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KUPRÍN N. ANDRÉIEV À
F . K. SOLOGUB V. V. VIERIESSÁLEV
VOLUME
VII
Esta publicação foi digitalizada por Milton dos Santos como um esforço de preservação e divulgação da obra do escritor russo
Leonid N. Ândreiev (1871-1919) publicada
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KUPRÍN, ANDRÉIEV, SOLOGUB, VIERIESSATEV Estão reunidos neste volume quatro autores que, embora nascidos na segunda metade do século passado, são escritores do século xx; pode-se mesmo dizer que são escritores contemporâneos, eis que todos êles morreram depois da revolução de 1917. Não obstante, com exceção de Vieriessáiev, nem um dêles pode ser considerado escritor soviético. Todos, porém, viveram o período transitório: do regime antigo — tsarista, para o novo — socialista. A. T. Kupríin é um contista de primeira plana. E” narrador à maneira tchekhoviana; é o Jack London russo. Três contos de Kuprín foram selecionados para a nossa Antologia: A Mentira Sagrada, 4 Pulseira de Granadas e Oliéssia, todos êles de temática popular. me
Em 4 Mentira Sagrada, conta-nos o autor a história de um pobre funcionário que, por incrível adversidade da vida, tornou-se vítima de uma calúnia, cujas consegiências foram a degradação e a mais negra miséria. E é nesta situação de homem alquebrado pelas provações, de desempregado sem recursos nem esperanças, que Siemieniuta, o infeliz ex-funcionário, vai visitar sua pobre mãe no asilo de velhos em que vive. Com os maiores sacrifícios consegue reunir alguns copeques para comprar uma laranja que levará de presente à sua velha mãe. Em seguida, submete-se à extrema humilhação e vai pedir um capote emprestado a um ex-colega de repartição.
A. 1 Kuprin - L. N. Andréiev F. Sologúb - V. V. Vieriessáiev
ANTOLOGIA DO CONTO RUSSO Volume
VII
Orientação literária: VERA NEWEROVA
Otro
MARIA CARPEAUX
Capa: FRANK SCHAEFFER
Ilustrações: EucenNIOo
HirsCH
Elia, uu Le,
1962
Direitos desta tradução reservados à Editôra LUX Lida. Rua México, 90
- gr. 505 -
Rio de Janeiro, Brasil
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ÍNDICE Introdução A.
1.
KUPRÍIN
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A Mentira Sagrada
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A Pulseira de Granadas OlÉSSIA,
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L. N. ANDREIEV Os Sete Enforcados F. SOLOGUB A Senhorita Lisa V. V. VIERIESSÁIEV
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ENIGMA
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ENCONÃO
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321
339
INTRODUÇÃO QUATRO NARRADORES DE 1900 (KUPRÍN, ANDRÉIEV, SOLOGUB, VIERIESSÁIEV) Dos quatro autores representados no presente volume de nossa Antologia, Sologúb nasceu em 1863, Vieriessáiev em 1867, Kuprín em 1870 e Andréiev em 1871. Conforme os princípios cronológicos até aqui observados, deviam ser apresentados naquela ordem dos anos de nascimento. Mas importantes motivos de outra ordem recomendam uma alteração. Andréiev surgiu na literatura russa pouco depois de Górki ajuda dêle. Mas não lhe seguiu o caminho para o reapela e lismo socialista. Por outro lado, não se filiou realmente às tendências simbolistas, que entre 1900 e 1910 dominavam na Rússia; ainda teremos oportunidade para analisar mais de perto seus zigue-zagues estilísticos, que não modificam o fato principal: Andréiev foi um dos últimos realistas, no sentido do realismo do século XIX. Sologúb é mais velho que Andréiev e Górki. Mas aos seus contemporâneos devia parecer muito mais “moderno”. Seu estilo e sua ideologia pertencem inteiramente ao decênio simbolista; no meio de descrições de um naturalismo grosseiro não faltam as tendências do misticismo. E” verdade que Sologúb sobreviveu à Revolução, reconciliando-se ou pelo menos conformandose com o regime comunista. Mas também sobreviveu, por outros tantos anos, ao auge de sua importância literária. Vieriessáiev é quase exatamente contemporâneo de Górki. Apenas suas origens são diferentes; e morreu muito mais tarde, publicando pelo menos uma das suas mais importantes obras, o romance “As irmãs”, quando Górki já era o “great old man” da literatura russa. Vieriessáiev morreu em nosso tempo.
o O. M. CARPEAUX
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É autor soviético. — Enfim, Kuprin é realista à maneira do século XIX.
diferença entre os anos de nascimento dos quatro autores Literâriamente, é Kuprin do século passado, Andréiev um homem de 1900, Sologúb um autor de antes da primeira guerra mundial, e Vieriessáiev um contemporâneo nosso. É esta, portanto, a ordem conforme a qual serão estudados na presente introdução. A
é pequena.
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Kuprín, nascido em 1870, não é o mais velho dos autores representados no presente volume. O ambiente das suas novelas — a Rússia tsarista e revolucionária entre 1900 e 1914 — também já pertence inteiramente ao século XX. No entanto, do ponto-de-vista literário e ideológico, sua posição é outra. O simbolismo poético-místico da literatura russa de sua época está totalmente fora das suas cogitações, como se o ignorasse. Mas, embora amigo e companheiro de Górki, também está longe do socialismo combativo dêle. Literária e ideolôgicamente, Kuprín é um típico realista russo do século passado, longe também do impressionismo nervoso de um Andréiev. É narrador e só narrador; dos mais fascinantes Alexander Ivanóvitch Kuprin nasceu em 1870, em Norovtchat, no distrito de Pensa. Fregiientou a escola de cadetes e a Academia Militar em Moscou. Entrou no serviço ativo como tenente. Mas a vida nas pequenas guarnições de província aborreceu-o tão profundamente que já em 1894 pediu exoneração. Começaram, então, os anos de vagabundagem que lembram a mocidade de Górki: estivador, pescador, auxiliar de agrônomo, corista em pequenos teatros, ator, jornalista, até em 1896 sair publicada sua primeira novela: “Moleque”. Embora essa obra seja de principiante, sem grande valor literário, tem ela importância histórica: é a primeira obra da literatura russa em que se descreve a vida do proletário industrial nas fábricas. Kupríin assumiu desde o início, o papel de descobrir novos ambientes, nunca antes literalmente tratados (papel reservado em outras literaturas aos naturalistas, enquanto na Rússia nunca houve naturalismo prôpriamente dito, à maneira de
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Zola).
II
INTRODUÇÃO
No novo século, Kuprín entrou no grupo literário em tôrno da revista “Znanie”, chefiado por Górki. Como todos os intelectuais russos da época antes de 1905, era progressista, até radical, mas sem filiar ao socialismo militante. Só foi e só quis ser escritor, narrador. É um narrador nato. É, como todos os seus contemporáâneos, discípulo de Tolstói, quer dizer do Tolstói da primeira época, sem abraçar as teses religiosas e morais do velho mestre, assim como não adotou as de Górki. Aprendeu muito em Maupassant. Também já foi comparado a Hamsun e Jack London; mas seu estilo já estava formado antes dêle conhecer êsses estrangeiros. Seus ambientes e seus personagens são os mesmos de Tchékhov: a província, os intelectuais, a pequena burguesia. Mas Kuprín é um temperamento sangiiíneo, sem o menor traço da melancolia cinzenta e do tédio quase metafísico daquele grande mestre do conto russo. E tem o talento de descobrir sempre temas novos. Fêz sensação sua novela “O duelo”: descrição fiel da vida militar nas pequenas guarnições da província, vida vazia que só conhece o jôgo, o bilhar, a vodka e os bordéis. É evidente que os leitores, acostumados a uma literatura de crítica social e de acusação à corrupção tsarista, leram essa obra como se tivesse tendência anti-militarista. Mas essa tendência desempenha, em “O duelo”, papel secundário. Conforme sua própria declaração, repetida em plena liberdade, Kuprín só quis “descrever a vida E a descrição da vida dos russos sob o regime como ela tsarista devia totalmente parecer tendenciosa. Mas os motivos e os problemas de Kuprin são apolíticos como os de Tchékhov. Assim na novela tchekhoviana “A Pulseira de granadas” o amor de um pobre diabo a uma dama da sociedade. Assim na novela, antes andreieviana, “Capitão Ríbnikov”, a aventura de um espião japonês que, em plena guerra russo-japonêsa, anda em Moscou fantasiado de oficial russo. Essa novela é, aliás, pelo ritmo febril da narração, talvez a obra-prima de Kuprín. “O duelo” foi o primeiro sucesso nacional e internacional de Kuprín. Traduzido para tôdas as línguas foi o romance “A Fossa”, descrição da vida num bordel suburbano: um ambiente que nenhum outro escritor russo tinha tratado, e sempre garantiu o sucesso ao autor. No entanto, “A Fossa” não é uma obra-prima. A Kuprín faltavam para os grandes temas a -
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O. M. :
CARPEAUX
profundeza psicológica e a inguietação ideológica. Substituiu aquela por meditações moralizantes e esta pelo melodramatismo sensacionalista. Kuprin só é mestre, quando retrata a vida rotineira, coisas nada extraordinárias, às quais sabe, porém, conferir a novidade fulgurante de aventuras. Assim, não consegue convencer-nos da possibilidade da aventura extraordinária do Capitão Ríbnikov; mas a orgia, durante a qual o espião se trai, esta é qualquer coisa de extraordinário. Para um narrador tão despreocupado não houve lugar em tempos revolucionários, que exigiram o homem todo. Kuprin saiu da Rússia, para passar quase vinte anos na França, no exilio. Ali, cortado dos seus ambientes, escreveu pouco: “Teannette”, história melancólica de um emigrante russo em Paris; e o romance “Os Cadetes” (1933), recordação nostálgica dos dias da mocidade. Em 1938, Kuprín voltou para a Rússia, reconciliado com a revolução. Morreu, neste mesmo ano, em Moscou. “eonid Nikoláievitch Andréiev nasceu em Orel, na Rússia
Central, em 21 de agôsto de 1871, de família burguesa, mas
muito pobre; a mãe era polonesa, como a de Koroliênko e de vários outros escritores russos. O pai morreu cedo, deixando os seus na miséria. Leonid estudou Direito, com as maiores dificuldades e sem interêsse pelos assuntos jurídicos; estabelecido como «advogado, só teve uma causa, e esia êle perdeu. Tinha descoberto seu talento para pintar; viveu precáriamente, vendendo retratos. Mas como artista plástico, nunca superou o nível de amador. Sua verdadeira vocação era a literatura. Nutriu-a, lendo apaixonadamente, todos os livros acessíveis, adquirindo excepcional cultura literária. Nesses anos, Andréiev viveu na maior pobreza e sem espeTrabalhava ranças. Nada menos que três vêzes tentou o suicídio. 1898 Em de consepolícia. no jornal “Kurier”, como repórter Garaska”, e “Bargamat que novela, primeira guiu publicar sua Também Koroliênko. entusiasmo pelo generoso saudada com foi Górki estimulou o jovem escritor. Sua primeira coleção de convenderamtos, publicada em 1901, teve sucesso surpreendente: obra de De outra uma exemplares. 250.000 nada menos que se tôda primeira a “Andréiev vendeu-se, dentro de poucas horas, edição. Nenhum dos grandes escritores russos, até a revolução «de 1917, registrou jamais tão retumbantes sucessos de livraria.
INTRODUÇÃO
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Andréiev tornou-se, pessoalmente o centro da vida literária russa. Em sua revista “Chitchipóvnik” conseguiu reunir os poetas simbolistas e decadentistas e os ficcionistas socialistas do grupo de Górki. Também era notável o sucesso de Andréiev no estrangeiru: suas obras foram traduzidas para tôdas as línguas. Especialmente na Alemanha, Itália e nos Estados Unidos foi êle considerado como o líder da nova literatura russa; a leitura dos seus romances e novelas determinou a imagem da Rússia revolucionária na mente dos leitores europeus e americanos. Em 1914, essa brilhante carreira chegou de repente ao fim. Entusiasmando-se pela causa dos aliados contra a Alemanha, Andréiev tornou-se, para a surprêsa geral, panfletista patriótico e nacionalista russo, incompatibilizando-se com tôda a “intelligentzia”. Em 1917 foi eleito deputado para a Assembléia Nacional, no partido de Kerênski; a vitória da revolução comunista e o tratado de paz de Brest-Litovsk tornaram-lhe impossível a vida na Rússia. Fugiu para a Finlândia, de onde iniciou uma guerra de panfletos contra o comunismo. Viveu, porém, esquecido e na miséria. Em 25 de setembro de 1919 morreu na localidade de Mustamaegei; tão pobre que as autoridades municipais custearam o entêrro. Todo mundo, prâticamente, conhece uma ou outra obra de Andréiev. Mas ninguém reconheceria o escritor naquela sua primeira novela, “Bargamat e Garaska”: é a história de um pobre vagabundo, convidado para almoçar em casa de um guarda de polícia. Pela primeira vez em sua vida miserável, Garaska é tratado como gente; e começa a chorar. — O mesmo sentimentalismo inspira os contos da coleção de 1901: um pobre menino vive horas de exaltação quando guardam em seu quartinho um anjo de cera, esquecido do último Natal; Piétka, o filho da cozinheira, chega pela primeira vez a respirar o ar puro dos campos, etc., etc. E” evidente a origem dêsse sentimentalismo filantrópico: Andréiev é discípulo de Koroliênko. Mas Górki também gostou. E quando Garaska começou a chorar, tôda a Rússia chorou com êle. O sucesso foi retumbante. Raãpidamente conseguiu Andréiev livrar-se daquelas influências. Em Tchékhov e Górki reconheceu os mestres contemporâneos do realismo genuinamente russo. Atrás dêles, admirava ninguém mais do que o velho Tolstói, sobretudo e caracteristicamente, duas obras do mestre: “A morte de Ivan Hítch”, em que encontrou sua própria pergunta torturante pelo sentido da
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vida; e “A sonata de Kreutzer”, em cujo estilo febrilmente agitado encontrou uma maneira de narrar como feita para seu próprio temperamento nervoso. As novelas realistas de Andréiev, algo semelhantes às do seu contemporâneo Kuprín, têm como temas episódios da vida russa antes e depois da revolução de 1905: greves e atentados, repressão policial e pogroms, o desespêro e a falta de orientação dos estudantes, as evasões dos intelectuais para as regiões da religião e da mística, e um todo-poderoso despertar de desenfreados instintos sexuais, de modo que perversões, violações e relações com prostitutas desempenham nas novelas de Andréiev papel maior do que em qualquer outro escritor russo anterior; o que, sem dúvida, também contribuiu para o sucesso. A primeira novela em que se manifestam as qualidades típicas de Andréiev, é “No nevoeiro” (1 902): um rapaz, que não conseguiu dominar seus problemas sexuais, mata uma prostituta andreieviae, depois, comete suicídio. E" a primeira das novelas “assustar destina o a se famosa, frase nas que, conforme uma leitor”: o estilo nervoso, febril, torna o episódio como que presente. Além disso, a novela tem certa importância histórica: servirá de modêlo a muitas outras obras, escritas depois de 1905, quando o fracasso das esperanças revolucionárias limitará a mocidade ao círculo mais estreito dos seus problemas sexuais; como nas obras de Arisibáchev. Mas o próprio Andréiev ainda pensava em enquadrar êsses problemas em outros, maiores: “Abismo” é a história de uma “curra”: um grupo de vagabundos assalta um casal de namorados, espancando o estudante, violando e matando a môça. E” como se Andréiev quisesse dizer: — vejam de que são capazes êsses heróis românticos de Górki! Motivos políticos já entram na novela “Trevas”: um terrorista, perseguido pela polícia, esconde-se num bordel. Enfim, “O governador” (1906): mandou a tropa abrir fogo contra os operários; os terroristas, revidando, anunciam-lhe a morte certa por atentado; o governador sabe que não poderá escapar; espera o fim. São episódios da época agitada antes e depois da revolução de 1905, descritos com intenso realismo, mas também num estilo impressionista e nervoso, inteiramente alheio ao tradicional realismo russo. Talvez não fôsse possível refletir a época de 1905, violenta, esperançosa, desesperada, decidida e absurda,
INTRODUÇÃO
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num estilo criado no século XIX para refletir uma realidade estática, imóvel na superfície e movimentada só nos fundos da sociedade e das almas. A única exceção foi Dostoiévski. E, com efeito, Andréiev imitou com tanto fervor a paixão de Dostoiévski pela psicopatologia, pelos estados de alma meio ou totalmente anormais, que os contemporâneos confundiram as aparências, saudando em Andréiey “um novo Dostoiévski”, sobretudo no estrangeiro. E" que o público europeu desconhecia outras fontes, mais imediatas, do novo estilo. A Europa ocidental não tomou conhecimento da nova poesia simbolista na Rússia, entre 1900 e 1910, de poetas como Annenski, Balmont, Briussov, Blok, nem de poetas menores que exploravam o lado psicopatológico ou perverso do misticismo, como Kusmin. O novo estilo de ficção em prosa corresponde ao daqueles grandes poetas, é o do próprio Briussov, em seus romances, e o de Biéli. Ão outro nível corresponde o novo estilo de Andréiev. Êste chegou mesmo a entrar no movimento simbolista, com suas peças dramáticas, de enrêdo simbólico e de tendências vagamente filosóficas. São obras que refletem o estado de alma caótico da “intelligentzia” russa depois de 1905: “Save”; “A vida do homem”; “Anathema” (que passa por ser a obra-prima dramática de Andréiev e na qual conseguiu criar, em David Leiser, um personagem vivo); “Rei Fome” (que foi, entre tôdas as obras de Andréiev, seu maior sucesso); “Máscaras pretas”; “Anfissa”, eic. Cada uma dessas peças, escritas quase tôdas elas entre 1905 e 1910, foi no momento de sua publicação e representação vivamente discutida na Rússia, como acontecimento literário e filosófico. Também na Europa foram muito representadas, especialmente “A vida do homem” e “Anathemo”. Hoje, quase estão esquecidas. Raros são os críticos que ainda lhes atribuem importância, como o crítico italiano Adriano Tilgher, que estudou o teatro de Andréiev ao lado das obras de Synge, Pirandello e Crommelynck. Explicam-se, pelos mesmos motivos, o sucesso contemporâneo e o esquecimento posterior. Como dramaturgo saiu Andréiev totalmente das limitações do realismo, perguntando seriamente pelo sentido da vida. Mas tem-se a impressão de que seus problemas foram maiores do que o próprio escritor. Suas preocupações filosóficas não são as de um verdadeiro pensador, mas de um homem com a sensibilidade à flor da pele, nervoso, assustado, cheio de angústias e incapaz de en-
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contrar uma saída. Andréiev é o tipo de escritor decadente. Hoje, não se aprecia mais êsse decadentismo; estamos acostumados a coisas muito mais fortes, nós, espectadores de peças de Samuel Beckett. O próprio Andréiev fêz experiências em todos os estilos e maneiras de escrever possíveis; sempre voltou, quando possível, ao realismo como a uma terra firme. O decadentismo e o impressionismo atraíram-no como recursos infalíveis para chamar a atenção do público. O velho Tolstói, insubornável como sempre, disse, depois da leitura de algumas daquelas novelas: “Andréiev quer me assustar; mas eu não me assusto”. Foi uma exceção. O público assustou-se muito. A grande novela “O riso vermelho” começa com as palavras: “Horror e loucura. ..”. Eis o “leitmotiv” de certa literatura de Andréiev e quase o “leitmotiv” da ficção russa entre 1900 e 1 910 (com exceção de Górki). O efeito retumbante é tudo. O lado fraco de Andréiev é a retórica melodramática. E” ela que explica o sucesso fulminante do escritor. Mas não se pode manter, por muito tempo, tão alta temperatura emocional. O decadentismo esgotou o escritor até os limites do colapso nervoso. Em I9I4, o ex-pacifista furioso já abraçou o furor belicoso. Não tinha mais nada que dizer à Rússia. Com todo o seu grande talento, Andréiev não era um “novo Dostoiévski”. Com todo seu interêsse pelos “grandes problemas”, faltava-lhe a paixão ideológica. De Dostoiévski, não tinha a fé nem a vontade séria de encontrar uma fé: nem a religiosa nem a política. No fundo, não pertencia aos místicos, aos quais abriu sua revista, nem aos socialistas, aos quais também abriu sua revista. A raiz do seu desespêro e do seu nervosismo foi falta de fé em qualquer coisa que fôsse: o cepticismo. Durante certo tempo, Andréiev internou-se na filosofia: pessimista de Schopenhauer, interpretando-a um pouco à maneira de Wagner: a negação da vida como primeiro passo para o herotsmo, que salvaria a humanidade. Mas com o seu negativismo habitual, Andréiev chegou antes a verificar o que não é heroismo: aquilo que é tido, falsamente, como heroísmo, isto é, a coragem do soldado no campo de batalha. “O riso vermelho” não é, como, muitas vêzes se acreditava, um manifesto novelístico contra a guerra russo-japonêsa; foi escrito e publicado pouco antes dessa guerra, em 1 904; aos acontecimentos posteriores só deve o sucesso retumbante, como
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INTRODUÇÃO
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se o escritor tivesse justamente profetizado “o horror e a loucura”. Seria interessante comparar essa novela anti-guerra com sua precursora imediata: “Quatro dias”, de Gárchin. A novela de Gárchin é bastante forte. Mas parece “con sordino”, em comparação com a intensidade quase insuportável da obra de Andréiev, que até hoje, em tempos de guerra tão diferentes, não perdeu nada de sua atualidade: a guerra é horror e loucura. Sobrevieram os tempos da revolução e da repressão ferrenha da revolução. Os derrotados sofreram muito. A um Andréiey não ocorreu, como a Górki, analisar o efeito psicológico da repressão, inculcando aos derrotados a consciência de classe. Mas acreditava ter descoberto o verdadeiro heroísmo, dos que sofrem por aquilo que fizeram voluntária e conscientemente. Eis o tema de “Os sete enforcados”. Os sete são cinco revolucionários e dois criminosos comuns, todos êles condenados à morte na fôrca: seus últimos dias, últimas horas, últimos mi-nutos. E” uma novela que teria assustado até o velho Tolstói. A impressão não deve ser comparada à feita por uma obra como “A morte de Ivan Ilttch”. Mas pode-se pensar, sim, no efeito de cenas finais de certas tragédias, independente do sentido superior delas. As opiniões sôbre Andréiev divergem muito, até hoje. O crítico alemão Alexander Eliasberg, inspirado por idéias filosóficas, nega totalmente o valor de Andréiev, que teria meramente procurado produzir efeitos retumbantes; lamenta que muitos estrangeiros tenham considerado Andréiev como um dos maiores e mais típicos escritores russos. Justamente o contrário de tudo isso pode-se ler num livro do crítico norte-americano Ivar Spector, que coloca Andréiev ao lado dos maiores gênios da literatura russa, considera-o igual a Górki, etc. Um historiador do romance russo, Ianko Lavrin, é de opinião muito diferente: para êle, Andreiev é um explorador das tendências decadentistas e niilistas da poesia russa entre 1900 e 1910, num nível mais baixo. Mas o crítico soviético L. I. Timoféiev reconhece em Andréiev um grande artista, de rara fôrça de imaginação, de rara originalidade na escolha dos seus temas e de alto talento estilístico, mas afastado da verdade da vida e incapaz de reconhecer os mais importantes problemas dela. Essas opiniões contraditórias revelam que a posteridade ainda não encontrou o critério definitivo para julgar o valor de
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Andréiev. Mas até então e mesmo depois está garantida a sobrevivência das suas obras-primas: “O riso vermelho” e “Os sete enforcados”.
Andréiev é, de qualguer maneira, um dos mais famosos escritores russos. Vieriessáiev, menos famoso, conquistou pelo menos com um dos seus livros a celebridade internacional. Mas Sologúb é, práticamente, um desconhecido no mundo; e parece que também na Rússia já não é dos autores mais lidos ou mais apreciados. No entanto, a crítica e historiografia literária do futuro serão capazes de preferi-lo aos dois outros autores do presente volume, colocando-o ao lado dos maiores. Não conheço nenhum livro biográfico sôbre Sologúb. Quase todos os estudos críticos sôbre o autor, principalmente em russo, alemão e italiano, saíram em vida dêle. Não é possível esboçar aqui sua biografia, que não apresenta, aliás, acontecimentos especialmente interessantes. Fiódor Sologúb — o nome com que o autor assinava todos os seus livros — é pseudônimo. O verdadeiro nome é Fiódor Kusmitch Teternikov. Nasceu em Petersburgo, em 1863. 4 obra do escritor, esteta requintado, poeta evasionista, filósofo algo abstruso mas de notável erudição — tudo isso parece indicar origens aristocráticas. O retrato de Sologúb, homem forte e até gordo, com barbicha a Henri IV, fortalece a mesma impressão. E” inteiramente errada. Sologúb foi homem do povo: filho de uma camponesa, que serviu como arrumadeira em casas ricas. Criou-se na pobreza. Conseguiu com grandes dificuldades o diploma de professor primário. Passou a ensinar em escolas nas cidades da província. Custou-lhe muito entrar na vida literária. Mas quando entrado nela, obteve sólidos sucessos. Levou uma vida calma e retirada, só uma vez interrompida por um acontecimento trágico: o suicidio de sua mulher. Não aderiu prôpriamente à revolução comunista; mas conformou-se com ela. Nunca foi molestado. Morreu em 1927, em Leningrado. Por que é Sologúb um desconhecido no Ocidente? Porque Ocidente nunca tomou conhecimento da literatura russa entre o 1900 e 1910, com exceção de Andréiev e Kuprín, que continuaram a tradição realista do século XIX. Para a grande maioria dos leitores ocidentais, os últimos “grandes russos” foram Tché-
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khov e Górki, por volta de 1900. Para êsse público, a Rússia reapareceu no horizonte literário só depois da revolução comunista, com poetas como lessênin e Maiakóvski, com ficcionistas como Gládkov, Pílniak e Bábiel. O intervalo foi pulado. Mas no realismo de Tchékhov são evidentes os sinais de uma atitude dijerente em face da vida e de sua expressão literária: o pessimismo decadentista e o uso de simbolos de significação transcendental. Por outro lado, a poesia de Maiakóvski tem suas origens no “futurismo” russo, que não tem nada que ver com o futurismo italiano, mas é a última e a mais radical fase da poesia simbolista russa. Entre 1900 e 1910 a Rússia produziu, pela primeira vez depois do romantismo, uma geração de poetas: Annenski, Balmont, Briussov, Biéli, Blok, Pasternak, Mandelstam, Viatcheslav Ivanov, Hippius, Khodassiévitch. Importaram do estrangeiro, sobretudo da França, novos recursos de expressão poética. Mas empregaram-nos para exprimir sentimentos e idéias especificamente russos. Para o: leitor ocidental êsses sentimentos e idéias são mais acessíveis na prosa daquela época. Mas esta também não é bastante conhecida fora da Rússia: a não ser o decadentismo de Andréiev e o misticismo confuso de Merechkóvski. Entre 1900 e 1910 encontraram-se na Rússia as esperanças revolucionárias — grupo de Górki — e uma onda de religiosidade mística, às vêzes séria, outras vêzes apenas evasão apolítica, mais outras vêzes apenas afetação de esteticistas. O fracasso da revolução de 1905 foi um desastre também para os intelectuais, que começaram a abraçar uma mistura curiosa de misticismo religioso e marxismo filosófico, filosofia de Soloviev e terrorismo de Ropchin-Savinkov, teologia herética de Rosanov e radicalismo de Tchernov, socialismo revisionista de Struve e teosofia ortodoxa de Bulgakov. A maior parte dos escritores da época, inclusive um poeta tão grande como Blok, nunca conseguiram superar essas contradições, que hoje, na retrospectiva nos parecem incompreensíveis ou obsoletas. Mas eram excelente material para os novos recursos poéticos justamente por serem contraditórias. Sobrevivem nos versos daqueles poetas. Sobrevivem nos romances e novelas de Briussov e Biéli, de Rémisov e de Sologúb. Sologúb publicou dois volumes intitulados simplesmente “Poemas” e mais dois outros volumes de versos: “O círculo incendiado” e “Estrêlas de pérolas”. Conforme opinião unânime da crítica é Sologúb um dos maiores artistas da língua russa.
