Revista Ruar

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RUAR Edição 01 Dezembro/2017

arquitetura & questões sociais



RUAR TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE ARQUITETURA LETÍCIA CUNHA ALENCAR ORIENTADORES REJANE MAGIAG LOURA LEONARDO OLIVEIRA GOMES



AGRADECIMENTOS Dedico este trabalho a meu avô, Milton Sother de Alencar, que acreditava na arte e no poder das palavras. Agradeço à minha família, Gena, Carlos e Davi, por me aconselharem tantas vezes; ao meu companheiro Guilherme, que me incentivou durante todo o ano; à Lena Cunha, que tanto torce por meu futuro profissional; à professora Rejane por abraçar minhas ideias e se dispor a, além de me ensinar, aprender tanto para que esse trabalho se realizasse; ao professor Leonardo, que trouxe a experiência que nos faltava; ao meus colegas, que me fizeram acreditar no propósito do meu trabalho; por fim, à Escola de Arquitetura da UFMG, por possibilitar o desenvolvimento de trabalhos que não só concluem o curso, mas abrem portas para nossa vida profisisonal.


expediente

O autor da foto da página 35 não foi identificado. Caso alguém tenha essa informação, favor entrar em contato com a revista para que os créditos sejam devidamente indicados.

colaboradores

orientadores

fotografia

Ana Marta Lins Junia Ferrari Letícia Notini Letícia Pádua Raquel Byrro Sarah Fernandes Sylvio de Podestá

Rejane Magiag Loura Leonardo Oliveira Gomes

Todas as imagens utilizadas nesse volume são de autoria de Letícia Alencar, exceto quando especificado.


o propósito da ruar

Durante meu curso de Arquitetura e Urbanismo, senti falta de entender tudo o que um profissional da área é capaz de realizar e mudar no contexto da cidade. O arquiteto e urbanista entende sobre a cidade, sobre a relação entre espaços abertos e construídos e sobre a relação disso tudo com as pessoas. Defendo a ideia de que o que mais importa no trabalho do arquiteto são as pessoas. A gente demora pra entender isso, mas podemos fazer muito por elas.

à formação de um arquiteto, durante e depois de sua vida acadêmica, apresentando possibilidades e exemplos de atuação.

A Ruar nasceu com o objetivo de apresentar a relação da arquitetura com o mundo. Como seu nome já dá a entender, a intenção é inspirar arquitetos e urbanistas a fazerem o melhor possível com a formação que adquiriram durante sua formação. Esse um campo de trabalho versátil, que se relaciona com muitos outros. Quem escolhe estudar Arquitetura e Urbanismo não tem muita ideia da infinidade de opções de caminho pra percorrer depois - e ao longo - da graduação. A revista se propõe a ser uma complementação

Para exemplificar possíveis temas, próximas edições podem vir a falar sobre a relação da arquitetura com turismo, com cenografia, tecnologia, crianças, infraestrutura urbana, água, habitação… Pode existir, até mesmo, um volume inteiro a respeito de uma só cidade. Ideias, com certeza, não faltam.

Para isso, cada volume terá um tema central que, de alguma forma, se relaciona à arquitetura. O tema dessa primeira edição é arquitetura e questões sociais. Isso quer dizer que todos os artigos, entrevistas e projetos que aparecem por aqui contribuem para a construção dessa ideia.

Haverá, sempre, a seção Projeto de Estudante, que pretende apresentar as ideias e técnicas de quem ainda está na universidade naquele momento. O objetivo é, além de divulgar o trabalho dessas pessoas, dar exemplos de caminhos, valores e perspectivas a serem seguidos. Claro que, assim como a cidade e a arquitetura, a Ruar não se faz sozinha. Convidamos qualquer interessado a escrever artigos para serem publicados aqui, na seção Perspectiva. Não só textos serão bem vindos: fotografias, ilustrações e qualquer tipo de trabalho criativo terão um espaço na revista, desde que estejam dentro do tema proposto para a edição.

A Ruar quer, também, participar da vida dos arquitetos, urbanistas e estudantes. Por isso, será dada especial atenção a novos profissionais, aqueles ainda não consolidados no mercado. 5


IMAGEM: ANA MARTA LINS

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carta do editor

A Ruar nasceu com o objetivo de apresentar a relação da arquitetura com o mundo; mostrar pra estudantes a infinidade de campos em que ele pode atuar; explicar, pra quem não entende nosso trabalho, como um arquiteto e urbanista é capaz de melhorar as condições de vida de uma comunidade. A Ruar se propõe a discutir o papel do arquiteto e urbanista em sociedade.

ONG que trabalha pela defesa dos direitos de pessoas que vivem em condições precárias.

recuperação para que ela seja mais eficiente e traga um retorno maior para a sociedade.

Ainda sobre defesa dos direitos, você poderá ler a respeito da Ocupação Maria Carolina de Jesus, que traz à tona a incoerência entre o grande número de famílias sem casa de Belo Horizonte e os imóveis e terrenos vazios na região metropolitana.

A cada edição, será apresentado um tema que se relaciona com a arquitetura e o urbanismo. Esse primeiro volume trata de questões sociais. A partir de perspectivas das professoras universitárias Júnia Ferrari e Denise Morado, nos perguntamos por que não começar o envolvimento do arquiteto com comunidades de baixa renda logo durante a graduação. A verdade é que, independente da universidade, a arquitetura, em alguns aspectos, pode ser aprendida e colocada em prática por qualquer um que queira fazer diferença na sociedade. É o que pretende-se mostrar na matéria sobre a TETO,

Com a intenção de dar mais visibilidade a novos profissionais ainda não tão consolidados no mercado, apresentamos um projeto da recém graduada Sarah Fernandes, que propõe uma forma de atender ao morador de rua de Belo Horizonte. Também será apresentada uma intervenção na favela de Paraisópolis, em São Paulo, pelo grupo venezuelano Urban-Think Tank.

