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ATLETAS DE VOLEIBOL - PÁTIO DA IGREJA DE SANTA TERESA, INÍCIO DOS ANOS 1960

JOSÉ MANUEL CONSTANTINO

Discutir o serviço público de televisão é mais do que abordar a programação de uma estação de televisão. E avaliar o contributo que este deve dar no domínio da informação à sociedade está muito para além das suas competências técnicas. E se isso é verdade para vários domínios da sociedade, também o é para o desporto. Para alguns trata-se de um assunto que é uma espécie de reserva corporativa, excluindo ou desvalorizando aqueles que, fora do sistema que ao longo de décadas dominou os vários poderes nos quais opera o serviço público de televisão, ousam pronunciar-se. Mas é óbvio que o assunto interessa a todos os portugueses que se preocupam com a comunicação social pública e, no nosso caso particular, com o desporto. Desde logo, começando por lembrar que gerações de portugueses acompanharam as principais vitórias de atletas e equipas portuguesas em competições internacionais e Jogos Olímpicos através do serviço público de rádio e televisão. Durante décadas este serviço público assumiu um papel de incontornável importância para o desenvolvimento desportivo nacional, pois a reconhecida qualidade técnica dos seus profissionais contribuiu para a formação desportiva das audiências, em território nacional e na diáspora. Estas conquistas fazem parte do imaginário de milhões de portugueses. Representam um inestimável património coletivo do país e são momentos incontornáveis na afirmação da nossa identidade. Foram poderosos fatores agregadores das comunidades de língua portuguesa que, espalhadas pelo mundo, acompanharam em direto, a cada momento, o percurso até à glória dos seus desportistas culminada com a bandeira nacional içada no mais elevado mastro e os acordes do hino nacional escutados por milhões. Nesta medida, por mais diversas que sejam as perspetivas em torno do conceito de interesse público, onde se ancora o serviço público de rádio e televisão, este acervo cultural assume um papel incontornável e inalienável, forjado ao longo de décadas na construção social da identidade desportiva nacional. Trata-se, também por isso, de um património que se projeta muito para além do direito consagrado à informação pública, pois este direito afigura-se muito mais contingente do que os traços distintivos da história e da memória. E de um património que não pode ser apenas avaliado à luz de audiometrias de audiência ou de lógicas comerciais. O panorama do mercado audiovisual e a sua relação com o fenómeno desportivo na emergência da sociedade das novas tecnologias de informação e comunicação tem sofrido profundas e rápidas transições que reconfiguram e colocam novos desafios à missão do serviço público de rádio e televisão em relação ao desporto. Na recente discussão pública sobre o serviço público de televisão o Comité Olímpico de Portugal teve oportunidade de reiterar o seu entendimento sobre o que está em causa: a capacidade de o serviço público difundir e promover a dimensão social e cultural na diversidade do desporto, como retorno dos benefícios económicos e sociais que este proporciona à comunidade. Nesse sentido, a estratégia de conteúdos desportivos numa ótica de serviço público não pode ficar refém de critérios comerciais para assegurar a sua sustentabilidade, nem o espaço público televisivo pode ser ocupado apenas por quem detém condições económicas e financeiras para garantir a produção dos seus eventos e publicitar as suas iniciativas, normalmente com custos associados consideravelmente mais elevados do que o mercado concorrencial. Como não é aceitável uma tendência monotemática nos espaços de debate replicando a lógica da concorrência do setor privado num modelo em tudo semelhante e circunscrito ao espetáculo desportivo do futebol profissional, limitando o debate sobre os problemas do desporto a este particular. Por outro lado, o mercado digital e a diversificação de plataformas de distribuição de conteúdos desportivos têm assumido uma dimensão cada vez mais relevante nos consumos desportivos da população e na

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comercialização dos direitos de transmissão, os quais representam um pilar fundamental na sustentabilidade do tecido desportivo europeu. É já hoje uma tendência precipitada pela revolução digital os organizadores das competições desportivas que não conseguem espaço no mercado televisivo tradicional assumirem a condição de produtores de transmissões dos seus próprios eventos via plataformas de streaming ou nas redes sociais, substituindo-se aos grandes operadores e criando audiências específicas. Este fenómeno abre uma discussão em torno do papel - e do futuro - que os canais tradicionais devem assumir perante uma audiência que despertou para novos produtos e formas de consumo. O que representa igualmente uma oportunidade para criar um serviço público mais consentâneo com a capacidade de responder às exigências da audiência nacional. É nosso entendimento que sem uma opção mais clara e incisiva por parte do serviço público de televisão, o desporto continuará refém da pouca atenção que lhe é concedida, das dificuldades que a esmagadora maioria das modalidades têm em conseguirum espaço, mesmo custeando as respetivas transmissões, e de uma situação de profundo desequilíbrio na grelha de programação em relação a outros setores, desde logo pelas prioridades assumidas no contrato de concessão agora em discussão. Este é, portanto, o momento decisivo para projetar o futuro ajustando as orientações do serviço público à transição célere e profunda que o panorama audiovisual desportivo tem vivido e aos desafios iminentes que se colocam ao desenvolvimento do desporto português.

CONHEÇA O FILÓSOFO QUE HABITA AS IDEIAS DE FUTEBOL DE JORGE JESUS E JOSÉ MOURINHO

MAURÍCIO NORIEGA Blog entrevista Manuel Sérgio Vieira e Cunha Conheça o filósofo que habita as ideias de futebol de Jorge Jesus e José Mourinho | papo cabeça com maurício noriega | ge (globo.com)

Falar sobre Filosofia num clube exclusivo como é o ambiente do futebol pode parecer uma loucura. Menos para o professor e filósofo português Manuel Sérgio Vieira e Cunha, autor de 50 livros e criador, no final dos anos 1960, da Ciência da Motricidade Humana, uma inovadora forma de se estudar a prática esportiva. De acordo com as palavras do próprio Manuel Sérgio, “o objeto de estudo da Ciência da Motricidade Humana é o desenvolvimento humano, através da motricidade (em fisiologia, o conjunto de funções nervosas e musculares que permite os movimentos voluntários ou automáticos do corpo), pelo estudo do corpo em ato, visando a transcendência, a qual é superação de todo o determinismo e criação de possíveis inéditos”.

