Leidsche Rijn: A busca da Cidade Ideal Das utopias urbanas ao planejamento urbano contemporâneo
Aluna: Letícia P dos P Claro Orientador: Prof. Dr. J.R. Beaumont Faculty of Spatial Sciences - University of Groningen Faculdade de Arquitetura e Urbanistmo -Universidade de Brasília
Setembro 2013 | Novembro 2014
Leidsche Rijn: A busca da Cidade Ideal Das utopias urbanas ao planejamento urbano contemporâneo
Aluna: Letícia Pacheco dos Passos Claro Orientador: Prof. Dr. J.R. Beaumont Pesquisa original em Inglês, título “Leidsche Rijn: the search of the Ideal City: from urban utopias to contemporary planning” – Faculty of Spatial Sciences, University of Groningen, Holanda. Setembro de 2013. Tradução e adaptação: Novembro de 2014. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – Universidade de Brasília 1
APRESENTAÇÃO Brasília é única por seus eixos ordenadores, suas escalas e setores. Para uma pessoa nascida e criada nessa cidade, entrar em contato com qualquer outra pode ser no mínimo estranho. A experiência de morar em outra cidade e visitar sozinha outros lugares me abriu os horizontes e, pela primeira vez, enfrentei uma realidade diferente. Espaços compartilhados, parques e praças, avenidas humanizadas com grandes calçadas sombreadas, cidades com foco no transporte pela bicicleta abriram meus olhos para as diferentes possibilidades do espaço, diferentes culturas e, principalmente diferentes alternativas para o planejamento urbano. Essas novas visões me fizeram pensar diversas vezes em uma Brasília melhor, e esse foi o ponto de partida para a elaboração dessa pesquisa. Acredito que o ser humano em geral é inquieto e está em constante transformação, e dentre o nosso leque de ações, nossa casa e o lugar em que vivemos fazem parte dessas transformações.
Figura 1 - Epaços compartilhados na Holanda. Fonte: knowledge.allianz.com / Separação dos fluxos de carros e bicicletas, a via de carros se eleva acida da ciclovia. Fonte: Fietsberaad NL / Paseo de Gracia, Barcelona. Fonte: knowledge.allianz.com / Parque ao longo do rio em Madri. Fonte: arquivo pessoal.
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Sempre buscamos o melhor, o ideal e o modelo perfeito. É impressionante como o ser humano é obcecado pela organização, planejamento, mapeamento e controle da natureza e das coisas ao redor.
Figura 2 - Berlim (E) e Nova Iorque (D) por Armelle Caron. Fonte: http://www.armellecaron.fr
A arte gráfica de Armelle Caron exemplifica muito bem essa necessidade de organizar e controlar o espaço. Tomando como base as sombras dos quarteirões das cidades, ela organiza, em ordem de tamanho e forma, os quarteirões de cidades como Nova Iorque e Berlim. A partir dessas experiências, comecei a minha viagem pelas utopias e cidades ideais, estudando um pouco aquelas obsessões que tiveram a coragem de sair do papel e influenciar séculos de planejamento urbano.
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SUMÁRIO Leidsche Rijn: A busca da Cidade Ideal.......................................................................................................................................................... 1 APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................................................................................. 2 INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................................................................. 6 METODOLOGIA .............................................................................................................................................................................................. 9 PARTE I .......................................................................................................................................................................................................... 12 Utopias ...................................................................................................................................................................................................... 13 Cidades Novas .......................................................................................................................................................................................... 15 Utopias Modernas .................................................................................................................................................................................... 17 1.
A Cidade Jardim ............................................................................................................................................................................ 17
2.
Le Corbusier e o Movimento Moderno ....................................................................................................................................... 18
3.
Jan Gehl, Susan Fainstain e planejamento contemporâneo ...................................................................................................... 23
PARTE II......................................................................................................................................................................................................... 27 Montando o contexto do planejamento urbano holandês ................................................................................................................... 27 1.
Randstad e o Green Heart............................................................................................................................................................. 27
2.
Groeikern: a Cidade Nova holandesa ........................................................................................................................................... 28
3.
A iniciativa do programa VINEX ................................................................................................................................................... 30 4
O plano de Leidsche Rijn .......................................................................................................................................................................... 35 Visão geral................................................................................................................................................................................................. 46 Pedalando em Leidsche Rijn – uma experiência pessoal ....................................................................................................................... 49 Os resultados da política e planejamento do VINEX .............................................................................................................................. 54 CONCLUSÕES ............................................................................................................................................................................................... 63 BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................................................................................................. 69
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INTRODUÇÃO “Como é o lugar que imaginamos viver o resto das nossas vidas?” Essa é uma pergunta que o ser humano constantemente se questiona e busca respostas. Porém, antes de dar um salto para a imagem do futuro é importante mergulhar no passado, e, de acordo com Lewis Mumford (1973), é necessário primeiramente responder questões como “O que é a cidade?”; “Como a cidade surgiu?” e “Quais as funções de uma cidade?”. O momento que o ser humano começar a buscar essas respostas será possível entender o passado e imaginar o futuro. Os conceitos que hoje são considerados como avançados e progressistas são consequências de um pensamento crítico do passado (MUMFORD, 1973). As cidades existentes hoje sejam antigas, novas, renovadas ou reestruturadas, são resultados de vários debates curiosos e incansáveis sobre a melhor maneira de viver em sociedade. Trevisan (2009) aponta a cidade ideal como símbolo da busca da felicidade que o ser humano faz desde os tempos bíblicos, expressa pela terra prometida do Éden. A ideia da sociedade perfeita sempre tocou a humanidade e ocupou a mente de filósofos, escritores e historiadores. De acordo com o escritor francês Anatole France (in TREVISAN, 2009), sem as utopias a humanidade estaria ainda vivendo nas cavernas; os utopistas foram responsáveis por moldar as cidades de hoje.
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Os utopistas começaram a projetar diferentes espaços de maneira a desafiar os modelos existentes e permitiram que a imaginação provocasse a realidade e explorasse diferentes possibilidades. De um lado esse modelo provocativo pôde até revelar fracassos imaginativos de maneira construtiva, apontando suas limitações e restrições (GREGORY, JOHNNSTON et al. , 2009). As experiências de imaginar a cidade ideal guiam a sociedade e principalmente os planejadores a questões de como essas tentativas levaram às cidades de hoje ou como a busca pelo design perfeito levou os utopistas a formularem um novo habitat e consequentemente uma nova cidade. Criticadas ou apreciadas, utópicas, radicais ou inovadoras essas ideias tomaram a iniciativa de repensar a cidade caótica planejando de acordo com as necessidades impostas pela sociedade e pelo contexto histórico; isso foi a razão fermentante para as renovações urbanas como, por exemplo, o plano de Haussmann para Paris e as Cidades Novas inglesas. Projetos modernistas também tiveram um papel importante no questionamento do habitat que o ser humano vivia; esse movimento trouxe o conceito da escala humana para seus projetos e a racionalização e organização do espaço na cidade. O abismo entre o discurso e a realidade desses projetos fomentou novas discussões desde Jane Jacobs em 1961 até Jan Gehl e Susan Fainstain nos dias de hoje, que deram novos rumos ao planejamento e concepção das cidades contemporâneas.
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Utrecht é uma cidade da conurbação urbana holandesa chamada Randstad, essa é também a área de maior densidade populacional do país. Em resposta ao crescimento da conurbação nas últimas décadas, a política de planejamento holandês adotou o Programa VINEX, de expansão das cidades pela construção de novos bairros, uma ideia reformulada das Cidades Novas holandesas. Em Utrecht, especificamente, um novo bairro foi planejado: Leidsche Rijn. Será Leidsche Rijn o modelo de cidade ideal concebido a partir de séculos de utopias? Quais as consequências do desenho e apropriação do espaço dessa busca pelo ideal? Questões como essas são levantadas e buscam explicações nessa pesquisa. Embarcando nas viagens das utopias e das Cidades Novas, dos debates urbanísticos do passado e presente, Leidsche Rijn é exposta com objetivo de trazer um entendimento mais próximo da busca da cidade ideal e as consequências no seu contexto.