Na entrevista dessa edição, será apresentada a opinião do engenheiro arquiteto Sylvio de Podestá que já contesta, em parte, a atuação do arquiteto nesse campo. “Temos que tirar da cabeça essa ideia de que a arquitetura resolve problema social. A arquitetura pode contribuir num processo geral, com as suas funções, pra poder amenizar algum tipo de situação que depende dela enquanto profissão”. Por fim, você poderá ler a opinião dos nossos colaboradores e chegar à sua própria conclusão: qual a responsabilidade do arquiteto perante a sociedade?

Sobre outras formas de praticar a arquitetura, apresentamos o tema “arquitetura prisional”, onde será discutida a possibilidade de melhorar um espaço de 7


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sumário

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UM TETO PARA MEU PAÍS a atuação da ong teto no brasil

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DIREITO À MORADIA ocupação carolina maria de jesus

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PROGRAMAS DE EXTENSÃO diálogos, do grupo praxis, e “práticas de cidadania metropolitana”

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ARQUITETURA PRISIONAL apac santa luzia

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BANHEIRO PÚBLICO trabalho de conclusão de curso por sarah fernandes

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ESPAÇO PARA A CULTURA grotão - fábrica de música, por urban-think tank

52

ENTREVISTA sylvio de podestá

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SEÇÃO TÉCNICA morar indígena: uma experiência extensionista na univerisdade federal de minas gerais

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PERSPECTIVA por camila nascimento

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OPINIÃO por leticia sother




a atuação da ong teto no brasil

um teto para meu país


IMAGEM: DIVULGAÇÃO

Em 1997, no Chile, um grupo de jovens criou uma ONG para trabalhar pela defesa dos direitos de pessoas em condição de moradia precária. Com o nome de Un Techo Para Chile, o projeto consistia, inicialmente, em construir moradias de emergência para pessoas que viviam em extrema pobreza, diminuindo sua vulnerabilidade por meio do engajamento comunitário e da mobilização de voluntários. Hoje, atuando em 19 países da América Latina e Caribe, já contou com a participação de mais de 200 mil voluntários e já ajudou mais de 40 mil famílias.¹

O trabalho da ONG é dividido em três etapas: a primeira consiste na construção de moradias para famílias em situação de pobreza a segunda etapa corresponde à execução de planos de habilitação social, com ações para diminuição da vulnerabilidade social a partir de planos de educação, capacitação, saúde e fomento produtivo a terceira fase visa o desenvolvimento de comunidades, com o intuito de urbanizá-las e reintegrá-las à sociedade ²

1

Um Teto Para Meu Pais: Brasil Projeto de Graduação ESPM por: André de Freitas Tastaldi Fernando Lima Conte Fernando Nahat Jardim Taciana Kelly Romagnoli Pinto 2010

2

Habitação Emergencial e Temporária Giovana Savietto Feres 2014

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FONTES: RELATÓRIO ANUAL DE ATIVIDADES DA TETO DE 2016 E “HABITAÇÃO EMERGENCIAL E TEMPORÁRIA”, POR GIOVANA SAVIETTO FERES


As casas desenvolvidas pela Teto foram pensadas de acordo com as necessidades do seu país de origem. A estrutura cumpre o prometido, proporcionando abrigo e privacidade para as famílias, além de melhores condições de vida em relação à habitação anterior. Entretanto, por ser um modelo pré-definido e replicado em diferentes contextos, possui problemas de adaptabilidade ao clima, tipo de terreno e outros aspectos inerentes ao local de instalação.

IMAGEM: MILENA LUMINI

atuação no brasil A atuação da ONG no Brasil começou em 2006, implantada por Alvaro Rodriguez Rojas. Com o nome Um Teto Para Meu País, teve sua primeira sede na cidade de São Paulo, escolhida devido à sua importância econômica e à presença de duas grandes universidades (Universidade de São Paulo e Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), o que poderia facilitar o recrutamento de voluntários.1 De acordo com o relatório de atividades de 2016², já foram produzidas, aqui, quase 3000 moradias para famílias de baixa renda. Entretanto, apenas a primeira fase do projeto foi posta em ação. Isso quer dizer que, ainda que as casas sejam construídas, os planos de habilitação social propostos pela ONG ainda não foram colocados em prática. Em sua dissertação, Giovana Savietto Feres³, mestre pela Unicamp, classificou o abrigo construído pela Teto como emergencial. Segundo ela, “mesmo que a emergência considerada não seja necessariamente para o pós-desastre e sim para assentamentos precários

(frutos ou não de desastres), as moradias, as quais são construídas através de ação conjunta dos moradores e de trabalho voluntário, representam características potenciais para ser aplicadas em situações de emergência em desastres naturais pela rapidez com que podem ser providas e erguidas bem como pela simplicidade na solução formal apresentada”. Deve ser analisada, então, a aplicação do projeto da Teto no Brasil, que tem uma parcela significativa da população vivendo em assentamentos precários. Deve-se considerar que a situação habitacional do país não é majoritariamente emergencial (ao classificarmos esse termo como “pós-desastre”), mas sim endêmica. Como evidenciado anteriormente, devido ao seu material de baixo custo, uma casa emergencial da Teto possui vida útil de 5 anos. Entretanto, sem o estabelecimento de moradias permanentes, a habitação, poderá se tornar, mais uma vez, precária. Quase sempre, as casas de emergência são implantadas no lugar de abrigos em condições muito piores à do modelo, com estruturas ainda mais efêmeras.