+ Mundo do futebol precisa entender que o show nem sempre tem que continuar Apaixonado pelo futebol, que nunca chegou a jogar em alto nível, o professor Manuel Sérgio e suas ideias tiveram forte impacto em uma geração de treinadores e teóricos esportivos de Portugal. Entre eles dois dos mais conhecidos técnicos portugueses de futebol: José Mourinho, e Jorge Jesus. Manuel Sérgio chegou, inclusive, a trabalhar diretamente com Jorge Jesus na equipe técnica do Benfica. O ex-treinador rubro-negro definiu assim a influência do pensamento de Manuel Sérgio em seu trabalho, numa entrevista à agência de notícias Lusa, em 2017: “Nunca fui aluno dele (Manuel Sérgio), mas fui um privilegiado por ser um aluno particular dele. Tinha de me desenvolver noutras áreas do conhecimento que me pudessem ajudar, e ele obrigou-me a pensar e fez com que eu hoje seja muito melhor treinador”. José Mourinho escreveu o prefácio de um livro de Manuel Sérgio intitulado “O Futebol e Eu” (Editora Prime Books) e destacou: “Sou um homem grato a Manuel Sérgio. Ele não me ensinou nem técnica, nem tática. Mas ensinou-me esta coisa simples: o desporto é muito mais do que um atividade física e só como ciência humana deve estudar-se e praticar-se. E isso bastou-me para que o futebol, para mim, passasse a ser uma atividade de meridiana compreensão”. O professor Manuel Sérgio, que morou alguns anos no Brasil, onde lecionou na Unicamp e recebeu a Medalha do Mérito Desportivo, aceitou conversar por e-mail com este Papo Cabeça para falar sobre suas ideias relativas ao futebol e como a Filosofia e as Ciências Humanas podem contribuir para a qualidade do jogo dentro de campo. O português de Portugal foi mantido nas respostas para preservar a autenticidade delas.

Papo Cabeça: O futebol parece ser um ambiente muito fechado a inovações. Como foi ter seus conceitos e ideias aceitos e dissimulados, num meio tão diferente do acadêmico intelectual? Manuel Sérgio: Ao contrário do que possa pensar, onde mais hostilizado e rejeitado e isolado me senti foi precisamente nalguns meios universitários. No futebol, ao invés, encontrei pessoas de insaciada necessidade de diálogo e de estudo. Relembro, a este propósito, os treinadores José Maria Pedroto (foi jogador e treinador de futebol. Como jogador, foi atleta do brasileiro Yustrich e do húngaro Bela Gutman, no Porto. Como treinador, foi duas vezes campeão português e cinco vezes da Taça de Portugal. Morreu em 1985, aos 56 anos), José Mourinho e Jorge Jesus e o brasileiro João Paulo Medina.

Em seus livros e textos o senhor destaca sempre que o futebol tem que estar atrelado às Ciências Humanas. O fator humano parece ter sido deixado de lado, em detrimento da tecnologia, preparação física e métodos de estudo e avaliação, no futebol dito moderno? Com poucas palavras lhe respondo: nas Ciências Humanas, não estudar o que é especificamente humano equivale a não fazer ciência. Ser especialista em futebol significa ser especialista numa atividade humana e não só física. A expressão Educação Física é uma tradição, nada tem de linguagem científica. O chamado

Livro de Manuel Sérgio — Foto: Reprodução

O senhor entende que ainda existe muito preconceito, no universo do futebol, contra a inclusão da Filosofia, da Psicologia e até da sua Motricidade Humana nos cursos superiores de Esportes e nos cursos de treinadores de futebol? Sou dos que entendo que uma ciência nasce de um “corte epistemológico”, ou de um processo que envolve ruptura, em relação ao passado, e projeto como tentativa de construção do futuro. Trata-se como de um protesto contra um passado onde muitos desinformados se encontram instalados. No entanto, para mim, uma ciência, se quer viver, não deve afrouxar a sua divergência com muito do que a cerca. Por isso, Lacan proclamou: “Não há compromisso possível, entre a psicanálise e a psicologia”. E Lévi-Strauss afirmou: “Não sou sociólogo”.

O que é a motricidade humana? A motricidade humana é, para mim, “o movimento intencional e solidário da transcendência, ou superação”. Com este paradigma, criei uma nova ciência humana, a Ciência da Motricidade Humana, que tem como especialidades o Desporto, o Jogo Desportivo, a Dança, a Ergonomia, a Reabilitação e a Gestão do Desporto. Portanto, como modalidade desportiva, o futebol deverá estudar-se com a metodologia própria das Ciências Humanas. Não há chutos, há pessoas que chutam; não há fintas, há pessoas que fintam; não há remates, há pessoas que rematam. Se eu não conhecer as pessoas que chutam e fintam e rematam, nunca entenderei, nem os chutos, nem as fintas, nem os remates.

O senhor viveu no Brasil e, depois disso, já aqui esteve, inúmeras vezes. Sempre acompanhava com entusiasmo o futebol brasileiro. Percebe uma decadência, em termos de qualidade? Se sim, apontaria os motivos? É preciso saber ser novo, sem sacrificar o que deve haver de permanente. Quando se diz que, geneticamente, o jogador brasileiro é o melhor futebolista do mundo, não deve esquecer-se também que o talento e o génio

são produtos do genético e do adquirido. Do que o homem é e daquilo que deve ser, ou seja, de muito trabalho e conhecimento também. Falta cultura no futebol atual. Principalmente a cultura que é a matriz da cultura do futebol. Reside, aqui, se bem penso, uma certa decadência, em termos de qualidade, no futebol brasileiro e… não só no futebol brasileiro! O futebolista brasileiro precisa de libertar-se de treinadores incompetentes, de empresários sem escrúpulos, de dirigentes sem ética, de uma imprensa não subordinada aos imperativos do “deus-lucro”. Quando esta revolução acontecer, o Brasil voltará a ter, em cada um dos seus “agentes do futebol”, verdadeiros “profissionais do triunfo”. Vivemos hoje uma sociedade aberta, em que as ideias circulam livremente. Mas há valores que se mantêm: a confiança (crítica) no líder; o rigor tecnocientífico de verdadeiros “trabalhadores do conhecimento”, que trabalham numa tarefa comum; o “scouting”, executado por profissionais que saibam descobrir talentos; uma impecável organização, no departamento de futebol e no clube em geral; e a coroar tudo isto: ética, visível nos dirigentes, nos técnicos e nos atletas. Nenhuma revolução triunfa, sem valores que nos singularizam e congregam.