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METODOLOGIA Problema de pesquisa Para a fundação de uma nova vida urbana é primeiramente necessário entender o passado: Utopias e Cidades Ideais deram forma às cidades novas de hoje. A incansável busca da cidade ideal é a engrenagem que move as teorias e práticas de planejamento urbano. Portanto, a problemática dessa pesquisa é explorar desde as utopias aos debates contemporâneos e como essas ideias foram traduzidas para a realidade expondo Leidsche Rijn como a concretização do pensamento da cidade ideal para seu contexto e ainda analisar as consequências dessa busca na estrutura física da cidade. Metas da pesquisa 1. Explorar como as utopias motivaram os principais paradigmas urbanos: Cidades Novas, projetos modernistas e Cidades para Pessoas. 2. Investigar a inter-relação dos conceitos: Cidade Jardim, Cidade para 3 Milhões de Habitantes, Cidades Novas, Anti-Cidade, Cidade Justa e Cidades para Pessoas e como os conceitos se revelam em Leidsche Rijn 3. Investigar as contradições entre o “Fim da Utopia” e as cidades novas de hoje, analisando a partir do estudo de caso. 9
4. Analisar o desenho urbano e as consequências da cidade ideal em Leidsche Rijn. Perguntas de pesquisa 1. Como a incansável busca pela cidade ideal criou novos paradigmas que transformaram o pensar urbano e que culminaram em Leidsche Rijn? 2. Leidsche Rijn é a fórmula perfeita de anos de busca pelo ideal? 3. Quais as consequências dessa busca pelo ideal na realidade das cidades, especificamente em Leidsche Rijn? Design da pesquisa A pesquisa será dividida em duas partes principais, a primeira será a construção da base teórica e a segunda a análise do estudo de caso a partir do embasamento da primeira parte. Parte I – Embasamento teórico 1. Estudo da utopia no seu contexto maior aplicado ao planejamento urbano e no seu contexto específico e filosófico a partir das capacidades da mente humana. 2. Explorar o processo iniciado pelas utopias e as influencias dessas no planejamento urbano, expondo a Cidade Jardim de Ebenezer Howard e o movimento das Cidades Novas na Europa. 10
3. Dar continuidade à linha do tempo para o debate contemporâneo expondo as principais críticas ao Movimento Moderno e a reação das Cidades para Pessoas e Cidade Justa. Parte II – Estudo de Caso 1. Montar o contexto da conurbação holandesa do Randstad e do Green Heart para explicar o processo de tomada de decisão especificamente após a Segunda Guerra Mundial. 2. Explorar conceitos relevantes apontados no embasamento teórico e aplicados ao contexto holandês. 3. Apresentar Leidsche Rijn a partir das ideias do Programa VINEX. 4. Comparar o ideal do projeto e a realidade apontando suas principais críticas. E, finalmente, compilar teoria e prática em uma análise crítica do planejamento urbano contemporâneo baseado no espírito incansável do ser humano em tentar controlar, planejar e prever a existência humana manipulando o espaço.
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PARTE I Existem cinquenta e quatro cidades na ilha, todas extensas e bem construídas: as maneiras, costumes e leis são as mesmas, e todas são inventadas da mesmo modo o qual o solo sobre eles permitirá – Utopia, Tomas Morus, tradução adaptada.
No decorrer da história a ideia da cidade perfeita sempre esteve na mente das pessoas. Romantizadas na literatura, essas criações foram também responsáveis por soluções urbanas reais, elas são cidades-conceito, imaginadas com a intenção de provocar mudanças em uma determinada realidade (TREVISAN, 2009). O espírito curioso e incansável dos seres humanos criou utopias e cidades ideais; as pessoas começaram a questionar o lugar o qual viviam e propor soluções melhores, não somente para a cidade, mas para a sociedade e para a estrutura política. Porém, antes de mergulhar nas grandes possibilidades da cidade-sonho, as utopias e o potencial da mente humana devem ser entendidos.
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Figura 3 - A ilha Utopia de Tomas Morus. Fonte: wikipedia.org
Utopias O que é utopia? A primeira resposta para essa pergunta pode ser encontrada em qualquer literatura sobre o assunto. O termo data do século XVI, quando Tomas Morus em um jogo semântico, tomou duas palavras gregas com som de “u”, eu (bom) e ou (não) e uniu a topos (lugar), criando uma palavra ambígua que pode significar o “bom lugar” e ao mesmo tempo “a ausência de lugar” (GOLD, 2008). Para o Dicionário de Geografia Humana (GREGORY, JOHNNSTON et al. , 2009) o termo utopia se refere a uma sociedade e Estado ideais os quais os problemas foram transcendidos; utopia é um mundo imaginário em um tempo diferente do presente. O dicionário também diz que o termo está ligado ao poder do espaço em moldar a atividade humana de maneira que desafia e “desfamiliariza” um modelo existente e dá liberdade à imaginação para fluir e explorar jeitos alternativos de viver e agir. Porém, essa definição falta um personagem: o sujeito da ação. Para Mumford (1962), utopia é de fato um nome que vem sendo usado há vários anos significando irreal e impossível. Mas para ele, utopia é a razão na qual as pessoas toleram o mundo; o sonho que elas têm hoje é a meta e talvez a realização de amanhã. As pessoas andam com os pés no chão, mas as mentes no ar (MUMFORD, 1962), ou seja, ao mesmo tempo em que as pessoas estão vivendo a realidade e o presente, suas mentes estão constantemente imaginando algo diferente. Dessa 13
forma só é possível ter acesso a metade da história da humanidade. A parte acessível é o mundo material, o qual as pessoas vivem e o qual o geografo físico trabalha. Para Mumford (1962), o motivo que faz a história humana imprevisível é a existência de dois mundos, o interior e o exterior, dentro e fora da mente humana. No mundo das ideias repousam as utopias, mecanismos de escape a também a imaginação de uma realidade melhor. Mumford (1962) aponta a necessidade das pessoas de um refúgio e escape da realidade. Tomando como base as utopias de escape, os pensamentos convergem para utopias de reconstrução o que significa dizer que as pessoas transcendem as pequenas e pontuais ideias para algo real, que pode ser aplicado à vida em sociedade. E é dessa maneira que as utopias urbanas são criadas e transformadas também nas cidades conhecidas hoje.
Figura 4 - Esquema das utopias de escape convergindo para as utopias de reconstrução. Fonte: arquivo pessoal.
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As críticas e insatisfações com os sistemas social, político e econômico correntes criaram utopias. Porém, a nova perspectiva de planejamento fez surgir o termo “o fim da utopia” que, de acordo com David Pinder (2002), é resultado do ceticismo do pensamento urbano contemporâneo devido, principalmente, ao fracasso do Movimento Moderno. Pinder também aponta as consequências de um “colapso imaginativo”, pois, de acordo com ele, as cidades são espaços reais e imaginários formadas por sonhos, desejos, medos e vontades conscientes e inconscientes. E ainda, o pensamento utópico atuou e atua influenciando o planejamento urbano e alterando a paisagem, como ocorreu, por exemplo, no projeto das Cidades Novas.
Cidades Novas Cidade planejada em uma área que previamente faltava assentamento urbano substancial. Tradução adaptada – (GREGORY, JOHNNSTON et al. , 2009) Todas as cidades foram um dia novas (OSBORN & WHITTICH in TREVISAN, 2009), em algum momento do passado, todas as cidades existentes foram criadas baseadas em circunstâncias específicas. Isso significa que o termo Cidade Nova é um atributo temporal, diretamente ligado às origens dessas cidades (TREVISAN, 2009). Portando, para entender 15
uma Cidade Nova, é necessário olhar o passado, antes de sua concepção, analisar suas motivações e circunstâncias; Cidades Novas são primeiramente idealizadas, planejadas, premeditadas, inventadas e projetadas (TREVISAN, 2009). Aldo Rossi (in TREVISAN, 2009) diz que a principal diferença entre os dois tipos de cidade é que as Cidades Novas são concebidas como cidades, e as cidades não planejadas nascem sem um desenho consciente, como por exemplo, assentamentos que se desenvolveram e ganharam características urbanas. De acordo com essa linha de pensamento, essas cidades podem expressar seu processo de formação, revelando todos os componentes que as materializou. Apesar de assentamentos planejados serem encontrados no caminhar da história, o termo foi aplicado e difundido após o New Towns Acts britânico, em 1946 (GREGORY, JOHNNSTON et al. , 2009). Este foi um grande movimento depois da Segunda Guerra Mundial associado com a Cidade Jardim de Ebenezer Howard e outras utopias modernas. Como a Europa estava devastada pela guerra e as cidades estavam enfrentando crescimentos desordenados, foi uma grande oportunidade para mudar o urbanismo a partir das ideias das utopias modernas.
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Utopias Modernas 1.
A Cidade Jardim
A Cidade Jardim é uma utopia que surge em resposta à cidade industrial insalubre e desumana, pós Revolução; Howard propõe então um novo paradigma baseado em mudanças sociais, políticas e econômicas (WARD, 1992). Esse paradigma foi bastante relevante na mudança que o planejamento urbano sofreu especialmente após a Segunda Guerra. O plano de Howard ofereceu mudanças Figura 5 - Esquema da cidade social (E) e dos três ímãs, cidade, campo e cidadecampo (D). Fonte: www.sacred-texts.com
na
sociedade
e
na
visão
política
envolvendo
a
transformação das cidades concentradas para uma rede
interconectada de cidades, chamada de cidade social (WARD, 1992). Para Howard, a melhor maneira de superar o problema das cidades centralizadas, espalhadas e insalubres do século XIX era tirar partido do melhor dos dois mundos – urbano e rural – de maneira a combinar o dinamismo das cidades e a beleza do campo (INSA-CIRIZA, 2012).
