

Instalação da segunda Duma, dissolvida menos de quatro meses depois

Viaja para Capri, Itália, a convite de Górki, com seu filho Vadim Deixa Capri e se instala em um apartamento em São Petersburgo. Adquire uma propriedade rural em Vammelssu, Finlândia, onde inicia a construção de uma suntuosa residência

1907 Início da terceira Duma, dissolvida sete meses depois

Publica "Escuridão" Publica "Rei fome" (teatro) Publica "Maldição da besta"

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Cronologia


Conhece Anna Denisevich, futura segunda esposa Instala-se na residência de Vammelsuu, juntamente com Anna Denisevich, onde desenvolve as atividades de fotógrafo e pintor Publica "Minhas notas"

1908

Publica "Os Sete Enforcados" Publica "Máscaras negras" Publica "Dias da nossa vida" (teatro) Nasce Savva, terceira filha Viaja para Hamburgo e Amsterdam Publica "Anathema" (teatro), encenada em Moscou por Nemirovich-Danchenko

1909

Publica "Anfisa" (teatro) Nasce Vera, quarta filha Viaja para Marselha, Córsega e Florença

1910

Publica "Gaudeamus" (teatro) Publica "Sashka Zhegulev" Publica "O oceano" (teatro) Nasce Valentin, quinto e último filho Publica "Ele" Publica as duas "Cartas sobre o teatro" Publica "O pensamento" (peça) Viaja para Itália

1911 1912

Vai para Petrogrado (antiga São Petersburgo) para ser contratado pelo jornal O futuro russo

Início da quarta Duma

1912-13 1913 1913-14 1914

Publica "Aquele que recebe bofetadas" (teatro)

Massacre dos campos de ouro de Lena

Assassinato do arquiduque Franz Ferdinand por Gavrilo Princip, do grupo separatista bósnio Jovem Bósnia, dando início à I Guerra Mundial

1915

1916

Revolta de Basmachi

Publica "Jugo de guerra", último grande trabalho de ficção

Leonid Andrêiev

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Revolução de fevereiro Por pressões políticas externas, é demitido do jornal O futuro russo

Dias de julho: manifestação pró soviética espontânea ocorre nas ruas de Petrogrado (antiga São Petersburgo) Dias de julho: a rebelião foi abatida. O Governo Provisório ordena a prisão de líderes bolcheviques

Retorna a residência de Vammelsuu Sob pressão pública, os líderes bolcheviques são libertados da prisão

1917

Revolução de outubro: soldados dirigidos pelo Comitê Militar Revolucionário do Soviete de Petrogrado (antiga São Petersburgo) conquistam o Palácio de Inverno, depondo o Governo Provisório Russo Segundo Congresso Russo dos Sovietes. Eleição de Lênin como primeiro presidente, para administrar o país entre as sessões O Segundo Congresso Russo dos Sovietes emite o Decreto sobre a Paz, prometendo o fim da participação russa na Primeira Guerra Mundial, e o Decreto sobre a Terra, aprovando a expropriação de terras da nobreza.

Parlamento finlandês emite a Declaração de independência da Rússia e Andrêiev torna-se um virtual exilado

Guerra Civil Russa: o Exército Voluntário contra Revolucionário é criado

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Cronologia


1918

Rússia Soviética assina o Tratado de Brest-Litovsk, encerrando sua participação na I Guerra Mundial, renunciando à Finlândia, Estônia, Letônia, Lituânia, Polônia, Bielorrússia e Ucrânia, e cedendo ao Império Otomano todo território capturado na Guerra Russo-Turca Nicolau e o resto da família real são executados por ordens diretas de Lênin I Guerra Mundial: tratado de armistício é assinado, colocando fim ao conflito que deixou 2 milhões de mortos e 5 milhões de feridos entre o povo russo

Publica "S.O.S." por toda a Europa e EUA Morre em 12 de setembro, em sua residência de Vammelsuu, devido a uma hemorragia cerebral

1919

Por conta das suas posições políticas e da nova ordem dominante, suas obras são virtualmente ignoradas na então União Soviética após sua morte, por mais de 3 décadas

1920-55

Com a morte de Stalin e uma certa flexibilização do regime, seus trabalhos voltam a ser publicados

1955-

Seus restos mortais são transferidos para os corredores literários do Cemitério Volkov de Leningrado (atual São Petersburgo)

1956

A Casa Museu de Leonid Andrêiev é inaugurada na cidade de Oriol, na mesma casa onde ele nasceu e viveu sua infância e adolescência

1991

Leonid Andrêiev

Oitavo Congresso do Partido reinstitui o Politburo como o órgão central do governo do Partido Comunista

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Sobre a tradutora

H

elena Salvador Kardash é tradutora há 6 anos, tendo iniciado a carreira ainda durante o bacharelado em Letras realizado na Universidade de São Paulo (2016). De família de imigrantes russos, desde cedo apaixonou-se pela língua, cultura e literatura deste país, de tal sorte que, durante o curso, optou pela dupla habilitação Português/Russo. Em seguida, surgiu a oportunidade de se dedicar à tradução através de um projeto de Iniciação Científica, com bolsa da FAPESP. Neste projeto, realizou pesquisa sobre o escritor Leonid Andrêiev, por quem se interessa desde quando, ainda pequena, sua mãe lia com ela suas histórias sensíveis e, por vezes, sombrias. A pesquisa resultou na publicação da tradução do conto “O anjinho”, de Andrêiev, na Revista RUS, abrindo as portas para a realização de um intercâmbio de seis meses na Rússia, onde concluiu o curso de Língua, Cultura e História Russas Para Estrangeiros, na Peter the Great St. Petersburg Polytechnic University. Desde então, trabalha com tradução de diferentes tipos de texto, desde documentos comerciais até jogos de videogames, mantendo, porém, a tradução literária como sua maior paixão. É casada e mãe do Aquiles. Leonid Andrêiev