O senhor trabalhou diretamente com o Jorge Jesus, no Benfica, tendo acesso aos treinamentos dele. Esperava que ele obtivesse sucesso tão rapidamente, no Brasil? O Jorge Jesus é, como os brasileiros, um “homem cordial”. Por isso, a comunicação, com os jogadores do Flamengo, não é, com toda a certeza, problema para ele. Depois, ele sabe que é especialista numa nova ciência humana e, porque taticamente é um sábio, e trabalha num clube que lhe dá o que ele propõe – aqui está, se bem penso, a resolução deste problema: porque triunfa o Jorge Jesus, no futebol brasileiro. Mas que os brasileiros não tenham dúvidas: o atual treinador do Flamengo tem uma organização do conhecimento do futebol que merece ser estudada, porque é nova. E que começa na sua prática e no modo inteligente como a organiza. E o Jorge Jesus é líder, sabe ser líder. E tem uma qualidade em que é mestre incomparável: uma excepcional leitura de jogo. Diante de um jogo, ele vê o que a maioria das pessoas não vê. Um clube desportivo deve procurar imitar uma orquestra sinfónica: cada um dos 250 músicos é um especialista de elevado nível (a começar no maestro) mas todos subordinam a sua competência a uma tarefa comum. Desde 1977, no meu livro “A Prática e a Educação Física”, que eu digo: a prática é mais importante do que a teoria, e a teoria só tem valor, se for a teoria de uma determinada prática.

Jorge Jesus, ex-técnico do Flamengo — Foto: André Durão

Um dos seus mais famosos “discípulos”, o José Mourinho, tornou famoso um exemplo sobre métodos de treinamento, no qual cita uma frase sua, que versa sobre um pianista que, para treinar, não corre em volta do piano, mas toca piano… Em primeiro lugar, quero dizer-lhe que aproveito a oportunidade para saudar e agradecer às pessoas que mais futebol me ensinaram, ao longo da minha vida: os treinadores José Maria Pedroto, José Mourinho e Jorge Jesus e o brasileiro João Paulo Medina. Não esqueço ainda o David Monge da Silva (destacado preparador físico e professor universitário português) que me despertou para os principais problemas referentes ao treino desportivo. Acerca da frase de que me fala, ela nasceu-me quando o treino desportivo quase se resumia à preparação física. Eu então dizia aos alunos e aos amigos: “Mas um pianista, quando prepara um concerto, toca piano, não anda às voltas do piano”. Agora diz-se que se joga como se treina. Com outras palavras, há bem 50 anos, que eu quero dizer o mesmo.

O senhor frequentemente cita as relações humanas e a gestão das pessoas como pontos-chave no desempenho de um bom treinador. Ultimamente, no Brasil, os treinadores mais experientes têm sido muito criticados e são chamados de simples “motivadores”, por usarem esses métodos. Um deles é Luiz Felipe Scolari, cuja passagem por Portugal foi marcante. O senhor chegou a conviver com ele? Que pontos do seu trabalho, em Portugal, destacaria? Nunca tive a honra de dialogar com Luiz Felipe Scolari. Tenho a certeza que muito aprenderia com ele. Mas, na “Sociedade do Conhecimento”, que é a nossa, não interessa tanto o que já se fez (embora mereça franca admiração e aplauso incontido) mas o que se tem para fazer. O conhecimento evolui todos os dias e há quem pense que pode treinar, hoje, com o conhecimento de há vinte ou trinta anos. O que se chama, atualmente, conhecimento é a informação que resulta na prática e uma organização é um grupo de pessoas especializadas, que trabalham numa tarefa comum. Só que as informações de hoje não são as mesmas de ontem. E quem as não tem deixa de ser especialista. O conhecimento é simultaneamente muita prática e teoria atualizada.

Se Jorge Jesus teve sucesso retumbante, outro treinador português fracassou, no Brasil, treinando o Cruzeiro: o Paulo Bento. Agora, temos Jesualdo Ferreira enfrentando muitas críticas no Santos. Podemos falar de uma escola de treinadores portugueses, que tenha sido moldada através das suas ideias? De maneira nenhuma. Eu não sei o suficiente de futebol, para dirigir uma escola de futebol. Faço minhas, neste caso, as palavras do grego Sócrates: “Só sei que nada sei”. Sou um idoso que completa 87 anos, no próximo dia 20 de abril e que vejo futebol (se bem me lembro) desde 1939. E fiz amizade com grandes jogadores, com prestigiados treinadores e especialistas no treino desportivo, tanto em Portugal, como no Brasil e em Espanha. Assim eu só penso o que os especialistas fazem. Depois, sou um estudioso e sei o que devo estudar. O que mais me espanta, no futebol, é que a maioria dos treinadores não sabe o que deve estudar, nem sabe com quem dialogar. Acerca do Jesualdo Ferreira, peço aos adeptos do “Santos” que lhe dêem tempo, pois que tenho a certeza que ele organizará o futebol “santista”, a contento de todos. Se os treinadores portugueses se encontram melhor preparados cientificamente que os treinadores doutras nacionalidades? No meu entender, repito-me, estão muito bem preparados humanamente para exercer a sua profissão. E daí os resultados que vêm obtendo, por esse mundo além. O futebol não é técnica tão-só. No futebol, está toda a complexidade humana. Uma lágrima humana, num laboratório, é água e cloreto de sódio. Ora, uma lágrima humanamente não é só isto. É bem mais do que isto. Na Sociedade do Conhecimento, a principal virtude é a humildade. Quem julga que sabe muito, sabe muitíssimo pouco. E, porque julga que sabe muito, não estuda nada. Eu nunca estudo diariamente, com raras exceções, menos de três horas. Sob minha palavra de honra!