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O. M. CARPEAUR
Nem Púchkin nem Blok — poetas muito superiores a outros respeitos — superam-no no manêjo do verso, na engenhosidade de metros e ritmos, na arte de inventar rimas surpreendentes, na audácia das metáforas inéditas que se gravam na memória citarei, a êsse respeito, o verso sôbre um fanático, cujos “olhos brilharam como os vidros de um manicômio em chamas”. Tódas essas artes e artifícios servem ao poeta para exprimir um decadentismo demoníaco: que também é o assunto, sempre repetido, da sua prosa. Sologúb não ê “decadentista” no sentido em que o foi Andréiev, homem sacudido pela jutilidade da vida e pelos horrores e mesquinharias da existência. O decadentismo de Sologúb é algo como uma filosofia coerente: é a negação de tudo que o resto do gênero humano afirma, espécie de niilismo extremado. Sologúb odeia a vida e seu símbolo, o sol. Exalta a morte e seu símbolo, a noite (nessa exaltação de morte e noite é manifesta a influência do romântico alemão Novalis). A vida afigura-se a Sologúb “uma mulher gorda, de bochechas rosadas, com insilntos de assassina”; aquilo que desejamos ter como vida verdadeira, só o encontramos passando pela porta da agonia: na morte. Eis o sentido do drama simbólico “A vitória da morte”. Eis também o sentido de “O estímulo da morte”: a história da pequena Kaia que se precisa desligar até do amor de sua mãe para encontrar na morte a vida. Sologúb é, aliás, em tôda a literatura russa um dos maiores mestres da psicologia infantil. Em mil símbolos, alegorias, metáforas exprimiu Sologúb aquela sua “filosofia”. Exemplo notável dessa sua engenhosidade é “A noiva de luto”. Algumas môças reuniram-se numa espécie de clube, com a seguinte obrigação estranha: sempre quando morre um homem jovem sem deixar família ou parentes, uma das môças, vestida de luto, tem de acompanhar o entêrro, fazendo o papel de noiva do defunto. Certa vez, numa ocasião dessas, a “noivo” de luto é considerada pelos presentes como a verdadeira noiva do falecido; entregam-lhe a carta de despedida do suicida; e ela realiza o ato revolucionário, que foi o último desejo do morto. Quer dizer: pela morte encontrou a môça a realização da vida. O ponto de partida dessa arte de Sologúb é, literâriamente, o anti-realismo de Gógol: justamente naqueles anos a critica russa descobriu que Gógol não foi, como acreditava o sé-—
INTRODUÇÃO
culo XIX, um realista, descrevendo a vida russa
2f e
seus abusos
e misérias, mas um escritor altamente fantástico; não um críitico da realidade, mas inimigo dela. (Também se poderia dizer, aliás: a Rússia de 1910 descobriu um novo Gógol, modelando-. lhe a fisionomia à sua maneira). Sologúb levou aquêle anti-
realismo de Gógol até as últimas consegiiências: até a rejeição: satânica da vida. O adjetivo é importante: pois Sologúb confessa seu ódio contra Deus, senhor da vida, preferindo-lhe Satã, senhor da noite (teve algumas afinidades com o satanismo pari-. siense de “fin de siêcle”, de Huysmans, Peladan e outros). Essa filosofia ultra-negativista é inaceitável para qualquer. espírito são, que não pretende cometer logo suicídio (e Sologúb: não se suicidou). Qual é a fonte dessa doutrina desumana? Poderia pensar-se nas idéias satânicas de certos gnósticos, heréticos dos primeiros séculos do cristianismo. Restos dêsse: gnosticismo sobrevivem na religiosidade e em supertições da ortodoxia bizantina e eslava. Naqueles anos entre 1900 e 1 910, Remísov redescobriu-as em lendas do folclore russo. Sologúb. não ignorava nada disso. Mas quando muito, aproveitou-o como elemento estêticamente “interessante”. Não o interessava o folclore religioso. Suas visões são estritamente individuais. Mistura-se nelas, de maneira estranhíssima, o sonho e o pesadelo, a imaginação e a realidade. Sim, a realidade. Áquêle desfêcho. de “A noiva de luto” basta para provar que Sologúb não se afastou definitivamente da realidade russa do seu tempo. Na verdade, sua estranha filosofia é produto dessa realidade e do. nôjo extremado que inspirou ao escritor. Provas do realismo sologubiano são muitos dos seus contos, reunidos nos volumes “Sombras” (1894 ), “O estímulo da morte” (1904), “O ano morto” (1916). São as únicas obras de Sologúb que, em traduções, se difundiram na Europa ocidental. Bastam para revelar a mestria do escritor. A mais realista das suas obras é o romance “Pesadelos” (1896): passa-se na província russa. descrevendo a luta de um idealista contra a estupidez e vulgaridade do ambiente e sua derrota. O fundo do romance é evidentemente autobiográfico. Evidente também é o modêlo: Tchékhov, cujos ambientes e personagens são os mesmos. Alguns anos depois voltou Sologúb ao tema de “Pesade-. los”: a vida na província russa. Mas agora, tudo é mais prox fundo e de uma intensidade inédita. Em Tchékhov, tudo é cin-
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zento; em Sologúb, êsse mundo cinzento começa a cheirar mal. Ele próprio disse: “Acrescentei ao nôjo tchekhoviano o nôjo do olfato”. O romance “O pequeno demônio” (1907) já foi caracterizado como “a obra mais repugnante da literatura universal”. Mas é uma obra-prima. O título — “O pequeno demônio” — é tirado do sonho de Ivan, em “Os irmãos Karamázov”. De Dostoiévski também se lembrará o leitor, com respeito à psicopatologia do romance. Por outro lado, “o pequeno demônio, o diabinho Niedotimka, que produz as alucinações e a loucura do personagem principal, é “sujo e vulgar” como o Demônio nas obras de Gógol. E é preciso dizer que essa obra de Sologúb se mantém em pé ao lado de “Os irmãos Karamázov” e de “Almas mortas”. O personagem principal é Pieriedonov, professor no ginásio da cidade de província. E” alcoólico, sádico, hipócrita, sujeito nojento; sob a inspiração do pequeno demônio, sua vida leva-o à mania de perseguição e ao assassinato. Ésse Pieriedonov, de 1907, é quase exatamente o contemporâneo do professor Unrat, de 1904, em “O anjo azul”, de Heinrich Mann: outro professor secundário, que é sádico e hipócrita e acaba mal. À comparação é iluminadora: Heinrich Mann escreveu uma sátira amarga e furiosa contra a vida da província, o ensino e as convenções sociais na Alemanha de antes da guerra. O romance de Sologúb não é sátira. Não é realista. E" uma alucinação terrível. Um pesadelo. No entanto, o romancista russo costumava afirmar que “nada nesse romance é imaginação; tudo se baseia em observações muito precisas”. O ambiente assim exatamente observado é digno de Pieriedonov. O dinheiro e a vodka governam a cidade. Os únicos personagens puros são as crianças. Os adultos são caracterizados pelos seus dentes apodrecidos, hálito fedorento, mãos suarentas, o corpo coberto de mordeduras de pulgas e percevejos; das bôcas lúbricas sai a saliva; sua manifestação melhor articulada é o riso baixinho da maledicência e da impotência. E todos são estúpidos: professôres e alunos, magistrados e môças, o prefeito e os policiais. Todos já morreram há muito, apenas não o sabem. O mundo de “O pequeno demônio” é um reino de almas mortas. A Rússia está doente e à morte. “O pequeno demônio” não foi, como as obras de Andréiev, um sucesso de livraria. Mas foi muito lido e fêz impressão profunda, O nome do personagem principal forneceu o apelido da
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INTRODUÇÃO
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doença da qual tôda a Rússia de 1907 se julgava contaminada: a “pieriedonovchtchina”, sucessora da “oblomovchtchina” e da
“karamazovchtchina”. “O pequeno demônio” é a obra principal de Sologúb. Não chegou a repetir essa façanha. “A lenda que se cria” (1908), em tôrno da Revolução de 1905, com o satânico Trirodov no centro, é a primeira parte de um ciclo, “Encanto de morte”. Também obra notável, mas já não pode ser comparada âquela outra. Depois das guerras e revoluções, os pesadelos de Sologúb pareciam superados pela realidade. O velho escritor mudou mesmo. Em “O exorcista de serpentes”, o sonho é oposto à realidade, mas já não agravando-a e, sim, consolando. O caminho de Sologúb não o levou, como se acreditava, do sonho à realidade, mas da realidade ao sonho.
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V. Vieriessáiev é o pseudônimo do escritor Vikénti Vikéntievitch Smidovitch. Nasceu no coração da Rússia, em Tula, em 1867. Morreu em Moscou, em 1946. Cronolôgicamente, é quase um contemporâneo nosso. Também o é em outros sentidos: pertence à escola literária de Górki, que é a da literatura russa de hoje; e continuou escrevendo obras importantes durante o regime soviético. No entanto, suas obras principais colocam-no na época antes da primeira guerra mundial. Vieriessáiev foi filho de um médico, de nacionalidade polonesa. O pai foi homem de intensos sentimentos humanitários. Eutou muito contra a indiferença das autoridades e contra a ignorância supersticiosa das populações rurais. Teve a mesma morte de Bazárov, no romance “Pais e Filhos”, de Turguiêniev: combatendo uma epidemia de tifo, contaminou-se com a doença mortal. O filho adorava êsse pai. Seguiu-lhe o exemplo, estudando medicina. Em 1892 já teve oportunidade de militar na epidemia de cólera, que devastou então grande parte da Rússia. Continuou exercendo a profissão. Suas experiências forneceramlhe a documentação para o livro “Memórias de um médico”: autobiografia ficcionalizada, cheia de observações agudas, de modo que o leitor recebe um panorama quase completo das condições de vida na Rússia no fim do século XIX. A tendên-
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cia do livro é nobremente filantrópica; a medicina é encarada como serviço social. O livro é um evangelho do humanitarismo; e excelentemente escrito. “As memórias de um médico” foram publicadas em 1900; de um dia para o outro tornaram o autor mundialmente célebre. Na Rússia apreciava-se sobretudo a atitude humanitária do autor, que podia ser aprovada pelos revolucionários e pelos liberais e até por alguns conservadores moderados. Na Europa também agiu êsse motivo: por volta de 1900, o dr. Vieriessáiev foi tão famoso como hoje o dr. Albert Schweitzer. Além disso gostavam os leitores ocidentais, geralmente hostis ao regime tsarista, da descrição realística das condições de vida na Rússia de então. “Memórias de um médico” é até hoje um livro sempre reeditado e muito lido. Na data da publicação dessa obra, Vieriessáiev já tinha superado a fase do mero filantropismo humanitário. Em 1896 assistira em Petersburgo à famosa greve dos tecelões e sua supressão violenta. Tirou a conclusão de que o mero melhoramento das condições de vida não bastava; que nada se podia esperar das autoridades; e que reformas liberais tampouco seriam uma solução definitiva. Entrou no partido social-democrático, que então, na ilegalidade, reuniu os socialistas moderados e os socialistas revolucionários que seriam, mais tarde, os comunistas. (Convém não confundir êstes últimos com os social-revolucionários, então o maior dos partidos ilegais, mas infenso ao marxismo e dedicado à disseminação do terror contra as autoridades, por meio de fregiientes atentados). Em 1904 e 1905 participou Vieriessáiev da guerra russojaponêsa, servindo como médico militar na Mandchúria. Suas experiências inspiraram-lhe o livro “Na guerra”, violenta condenação da incapacidade e incompetência da administração pública tsarista. “Memórias de um médico” e “Na guerra” são livros documentários, baseados em recordações e observações pessoais. Apesar das qualidades literárias dessas duas obras, foram antes classificadas como contribuições à sociologia da Rússia e, em parte, como panfletos políticos. Pertencem certamente aquela erande corrente da literatura russa do século XIX que é chamada “literatura de acusação”. Mas se fôsse só isso, Vieriessáiev não seria um escritor contemporâneo. Mas a verdade é outra.
INTRODUÇÃO
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Todos os livros de Vieriessáiev, das “Memórias de um médico” até os últimos, publicados nos tempos de Lênin e de Stálin, têm um tema comum: a relação entre a “intelligentzia” e a revolução e o caminho dos intelectuais russos para encontrar-se com o povo. Embora contemporâneo quase exato de Andréiev e de Sologúb, Vieriessáiev ficou longe de tôdas as veleidades de decadentismo e de simbolismo. As tendências estéticas e místicas de sua época não parecem existir para êle. E' um realista sóbrio, um pouco racionalista. E” um dos últimos herdeiros do grande realismo russo do século XIX. Mas seus temas estão intimamente ligados aos acontecimentos pré-revolucionários de 1900, à revolução de 1905, à repressão e depressão pós-revolucionárias, à revolução de 1917 e às suas consegiiências. E”, na verdade, um escritor contemporâneo. Por outro lado, Vieriessáiev é escritor de verdade. Eº digno de figurar ao lado e na sucessão dos grandes realistas russos. Foi crítico literário de grande penetração: escreveu um livro dir-se-ia indispensável sôbre Tolstói, e valiosos estudos sôbre Púchkin, Gógol e Dostoiévski. Foi igualmente forte sua aqutocrítica, que se revela sobretudo em seu estilo. Numa época de grande poesia — e de poesia simbolista! — num tempo de prosadores dos mais requintados, Vieriessáiev insistiu na diferença essencial entre poesia e prosa. Nunca cedeu — como às vêzes aconteceu a Górki — à tentação de escrever prosa poética. Seu estilo é sólido, quase nu, sem enfeites. No entanto, é pelas expressões e pelo ritmo um estilo clássico. Vieriessáiev foi, talvez sem querer sê-lo, um grande artista. 4s primeiras obras de ficção prôpriamente dita de Vieriessáiev são anteriores às “Memórias de um médico”. E' de 1895 a novela “Sem caminho”, com base nas recordações do autor, dos tempos do cólera: um médico de aldeia, em luta contra a epidemia, tem também de lutar contra a ignorância e as superstições dos camponeses; é bem um quadro da Rússia “antiga”, ainda não muito longe de Gárchin e das decepções dos “Naródniki” que quiseram “ir para o povo” sem conhecê-lo. Um quadro da Rússia pré-revolucionária é “Dois fins” (1903): a descrição dos “slums” urbanos, de miséria, alcoolismo, prostituição e do mêdo permanente da polícia e das suas arbitrariedades lembra as novelas de Kuprín e outros realistas do comêço do século. Mas graças ao seu temperamento calmo
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à ausência total de sensacionalismo à maneira de Andréiev, guarda Vieriessáiev sempre um nível superior aos efeitos requeridos pela “atualidade”. O leitor de Vieriessáiev tem, às vêzes, a impressão de encontrar-se num beco sem saída (o que será, alguns anos depois, o título de um romance do autor). E” porque Vieriessáiev, apeliterasar das suas firmes convicções socialistas, nunca faz êle e Górki. entre principal é diferença esta a de tendência; tura Mas a perspectiva revolucionária é comum dos dois autores. E” característica a êsse respeito, a novela alegórica “A estrêla”, “Point que ensina a necessidade de lutar mesmo sem esperança: n'est besoin d'espérer pour entreprendre, ni de réussir pour persévérer”. “4 estrêla”, de Vieriessáiev, lembra o conto alegórico “Luzes”, de Koroliênko: a idéia é quase a mesma. Diferente é, porém, o estilo: poético em Koroliênko e deliberadamente prosáico em Vieriessáiev. Cada um pode escolher conforme seu gôsto pessoal. Nossa escolha está feita. As esperanças de que Vieriessáiev “não precisava”, realimentais zaram-se. Sem entusiasmo, mas também sem reservas aderiu o escritor à revolução de 1917. E continuou no seu papel de descrever as dificuldades dos intelectuais em encontrar é a história o povo: agora, o novo regime. “Beco sem saída” da môça intelectual Katia, que não é capaz de conformar-se com as realidades da revolução vitoriosa, mas tampouco é capaz de O romance aprovar a ação das fôrças contra-revolucionárias. discussões de objeto muito durante tempo, 1923: foi, saiu em entre os críticos e dos críticos com o novo público, pouco acostumado a ver a nova realidade abertamente criticada e, talvez, preferindo às dúvidas a afirmação dogmática. Mas Vieriessáiev, licorajoso como sempre, não se deixou desviar do caminho é diáo 1933, vremente escolhido. “Duas irmãs”, publicado em rio comum de Selka e Ninka: aquela, uma realista, de acôrdo com a realidade; esta, uma individualista que luta para condo servar a liberdade do seu fôro íntimo. E” admirável a fôrça temé, mesmo ao recurso literário do diário comum: o conflito é admirável a capo, interiorizado e exteriorizado. Também pacidade do velho escritor, já com 66 anos de idade e provindo de uma época totalmente diferente, de pintar um quadro vivo da nova realidade, da vida dos Komsomolsi.
e
INTRODUÇÃO
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Vieriessáiev, grande artista, também foi homem de
exem-: plar honestidade intelectual. O govêrno russo honrou-o e honrou-se a si próprio, organizando para seu entêrro solenes fu-
nerais.
OTTO MARIA CARPEAUX:
e Leoníd Nikoláievitch Andréiev (1870-1919)
Di Os Sete Enforcados L. N.
ANDRÉIEV
Tradução de Anna Weinberg
1.
A uma da tarde, Excelência
Como o MINISTRO ERA MUITO OBESO, propenso à apoplexia, foi prevenido com tôdas as precauções, evitando-se provocar uma comoção perigosa, de que preparavam contra êle um atentado dos mais sérios. Ao verem que o ministro recebeu a notícia com calma e até sorridente, comunicaram-lhe também os pormenores: o atentado devia ser levado a efeito no dia seguinte, às treze horas, quando êle saísse para fazer um relatório; alguns terroristas, já denunciados pelo agente policial, os quais se achavam sob constante vigilância por parte dos detetives, deviam reunir-se com bombas e revólveres perto do pórtico à uma da tarde e esperar-lhe a saída. Ali seriam agarrados. — Esperem — admirou-se o ministro, — como vieram êles a saber que sairei à uma hora para apresentar um relatório, se só há três dias fiquei sabendo disso? O chefe da guarda fêz um gesto evasivo com as mãos: — Exatamente à uma hora da tarde, Excelência. Quer espantado, quer em aprovação da atividade da polícia, que arquitetou as coisas tão bem, o ministro sacudiu a cabeça e esboçou um sorriso sombrio com os lábios grossos e escuros; e submisso, com o mesmo sorriso, não desejando causar maiores incômodos à polícia, aprontou-se rapidamente e foi pernoitar em palácio alheio e hospitaleiro de alguém. Do mesmo modo, foram retirados da casa perigosa, próximo à qual se reuniriam
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no dia seguinte os lançadores de petardos, a sua espôsa e os dois filhos. Enquanto estavam acesas as luzes do palácio alheio e amáveis rostos conhecidos inclinavam-se, sorriam e manifestavam indignação, o dignitário experimentava uma sensação de agradável excitação, como se já lhe tivessem dado ou estivessem para lhe dar uma condecoração importante e inesperada. Mas as pessoas partiram, apagaram-se as luzes e através as vidraças de cristal espalhavam-se pelo teto e pelas paredes os rendilhados fantásticos formados pela luz dos globos elétricos; estranha à casa, com os seus quadros, estátuas e o seu silêncio, a claridade vinda da rua, calma e vaga, despertava a idéia inquietante da inanidade das fechaduras, da guarda e das paredes. E então, durante a noite, em meio ao silêncio e à solidão reinantes no dormitório alheio, o dignitário foi prêsa de um pavor insuportável. Seus rins não funcionavam lá muito bem, e a cada abalo forte produziam-se-lhe edemas no rosto, nos pés e nas mãos, que inchavam, e isso tornava-o ainda mais corpulento, mais gordo e mais balofo. E agora, erguendo-se com o monte de carnes intumescidas sôbre as molas comprimidas da cama, sentia com a tristeza de um homem doente o seu rosto inchado, que lhe parecia estranho, e pensava incessantemente no destino cruel que os homens lhe preparavam. Recordou, um após outro, todos os recentes casos terríveis em que atiraram bombas em pessoas da sua categoria e até ocupando posições ainda mais elevadas, e os petardos estraçalhavam o corpo, esparramavam a massa encefálica em salpicos pelas sujas paredes de tijolos, arrancavam os dentes das gengivas. E por causa dessas recordações o próprio corpo obeso e doente, estirado no leito, já se afigurava estranho, como que experimentando a fôrça ígnea da explosão; e imaginava os braços a separarem-se do tronco pelo ombro, os dentes a cairem, o cérebro a fragmentar-se em partículas, os pés entorpecidos a jazerem inertes com os dedos para cima, como os de um defunto. Mexia-se com vontade, respirava forte e tossia, para em nada se assemelhar a um defunto, cercava-se do ruído intenso das molas que rangiam, do cobertor que roçagava, E para demonstrar que estava bem vivo, que não morrera nem um pouquinho e estava longe da morte, como outro homem qualquer, quebrou imprevistamente a calma e a solidão do dormitório com a sua voz de baixo profundo:
OS SETE ENFORCADOS
— Uns bravos! Uns bravos! Uns bravos!
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Assim êle elogiava os detetives, a polícia e os soldados, todos aquêles que guardavam a sua vida e tão oportuna e hábil. mente o preveniram do planejado assassínio. Muito embora se remexesse, elogiasse, sorrisse de modo forçado e contrafeito para escarnecer dos terroristas mal sucedidos e tolos, ainda assim não acreditava na sua salvação, em que a vida não o deixaria súbitamente, de uma vez por tôdas. A morte que os homens haviam tramado contra êle e que só existia nos pensamentos e intenções dêles, era como se já estivesse ali, e ali permanecesse, até que fôssem presos, lhes tirassem as bombas e os jogassem numa prisão reforçada. Estava ali naquele canto e não ia embora — não podia ir-se, como um soldado obediente, postado de sentinela por vontade e ordem de alguém. — A uma hora, Excelência! — ressoava a frase pronunciada, vibrando com tôda a espécie de entonações: ora de um alegre zombeteiro, ora zangada, ou ainda obstinada e surda. Parecia que tinham colocado no dormitório uma centena de gramofones, aos quais deram corda, e todos êles, um após outro, com a diligência idiota da máquina, berravam as palavras que lhes foram impostas: — À uma da tarde, Excelência. E essa “uma hora da tarde” do dia seguinte, que havia pouco ainda não se distinguia das outras, e era apenas o movimento compassado do ponteiro no mostrador do relógio de ouro, súbito adquiriu uma persuasão sinistra, destacou-se do quadrante, começou a ter vida própria, esticou-se qual enorme poste prêto que seccionava a vida em duas partes separadas. Dava a impressão de que nem antes nem depois dessa hora tinham exis tido outras, mas unicamente ela, que insolente e presunçosa reclamava o direito a uma existência particular qualquer. — Bem, o que queres? — perguntou por entre dentes o ministro, zangado. Berravam os gramofones: — A uma da tarde, Excelência! — e o poste prêto sorrin malicioso e inclinava-se. Rangendo os dentes, o ministro recostou-se na cama é depois ficou sentado, apoiando o rosto nas palmas das mãos Decididamente, não podia conciliar o sono naquela noite abo minável.
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E com uma clareza horripilante, apertando o rosto com as palmas das mãos rechonchudas e perfumadas, imaginou como na manhã seguinte ter-se-ia levantado sem saber de nada, depois teria tomado o café, sem saber de nada, após o que iria vestir-se na antecâmara. Nem êle, nem o porteiro que lhe entre-. gava o casaco de peles, nem o criado que trazia o café saberiam que era totalmente absurdo tomar café e vestir o casaco, quando daí a alguns momentos tudo aquilo: o casaco, o seu corpo e o café, que estava dentro dêle, ia ser aniquilado por uma explosão, arrebatado pela morte. Eis que o porteiro abre a porta envidraçada... E é êle, o simpático, bondoso e carinhoso porteiro, que tem olhos azuis de soldado e crachás distribuídos pelo peito, é êle quem abre com as próprias mãos a porta terrível; abre porque não sabe de nada. Todos sorriem porque de nada sabem. — Olá! — exclamou de repente em voz alta e afastou vagarosamente as mãos do rosto. E fitando a escuridão num ponto ao longe em frente, com um olhar fixo e tenso, do mesmo modo lento esticou o braço, apalpou o interruptor e acendeu a luz. Depois levantou-se e, sem enfiar os chinelos, descalço, pisando no tapête, fêz a volta do desconhecido dormitório alheio, achou o interruptor da lâmpada de parede e acendeu-a. Fêz-se uma claridade agradável e apenas a cama em desalinho, com o cobertor caído no chão, falava sôbre certo terror que ainda não passara por completo. Em trajes menores, com a barba desgrenhada devido aos movimentos agitados, de olhos onde se lia a zanga, o dignitário parecia-se com qualquer outro velho zangado que estivesse sofrendo de insônia e de uma dispnéia de esfôrço. Era como se a morte que os homens lhe preparavam o houvesse desnudado, arrancando-o da suntuosidade e do esplendor imponentes que o rodeavam. E tornava-se difícil acreditar que era êle quem dispunha de um poder tão grande, que êsse seu corpo, um corpo humano tão comum e simples, devia perecer de forma terrível, ao fogo e ao estrondo de uma explosão monstruosa. Sem ves-= tir-se e sem sentir frio, sentou-se na primeira poltrona que encontrou, apoiou a barba desgrenhada na mão e, imerso em profunda e trangiila meditação, pousou o olhar no teto modelado com estuque e desconhecido.