Portanto, a atuação da Teto reduz os riscos já existentes e aumenta, sim, a qualidade de vida dos usuários. Ainda assim, é uma solução temporária, que seria mais eficaz se a atuação da Teto ocorresse paralelamente a uma política habitacional.

1

Sob o mesmo Teto Reportagem de Milena Lumini 2013

²

Relatório Anual de Atividades Um Teto Para Meu País 2016

³

Habitação Emergencial e Temporária Giovana Savietto Feres 2014

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IMAGEM: MILENA LUMINI

IMAGEM: MILENA LUMINI

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plano nacional de habitação O Plano Nacional de Habitação (PlanHab) foi publicado em 2009 pela Secretaria Nacional de Habitação do Ministério das Cidades. “O PlanHab se propõe a mostrar que é possível transformar as condições de moradia deste país, com a participação ativa dos setores públicos estaduais e municipais, do setor privado e dos agentes e movimentos sociais”.1 É um dos instrumentos mais importantes para a implementação da Política

Nacional de Habitação, cujo objetivo principal é “universalizar o acesso à moradia digna para todo cidadão brasileiro”.

Tendo em vista os números apresentados, a política habitacional brasileira tem falhado em cumprir com seus objetivos. A discrepância entre as metas estabelecidas e o que já foi efetivado permitem com que seja razoável classificar a atual situação do país como emergencial, o que justificaria a construção de abrigos que, a princípio, sejam efêmeros.

para uma emergencial. A atuação da Teto está londe de resolver o déficit habitacional brasileiro, mas permite que algumas pessoas em situação de extrema pobreza melhorem, minimamente, sua

Para traçar as metas de atendimento, o PlanHab trabalha com dois possíveis cenários. O mais otimista, adotado pelo plano, leva a uma meta de produção de 24,8 milhões de unidades até 2023, o que corresponde a 71% das necessidades estimadas.

FONTES: PLANO NACIONAL DE HABITAÇÃO / BRASIL.GOV.BR

O PlanHab adotou uma projeção de necessidade habitacional de aproximadamente 35 milhões de unidades no período de 15 anos, ou seja, para ser sanada até 2023. Uma providência tomada para resolução dessa proposta foi a criação do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV), a

maior estratégia do Governo Federal para eliminar o déficit habitacional².

Uma vida útil de cinco anos é pouco para uma moradia permanente, mas é suficiente

1

Plano Nacional de Habitação Ministério das Cidades Secretaria Nacional de Habitação 2009

condição de vida. Além disso, o envolvimento da sociedade através de voluntários dá visibilidade à causa. O problema não é eliminado, mas pode ser minimizado.

²

Plano Nacional de Habitação: atual cenário do Programa Minha Casa Minha Vida Gerusa Gonçalves Moura Leilaine de Fátima Ferreira 2014

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ocupação carolina maria de jesus

direito à moradia


A moradia é um direito do cidadão, de acordo com a Constituição Federal de 1988. Junto a ela, estão saúde, educação, trabalho, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados, segurança, lazer, vestuário, alimentação e transporte. Em uma cidade como Belo Horizonte, o acesso mais fácil a esses benefícios está em áreas centrais. É principalmente dentro do perímetro da Avenida do Contorno que se encontram boas escolas, hospitais públicos, oportunidades de trabalho, opções de lazer e maior acesso ao transporte público. E a moradia? Hoje, na área central de Belo Horizonte, existem 107 imóveis subutilizados, entre edifícios vazios e terrenos vagos. Além disso, são 165 lotes usados como estacionamento. Enquanto isso,

existe um déficit habitacional de 80 mil famílias no município¹. A ocupação do centro da cidade possibilitaria um melhor acesso a serviços básicos de saúde, educação, transporte e oportunidades de emprego a essas pessoas. O grande número de edifícios subutilizados na região central implica em um desperdício de infraestrutura, como instalações elétricas, hidráulicas ou de esgoto. Também significa que tudo aquilo que o centro oferece de equipamentos urbanos não alcança todos os cidadãos que poderiam se beneficiar. De acordo com o Estatuto das Cidades de 2001², “a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana”. Para isso, ela se propõe a ordenar o controle do uso do solo, de forma a evitar, entre outras coisas, a utilização inadequada de imóveis urbanos e

a retenção especulativa de imóvel, que resulta na sua subutilização. Além disso, o Estatuto da Cidade prevê justa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes do processo de urbanização - ou seja, a garantia de que todos os cidadãos tenham acesso a tudo que a cidade oferece. Ainda de acordo com o Estatuto das Cidades, o edifício tem uma função social. Ou seja, quando não tem nenhum uso, um imóvel deve abrigar uma creche, hospital, escola ou, preferencialmente, moradias.

1

MLB Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas

²

Lei 10257 10 de julho de 2001

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IMAGEM: MÍDIA NINJA

ocupação carolina maria de jesus A Ocupação Carolina Maria de Jesus, assim como diversas outras ocupações existentes nos últimos anos, surgiu como uma resposta a essa situação. O movimento é articulado por moradores de diferentes regiões da Região Metropolitana de Belo Horizonte (RMBH), além de pessoas em situação de rua e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB). Além disso, conta com apoio de estudantes e professores da UFMG, que fazem uso de conhecimento técnico para dar força ao grupo.