Filósofo sugere aos santistas que deem tempo para Jesualdo trabalhar — Foto: Guilherme Dionízio/Estadão Conteúdo

Os métodos de treinamento propostos pelo professor Júlio Garganta, da Universidade do Porto, são bastante apreciados pelos jovens treinadores brasileiros, e ele cita a motricidade humana…

O professor Júlio Garganta é um estudioso que merece o meu maior respeito e muito tem a ensinar-me. O futebol já é, reconhecidamente, uma das expressões do génio do povo brasileiro. Mais uma razão para ser estudado como ciência humana. Aliás, no meu modesto entender, não há ciência que não seja ciência humana, pois que todas são produto da “práxis” humana. Mas o campo epistemológico das ciências humanas não se confunde com o das restantes ciências. As ciências humanas estudam a condição humana, cada qual com a sua problemática específica. Portanto, saber futebol não se resume a falar inglês ou a uma licenciatura em desporto. Saber de futebol é saber liderar o humano, nas várias situações de um jogo de futebol. Não nos devemos esquecer que não há jogos, há pessoas que jogam. Quem estuda o futebol, a partir do concreto; quem tem do futebol um conhecimento objetivo – antes da técnica e da tática, encontra pessoas. Para um treinador de futebol, que já estudou a epistemologia das ciências humanas, chegou, certamente, à conclusão que, num campo de futebol, há uma mistura inextrincável de factos da consciência, de sentimentos e de situações objetivas. Portanto, para uma teoria interpretativa do futebol, a técnica e a tática e a preparação física não bastam.

MANUEL SÉRGIO A BOLA - Para uma nova pedagogia do corpo (artigo de Manuel Sérgio, 336) (Espaço Universidade)

Uma oposição feroz e desgastante a uma ideia de corpo, como raiz, como princípio donde brota o próprio espírito, mostra bem o ostracismo a que se votou uma explicação do ser humano, como uma unidade integral, ou uma totalidade, pois que foi no dualismo de duas substâncias diferentes, corpo(matéria)–alma(espírito), que se descambou, ao longo dos séculos. O dualismo corpo-alma despontou e avançou, na filosofia grega, com Platão (427-347 a.C.), filho de uma das famílias mais ricas e aristocráticas de Atenas. Redigiu, já idoso, os 36 diálogos de que é autor. Neles, a personalidade de Sócrates tem lugar relevante. Basta dizer que o seu nome figura em todos os diálogos platónicos, com exceção das Leis. Entre os escritores de maior valia que, na antiguidade grega, de Sócrates se ocuparam, julgo dever distinguir-se Aristófanes, Xenofonte, Platão e Aristóteles. No Fédon, um dos diálogos, Platão é explícito: “A alma é o que mais semelhança tem com o que é divino, imortal, inteligível, uniforme, indissolúvel”. E, porque a alma e o corpo se fundiram no mesmo ser, “cumpre ao corpo, por natureza sujeitar-se e ser governado e à alma dirigir e dominar”. A ginástica, nos gregos, não significava especial respeito pelo corpo. A saúde mostrava, antes do mais, que o corpo se encontrava em condições ao pleno esplendor da alma. Caso contrário, um corpo débil e anémico tornava-se no empecilho maior à vida superior do espírito. Na Idade Média, o dualismo platónico alma-corpo continuou, através da filosofia de Santo Agostinho (354-430), um dos grandes responsáveis pela elaboração e propagação do cristianismo, desde a Idade Média até aos nossos dias. Demais, o imperador romano Teodósio desferiu o “golpe de misericórdia” na ginástica e no desporto, gregos, quando proibiu a realização das Olimpíadas, em 393. Para ele, o cultivo do corpo podia levar ao esquecimento dos valores da alma. E toda a educação passou a confinar-se a uma tarefa puramente intelectual. No entanto, durante a Idade Média, a Igreja Católica proibiu a dissecação de cadáveres, pois que “o olhar humano não deve fixar-se em regiões que Deus nos ocultou”.

Depois dos gregos, nada surgiu de tão interessante, na história da cultura ocidental, ao desenvolvimento das práticas corporais, como o De humani corporis fabrica, de Andreas Vesalius (1514 - 1564) e De Arte Gymnastica, de Jerónimo Mercurialis (1530-1606). Vesálio ousou desafiar os preconceitos e os hábitos estabelecidos (muitos dos quais se baseavam na obra de Galeno) sem ter sofrido qualquer recriminação ou condenação públicas. Sabe-se também que, “às escondidas”, Leomardo da Vinci (1452-1519) conseguia cadáveres, para os estudos de anatomia, que serviam de base científica às suas obras asrtísticas. A Itália deslumbrava, então, todos os espíritos cultos, com especial relevo para Florença, onde viveram Dante e Petrarca. Os Médicis reuniam à sua volta as inteligências mais brilhantes do seu tempo. Mercurialis publicou, em Veneza, em 1569, o seu De Arte Gymnastica. Trata-se de uma cuidadosa, rigorosa e exaustiva sistematização das fontes antigas, então acessíveis, dos exercícios físicos sistemáticos. Mas foi o dualismo antropológico caretesiano, que percorreu, triunfante, toda a modernidade, chegando mesmo com foros de veracidade, designadamente na medicina e na educação física, até meados do século XX. Hoje, qualquer pessoa, medianamente informada, aceita sem surpresas que, “por mais surpreendente que pareça, a mente existe dentro de um organismo integrado (…). A mente teve primeiro de ocupar-se do corpo, ou nunca teria existido” (António Damásio, O erro de Descartes, Europa-América, Lisboa, p. 18). O dualismo corpoalma, onde o “cogito” é a celebração do espírito e da sua superioridade em relação ao corpo, foi rejeitado, principalmente, pelo panteísmo de Bento de Espinosa (1632-1677), por Maine de Biran (1766-1824), que anuncia já o estatuto subjetivo do corpo próprio, a partir da experiência do movimento, e Maurice MerleauPonty (1908-1961) que nos ensina: “perceber é tornar presente qualquer coisa, com a ajuda do corpo”.