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Eis do que se tratava! Eis porque ficara tão amedrontado e tão agitado! Era porque ela estava em pé no canto e não ia embora, nem podia ir! — Bobos! — exclamou com desprêzo e ênfase. — Bobos! — repetiu mais alto e voltou ligeiramente a cabeça na direção da porta, para que o ouvissem aquêles a quem se referia. E referia-se aos que ainda há pouco chamara de bravos e que demonstrando excesso de zêlo haviam lhe apresentado um relato pormenorizado sôbre o atentado que se preparava. “Claro — refletiu profundamente, com inopinado vigor e harmonia de pensamento, — agora que me contaram, sou sabedor e tenho mêdo, mas então não saberia de nada e teria tomado café com tôda a calma. Bem, e depois, certamente, essa morte; mas acaso terei tanto mêdo da morte? Doem-me os rins e morrerei um dia, mas não temo, porque não sei de nada. Mas êsses bobos disseram: à uma da tarde, Excelência. E julgaram, os tolos, que eu me alegraria, mas em vez disso ela permaneceu no canto e não vai embora. Não se vai porque está em meu próprio pensamento. E não é a morte que é terrível, mas o ter conhecimento dela; e seria de todo impossível viver, se o homem pudesse saber com plena exatidão e certeza o dia e hora em que morreria. Mas êsses tolos previnem: “A uma da tarde, Excelência!” Ficou tão despreocupado e contente, como se alguém lhe tivesse dito que era imortal e não morreria nunca. E sentindose de novo forte e inteligente no meio dêsse rebanho de tolos, que irrompe tão absurda e insolentemente no mistério do futuro, pôs-se a meditar na beatitude da ignorância com os pensamentos lerdos de um homem velho, doente e muito experimentado. A nenhum ser vivo, nem ao homem, nem aos animais, é dado conhecer o dia e a hora da morte. Estivera enfêrmo fazia pouco tempo, e os médicos lhe disseram que ia morrer, que devia fazer suas disposições de última vontade, mas êle não lhes deu crédito e de fato sobreviveu. E na juventude aconte ceu que teve certas complicações na vida e resolveu dar cabo de si. Aprontou o revólver, escreveu cartas e até marcou a hora do suicídio, mas quando estava para consumar o ato, mudou repentinamente de idéia. Sempre no último instante algo pode modificar-se, pode surgir um acaso inesperado, e por essa razho ninguém pode dizer quando morrerá.
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“A uma da tarde, Excelência” — disseram-lhe os burros amáveis, e apesar de o terem dito apenas para obstar a morte, só o conhecimento da possível hora dela apavorava-o. Era plenamente admissível que algum dia o matassem, mas não aconteceria no dia seguinte — não aconteceria na data marcada — e êle podia dormir sossegado, como um imortal. Os tolos não sabiam qual a grande lei que haviam pôsto de lado, ignoravam que buraco tinham aberto, quando declararam com uma gentileza idiota: “A uma da tarde, Excelência”. — Não é à uma hora da tarde, Excelência, mas não se sabe quando. Não se sabe quando. O quê? — Nada — respondeu o silêncio. — Nada. — Não, estás dizendo alguma coisa. — Não é nada, são bobagens. Digo: amanhã, à uma hora da tarde. E sentindo uma repentina tristeza aguda no coração, compreendeu que não poderia dormir, nem ter sossêgo, nem alegria, enquanto não passasse essa hora maldita, negra, arrancada do mostrador. Apenas a sombra do conhecimento daquilo que nenhum ser vivo deve conhecer estava ali no canto, e bastava para ofuscar a luz e mergulhar o homem nas trevas impenetráveis do terror. Uma vez despertado o pavor da morte, difundiase pelo corpo, implantava-se nos ossos, espichava a cabeça lívida para fora de cada poro. Já não mais temia os assassinos do dia seguinte. Sumiram-se, ficaram esquecidos, misturaram-se à multidão de rostos e fenômenos hostis que cercavam a sua vida cotidiana. Tinha mêdo, porém, de alguma coisa subitânea e inevitável: de um ataque apoplético, de um colapso cardíaco, de uma traiçoeira aorta de paredes fininhas que de repente não suportasse a pressão do sangue e rebentasse, como uma luva muito justa em dedos roliços. E o pescoço curto e nédio parecia-lhe assustador, e era insuportável observar os dedos curtos e inchados, sentir como eram curtos, como estavam cheios de um líquido mortífero. E se antes, na escuridão, precisava mover-se, para não se assemelhar a um morto, agora, àquela luz clara de uma frieza hostil e terrível, tudo lhe parecia horrível. Impossível mexer-se para apanhar um cigarro, impossível tocar a campainha a fim cada nervo de chamar alguém. Os nervos estavam tensos. semelhava um arame eriçado e retorcido, em cuja extremidade I%
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superior se encontrava uma cabeça minúscula de olhos arregalados por um terror louco, com a bôca convulsivamente aberta numa sufocação silenciosa. Não havia como respirar. E subitamente na escuridão, em meio à poeira e às teias de aranha, em algum lugar sob o teto soou uma campanhia elétrica. A lingieta metálica batia descompassadamente, apavorada, na borda da campânula que tinha, calava-se e tornava a trepidar com um terror que zunia ininterrupto. Era sua Excelência que tocava no quarto. Homens puseram-se a correr. Aqui e ali, nos lustres e pelas paredes, acenderam-se umas lâmpadas isoladas; eram poucas para iluminar, mas bastavam para criar sombras. Surgiram por tôda a parte: permaneciam nos cantos, esticavam-se pelo teto; agarravam-se trêmulas a cada ressalto, colavam-se às paredes. E era difícil de compreender onde se achavam anteriormente tôdas essas sombras disformes e silentes, as almas mudas das coisas mudas. Uma voz grossa e trêmula disse alto alguma coisa. Depois chamaram o médico pelo telefone: o dignitário estava passando mal. Chamaram a espôsa de sua Excelência, também.
2.
Rumo à pena de morte por enforcamento
Aconteceu como a polícia tinha previsto. Quatro dos terroristas, três homens e uma mulher, munidos de bombas, máquinas infernais e revólveres, foram agarrados junto à entrada, sendo que a quinta foi encontrada e prêsa no apartamento onde se urdiu a conspiração, do qual era proprietária. Na ocasião apreenderam muita dinamite, bombas meio montadas e armas. Todos os detidos eram muito jovens: o mais velho dos homens tinha vinte e oito anos, e a mais nova das mulheres apenas dezenove. Foram julgados na mesma fortaleza onde os encarceraram após a prisão. Julgamento sumário e sem alarde, como se fazia nesse tempo impiedoso. No tribunal, todos os cinco se mantiveram calmos, porém muito sérios e pensativos: tamanho era o seu desdém pelos juízes, que ninguém queria frisar a coragem com um sorriso supérfluo ou uma fingida expressão de alegria. Mantinham-se calmos na justa medida necessária para proteger-lhes a alma e seu grandioso negrume mortal dos olhares estranhos, maldosos e hostis. Por vêzes negavam-se a responder às perguntas, de
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outras respondiam — lacônica, simples e exatamente, como se não respondessem a juízes mas a estatísticos, para o preenchimento de determinados formulários especiais. Três, uma mulher e dois homens, deram os seus nomes verdadeiros, dois negaram-se a decliná-los e permaneceram, assim, desconhecidos aos juízes. E para tudo quanto acontecia no tribunal evidenciavam aquela curiosidade embaçada por uma névoa, própria de idéia pessoas ou gravemente enfêrmas ou possuídas de uma imensa que absorve tudo o mais. Erguiam os olhos rapidamente, de novo conpegavam no ar alguma palavra mais interessante, e haviam onde do mesmo ponto tinuavam a meditar, partindo reflexões. as parado O que se encontrava mais próximo dos juízes era um daqueles que haviam declinado o nome — Sierguiêi Golovin, filho de um coronel reformado, ex-oficial êle próprio. Era um tão rapaz ainda muito jovem, de cabelos louros e espadaúdo, inevitável da morte sadio, que nem a prisão, nem a expectativa podiam apagar a côr das faces e a expressão de uma ingenuidade jovem e feliz nos seus olhos de um azul pálido. Beliscava o tempo todo com energia a barbicha alourada e hirsuta, com a qual ainda não se habituara, e olhava fixamente pela janela, estreitando os olhos e pestanejando. Isso sucedia no fim do inverno, quando por entre tempestades de neve e dias foscos e frios, a primavera já próxima enviava, como precursor, um dia claro, quente e ensolarado, ou mesmo uma hora apenas, mas tão primaveril, tão avidamente jovem e brilhante que os pardais na rua não cabiam em si de alegria e o povo parecia embriagado. E agora, pela janela de cima, suja de poeira desde o verão passado, avistava-se um céu estranhamente belo: à primeira vista, parecia ser de um cinza leitoso, enfumado, mas a uma observação mais demorada comemais procava a transluzir nêle o azul, que se tornava cada vez fundo, a partir de um tom claro, num processo sem limites. E o fato de que êle não se revelava de uma só vez, mas escondia-se pudicamente na névoa das nuvens transparentes, tornava-o amorável como uma môça que se ama. E Sierguiêi Golovin fitava o céu, beliscava a barbicha, estreitava ora um ora outro ôlho de cílios compridos e aveludados, e pensava com insistência em alguma coisa. Certa vez chefranziu ingêgou a fazer um movimento rápido com os dedos e olhou ao mas qualquer, nuamente a testa devido a uma alegria
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redor e essa alegria apagou-se qual fagulha pisada por um pé. E quase instantâneamente, através da côr das faces, praticamente sem transição para a palidez, surgiu uma tonalidade de azul ter-
roso, medonha; e o cabelo macio, arrancado com dor das raízes, ficou apertado como num tôrno entre as pontas dos dedos brancacentos. Mas a alegria de viver e da primavera eram mais fortes, e daí a minutos o rosto de antes, jovem e ingênuo, era atraído pelo céu primaveril. Para as bandas do céu olhava também uma jovem pálida, desconhecida, com o apelido de Mússia. Era mais nova que Golovin, mas parecia mais velha devido à sua severidade e à côr negra dos olhos que espelhavam sinceridade e orgulho. Só o pescoço muito fino e delicado, bem como as mãos de môça, igualmente finas, revelavam-lhe a idade e mais ainda algo de impalpável, que é a própria juventude, e que ressoava tão claramente na sua voz, límpida, harmoniosa, impecâvelmente afinada, como um instrumento caro, patenteando em cada simples palavra, em cada exclamação, o seu conteúdo musical. Era muito pálida, não de uma palidez mortal, mas dessa peculiar brancura ardente, como quando dentro de uma pessoa está aceso um fogaréu muito forte e o corpo reluz transparente, qual fina porcelana de Sêvres. Permanecia quase imóvel e só de raro em raro apalpava, com um movimento imperceptível dos dedos uma estreita depressão no dedo médio da mão direita, a marca deixada por um anel qualquer retirado desde pouco. E olhava o céu sem carinho e sem recordações felizes, olhava-o só porque em tôda aquela sala suja, pertencente ao Estado, essa nesga azul-celeste era a coisa mais bonita, limpa e veraz, nada interrogando aos seus olhos. Os juízes tinham pena de Sierguiêi Golovin, mas detestavam a môça. Também imóvel, numa atitude um tanto afetada, juntando as mãos entre os joelhos, estava sentado o vizinho dela, desco nhecido, apelidado Werner. Se fôsse possível fechar um rosto como se faz com uma porta, então o desconhecido cerraria o seu semblante como se tranca uma porta de ferro, colocando nela um cadeado de aço. Observava sem mover-se o soalho de tábuas, sujo, e não se podia compreender se estava calmo ou desmesuradamente agitado, se pensando em alguma coisa ou ouvindo o que depunham os detetives ante o tribunal. Não era alto; possuía feições finas, de traços nobres. Era delicado é
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bonito a ponto de lembrar uma noite de luar algures no sul, à beira-mar, onde há ciprestes projetando sombras negras, e ao mesmo tempo despertava a sensação de uma extraordinária fôrça tranquila, de uma firmeza insuperável e de uma coragem fria e arrojada. A própria polidez, com a qual dava respostas breves e exatas, parecia perigosa em seus lábios, no seu ligeiro cumprimento. E se em todos os demais o capote de presidiário afigurava-se um gracejo absurdo, nêle não se notava em absoluto, tão estranha era a roupa ao homem. E apesar de haverem encontrado em poder dos outros terroristas bombas e máquinas infernais, e com êle apenas um revólver prêto, os juízes consideravam-no por alguma razão o cabeça e dispensavam-lhe certa consideração, embora breve e formal. O seguinte na era Vassíli Kachírin, tomado pelo pavor da morte e pelo desejo igualmente insuportável e compacto desesperado de reprimir êsse pavor e não mostrá-lo aos juízes. Desde a manhã, logo que os levaram ao tribunal, começou a perder o fôlego por causa da palpitação acelerada do coração; gôtas de suor porejavam-lhe continuamente da testa, as mãos estavam do mesmo modo frias e suadas, e colava-se-lhe ao estorvando os seus corpo a camisa fria e ensopada de suor, movimentos. Com um esfôrço extraordinário da vontade, obrifirme e intesava os dedos a não tremerem, a voz a permanecer redor, as nada seu a Não enxergava calmos. olhos ligível, os e neblina, uma passando êle até por vinham como que vozes esforços: desesperados enviava seus os neblina mesma essa para responder com firmeza, responder em voz alta. Depois de responder, porém, êle imediatamente esquecia tanto a pergunta calada e como a resposta dada, e prosseguia de novo na luta os juízes nêle a morte, que terrível. E tão nitidamente surgia idade, como definir difícil sua a tornava-se evitavam olhá-lo, e o Segundo pasdecomposição . entrado em cadáver de já um a saporte, tinha apenas vinte e três anos. Uma vez ou duas, Werner tocou-lhe de leve o joelho com a mão, e a cada vez respondia com uma única palavra:
fila
— Nada. Para êle o mais terrível era quando súbito lhe vinha a vontade insuportável de gritar — sem palavras, com um grito ani-
malesco e desesperado. Então alguém tocava em Werner de leve e êste, sem erguer os olhos, lhe respondia em voz baixa: — Não é nada, Vássia. Acabará logo.
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E envolvendo todos num preocupado olhar maternal, consumia-se em ansiedade a quinta terrorista, Tânia Kovalhtchúk. Nunca teve filhos, era ainda muito jovem e corada, como Sierguiéi Golovin, mas parecia ser a mãe de tôda aquela gente, tão preocupados, tão infinitamente carinhosos eram os seus olhares, O sorriso, os temores. Não prestava a mínima atenção ao tribunal, como se fôsse coisa totalmente estranha, e só ouvia como respondiam os demais: se a voz não tremia, se não tinham mêdo, se era preciso dar-lhes água. De tão triste, não podia dirigir o olhar para Vássia, limitando-se a torcer devagarinho os dedos roliços; via Mússia e Werner com orgulho e respeito e seu rosto assumia uma expressão séria e concentrada, contudo se esforçava sempre por transmitir o seu sorriso a Sierguiêi Golovin. “Meu querido está olhando para o céu. Olha, olha, meu caro — pensava em Golovin. — E Vássia? Como vai ser, meu Deus, meu Deus?... Que farei com êle? Se lhe disser alguma coisa, ficará ainda pior. E se começar a chorar de repente?” E, assim como num lago manso se reflete ao romper da aurora cada nuvem que passa, refletia-se no seu rosto rechonchudo, simpático e bondoso cada sentimento rápido, cada pensamento daqueles quatro. Não meditava sôbre o fato de que ela também estava sendo julgada e também seria enforcada: eralhe de todo indiferente. Foi no seu apartamento que haviam descoberto o depósito de bombas e dinamite; e, por mais estranho que parecesse, foi ela quem recebeu a polícia a tiros e feriu um detetive na cabeça. O julgamento terminou às vinte horas, quando já escurecia. Aos poucos o céu azulado apagava-se diante dos olhos de Mússia e de Sierguiêi Golovin, mas não se tornou rósco, nem sorria tranquilamente, como nas noites de verão, e sim ficou turvo, de um cinzento pardo, e súbito fêz-se frio e invernoso. Golovin suspirou, espreguiçou-se, olhou mais umas duas vêzes pela janela, mas lá já estava a fria escuridão da noite; e continuando a beliscar a barbicha, pôs-se a examinar os juízes e os soldados de fuzis com uma curiosidade infantil, e um sorriso para Tânia Kovalhtchúk. Quando o céu apagou-se, Mússia transferiu calmamente, sem baixar os olhos para o chão, o seu olhar para um canto onde balançava de leve uma teia de aranha sob a pressão imperceptível do aquecimento central; assim permaneceu até a leitura da sentença. ce
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Pronunciado o veredito e, tendo-se despedido dos advogados de defesa vestidos de casaca, e evitando seus olhares desamparadamente perplexos, lamentáveis e culpados, os acusados encontraram-se por uns momentos na porta e trocaram algumas frases curtas. — Não é nada, Vássia. Tudo acabará em breve — disse Werner. Sim, irmão, não há nada comigo — respondeu Kachírin em voz alta e calma, que até parecia alegre. E de fato o seu rosto corou ligeiramente e não mais se assemelhava ao de um cadáver em decomposição. — Que o diabo os carregue! Não há de ver que mandaram para a fôrca mesmo?! — xingou Golovin ingênuamente. — Era o que se devia esperar — respondeu Werner tran-
quilo. — Amanhã a sentença passará em julgado e nos colocarão juntos — comentou a Kovalhtchúk, querendo consolar. — Ficaremos juntos até a execução. Mússia não dava um pio. Depois encaminhou-se resolutamente para a frente.
3.
Não devo ser enforcado
Duas semanas antes de julgar os terroristas, o mesmo tribunal militar do distrito, apenas com outra composição, julgou e condenou Ivan Iânson, um camponês, à pena de morte pot enforcamento. Ésse Ivan Iânson era trabalhador agrícola de uma granja pertencente a abastado proprietário e não se distinguia em nada de outros trabalhadores solteiros do mesmo gênero. Nascera na Estônia, em Vesenberg, e aos poucos, no decurso de alguns anos, passando de uma granja para outra, aproximou-se da capital. Falava russo muito mal, e como o patrão era russo, de sobrenome Lázariev, e não havia estonianos na vizinhança, Iânson permaneceu calado durante quase dois anos. Decididamente, não era inclinado à loqgiiacidade, e calava-se não só diante dos homens, mas também com os animais: calado dava de beber ao preguiçosacavalo, calado atrelava-o, movendo-se devagar mente em seu redor a passos curtos e inseguros, c quando o cavalo, descontente por causa do silêncio, começava a ficar sestroso e a brincar, calado batia nêle com o chicote. Batia no ec
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animal cruelmente, com uma insistência fria e maligna, e se isso acontecia quando se achava no penoso estado de ressaca, chegava à fúria. Então o estalar do chicote e o ruído assustado dos cascos golpeando amiúde o soalho de tábuas do galpão num ritmo de dor faziam-se ouvir na casa. Pelo fato de Tânson bater no cavalo, o patrão batia nêle, mas não podia corrigi-lo, e então largou de mão. Iânson embriagava-se uma ou duas vêzes por mês, e isso acontecia de hábito nos dias em que levava o patrão à grande estação ferroviária onde havia um restaurante. Após deixar o patrão descer, afastava-se da estação numa distância de' meia vierstá,(1), e ali, afundando o trenó e o cavalo na neve ao lado da estrada, aguardava a partida do trem. O trenó ficava inclinado, quase deitado de lado, o cavalo atolava-se até a barriga com pernas escarrapachadas e vez por outra abaixava o focinho para lamber a neve macia e fôfa, enquanto Iânson ficava meio deitado no trenó, numa posição incômoda, e parecia dormitar. As pontas desatadas do gorro de peles gasto pendiam inertes, como as orelhas de um perdigueiro, e o nariz pequeno e vermelho ficava umedecido. Depois, Iânson tornava à estação e embriagava-se rápidamente. No caminho de volta à granja, percorria a galope tôdas as dez vierstás. O cavalo espancado e aterrorizado pulava com as quatro pernas feito louco, o trenó derrapava, inclinava-se, batia nos postes, enquanto Iânson, abaixando as rédeas e quase voando fora do trenó a todo instante ora cantava, ora gritava algo em estoniano, soltando frases bruscas e sem nexo. O mais das vêzes nem cantava, mas ficava calado, cerrando com fôrça os dentes sob o influxo de uma fúria desconhecida, misto de sofrimento e de entusiasmo. Tocava-se para a frente e esbarrava como um cego: não enxergava aquêles que encontrava, não bradava, e não diminuía a corrida louca nem nas curvas, nem nas descidas. Permanecia um mistério o fato de não haver atropelado alguém ou de não ter-se ferido mortalmente numa dessas viagens malucas. Deviam tê-lo mandado embora de há muito, como fizeram com êle nos outros empregos, mas cobrava pouco pelos seus
as
(1)
Medida equivalente a cêrca de 1067 metros.
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serviços, os outros trabalhadores não eram melhores, e assim é que ficou por dois anos. Não havia nenhum acontecimento na vida de Jânson. Certa vez recebeu uma carta em estoniano, porém como era analfabeto e os outros não conheciam a língua estoniana, a carta não foi lida; e com uma indiferença selvagem e cruel, como se não compreendesse que a carta continha notícias da pátria, jogou-a no estrume. Iânson tentou ainda cortejar a cozinheira, tendo aparentemente saudades de uma mulher, mas não obteve êxito e foi ridicularizado e repelido com grosseria. Era de estatura baixa, franzino, de rosto sardento e flácido, e com olhos sonolentos de um verde-garrafa sujo. E Tânson aceitou o seu malôgro com indiferença, não mais incomodando a cozinheira. Mas, conquanto pouco falasse, Iânson sempre estava pronto a ouvir alguma coisa. Escutava o desolado campo de neve, com montículos de estrume congelado, semelhante a uma fila de pequenos túmulos nevados, e a imensidão azulada ao longe, tôda delicadeza, e os postes telegráficos que zumbiam, e as conversas dos homens. O que lhe diziam o campo e os postes telegráficos, só êle sabia, mas as conversas dos homens eram inquictantes, cheias de rumores sôbre assassinatos, pilhagens e incêndios. E certa feita ouviu-se de noite quando no povoado vizinho o pequeno sino da igreja protestante badalava baixinho e fraco, mais parecido com uma campainha, e crepitavam as labaredas de um incêndio: tinha sido gente de passagem que assaltara uma granja rica, matando o dono e a espõsa, e lançando fogo à casa. Também na granja dêles viviam inguietos: soltavam os cachorros não só de noite, como também de dia, e o dono dormia com a espingarda ao lado. Queria dar a Iânson uma espingarda parecida, porém de um cano apenas e velha, mas éste manejou a arma, meneou a cabeça e recusou por qualquer motivo. O patrão não entendeu a razão da recusa e xingou lânson, mas o motivo residia em que êste acreditava mais na eficácia de sua faca finlandesa do que na daquela coisa velha e enferrujada. — Matará a mim próprio — disse Iânson encarando sonolento o patrão com olhos vítreos. E o patrão fêz com a mão um gesto de desespêro: — És um estúpido, Ivan. Que vida a gente leva com êsses trabalhadores!
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Pois êsse mesmo Ivan Iânson, que não confiava na espingarda, praticou um atentado bastante complicado, consistindo de assalto à mão armada, acompanhado de homicídio e de tentativa de estupro de uma mulher, numa noite de inverno, quando o outro trabalhador fôra mandado à estação. Fê-lo de um modo admiravelmente simples: trancou a cozinheira na cozinha, preguiçosamente, com a aparência de um homem que está morto de sono, aproximou-se do patrão por trás e rápido vibrou-lhe duas facadas consecutivas nas costas. O patrão tombou desacordado e a patroa pôs-se a correr de um lado para outro aos berros, enquanto Iânson, arreganhando os dentes e brandindo a faca, começou a remexer nos baús e nas cômodas. Tirou o dinheiro e, depois, como se tivesse visto a patroa pela primeira vez, inesperadamente para si mesmo, avançou para ela com o fito de violentá-la. Mas, como ao fazer isso esquecera a faca, a patroa evidenciou-se mais forte e não só não se deixou violar, como quase o estrangulou. Então o patrão mexeu-se no chão, a cozinheira fêz um barulho com a forquilha do forno ao arrombar a porta da cozinha, e Iânson fugiu para o campo. Foi prêso uma hora depois, quando, acocorado a um canto do galpão e acendendo, um após outro, fósforos que se apagavam, tentava incendiá-lo . Passados alguns dias, o patrão morreu de septicemia, e Jânson, quando chegou a sua vez na fila dos bandidos e assassinos, foi juiígado e condenado à morte. No tribunal era o mesmo de sempre: baixo, franzino, sardento, de olhos sonolentos e vítreos. Parecia não compreender direito o significado do que acontecia e mantinha um aspecto de total indiferença: pestanejava com os cílios brancos, e apatetado, sem demonstrar curiosidade, examinava a sala desconhecida e importante, do mesmo passo que escarafunchava o nariz com um dedo duro, caloso e rígido. Somente aquêles que o tinham visto aos domingos na igreja protestante podiam adivinhar que havia se enfeitado um pouco: enrolou no pescoço um cachecol de um vermelho sujo e empastou o cabelo com água em alguns lugares. E ali onde o cabelo estava molhado, permanecia escuro e liso, mas do outro lado, levantava-se em mechas claras e ralas, como palha num campo magro e batido pelo granizo. Quanuúo foi pronunciada a sentença: execução por enforcamento, Iânson ficou agitado de repente. Ruborizou-se todo e pôs-se a amarrar e desamarrar o cachecol, como se êste o esti-
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vesse sufocando. Depois fêz uns gestos sem sentido e disse ao juiz que não tinha lido a sentença, apontando com o dedo aquêle que leu: — Ela disse que devo ser enforcado. — Ela quem? — perguntou em voz grossa de baixo o presidente que lera a sentença. Todos sorriram, procurando esconder os sorrisos sob os bigodes e dentro dos documentos, e Iânson indicou o presidente com o dedo, e olhando de soslaio, respondeu zangado: — Tu! — E daí? Iânson voltou de novo os olhos para o juiz calado, que sorria discretamente, em quem sentia um amigo e um homem que não tinha nenhuma participação na sentença, e repetiu: — Ela disse que devo ser enforcado. Eu não devo ser enforcado. — Levem embora o réu. Mas Iânson ainda teve tempo de repetir num tom persuasivo e enérgico: — Não devo ser enforcado. Era tão absurdo com o seu pequeno rosto zangado, ao qual em vão tentava dar um ar de importância, e de dedo em riste, que até o soldado da escolta, transgredindo o regulamento, disse-lhe à meia voz, conduzindo-o para fora da sala: — Como és bôbo, rapaz. — Não devo ser enforcado — repetiu Iânson teimoso. — Enforcar-te-ão tão bem, que não terás tempo ds esper-
near.