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correm uns atrás dos outros, saltam e caem; fazem alguma coisa no quarto ao lado onde está escuro, brigam e choram. Não há ninguém. Está claro e vazio. Não há ninguém.” Andrêiev era um homem bonito, um ateu em busca de Deus, um bebedor pesado ocasional, uma vítima pronta para os críticos, um amigo generoso, um poderoso prosaista e dramaturgo inovador. Ele alegou ver o fantasma de sua esposa depois que ela morreu. Sua visão de mundo, nutrida por Friedrich Nietzsche, Arthur Schopenhauer e Eduard von Hartmann, por seus mentores literários Dostoiévski e Poe, tornou sua prosa fervendo de pessimismo e beleza negra. Um amigo dele escreveu que o caos era seu cão de colo.

Se alguma vez houve um escritor russo que espelhou completamente a sua própria criação, este foi certamente Leonid Andrêiev. Assombrando, perturbando, inquietando (e tudo isso no passado também), obscuro, apaixonado, pomposo, discordante, controverso – qualquer palavra de força que você escolha, é provável que descreva tanto Andrêiev quanto sua obra. Sua obra de ficção e teatro inclui oito novelas, quase uma centena de contos e vinte peças de teatro, a maioria dos quais parece tão fresca hoje quanto no dia em que viram a luz. O estilo de Andrêiev nega a rotulagem fácil – durante sua vida, foi classificado entre realistas, simbolistas, às vezes até romancistas e escritores populares; sua ficção era puramente expressionista anos antes do expressionismo entrar em vigor; algumas de suas histórias são anteriores ao existencialismo de Sartre e Camus e à visão pós-modernista de Borges, enquanto suas peças alcançam o que Bertolt Brecht mais tarde aspiraria em seu “teatro épico”. Naturalmente inclinado ao fantástico e ao grotesco, Andrêiev passou por uma mudança em direção ao realismo devido à sua longa amizade com Maksim Górki, o principal realista social da Rússia na época. Deve-se notar, no entanto, que até mesmo suas histórias simples descrevem outra realidade mais sombria além das experiências cotidianas, como ilustra essa passagem na novela “A vida de Vassíli Fiveiski”, presente nesta coletânea: “A porta bate, deixando entrar os sons. Eles se amontoam junto à porta – mas não há ninguém lá. Está claro e vazio. Um atrás do outro, eles se esgueiram em direção ao retardado – pelo chão, pelo teto, pelas paredes – olham em seus olhos animalescos, cochicham, riem e começam a brincar. Cada vez mais alegremente, mais ligeiros. Eles 1ª orelha

Todas essas facetas da personalidade de Andrêiev fundiram-se em seus escritos, dando origem a um mundo sombrio, cheio de sombras ameaçadoras, mistérios existenciais e horrores diretos. Ele foi um dos primeiros a dissecar as implicações psicológicas do estupro (como em “O abismo”), a ver a guerra como a manifestação do terror absoluto e da loucura, uma entidade viva em si (“O riso vermelho”), a se perguntar como Lázaro realmente se sentiu ao retornar da sepultura (“Lázaro”) e mergulhar na alma irracional de um assassino (“O pensamento” e o “Homem que encontrou a verdade”). Desnecessário dizer que tópicos como estes estavam destinados a levantar um debate acalorado na época. A reação de Liev Tolstói a “O abismo” ficou famosa: “Ele tenta me assustar, mas eu não estou com medo”. Bem, a tarefa de assustar Tolstói parece intimidante por si só. Não é de admirar que as obras de Andrêiev fossem pouco divulgadas durante o período soviético: suas convicções, tanto como autor quanto como cidadão, estavam completamente em desacordo com as prioridades do novo regime. As poucas histórias publicadas entre 1920 e 1960 pertencem em grande parte à prateleira do realismo inócuo na esteira do início da obra de Maksim Górki. Embora tenha experimentado um ressurgimento a partir da morte de Stalin, foi apenas no final dos anos 1980 que Leonid Andrêiev retornou como um clássico de valor completo, um proeminente representante da chamada Era de Prata da literatura russa, com suas histórias finalmente chegando aos livros escolares, suas peças teatrais sendo encenadas, seus escritos reunidos em coletâneas. Sua popularidade vem crescendo constantemente desde então.

2ª orelha


“Andrêiev é de uma intuição surpreendentemente fina. Por tudo que se refere aos aspectos mais sombrios da vida, às contradições da alma humana, às fermentações no domínio dos instintos, ele é de uma espantosa perspicácia.” Maksim Górki, escritor

“Andrêiev tem sua própria página não somente na história das narrativas literárias russas, mas também, e não menos importante, na história espiritual da nossa terra.” Georgy Chulkov, escritor

“Em Leonid Andrêiev encontramos os traços mais característicos da alma russa tradicional: a ternura, a profundidade da piedade humana, a imensa comiseração pelos humilhados, ofendidos, desamparados.” Wladimir Jankélévitch, filósofo

“E assim, com os pescoços esticados, inconscientemente iluminados por um sorriso de estranha felicidade, eles permaneciam em pé, um ladrão, uma prostituta e uma pessoa solitária e perdida, enquanto essa pequena vida, fraca como uma luzinha na estepe, chamava-os vagamente para algum lugar e prometia alguma coisa bonita, iluminada e imortal.” No porão


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