O dualismo antropológico cartesiano foi continuado indelevelmente pelo médico La Mettrie (1709-1751) que fez do animal-máquina de Descartes a inspiração do seu L’homme-machine. Para Descartes, os animais, porque não tinham alma, não passavam de puras máquinas. La Mettrie, neste seu livro, e no livro seguinte, O homem mais do que máquina, advoga a inexistência da alma humana e que os homens eram também simples máquinas, conjuntos de engrenagens, materiais tão-só, sem o complemento de qualquer substância espiritual. La Mettrie foi o médico mais famoso do Iluminismo. E a sua conceção organicista e mecanicista do homem-

máquina foi conhecida pelos homens cultos do seu tempo. E levou, muitos deles, a transformarem-se em afervorados materialistas que assim diziam; “somos máquinas, mas máquinas programadas pela natureza para o exercício da liberdade”. De facto, somos o nosso corpo-máquina e o nosso corpo-máquina é matéria, nada mais do que matéria: aí está o radical fundante da ciência e da filosofia de La Mettrie. No entanto, a sua tese da continuidade entre o homem e o animal está sendo cabalmente confirmada pela biologia hodierna. O genoma da mosca drosófila tem cerca de 15 000 genes, enquanto o genoma humano só tem aproximadamente 30 000. O genoma dos primatas superiores é semelhante ao humano, em mais de 90%. Não se comprovou ainda a tese de La Mettrie de que os papagaios podem, perfeitamente, dialogar com o ser humano, através de uma conversa racional, mas aceita-se que a comunicação homem-gorila é possível. Num ponto havemos de convir com La Mettrie: a dependência da mente, em relação ao cérebro, parece insofismável. Para mim, todavia, há um excesso infinito de ser, na alma. Por isso, dependendo embora do corpo, somos livres! O corpo e o movimento constituem o primeiro momento da vida humana: o sujeito, antes de conhecer, procura e sente e vive, com o seu corpo. Lembro-me, amiúde, da frase de Teilhard de Chardin: “a matéria destila espírito”. Para Kant, a Ginástica é a educação do que, no homem, é natureza. Só que a natureza e o espírito formam, no homem, um todo indecomponível. E assim a matéria destila espírito e o espírito revela-se como a personalização da matéria…

Porque é um “ser de carências”, o ser humano é um “ser práxico”, ou seja, o seu movimento intencional não pode limitar-se unicamente ao desporto e à educação desportiva. Não é difícil acolher a ideia de que o desporto é vida, mas a vida não é desporto tão-só. Não deixando de tecer um comentário de ordem pessoal, mas de incidência pedagógica - sempre que teorizo a ciência da motricidade humana, me indago: se a motricidade é, antes do mais, movimento, quais os tipos de movimento que este paradigma pode albergar? Se bem penso: todos os movimentos humanos, suscetíveis de aprendizagem e que, pela transcendência, obedeçam ao imperativo de Hans Jonas: “Age de tal modo que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana sobre a terra” (Hans Jonas, Le Principe Responsabilité, Cerf, Paris, 1997, p. 37). Assim, nas disciplinas de um curso de motricidade humana, tem de encontrar-se mais do que anátomofisiologia, biomecânica, bioquímica, matemática e algumas das últimas aquisições da tecnologia, pois que, no corpo, são sempre visíveis fatores de ordem cognitiva, afetiva, social, política e religiosa. O ser humano não se esgota na interrogação: corpo ou espírito? – porque é corpo e espírito e natureza e sociedade e… movimento imparável de transcendência! Porque já trabalhei num departamento de futebol altamente competitivo; porque mereci a confiança e, nalguns casos, até a amizade de alguns treinadores desportivos – posso adiantar, sem receio, que reduzir a motricidade humana (e até a chamada “educação física”) à aprendizagem do desporto significa que nada se entendeu ainda sobre o significado do “corpo em ato”, do movimento humano e do movimento intencional da transcendência. Quais os grandes objetivos da ciência da motricidade humana? Criar um paradigma novo que fundamente o estudo do movimento humano e da intencionalidade e da transcendência que, nesse movimento, se descobrem; que se estude também as aprendizagens motoras, em quatro dimensões: a físico-biológica, a cognitiva, a sentimental e a axiológica.

A necessária teoria integradora encontramo-la na ciência da motricidade humana e as aprendizagens,que dela necessariamente decorrem, nas problemáticas educacionais e educativas, presentes no ato de desvelar conhecimentos e não meras informações. Entrámos na Sociedade do Conhecimento. Passámos de um saber fragmentado, em migalhas, pulverizado num mundo de especialidades, a um mundo holístico ou sistémico , mas onde se ignora aquela interioridade donde poderá divisar-se o sentido da vida. Se a “noosfera” (e agora ressoo Teilhard de Chardin) se apronta para ser uma “noogénese”, ou seja, um processo de crescimento espiritual, aliás o que resta da Evolução - o próprio corpo e toda a motricidade humana deverão surgir como um dos aspetos da humanização progressiva da Humanidade. “Muitos autores vêem hoje, com júbilo, chegar o momento abençoado do tempo pós-biológico (Moravec) ou pós-evolucionista (Stelarc), pósorgânico, etc., em suma, do tempo do fim do corpo, este sendo um artefato passível de ser danificado da história humana, que a genética, a robótica ou a informática devem conseguir reformar ou eliminar” (David Le Breton, Adeus ao Corpo, Papirus, Campinas, 1999, p. 16). Mostro-me atónito, quando vejo tanta gente, de formação universitária, ter cedido à moda “de certas correntes da Inteligência Artificial, que negam qualquer importância ao corpo, para tornar o homem um puro espírito-computador, o body builder reafirma, com o mesmo radicalismo (ou ingenuidade), o dualismo entre o corpo e o espírito, apostando no primeiro como uma forma de resistência simbólica, pararestaurar ou construir um sentimento de identidade ameaçada. Transforma

o corpo em uma espécie de máquina, versão viva do andróide” (pp. 40/41). Eu sei que a nossa visão de algo, de qualquer fenómeno, não passa de simples opinião, pois que sou um “ser de carências”, um ser de limites. Mas, porque situado entre o finito e o infinito,, sentindo um anseio imparável de transcendência, ou superação. A dialética finito-infinito clarifica-me a desproporção entre o que sou e o que desejo ser.