— Está bem, cala-te! — gritou zangado o outro soldado da escolta. Mas não se conteve e acrescentou:. — Que saqueador! Para que, estúpido, perdeste uma alma humana? Agora vais ser enforcado. — Talvez seja indultado? — arriscou o primeiro soldado que teve pena de Iânson. — Como! Indultar gente dessa espécie... Bem, chega de conversa. Mas Iânson já estava calado. E novamente foi colocado na cela nde já havia passado um mês, e com a qual conseguira acostumar-se, como se habituara a tudo: às surras, à vodka, ao desolado campo coberto de neve e semeado de montículos redondos, como um cemitério. E naquele momento até que ficou
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contente, quando viu a cama, a janela com grades e lhe deram de comer, pois não tinha comido nada desde a manhã. Desagradável era apenas o que acontecera no tribunal, mas não podia
pensar nisso, não conseguia. E não fazia nenhuma idéia da morte por enforcamento. Apesar de Iânson ter sido condenado à morte, havia muita gente como êle, e não era considerado um criminoso importante na prisão. Por êsse motivo, palestravam com êle sem receio e sem respeito, como com outro qualquer que não estivesse na iminência de morrer. Como se não considerassem a sua morte como tal. O carcereiro, ao ficar sabendo da sentença, disse-lhe em tom edificante: — Como foi, irmão? Então te mandaram para a fôrca! — E quando vão me enforcar? — perguntou Iânson incrédulo. O carcereiro ficou pensativo. — Bem, irmão, terás de esperar. Até juntar-se um grupo. Senão, para ti sózinho, e ainda por cima um como tu, nem vale a pena a gente se esforçar. Para isso é necessário entusiasmo. — Bem, então quando? — perguntava Iânson com insistência. Para êle não constituía ofensa o fato de nem valer a pena enforcá-lo sózinho, e não deu crédito a isso, considerando-o um pretexto para adiar a execução e depois cancelá-la completamente. E alegrou-se: o momento confuso e terrível, no qual não se pode pensar, afastava-se para um tempo longínquo, tornava-se lendário e inconcebível, como qualquer morte. — Quando, quando! — zangou-se o carcereiro, um velho sombrio e obtuso. — Não é como enforcar um cachorro: levase para trás do galpão, e pronto. E tu queres isso, estúpido! — Mas eu não quero! — Tânson enrugou subitamente o rosto de um modo alegre. — Foi ela quem disse que devo ser enforcado, mas eu não quero! E, talvez pela primeira vez na vida, pôs-se a tir: um riso rangedor, absurdo, mas tremendamente alegre e contente. Como se fôsse o grasnido de um ganso: ha-ha-ha! O carcereiro olhouo com espanto, depois franziu a testa severamente: essa alegria absurda de um homem que devia ser executado, ultrajava a cadeia e a própria execução, e transformava-as em algo de
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muito estranho. E súbito, por um instante, por um brevíssimo instante, o velho carcereiro, que passara a vida inteira na prisão e admitia que seu regulamento era constituído por leis naturais, teve a impressão de que a cadeia e a vida como um todo eram uma espécie de hospício, e de que êle, carcereiro, era o louco principal. — Ira, que o diabo te carregue! — cuspiu êle. Por que estás arreganhando os dentes? — Isto não é uma taverna! — Mas eu não quero — ha-ha-ha! — ria-se lânson. — Satanás! — exclamou o carcereiro, sentindo necessidade de benzer-se. Êsse homem de rosto pequenino e flácido parecia-se com satanás menos que ninguém, mas no seu riso alto, semelhante à grasnada do ganso, havia alguma coisa que aniquilava a ves nerabilidade e a solidez da cadeia. Se continuasse a rir mais um pouco, ruiriam as paredes carcomidas, cairiam as grades corroídas pela umidade e o próprio carcereiro conduziria os detentos para fora do portão: senhores, tenham a bondade de passear pela cidade, e talvez alguém queira ir ao campo? Satanás! Mas Iânson já cessara o riso e limitava-se a apertar os olhos com astúcia. Iânson passou a noite calmo e até alegre. Repetia sózinho a frase repisada: “não devo ser enforcado”, e ela era tão convincente, sábia e incontestável, que não valia a pena inquietarse por nenhum motivo. Fazia tempo que esquecera o crime e só vez por outra lamentava não ter podido violentar a patroa. Mas breve esqueceu-o também. Tôdas as manhãs Iânson perguntava quando iriam entforcá-lo, e tôdas as manhãs o carcereiro respondia zangado: — "Tens tempo ainda, satanás. Fica aqui! — e apressavase a ir embora, antes que Iânson se pusesse a rir. E devido a essas palavras que se repetiam uniformes, bem como a que cada dia começava, transcorria e terminava como um dia comum qualquer, Iânson convencera-se inabalâvelmente de que não haveria nenhuma execução. Muito rápido veio a esquecer o julgamento e dias inteiros rolava no catre, sonhando confusa e alegremente com os desolados campos de neve e seus montículos, com o restaurante da estação e com algo ainda mais afastado e luminoso. Na prisão davam-lhe comida boa, de modo que engordou bem depressa, nuns poucos dias, e começou a ficar um tanto arrogante. —
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“Agora ela gostaria de mim como estou — pensou certa feita com relação à patroa. — Agora sou gordo, nada pior que o patrão”. E só tinha muita vontade de tomar vodka — tomar e dar uma volta a cavalo bem depressa. Quando os terroristas foram presos, a notícia chegou à prisão, e à costumeira pergunta de Iânson o carcereiro respondeu de maneira inesperada e esquisita: — Dentro de breves dias. Olhava-o calmamente e dizia com arrogância: — Dentro de breves dias. Penso que daqui a uma semana. Tânson empalideceu e, parecendo cair de sono tão turvo era o seu olhar de olhos vítreos, perguntou: — Estás brincando? — Antes nem podias esperar, e agora estou brincando. Nós não temos direito a brincadeiras. Vocês gostam de brincar, mas nós não temos direito a brincadeiras — disse o carcereiro com dignidade e se foi. Já à tardinha daquele dia Iânson tinha emagrecido. A sua pele, esticada e lisa por algum tempo, de repente ficou pregucada e como que murchou em certos lugares. Os olhos foram tomados de sonolência e todos os movimentos se tornaram tão lentos e desanimados, como se cada viradela de cabeça, cada movimento dos dedos, cada passo fôsse uma emprêsa tão complexa e embaraçosa, que antes era necessário refletir por muito tempo. De noite deitou-se no catre, mas não pôde fechar os olhos, e assim, sonolentos, permaneceram abertos até a manhã seguinte. — Olá! — exclamou o carcereiro com prazer, vendo-o no dia seguinte. — Aqui, amigo, não estás na taverna. Sentindo uma satisfação agradável, como um cientista cuja experiência deu certo mais uma vez, examinou atenta e minucio-» sumente o condenado dos pés à cabeça; agora tudo irá como deve. O satanás está envergonhado, restabelecida está a venerabilidade da cadeia e da execução, e condescendente, sinceramente penalizado mesmo, o velho quis saber: — Desejas ver alguém ou não? — Para que ver? — Bem, para te despedires. De tua mãe, por exemplo, ou de um irmão.
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— Não devo ser enforcado — disse Iânson baixinho e olhou o carcereiro de esguelha. — Não quero. O carcereiro olhou e, calado, fêz um gesto com a mão. À noitinha Iânson acalmou-se um pouco. O dia era tão comum, o céu nublado de inverno apresentava-se de um modo tão comum, os passos no corredor e a conversa sôbre negócios de alguém ressoavam de forma tão comum, e tão natural e habitual era o cheiro da sopa de chucrute, que novamente deixou de acreditar na execução. Mas de noite ficou apavorado. Antes, Iânson percebia a noite simplesmente como a escuridão, como um tempo em especial escuro, quando se deve dormir, mas agora sentia-lhe a natureza misteriosa e terrível. Para não acreditar na morte, era preciso ver e ouvir as coisas comuns em seu redor: os passos, as vozes, a luz, a sopa de chucrute, mas agora tudo era fora do comum, e êsse silêncio e essa escuridão em si mesmos já pareciam ser a morte. E quanto mais se prolongava a noite, mais apavorado ficava. Com a ingenuidade de um selvagem ou de uma criança, que consideram tudo possível, Iânson queria gritar ao sol: brilha! E êle pedia, implorava no sentido de o sol brilhar, mas a noite impertubável arrastava as suas horas negras por sôbre a terra, e não havia fôrça alguma que pudesse fazer parar o seu curso. E essa impossibilidade, que pela primeira vez se apresentou com tanta clareza à mente fraca de Iânson, encheu-o de pavor: ainda não tendo coragem de senti-lo claramente, já reconhecera a inevitabilidade da morte próxima e com o pé na cova subiu o primeiro degrau do cadafalso. O dia sossegou-o de novo e a noite apavorou-o, e assim continuou até aquela noite em que reconheceu e sentiu que a morte era inevitável e chegaria daí a três dias, ao raiar da aurora, quando o sol se levantasse. Jamais refletira sôbre o que fôsse a morte, que não tinha imagem para êle, mas agora sentia claramente, via, percebia que ela havia penetrado na cela e procurava-o, apalpando com as mãos. E, para se salvar, pôs-se a correr pela cela. Mas a cela era tão pequena, que parecia não ter ângulos retos, mas agudos, e todos a empurrarem-no para o centro. E não havia atrás de que se esconder. E a porta estava fechada. E havia claridade. Várias vêzes deu em silêncio com o corpo nas paredes, de uma feita bateu na porta: em resposta veio um som surdo e cavo. Tropeçou em alguma coisa e caiu de cara
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no chão, e então sentiu que ela o estava agarrando. E deitado de bruços, colado ao chão, ocultando o rosto no seu asfalto escuro e sujo, Iânson começou a berrar de terror. Estava deitado e gritava como um possesso, até que veio alguém. E quando o ergueram e sentaram no catre e derramaram-lhe água fria na cabeça, Iânson ainda não se decidia a abrir os olhos firmemente cerrados. Ao entreabrir um, avistava o canto claro e vazio, ou a bota de alguém no vácuo, e começava a gritar outra vez. Mas a água fria principiou a fazer efeito. Ajudou também o fato de o carcereiro de plantão, sempre o mesmo velho, terlhe batido várias vêzes na cabeça para o curar. E essa sensação de vida expulsou efetivamente a morte, Iânson abriu os olhos e, com o cérebro obnublado, dormiu um sono de pedra pelo resto da noite. Estava deitado de costas, bôca aberta, e roncava alta e sonoramente; e pelas pálpebras mal fechadas entremostrava-se descolorado o ôlho chato e sem pupila, dando a
impressão de morto. E daí por diante, tudo no mundo, o dia, a noite, os pasas vozes e a sopa de chucrute, tornaram-se-lhe um terror sos, palpável precipitando-o num estado de assombro selvagem, a que nada se comparava. Seu pensamento fraco não podia ligar êstes dois conceitos, que se contradiziam tão monstruosamente: o do dia claro e comum, do cheiro e do gôsto do repôlho, e o de que, daí a dois dias, a um dia, êle tinha de morrer. Não pensava em nada, nem sequer contava as horas, mas simplesmente se achava num terror mudo diante dessa contradição, que lhe partiu o cérebro em duas partes; e tornou-se de uma palidez por igual, nem mais branco, nem mais vermelho, e aparentava calma. Só não comia e deixou de dormir por completo: ora passava a noite inteira sentado no tamborete, encolhendo as pernas assustado, ora passeava pela cela, avançando pé ante pé com cuidado e olhando sonolento ao redor. Sua bôca estava sempre entreaberta, como por um assombro enorme e incessante; e antes de apanhar nas mãos um objeto qualquer, o mais comum, examinava-o longamente sem compreender e pegava-o desconfiado. E quando ficou assim, tanto os carcereiros como o soldado, que o observava pelo postigo, deixaram de dar-lhe atenção. Era um estado habitual dos condenados, semelhante, na opinião do carcereiro, que nunca o experimentara, ao do gado
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de corte, quando na hora da matança o atordoam com uma chuçada na cabeça. — Agora êle ensurdeceu, agora não sentirá nada até a hora da morte — disse o carcereiro, examinando-o com olhos experimentados. — Ivan, estás ouvindo? Eh, Ivan? — Não devo ser enforcado — retorquiu Iânson confusamente, e de novo o seu maxilar inferior ficou pendente. — Se não tivesses matado, não serias enforcado — sentenciou em tom edificante o chefe dos carcereiros, homem ainda jovem, mas muito importante com as suas condecorações. — Mas mataste, e não queres ser enforcado. — Quis matar um homem gratuitamente. E” tolo, tolo, mas astuto. — Não quero — disse Iânson. — Bem, meu caro, podes deixar de querer, isso é contigo — disse o chefe com indiferença. — Em vez de dizer bobagens, seria melhor dispor dos teus haveres: deves ter alguma coisa. — Éle não tem nada. Só a camisa e a calça. E mais ainda o gorro de peles. Que janota! Assim decorreu o tempo até a quinta-feira. E na quintafeira, à meia-noite, muita gente entrou na cela de Iânson, e “um senhor desconhecido, de galões, disse: — Bem, apronte-se. Devemos partir. Iânson, movendo-se do mesmo modo vagaroso e desanimado, vestiu tudo o que tinha e enrolou no pescoço o cachecol vermelho-sujo. Observando como êle se vestia, o senhor de galões, que fumava um cigarro, comentou com alguém: — Como o dia está quente, hoje. Bem de primavera. Os olhinhos de Iânson colavam-se, estava quase adormecido e movia-se tão devagar e com tanta dificuldade, que o carcereiro gritou com êle: — Vamos, vamos, mais depressa. Adormeceu! Iânson estacou de repente. — Eu não quero — disse desanimado. Pegaram-no sob os braços e levaram-no, e êle foi andando, submisso, dando de ombros. No pátio logo foi envolvido pelo úmido ar primaveril e o lugar debaixo do narizinho ficou molhado; apesar de ser noite, o degêlo aumentou e de alguma parte caíam gôtas que pingavam sonoras e fregiientes sôbre a pedra. 3 aguardando que os guardas subissem na carruagem preta sem
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lanternas, batendo com os sabres e curvando-se, Iânson esgaravatava preguiçosamente com o dedo o nariz úmido e endireitava o cachecol mal amarrado. 4.
Nós, de Oriol
Na mesma sessão do tribunal militar do distrito, que julgou lânson, foi condenado pena de morte por enforcamento o camponês da província de Oriol, da localidade de Teliétz, Mikháil Golubiétz, atendendo pelos apelidos de Míchka Tziganók (') e Tatárin (2). O seu último crime, completamente esclarecido, foi o assassínio de três pessoas, além de um roubo à mão armada; mais para trás, o seu passado obscuro perdia-se numa profundeza misteriosa. Houve alusões confusas à sua participação numa série de outros roubos e assassinatos, bem como se sentia sangue e orgias envoltos no denso mistério do seu passado. Usando da máxima sinceridade e franqueza, chamava a si mesmo de bandido e referia-se com ironia âquêles que davam a si próprios o nome pomposo de “expropriadores”, como cera de moda. A respeito do último crime, que não adiantava negar, contava os pormenores de bom grado, mas em resposta às perguntas sôbre o passado, limitava-se a mostrar os dentes e assobiar: — Procurem o vento no campo! Quando insistiam muito nas indagações, Tziganók assumia um aspecto sério e digno. — "Todos nós, de Oriol, somos desaparafusados — dizia serena e sensatamente. — Os maiores ladrões estão em Oriol e Krómi. A gente de Karátchev e de Lívni é pior ainda. Mas o distrito de Teliétz é o pai de todos os ladrões. Nem se discute! Deram-lhe a alcunha de Tziganók devido à sua aparência o aos modos de ladrão. Tinha um aspecto estranho por causa dos cabelos negros, da magreza e das manchas amarelas queimadas pelo sol nos pômulos salientes de tártaro; revirava o branco do ôlho de um modo cavalar e sempre estava apressado por alguma razão. Tinha o olhar rápido, mas tão direto e cheio de curiosidade, que dava mêdo, e o objeto que olhava râpida-
à
(1) (2)
O ciganinho. O Tártaro.
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mente parecia perder algo, entregava-lhe uma parte de si e tornava-se outro. Era tão desagradável e difícil pegar um cigarro que êle havia olhado, como se já tivesse estado em bôca alheia. Dominava-o uma espécie de desassossêgo permanente, que ora o torcia como uma trança, ora o espalhava como um feixe largo de centelhas serpeantes. E bebia tanta água como um cavalo, aos baldes quase cheios. Durante o julgamento, respondia a tôdas as perguntas levantando-se ràpidamente e de um pulo, com brevidade e firmeza, e até parecia sentir prazer nisso: — Certo! As vêzes frisava: — Cer-r-to! E de maneira inteiramente inesperada, quando estavam tratando de outro assunto, ergueu-se e pediu ao presidente: — Dá licença de assobiar? — Para que isso? — admirou-se o juiz. — Como êles estão depondo que eu fazia sinal aos companheiros, então foi assim. Muito interessante. Um tanto perplexo, o presidente concordou. Tziganók introduziu depressa quatro dedos na bôca, dois de cada mão, arregalou ferozmente os olhos, e o ar parado da sala do tribunal foi cortado por um assobio verdadeiro, selvagem, de bandidos, que perturba os cavalos e os obriga a empinarem nas patas traseiras, fazendo o rosto humano empalidecer involuntâriamente. A tristeza mortal daqueles que matam, bem como a alegria selvagem do assassino, e uma advertência terrível, o apêlo e as, trevas de uma chuvosa noite de outono, e a solidão — tudo isso se continha nesse uivo penetrante, que não era nem humano, nem bestial. O presidente gritou alguma coisa, depois fêz um sinal com a mão a Tziganók, e êste se calou obediente. E qual artista que executou vitoriosamente uma ária difícil, que todavia sempre obtém êxito, sentou-se, enxugou os dedos molhados no capote e, satisfeito consigo mesmo, olhou os circunstantes. — Que bandido! — disse um dos juízes, esfregando o
ouvido.
:
Outro, porém, com uma larga barba russa e olhos de tártaro, como os de Tziganók, fitava pensativo algum lugar por cima do acusado, sorriu e replicou:
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E? deveras interessante. E de espírito tranquilo, sem piedade e sem o mínimo remorso, os juízes proferiram a sentença de morte contra Tziganók. — Certo! — disse Tziganók, quando a sentença foi lida. No campo aberto, uma trave. Certo! E dirigindo-se ao soldado de escolta, soltou à valentona: — Vamos embora, moleirão. Segura melhor o fuzil, senão to arrancarei! O soldado olhou-o severamente e com receio, trocando um olhar com o companheiro, e apalpou o ferrôlho do fuzil. O outro fêz a mesma coisa. E durante o trajeto inteiro até a cadeia, os soldados não pareciam andar, e sim voar, isso porque, absortos no criminoso, não sentiam o chão debaixo dos pés, nem o tempo, nem a si próprios. Até a execução Míchka Tziganók, assim como Iânson, teve de passar dezessete dias na prisão. E todos os dezessete dias voaram-lhe tão rápidamente como um só, como uma única idéia inextinguível de fuga, de liberdade e de vida. O desassossêge que se havia apoderado de Tziganók e agora era apertado pelos muros, pelas grades e a janela que não se abria e por onde nada se via, voltara tôda a sua fúria para dentro e queimava a mente de Tziganók como carvão espalhado em cima de tábuas. Como num estado de intoxicação produzido pela bebida, enxameavam, chocavam-se e confundiam-se entre si imagens vivas, mas inacabadas, que passavam em irresistível turbilhão cegante e se dirigiam para um único fim: a fuga, a liberdade, a vida. Por vêzes, inflando as narinas, como um cavalo, Tziganók cheirava o ar durante horas seguidas. Admirava-se de estar cheirando a cânhamo e a fumaça de incêndio, a um chamusco indefinido e acre. Ou então rodava como um pião na cela, apalpando rapidamente as paredes, batendo com o dedo, tomando n medida, perfurando o teto com o olhar e serrando as grades. Com a sua turbulência, esgotara a paciência do soldado que o observava pelo postigo e, desesperado, tinha ameaçado por várias vêzes atirar nêle. Tziganók retrucava de modo grosseiro e escarnecedor, e o assunto só terminou em paz porque a altercação breve se transformou num simples e inofensivo xingamento entre camponeses, a propósito do qual afigurava-se absurdo e impossível atirar. Tziganók passava as noites ferrado num sono profundo, quase sem se mexer, numa imobilidade inalterável, mas viva,
—
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como de mola que não funciona temporâriamente. Ao pular da cama, porém, logo se punha a dar voltas, cismar e apalpar. Suas mãos estavam constantemente sêcas e quentes, mas o coração às vêzes esfriava de repente, como se lhe tivessem colocado no peito um pedaço de gêlo que não se derretia e que difundia pelo corpo todo um tremor miúdo e frio. E se antes já era moreno, nesses instantes Tziganók ficava ainda mais escuro, tornando-se da côr azulada do ferro fundido. E criou um hábito estranho: como se tivesse comido em demasia alguma coisa excessiva e insuportâvelmente doce, lambia sempre os lábios, estalando-os, e cuspia por entre dentes, com um siíbilo, no chão, a saliva que voltava a encher-lhe a bôca. Não chegava a terminar as palavras: tão râpidamente ocorriam os pensamentos, que a língua não conseguia acompanhá-los. Certa feita, durante o dia, o carcereiro-chefe entrou na cela em companhia do soldado da escolta. Olhou de viés sua coberto de cuspo e disse sombriamente: chão o para — Veja só como sujou! Tziganók retorquiu rápido: — Tu, cara gorda, emporcalhaste a terra inteira, e eu não te digo nada. Para que vieste? Do mesmo modo sombrio o carcereiro ofereceu-se para lhe servir de carrasco. Tziganók arreganhou os dentes e pôs-se a rir às gargalhadas. — Será que não acham ninguém? Essa é boa! Vai lá enforcar, ha-ha! Existe o pescoço e existe a corda, mas não há quem enforque. Essa é boa, por Deus! — Então ficarás vivo. — Mas claro: não é morto que vão enforcar. Disseste uma estupidez! é indiferente: assim ou assado. — Então como é? Para enforcam aqui? Com certeza estrangulam em — E como silêncio! — Não, com música — resmungou o carcereiro. — És um estúpido. Claro que devia ser com música. Assim! — e cantarolou uma canção patusca. — Perdeste a razão inteiramente, meu caro — disse O carcereiro. — Vamos, então como é? Responde direito! Tziganók mostrou os dentes: — Como és rápido! Volta mais uma vezinha só, e te direi.
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No caos das imagens vivas e inacabadas que oprimiam Tziganók com a sua impetuosidade, irrompeu uma nova: como é bom ser um carrasco vestido de camisa vermelha. Imaginou com nitidez uma praça apinhada de gente, um cadafalso alto e êle, Tziganók, passeia nêle de camisa vermelha e machado na mão. O sol a iluminar as cabeças e a reluzir alegremente, no machado e tudo está tão contente e magnífico, que até aquêle cuja cabeça logo será cortada, também sorri. E atrás do povo avistam-se carroças e focinhos de cavalos — são os mujiques vindos da aldeia; e mais adiante se vê o campo. — Ts-ah! — Tziganók estalava os lábios, lambia-os ecuspia a saliva que lhe enchia as bochechas. E súbito pareceu-lhe que enfiavam nêle um gorro de peles até a bôca: ficou escuro e abafado, e o coração tornava-se um pedaço de gêlo que não derretia, irradiando um tremor miúdo e frio. Veio o carcereiro por mais umas duas vêzes e, arreganhando os dentes, dizia Tziganók: — Como és ágil. Vem mais uma vezinha só. E afinal, ao passar pela pequena janela de ventilação, o carcereiro gritou: — Perdeste a tua sorte, corvo! Acharam outro! resmungou Tziganók. E parou de sonhar com o ofício de carrasco. Por fim, à medida que se aproximava a execução, a impetuosidade das imagens tornava-se insuportável. Tziganók já queria deter-se, abrir bem as pernas e estacar, mas a correnteza rodopiante levava-o de roldão e não havia onde se agarrar: tudo a seu redor estava flutuando. E o sono passou a ficar inquieto: apareceram sonhos novos, em relêvo, pesados como postes de madeira pintados, ainda mais impetuosos que os pensamentos. Já não era mais uma torrente, e sim uma queda infinita de uma montanha sem fim, um vôo rodopiante pelo mundo todo, de fato colorido. Em liberdade, Tziganók tinha apenas um bigode bastante ajanotado; na cadeia cresceu-lhe uma barba preta, curta e espinhenta, e isso lhe conferia um aspecto terrível de louco. De quando em quando Tziganók realmente perdia a memória e rodava a êsmo na cela, mas ainda assim apalpava as paredes ásperas de estuque. E bebia água como um cavalo. Certa vez, ao anoitecer, quando acenderam a luz, Tziganók ficou de quatro no meio da cela e pôs-se a imitar um uivo
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trêmulo de lôbo. Estava particularmente sério ao fazê-lo, e uivava como se executasse um trabalho importante e indispensável. Enchia o peito de ar e soltava-o devagar, num uivo prolongado e tremente; e atento, apertando os olhos, punha-se a escutar como saía. E o próprio tremor na voz parecia algo intencional; e não gritava à toa, mas expelia cuidadosamente cada nota dêsse ulular animalesco, impregnado de um terror e de uma tristeza indizíveis. Depois interrompeu de vez o uivo e por alguns momentos permaneceu calado, ainda de quatro. Súbito pôs-se a murmurar baixinho, inclinando-se para o chão: — Meus caros, queridos... Meus caros, meus queridos, tenham pena... Caros!... Queridos!... E também parecia escutar, para ver como saía. Dizia uma palavra e ouvia. Depois levantou-se de um pulo e por uma hora a fio, sem tomar fôlego, xingou com palavras de baixo calão. — Ub-uh! Seus patifes, miseráveis, vão para aquêle lugar!... Cães... — berrava êle, revirando os olhos injetados de sangue. — Se têm de enforcar, enforquem logo, senão... U-uh! Seus patifes, miseráveis!... E o soldado, branco que nem giz, chorando de tristeza € de pavor, batia com o cano do [fuzil na porta e gritava impotente: — Vou disparar a arma! Juro por Deus que vou disparar! Estás ouvindo?! Mas não tinha coragem de atirar: nunca atiravam nos condenados à morte, a não ser que houvesse um verdadeiro motim. E Tziganók rangia os dentes, xingava e cuspia. Seu cérebro, postado na fronteira monstruosamente abrupta entre a vida e a morte, fazia-se em pedaços, como um torrão de argila sêca exposta à erosão. Quando de noite apareceram na cela para levarem Tziganók ao local da execução, êle ficou agitado e como que reviveu. O gôsto que sentia na bôca se tornou ainda mais doce, e a saliva acumulava-se incontrolável, mas as faces coraram um pouco e nos olhos faiscou a antiga astúcia um tanto selvagem. Vestindo-se, perguntou o funcionário: — Quem vai enforcar? O novo? Decerto ainda não tem prática.