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A ocupação tem lugar em um edifício de dezoito andares, localizado na Avenida Afonso Pena, 2300, que se encontrava subutilizado desde 2012. Os ocupantes estão ali desde o dia 7 de setembro de 2017 com o objetivo de lutar pelo direito à moradia. Ao todo, são 200 famílias vivendo no edifício, com 60 crianças e diversos idosos. A organização dos moradores se dá com a formação de comissões. Existe a comissão de segurança, de limpeza, de cozinha… Dessa

forma, cada um cumpre um papel naquela comunidade, possibilitando seu bom funcionamento. Hoje, apenas os andares mais baixos do edifícios estão ocupados, devido ao não funcionamento do elevador, além de diversos moradores terem dificuldade de locomoção. Os dois primeiros pavimentos, que comportam galerias, foram destinados, principalmente, a espaços comuns e de administração. Existe uma oficina de marcenaria, onde são feitos


móveis para outros ambientes, como a estante da biblioteca. Há creches, coordenadas pelas próprias mães e com uma escala de trabalho, onde se realizam atividades com as crianças enquanto seus pais e mães não estão presentes. Existe também, nesse ambiente, algo parecido com um escritório de arquitetura. Thiago Castelo Branco, professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFMG, ocupa uma sala do edifício e, junto a alguns alunos, auxiliam no aproveitamento do espaço da ocupação. O acesso aos pavimentos acima das galerias se dá através da escada de emergência, escura e sem ventilação. No terceiro andar é onde se encontra a cozinha, também gerida por uma comissão. São preparadas quatro refeições ao dia: café da manhã, almoço, café da tarde e jantar. Ao lado da cozinha há uma área descoberta, onde existem um

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22 IMAGEM: MAICK HANNDER/BHAZ


tanque, uma horta comunitária e o varal. Nesse andar também se encontra uma sala de cinema e de reuniões. A partir do quarto andar, o espaço é ocupado pelos quartos dos moradores. Inicialmente, houve uma divisão das áreas, mas cada pessoa ocupou da sua maneira. O ambiente é dividido por lençóis, toalhas e sacos plásticos, de modo a garantir privacidade aos residentes. Segundo uma integrante da comissão de comunicação responsável pela programação de atividades e divulgação de materiais produzidos -, um dos maiores problemas encontrados no edifício é a questão hidráulica. Grande parte dos banheiros possui vazamentos ou outros defeitos. Dessa forma, cada andar só conta com um banheiro funcional. Além disso, foram

instalados chuveiros nos lavatórios do primeiro pavimento. Os benefícios de se morar em uma região com boa infraestrutura já estão evidentes, ainda que não haja tanto tempo de ocupação. Várias crianças já foram matriculadas em escolas da zona central e muitas delas visitaram, pela primeira vez, o parque municipal - elas nunca haviam conhecido um parque. Além disso, a proximidade com a área hospitalar é extremamente benéfica para os moradores que dependem de algum tipo de tratamento. O custo de vida no bairro é alto, mas isso se compensa com o acesso a infraestrutura, transporte - ou, até mesmo, a dispensabilidade de transporte -, opções de lazer, etc.

edifício, já autorizadas pelo poder judiciário. Existe sempre, então, uma tensão entre os moradores, provocada pela possibilidade da chegada da Polícia Militar para realizar o despejo. É importante entender que o objetivo da Ocupação Carolina Maria de Jesus é, principalmente, estabelecer um diálogo com o Governo de Minas para que a moradia seja garantida para os ocupantes. Citando Leo Péricles, integrante da Coordenação Nacional do MLB, “Enquanto morar for um privilégio, ocupar será sempre um direito e um dever”.

Desde o início da ocupação, já foram feitos dois pedidos de reintegração de posse do 23


diálogos, do grupo PRAXIS, e “práticas de cidadania metropolitana”

programas de extensão


A prática de envolver alunos de graduação diretamente com comunidades é comum em diversos cursos. Na Faculdade de Medicina da UFMG, por exemplo, existe o internato rural - momento em que estudantes se mudam, temporariamente, para uma cidade pequena, do interior de Minas Gerais, para que tenham a oportunidade de trabalhar nesse contexto. A experiência em comunidades menores - e, muitas vezes, carentes de conhecimento técnico - é não só uma oportunidade de aprendizado para os estudantes como, também, uma opção de mão de obra mais acessível para essas cidades, vinda de pessoas que tenham, como único objetivo, aprender. No caso do curso de Arquitetura e Urbanismo, essa possibilidade de atuação é menos óbvia. A profissão do arquiteto é, muitas vezes, associada a um serviço pontual e de luxo. Portanto, não haveria porque relacionar a atuação desse profissional ao cotidiano de uma comunidade.

são muitas e, logo, há várias formas de um profissional aplicar seu conhecimento técnico na produção de um espaço mais democrático, inclusive durante a graduação. Nesse momento, entram em cena os chamados Programas de Extensão, que têm como objetivo apoiar as universidades públicas no desenvolvimento de projetos que contribuam para a implementação de políticas públicas¹. Quando se trata desse tipo de abordagem, deve existir um equilíbrio entre o ensinar e o aprender. A interação com comunidades representa uma oportunidade única para os estudantes incorporarem conhecimentos não ensinados em sala de aula ou em escritórios de arquitetura. Existe um tipo de saber que apenas a vivência e a interação com diferentes

agentes (poder público, crianças e autoconstrutores, por exemplo) pode proporcionar. Serão apresentados, a seguir, dois casos em que o aluno da EA/ UFMG se envolve diretamente com comunidades. Em ambos, existe um incentivo à prática compartilhada de produção do espaço urbano. Enquanto o Diálogos, do grupo de pesquisa PRAXIS, pratica a combinação entre o saber técnico e o autoconstrutor, a disciplina da professora Júnia Ferrari pretende mobilizar e unir moradores em prol de um bem comum, mesmo quando os estudantes não estiverem mais atuando naquele local. Nota-se, entretanto, que sempre existe incentivo à autonomia dos agentes, ainda que de formas diferentes.