Mas, tudo isto, sem prescindir do corpo, porque é pelo corpo que eu percebo e me percebo e percebo este anseio de transcendência das minhas carências… rumo a um Absoluto invisível mas evidente. Portanto, é pelo corpo e em movimento porque, pela transcendência somos, em todos os momentos, uma tarefa a cumprir, que eu tomo consciência que não sou objeto da História, mas sujeito criador e construtor da própria História, que não sou reflexo do que me rodeia, mas projeto de um mundo possível – que eu encontro afinal o sentido da vida! “É este homem que se define como um ser de projeto, um ser de possibilidades e explorador de possibilidadses e sentidos e que, como tal, não se encerra na sua individualidade, mas abre-se ao devir e à alteridade, isto é, a outros tempos e a outros homens” (Eunice Nascimento , “A Dimensão FilosóficaAntropológica da Utopia em Paul Ricoeur – repercussões na filosofia da educação”, in AA VV, Da Ética à Utopia em Educação, Edições Afrontamento, Porto, 2004, pp. 204 ss.). José María Cagigal (1928-1983), que foi diretor do INEF de Madrid e é hoje nome cimeiro da história da educação física, tentou, no seu tempo, uma nova teoria da educação física, a qual fez do seguinte princípio o seu principal fundamento: “En contra de la línea educativa tradicional, considera al hombre corporal como la concepción más integral del hombre” (in AA VV, Investigación Epistemológica – el campo disciplinar en Educación Física, Consejo Superior de Deportes, Madrid, 1997, p. 61). A redução do corpo a mera virtualidade, ou a máquina tão-só, deixa a educação física, deixa a motricidade humana, sem uma perspetiva de fundamentação. Quando a ciência, ou a filosofia, perguntam pela motricidade humana e as especialidades que a compõem, perguntam inevitavelmente pelo corpo. Não conheço outro fator de individuação. A exploração do possível, pela transcendência, nega toda e qualquer espécie de determinismo. É o próprio corpo a dizê-lo…

MANUEL SÉRGIO A BOLA - A Metamorfose (artigo de Manuel Sérgio, 361) (Espaço Universidade)

A poesia pretende, à força de palavras conhecidas, dar ao leitor esse ser humano desconhecido que as ciências tidas por exatas não conseguem vislumbrar. Por isso, porque considero genial este poema de Herberto Helder, começo precisamente com um poema: “Era uma vez um pintor que tinha um aquário e, dentro do aquário, um peixe encarnado. Vivia o peixe tranquilamente acompanhado pela sua cor encarnada, quando a certa altura começou a tornar-se negro. A partir – digamos – de dentro. Era um nó negro, por detrás da cor vermelha e que, insidioso, se desenvolvia para fora. Alastrando-se e tomando conta de todo o peixe. Por fora do aquário, o pintor assistia surpreendido à chegada do novo peixe.

O problema do artista era este: obrigado a interromper o quadro que pintava e onde estava a aparecer o vermelho do seu peixe, não sabia agora o que fazer da cor preta que o peixe lhe ensinava. Assim, os elementos do problema constituíam-se na própria observação dos factos e punham-se por uma ordem, a saber: 1º - peixe, cor vermelha, pintor, em que a cor vermelha era o nexo estabelecido entre o peixe e o quadro, através do pintor; 2º - peixe, cor preta, pintor, em que a cor preta formava a insídia do real e abria um abismo na primitiva fidelidade do pintor.

Ao meditar acerca das razões porque o peixe mudara de cor precisamente na hora em que o pintor assentava na sua fidelidade, ele pensou que, lá de dentro do aquário, o peixe, realizando o seu número de prestidigitação, pretendia fazer notar que existia apenas uma lei que abrange tanto o mundo das coisas como o da imaginação. Essa lei seria a metamorfose. Compreendida a nova espécie de fidelidade, o artista pintou na sua tela um peixe amarelo” (Do Mundo, Livraria Aleph, De Google).

A crise que atravessa a racionalidade galilaico-cartesiana e os novos paradigmas emergentes são prova evidente de que o real está em permanente metamorfose. Demais, com a hermenêutica, “o ser que pode ser compreendido é linguagem” (H.G. Gadamer, Verdad y Metodo, Ediciones Sígueme, Salamanca, 1988). De facto, se “a linguagem é a casa do ser”, como Heidegger o repetia, é a linguagem a dizer-nos o que pensava o saber aristotélico-tomista da Idade Média e o que a modernidade, com Galileu, Descartes, Newton e Kant, julgava eterno e o que a pós-modernidade entende como Verdade. Ora, a pós-modernidade desvela-se, revelase, como “idade hermenêutica da razão” e portanto onde se “labora na pressuposição de que, rigorosamente, não há conhecimento (perfeitamente) objetivo. Apenas há interpretação de linguagens e compreensão do mundo” (Jorge Coutinho, Filosofia do Conhecimento, Universidade Católica Editora, 2003, pp. 169-170). Uma mulher, até à década de 50 do século XX, quase nada podia esperar da vida, depois de ter cumprido o seu destino “inalienável”(?) de parir e educar os filhos e ser um modelo obediente aos apetites do seu marido (nada mais!) que, entretanto, cevava os dentes todos na maçã pecadora. A própria religião cristã, com uma hierarquia masculina e uma fé institucionalizada em sociedades patriarcais, chegava às mulheres idealizada na Virgem Maria que, por ser Virgem, impossibilitava um modelo feminino de acesso generalizado às restantes mulheres. Acompanho pela televisão o mundial de voleibol das equipas brasileiras (feminina e masculina) e delicio-me com as suas exibições, designadamente as da equipa feminina. As qualidades físicas e intelectuais daquelas moças é sinal certo e seguro de uma igualdade radical de género, que já se pratica no Brasil e afinal em toda a América Latina. E, no Brasil que eu conheço, o facto de a própria teologia não deixar de pôr a nu o que de reacionário e fascizante se infiltrou na mensagem dalgumas igrejas. A Literatura Ocidental cunhou, muito justamente, o provérbio: “Vérité au deçà, mensonge ai dela des Pyrénnées”. Quando comecei a trabalhar na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp-Brasil), pude dialogar, inúmeras vezes, com o Rubem Alves, uma das figuras maiores da “teologia da libertação” e um escritor e pedagogo brasileiro de indiscutível mérito. Relembro o que, um dia, me disse; “Junto à cruz de Jesus Cristo, nos momentos derradeiros da sua crucifixão e morte, só mulheres se encontravam junto d’Ele. Terá sido por acaso?”.