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— Não é preciso incomodar-se com isso — respondeu sê-
camente o funcionário. — Como não me incomodar, se o enforcado vou ser eu, e não o senhor? Não economize o sabão do govêrmo para o laço da corda, por favor. — Está bem, está bem, peço-lhe que se cale. — Foi êle quem comeu todo o sabão do senhor — e Tziganók apontou para o inspetor. — Veja só como está lustrosa a carantonha dêle. — Cala-te! — Não economize, por favor! Tziganók deu uma gargalhada, mas o gôsto na bôca tornava-se cada vez mais doce, e de repente as pernas foram tomadas de um torpor meio esquisito. Contudo, ao sair para O pátio, ainda pôde gritar: — A caleça do conde de Bengala! 5.
Um beijo, e cala-te.
A sentença referente aos cinco terroristas foi prolatada na forma final e confirmada no mesmo dia. Não disseram aos condenados quando seria a execução, mas êles sabiam, de acôrdo com o que se costumava fazer, que seriam enforcados naquela demesma noite ou, o mais tardar, na seguinte. E quando lhes ram a oportunidade de se avistarem com os parentes no dia seguinte, isto é, na quinta-feira, êles compreenderam que a execução seria na sexta-feira, ao romper da aurora. Tânia Kovalhtchúk não tinha parentes chegados, e os que possuía se encontravam em alguma lonjura da Ucrânia, e dificilmente poderiam saber do julgamento e da execução iminente. Não se supunha que Mússia e Werner, como desconhecidos, tivessem parentes, e só dois, Sierguiêi Golovin e Vassíli Kachítin esperavam um encontro com os pais. E ambos pensavam com pavor e tristeza nesse encontro, mas não tiveram coragem de negar aos velhos essa última palestra, êsse último beijo. Sierguiêi Golovin torturava-se particularmente à idéia do encontro iminente. Gostava muito do pai e da mãe, tinha-os visto havia bem pouco, e agora estava apavorado. Como haveria de ser? A própria execução, em tôda a sua monstruosidade, na sua loucura que feria a mente, apresentava-se mais facilmente à imaginação e parecia menos terrível que êsses poucos minu-
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tos, curtos e incompreensíveis, como se colocados fora do tempo,
fora da própria vida. Como olhar, que pensar, que dizer —
sua mente negava-se a compreender. A coisa mais simples e comum: pegar a mão, beijá-la e dizer: “Bom dia, papai” — afigurava-se inconcebivelmente terrível na sua falsidade monstruosa, desumana e louca. Após a sentença, os condenados não foram colocados juntos, como supusera Tânia Kovalhtchúk, e sim deixados cada um cela isolada. E a manhã tôda, até as onze, quando vieem ram os pais, Sierguiêi Golovin andou furiosamente pela cela, a beliscar a barbicha, enrugando a face de um modo lamentável e resmungando alguma coisa. As vêzes parava de andar, enchia os pulmões de ar e ofegava, como um homem que passou tempo demais debaixo d'água. Mas era tão saudável, tão arraigada estava nêle a vida jovem, que até nesses instantes de sofrimento crudelíssimo o sangue circulava com fôrça sob a pele e tingia-lhe as faces, e os olhos brilhavam ingênuos com uma côr azul clara. Entretanto, tudo se passou muito melhor do que esperava Sierguiêi. O primeiro a entrar na sala onde se deu o encontro foi o pai de Sierguiêi, o coronel da reserva Nikolái Sierguiêievitch Golovin. Todo êle era de uma brancura por igual, o rosto, a barba, o cabelo e as mãos, como se uma estátua de neve estivesse vestida com roupa de homem; com a mesma túnica-jaquetão de sempre, velha mas bem escovada, cheirando a benzina, de galões novos em fôlha e transversais. Entrou com firmeza, a passos decididos e precisos, como se passasse revista. Estendeu a mão branca e sêca, dizendo em voz alta: — Bom dia, Sierguiêi! Atrás dêle vinha a mãe com os seus passos miúdos e sorrindo de maneira estranha. Mas também apertou a mão e repetiu alto: — Bom dia, Sieriójenhka! (1) Beijou-o na bôca e sentou-se calada. Não se atirou para a frente, não se pôs a chorar, não gritou, nem fêz nada de horrível, como esperava Sierguiêi, mas beijou-o e sentou-se calada. E até endireitou com mãos trêmulas o vestido de sêda preta.
sua
(1)
Diminutivo de Sierguiêi.
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Sierguiêi ignorava que, trancado no seu gabinete, o coronel passara tôda a noite da véspera concentrando o máximo de seus esforços no pensamento de como desempenhar o seu delicado papel. “Não devemos agravar e sim aliviar os últimos instantes de nosso filho” — resolveu com firmeza o coronel, pesando escrupulosamente cada possível frase, cada gesto da palestra do dia seguinte. Mas por vêzes confundia-se, esquecia o que conseguira preparar, e chorava amargamente a um canto do divã revestido de oleado. De manhã, explicou à espôsa como devia portar-se no encontro. — O principal é que dês um beijo e te cales! — industriou êle. — Poderás falar depois, passado algum tempo; mas quando beijares, cala-te. Não fales imediatamente após o beijo, entendes? — senão poderás dizer o que não deves. — Estou entendendo, Nikolái Sierguiêievitch — respondeu a mãe em prantos. — E não chores. Deus te livre de chorar! Vais matá-lo, se chorares, minha velha! — E por que tu estás chorando? — A teu lado é claro que choro! Não deves chorar, estás ouvindo? — Está bem, Nikolái Sierguiêievitch. Na charrete quis repetir mais uma vez as instruções, mas esqueceu. E assim viajavam calados, curvados, ambos grisalhos e velhos, e meditavam enquanto a cidade estava imersa numa alegre algazarra: era a semana do carnaval e as ruas estavam cheias de gente e de barulho. Sentaram-se. O coronel permaneceu na postura estudada, colocando a mão direita sob a lapela do jaquetão. Sierguiêi sentou-se por um instante, encontrou de perto o rosto enrugado da mãe e levantou-se de um salto. -— Senta-te, Sieriójenhka — pediu a mãe. — Senta, Sierguiêi — confirmou o pai. Calaram-se. A mãe sorria de modo estranho. Procuramos muito interceder por ti, Sieriójenhka. Não adiantava fazer isso, mamãezinha... O coronel disse com firmeza: —— Devíamos fazer isso, Sierguiêi, para não pensares que os pais te abandonaram. Calaram-se de novo. Tinha receio de pronunciar uma palnvra, como se cada vocábulo da língua tivesse perdido o seu -——
-——
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sentido e significasse apenas uma coisa: a morte. Sierguiêi observou o jaquetão do pai, limpo e cheirando a benzina, e pensou: “Agora não tem mais ordenança, quer dizer que o limpou sozinho. Como não notara antes quando êle limpava o jaquetão? Devia ser porque era pela manhã. De repente perguntou: — E como vai a mana? Está boa? — Nínotchka (1) não sabe de nada — apressou-se a responder a mãe. Mas o coronel deteve-a com severidade: — Para que mentir? A menina leu nos jornais. Que Sierguiêi saiba o que todos... os seus parentes próximos... pensaram... durante êsse tempo Não pôde continuar e parou. Súbito o semblante da mãe como que amoleceu de vez, inchou, deformou-se, umedecido e assumindo uma expressão desvairada. Os olhos desbotados arregalaram-se doidamente, a respiração fêz-se cada vez mais rápida, curta e alta. — Sie... Sier... Sie.. Sie... — repetia ela, sem mover os lábios. — Sie... — Mamãezinha! O coronel deu um passo à frente e, tremendo todo com cada dobra do jaquetão, com cada ruga do rosto, sem compreender como êle mesmo era horrível na sua lividez mortal, na sua torturante firmeza desesperada, pôs-se a falar à espõsa: — Cala-te! Não o tortures! Não tortures! E? êle quem vai morrer! Não tortures! Assustada, ela já se havia calado, mas êle ainda sacudia os punhos cerrados diante do peito e repetia: — Não tortures! Depois afastou-se, colocou a mão trêmula debaixo da lapela do jaquetão e em voz alta, com uma expressão de calma postiça, indagou de lábios brancos: — Quando? — Amanhã de manhã — respondeu Sierguiêi com os lábios igualmente brancos. A mãe, de olhos postos no chão, mordia os lábios e parecia não ouvir nada. E continuando a mordê-los, como que largava palavras simples e estranhas:
e...
(1).
Diminutivo de Nina.
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Nínotchka mandou-te um beijo, Sieriójenhka. Beija-a por mim — disse Sierguiêi. Está bem. Os Khvostóvi também te mandam lembranças Quem são os Khvostóvi? Ah, sim! coronel O interrompeu o diálogo: é preciso irmos indo. Levanta-te, mulher, é preBem, —
— — — — ciso.
Os dois ergueram a mulher prostrada pela fraqueza. — Despede-te! — ordenou o coronel. — Abençoa-o. Ela fazia tudo quanto lhe diziam. Porém, ao abençoar e beijar o filho com um beijo rápido, meneava a cabeça e repetia sem nexo: — Não, isto não é assim. Não, não é assim. Não e não. Que será de mim? Como é que vou dizer? Não, não é assim. — Adeus, Sierguiêil! — disse o pai. Éles apertaram as mãos e beijaram-se com fôrça mas ràpidamente. =“ “Tu... —— começou Sierguiei. — O quê? perguntou o pai abruptamente. — Não, não é assim. Não e não. Como é que vou dizer? — tornou a repetir a mãe, meneando a cabeça. Conseguira sentar-se novamente e fremia tôda. — Tu... — principiou Sierguiêi outra vez. De repente o seu rosto enrugou-se de modo infantil que dava pena, e os olhos marejaram-se de lágrimas. Através de suas pupilas cintilantes viu de perto o rosto lívido do pai com olhos semelhantes. — Tu, papai, és um homem nobre. O — O que estás dizendo?! Que é isso?! — assustou-se coronel. E sibitamente, como se alguma coisa se tivesse rompido dentro dêle, pousou a cabeça no ombro do filho. Sempre fôra mais alto que Sierguiêi, mas agora estava baixinho, e a cabeça de cabelos macios e secos encostava-se como uma bola branca bei no ombro do filho. E ambos, sem proferir uma palavra, do sedosos brancos e cabelos os avidez: Sierguiêi javam com pai, e êste, o capote do filho prêso. — E eu? — disse alto de repente uma voz. Olharam para trás: a mãe estava de pé e, erguendo a ca beça, olhava com raiva, quase com ódio. — O que é isso, mulher? — gritou o coronel.
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— E eu? perguntava ela, sacudindo a cabeça com um ar de loucura. — Estão se beijando, e eu? Os homens podem, não é? E eu? E eu? — Mamãezinha! — e Sierguiêi correu para o lado dela. Aí se passou uma cena cuja descrição é impossível e desnecessária. As últimas palavras do coronel foram: — Abençoo-te para a morte, Sieriója. Morre com coragem, como um oficial. E foram-se. Foram embora de algum modo. Estavam ali, de pé, falavam, e de repente se foram. Ali estêve a mãe sentada, aqui o pai de pé, e subitamente foram embora. Retornando à cela, Sierguiêi deitou-se no catre com o rosto voltado para a parede a fim de ocultá-lo dos soldados, e chorou por muito tempo. Depois cansou-se das lágrimas e caiu num sono profundo. Para visitar Vassíli Kachírin, só veio a mãe. O pai, um comerciante rico, não quis vir. Vassíli encontrou a velha andando pela sala e tremendo de frio, apesar do tempo estar quente e até fazer calor. A palestra foi breve e penosa. — Não valia a pena a senhora vir, mamãe. Só vai atormentar a mim e a si mesma. — Para que isso, Vássia?! (1) Por que fizeste isso?! Meu Deus do céu! A velha pôs-se a chorar, enxugando os olhos com a ponta do xale prêto de lã. E devido ao hábito que tinham, êle e os irmãos, de gritar com a mãe, que não compreendia nada, parou e, tremendo de frio, começou a falar zangado: — Eis no que dá! Eu já sabia! A senhora não entende nada mamãe! Nada! — Está bem, está bem. Que tens? Estás com frio? — Estou com frio... — atalhou Vassíli bruscamente e pôs-se a andar de novo, olhando a mãe de través, zangado. — Talvez apanhasse um resfriado? — Oh, mamãe, que importa agora um resfriado, quando... E fêz um gesto desesperançado com a mão. A velha tentou dizer: “O nosso velho mandou fazer panquecas na segunda-feiva”, mas assustou-se e proferiu em voz alta: (1)
Diminutivo de Vassíli.
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velho
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— Eu disse a êle: filho é filho; vai, perdoa-o. Mas o bode
teimou...
— Que vá para o diabo que o carregue! Que pai me saiu
êle! A vida tôda foi um patife, e continua sendo. — Vássienka (1), estás falando de teu pai!
— A velha de censura. empertigou-se tôda, com ar — De meu pai. — Do próprio pai! — Que bom pai êle me saiu... Era esquisito e absurdo. A morte estava à espreita e ali surgia algo de mesquinho, vazio, inútil, e as palavras estalavam como a casca ôca de nozes esmagada com o pé. E quase chorando de tristeza, devido à eterna incompreensão que, a vida tôda, se levantou como um muro entre êle e os familiares, e agora, na derradeira hora antes da morte, esbugalhava os seus pequeninos olhos tolos com ferocidade, Vassíli pôs-se a gritar: — Mas a senhora deve compreender que vão me enforcar! Enforcar! Compreende ou não? Enforcar! — Se não agredisses os outros, não te... — gritava a velha. — Meus Deus! Ainda mais essa por cima! Isso não acontece nem com os animais. Sou seu filho ou não? Principiou a chorar e sentou-se a um canto. A velha também se pôs a chorar no seu canto. Impotentes para se fundirem por um instante siquer no sentimento do amor e opô-lo ao pavor da morte que se aproximava, choravam as lágrimas frias da solidão, que não aquecem o coração. Disse a mãe: censurando. '— Perguntas se sou tua mãe ou não; estás me Eu que nesses dias fiquei de cabelos brancos e me transformei numa velha. E tu falando em tom de censura. — Está bem, está bem, mamãe. Desculpe. Já é tempo de a senhora ir andando. Beije meus irmãos por mim. — Será que não sou mãe? Será que não tenho pena? Afinal se foi. Chorava amargamente e, ensugando os olhos na ponta do xale, não via o caminho. E quanto mais se afastava da cadeia, tanto mais livres corriam as lágrimas. Voltou em direção à cadeia, depois estranhamente se extraviou na cidade onde nascera, crescera e havia ficado velha. Vagou ao acaso, chegando a um jardim deserto com algumas árvores velhas e (1)
Diminutivo de Vassíli.
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partidas. Sentou-se num banco molhado de neve derretida. E súbito compreendeu: no dia seguinte êle seria enforcado. A velha ergueu-se de um pulo, quis correr, mas de repente ficou tonta e caiu. O caminho coberto de gêlo estava molhado e escorregadio, e a velha não podia levantar-se de modo algum: virava-se, procurava erguer-se com o apoio dos cotovelos e dos joelhos, mas novamente caía para um lado. O xale prêto deslizou da cabeça, pondo a descoberto na nuca uma falha entre os cabelos de um grisalho sujo, e tinha a impressão, por um motivo qualquer, de que se divertia a valer numa festa de bodas: casavam o filho e ela bebera vinho e tinha ficado bastante embriagada. — Não posso. Juro por Deus que não posso! — recusavase ela, sacudindo a cabeça, e resvalava pela crosta de neve transformada em gêlo molhado, e continuavam a despejar-lhe vinho e mais vinho. E o coração começava já a doer do riso produzido pela embriaguez, do festim, da dança desvairada, e continuavam a despejar-lhe vinho. Continuavam a despejar. 6.
As horas voam
Na fortaleza, onde estavam encarcerados os terroristas condenados, achava-se um campanário com um velho relógio. A cada hora, a cada meia hora, a cada quarto de hora o relógio tocava algo de langoroso e melancólico que se dissolvia vagarosamente nas alturas, como o grito longínquo e queixoso das aves de arribação. Durante o dia essa música estranha e triste perdia-se no barulho da cidade, da rua larga e cheia de gente que passava ao lado da fortaleza. Matracolejavam os bondes, batiam no calçamento os cascos dos cavalos, de longe vinham buzinando automóveis que dançavam sôbre as molas. Das cidades vizinhas tinham chegado para o carnaval uns cocheiros camponeses, carnavalescos como só, e os guizos no pescoço dos seus cavalos baixos enchiam o ar com o chocalhar. E percebia-se uma conversa: meio de bêbedo, alegre, própria de carnaval; e com a multidão de vozes harmonizavam o degêlo primaveril e recente, as poças turvas na calçada e as árvores repentinamente enegrecidas da praça. Do mar soprava em rajadas fortes e úmidas um vento ameno. Dava a impressão de que se podia ver com os olhos como, num vôo harmonioso, estavam sendo car-
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Za)
regadas as partículas minúsculas e frescas de ar para o espaço ilimitado e livre, e como voejavam rindo. De noite a rua sossegou à luz solitária dos grandes globos elétricos. E então a fortaleza enorme, em cujas paredes lisas não havia uma única luz, mergulhava nas trevas e no silêncio, separando-se, por uma linha de quietude, imobilidade e escuridão, da cidade eternamente viva e movimentada. E então se ouviam com nitidez as batidas do relógio; uma melodia alheia à terra nascia vagarosa e tristemente, e extinguia-se nas alturas. Renascia, enganando o ouvido, retinia queixosa e baixinho — interrompia-se — retinia novamente. Como grandes gôtas transparentes de vidro, as horas e os minutos caíam de uma altura misteriosa dentro de uma taça metálica que tinia baixo. Ou os pássaros migratórios voavam. Noite e dia, só êsse bater do relógio chegava até às celas onde se encontravam, entregues à solidão, os condenados. Atravessava o telhado e a espessura dos muros de pedra, fazendo vibrar o silêncio; partia despercebido, para voltar de novo, igualmente despercebido. As vêzes esqueciam-se de escutá-lo; de outras, aguardavam-no em desespêro, vivendo de toque a toque, não mais confiando no silêncio. A cadeia só se destinava a criminosos importantes. Seu regulamento era especial, severo, duro crueldade e cruel como o canto do muro da fortaleza; e se na de morte e silêncio surdo nobre o existe nobreza, então era leve. ruídos respiração e a absorvia os solenemente mudo, que melancólico embalava o toque Nesse silêncio solene, que dos minutos fugitivos, cinco pessoas, isoladas de todos os sêres cair da vivos, duas mulheres e três homens, aguardavam o noite, a aurora e a execução, e cada qual se preparava para ela a seu modo. 7.
A morte não existe
Como durante a vida inteira Tânia Kovalhtchúk só pensou sofria apenas nos outros e nunca em si assim também agora Imaginava a pesarosa. profundamente estava e outros pelos atormenta acontecimento morte, já que era iminente, como um mas a outros; os Mússia, para dor para Sierója Golovin, para absoluto, ela em própria, dizer a lhe respeito não morte parecia
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E, compensando-se da firmeza constrangida durante o julgamento, chorava horas a fio, como só sabem chorar as mu-
lheres velhas, que conheceram muitas desgraças, ou pessoas jovens, mas muito compassivas, muito bondosas. E a suposição de que Sierója podia estar sem fumo, e Werner privado do seu habitual chá forte, acrescida ainda do fato de que deviam morrer, isso tudo a torturava, talvez não menos que a própria idéia da execução. A execução é algo de inevitável e mesmo estranho, em que nem vale a pena pensar; mas, se um homem está na cadeia e ainda por cima antes da execução não tem fumo, isso é totalmente insuportável. Recordava-se, revivia os pormenores caros da vida em comum e desfalecia de pavor ao imaginar o encontro de Sierguiêi com os pais. E sentia uma compaixão especial por Mússia. Parecia-lhe há tempos Mússia amava Werner, e ainda que não fôsse que verdade, mesmo assim sonhava com algo de bom e radioso para os dois. Em liberdade, Mússia usava um anel de prata, no qual estavam representadas uma caveira com duas tíbias cruzadas e um coroa de espinhos em volta; e fregientes vêzes, condoída, Tânia Kovalhtchúk olhara êsse anel como símbolo de condenação, e ora brincando, ora séria, suplicava a Mússia que o tirasse. — Faze-me presente dêle — implorava. — Não, Tânietchka, (!) não to dou de presente. Breve terás outro anel no dedo. Por um motivo qualquer, julgavam que ela, por seu turno, devia casar-se sem falta e logo, o que a ofendia, pois não queria saber de marido. E, recordando essas conversas meio de brincadeira com Mússia, e que Mússia agora estava condenada de fato, sufocava-se devido às lágrimas e à compaixão maternal. E cada vez que o relógio batia as horas, erguia o rosto em prantos e ficava à escuta: como lá nas outras celas estariam recebendo êsse apêlo monótono e insistente da morte? Mússia, porém, estava feliz. Com as mãos para trás, metida num capote grande, desproporcional ao seu tamanho, que a tornava estranhamente parecida com um homem, com um adolescente mais para menino vestindo roupas alheias, andava com um passo igual e incan(1)
Diminutivo de Tânia.
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sável. As mangas do capote sobravam no comprimento, de modo que ela as dobrou, e as mãos delicadas, quase infantis, emagre-
cidas, saíam pelas aberturas largas, como hastes de flôres saem da bôca de uma jarra tôsca e suja. A fazenda dura irritava a pele do pescoço fino e branco ao roçá-lo, e de quando em quando Mússia folgava a garganta com um movimento das mãos e com o dedo apalpava cuidadosamente o lugar onde a pele irritada estava vermelha e ardia. Mússia andava, e justificava-se perante outrem, ficando agitada e corando. E justificava-se no sentido de que ela, uma jovenzinha insignificante, que tinha feito tão pouco e não era nenhuma heroína, seria submetida à mesma morte honrosa e bela, de que antes dela haviam morrido os heróis e mártires de verdade. Com uma fé inabalável na bondade humana, na compaixão, no amor, imaginava como agora havia gente preocupada por sua causa, como se afligiam, como estavam penalizados, e ficava envergonhada até o rubor. Parecia-lhe que, ao morrer na fôrca, cometia um êrro clamoroso. Chegara a pedir ao seu advogado de defesa, na última entrevista, que lhe arranjasse veneno, mas de repente caiu em si: e se êle e os outros pensassem que fazia isso por exibicionismo ou covardia, e ao invés de morrer de um modo modesto e desapercebido, promovia um barulho maior ainda? E apressou-se a ajuntar: — Não, apesar de tudo, não é necessário. E agora só desejava uma coisa: explicar aos homens e provar-lhes com exatidão que não era uma heroína, que morrer nada tinha de horrível e que não tivessem pena, nem se preocupassem com ela. Explicar-lhes que absolutamente não era culpada de, tão jovem e insignificante, ser submetida a semelhante morte, nem de provocarem tanta celeuma por sua causa. Como uma pessoa que estava sendo de fato acusada, Mússia procurava justificativas, tentava encontrar qualquer coisa, algo que elevasse o seu sacrifício e lhe emprestasse um valor verdadeiro. Raciocinava: — É claro, sou mocinha e poderia viver ainda por muito tempo. Mas... E, como uma vela que se ofusca ao brilho do sol nascente, pareciam-lhe turvas e escuras a juventude e a vida diante do fato grandioso e resplendente que devia iluminar sua cabeça modesta. Não havia justificativa.