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A proposta inicial de Howard para as Cidades Jardim foi alterada e deu origem à edição renovada “Garden Cities of Tomorrow” e em seguida ao movimento das Cidades Jardim na Inglaterra, o qual abraçava o capital privado e dava maior atenção para o espaço residencial (WARD, 1992). Essas mudanças no plano original também deram espaço para um processo de fragmentação consciente da Cidade Jardim de maneira a fazer a proposta mais aplicável na realidade, trazendo conceitos como os subúrbios verdes (WARD, 1992). Essas mudanças também criaram uma conexão com o movimento das Cidades Novas, em se tratando principalmente das cidades satélites e a facilidade de transporte pela rede urbana (WARD, 1992). Tomando como base essa perspectiva, as Cidades Novas representam a descentralização e desindustrialização no planejamento urbano no qual a concepção da nova cidade absorveria parte do crescimento urbano e criaria zonas de atividades econômicas próximas à cidade principal. O movimento das Cidades Novas, que se espalhou principalmente pela Europa, foi um laboratório de prática nessas novas cidades concebidas. As Cidades Novas eram a aplicação dessas utopias, não só baseadas na Cidade Jardim, mas também em outras utopias modernas, em um modelo real de experimentação física e social, buscando melhorar a qualidade de vida das pessoas na cidade. 2.
Le Corbusier e o Movimento Moderno
As utopias modernas contribuíram para o urbanismo do século XX e XXI seja pelas influências nos projetos das Cidades Novas ou bairros, expansões e complexos arquitetônicos modernos ou pelas críticas e fracassos desse movimento. 18
Essas características fazem desse momento histórico relevante para essa pesquisa, pois o Modernismo trouxe importantes questionamentos, conceitos, ideias e também críticas como as de Jane Jacobs que culminaram na Cidade para Pessoas e na Cidade Justa e ainda a decadência das utopias no planejamento urbano contemporâneo. Para Le Gates e Stout (2011) as origens do planejamento urbano modernista são bastante complexas por dois principais motivos. Primeiro por que esse movimento era a continuação de uma maneira de projetar pós-Revolução Industrial, impondo ordem na natureza em prol da saúde e segurança das massas urbanas. E segundo por que é a partir desse movimento que o planejamento urbano opera, em grande escala, no contexto político e econômico. Le Gates e Stout (2011) completam ainda que na prática de planejamento desse período, a meta do planejador não é somente impor ordem à natureza, e sim à cidade como um todo. A nova industrialização ainda herdava a insalubridade, o superpovoamento e a miséria da Revolução Industrial. A cidade urgia por reformas, principalmente a reforma habitacional. Em resposta a esse contexto, surgem importantes figuras como o pintor, arquiteto, planejador urbano, filósofo e autor de manifestos revolucionários: Le Corbusier (LE GATES E STOUT, 2011).
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Le Corbusier foi um ícone do Movimento Moderno, suas ideias serviram de diretrizes para projetos no mundo todo, ele também representava a eficiência e racionalidade da Era da Máquina, do automóvel e da modernidade. Uma das mais chocantes inovações propostas pelo arquiteto foi o projeto da Cidade para Três Milhões de Habitantes; cidade que emergia de uma quadrícula rígida e simétrica, com edifícios em altura geométricos e idênticos espaçados por grandes áreas verdes, essa era, para Le Corbusier, a cidade do agora (LE GATES E STOUT, 2011).
Figura 6 - Plano da Cidade de Três Milhões de Habitantes. Fonte: Le Gates e Stout, 2011.
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O plano da Cidade para Três Milhões de Habitantes buscava a construção de uma fórmula para atingir os princípios fundamentais do planejamento urbano moderno (CORBUSIER in LE GATES E STOUT, 2011). Esses princípios serviriam de esqueleto para a construção de qualquer sistema de planejamento, reforçando assim o papel de controle e decisão do planejador urbano. Essa cidade propunha agilidade no transporte, trazendo a figura do automóvel, propunha também que as pessoas vivessem e trabalhassem na mesma cidade, reforçava os subúrbios das cidades jardins, a separação das funções – o que ele chama de Cidade, Cidade Industrial e Cidade Jardim -, e os pulmões da cidade, ou seja, as áreas verdes. Para Le Corbusier, as áreas verdes deveriam ser aumentadas e as distâncias diminuídas. Os quarteirões residenciais não deveriam ser construídos ao longo de ruas-corredor, cheios de poeira e poluição visual; as habitações deveriam ser construídas distantes das ruas (CORBUSIER in LE GATES E STOUT, 2011).
Figura 7 - Croquis de Le Corbusier para a cidade. Fonte: www.themodernist.co.uk
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Apesar do projeto para a Cidade de Três Milhões de Habitantes nunca ter deixado o papel, os princípios gerais dessa proposta foram importantes diretrizes para outros projetos como Brasília e Chandigarh (LE GATES E STOUT, 2011). O discurso modernista reacionário em resposta a uma cidade inadequada para o ser humano criou propostas belíssimas no papel. Porém, a “máquina de morar” de Corbusier assim como vários outros ideais traduzidos em cidades pelo mundo todo entraram em colapso. A extrema racionalidade, organização e as diretrizes de uma cidade e arquitetura genéricas descontextualizadas mostraram o fracasso desse movimento em produzir a cidade do agora e a cidade do futuro (PINDER, 2002). É a partir de 1960 que, de acordo com John Gold (in PINDER, 2002), a utopia urbana começa a colapsar devido à crise do urbanismo moderno. O fracasso do modernismo para Gold se deu pelo abismo entre o discurso e o que foi construído, e que o futuro do urbanismo deveria tomar partido do fracasso dessas visões e estimular o debate sobre que tipo de cidade deveria ser feita para qual tipo de sociedade. A ausência desse debate gerou uma crise do urbanismo e da cidade, associada à escala dos problemas sociais e espaciais gerados pela cidade moderna. Dessa forma, a utopia se colapsou ao banal; o imaginário da cidade se transformou e passou a ser associado a imagens como fragmentação, desintegração, desencantamento, desilusão (PINDER, 2002). Jane Jacobs, em 1961, deu início à contestação da produção modernista e também à introdução de um novo paradigma no planejamento urbano. 22
3.
Jan Gehl, Susan Fainstain e planejamento contemporâneo
No livro “Morte e vida das Grandes Cidades Americanas” Jane Jacobs (1961) elabora uma crítica ao que ela chama de planejamento urbano ortodoxo, responsável pela grande monotonia dos espaços monumentais, padronizados, vazios e sem vida. De acordo com Jacobs (1961), o planejamento urbano modernista criou a anti-cidade, resultado de uma ciência que era incapaz de olhar para a cidade real e aprender com ela. As cidades autoritárias, resultado do planejamento modernista, deu início a uma crítica no final do século passado que é ainda central no debate contemporâneo.
Figura 8 - Subúrbio americano. Fonte: where2sir.files.wordpress.com / Pruitt Igoe. Fonte: pload.wikimedia.org/wikipedia / A decadência de Detroit. Fonte: www.nytimes.com / Auto-estrada cortando a cidade em Los Angeles. Fonte: http://nextcity.org/daily/en
Para Jan Gehl (2010) a anti-cidade de Jacobs acontece com a mudança de paradigma de 1960, com a invasão do carro e com o novo planejamento das cidades priorizando o automóvel. No passado, as cidades eram planejadas em um processo contínuo e evolutivo, os diferentes espaços e atividades das cidades coexistiam em harmonia. Porém, a partir 23
dos anos 1960 esse cenário se alterou. O ritmo acelerado de crescimento das cidades levou a diferentes propostas como enormes e maciços edifícios tomando o lugar de ruas cheias de casas e quarteirões ou a separação de usos e funções das cidades ao invés de uma mistura multifuncional nos bairros (GEHL, 2010). Para Gehl o que aconteceu nos anos 1960 e perdura até os dias de hoje foi – e ainda é – uma confusão das escalas da cidade, principalmente a escala humana. As antigas ruas estreitas e de baixa velocidade deram espaço às largas e rápidas avenidas nas quais as pessoas não andam mais. A partir de 1960 o planejamento urbano começou a ser feito de cima para baixo, de acordo com Gehl, da escala do avião ou do helicóptero, esquecendo a escala humana. O planejamento contemporâneo vem lutando entre a ordem global – o que Susan Fainstein (1999) chama de cidade competitiva e Gehl descreve como a obsessão pela forma – e a Cidade Justa para Fainstein ou a Cidade para Pessoas de Gehl. Para o arquiteto dinamarquês, isso é resultado da confusão das escalas e a falta de entendimento entre as interações entre forma e vida, não somente formas impostas na malha urbana. As utopias do modernismo e também o movimento das Cidades Novas corroboraram para a cidade caótica de hoje, principalmente pela imposição de uma maneira de vida, pela mudança do paradigma das cidades convencionais e pela confusão das escalas – especialmente com a introdução em grande escala do carro.