“A Academia é o espaço, por excelência, da experimentação e da oportunidade do exercício da criatividade nas suas mais variadas formas.”

Cinco anos na Escola de Arquitetura da UFMG (EA/UFMG) são capazes de provar errado qualquer um que pense dessa maneira. As opções de atuação de um arquiteto e urbanista

Júnia Ferrari

projeto diálogos PRAXIS é um grupo de pesquisa do CNPq, sediado pelo Departamento de Projetos (PRJ) e pelo Programa de Pósgraduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU) da Escola de Arquitetura da UFMG². Nasceu do pressuposto comum entre todos os pesquisadores envolvidos: a análise crítica, a investigação teórica e a construção de práticas em prol do direito à moradia e à cidade.

Esse grupo atua a partir do princípio de que arquitetos e pesquisadores podem interagir com moradores, possibilitando a troca de informações e de

experiências³. Essa proposta foi nomeada Diálogos, projeto de pesquisa que promove a mediação democrática e horizontal de informação⁴.

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portal.mec.gov.br

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arq.ufmg.br/praxis

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Saberes [auto]construídos, livro organizado por Denise Morado Nascimento

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IMAGEM: DIÁLOGOS ACABA MUNDO

Diálogos, que conta com participação de professores, pesquisadores e alunos da graduação, abre possibilidades de se pensar o desenvolvimento do espaço como um processo coletivo, onde o morador tem voz sobre o ambiente que ocupa. Segundo Denise Morado, coordenadora do projeto, a principal proposta é o reconhecimento de saberes não ensinados na universidade, o saber autoconstrutor, para que se estruture uma prática compartilhada de produção do espaço urbano. Sobre a Ocupação Irmã Dorothy, um dos territórios em que o Diálogos atuou, Denise diz: “Compreendendo a moradia como processo resultante da interação de arquitetos e moradores frente às tomados de decisão na sua produção, os membros integrantes do grupo de pesquisa PRAXIS estabeleceram parceria com os moradores, objetivando: a troca de experiências e vivências; a ruptura da postura assistencialista por meio da construção de uma relação mútua e adequada; a promoção dos moradores dentro do processo de tomada de decisões; a transformação dos sistemas de conhecimento dos envolvidos; o fortalecimento de processos compartilhados e colaborativos de produção do espaço.”1

1

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Saberes [auto]construídos

RUAR RECOMENDA Para enteder mais sobre o programa Diálogos, do grupo PRAXIS: O livro Saberes [auto]construídos, organizado por Denise Morado Nascimento. Esse livro pode ser adquirido na sala 312 da Escola de Arquitetura da UFMG (Rua Paraíba 697), à tarde, ou por correio; envie email para dmorado@gmail.com solicitando instruções.

Acesse: praxis.arq.ufmg.br Ou tenha acesso a uma prévia do livro no link abaixo:


assessoria técnica O Diálogos trabalha com o termo “assessoria técnica”, em vez do habitual “assistência técnica”. Isso porque o segundo termo implica em vir com um conhecimento prévio para ajudar quem precisa, enquanto o primeiro pretende estabelecer uma relação horizontal entre os envolvidos no processo. Os moradores das ocupações em que o projeto atua possuem um conhecimento muito maior do que se supõe, possibilitando com que ambas as partes possam tanto aprender quanto ensinar.

O processo de assessoria técnica não possui fórmula ou roteiro, ele é construído de acordo com o desenvolvimento de cada caso. O primeiro contato com os moradores acontece da forma mais simples e natural possível: abordando pessoas nas ruas, perguntando sobre seu interesse, distribuindo panfletos. Uma vez que se conhece o perfil de cada morador, se estrutura o material a ser usado. Para representação de um projeto arquitetônico, podem ser utilizadas maquetes 3D, desenhos no papel, traçados com

barbante no chão, o que for mais aceito pelos moradores. Atualmente, o grupo PRAXIS atua na Vila Acaba Mundo, no bairro Mangabeiras, em Belo Horizonte. Inicialmente, foi distribuído um panfleto explicando o conceito de assessoria técnica, enquanto os moradores eram questionados a respeito de seu interesse em construir ou reformar. Quando o líder da associação de moradores, Laerte, demonstrou interesse na assessoria técnica, IMAGEM: DIÁLOGOS ACABA MUNDO

“Ouvir os moradores foi de fundamental importância; o conhecimento dos autoconstrutores permitiu-nos transformar nosso saber técnico-teórico. A vivência prática dos autoconstrutores, suas histórias e os processos de decisão sobre o espaço, ali presentes, transformaram nossa percepção a respeito do processo de projetar próprio do campo de conhecimento da arquitetura. Ao mesmo tempo, foi importante dizer o que fazíamos ali, mostrar que as entrevistas formavam base importante e necessária de pesquisa sobre a produção habitacional. Observamos que a construção das residências dizia muito sobre as necessidades habitacionais reais de cada morador. Ao contrário, o arquiteto, detentor do saber técnico, impõe em grande parte seu conhecimento teórico sobre o modo de vida do morador, podendo não responder às demandas reais de moradores. Quando o usuário desse espaço passa a decidir sobre a obra, ele propõe ações baseadas em sua própria realidade e seu saber empírico.” Flávia Prazeres de Matos, Juliana de Faria Linhares, Larissa de Souza Silva, no texto Troca de Aprendizados, publicado no livro Saberes [auto]construídos

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IMAGEM: DIÁLOGOS ACABA MUNDO