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Mas talvez aquela qualidade particular que tinha na alma — o amor sem limites, a presteza ilimitada para um ato heróico, o ilimitado menosprêzo de si mesma? Portanto não era efetivamente culpada de não terem deixado que ela fizesse tudo quanto podia e queria: mataram-na no limiar do templo, ao pé do altar. Mas, se assim é, se o homem não vale apenas pelo que realizou, mas também por aquilo que desejava realizar — então... então ela era digna da auréola dos mártires. “Será possível? — pensava Mússia, envergonhada. — Será que sou digna? Digna de que alguém chore por minha causa, se agite por mim, que sou tão pequena e insignificante?” E uma alegria inexprimível apoderou-se dela. Não havia lugar para dúvidas nem hesitações, ela era aceita no seio dêles, ingressava de pleno direito nas fileiras daqueles iluminados que desde sempre passavam pela fogueira, pelas torturas e execuções em direção ao céu sublime. Uma paz e sossêgo luminosos, uma felicidade ilimitada e resplandescente, sem alarde. Como se já tivesse abandonado a terra e se aproximasse do sol desconhecido da verdade e da vida, pairando incorpórea à sua luz. “Isso é a morte. Mas, que morte é essa?” — pensava Mússia, embalada pela sua bem-aventurança. E se todos os sábios, filósofos e carrascos do mundo inteiro se houvessem reunido na sua cela, tivessem colocado diante dela os livros, os escalpelos, os machados e os laços, e principiassem a demonstrar que a morte existe, que o homem morre e está sendo morto, que a imortalidade não existe — não teriam feito mais que deixá-la admirada. Como não haver imortalidade, se já agora ela é imortal? De que imortalidade, de que morte se pode ainda falar, se já agora ela está morta e é imortal, viva na morte, como foi viva em vida? E se tivessem trazido para a sua cela, enchendo-a de mau cheiro, um caixão com o seu próprio corpo em decomposição e dissessem: — Olha! És tu! Ela teria olhado e responderia: — Não. Não sou eu. E se começassem a convencê-la, intimidando-a com o aspecto sinistro do cadáver em decomposição, de que era ela — ela! — Mússia responderia com um sorriso: Z
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— Não. Vocês pensam que sou isso, mas isso não sou eu. Sou aquela com quem estão falando, como posso então ser isso? — Mas morrerás e te tornarás nisto. — Não, não morrerei. — Serás executada. Eis o laço. — Serei executada, mas não morrerei. Como posso mor-
rer, se já agora sou imortal? E aíastar-se-iam os sábios, os filósofos e os carrascos, di-
zendo com sobressalto: — Não toquem neste lugar. Êste lugar é sagrado. Em que pensava ainda Mússia? Pensava em muita coisa, pois o fio da vida não se rompia para ela com a morte, e sim se trançava trangiila e uniformemente. Pensava nos companheiros — tanto nos afastados, que sofreriam a execução com tristeza e dor, como nos íntimos, que juntos subiriam ao cadafalso. Estava surprêsa com Vassíli, tão assustado ficou êle, que sempre foi muito corajoso e até se dava ao luxo de brincar com morte. Assim é que ainda na manhã de têrça-feira, quando juntos amarravam aos cintos os engenhos explosivos, que horas mais tarde deveriam fazê-los voarem pelos ares, as mãos de Tânia Kovalhtchúk tremiam de comoção e tornou-se necessário pô-la de lado, enquanto Vassíli brincava, fazia palhaçadas, remexia-se e chegava a ser tão imprudente, que Werner o advertiu severo: — Não se deve andar de intimidade com a morte. Por que se assustara então? Mas era tão estranho à alma de Mússia êsse mêdo incompreensível, que logo depois parou de pensar nêle, de tentar descobrir-lhe a causa, e de súbito deulhe uma vontade desesperada de ver Sierója Golovin e rir-se com êle de alguma coisa. Meditou, e ainda mais desesperadamente quis avistar-se com Werner para o convencer de algo. E imaginando que Werner andava ao lado dela, de passos seguros e compassados, afundando os saltos do sapato na terra, Mússia lhe dizia: — Não, Werner, meu caro, tudo isso são ninharias; não tem a mínima importância se mataste fulano ou não. És inteligente, mas pareces estar jogando uma partida de xadrez: tomar uma peça aqui, outra ali, e o jôgo está ganho. Aqui o importante, Werner, é que estejamos prontos para morrer. Entendes? O que pensam êsses senhores? Que não há nada de mais ter;
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rível do que a morte. Foram êles que inventaram a morte, êles Até gostaria mesmos têm mêdo dela e procuram assustar-nos. inteiro de regimento frente um sozinha sair na de fazer isto: automática pistola soldados uma com atirar nos a e começar Browning. Não fazia mal que eu estivesse sozinha, houvesse milhares déles e eu não matasse ninguém. Justamente o importante é serem milhares. Quando milhares matam um, então Essa é a verdade, quer dizer que essa criatura isolada venceu. meu caro Werner. Mas isso também era tão claro, que não necessitava mais de demonstração — decerto Werner agora entendera por si mesmo. Mas talvez o pensamento dela simplesmente não quialísesse deter-se apenas numa coisa — qual pássaro que paira todo ilimitados, e horizontes visíveis os são gero, para quem acariciante o espaço, tôda a profundeza e mais a alegria do azul abalando tocava sem O cessar, acessíveis. relógio e delicado são fundiam-se som nesse E os pensamentos silêncio profundo. o harmonioso, belo e afastado, e também punham-se a vibrar. E transformavam-se em música as imagens que deslizavam suaalves. Mússia tinha a impressão de que ia de charrete para estrada larga uma calma noite e escura, por numa gum lugar tilintar. e plana, com as molas macias a balouçar e os guizos a cano ansiedades inquietações, corpo e tôdas as Desapareceram um empolgado por escuridão pensamento, e o diluiu-se sado na misto de alegria e exaustão, criava trangiilamente imagens vifeita de silêncio. vas, extasiava-se com as suas côres e a paz enforcados aintrês companheiros, de seus lembrou-se Mússia da há pouco, e os seus rostos estavam claros, e contentes e é que o próximos — mais próximos que os dos vivos. Assim onde dos amigos, casa na manhã alegria de com homem pensa sorridentes. lábios nos saudação noite uma de com entrará Mússia ficou exausta de tanto andar. Deitou-se prudentemente na enxêrga e continuou a devancar de olhos cerrados de leve. O relógio tocava sem parar, abalando o silêncio mudo, e em seus contornos sonoros flutuavam claras imagens cantantes. Mússia refletia: “Será que isso é a morte? Meu Deus, como é linda! Ou será a vida? Não sei, não sei. Ficarei observando e ouvindo”. Já fazia tempo, desde os primeiros dias do encarceramento, que seu ouvido começara a fantasiar. Muito musical, agucriava imagens cava-se com o silêncio e sôbre o fundo dêste,
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musicais inteiras, tiradas das escassas migalhas da realidade, com os seus passos de sentinelas no corredor, o bater do relógio, o sussurro do vento no telhado de ferro e o ranger da lanterna. A princípio Mússia tinha mêdo delas, rechaçava-as como alucinações mórbidas, depois compreendeu que gozava de boa saúde e não havia nenhuma doença naquilo — e começou a entregar-se a elas com tôda a calma. Eis que de súbito ouviu, clara e nitidamente, os sons marciais de uma banda de música. Espantada, abriu os olhos e soergueu a cabeça — a noite estava por detrás da janela e o relógio tocava. “Outra vez, ora essa!” — pensou calmamente e fechou os olhos. E assim que os fechou, a banda atacou novamente a música. Ouvia-se claramente como à direita soldados dobravam a esquina do edifício, todo um regimento, e passavam pela janela. Os pés batiam compassadamente na terra pelada: um-dois! um-dois! Ouvia-se até como às vêzes rangia o couro das botas e de repente escorregava e logo se endireitava o pé de alguém. E a música cada vez mais perto: uma marcha inteiramente desconhecida, mas tocada bem alto, animada e festiva. Pelo visto, havia alguma festa na fortaleza. Eis que a banda chega à altura da janela, e tôda a cela se enche de sons alegres, rítmicos, de uma dissonância concertada. Um trombone de cobre desafina acentuadamente, ora se atrasando, ora se adiantando de modo engraçado. Mússia enxerga o soldadinho que sopra o trombone com vontade, de fisionomia compenetrada, e ri. Tudo vai se afastando. Os passos abafados continuam: umdois! um-dois! De longe, a música é ainda mais bonita e alegre. Mais uma vez ou duas o trombone dá um agudo alegremente desafinado com o seu timbre de cobre e depois esmorece. E de novo o relógio dá horas no campanário, vagarosa e tristemente, mal e mal fazendo vibrar o silêncio. “Foram embora!” — pensou Mússia com ligeira melancolia. Lamentava que sons tão alegres e divertidos se tivessem ido; chegava a lamentar o fato de os soldados terem ido embora, porque êsses soldados esforçados, com instrumentos de cobre e botas rangedoras, eram de todo diferentes, não eram os mesmos em quem ela queria atirar de uma Browning. — Mais, por favor! — pede ela carinhosamente. E voltam. Inclinam-se sôbre ela, rodeiam-na de uma nuvem transparente e elevam-se para cima, para lá, onde voam os pássaros
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migratórios, e gritam como arautos. A direita, à esquerda, para cima, para baixo — gritam como arautos. Chamam, anunciam, avisam a distância do seu vôo. Fazem amplos movimentos com as asas, e as trevas os sustentam, assim como a luz os sustenta. 3 a cidade resplandecente emitia um reflexo azul claro de encontro aos peitos saltados que cortavam o ar. O coração bate cada vez mais compassado e a respiração de Mússia volta aos está canpoucos à calma e à trangiilidade. Adormece. O rosto mãos delicadas tão são emaas sado e pálido; tem olheiras, e lábios. Na sorriso há seus em da um môça mas — grecidas manhã seguinte, quando o sol se levantar, êsse rosto humano será desfigurado por um esgar extra-humano, o cérebro será invadido por um sangue espêsso e os olhos vítreos saltarão das órbitas — mas agora ela dorme um sono trangiilo e sorri na sua grandiosa imortalidade. Máússia adormeceu. Mas a cadeia prossegue em sua vida, surda e ao mesmo tempo de ouvidos aguçados, cega e ao mesmo tempo de vista aguda, como a própria angústia eterna. Escutam-se passos em algum lugar. Cochicham algures. Em alguma parte tintinou um fuzil. Parece que alguém deu um grito. Mas talvez ninguém tivesse gritado — pura imaginação trabalhada pelo silêncio. Eis que sem ruído se abre a bandeirola da porta — na abertura escura surge um rosto moreno de bigode. Admirado, arregala os olhos, olhando Mússia longamente. E desaparece, sem ruído, como apareceu. Toca e canta o carrilhão — demorada e dolorosamente. Como se as horas cansadas estivessem se arrastando por uma alta montanha em direção à meia-noite e a subida fôsse cada vez mais difícil e árdua. Perdem o apoio, escorregam, despencam num gemido, e de novo se arrastam dolorosamente para o cume negro. Ouvem-se passos em algum lugar. Cochicham algures. E atrelam os cavalos às carroças pretas sem lanternas. já 8.
A morte existe, e
a vida também
Sierguiêi Golovin jamais pensara na morte, como se fôsse um fato estranho que não lhe dizia respeito de modo algum. Era um moço forte, sadio e jovial, dotado daquela alegria de viver calma e transparente, que faz desaparecer do organismo,
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rapidamente e sem deixar rastros, tôda idéia, todo sentimento mau e nocivo à vida. Assim como nêle saravam depressa tôda a espécie de cortes, feridas e picadas, assim também expelia imediatamente tudo quanto era depressivo e feria a alma, recobrando-se logo. E encarava qualquer trabalho ou mesmo passa-tempo, fôsse êste a fotografia, o ciclismo ou a preparação de um ato de terrorismo, com a mesma seriedade serena e prazenteira: tudo na vida é alegre, tudo na vida é importante, tudo deve ser bem feito. E era bom em tudo: sabia manobrar perfeitamente um barco a vela, atirava de revólver que dava gôsto; era constante na amizade, assim como no amor, e acreditava fanâticamente na “palavra de honra”. Os amigos caçoavam dêle, dizendo que se um detetive, um tipo mal-encarado qualquer, um conhecido alcagiicte lhe desse a palavra de honra que não ecra detetive, Sierguiêi acreditaria e lhe apertaria a mão, como a um companheiro. Tinha um único defeito: estava convencido de que cantava bem, quando possuía péssimo ouvido. Cantava detestâvelmente, chegando a desafinar nas canções revolucionárias, e ofendia-se quando riam. — Ou vocês todos são uns burros, ou então o burro sou eu — dizia sério, com ar de ofendido. E depois de pensarem, todos decidiam, também sérios: — És um burro, ouve-se logo pela voz. Mas talvez gostassem dêle até mais por causa dêsse defeito do que pelas suas qualidades, como acontece às vêzes com pente ótima. A tal ponto a morte não lhe metia mêdo e tanto não pensava nela, que na manhã fatal, antes de sair do apartamento de Tânia Kovalhtchúk, foi sózinho fazer um desjejum, e com apetite: tomou dois copos de chá, misturado pela metade em leite, e comeu um pão inteiro de cinco copeques. Depois olhou com tristeza o pão que Werner nem sequer tocara, e disse: — Por que não estás comendo? Come, precisamos ficar fortes. — Não sinto vontade. — Então vou comer, está bem? — Como tens apetite, Sieriója! A guisa de resposta, Sierguiêi cantarolou de bôca cheia, com uma voz surda e desafinada:
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224 As rajadas inimigas sopram sôbre Md]
nós...
(1)
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Após a detenção, entristeceu-se por algum tempo; trabalharam mal, fracassaram, mas reagiu com um pensamento: “Agora há outra coisa que se deve fazer bem — morrer”, e a alegria voltou. E por estranho que parecesse, logo no segundo dia de prisão na fortaleza, pôs-se de manhã a fazer ginástica seguindo um método extraordinariamente racional inventado por um alemão qualquer, chamado Mueller, com o qual estava entusiasmado: despiu-se até ficar nu e, para espanto da sentinela que o observava inquieta, executou com exatidão todos os dezoito movimentos prescritos. E o fato de a sentinela o observar e estar visivelmente admirada, era-lhe agradável, como a um propagandista do método de Mueller; e embora soubesse que não receberia resposta, disse ao ôlho que aparecia no postigo: — E' bom, irmão, fortalece. Aí está uma coisa que deviam introduzir no seu regimento — comentou alto, de maneira persuasiva e mansa, para não assustar, sem suspeitar que o soldado considerava-o simplesmente louco. O mêdo da morte começou a surgir-lhe gradativamente e aos choques: como se alguém empunhasse o coração e o empurrasse de baixo com tôda a fôrça. Era mais doloroso do que apavorante. Depois a sensação era esquecida e daí a umas horas tornava a aparecer, cada vez mais demorada e forte. E comecava já a tomar claramente a forma, a princípio coníusa, de um pavor enorme e insuportável, até. “Será que estou com mêdo? — pensou Sierguiêi, espantado. — Tolices!” Não era êle quem tinha mêdo — era o seu corpo jovem, robusto e forte, que não se deixava enganar nem pela ginástica do alemão Mueller, nem pelos banhos frios. E quanto mais forte, mais refrescado, ficava depois da ducha fria, tanto mais agudas e insuportáveis se tornavam as sensações do pavor instantâneo. E justamente nesses minutos, quando em liberdade sentia uma particular recrudescência da alegria de viver e das fôrças, pela manhã, após um sono pesado -e exercícios físicos — agora, a essa altura, surgia o mêdo intenso, que lhe parecia estranho. Notou-o e pensou: (1)
Verso de uma canção revolucionária denominada Varsoviana.
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“E? bobagem, Sierguiêi, meu amigo. Para o corpo morrer mais facilmente, deve-se enfraquecê-lo, ao invés de fortalecê-lo. E? bobagem!” Largou a ginástica e os banhos frios. E para explicar e justificar-se ante o soldado, gritou-lhe: — Não repares eu ter deixado. E” coisa boa, meu irmão. Só não serve para quem vai ser enforcado, mas para os outros é muito bom. De fato, tinha a impressão de sentir-se mais aliviado. Também tentou comer menos, para se enfraquecer mais ainda, mas apesar da falta de ar fresco e de exercícios, seu apetite era voraz, tornando-se difícil controlá-lo, pois comia o que traziam. Então começou a proceder assim: antes de iniciar a refeição, despejava a metade da comida quente na selha; e isso pareceu ajudar: surgiu uma sonolência apática, uma languidez. — Vou te mostrar! — ameaçava o corpo e passava a mão, com um misto de tristeza e ternura, pelos músculos flácidos e moles. Em breve, porém, o corpo habituou-se a êsse regime, e o mêdo da morte apareceu novamente — verdade é que não tão intenso, tão violento, mas ainda mais enfadonho, semelhante à náusea. “Isso é porque estão demorando muito — pensou Sierguiéi — seria bom dormir êsse tempo todo antes da execução”, e esforçava-se por dormir o máximo possível. A princípio conseguia, mas depois, talvez porque tivesse dormido demais, ou por outro motivo, surgiu a insônia. E com ela vieram os pensamentos vívidos e penetrantes, e com êles as saudades da verdadeira vida. “Será que tenho mêdo dela, dessa diaba? — pensava na morte. — Uma pena eu perder a vida. E” uma coisa esplêndida, digam os pessimistas o que quiserem. E que aconteceria se enforcassem um pessimista? Ah, sinto uma pena de perder a vida, muita pena. E para que foi a minha barba crescer? Não crescia, não crescia, e agora de repente cresceu. Para quê?” Meneava a cabeça com tristeza e soltava suspiros longos e profundos. Pausa — um suspiro demorado e profundo; outra vez uma curta pausa — e de novo um suspiro ainda mais prolongado e profundo. Assim foi até o julgamento e até a horrível última entrevista com os velhos. Quando despertou na cela com a plena consciência de que a vida acabara para êle, de que à sua frente
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havia apenas algumas horas de espera no vácuo e a morte — sentiu uma coisa esquisita. Como se o tivessem deixado nu em pêlo, como se o tivessem desnudado de algum modo extraordinário — não lhe tirando apenas a roupa, e sim arrancando-lhe o sol, o ar, os ruídos e a luz, os gestos e a fala. A morte ainda não chegara, mas já não existia vida, e sim algo de novo, de assombrosamente inconcebível, ora totalmente desprovido de sentido, ora tendo um sentido tão profundo, tão misterioso e extrahumano, que era impossível descobri-lo. — Irra! Que diabo! — exclamava Sierguiêi num espanto feito de tortura. — Que vem a ser isso? Onde é que estou? Eu... como sou eu? Examinou-se com atenção e interêsse, a começar pelos chinelos grandes de presidiário, e terminando na barriga, onde o capote formava uma saliência. Passeava pela cela, abrindo bem os braços e continuando a examinar-se, como uma mulher usando um vestido novo que é comprido demais para ela. Voltou a cabeça para um lado e outro. Êsse corpo, um tanto pavoroso por alguma razão, era êle, Sierguiêi Golovin e isso não mais existiria. E tudo se fêz estranho. Tentou andar pela cela — era estranho que andasse. Tentou sentar-se — era estranho que se sentasse. Tentou beber água — era estranho que bebesse, que engolisse, que segurasse a caneca, que tivesse dedos e êsses dedos tremessem. Engasgouse, começou a tossir e, tossindo, pensou: “Como é esquisito que eu tusso”. “Que é isso? Será que estou enlouquecendo?! — refletiu Sierguiêi, ficando frio. — Não faltava mais nada! Diabo que os carregue!” Esfregou a testa com a mão, mas isso também era esquisito. E então, prendendo a respiração por horas a fio, segundo lhe parecia, mergulhou na imobilidade, enxotando qualquer pensamento, retendo o ar a ser expirado com fôrça, evitando todo movimento — pois todo pensamento era loucura, todo movimento era loucura. O tempo sumiu-se, como que transformado sem ar, numa praça enorme, onde num espaço transparente, havia tudo: terra, vida e gente. E tudo isso podia ser abrangido por um único olhar, tudo até o fim, até o misterioso precipício a morte. E o tormento não consistia no fato de se ver a
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morte, e sim em que se via a vida e a morte ao mesmo tempo. Mão sacrílega descerrou o véu que desde sempre oculta o mistério da vida e o mistério da morte, e êles deixaram de ser mistério, mas nem por isso se tornaram compreensíveis, permanecendo como uma verdade dita em língua desconhecida. Não existiam noções tais em seu cérebro humano, não havia palavras tais em sua língua humana, que pudessem abarcar o que tinha visto. E às palavras: “tenho mêdo” — ressoavam nêle só porque não havia outra palavra, não existia nem podia existir uma concepção que correspondesse a êsse estado, novo e extra-humano. Assim se sentíria um homem que, permanecendo dentro dos limites do entendimento, da experiência e dos sentimentos humanos, súbito houvesse avistado Deus — tivesse visto sem compreender, embora sabendo que isso chamava-se Deus, e estremecesse com as torturas inauditas de uma incompreensão inaudita. — Vê só em que deu o Mueller! — pronunciou de repente alto e a bom som, balançando a cabeça. E num revirar de sentimentos, a que tanto se presta a alma humana, pôs-se a rir às gargalhadas, alegre e sinceramente. — Ah, Mueller! Ah, tu, meu caro Mueller! Ah, meu alemão magnífico! Apesar dos pesares, tens razão e eu, amigo Mueller, sou um burro. Deu umas passadas rápidas pela cela e para novo e maior espanto do soldado que o observava pelo postigo, despiu-se depressa até ficar nu e, contente, esforçando-se ao máximo, executou todos os dezoito exercícios; estendia e esticava o seu corpo juvenil, um tanto emagrecido, agachava-se em flexões, inspirava e expirava o ar, ficava na ponta dos pés e jogava as pernas e os braços para a frente. E depois de cada exercício comentava com prazer: — Assim é que deve ser! Isto é o certo, amigo Mueller! Suas faces ficaram coradas, dos poros saíam gotículas de um suor cálido e agradável, e o coração batia com fôrça e compassadamente. — O caso é, Mueller — raciocinava Sierguiêi, com o peito saltado de tal forma que se entremostravam as costelas sob a pele fina e distendida o caso é, Mueller, que existo ainda um décimo nono exercício, que é a suspensão pelo pes coço numa posição imóvel. E isso se chama execução. Compre endes, Mueller? Pegam um homem vivo, digamos que seja Sici guiéi Golovin, por exemplo, vestem o indivíduo que nem bo
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neco e o suspendem pelo pescoço, até morrer. Isso é estúpido, Mueller, mas não se pode fazer nada — vejo-me obrigado. Inclinou-se para o lado direito e repetiu: — Vejo-me obrigado, amigo Mueller. 9.
Solidão medonha
Aos sons do mesmo badalar do relógio, isolado de Sierguiêi e de Mússia por algumas celas vazias, mas numa solidão tão depressiva, como se em todo o universo existisse apenas êle, o infeliz Vassíli Kachírin terminava seus dias imerso no pavor e na tristeza. Suando em bicas, com a camisa colada ao corpo, de cabelos, que antes eram encaracolados, totalmente revoltos, corria de um lado para outro na cela, em convulsões desesperadas, como um homem que está com uma dor de dentes insuportável. Sentava-se um pouco, corria de novo, comprimia a testa contra a parede, detinha-se e buscava alguma coisa com os olhos, como se procurasse um remédio. Mudou tanto, que dava a impressão de ter tido dois rostos diferentes, sendo que se sumira o anterior, moço, e ocupou-lhe o lugar um novo e medonho, vindo das trevas. O mêdo da morte chegou-lhe de vez e tomou conta dêle inteira e poderosamente. Ainda pela manhã, a caminho da morte óbvia, tomava-se de intimidades com ela, mas já à tardinha, encerrado na cela solitária, estava transtornado e submerso pelo vagalhão de um pavor furioso. Enquanto caminhava sózinho, por sua livre e espontânea vontade, ao encontro dodeperigo dee ser da morte, enquanto segurava a sua morte, apesar até bem messentia-se e mãos, próprias horrendo, nas aspecto mo alegre. No sentimento da liberdade sem limites, na confirmação da sua vontade temerária e intrépida afundava sem deixar traços o mêdo pequenino e enrugado como uma velhota. Cintado pelo bomba-relógio, êle próprio de certo modo se convertera numa bomba-relógio, assimilara a inteligência cruel da dinamite, apropriando-se do seu poder mortífero e explosivo. Andando pela rua, em meio a gente desassossegada, prosaica, preocupada com os seus negócios, que se livrava apressada dos cavalos, dos cocheiros e do bonde, imaginava-se vindo de outro mundo desconhecido, onde se ignora o que seja morte, ou mêdo.
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E súbito uma mudança de vez, brusca, insensata e atordoante. Não mais vai para onde quer; levam-no para onde querem. Não mais escolhe o lugar; colocam-no dentro de uma jaula de pedra e o fecham à chave, como a um objeto. Não mais pode escolher livremente: a vida ou a morte, como todos os homens; vão matá-lo infalível e inevitâvelmente. Num instante aquêle que era a personificação da vontade, da vida e da fôrça, torna-se a imagem lamentável de uma impotência única no mundo, transforma-se num animal que aguarda a matança, numa coisa surda e sem voz, que se pode deslocar, queimar e quebrar. Dissesse o que dissesse, não ouviriam suas palavras, e se começasse a gritar, tapariam a bôca dêle com um trapo, e era indiferente se caminhasse com as próprias pernas ou não: carregálo-iam para ser enforcado. E se resistisse, debatendo-se e atirando-se ao chão, seria subjugado, erguido, amarrado; e atado conduzi-lo-iam à fôrca. E o fato de êsse trabalho maquinal vir a ser feito por homens semelhantes a êle, conferia-lhes um aspecto novo, extraordinário e sinistro: ou de fantasmas, ou de alguma coisa simulada, que surgiu só de propósito, ou de bonecos movidos por molas: pegam, agarram, levam, enforcam e puxam pelas pernas. Cortam a corda, depositam no chão, conduzem e enterram. E desde o primeiro dia de cadeia os homens e a vida transformaram-se para êle num mundo inescrutâvelmente horroroso de fantasmas e bonecos mecânicos. Quase louco de pavor, esforçava-se por imaginar que os homens têm uma língua e falam, e não podia — pareciam-lhe mudos; esforçava-se por lembrar como falavam, o sentido das palavras por êles empregadas em suas relações — e não podia. As bôcas se abrem, alguma coisa soa, depois êles se separam, movendo as pernas, e não há mais nada. Assim é que se sentiria um ser humano, se à noite, quando estivesse sózinho em casa, todos os objetos ficassem dotados de ação, começassem a mover-se e adquirissem sôbre êle, simples mortal, um poder ilimitado. Subitamente por-se-iam a julgá-lo: o armário, a cadeira, a escrivaninha e o sofá. iria gritar « agitar-se, implorar, chamar por socorro, mas êles falariam al guma coisa entre si, a seu modo e depois o levariam para subi: à fórca: o armário, a cadeira, a escrivaninha e o sofá. E os demais objetos iriam observar isso.
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E tudo começou a parecer um brinquedo a Vassíli Kachírin, condenado à pena de morte por enforcamento: a cela, a porta com o postigo, o toque do relógio ao qual tinham dado corda, a fortaleza edificada com esmêro, e principalmente aquêle boneco de mola com o fuzil, que pisa forte no corredor, e aquêles outros que, assustando-o, olham pelo postigo e trazemlhe calados a comida. E aquilo que experimentava não era o pavor diante da morte; chegava mesmo a desejá-la: com todo o seu eterno mistério e a sua incompreensibilidade, era mais acessível ao espírito que êste mundo que se tinha transformado de modo tão insensato e fantástico. Mas ainda: a morte parecia aniquilar-se completamente neste mundo louco de fantasmas e bonecos, perdia o seu elevado sentido misterioso, tornava-se também algo de mecânico e terrível só por essa razão. Pegam, agarram, levam, enforcam, puxam pelas pernas. Cortam a corda, depositam no chão, conduzem enterram. Sumiu do mundo o homem. Durante o julgamento a proximidade dos companheiros fêz Kachírin voltar a si, e de novo, por instantes, viu homens: estavam sentados a julgá-lo e diziam alguma coisa numa língua humana, ouviam e davam a impressão de compreender. Mas já durante a entrevista com a mãe sentiu claramente, com o pavor de uma pessoa que começa a enlouquecer e é consciente disso, que aquela velhinha de xale prêto não passava de uma boneca de mola feita com habilidade, da espécie daquelas que dizem: “pa-pá”, “ma-mã, apenas era mais bem acabada. Esforçava-se por falar com ela, porém pensava, sobressaltado: “Meu Deus! Mas, é uma boneca. Boneca feita à imagem da mãe. E aquêle boneco ali, feito à semelhança de um soldado, e lá em casa um boneco representando a imagem do pai, e isto aqui — um boneco feito à imagem e semelhança de Vassíli Kachírin”. Parecia que daí a pouco ouviria em alguma parte o estalido do mecanismo, o ranger das rodas sem lubrificação. Quando a mãe se pôs a chorar, por um momento vislumbrou-se de novo algo de humano, que desapareceu, porém, ao som de suas primeiras palavras, e tornou-se curioso e terrível observar como escorria água dos olhos de uma boneca. Depois, na sua cela, quando o pavor se tornou insuportável, Vassíli Kachírin tentou rezar. De tudo quanto cercou de uma aparência de religião a sua vida de jovem na casa do pai
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comerciante, sobrara apenas um resíduo repulsivo, amargo e irritante, e não existia a fé. Mas desde muito tempo, talvez ainda na primeira infância, ouvira umas poucas palavras, e elas o maravilharam, provocando uma emoção palpitante, e depois conservaram-se pela vida afora embaladas por uma poesia suave. Essas palavras eram: “O consôlo de todos os aflitos”. Acontecia que em momentos difíceis murmurava de si para consigo, sem reza, sem uma consciência definida: “o consôlo de todos os aflitos” — e repentinamente ficava aliviado e tinha vontade de ir ter com alguém que lhe fôsse caro e queixar-se baixinho: — À nossa vida... será que isso é a vida?! Eh, minha querida, será que isso é a vida?! E depois, subitamente, ficou risonho, deu-lhe vontade de enrolar os cabelos, ensaiar um passo de dança, oferecer o peito aos golpes de alguém: vamos, bate! Não conversava com ninguém, nem mesmo com os companheiros mais íntimos, a respeito do seu “consôlo de todos os aflitos”, e êle próprio não parecia ter conhecimento da frase expressiva — tão profundamente se ocultava dentro de sua alma. E recordava-a poucas vêzes, com prudência. E agora, quando o pavor do mistério insolúvel se apresentava diante de seus olhos e o cobria até a cabeça, como a água inunda um junco na margem durante uma enchente — desejava rezar. Quis ajoelhar-se, mas ficou com vergonha por causa do soldado, e levando as mãos ao peito, murmurou baixinho: — O consôlo de todos os aflitos! E com tristeza, pronunciando as palavras com enternecimento, repetiu: — Consôlo de todos os aflitos, vinde ter comipo, amparai Váska Kachírin. Há tempos, quando cursava o primeiro ano da universidade e ainda se metia em farras, antes de conhecer Werner e entrar para a sociedade, chamava a si próprio num tom fanfarrão e lamentável de “Váska Kachírin” — e agora, por um motivo qualquer, dera-lhe vontade de chamar a si do mesmo modo. Mas as palavras ressoaram mortas e sem compaixão: — Consôlo de todos os aflitos!