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O propósito das utopias é debater e propor mudanças na realidade corrente; as Cidades Novas foram construídas como cidades-laboratórios e apesar de terem gerado vários problemas na vida urbana contemporânea, elas foram também a razão instigante que deu início ao novo debate e a introdução de conceitos como o da humanização dos espaços e a busca por uma cidade mais justa e igualitária. Fainstein (1999), por exemplo, não ignora a importância das utopias e da visão da cidade ideal, porém, ela sugere que olhar para o contexto global e para as cidades existentes talvez seja mais realista às metas dos planejadores do que se prenderem a planos descontextualizados. O ponto que chama a atenção aqui é que, a partir de pequenos sonhos e utopias, experimentos de cidades-laboratórios, planos, debates e novos conceitos emergem e alteram constantemente as cidades, mas, o que a literatura contemporânea propõe é um maior apreço ao contexto e maior atenção à ordem global econômica e social. Leidsche Rijn é uma proposta que herda conceitos das utopias modernas, mas também representa a concretização de princípios contemporâneos que surgiram nas últimas décadas de planejamento urbano. É possível ver em seu desenho características das variadas propostas de cidades de uma maneira curiosa que mostra a continuidade do processo de planejamento e as alterações ao longo dos anos imaginando uma cidade melhor em resposta aos problemas locais. O seguinte esquema resume as principais características das propostas das cidades estudadas e que colaboraram das maneiras mais diversas com o planejamento das cidades de hoje, incluindo Leidsche Rijn. 25
Cidade Jardim
Área verde, Salubridade, Descentralização, Cidade Social, Relação campo-cidade
Cidade para Três Milhões Racionalização dos usos e funções, Separação dos fluxos, Princípios reguladores do de Habitantes
planejamento urbano, Área Verde
Cidades Novas
Descentralização, Desindustrialização, Rede de cidades
Anti-cidade
Monótona, Setorizada, Privilegia o automóvel, Espaços monumentais, Padronização
Cidade para Pessoas
Humanização do espaço, Valorização da escala humana, Valoriza ruas e quarteirões, Usos mistos
Cidade Justa
Condições de habitação para todos (Infraestrutura, Área verde, Segurança), Usos mistos, Pequenas distâncias a serem percorridas, Transporte público para todos, Acessibilidade
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PARTE II Montando o contexto do planejamento urbano holandês 1. Randstad e o Green Heart Uma interessante característica urbanística da Holanda é a combinação do Randstad com o Green Heart, ou coração verde. Randstad é a conurbação urbana que engloba Amsterdã, Haia, Rotterdam, Utrecht e cidades menores. Essa é também a área de maior densidade populacional do país e é vista hoje como modelo alternativo para o crescimento metropolitano pela lógica polinuclear da rede urbana (VAN DER HOEVEN, 2012). De acordo com Frank van der Hoeven (2012) nos anos de 1960 a conurbação urbana holandesa foi descoberta evidenciando que era Figura 9 - Amsterdã, Haia, Rotterdam e Utrecht e o Green Heart. Fonte: www.jeroenfritz.com
possível organizar um grande número de pessoas em uma rede urbana polinuclear anexada a um coração verde – Green Heart -, opondo-se à
ideia que uma única grande metrópole que é a centralidade da rede urbana. 27
O período do pós-guerra foi um importante divisor de águas no planejamento urbano holandês. Depois da Segunda Guerra Mundial, no período de 1946 a 1955, a Holanda enfrentou um período chamado Baby Boom, no qual 2,4 milhões de bebês nasceram, aumentando a população e pressionando o mercado habitacional especialmente na área do Randstad11. O Baby Boom foi um importante fator para a reforma urbana na Holanda, uma vez que o país, com pequena extensão territorial, enfrentava a falta de habitações, falta de capacidade das cidades e o perigo do espalhamento urbano que ameaçava os recursos naturais do país (VAN DER HOEVEN, 2012).
2. Groeikern: a Cidade Nova holandesa Nos anos de 1950, a Agenda Nacional de Planejamento Urbano começou a ser formulada. Em 1968 o Comitê Trabalhador da porção Oeste do País elaborou um relatório incluindo um plano para a estrutura esquemática do anel urbano, trazendo uma visão espacial do Randstad (VAN DER HOEVEN, 2012). Para van der Hoeven (2012) também no final dos anos 1950, os planejadores perceberam que o coração verde estava sendo ameaçado pela (sub)urbanização especialmente das maiores cidades da conurbação, como Haia-Rotterdam e Utrecht. O primeiro plano do Comitê previa a manutenção da separação funcional e espacial das cidades, aplicando
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Fonte dos dados: Centraal Bureau voor de Statistiek www.cbs.nl acessado em 25 de agosto de 2013.
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buffer zones ou zonas intermediárias entre áreas urbanas. O plano previa também a criação de novas cidades fora do anel para conter o crescimento populacional, essas cidades, chamadas de Spillover cities, foram criadas para receber o contingente populacional excedente das grandes metrópoles o anel urbano. Figura 10 - Charge da Buffer zone barrando o crescimento urbano. Fonte: van der Hoeven, 2012
As duas iniciativas tomadas no final das reuniões do comitê eram bem contraditórias com a ideia de proteger o coração verde. A primeira, em 1966, era o plano estrutural para a rede rodoviária; o plano propunha uma densa rede com dez rodovias e a segunda iniciativa, o Groeikern, foi adotada. Groeikern é a versão holandesa da Cidade Nova; era uma proposta de construir novas cidades fora do anel urbano do Randstad para absorver o excedente populacional das metrópoles (VAN DER HOEVEN, 2012). Ainda, de acordo com Bonnike (2011), as políticas espaciais dos anos 1960 e 1970 tinham a intenção de dispersar as pessoas igualmente pelo território holandês, especialmente para conter as concentrações do Randstad. A segunda e a 29
terceira iniciativas dos planos espaciais apoiavam a criação de novos centros de crescimento urbano, porém, esses planos tiveram resultados insatisfatórios. Primeiro pelo fluxo excessivo de carros devido aos moradores das novas cidades que trabalhavam ainda nas metrópoles e segundo por causa da influência negativa na vitalidade das cidades existentes.
3. A iniciativa do programa VINEX Em resposta aos problemas enfrentados pelas novas cidades, um quarto plano foi introduzido, mudando a perspectiva de ação de igualdade para diversidade. A renovada proposta incluía a decisão do governo de construir 828 mil novas casas em um período entre 1995 e 2015 nas periferias das cidades existentes (BONNIKE, 2011) tomando partido da infraestrutura existente e da proximidade com as centralidades, de maneira a reduzir o uso do carro e das despesas com infraestrutura e a ameaça ao coração verde. O Quarto Relatório introduziu as extensões VINEX, novas áreas residenciais similares a subúrbios, na extensão das cidades existentes; Noordrand (Rotterdam), Ypenburg (Haia) e Leidsche RIjn (Utrecht) são exemplos dessa nova abordagem espacial (van der Hoeven, 2012). O relatório elabora quatro critérios para a escolha da localização do VINEX (Bonnnike, 2011):
30
1. Implantação do VINEX primeiramente no tecido urbano, seguido de localidades nas periferias urbanas e por último fora do perímetro urbano da cidade; 2. Dar preferência para o transporte público e tráfico lento de veículos nas áreas de vivência; 3. Zonas mistas nas áreas residenciais; comércio, emprego, lazer, áreas verdes e serviços – criar um bairro praticamente independente da cidade-mãe. 4. Planejar espaço público para lazer e agricultura.
A proposta do VINEX foi uma maneira de proteger o Green Heart da expansão urbana e reforçar a política da cidade compacta - política que limita a extensão da cidade a um raio de 7 quilômetros, de maneira a fazê-la mais ciclável – diminuindo as distâncias para o centro da cidade em combinação com uma boa rede de transporte público. A ideia principal era a criação de uma cidade policêntrica, fazendo os habitantes mudarem a orientação de um único centro para uma rede urbana com diferentes centralidades (BONNIKE, 2011), uma proposta semelhante à Cidade Social de Howard.
31
Figura 11 - Esquema do processo de urbanização na Holanda, do centro histórico ao VINEX. Fonte: Bonnike, 2011
A imagem 11 esquematiza o processo de urbanização da Holanda, do centro histórico medieval até a iniciativa do VINEX. A imagem A representa o centro histórico medieval, o ponto de partida da cidade que se tem hoje. Em B, a expansão ocorrida no século XIX voltada ainda para o centro. A expansão é continuada no século seguinte, evidenciado pela imagem C, mas focada na reconstrução do pós-guerra e com os bairros Bloemkool, que são inspirados na Cidade Jardim de Howard, com ruas tortuosas, paisagem bucólica e mimetismo entre o campo e a cidade. Os bairros Bloemkool são hoje vistos como uma proposta negativa devido ao espaço engessado e monofuncional que não pode ser adaptado 32
para mudanças futuras (BONNIKE, 2011). As Cidades Novas configuram a etapa D da figura 5, política que incentivava a criação de novas cidades próximas e com relações diretas com a cidade mãe. Por fim, a proposta do VINEX é introduzida em 1994, com a criação de bairros independentes nas periferias se beneficiando da infraestrutura das cidades e privilegiando a cidade compacta. As seguintes tabelas resumem o problema gerado pelo Baby Boom e as respostas dos planos de ordenamento territorial.