IMAGEM: DIÁLOGOS ELIANA SILVA

foi organizado um café da manhã coletivo, com a intenção de entender as demandas dos moradores. Letícia Pádua, estudante da EA/ UFMG e participante do grupo PRAXIS, diz que o processo é interessante, de muito aprendizado, mas que nem sempre ocorre como esperado. Pode ser que a definição do termo “assessoria técnica” fique confusa para alguns moradores, pois

nem sempre existe abertura para sugestões dos estudantes. Na Vila Acaba Mundo, uma moradora não permitiu que a assessoria aconcetecesse da maneira que era pretendida. Sobre esse caso específico, Letícia diz: “Eu não acho que foi errado, mas foi uma forma de assessoria inesperada. Foi muito mais pra gente aprender do que o contrário”. Uma atuação que ilustra bem a atuação do PRAXIS ocorreu na

Ocupação Eliana Silva, na região do Barreiro, também em Belo Horizonte. Uma grande demanda dos moradores era a construção de um espaço adequado para uma creche, possibilitando que as mães, ao terem onde deixar seus filhos, pudessem trabalhar. Para uma obra desse porte, foi realizada uma campanha no site de financiamento coletivo Catarse. A partir de doações, tornaria-se possível a construção da Creche Tia Carminha. A campanha concluiu seu objetivo e já foi finalizada, mas o vídeo de divulgação ainda está disponível no link abaixo:

IMAGEM: DIÁLOGOS ELIANA SILVA

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práticas de cidadania metropolitana O projeto Diálogos parte do princípio de que o morador e usuário do espaço é o que mais entende sobre suas próprias demandas, enquanto o arquiteto entra com o conhecimento técnico. Por isso é tão importante essa troca de informações e conhecimento entre as duas partes, para que o morador possa participar do processo de mudança do espaço que ocupa. Júnia Ferrari, professora da EA/ UFMG, fez uso dessa mesma premissa para elaborar uma disciplina com proposta diferente para o curso de Arquitetura e Urbanismo. Com o título “Práticas de Cidadania Metropolitana”, a ideia é que alunos da graduação obtenham formação em extensão universitária, ou seja, atuem 30

como fariam em um Programa de Extensão. “Eu sempre tive uma preocupação muito grande que as propostas de trabalho tivessem um vínculo com a realidade, de alguma forma. Acho que já tem outros espaços onde [os alunos] podem exercer a criatividade de uma forma mais abstrata e faltavam oportunidades pra eles lidarem com os desafios mais concretos. Estabelecer relações, ler o lugar como ele, de fato, demanda, e ter a responsabilidade de saber que, aquilo que ele está fazendo, alguém vai usar. Não é só uma avaliação. Vai ter um impacto direto.”, diz Júnia. A concepção da disciplina começou depois que Júnia, com

um grupo de outros profissionais, trabalhou na elaboração do plano metropolitano da RMBH (Região Metropolitana de Belo Horizonte) em 2009. Percebeuse a necessidade de construir uma instância de discussões sobre questões relativas à cidade, mas que não dependesse da elaboração de planos diretores para ter continuidade. Surgiu a ideia, então, de se constituir os Lumes, Lugares da Urbanidade Metropolitana, onde se pudessem estabelecer fóruns contínuos de discussão sobre a cidade. “A universidade chegaria nesses lugares, a princípio, pra fazer um primeiro contato, uma troca de informações, às vezes informações que a universidade tem e que pode contribuir para o


município, com demandas que estão ali. O município, por sua vez, trás pros alunos e professores sua experiência, que é ímpar. A princípio, a gente nem chegou a discutir, especificamente, questões relativas à cidade. Era o que o município demandava.”, diz Júnia. Para o segundo semestre de 2017, surgiu a oportunidade de criar a disciplina de formação e extensão universitária, e Júnia percebeu a chance de dar um passo adiante. A ideia era escolher um município que estivesse disposto a receber alunos da UFMG por alguns dias, em uma imersão, para que fossem promovidas discussões sobre a cidade. O primeiro município a participar desse projeto é Raposos, integrante da RMBH. O contato inicial da universidade com os moradores da cidade foi em uma reunião na Câmara Municipal,

onde Júnia teve a oportunidade de se apresentar como professora da UFMG. O primeiro contato direto dos estudantes com os moradores foi em setembro de 2017. O principal intermediador desse encontro foi o padre Eribaldo, que anunciou a chegada do grupo à cidade e disponibilizou sua casa para que os alunos pudessem se abrigar. O grupo também contou com o apoio de Rafael Gonçalves, um dos vereadores do município, que se dispôs a apresentar a região e a debater temas relevantes para a atividade. Durante quatro dias, os estudantes conheceram Raposos, se envolveram com moradores e discutiram, entre si, as melhores formas de atuar ali. O objetivo desse primeiro encontro seria entender a relação das pessoas com sua cidade. Foram realizadas reuniões com vários moradores, inclusive crianças, interessados em realizar

mudanças em Raposos. Algumas atividades propostas pelos alunos da UFMG possibilitaram que os habitantes colocassem em jogo sua memória afetiva da cidade. Foram expostas, por eles, suas principais frustrações em relação às dinâmicas da cidade, assim como ideias e planos para sua melhoria. A professora Júnia Ferrari ressalta que o conteúdo dessas conversas deve ser cuidadosamente analisado e incorporado pelos alunos, pois pode seguir uma “lógica urbanizada”. Pode ser o caso, por exemplo, quando dizem que em Raposos não há o que fazer quando comparada a Belo Horizonte. No Brasil, cidades menores podem ter menos atividades, mas possuem mais áreas livres, de recreação. Para Júnia, existe uma lógica de que a melhoria de uma cidade envolve aproximá-la de um grande centro, mas esse pensamento deve ser revertido. 31