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Agitou-se alguma coisa. Como se a imagem silenciosa e aflita de alguém passasse à distância e se desvanecesse calmamente, sem espancar as trevas da morte. Dava horas no campanário o relógio de corda tensa. O soldado no corredor bateu com o sabre, ou quiçá com o fuzil, e bocejou demoradamente, para variar de tom. Consôlo de todos os aflitos! Também tu estás calado! Também tu não queres dizer nada a Váska Kachírin? Sorria enternecido e aguardava. Mas o vácuo se fizera em alma e ao redor. E não voltava a imagem silenciosa e sua aflita. Recordava de maneira desnecessária e torturante as velas de cêra acesas, o pope de sotaina, o ícone pintado na parede, ine como o pai, curvando-se e depois empertigado, rezava e Váska esse soslaio de para ver clinava o corpo, mas olhava mais sentiu-se E fazendo peraltice. alguma tava rezando ou apavorado que antes da oração. Tudo desaparecera. A loucura abatia-se pesadamente sôbre êle. Extinguia-se a consciência, como se apaga uma fogueira dispersa, esfriava, como o cadáver de um homem que acabasse de falecer e cujo coração ainda estivesse quente, mas as pernas e Os braços já tomados de rigidez. Mais uma vez, num lampejo rubro de sandizia que êle, Váska Kague, o pensamento que se apagava chírin, podia enlouquecer ali, passar por tormentos inominados, chegar a tais extremos de dor e de sofrimento, até onde nenhum ser vivo alcançara ainda; que êle podia bater com a caO beça na parede, vazar os olhos com o dedo, falar e gritar não de meio lágrimas que que lhe aprouvesse, assegurara por nada. agiientava mais — e nada aconteceria. Não seria E nada aconteceu. As pernas, que têm consciência e vida trêmulo e próprias, continuavam a andar e carregar O corpo tenconsciência própria, têm As mãos, banhado em suor. que o e aberto peito aquecer ao fechar vão capote o tavam em estava gelado. Os tremia e O molhado. trêmulo corpo e corpo olhos viam. E isso era quase um sossêgo. Mas houve ainda um momento de terror desvairado. Foi isso quando os homens entraram. Nem chegou a pensar no que execução — marchar para a significava — estava na hora de criança. uma como homens e assustou-se, quase simplesmente viu — Não faço mais! Não faço mais! — sussurrava inaudivelmente com os lábios entorpecidos e afastava-se devagar para
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o fundo da cela, como na infância, quando o pai levantava o braço em sinal de ameaça. — Tem que ir. Falam, andam em volta dêle, dão-lhe alguma coisa. Cerrou os olhos, vacilou, e começou a preparar-se arrastadamente. Provavelmente a lucidez que lhe retornara: de repente pediu um cigarro ao funcionário. E êste abriu amàvelmente a cigarreira de prata com um desenho gravado em estilo decadente. 10.
Ruem os muros
O desconhecido com a alcunha de Werner era um homem cansado da vida e da luta. Tempo houve em que amou a vida com muita fôrça, em que se deleitava com o teatro, a literatura e o convívio de outras pessoas; dotado de excelente memória e de uma vontade firme, aprendera com perfeição algumas línguas européias, podendo facilmente passar por alemão, francês ou inglês. Falava habitualmente o alemão com sotaque bávaro, mas podia, se o desejasse, falar como um verdadeiro berlinense nato. Gostava de trajar-se bem, tinha maneiras distintas e era O único da sua turma que ousava comparecer aos bailes da alta sociedade, sem correr o risco de ser reconhecido. Mas de há muito, embora despercebido pelos companheiros, vinha alimentando na alma um desdém soturno pelos homens, e havia nisso um desespêro e uma exaustão profunda, quase mortal. Por sua natureza, era antes matemático do que poeta, não conhecera até então a inspiração nem o êxtase, e durante alguns minutos sentia-se como um louco em busca da quadratura do círculo nas poças de sangue humano. O inimigo, com o qual lutava diáriamente, não podia inspirar-lhe respeito: era a rêde de malhas cerradas da estultícia, da traição e da mentira, de sujos escarros, de enganos infames. O último acontecimento que parecia ter destruído nêle para sempre a vontade de viver, fôra o assassínio de um agente provocador, perpetrado por êle a mando da organização. Matou com tôda a calma, mas quando viu aquêle rosto morto, falso, mas no momento, trangiilo e apesar de tudo digno de pena e humano, súbitamente deixou de respeitar a si mesmo e à sua obra. Não que sentisse arrependimento, e sim porque simplesmente perdera a auto-estima, tornara-se desinteressante, sem importância e estranhamente fastidioso a si próprio. Mas não saiu da organiza-
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ção, já que era homem de uma vontade única, inquebrantável, e nem mudou exteriormente — sômente nos olhos se depositara algo de frio e sinistro. E não falou nada a ninguém. Possuía mais uma qualidade rara: assim como há pessoas êle que jamais souberam o que seja dor de cabeça, também tinham receio, encaoutros mêdo. E os quando desconhecia o rava isso sem censura, mas também sem particular comiseração, como uma doença bastante difundida, da qual, entretanto, nunca sofrera. Tinha pena dos companheiros, principalmente de Vássia Kachírin; mas era uma compaixão fria, quase oficial, à qual provavelmente também não eram estranhos alguns dos juízes. Werner compreendia que a execução não é simplesmente a morte, e sim algo diferente, mas em todo o caso resolveu comportar-se perante ela calmamente, como diante de um fato estranho: viver até o fim, como se nada tivesse acontecido, nem fôsse acontecer. Só por êsse meio poderia exprimir seu supremo desdém pela execução e conservar a última e inalienável liberdade do espírito. E por ocasião do julgamento — e nisso talvez não acreditassem nem os próprios companheiros, que conheciam de sobra o seu destemor frio e a sua altivez — não meditava nem na morte nem na vida: concentrado, na mais profunda e calma das atenções, jogava uma difícil partida de xadrez. Ótimo enxadrista, iniciara essa partida desde o primeiro dia de sua reclusão e continuava sem parar. A sentença que o condenava à pena de morte por enforcamento não movera nenhuma figura no tabuleiro invisível. O próprio fato de evidentemente não ter possibilidades de terminar a partida, nem sequer o deteve; e começou a manhã do último dia que ainda passaria na terra pela correção de um lance do dia anterior, que não fôra bem sucedido. Apertando as mãos abaixadas entre os joelhos, permaneceu sentado por muito tempo, imóvel; depois ficou em pé e pôs-se a andar, raciocinando. Tinha um modo peculiar de andar: inclinava um firme pouco para a frente a parte superior do tronco e batia sêca os até terra na e nitidamente com os tacões no chão — e Assobiava visível. baixo, bem rastro deixavam um seus passos num sôpro, uma arieta italiana das fáceis, e isso ajudava-o a pensar. Mas dessa vez o negócio ia mal por uma razão qualquer. Com a sensação desagradável de que tinha cometido um êrre
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grave e até crasso, voltou atrás várias vêzes e conferiu o jôgo quase desde o princípio. Não localizava o êrro, mas a sensação de um êrro cometido não só não o largava, como se tornava cada vez mais forte e vexatória. E súbito surgiu um pensamento inesperado e ultrajante: talvez o êrro consistisse no fato de querer com o jôgo de xadrez desviar a sua atenção da idéia da execução e proteger-se daquele mêdo da morte, que parece inevitável a um condenado? — Não! Para quê?! — respondeu com frieza e calmamente fechou o tabuleiro invisível. E com a mesma atenção concentrada com que jogava, como que submetido a rigoroso exame, fêz um esfôrço para se dar conta do pavor e da situação sem saída a que chegara: inspecionou a cela esforçando-se por não deixar escapar nada, calculou as horas que faltavam até a execução, traçou para si mesmo um quadro bastante aproximado da verdade da própria execução e deu de ombros. — E daí? — respondeu a alguém com uma pergunta pela metade. — Eis tudo. Onde está o mêdo? De fato, não havia mêdo. E não só não havia mêdo, como avultava algo que lhe era contrário — a sensação de uma alegria confusa, mas desmedida e ousada. E o êrro, ainda não encontrado, já não provocava nem aborrecimento nem irritação, como se fizesse de conta que um amigo íntimo, já falecido, se achasse vivo e incólume, rindo. Werner deu de ombros novamente e tomou o seu pulso: o coração batia acelerado, mas forte e regular, com uma peculiar fôrça sonora. Examinou mais uma vez atentamente as paredes, as fechaduras, a cadeira parafusada ao chão, como um novato que se encontra pela primeira vez na prisão, e pensou: “Por que motivo me sinto tão despreocupado, alegre e livre? Isso mesmo, livre. Medito na execução de amanhã — e ela parece não existir. Olho as paredes — e as paredes parecem não existir. E sinto-me tão livre, como se não estivesse na cadeia, e sim acabasse de sair de alguma prisão onde houvesse passado a vida inteira. Que é isto?” As mãos começavam a tremer — fenômeno inédito para Werner. O pensamento latejava cada vez com mais fúria. Kira como se línguas de fogo ardessem dentro de sua mente — as labaredas queriam abrir caminho para fora e iluminar amplamente o espaço ainda envolvido no manto escuro da noite. E
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eis que lograram escapar, e o espaço iluminado resplandeceu em tôda a sua amplidão. Desapareceu o cansaço obscuro que consumia Werner nesses dois últimos anos, e a serpente que abrigava no peito, soltou-se-lhe do coração, morta, fria e pesada, de olhos cerrados e bôca fechada — diante da face da morte voltara, brincando, a linda juventude. E isso era mais que a linda juven-
tude. Com aquela espantosa superlucidez de espírito que em raros momentos empolga um ser humano e o eleva aos mais alcandorados píncaros da contemplação, Werner viu subitamente a vida e a morte, e ficou assombrado com o esplendor do espetáculo inédito. Como se estivesse caminhando por uma cordilheira altíssima, fina como o fio de uma navalha, e de um lado visse a vida, e do outro a morte, como dois mares espslhados, profundos e lindos, que se fundiam no horizonte num único espaço vasto e ilimitado. — Que é isto?! Que espetáculo divino! — exclamou devagar, levantando-se involuntâriamente e empertigando-se, como se estivesse em presença de um ser superior. E, destruindo os muros, as barreiras de espaço e tempo com a impetuosidade do olhar que tudo penetrava, olhou amplamente para aigum lugar nas profundezas da vida que ia deixar. E uma nova vida surgiu diante dêle. Não tentava, como antes, registrar com palavras o que vira, nem tampouco existiam semelhantes vocábulos na linguagem humana, ainda pobre, ainda escassa. Aquilo que havia de mesquinho, sujo e maligno, que despertava nêle o desdém pela humanidade e chegava a sumira-se provocar sua aversão à aparência do rosto humano, homem um que assim desaparecem como para por completo: sobe em balão o lixo e a sujeira das ruas estreitas de uma cidadezinha abandonada, e a fealdade transforma-se em beleza. Num movimento inconsciente, Werner deu um passo em direção à mesa e apoiou-se nela com a mão direita. Orgulhoso e dominador de natureza, jamais assumira atitude tão altiva, livre e imperiosa, nem voltara a cabeça assim, nem olhara dessa forma — pois jamais fôra tão livre e soberano como ali na cadeia, à distância de poucas horas da execução e da morte. E os homens afiguraram-se-lhe novos, mostraram-se caros de maneira nova, à sua visão iluminada. Paiencantadores, e rando por sôbre o tempo, viu claramente quão jovem é a humanidade, que ainda ontem vuivava como fera na floresta; e
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aquilo que parecia terrível nos homens, imperdoável e repugnante, de repente se tornou delicioso, como delicioso é na crianca o fato de não saber andar tal qual um adulto, o seu balbucio incoerente, que lampeja com centelhas de genialidade, suas falhas engraçadas, os erros e os machucados cruéis. — Meus caros! — sorriu Werner súbita e inesperadamente, e logo perdeu. tôda a imponência de sua atitude, tornou-se novamente um presidiário que se sente constrangido e incomodado sob chave, bem como um tanto aborrecido com o ôlho importuno e inquiridor pregado na superfície plana da porta. Esquisito: quase de repente esquecera aquilo que tinha acabado de ver com tanta nitidez e clareza; e mais esquisito ainda — nem sequer tentava lembrar-se. Simplesmente sentou-se mais à vontade, sem a -costumeira rigidez na posição do corpo, e com um sorriso diferente, suave e meigo, que nada tinha de Werner, examinou as paredes e as grades. Acontecera, ainda, algo de novo, que jamais se dera com Werner: de repente pôs-se a chorar. — Meus caros companheiros! — murmurava e chorava amargamente. — Meus caros companheiros! Por que secretos caminhos havia chegado do sentimento de liberdade orgulhosa e ilimitada a essa compaixão terna e patética? Não sabia e nem pensava nisso. E se tinha pena déles, dos seus companheiros queridos, ou se era outra coisa ainda mais sublime e patética que essas lágrimas ocultavam — tam» bém o ignorava seu coração ressuscitado de súbito, que reverdecia. Chorava e murmurava: — Meus caros companheiros! Companheiros queridos! Nesse homem que chorava amargamente e sorria por entre lágrimas, ninguém reconheceria o Werner frio e arrogante, cansado e atrevido nem os juízes, nem os companheiros, nem êle
próprio.
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Estão sendo conduzidos
Antes de acomodarem os condenados nas carruagens, reue fria, de teto em abóonde não mais se trabalha, escritório bada, parecida com um E permitiram que de fora de sala uso. recepção ou com uma conversassem entre si.
niram todos os cincos numa sala grande
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Mas apenas Tânia Kovalhtchúk logo se utilizou da permissão. Os demais permaneceram calados e apertaram com fôórça as mãos, frias como o gêlo, ardentes como o fogo — e calados, esforçando-se por não se olharem, juntaram-se num grupo embaraçado e meio disperso. Agora, que estavam juntos, pareciam envergonhar-se daquilo que cada qual sentira na solidão; e tinham receio de olhar, para não verem e não mostrarem o que de novo, de extraordinário, de um tanto vergonhoso cada um sentia ou suspeitava em si. Mas acabaram por olhar uma vez, mais outra, sorriram, e imediatamente sentiram-se desinibidos e naturais como antes: não se operara nenhuma mudança, e se alguma coisa havia acontecido, então se distribuíra tão por igual entre todos, que para cada um em separado era imperceptível. Todos falavam e moviam-se de forma estranha: impetuosa e abruptamente, ou demasiado lento, ou depressa demais; por vêzes engasgavam-se com as palavras e as repetiam fregiientemente, de outras vêzes não terminavam a frase começada ou davam-na por dita — nem sequer notavam. Todos apertavam os olhos e examinavam os objetos comuns com curiosidade, sem reconhecê-los, como pessoas que usam óculos e de repente os tiram; todos viravamse para trás brusca e repetidamente, como se o tempo todo alguém os estivesse chamando pelas costas para lhes mostrar alguma coisa. Mas também não o notavam. As faces e as orelhas de Mússia e de Tânia Kovalhtchúk estavam em fogo; Sierguiêi a princípio estava um pouco pálido, mas logo se refez e voltou ao de sempre. E tôdas as atenções convergiram sôbre Vassíli. Mesmo entre êles, seu aspecto era incomum e medonho. Werner ficou abalado e disse a Mússia em voz baixa, com terna inquietação: — Que é isto, Mússietchka? (1) Será que êle perdeu a razão? Como? Precisamos ajudá-lo. Vassíli olhou para Werner, dando a impressão de não o reconhecer, como se estivesse longe, e abaixou os olhos. — Vássia, que aconteceu com o teu cabelo, hem? Que há contigo? Não é nada, meu irmão, não é nada, não é nada, acabará logo. Devemos ficar firmes é preciso, é preciso. (1)
Diminutivo de Mússia.
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Vassíli permanecia calado. E quando já se tinha a impressão de que não diria mesmo nada, veio a resposta, surda, atrasada e de uma lonjura aterradora, tal como o túmulo poderia responder a muitos chamados: — Não tenho nada. Agiiento firme. E repetiu: — Agiento firme. Werner ficou contente. — Isto mesmo. És um bravo. Está bem. Mas topou com o olhar vago e cansado, vindo de uma distância infinita e pensou, tomado de instantânea melancolia: “De onde estará olhando? De onde estará falando?” E com profunda ternura, como só se fala a um túmulo, disse: — Vássia, estás ouvindo? Eu te quero muito bem. — Também te quero muito bem — respondeu uma língua que se movia com dificuldade. De repente, Mússia pegou a mão de Werner e, exprimindo admiração, disse com esfôrço, como uma atriz no palco: — Werner, que sucedeu contigo? Disseste: quero bem? Nunca havias dito a ninguém: quero bem. E por que estás todo assim... radiante e suave? Que houve? — O que houve? E como um ator, exprimindo o que sentia com o mesmo esfôrço, Werner apertou fortemente a mão de Mússia: — Sim, agora tenho muito amor. Não digas aos outros, não é preciso, que me dá vergonha, mas eu tenho muito amor. Seus olhares encontraram-se e inundaram-se de uma luz clara, enquanto ao redor tudo se ofuscou, assim como por um instante, ao fulgor do relâmpago, se ofuscam tôdas as demais luzes e abate-se sôbre a terra a sombra da chama amarela e intensa. — Sim — disse Mússia. — Sim, Werner. — Sim — respondeu êle. — Sim, Mússia, sim! Algo foi entendido e confirmado inabalâvelmente por êles, E de olhar iluminado, Werner comoveu-se de novo e deu um passo rápido na direção de Sierguiêi. — Sieriója! Quem respondeu, porém, foi Tânia Kovalhtchúk. Com en tusiasmo, quase chorando de orgulho materno, puxava Sierguici violentamente pela manga.
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— Werner, escuta só! Aqui estou chorando por sua causa, estou me afligindo, e êle... faz ginástica! — Pelo método de Mueller? — sorriu Werner. Sierguiêi franziu o sobrolho, desconcertado: — Estás rindo à toa, Werner. Convenci-me definitiva-
mente...
Todos desataram a rir. Fortalecendo-se mutuamente em companhia uns dos outros, pouco a pouco voltavam ao que eram antes, mas não o notaram, pensando que sempre haviam sido iguais aos de agora. De repente, Werner interrompeu o riso e extremamente sério disse a Sierguiêi: — Tens razão, Sieriója. Tens tôda a razão. —. Então, compreendes — ficou satisfeito Golovin. — Claro que nós... Mas a essa altura surgiu a proposta de irem andando. E foram tão amáveis, que permitiram aos condenados sentaremse aos pares, conforme êstes queriam. De um modo geral eram muito, demasiado amáveis até: ora se esforçavam por demonstrar uma atitude humana, ora por mostrar que nem sequer se achavam presentes, e tudo se fazia por si. Estavam pálidos, porém. — Tu, Mússia, senta com êle — Werner indicou Vassíli, que estava em pé, imóvel. — Compreendo — fêz Mússia com a cabeça. — E tu? — Eu? Tânia com Sierguiêi, tu com Vássia... E eu sôzinho. Isso não faz mal; bem sabes que eu posso ficar. Quando saíram para o pátio, a escuridão úmida bateulhes no rosto e nos olhos, suavemente, mas com intensa tepidez, oprimindo-lhes o peito e penetrando com brandura nos corpos que estremeciam. Difícil de acreditar que essa maravilha era simplesmente o vento primaveril, tépido e úmido. E a noite de primavera, verdadeira e admirável, cheirando a neve que se fundia, a amplidão infinita, cantava ao som dos pingos derretidos. Amiudadas e com pressa, uma atrás da outra, caíam as gôtas rápidas, compondo simultâneamente um canto sonoro; mas de repente uma desafina, e tudo deriva para um alegre esparrinhar da água, numa confusão apressada. E depois pingava com firmeza uma gôta grande, severa, e de novo se compunha, nítida e sonoramente, o “apressado canto da primavera. E sôbre a cidade, por cima dos telhados da fortaleza, pairava o pálido clarão das lâmpadas elétricas.
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-— A-ah! — aspirou profundamente Sierguiêi Golovin e prendeu a respiração, como se tivesse pena de deixar sair dos pulmões um ar tão fresco e magnífico. — Há muito que o tempo está assim? — informou-se Werner. — Estamos em plena primavera. — E' só o segundo dia — foi a resposta atenciosa e cortês. — Antes fêz muito frio o tempo todo. Uma após outra, vinham de mansinho as carruagens escuras, levavam dois de cada vez e mergulhavam na escuridão, indo para lá, onde balouçava a lanterna no portão. Os sol-. dados da escolta rodeavam cada carro com suas silhuetas cinzentas, e as ferraduras dos cavalos tiniam sonoramente ou escarvavam a neve molhada. Quando Werner, inclinando-se, fêz menção de subir na carruagem, o guarda disse vagamente: — Aqui está mais um que vai com o senhor. Werner ficou admirado: — Para onde? Para onde vai êle? Ah, sim! Mais um? Quem é? O soldado calava. De fato, a um canto da carruagem, na escuridão, comprímia-se alguma coisa pequena, imóvel, mas viva — ao feixe de luz oblíquo da lanterna brilhou um ôlho aberto. Sentando-se, Werner empurrou um joelho com o pé. — Desculpe, companheiro. O outro não respondeu. E só quando a carruagem se pôs em movimento, súbito perguntou hesitante, num russo estropiado: — Quem é o senhor? — Sou Werner, condenado à fôrça por atentado contra Fulano de Tal. E o senhor? — Sou Iânson. Não devo ser enforcado. Viajavam, para dentro de duas horas ficarem face a faco com o grande mistério indecifrável, para saírem da vida c entrarem na morte — e travavam conhecimento. Em dois planos caminhavam simultâneamente a vida e a morte, até o [im, nas bagatelas mais ridículas e absurdas mesmo, a vida conti nuava a ser vida. — Que é que o senhor fêz, Iânson? — Cortei o patrão a faca. Roubei dinheiro.