1945 – 1955: “Baby boom” holandês Problemas:
Pequena extensão territorial Déficit habitacional Capacidade deficiente das cidades Espalhamento espacial
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Quadro resumo dos Planos de Ordenamento do território – Agência de Planejamento Urbano Planos
Medidas
Intenções
1º Plano
Visão do Randstad e Green Heart pela Dispersar pessoas igualmente pelo território primeira vez, proteção do Green Heart pelas bufferzones, Criação dos Groeikern, Expansão rodoviária
2º Plano
Criação
de
novos
centros
de Continuação do 1º Plano
crescimento urbano 3º Plano
Proteger o Green Heart, Proposta do Expandir as cidades nos limites do perímetro urbano VINEX
existente
aproveitando
infraestrutura,
Criar
novas
centralidades independentes das metrópoles, Preservar a cidade compacta, Incentivar o uso da bicicleta
34
O plano de Leidsche Rijn Leidsche RIjn é a expansão VINEX de Utrecht com estimativa de 31.000 novas unidades habitacionais para 100.000 pessoas, 280 hectares de instalações industriais, 700 metros quadrados de edificações de dois ou mais pavimentos para comércio e serviços com a produção de 40.000 novos empregos e parques e áreas de lazer espalhadas pelos quarteirões2. A cidade compacta foi o principal conceito para a concepção do projeto de Leidsche Rijn, porém, a única maneira de expandir mantendo uma pequena distância de Utrecht, seria o desenvolvimento a
Figura 12 - Leidsche RIjn e Utrecht. Fonte: rjnijdam.files.wordpress.com
oeste, adentrando uma área do Green Heart;
2
Dados da prefeitura de Leidsche Rijn, http://www.utrecht.nl/leidsche-rijn/uniek-aan-leidsche-rijn/ acessado em Agosto de 2013
35
portanto, as fronteiras dessa zona verde tiveram que ser ajustadas para permitir a construção do maior VINEX da Holanda (BONNIKE, 2011). Leidsche Rijn é um projeto ambicioso que começou a ser desenvolvido em 1995 e em 2025 espera-se que seja concluído3. O que chama a atenção para esse plano é a divisão do terreno em várias parcelas que foram concedidas a diferentes empresas e grupos de arquitetos a fim de planejar partes diferentes do bairro, dando maior liberdade de mudanças, novas propostas e opiniões4. E em adição, foi criado um plano geral para toda a área que prevê acordos para administração das águas e diretrizes gerais de projeto. A imagem 12 mostra o desenvolvimento de Leidsche Rijn a oeste de Utrecht, área que pertencia ao Green Heart. Tomando partido de uma proposta do plano de Leidsche Rijn que é de extrema importância para o planejamento urbano holandês – a administração da água – o seguinte quadro dá uma visão geral do problema enfrentado pelo país e os motivos para essa característica ser tão relevante no projeto urbano.
3 4
Dados da prefeitura de Leidsche Rijn , http://www.utrecht.nl/leidsche-rijn/information-in-english/ acessado em Agosto de 2013 Idem
36
Administração das águas
Holanda é um país que luta com a água, com 24% do território abaixo do nível do mar e 60% da população localizada nessas áreas (VAN STEEN E PELLENBARG, 2004). A administração e o planejamento dos canais, do abastecimento de água e da proteção contra a água é algo intrínseco ao planejamento urbano. Diques, barragens, terps (montanhas feitas pelo homem), polders (áreas de controle do nível da água), drenagem de água e recuperação de terrenos perdidos pelo mar são exemplos de ações para a luta constante com a água (VAN STEEN E PELLENBARG, 2004). Figura 13 - Área inundável da Holanda protegida pelos diques. Fonte: ttp://redgeographics.com/
37
O plano geral de Leidsche Rijn propõe inovações energéticas, de administração e controle da água e também no tráfico de veículos. De acordo com a Gemeente Leidsche Rijn, o projeto está sendo construído a partir de princípios de sustentabilidade e durabilidade das construções, medidas de economia energética também estão sendo tomadas, como por exemplo, habitações e iluminação pública de pequena demanda energética. Várias partes do bairro estão conectadas a um sistema de aquecimento e buscam a redução das emissões de gases tóxicos ao ambiente. Já em relação à administração da água, o planejamento dá inicio a um novo paradigma de simbiose do meio urbano com a água; a água faz parte do planejamento de maneira que o problema não é repassado para uma nova área e sim resolvido no próprio bairro e prove lazer e qualidade de vida para a comunidade. Em Leidsche Rijn a água da chuva é também coletada e armazenada em zonas de captação ou reservatórios e posteriormente direcionadas para pequeno lagos no norte do bairro. Esse VINEX também é equipado com trincheiras de infiltração chamadas de Wadis, depressões cobertas por grama que complementam um sistema de canais, protegendo a área de alagamentos, e pavimentação permeável nas ruas. Finalmente e talvez a inovação mais ambiciosa de Leidsche Rijn é a proposta viária. O conceito da cidade compacta para esse caso significava dar um uso eficiente para a área ocupada pela rodovia A2, o que foi considerado uma clara barreira entre a expansão e Utrecht (VAN DER HOEVEN, 2012). Em geral, a iniciativa comum é apontar as limitações do terreno e locar casas e pequenos serviços distantes de grandes rodovias, em Leidsche Rijn o contrário foi proposto, 38
principalmente para manter as distâncias menores e preservar o ideal da cidade compacta (VAN DER HOEVEN, 2012). A resposta foi a construção de um túnel, enterrar a rodovia e encapsular a barreira entre as duas áreas. O esquema da figura 14 mostra um estudo com (esquerda) e sem (direita) a solução do túnel, evidenciando a clara barreira da rodovia que separaria Leidsche Rijn de Utrecht, o que poderia ocasionar vários problemas que comprometeriam a cidade compacta, a mobilidade urbana e a ligação do VINEX com a cidade mãe. Ainda, reforçando a ideia de conexão com Utrecht, três novas pontes serão construídas sobre o canal Amsterdam-Rijn, e duas novas estações de trem serão construídas, conectando Utrecht e Leidsche Rijn a diferentes partes do país de maneira a aprimorar a acessibilidade de Leidsche Rijn.
Figura 14 - Análise da conexão entre Leidsche Rijn e Utrecht sem a barreira (E) e com a barreira (D) da rodovia A2. Fonte: van der Hoeven, 2012
39
Esse mapa de Leidsche RIjn mostra
as
vizinhanças
que
compõem a cidade, as principais conexões para Utrecht, a linha férrea e o Máximapark. No mapa, em roxo e rosa os usos industriais, institucionais.
de Em
serviços
e
verde
os
parques e áreas verdes, em amarelo e vermelho, residencial, comercial ou misto (nesse mapa esses
três
usos
não
foram
especificados uma vez que serão especificados pontualmente nos projetos individuais). Figura 15 - Mapa de Leidsche Rijn com as vizinhanças e novas conexões a Utrecht. Fonte: Gemeente Utrecht http://www.utrecht.nl/leidscherijn/documenten-links/
40
Figura 16 - Esquema das ligações rodoviárias e ferroviárias de Leidsche Rijn. Fonte: Gemeente Utrecht http://www.utrecht.nl/leidsche-rijn/documenten-links/
A Imagem 16 elucida as principais conexões rodoviárias e ferroviárias que ligam Leidsche Rijn a Utrecht e às diferentes 41
localidades no país. As linhas duplas roxas são as principais rodovias, A2 que liga o sul do país (Eindhoven e Maastricht) para o norte (Amsterdã e aeroporto Schiphol), A12 que liga oeste (Gouda, Haia e Rotterdam) a leste (Den Bosch), A27 que liga Breda e Frankrijk a sul e Almere, Leewardem e Hilversum a norte, e A28, que liga o extremo norte e nordeste do país e Alemanha (Amesfoort e Groningen). Já as linhas pretas, representam as ferrovias, o quadrado preto no centro do mapa é a estação Utrecht Centraal, e os dois outros quadrados menores a oeste, Utrecht Ledische Rijn e Utrecht Terwijde, ambas em Leidsche Rijn. Essas duas estações possibilitaram uma importante conexão ferroviária com Rotterdam, por exemplo. A proposta inovadora para a expansão de Utrecht representa um importante passo para o planejamento urbano holandês. Essas rodovias que cortam o país foram consideradas um problema espacial em um território que luta com a falta de espaço e o crescimento populacional e urbano, e a proposta de Leidsche Rijn de enterrar a rodovia A2 significa a solução para um problema de desperdício de área e de criação de barreiras urbanas5. E ainda, as conexões rodoviárias e ferroviárias fazem de Utrecht um ponto nodal no território holandês, que conecta praticamente todo o país6.