Essa primeira experiência dos alunos com os habitantes de Raposos tinha como objetivo entender a cidade, quais as suas perspectivas e demandas. A partir dos dados levantados, foram criados três eixos de atuação principais: mobilidade, meio ambiente e a questão do estigma de cidade dormitório. mobilidade: trata de questões relativas ao trânsito, sobre o fato de as calçadas serem tão estreitas que pedestres precisam andar na rua, sobre a falta de transporte público na cidade meio ambiente: Raposos possui uma grande extensão de áreas verdes e muitos cursos d’água, mas essas áreas são pouco preservadas e a população tira pouco proveito delas estigma de cidade dormitório: levantou-se a questão de porque existiria esse estigma e que ações poderiam ser realizadas para reverter esse pensamento; os alunos acreditam que, acostumados com a ideia de sempre sair de Raposos para resolver qualquer demanda, os moradores não percebem o que, de fato, existe em sua cidade

Cidade dormitório: cidade ou aglomeração suburbana onde, por conveniência, se alojam as pessoas que passam o dia noutra cidade mais importante e aí exercem alguma atividade. Dicionário Google

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Todos essas questões estão diretamente relacionadas ao turismo, que possui grande destaque no plano diretor da cidade. Se houvesse maior investimento nessa área, haveriam mais empregos, mais recursos para investimento na cidade e chamaria atenção para pontos fortes de Raposos, possibilitando melhoria nos três eixos levantados pela turma. A partir dessas discussões e de mais debates com o grupo de moradores, optou-se por realizar um evento na cidade no dia 25 de novembro de 2017 que articulasse todos esses pontos. As ruas do centro serão fechadas para tráfego de carros, sendo permitido apenas o trânsito de pedestres. Segundo Luísa Greco, aluna da disciplina, a proposta é reunir diversos projetos interessantes que já ocorrem ali para que os moradores tomem conhecimento deles, como oficinas e dinâmicas sobre reciclagem. O grupo responsável pelo eixo ambiental planeja propor, também, caminhadas ecológicas. Além disso, pretendese alugar um ônibus que circule por Raposos nesse dia, levando os moradores para o evento, funcionando também como teste de uma nova linha. A proposta desse evento é atuar como um começo. A disciplina de Júnia Ferrari seguirá ainda por outros semestres e a próxima turma continuará atuando na cidade de Raposos. Assim, pretende-se criar uma rede de pessoas com objetivos em comum, como pedir a nova linha de ônibus ou a instalação de mais lixeiras nas ruas. Ao potencializar o que já existe na cidade, a comunidade pode se valorizar e ganhar força como grupo, abrindo portas para que a região progrida cada vez mais, com autonomia, sem a intervenção de universitários.

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apac santa luzia

arquitetura prisional


Qual a função de uma prisão? De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, aproximadamente 70% dos brasileiros voltam a cometer delitos após cumprirem sua pena. A realidade das penitenciárias brasileiras é construída com a ideia de que essa instituição tem, como única função, punir pessoas por seus crimes. A função de uma prisão, entretanto, deveria ser, principalmente, colaborar com o crescimento pessoal do indivíduo, possibilitando sua reabilitação. Dessa forma, uma vez cumprida a pena - sua punição -, um ex-detento seria reinserido na sociedade. O espaço de recuperação de um indivíduo desempenha um papel importante em sua evolução, devendo ter um papel educador. O espaço construído não é suficiente para assegurar resultados positivos, mas contribui com o processo e, portanto, deve-se entender as necessidades de projeto para que um edifício penitenciário

seja pensado da melhor forma possível. É necessário buscar um equilíbrio entre normativa, a Lei de Execução Penal, os direitos humanos e a intenção de um espaço focado em reabilitação.¹ Segundo o arquiteto Flávio Agostini, dentre os projetos penitenciários do Brasil destacamse duas principais estratégias de organização do edifício:

Já para Suzann Cordeiro, a maior dificuldade para projetar um edifício penitenciário está em diminuir o distanciamento entre o autor do projeto e as reais necessidades do usuário. O propósito dessa arquitetura deve ser reabilitar o indivíduo, sem visar apenas a parcela punitiva, que já é alcançada com a privação da liberdade.

pavilhões organizados ao redor de pátio descoberto: um módulo externo destinado ao setor administrativo e um ou mais módulos intramuros destinados aos detentos. Os módulos internos possuem corredores de circulação voltados para um pátio interno edifícios organizados a partir de pavilhões dispostos paralelamente: possuem o mesmo módulo externo que o anterior, mas seus módulos internos são articulados por um grande corredor central, sem pátio interno.

1

A Humanização da Arquitetura Prisional em Prol da Reabilitação Social Isabella Oliveira Albino de Souza 2016

IMAGEM: PRESÍDIO CARANDIRU DESATIVADO AUTOR DESCONHECIDO

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apac A APAC - Associação para a Proteção e Assistência aos Condenados - surgiu, em 1974, como uma alternativa ao sistema prisional vigente no Brasil. Segue o modelo de prisão aberta e seu objetivo é implantar um novo processo de acompanhamento e reabilitação de presos em suas unidades.1 Presente em 15 estados e com mais de 100 unidades, a APAC valoriza a participação de cada recuperando na organização do cotidiano prisional, assim como o envolvimento comunitário. Organiza-se uma rede de voluntários que trabalham junto

dos internos para que as unidades funcionem adequadamente e para que haja um convívio dos detentos com a sociedade. Em algum momento, todos os recuperando assumem alguma responsabilidade no espaço, administrando e executando todas as tarefas cotidianas, como limpeza, manutenção, alimentação e, até mesmo, vigilância. Por bastante tempo, as unidades da APAC funcionaram em edifícios prisionais adaptados, existindo apesar do espaço pouco favorável para reabilitação. O

tratamento penal revolucionário é possível mesmo nestes locais. Entretanto, ele pode ser limitado. Um espaço pensado especialmente para esse modelo prisional poderia permitir novas abordagens e estimular diferentes dinâmicas e aprendizados.