Maria Luísa Ribeiro Ferreira, professora catedrática aposentada da Faculdade de Letras de Lisboa, apresenta, por contraste, a morte de Sócrates, onde as mulheres foram compulsivamente expulsas de assistir à agonia do mestre (cfr. Maria Luísa Ribeiro Ferreira. “A subversão de uma mundividência”, in Manuela Silva e Fernanda Henriques, Teologia e Género, ariadne editora, Coimbra, 2006, pp. 193 ss.). Enfim, Jesus Cristo, a grande “Boa Nova”, na história da humanidade! Mas, na sociedade e portanto no desporto, que todos porfiamos em construir, o economicismo da alta competição deve ser diagnosticado e o hegemonismo e o dirigismo e as tentações elitistas devem ser desmascarados. Vivemos um momento propício de relembrar o pensamento de Maurice Druon, no livro, de que é autor, La parole et le pouvoir: “A grandeza reconhecida da Democracia está em deixar em liberdade os seus eventuais assassinos. A estupidez começa quando ela, ainda por cima, lhes paga o punhal” (p. 369). O futuro do desporto nacional menos se decreta do que se merece e se constrói solidariamente. Prepara-se, com muita pedagogia e persuasão na Família, na Escola, na Comunicação Social, nos Clubes, no Comité Olímpico, na Universidade, nas Associações e Federações. As grandes prioridades são conhecidas. Mas uma guerrilha verbal alienante, onde as palavras são verdadeiras armas de arremesso e ao serviço do radicalismo saloio de certas pessoas, pode escondê-las ou mudar-lhes a cor, como acontece com o peixe do poema de Herberto Helder. Efetivamente, a opinião pública portuguesa, tendo sido contemplada com uma “explosão de informação”, depois da Revolução dos Cravos, no que ao desporto diz respeito são poucos os que o pensam e dele sabem fazer um problema nacional que se põe hoje ao nosso país”. O Desporto é um caso de Cultura e de Educação e de Saúde (e mais itens poderia acrescentar). Mas por problemas técnico e táticos? Acima do mais, porque não é possível falar-se em Desporto, sem recorrer a uma axiologia dos valores. Não há ciência humana que não comporte uma relação iniludível com a ética e a moral. Mesmo ao nível do conhecimento…

MANUEL SÉRGIO A BOLA - Para uma ética pós-moderna do futebol (artigo de Manuel Sérgio, 297) (Ética no Desporto)

Correndo embora uma aragem de inquietação nesta (quase) Repóblica dos Corvos (lembram-se d’A República dos Corvos do José Cardoso Pires?), desde a Educação e a Saúde até às Forças Armadas e à Segurança Social, no futebol corre dinheiro aos milhões, o que me deixa tenso e retenso de inquietação e surpresa. Talvez só a mim e a muitos poucos mais, pois que não oiço um tropel de vozes guturais, trazidas pelo espanto, ou até pela indignação, a questionar por que, nesta Europa cristã, há tanto dinheiro para umas coisas e falta para outras.

Se aqui estivesse um dos corvos de São Vicente, remataria sempre do mesmo modo: “Deixe lá, isto já não tem conserto e, mais dia menos dia, todos os males da gente têm o mesmo fim”. Mas eu, como o Santo António (não quero comparar-me, em capacidade retórica, a este santo que, excetuando o padre António Vieira, é incomparável na história da oratória nacional) – mas, como ia dizendo, eu, como o Santo António, não sou pessoa, para deixar azedar, dentro de mim, o que tenho para dizer. Procuro ser educado, polido, cortês, mas não escondo o acordo ou o desacordo, diante dos “vencedores” que fazem a História. Até no tempo do “Dinossauro Excelentíssimo” o fiz, mas com um cuidado tal que chego a ter vergonha das minhas infidelidades à ideologia “estadonovista”. No entanto, é da minha autoria o primeiro livro, editado pela Direcão-Geral dos Desportos, em Junho de 1974, depois da Revolução dos Cravos portanto, intitulado Para uma nova dimensão do desporto onde reuni textos escritos por mim, entre 1964 e 1974. O livro jazia escondido, numa gaveta da secretária do diretor-geral e esclarecia, no prefácio, que “o título Para uma nova dimensão do desporto quer dar o tom a uma iniludível maneira de ver o desporto (…) como prática medial ao serviço do Homem. Visão, por isso, tributária de uma tomada de posição do autor que, em primeiro lugar, significa ruptura com o complexo ideológico que informa o desporto português”… Max Weber incitava os seus alunos e os seus inúmeros leitores, em Le Savant et le Politique, a “estarmos à altura do quotidiano”. Ora, o que para mim me parece mais evidente, no mundo de hoje, é a relativização dos valores. E porquê? Faço minhas as palavras de Miguel Real, na sua obra Eduardo Lourenço e a Cultura Portuguesa (Quidnovi, Maio de 2008), porque “1. Nada de exterior e transcendente (Deus, Sociedade, Humanidade, Razão, História, Inconsciente, Classe Social…) é superior e determinante, face à consciência singular do sujeito. 2. Nenhum valor em si e nenhuma escala axiológica encontram legitimação universal, fora da sua instauração epocal, social e histórica, ou seja, civilizacional e, por isso, uma consciência individual pode ou não segui-los, sendo sempre legítima, seja seguindo-os, seja não os seguindo. 3. Nenhum código linguístico e nenhuma substância de linguagem podem dar conta da realidade em si, da sua essência, senão fragmentaria e incompletamente; apenas uma fortíssima linguagem emotiva, exterior à razão, como a poesia, subvertendo as conexões semânticas da língua, nos pode aproximar e revelar a essência do homem e do mundo. 4. Nenhum corpo doutrinal (Filosofia, Teologia, Religião, Ciência, Ideologia…) é intrinsecamente capaz de espelhar com realidade o movimento e a substância do Ser. 5. Finalmente, nenhuma acção colectiva ou individual, nenhuma palavra colectiva ou individual são capazes de preencher, senão ilusória e efemeramente, o vazio de absoluto que se instaurou no coração do homem, nestes momentos terminais de uma civilização que, tendo conhecido o paraíso da crença inocente, se oferece hoje a si próprio o inferno de uma aceleração histórica, tão feita de presente fugaz quanto de um futuro sem sentido” (pp, 377/8). O relativismo axiológico não significa relativismo epistemológico, mas implantação de um fundo agnosticismo na mais funda raiz do nosso ser. Um relativismo onde o “espírito de geometria” prevalece sobre o “espírito de finura”. Onde a quantidade reina e a demagogia se perfila como um dos fatores essenciais do sucesso do relativismo axiológico.