5 6
Dados da prefeitura de Leidsche Rijn, http://www.utrecht.nl/leidsche-rijn/documenten-links/ acessado em Agosto de 2013 Idem
42
Figura 17 - Mapa de usos comerciais, industriais e serviços. Fonte: Gemeente Utrecht http://www.utrecht.nl/leidsche-rijn/documenten-links/
A figura 16 esquematiza os principais usos comerciais, industriais e de serviços de Utrecht e arredores construídos até 2013. Já é possível ver o processo de descentralização, a emergência de um novo centro, o de Leidsche Rijn, onde é possível encontrar lojas, bares, eventos culturais, habitações e empregos, de novos polos industriais e de serviços
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atraentes pela acessibilidade das rodovias, ferrovias e vias fluviais, e áreas de recreação afastadas do centro de Utrecht, nascendo assim, uma cidade policêntrica7. Os parques e áreas de lazer são também foco desse projeto. A maior massa verde na figura 16 é o Máximapark, parque de 300 hectares – tamanho aproximadamente igual do centro histórico de Utrecht8 –, com a principal função de ser o ponto de ligação de várias vizinhanças de Leidsche Rijn9. Aumentando a escala do desenho para as vizinhanças de Leidsche Rijn, muitas propostas têm como foco a valorização da escala humana e o uso de transportes alternativos.
Ruas
comerciais
pedestrianizadas,
usos
compartilhados, acessos únicos por bicicletas e pedestres, separação dos fluxos isolando os automóveis, usos mistos, Figura 18 - Máximapark em Leidsche Rijn. Fonte: http://www.west8.nl/images/dbase/2414.jpg
edificações sustentáveis que exploram novos materiais, áreas de lazer e esporte possibilitando que a vida cotidiana
7
Dados da prefeitura de Leidsche Rijn , http://www.utrecht.nl/leidsche-rijn/information-in-english/ acessado em Agosto de 2013 Idem 9 Idem 8
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aconteça no raio do pedestre. As imagens seguintes são de alguns projetos das vizinhanças de Leidsche Rijn e evidenciam essa valorização da escala humana.
Figura 19- Separação dos fluxos. Fonte: http://rijnboutt.nl/files/projects/
Figura 22 - Simbiose com a água. Fonte: http://www.boparai.nl/projecten
Figura 20 – Cinema e cultura. Fonte: http://www.utrecht-urbanflow.nl/wordpress
Figura 23 - Uso misto e via pedestrianizada. Fonte: http://www.asrvastgoedontwikkeling.nl/
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Figura 21 – Vizinhança residencial. Fonte: http://www.bdp.com/Global/_Netherland/Projects
Figura 24 - Parque sobre a rodovia A2. Fonte: http://www.duic.nl/wpcontent/uploads/
Visão geral A descrição do projeto de Leidsche Rijn pode apontar elementos importantes da política urbana contemporânea na Holanda, baseada, principalmente, em iniciativas de tentativa e erro, a partir do Groeikern até o VINEX. A política de planejamento hoje é direcionada por quatro diretrizes principais: o crescimento populacional e o déficit habitacional, a cidade compacta, a política de água e as dimensões limitadas do território. É possível listar no desenho urbano de Leidsche Rijn a resposta no planejamento para essas diretrizes, o que é também visível em vários outros projetos no país. A busca do ideal não significa que o planejamento urbano atingirá o modelo perfeito de cidade, mas significa que, baseado em experiências do passado, irá se ajustar e se adaptar a novos contextos. O processo evolutivo do planejamento especificamente depois da Segunda Guerra Mundial até os dias de hoje mostra um esforço constante de pensar e propor mudanças na cidade. Por outro lado, a expansão VINEX vem sendo bastante criticada em relação aos espaços de vivência citados por Jan Gehl e em relação à apropriação do espaço pelos moradores e usuários. O seguinte quadro resume as metas e medidas do plano de Leidsche Rijn e aponta as ligações com a utopias urbanas – Cidade Jardim, Cidade para Três Milhões de Habitantes, Cidade Nova, Anti-cidade, Cidade para Pessoas e Cidade Justa.
46
47
*A Anti-cidade é apresentada como resposta à cidade modernista, ou seja, o projeto de Leidsche Rijn, a partir das críticas da Anti-cidade, responde a um planejamento urbano monótono, setorizado e que privilegia o automóvel.
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Pedalando em Leidsche Rijn – uma experiência pessoal Era uma manha chuvosa na cidade em que eu morava – Groningen – quando eu peguei minha bicicleta e peguei o primeiro trem para Utrecht; fui com um amigo que acreditava que uma viagem seria uma boa ideia para um Sábado entediante. Escolhemos esse dia por ser um dia em que as pessoas não trabalham e saem para fazer compras, passear, brincar nos parques e fazer piquenique. Tivemos sorte em pegar o trem direto para Utrecht, dessa maneira poderíamos aproveitar a longa viagem de quase duas horas e não nos preocuparmos em correr pelas plataformas com as bicicletas e trocar de trem. Aproximadamente
duas
horas
depois,
finalmente
chegamos
nessa
congestionada e enorme estação – bem diferente do que eu estava acostumada em Groningen -. As pessoas estavam em todos os lugares: andando, correndo para pegar um trem, esperando, empurrando bicicletas, comendo e conversando; demoramos um tempo desviando da multidão e buscando nossa saída. Para a nossa alegria, o dia estava ensolarado – nos padrões holandeses – e também muito frio, por isso decidimos aproveitar Figura 25 – Utrecht Centraal. Fonte: http://www.stationsinfo.nl/railway_nl_bestanden
Utrecht como bons turistas. Tiramos fotos, visitamos as principais atrações e
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almoçamos em um terraço que tinha o melhor visual da cidade. Utrecht estava completamente lotada de turistas como nós, pessoas fazendo compras e pedalando. O centro estava bastante vívido e movimentado e depois de algumas horas nós finalmente decidimos pegar nossas bicicletas e seguir para Leidsche Rijn.
Figura 26 - Percurso feito de bicicleta. Fonte: Google Maps
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De volta à estação de trem (ponto 1), seguimos na direção oeste e nos perdemos diversas vezes. Seguimos uma rua chamada Leidseweg (2) acreditando que iria nos levar ao nosso destino, mas não nos levou. Então decidimos ligar o GPS e seguimos pela Vleutensweg (3), avenida que leva à ponte do rio Rijn (4). Quanto mais nos aproximávamos da ponte, mais aumentava a sensação de estar deixando a cidade para trás; não era possível ver a mesma quantidade de pessoas nas ruas, apenas alguns carros Figura 27 - Vleutensweg - aumento do número de carros e diminuição do número de pedestres. Fonte: http://roodnoot.nl/tag/vleutenseweg/
e bicicletas ao redor. Depois de cruzar a ponte amarela nos deparamos com indústrias próximas ao rio e uma enorme ciclovia a qual seguimos por uns cinco minutos até finalmente cruzar as obras do túnel da rodovia A2 (5). Nesse ponto os edifícios começaram a emergir na paisagem e nós estávamos nos aproximando das obras do centro da cidade (6). Nós tivemos um estranho sentimento enquanto nos aproximávamos do novo bairro; não era mais possível ver pessoas, talvez uma ou duas
Figura 28 – Ponte Amarela. Fonte: Arquivo pessoal
bicicletas e alguns carros que passaram por nós. Como o projeto de Leidsche Rijn foi dividido em diferentes áreas, algumas já estavam 51
consolidadas e algumas ainda estavam em obras. Seguimos nossa visita pela Monarchvlinderlaan (7), uma rua bem interessante de piso intertravado, duas faixas de rolamento, uma de cada sentido emoldurada por casas geminadas e um enorme canteiro central, que segundo as placas deveria ser um parque, mas que na verdade Figura 29 - Indústrias na beira do rio Rijn. Fonte: panoramio.com/photo/33531014
parecia um grande campo de futebol. Viramos à direita na Bladvlinder, nos deixando levar pelo traçado da cidade e pelas ruas residenciais (8). Apesar de notar diferentes tipos de casas, áreas verdes (9 – parque Máximapark), pequenos lagos e canais (10 e 11)– o que claramente mostra a iniciativa de uma simbiose da cidade com a água – notamos uma coisa curiosa: a ausência de pequenos serviços e comércio como um supermercado ou a famosa bakerij holandesa – vulgo, padaria.
Figura 30 – Obras do túnel da A2. Fonte: Arquivo pessoal
Pedalamos pela cidade por quase uma hora e não conseguimos notar grande variedade de usos, além do residencial. Outra coisa curiosa foi o sentimento de sermos as únicas pessoas nas ruas em todos os lugares que passamos. Às vezes era possível ver algumas crianças brincando na frente de casa ou algumas pessoas dentro de casa, mas o sentimento geral era de vazio e de um lugar sem vida.