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A julgar pela voz, parecia que Iânson estava caindo no sono. No escuro, Werner achou a sua mão flácida e apertou-a. Iânson retirou molemente a mão. — Estás com mêdo? — indagou Werner. — Eu não quero. Calaram-se. Werner encontrou novamente a mão do estoniano e apertou-a com fôrça entre as palmas de suas mãos sêcas e quentes. Ela permaneceu imóvel, feito uma tabuínha, mas Iânson não mais tentava retirá-la. A carruagem era apertada e sufocante, cheirava a uniforme de soldados, a môfo, estrume e couro de botas úmidas. O guarda jovem, sentado em frente de Werner, com o seu hálito quente expelia sôbre êle um bafo misto de cebola e fumo ordinário. Mas por algumas frestas penetrava o ar fresco com fôrça, e por isso sentia-se a primavera ainda mais acentuadamente na pequena caixa abafada que se movia, do que do lado de fora. A carruagem dobrava ora à direita, ora à esquerda, ora parecia voltar. As vêzes, dava a impressão de já estarem rodando horas inteiras no mesmo lugar, por um motivo qualquer. A princípio, através das grossas cortinas abaixadas, vislumbrava-se pelas janelas uma luz elétrica azulada; depois, de repente, após uma curva fêz-se escuro, e só por êsse fato era possível adivinhar-se que desviaram para as ruas abandonadas dos subúrbios e aproximavam-se da estação ferroviári de S. Por vêzes, nas curvas fechadas, o joelho vivo e dobrado de Werner batia amigâvelmente de encontro ao joelho também vivo e dobrado do guarda, e era difícil acreditar na execução. — Aonde vamos? — perguntou Iânson de repente. Girava-lhe um pouco a cabeça devido às voltas demoradas caixa escura, e estava com um ligeiro enjõo. na Werner respondeu e apertou a mão do estoniano com mais fôrça. Desejava dizer algo de particularmente amistoso, de carinhoso àquéle homenzinho sonolento, e já gostava tanto dêle, como de ninguém na vida. — Meu caro! Parece que estás mal sentado. Aproxima-te de mim, vem para cá. Iânson calou-se por uns momentos e depois respondeu: — Obrigado. Estou bem. Tu também serás enforcado? — Também! — respondeu Werner inesperadamente alepre, quase rindo, e fêz um gesto com a mão de maneira particularmente desembaraçada e revelando despreocupação. Como
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se se tratasse de alguma brincadeira absurda e insensata que desejavam fazer com êles certas pessoas simpáticas, mas muito brincalhonas. — Tens espôsa? — indagou Iânson. — Não tenho. Qual espôsa, qual nada! Sou sózinho. — Eu também sou sózinho. Sózinha — corrigiu Iânson, após refletir. Werner também começou a ficar tonto. E por instantes parecia que iam a uma festa; esquisito, mas quase todos os que marchavam para a execução experimentavam a mesma sensação, e envolta com a tristeza e o pavor sentiam uma vaga alegria pelo acontecimento extraordinário que se verificaria daí a pouco. A realidade embriagava-se com a loucura, e a morte dava à luz fantasmas, unindo-se à vida. Era muito possível que se desfraldassem bandeiras nas sacadas. — Eis que chegamos! — disse Werner curioso e alegre, quando a carruagem parou, pulando de mansinho para fora. Com Iânson, porém, a coisa rendeu: calado e muito abatido, obstinava-se em não querer sair. Agarrava-se à maçaneta — o guarda fazia abrir os dedos sem fôrça e despegava a mão; agarrava-se a um canto, à porta, à roda alta — mas soltava logo, a um pequeno esfôrço por parte do guarda. Nem chegava a agarrar, antes colava-se sonolento a cada objeto o taciturno Tânson — e despegava-se facilmente, sem maiores esforços. Afinal levantou-se. Não havia bandeiras. Era de madrugada e a estação estava escura, vazia e sem vida; os trens de passageiros já não trafegavam, e aquêle trem que aguardava em silêncio êstes passageiros na via férrea não precisava nem de luzes fortes nem de rebuliço. E subitamente Werner ficou entediado. Nem pavor, nem tristeza, mas aborrecimento — um tédio imenso, monótono e penoso, ao qual se deseja escapar, deitando, fechando bem os olhos. Werner espreguiçou-se e bocejou demoradamente, Iânson também se espreguiçou e bocejou rapidamente várias vêzes em seguida. — “Tomara que seja bem rápido! — disse Werner cansado, Tânson mantinha-se calado e estava todo arrepiado. Quando os condenados se encaminhavam para os vagões mal iluminados, passando pela plataforma vazia, cercada apenas por soldados, Werner foi parar ao lado de Sierguiêi Golo vin; e êste, após indicar com a mão algum lugar ao lado, pôs-
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se a falar, e só se ouviu claramente a palavra “lanterna”, pois o final afogou-se num bocejo demorado que traía o cansaço. — Que é que estás dizendo? — perguntou Werner, tes-
pondendo também com um bocejo. — A lanterna. A lâmpada da lanterna está soltando fuliggm — disse Sierguiêi. Werner olhou em tôrno: de fato, a lâmpada da lanterna estava soltando muita fuligem, e os vidros de cima já estavam enegrecidos. — Sim, está soltando fuligem. De repente refletiu: “E que tenho eu a ver com o fato de a lâmpada estar soltando fuligem, quando...?. Era evidente que Sierguiêi pensou a mesma coisa: olhou Werner ràpidamente e voltou-se para o outro lado. Mas ambos pararam de bocejar. Todos caminharam por si até os vagões, e só foi preciso levar Iânson segurando-o pelos braços: primeiro resistiu com as pernas e parecia colar as solas dos sapatos às tábuas da plataforma, depois dobrou os joelhos e pendurou-se nos braços dos guardas, as suas pernas arrastavam-se, como as de um homem muito bêbedo, e as pontas dos pés raspavam a madeira. E levaram tempo para o empurrar pela porta a dentro, mas sempre calados. Vassíli Kachírin também se movia por si, imitando confusamente os movimentos dos companheiros — fazia tudo como êles. Porém, ao subir à plataforma do vagão, tropeçou, e O guarda pegou-o pelo cotovelo para apoiá-lo. Vassíli pôs-se a tremer e deu um grito agudo, retirando o braço: — Ail — Vássia, que há contigo? — e Werner fêz um movimento brusco em sua direção. Vassíli calou-se e tremia de causar dó. Acanhado e até mesmo aborrecido, o guarda esclareceu: — Quis segurá-lo, e êle... — Vamos, Vássia, eu te dou apoio — disse Werner e quis segurá-lo pelo braço. Vassíli, porém, retirou de novo o braço bruscamente e gritou ainda mais alto:
— Ai! — Vássia, sou eu, Werner. — Já sei. Não me toques. Vou por mim mesmo.
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E continuando a tremer, entrou sózinho no vagão e sentou-se a um canto. Inclinando-se para Mússia, Werner perguntou-lhe em voz baixa, mostrando Vassíli com os olhos. — Como é que êle está? Mal — respondeu Mússia baixinho também. — Éle morrendo. está Werner, dize-me, será que a morte existe? já Não Mússia, sei, mas julgo que não — respondeu Wer— ner sério e pensativo. — Foi o que pensei. Mas, e êle? Passei uns maus bocados em sua companhia na carruagem. Eu tinha a impressão de viajar com um defunto. — Não sei, Mússia. Talvez que para alguns a morte exista. Por enquanto, mas depois não existirá mais. Para mim também havia a morte, mas agora não existe mais. As faces um tanto pálidas de Mússia ficaram de um rubor intenso: — Existia, Werner? Existia? — Existia. Agora não. Como para ti. Ouviu-se um barulho na porta do vagão. Batendo com os tacões a valer, respirando com fôrça e escarrando, entrou Michka Tziganók. Relanceou o olhar em tôrno e estacou, obs-
tinado. — Aqui não há lugares, seu guarda! — gritou para o guarda fatigado, que olhava com ar de zanga. — providencie para tudo dar com folga, do contrário não vou, pode enforcar aqui mesmo na lanterna. Também deram uma carruagem, êsses filhos de uma cadela — será que isso é carruagem que se apresente? E” uma porcaria dos diabos e não uma carruagem!
Mas de súbito baixou a cabeça, esticou o pescoço e assim caminhou para a frente, na direção dos outros. Encaixados na moldura formada pelo cabelo e barba desgrenhados, os seus olhos negros chispavam selvagens e penetrantes, com uma expressão adoidada. — Ah! Meus senhores! — falou com lentidão. — Vejam que coisa. Salve, patrão! Estendeu a mão a Werner e sentou-se à sua frente. E chegando-se para perto dêle, piscou o ôlho e passou rápido a mão pelo pescoço. — Também? Sim? — Também! — sorriu Werner. — Será que todos?
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— Todos. — Ôba! — Tziganók arreganhou os dentes e percorreu
ligeiro todos com o olhar, detendo-se por um instante a mais em Mússia e em Iânson. E piscou novamente para Werner: — O ministro? — O ministro. E tu? — Eu, patrão, por causa de outra coisa. Quem sou eu para chegar a atentar contra um ministro?! Eu sou um bandido, patrão, eis quem sou. Um assassino. Não faz mal, patrão, chegue um pouquinho pra lá, não foi por minha vontade que me meti nessa companhia. No outro mundo haverá lugar bastante para todos. Feito selvagem, de cabelos hirsutos, percorreu todos com um olhar impetuoso e desconfiado. Mas os presentes encaravamno calados e sérios, e até com visível simpatia. Arreganhou os dentes e bateu râpidamente algumas vêzes no joelho de Werner. — Pois é, patrão! E” como se canta na canção: “Não sussurreis, ó carvalhos verdejantes!” — Por que me chamas de patrão, se todos nós... — Claro — concordou Tziganók com prazer. — Que patrão vais ser, quando estiveres enforcado ao meu lado! Eis quem é um patrão — apontou com o dedo para o guarda taciturno. — e aquêle lá da sua turma, não é pior do que a gente — mostrou Vassíli com os olhos. — Patrão, ó patrão, tens mêdo? — Não é nada — respondeu a língua que se movia com dificuldade. — Como que não é nada! Não deves te envergonhar, não há de que se envergonhar. Só um cachorro é que bole com o rabo e mostra os dentes quando o levam para ser enforcado, mas tu és um homem. E quem é êsse de orelhas murchas? Êsse não pertence à sua turma? O seu olhar pulava râpidamente de um para outro e não parava de cuspir com um silvo a saliva doce que lhe invadia a bôca. Iânson, que se comprimia como uma bola imóvel no canto, movia ligeiramente as pontas do seu gorro poído de peles, mas não respondeu nada. Werner respondeu em vez déle. —. Esfaqueou o patrão. -— Meu Deus! — espantou-se Tziganók. — Como permitem que gente dessa laia mate os outros! Já fazia tempo que Tziganók observava Mússia de soslaio, e agora, virando-se depressa, fixou-a brusca e diretamente.
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— Senhorita! Psiu, senhorita! Que é isto?! As faces ruborizadas, e rindo! Olha, está rindo de verdade — apertou o joelho de Werner com dedos que mais pareciam tenazes de ferro. — Veja, veja só! Corando, com um sorriso algo acanhado, Mússia também olhava dentro dos seus olhos perspicazes, em que havia um grão de loucura, a perquirirem graves e desvairados. Todos se calaram. As rodas matraquejavam, empenhadas que estavam em sua tarefa, os vagões pequenos saltavam nos trilhos de bitola estreita e corriam esforçados. Eis que numa curva ou numa passagem de nível a locomotiva dava uns apitos agudos e insistentes — o maquinista receava esmagar alguém. E era in sensato pensar que no enforcamento de homens se incluía tanto esmêro de ordem humana comum, tanto esfôrço, tanto cuidado, que a tarefa mais louca na face da terra se cumpria com uma aparência tão simples e razoável. Os vagões corriam, pessoas estavam ali sentadas, como sempre sentavam, e viajavam como costumavam viajar; depois haveria uma parada, como sempre — “o trem pára por cinco minutos”. E aí chega a morte — a eternidade — o grande mistério. 12.
Trazidos ao local
Os vagões corriam dando o máximo.
Por vários anos a fio, Sierguiêi Golovin veraneara com os parentes numa casa de campo servida por essa mesma linha,
pela qual viajara seguidas vêzes tanto de dia como de noite, de modo que a conhecia de cor e salteado. E se fechasse os olhos, poderia julgar que agora também estava retornando para casa — atrasara-se na cidade, em casa de uns amigos, e voltava pelo último trem. — Daqui a pouco chegamos — disse êle, abrindo os olhos e observando através da escura janela guarnecida de grade, que nada falava. Ninguém se mexia, nem respondia; apenas Tziganók escarrou repetidas vêzes, depressa, a saliva adocicada. E pôs-so a percorrer o vagão com os olhos, sentindo de perto as janelas, as portas e os soldados.
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— comentou Vassíli Kachírin de láde verdade; e a frase não lhe regelados bios duros, como que saiu clara da bôca. Tânia Kovalhtchúk inquietou-se. — Aqui está o cachecol, enrola no pescoço. O cachecol esquenta bem. — No pescoço? — indagou Sierguiêi inesperadamente, assustando-se com a pergunta. Porém, como todos haviam pensado a mesma coisa, ninguém lhe deu ouvidos — era como se ninguém tivesse falado ou todos houvessem pronunciado a mesma palavra em uníssono. — Não faz mal, Vássia, enrola, enrola que ficará mais Iânson e quente — aconselhou Werner, depois virou-se para perguntou com ternura: — E tu, meu caro, não estás com frio? — Werner, talvez êle queira fumar. Companheiro, talvez cio senhor queira fumar? — perguntou Mússia. — Temos garros. — Quero! — Dá-lhe um cigarro, Sieriója — alegrou-se Werner . Mas Sierguiêi já estava tirando o cigarro. E todos observavam com amor como os dedos de Tânson pegavam o cigarro, como ardia o fósforo e da bôca de Iânson saía uma fumaça azul. — Bem, obrigado — disse Iânson. — E” bom. — Como é estranho! — exclamou Sierguiêi. — O que é que é estranho? — tornou Werner. — Qual é a estranheza? — Isto aqui, por exemplo: o cigarro. Segurava o cigarro, um cigarro comum, entre Os dedos viE tovos comuns e, pálido, fitava-o com espanto, quase pavor. saía a de cuja tubo fininho, ponta dos fixaram os olhos no respia enovelar-se, clara azul que fita a fumaça como uma deração tocava para um lado, e onde havia uma parte escura, vido ao acúmulo de cinza. Apagou-se. — Apagou — disse Tânia. — Sim, apagou. — Que vá para o diabo! — explodiu Werner, de sobrolho carregado e com inquietude olhando Tânson, cuja mão que sepurava o cigarro pendia que nem morta. De repente Tziganók virou-se ràpidamente, inclinou-se para o lado de Werner, bem —. Está fazendo frio
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perto, quase encostando o rosto no dêle, e revirando a alva dos olhos como um cavalo, murmurou: — Patrão, que tal se agora... a escolta, hem? Vamos tentar? — Não é preciso — respondeu Werner também num cochicho. — Bebe a taça até o fim. — Mas, por quê? Numa luta a coisa fica mais divertida, hem? Eu dou nêle, êle em mim, e nem percebo como acabaram comigo. Assim como se não tivesse morrido. — Não, não é preciso — disse Werner e virou-se para Tânson: — Meu caro, por que não estás fumando? O rosto flácido de Iânson enrugou-se repentinamente de modo lamentável: como se alguém tivesse puxado um cordel que punha em movimento as rugas e tôdas ficassem atravessadas. E como se varasse o sono, Iânson pôs-se a choramingar, sem lágrimas, com voz sêca, quase estudada: — Não quero fumar. Ah-ah! Ah-ah! Ah-ah! Não devo ser enforcado. Ah-ah, ah-ah, ah-ah! Começaram a agitar-se em tôrno dêle. Tânia Kovalhtchúk, chorando copiosamente, alisava-lhe a manga e endireitava as pontas penduradas do gorro poído: — Meu querido! Meu caro, não chores, meu querido! Coitadinho dêle! Mússia olhava para um lado. Tziganók deu com o olhar dela e arreganhou os dentes. — Sua excelência é um esquisitão! Toma chá, mas a barriga está fria — disse com um riso curto. Mas o seu rosto ficou de um prêto azulado, como o ferro fundido, e a dentuça amarela chocava-se. De repente os vagões estremeceram e diminuíram sensivelmente a marcha. Todos, à exceção de Iânson e Kachírin, levantaram-se e tornaram a sentar-se rápidamente. — A estação! — exclamou Sierguiêi. Parecia que haviam extraído de vez todo o ar do vagão: tão difícil se tornou respirar. O coração dilatado apertava o peito, atravessava-se na garganta, disparava como louco, gritando apavorado com sua voz cheia e rubra de sangue. Mas os olhos baixados fitavam o soalho trepidante, e os ouvidos escutavam como as rodas giravam cada vez mais devagar, escorregavam, rodavam de novo, para estacarem de chôfre. O trem parou,
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Então sobreveio o sonho. Não que fôsse horripilante, mas
era fantasmagórico, inconsciente e meio esquisito: a pessoa devancadora ficava de um lado, e apenas o seu espectro moviase incorpóreo, falava sem emitir sons, sofria sem padecimento.
Saíam do vagão sonhando, separavam-se aos pares, cheiravam o ar primaveril e silvestre particularmente fresco. No sonho, Iânson resistia num misto de estupidez e fraqueza, e calados arrastavam-no para fora do vagão. Desceram os degraus. — Será que iremos a pé? — perguntou alguém quase com alegria. — Dagui lá não é longe — respondeu outro com a mesma, dose de alegria. Depois formaram um grupo compacto, de vultos escuros é taciturnos que palmilhavam em meio à floresta um caminho mai aplainado, úmido e macio, com a primavera em tôrno. Da floresta, bem como da neve, chegava uma brisa fresca e forte; O pé resvalava, afundando por vêzes na neve, e as mãos agarravam-se involuntâriamente ao companheiro; e resfolegando, movia-se nos flancos a escolta com dificuldade, caminhando pela neve intacta. A voz de alguém falou zangada: — Não tiveram tempo de limpar a estrada. Agora temos de virar cambalhotas aqui na neve. Alguém procurava justificar-se com ar de culpa: — Limpamos, sim senhor. Mas veio o degêlo e não se pode fazer nada. A consciência voltava, não por completo, mas aos fragmentos, em parcelas esquisitas. Ora o pensamento confirmava de súbito e com eficiência: “De fato, não puderam limpar a estrada”. Ora tudo se extinguia novamente, e permanecia tão só o olfato: o cheiro insuportâvelmente ativo de ar, de floresta, de neve a derreter-se; ora tudo se tornava extraordinâriamente claro — tanto a floresta, como a noite, a estrada, e o fato de vislumque daí a instantes subiriam à fôrca. Em fragmentos brava-se a conversa contida, num murmúrio: — São quase quatro horas. — Disse que estamos saindo cedo. — Clareia às cinco. — Sim, às cinco. Assim era preciso...
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Pararam no escuro, dentro de uma pequena clareira. A certa distância, por entre as árvores ralas e com aspecto algo transparente de inverno, balouçavam duas lanterninhas mudas: lá se achavam os patíbulos. — Perdi uma galocha — disse Sierguiêi Golovin. — Que foi? — não entendeu Werner. — Perdi uma galocha. Estou com frio. — Onde está Vassíli? — Não sei. Eilo ali. Vassíli estava em pé, sombrio e imóvel. — Onde está Mússia? — Estou aqui. És tu, Wemer? Começaram a olhar em tôrno, evitando fitar a vista naquele lado onde continuavam a mover-se as lanterninhas mudas e tremendamente compreensivas. A esquerda, a floresta desnudada parecia ficar menos densa e surgia algo de grande, branco, plano. E dali soprava um vento úmido. — O mar — disse Sierguiêi Golovin, sentindo o cheiro e abocanhando o ar. — Lá está o mar. Mússia declamou sonoramente: — Meu amor, grande como o mar! — Que é isto, Mússia? — Meu amor, grande como o mar, não pode caber entre as margens da vida (1). — Meu amor, grande como o mar... — repetiu Werner e de repente ficou alegremente admirado: — Músska! (2) Como ainda és jovem! Súbito, bem perto do ouvido de Werner, escutou-se o cochicho cálido e sufocado de Tziganók. — Patrão, ó patrão! A floresta, hem? Meu Deus, que é isto! E lá onde estão as lanterninhas fica o cabide, não é? Que é isto, hem? Werner olhou: Tziganók sofria da angústia que antecede a morte. — Devemos despedir-nos... — disse Tânia Kovalhtchúk. — Espera, ainda vão ler a sentença — respondeu Werner. - Onde está Tânson? (1) (2)
Versos de A. K. Tolstói. Mais um diminutivo de Mússia.
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Iânson estava deitado na neve, e ao lado dêle ocupavamcheiro forte de se com alguma coisa. De repente sentiu-se um amoníaco. vai demo— Que é que está havendo, doutor? O senhor rar? — indagou alguém com impaciência. — Não é nada, um simples desmaio. Esfreguem-lhe as orelhas com neve. Já está voltando a si, podem ler. A luz de uma lanterna de bôlso caiu sôbre um papel e tremiam um pouco; umas mãos brancas sem luvas. Papel e mãos trêmula: também era a voz já — Senhores, talvez fôsse melhor não ler a sentença, desejam? Como conhecem? que os senhores a — Que não sé leia — respondeu Werner por todos, e a lanterna apagou-se rapidamente. Todos também recusaram o padre. E a silhueta escura e sumindo-se. A larga afastou-se calada e depressa para longe, estava aurora dava os primeiros sinais de sua chegada: a neve vultos os negros ficando mais branca, em maior contraste com dos homens, e a floresta se tornava mais rala, mais triste e simples. Podem fazer par — Senhores, devem ir dois de cada vez. só se apressem. peço que com quem desejarem, Werner apontou Iânson, que já estava em pé, apoiado por dois guardas: Trei com êle. E tu, Sieriója, leva Vassíli. Vão na frente. — Está bem. Tânia Ko— E nós juntas, Mússietchka? — perguntou valhtchúk. — Vamos, dá-me um beijo! fôrBeijaram-se todos rapidamente. Tziganók beijava com contrário, pelo Iânson, dentes; os sentirem-se ça, de modo a mole é desanimadamente, com a bôca entreaberta, parecendo fazendo. Quando Siernem sequer compreender o que estava de alguns pasdistanciado havia Kachírin se já guiêi Golovin e € exclamou em voz alta e níde repente estacou Kachírin sos, tida, mas inteiramente estranha e desconhecida: — Adeus, companheiros! — Adeus, companheiro! — bradaram-lhe. árForam embora. Fêz-se silêncio. As lanternas atrás das uma voz, grito, um vores pararam de balançar. Aguardavam o silêncio, qualquer ruído — mas tanto lá como cá imperava amarelada. luz uma imóveis espalhavam lanternas e as
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— Ah, meu Deus! — rouquejou desvairadamente alguém. Viraram-se: era Tziganók debatendo-se na angústia pré-mortal. — Estão enforcando! Voltaram-se para o outro lado, e tudo ficou de novo em silêncio. Tziganók sofria, procurando agarrar o ar com as mãos: — Mas, como é isto! Senhores, hem? Terei de ir sózinho? Acompanhado fica mais alegre. Senhores! Que é isto? Pegou a mão de Werner com dedos que davam a impressão de brincar, dedos que apertavam e afrouxavam. — Patrão, meu caro, poderias ir comigo, hem? Não me negues êsse favor! Werner respondeu, sofrendo: — Não posso, meu caro. Vou com êle. — Ah, meu Deus! Quer dizer que vou sózinho. Como pode ser? Oh, Deus meu! Mússia deu um passo à frente e disse em voz baixa: — Venha comigo. Tziganók recuou e revirou os olhos alucinados, mostrando as alvas: — Contigo? — Sim. — Que coisa! Vejam só a pequenina! Não tens mêdo? Senão, será melhor eu ir sózinho. Não faz mal! — Não tenho mêdo.
Tziganók mostrou os dentes. — Que coisa! Sou um salteador. Não me desprezas? Seria melhor não ir junto comigo. Não ficarei zangado contigo. Mússia calava-se, e à luz fraca da alvorada seu semblante afigurava-se pálido e enigmático. Depois, de repente, aproximouse rápida de Tziganók e, enlaçando-o pelo pescoço, beijou-o nos lábios com fôrça. Éle agarrou-a pelos ombros com os dedos, afastou-a de si, sacudiu-a e, dando estalos altos, beijou a môça nos lábios, no nariz e nos olhos. — Vamos! De repente o soldado mais próximo vacilou e afrouxou as mãos deixando cair o fuzil. Mas não se abaixou para o apanhar e ficou imóvel por um instante, virou-se abruptamente e, Icito cego, foi caminhando pela floresta, pisando a neve virgem. — Aonde vais? — murmurou o outro assustado. — Pare! Mas o primeiro continuava calado a arrastar-se com dificuldade pela neve funda; provavelmente deu um tropeção em
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alguma coisa, pois agitou os braços e caiu de bôrco. Permaneceu deitado nessa postura. — Apanha o fuzil, seu moleirão! Senão apanho eu! — disse Tziganók em tom ameaçador. — Não conheces o serviço! Novamente as lanterninhas puseram-se a correr alvoroçadas. Chegara a vez de Werner e Iânson. — Adeus, patrão! — disse Tziganók em voz alta. — Seremos conhecidos no outro mundo. Se me avistares alguma vez por lá, não me vires as costas. Também me dá um pouco d'água para tomar — estarei com calor lá. — Adeus. — Eu não quero — disse Iânson indolente. Werner, porém, segurou-o pelo braço e o estoniano deu alguns passos por si mesmo; depois viram quando êle estacou e tombou sôbre a neve. Inclinaram-se para erguê-lo e levá-lo, mas êle se debatia fracamente nos braços que o carregavam. Por que motivo não gritava? Possivelmente esquecera que possuía VOZ. E de novo se imobilizaram as lanternas amarelentas. — Quer dizer que irei sozinha, Mússietchka — disse Tánia Kovalhtchúk com tristeza. — Vivemos juntas, e agora... — Minha querida Tânietchka... Mas Tziganók interveio com ardor. Segurando Mússia pela mão, como se receasse que ainda pudessem arrebatá-la, pôs-se a falar depressa e com eficácia: — Ah, senhorita! Podes ir sôzinha, és uma alma pura, podes ir só aonde quiseres. Entendeste? Mas eu não. Sou um bandido... — compreendes? — Não me é possível ir sózinho. Dirão: onde estás te metendo, assassino? Também roubei cavalos, juro por Deus! E com ela estarei como... com uma criança recém-nascida, entendes? Não compreendeste? — Compreendi. Está bem, podem ir. Deixa beijar-te mais uma vez, Mússietchka. — Beijem-se, beijem-se — disse Tziganók alentadoramente às mulheres. — O seu caso é êsse mesmo, devem despedir-se bem. Mússia e Tziganók puseram-se a andar. A mulher ia com cuidado, escorregando e, como de hábito, segurando as saias; e de braço bem dado, sondando cautelosamente o caminho com os pés, o homem a conduzia para a morte.
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As luzes estacionaram. Fêz-se o silêncio e o vácuo em tôrno de Tânia Kovalhtchúk. Calados os soldados todos cinzentos à luz incolor e pouco intensa do novo dia que despontava. — Estou só — pôs-se a falar subitamente Tânia e suspirou. — Morreu Sieriója, morreram Werner e Vássia. Estou só. Soldados, soldadinhos, estou só. Sozinha... O sol levantava-se sôbre o mar. Depositaram os cadáveres em caixões. Depois carregaram-nos. De pescoços esticados, os olhos esbugalhados até a loucura, com a língua violácea inchada, que estava à mostra qual flor desconhecida e horrenda entre os lábios regados por uma espuma sanguinolenta — desciam os cadáveres pelo mesmo caminho, de volta, daqueles que o perlustraram até lá sózinhos, ainda vivos. E não se notava diferença na neve macia 6 primaveril, e a brisa da primavera continuava fresca e forte. E a galocha acalcanhada e molhada, que Sierguiêi havia perdido, negrejava na neve. Assim os homens saudavam o sol nascente.
ESTA OBRA FOI EXECUTADA NAS OFICINAS DA CompositorA GRÁFICA LUX LTDA., RUA FREI CANECA, 224 — Rio DE JANEIRO
Barba feita, sapato todo remendado, mas engraxado naquele dia, apresenta-se à mãe como o homem mais feliz dêste mundo. Conta-lhe como está progredindo no emprêgo, as perspectivas de subir de pôsto, a estima em que
o têm o chefe e os
colegas...
A velha mãe, tôda ouvidos, mostra-se, por sua vez, contente com o filho e aconselha-o a casar logo. A isto Siemieniuta, representando sempre, responde que sim, de fato, até que a filha do diretor da repartição vive a persegui-lo, mas que êle, é claro, ia escolher, escolher bem, pois ela há de compreender... na sua posição... E a pobre mãe finge acreditar em tudo que lhe conta o filho querido. No entanto, não o deixa ir embora sem oferecer-lhe um prato de comida, pois está justamente na hora do jantar. Voltando da cozinha, após demorar-se alguns minutos, ela entrega-lhe carinhosamente um prato — seu próprio jantar — e insiste para que êle o prove. Protestando fartura, pois acabara de jantar com os colegas no “Praga”, êle devora num instante o saboroso pão prêto e o arenque, sem perceber que, enquanto comia, uma lágrima brilhava no canto do ólho de sua mãe, foi crescendo, crescendo, até transbordar e sair rolando pela face enrugada. Refazendo-se à pressa, novamente os dois cúmplices se olham felizes. Depois, mãe e filho se despedem, cada qual fingindo acreditar na mentira do outro.
ED Toto
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