Aprende-se, na fenomenologia: “Toda a consciência é consciência de alguma coisa”. Ou seja, a consciência procura algo ou alguém que não é ela e, portanto lhe é transcendente (no sentido de exterior). Assim, a consciência define-se como intencionalidade. Por outras palavras: qualquer coisa, qualquer pessoa são “fenómenos” para a consciência. O lema do existencialismo: “a existência precede a essência” é assim explicado, precisado por Sartre: ”significa que o homem primeiro existe, descobre-se, surge no mundo e só

depois se define. O homem (…) primeiro não é nada. Será apenas depois e será exatamente o que tiver feito de si próprio”. O sujeito sartriano não possui essência, não possui natureza, todo o seu ser radica na ação, na práxis, na criação. Se bem penso, o espaço onde se situa o pensamento de Sartre é o ético ou moral. Vejamos o que ele nos diz, no L’Existentialisme est un Humanisme: “O homem será, antes do mais, aquilo que projetou ser”. E recorrendo ainda ao mesmo livro: portanto, “o homem está condenado a ser livre”. O ser humano é livre e, se é livre, é responsável. Para mim, em Sartre, o ser humano é um sujeito eminentemente ético, por esta razão óbvia: porque se faz, fazendo. Na motricidade humana, que eu defino como “o movimento intencional e solidário da transcendência”, também o atleta, o bailarino, etc. se fazem, fazendo. E, pela transcendência, são projetos que assumem uma situação, para superá-la, ininterruptamente, até ao Absoluto… sempre desejado e sempre inalcançável! Toda a prática desportiva, designadamente a altamente competitiva, vive em êxtase do possível. Conheci um treinador de futebol que me dizia, com as pupilas a destilarem gotas de malícia: “Um jogador profissional de futebol tem de tê-los no sítio. Caso contrário, tem de mudar de profissão”. E sublinhava: “A coragem é das primeiras qualidades, na alta competição. Vê o Maradona? Faz coisas lindas com a bola. Mas leva porrada e não desiste e não se atemoriza. Sem coragem, ele não faria a maioria dos golos que faz”. Já aqui lembrei a teoria dos três infinitos de Teilhard de Chardin: existe o infinitamente grande dos espaços siderais. Diante deles, cada um de nós nem um grão de areia parece. Mas também existe o infinitamente pequeno dos micro-organismos, que só máquinas potentíssimas podem descortinar. Mas, além de tudo isto, uma outra grandeza se descobre: o infinitamente complexo da consciência humana, com uma nobreza e uma beleza e uma grandeza moral inimagináveis. “Um único ato de amor, notava, com argúcia, Blaise Pascal, vale mais que o universo físico inteiro”. E eu, na sequência de Pascal e de Teilhard de Chardin, costumo dizer: “vale mais uma lágrima humana do que todas as taças e todos os campeonatos do mundo”. Oxalá João Félix aprenda a ser mais homem, no seu novo clube, o Atlético de Madrid, que dele mais não quer do que fazer dele um grande jogador de futebol. Diego Pablo Simeone, o treinador dos colchoneros, afirmou em entrevista à Imprensa: “Historicamente, o Atlético é uma equipa que compra jogadores jovens, para evoluírem. Como aconteceu com o Oblak que, quando chegou, não era o jogador que é hoje. Do João Félix esperamos que seja um rapaz com talento e que possa absorver as nossas ideias. Estamos a trabalhar, no seio do corpo técnico, para criar, para ele, as situações necessárias à sua evolução como jogador de futebol”. No entanto, também de sólida e solidária afetividade é demasiado importante, na evolução de um jogador profissional de futebol, para ser esquecida. Concordo que o futebol seja, para algumas pessoas, cada vez mais, um jogo de números, centrados que estão na análise estatística. Mas nem o futebol (nem o desporto) é matemática tão-só. O Messi é um exemplo a ponderar. “Parece incrível que, 132 jogos depois, Messi continue sem encontrar lugar na seleção” (Valdano, in A Bola, de 2019/6/22). Por falta de tecnologia, ou de ciência físico-matemática, ou de números?... O ser humano distingue-se, pela sua qualidade. Quantitativamente, é um “bicho fraquinho”. Manuel Sérgio é professor catedrático da Faculdade de Motricidade Humana e Provedor para a Ética no Desporto

CAROL HERTEL NO CAMPEONATO ITALIANO DE ÁGUAS ABERTAS, NA CIDADE DE PIOMBINO, NA ITÁLIA, NO MAR MEDITERRÂNEO.

Nossa representante, a atleta Carol Hertel2, da equipe ATLEF/NINA foi 3º lugar absoluto na competição, nadando 25km em 6 horas e 20 minutos de prova. Aos 20 anos, foi a primeira vez que Carol nadou essa distância em competições. O Campeonato Italiano de Águas Abertas em disputa desde o dia 14 de junho teve as provas de 2,5, 5, 10 e 25 quilômetros.

Patrocinada da Equatorial Maranhão, por meio da Lei de Incentivo ao Esporte, Carol e outros três atletas fazem parte do Projeto Nado Olímpico, sob o comando do treinador Alexandre Nina.

Nos últimos 2 anos a atleta apresentou uma enorme evolução, se configurando na líder do ranking nacional, e consequentemente, o maior destaque do Estado.

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