Figura 31 - Entrada da cidade, Leidsche Rijn Centrum. Fonte: Arquivo pessoal
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No final da nossa viagem encontramos o parque de Hoge Weide (14) e paramos para assistir o pôr-do-sol em uma estranha montanha com balanços no topo, e, na verdade, essa foi a melhor parte da nossa visita a Leidsche Rijn. Foi o único momento onde pudemos ver algumas pessoas e crianças brincando. Passamos um bom tempo analisando os prós e contras da cidade, o porquê de não encontrarmos pessoas nas Figura 32 – Monarchvlinderlaan (ponto 7). Fonte: Arquivo pessoal
ruas como era esperado, discutindo as formas da cidade e como elas poderiam influenciar na apropriação do espaço. Ao deixar Leidsche Rijn, voltei para casa pensando no caminhar das politicas de planejamento na Holanda e no mundo e não pude deixar de comparar a minha experiência com a cidade monótona e sem vida de Jane Jacobs de mais de 50 anos atrás.
Figura 33 – Vuurvlindersingel (ponto 11). Fonte: Arquivo pessoal
Figura 34 - Parque Hoge Weide. Fonte: Arquivo pessoal
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Os resultados da política e planejamento do VINEX A experiência de visitar Leidsche Rijn é interessante para comparar os lados teórico e prático desse plano. O processo evolutivo de tentativa e erro do planejamento urbano holandês que levou à proposta do VINEX e a um modelo ideal que é reproduzido ao longo do país evidencia uma realidade complexa que responde de maneira oposta à ideia do modelo perfeito. O seguinte desenho esquematiza a via Melissekade em Leidsche RIjn. Em seu desenho é possível ver os principais elementos de uma via humanizada e urbanismo seguindo os padrões ideais dos VINEXs.
Figura 35 - Croqui de Melissekade. Fonte: Arquivo pessoal
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A tabela enumera seis principais mecanismos do planejamento urbano que carregam embasamento desde utopias como a Cidade Jardim até respostas aos erros das cidades novas holandesas. Essa rua foi escolhida por ser uma das mais representativas em relação a esses princípios no desenho e que na prática, a realidade se configura de maneira diferente; observe a imagem 36.
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Figura 36 - Melissekade, Leidsche RIjn. Fonte: Google Street View
Essa rua é um recorte que se tem de Leidsche Rijn, mas que representa grande parte do que se vê na cidade. Onde estão as pessoas? Além de não ser comum ver pessoas nas ruas, as habitações também parecem vazias, só é possível notar algum tipo de atividade pelos carros estacionados e eventuais ciclistas e ônibus. Essa é uma rua na entrada da cidade, em teoria um lugar movimentado pelo comércio e escritórios e por ser a porta de entrada de Leidsche Rijn. O 56
que ocorre aqui vai além da confusão das escalas de Jan Gehl, a diferença da teoria para a realidade de Leidsche Rijn está na sua morfologia, no planejamento e, de acordo com Bonnike (2011), na questão temporal. A questão temporal, citada por Bonnike (2011) diz a respeito da defasagem da utopia e teoria até a implantação dos planos urbanos. O programa do VINEX teve início em 1995, em resposta a um planejamento da década de 1970, e, no caso de Leidsche Rijn, a expectativa é concluir as obras em 2025, no total, são mais de 55 anos de defasagem. Uma das principais engrenagens do planejamento urbano holandês é a resposta ao aumento populacional e déficit habitacional, política essa que teve início com o Baby boom da década de 1960. Porém, esse crescimento populacional se estabilizou, a partir da década de 1980 a taxa de natalidade começou a diminuir10 e a população começou a envelhecer. Dados recentes mostram que desde 2000 a população centenária do país dobrou11. Esses dados reforçam a defasagem temporal citada por Bonnike; a política do VINEX começou a ser pensada a partir da decadência do Groeikern na década 1980, a prática deu início quase quinze anos depois, essa ainda é a política de planejamento vigente e as características do país se alteram constantemente em um quadro bem diferente de 50 anos atrás. A principal crítica do VINEX, de acordo com Bonnike (2011), parte da adaptação que o planejamento urbano deve sofrer devido às transformações da 10
Fonte dos dados: Centraal Bureau voor de Statistiek http://www.cbs.nl/en-GB/menu/themas/bevolking/cijfers/extra/piramide-fx.htm acessado em Setembro de 2013 11 Fonte dos dados: Centraal Bureau voor de Statistiek http://www.cbs.nl/en-GB/menu/themas/bevolking/publicaties/artikelen/archief/2014/20144149-wm.htm acessado em Outubro de 2014
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sociedade e estilos de vida; conceitos de vinte anos atrás como a cidade compacta e a diminuição do uso do carro já se mostram contraditórios em muitos VINEXs, como por exemplo, na região urbanizada entre Rotterdam e Haia. Além do problema temporal da política urbana, o qual se aplica principalmente para Leidsche Rijn pelo intervalo de tempo de 30 anos até a finalização do bairro, o planejamento e a morfologia também têm implicações na cidade. O dilema do planejador urbano que diz a respeito do poder de interferência no espaço, que diz até que ponto o planejador deve impor uma forma, um desenho e uma maneira de viver, encontra várias consequências em Leidsche Rijn. A utopia é a imaginação de uma vida melhor na cidade, e todas as utopias citadas tem um papel na estruturação espacial desse VINEX, porém, até que ponto a utopia de um grupo específico de planejadores revela as necessidades de uma sociedade? E até que ponto a generalização dos princípios do VINEX se aplicam nos diferentes contextos do país? A crítica ao planejamento do VINEX, e em especial a Leidsche Rijn, está na falta de vivência dessa política de planejamento. Van den Hof (in BONNIKE, 2011) descreve que apesar dos habitantes estarem satisfeitos com a qualidade das habitações, a vivacidade do ambiente deixa a desejar, em adição, Hulsman (in BONNIKE, 2011) cita a falta de flexibilidade do bairro, o qual é completamente planejado – e, no caso de Leidsche Rijn, ainda limitado pelas fronteiras do rio Rijn, pela ferrovia e pelas rodovias A2 e A12 –. Hulsman aponta que essa maneira de planejar não dá espaço para a coincidência, limita a imaginação – ou as utopias de escape de Mumford (1962) – e limita também o poder de ação, 58
pertencimento, identidade e apropriação do espaço. Lynch (2011), por exemplo, diz que a cidade é uma constante mudança de olhares de diferentes pessoas que vivenciam o lugar e diz ainda que a cidade não é somente um objeto percebido e sim produto de diversas modificações que muitas vezes não podem ser controladas. Para ele não é possível atingir um produto final, somente uma contínua mudança de fases. Os pensamentos de Hulsman e Lynch convergem para a ideia de que o espaço não pode ser engessado e perfeitamente planejado, o cenário de vivências faz parte da forma da cidade, e como diz Lynch (2011), as pessoas são parte do espetáculo da cidade. A crítica apontada por Hulsman toca na questão da identidade, importante dimensão na vida social e cultural da cidade. Kaymaz (2013) diz que a identidade do lugar está diretamente ligada ao senso de pertencimento e criação de elos afetivos, essas duas características são cruciais no reconhecimento que as pessoas têm dos lugares, o que leva ao sentimento de segurança e principalmente senso de comunidade. Todas essas características se pautam na significação do espaço, o que quer dizer criar símbolos e valores como sociedade e como indivíduos. É a coleção de imagens de diferentes indivíduos que cria a imagem coletiva de um lugar (KAYMAZ, 2013). Ainda, Ökesli e Gürçınar (2012) dizem que a formação da identidade urbana está pautada na união da identidade do ambiente (seja natural ou artificial) e pela identidade social, que depende do contexto histórico, da cultura, economia etc. Dessa forma entende-se que a coleção de imagens e atributos físicos somadas às características da sociedade e do 59
contexto são essenciais para entender a cidade. E é nesse ponto em que o erro de projeto e a defasagem do tempo atuam na forma urbana de Leidsche Rijn. Em se tratando dos atributos físicos do lugar, Lynch (2009) diz a respeito da imaginabilidade e legibilidade do lugar, ou seja, das características que permitem as pessoas se localizarem, locomoverem e se identificarem com o ambiente ao redor. A partir de elementos da paisagem como os percursos, os pontos nodais, os bairros, limites e marcos as pessoas se ambientam no espaço. Leidsche Rijn é uma cidade de difícil legibilidade do traçado, de difícil localização e isso se dá por uma gama de razões. A regularidade e padronização das edificações e a ausência de marcos na paisagem tornam a paisagem monótona, ainda, a hierarquia viária é confusa, com várias interrupções de vias arteriais, não existem eixos claros ou características que diferem um eixo mais importante de uma via coletora, por exemplo. O mapa seguinte (Figura 37) evidencia a confusão das vias, que sem uma hierarquia clara dificultam a legibilidade da cidade. Panerai (2006) completa ainda dizendo que a cidade é apreendida pela organização da paisagem imediata analisada pela variação do campo visual, dos elementos simbólicos e diferentes atividades – e do território percebido – em geral limitado pela própria via e pelas diferentes molduras e marcos desse percurso –. A ausência desses elementos, das rupturas da paisagem, dos enclaves etc, fazem da leitura de Leidsche Rijn bastante complexa para o usuário do espaço. 60
Figura 37 - Hierarquia viária e Mapa de Usos. Fonte: Arquivo particular.
Em adição, o mapa de usos reforça o que foi dito da monotonia da paisagem e da ausência de eixos fortes e marcados. 61
As vias principais também não são reforçadas por usos diferenciados. Por fim, a cidade ainda apresenta dois problemas que reforçam a difícil legibilidade e imaginabilidade do traçado: a centralidade e o sistema de canais. Panerai (2006) exemplifica o modelo das cidades medievais europeias, que são pautadas em um centro claro e expansões radiais. Utrecht e as cidades holandesas não se fazem exceção, também acontecem a partir de um centro e com canais estruturadores. Utrecht foi um centro portuário, seus canais permeavam a cidade como vias fluviais e hoje são elementos do imaginário da cidade. Em Leidsche Rijn, o centro é deslocado para nordeste da gleba (Círculo vermelho no mapa de usos, figura 35), próximo ao rio Rijn e ao centro de Utrecht. Ainda, os canais perdem a função de estruturadores do traçado e funcionam como captação e reservatório de água, protegendo a cidade de possíveis enchentes. Essas duas mudanças, desfamiliarizam a tradicional cidade holandesa, o que contribui para a ilegibilidade da cidade pelos usuários. No tocante aos atributos sociais, a desfamiliarização compromete a imagem de Leidsche Rijn. A descontextualização da cidade nova com Utrecht impede a relação do novo com o velho. As novas imagens não se relacionam com as imagens antigas e, em adição ao excesso de planejamento citado por Hulsman (in BONNIKE, 2011), a cidade se engessa e se desfamiliariza para as pessoas.
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CONCLUSÕES A busca da cidade perfeita e da melhor maneira de se viver estimulou as utopias desde o início da civilização. As utopias, mesmo que muitas vezes inalcançáveis foram responsáveis por importantes mudanças nas cidades e posteriormente no planejamento urbano. As utopias sempre surgem como resposta a um determinado contexto e significam a visão, mesmo que irreal e extrema, de uma realidade no mínimo diferente. Teorias e utopias muitas vezes são complementares, uma pode partir da outra e ambas, juntas, convergem nas políticas e ações de planejamento. Ignorar as utopias é ignorar o desenvolver das cidades o que é problemático não só pelo colapso imaginativo como citado por Pinder (2002). A análise de Leidsche Rijn evidencia esse processo urbanístico a partir das utopias, teorias e práticas de cidade. Porém, vale mencionar novamente Susan Fainstein (1999) que diz que a utopia é necessária, assim como a observação do contexto e da realidade. Apesar de toda utopia ser baseada em um contexto e ser resposta a uma realidade, muitas vezes por problemas temporais como diz Bonnike (2009) ou por generalização, como foi a aplicação em grande escala de Cidades Novas pela 63
Holanda, a utopia perde seu embasamento e contexto. Além disso, a falta de flexibilidade que engessa o comportamento das pessoas é um importante aspecto que diferencia uma cidade ideal no papel e na realidade. Utopia, de Tomas Morus, a Cidade Jardim de Howard, ou a Cidade para Três Milhões de Habitantes de Le Corbusier são exemplos de cidades imaginadas segundo um padrão de sociedade, imaginava-se que as pessoas fossem agir de determinada forma, como se o espaço e as leis do espaço moldassem o comportamento humano. As cidades ideais em geral cometem esse erro, não dão espaço para a ocasião, para a liberdade social no meio urbano. Ainda, o contexto e o papel do planejador exercem um importante papel no espaço planejado. A falta de flexibilidade do espaço, em geral planejado e imposto a uma sociedade, somada à aspectos físicos como no caso de Leidsche Rijn da falta de imaginabilidade – principalmente pelo distanciamento com o contexto - e legibilidade – pela forma urbana – revelam o erro do planejador ao impor um modelo. O processo evolutivo das políticas urbanas holandesas levou à Figura 38 - No jogo "Sim CIty" é possível saber o que as pessoas querem, planejar e controlar o desenvolvimento da cidade. Fonte: www.technobuffalo.com
criação de uma fórmula do que é ideal no momento, e esse 64
modelo é reproduzido ao longo do país nas últimas duas décadas, tal qual um jogo de computador no qual a sociedade segue um padrão e planejadores controlam a cidade, e olhando a cidade pela vista do avião. O que é ainda possível ver é a reprodução da cidade monótona que Jane Jacobs aponta, mais de 50 anos atrás. Os aspectos sociais e físicos da cidade fazem as pessoas pararem de interferir no espaço e perder laços e conexões emocionais com o lugar em que vivem, criando uma grande dependência da cidade-mãe. A confusão das escalas mencionadas por Jan Gehl, em adição com a posição do planejador no design contemporâneo, exercem um importante papel na imagem e dinâmica da cidade. Leidsche Rijn é o exemplo do conceito de cidade justa, igualitária, diversa e vívida, mas tudo isso no papel. As imagens da figura 12 refletem esse ideal, essa proposta de uma cidade para pessoas que está muito bem desenhada no discurso de Leidsche Rijn. Cidade compacta, vias pedestrianizadas, empregos e usos mistos atraindo pessoas para o bairro, enterramento da rodovia que divide as duas Figura 39 - Imagens renderizadas de alguns projetos de Leidsche Rijn, mostrando vivacidade e diversidade. Fonte: www.dearchitect.nl (E); www.flickr.com (D)
cidades e preservação das pequenas distâncias, todas essas ideias estão no papel e na lista do planejamento
contemporâneo holandês para projetação de novas cidades e bairros. Assim como a Utopia de Morus e a Cidade Jardim 65
de Howard e outras utopias, que estipulam diretrizes de planejamento, o plano de Leidsche Rijn revela as principais características do ideal no contexto holandês. Mas a realidade é bem diferente dessas imagens de projeto e das imagens mentais feitas a partir do discurso. Não existem tantas pessoas sem rumo andando nas ruas; na verdade, a imagem que se tem hoje se aproxima a uma cidade ideal específica, minimamente desenhada, vazia e sem vida, que é a Cidade Ideal da pintura renascentista do século XV. A imagem 40 faz esse comparativo das ruas de Leidsche Rijn com essa imagem da cidade ideal – sem pessoas – do século XV. A citação de Hulsman (in BONNIKE, 2011) traduz a crítica de Leidsche Rijn e também da problemática do planejamento idealista: “No design urbano dos bairros do VINEX, tudo tem seu lugar e nada é deixado para a coincidência... Onde nos VINEXs temos espaço para as atividades do Figura 40 – A cidade ideal. Fonte: http://www.roderickconwaymorris.com/Images/ e Leidsche Rijn. Fonte: http://www.nai.nl/museum/tentoonstellingen/digitaal/
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futuro, aquelas que não podemos imaginar ainda?” (Tradução adaptada). Esse trecho revela o ponto tocado por Mumford (1962) quando ele argumenta que as utopias são a razão que as pessoas toleram o mundo, e traduz também o argumento de Pinder (2002) que as cidades são espaços imaginários e reais que refletem os desejos, vontades e medos da sociedade. As utopias são mecanismos que provocam mudanças, críticas e debates em uma determinada realidade. O Dicionário de Geografia Humana (GREGORY, JOHNNSTON et al. , 2009) argumenta que a utopia está conectada com o poder do espaço em moldar a atividade humana, mas também pode ocorrer o contrário, a sociedade ser o sujeito que molda o espaço, não somente o planejador urbano, mas a sociedade como um todo com o planejador sendo parte desse todo e atuando complementarmente no espaço, com ações que respondem, por exemplo, ao problema da hierarquia viária de Leidsche Rijn. Apesar da forma física contribuir muito na maneira com que o espaço de Leidsche Rijn é apropriado pelos usuários, são os aspectos sociais os que mais comprometem esse espaço. Cidades são redes complexas de funções, mas o motor principal são as pessoas; não será Leidsche Rijn que representará a fórmula de uma cidade ideal, principalmente por que o ideal não existe. Atingir o ideal significa engessar o comportamento humano de maneira que possa ser previsto, excluindo a complexidade da mente humana e também excluindo a parte da sociedade no espetáculo da cidade. As cidades são formadas a partir da busca incansável do ideal, da melhor maneira de viver e, apesar dessa fórmula nunca ser atingida, a imaginação faz das cidades processos 67
incessantes de evolução e transformação. Utopias, teorias e políticas de planejamento, forma urbana, imagens e pessoas compreendem esse espetáculo e a incansável busca da cidade perfeita deve equilibrar todas as partes e ser consciente de que este é um processo em constante transformação e, muitas vezes, fora do alcance do planejamento.
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