1

colaterais.org

PRISÃO ABERTA “O termo prisão aberta refere-se a uma proposta de modificação da gestão do meio prisional. De início, podemos caracterizá-la como a constituição de um espaço cuja função de reclusão não é pautada pela busca de isolamento absoluto entre presos e sociedade. Para tal, parte-se de um princípio inovador, transferindo-se o papel de administração dos estabelecimentos penais do Estado para a sociedade, por meio de entidades locais sem fins lucrativos. Com essa medida, altera-se uma das premissas estruturais do espaço prisional moderno – o de um rigoroso isolamento intra-muros – e abrem-se possibilidades para um cotidiano marcado por procedimentos mais flexíveis e receptivos aos presos.” colaterais.org

FONTE: DEPEN e FBAC VALORES APROXIMADOS

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IMAGEM: MAB ARQUITETURA E URBANISMO

uma contraproposta ao presídio tradicional A APAC Santa Luzia foi projetada pelo escritório mineiro MAB Arquitetura e Urbanismo e se trata da primeira proposição arquitetônica exclusiva para uma APAC. É resultado de parcerias entre APAC, Ministério da Justiça, Prefeitura e Comunidade de Santa Luzia, irmãos Maristas e PUC Minas.²

As autoridades federais foram convencidas de que uma experiência prisional diferente só era possível se fosse reinventada, também, a arquitetura. Deveriase criar um projeto com maior abertura para diferentes experiências e gestão do ambiente penitenciário.

1

A Humanização da Arquitetura Prisional em Prol da Reabilitação Social Isabella Oliveira Albino de Souza 2016

“Necessita-se priorizar, dentro do espaço carcerário, os direitos sociais de todo indivíduo, tais como educação, trabalho, convívio familiar. Esses direitos são considerados re-educativos e humanitários; colaboram na formação da personalidade do recluso, ao criar-lhe hábito de autodomínio e disciplina social, e dão ao mesmo uma profissão a ser posta a serviço da comunidade livre. Na participação das atividades do trabalho o preso se aperfeiçoa e prepara-se para servir à comunidade.” Suzann Cordeiro

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IMAGENS: MAB ARQUITETURA E URBANISMO

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IMAGEM: MAB ARQUITETURA E URBANISMO

Um dos mais importantes elementos para o projeto é a topografia. A unidade comporta terraços escalonados que permitem a contemplação da paisagem local, proporcionado aos internos uma experiência diferente do tradicional emparedamento. Além disso, não existem ali passarelas ou guaritas de vigilância. Uma das principais estratégias do projeto consistia em criar um espaço que oferecesse diferentes possibilidades de apropriação dos espaços, permitindo que os internos pudessem escolher entre diversas atividades ocorrendo simultaneamente. O grande número de pátios permitiu uma relação entre o interior e o exterior mas, principalmente, estimulou as ocupações diversificadas, todas viabilizadas por iniciativas dos internos: Os espaços foram ocupados por hortas, áreas para receber visitas, mobiliários para realização de oficinas. Algumas

dessas áreas, que ficaram ociosas, foram posteriormente aproveitadas por outros usos necessários, como as estufas.1 É claro que esse uso diferente do espaço não resolve o sistema prisional brasileiro. Qualquer prisão possui um caráter opressor, mas minimizálo é essencial. É necessário conciliar o método punitivo com atividades de aprendizado e lazer, proporcionando um ganho e uma ocupação para os recuperandos. A reabilitação de um indivíduo se torna mais acessível a partir de instrumentos proporcionados pela arquitetura.

1

RUAR RECOMENDA Para assistir: O documentário Lotado Direção de Luanda Lopes 2004 Para entender mais sobre a história da arquitetura penitenciária: Arquitetura penitenciária: a evolução do espaço inimigo Texto de Suzann Cordeiro

Prisão Autogestionada Flávio Agostini Piseagrama

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trabalho de conclusĂŁo de curso por sarah fernandes

banheiro pĂşblico


IMAGEM: HENRY MILLEO/GAZETA

Para muitas pessoas, o morador de rua é visto como um incômodo pelo qual temos que passar durante o dia. Ele é apenas o mau cheiro, o colchão ocupando um lugar na calçada. Sarah Fernandes, graduada em Arquitetura e Urbanismo na UFMG, se posicionou contra essa visão ao desenvolver seu Trabalho de Conclusão de Curso. Ela afirma que, de fato, esse grupo corresponde a um desvio do modo considerado correto de viver em cidade e, por isso, é considerado apenas um problema urbano que deve ser resolvido. Em Belo Horizonte, o número de pessoas em situação de rua teve um aumento de 70% em 2 anos, totalizando um número de, aproximadamente, 3000 pessoas¹. Em outras cidades, como o Rio de Janeiro, esse aumento é ainda maior: 156% em três anos. Em 2013, eram

contabilizadas 5.580 pessoas em situação de rua, contra 14.279 em 2016². Os abrigos disponíveis na cidade não comportam nem 20% dessa população³. Esses números apenas exemplificam uma situação que ocorre em todos os grandes centros urbanos do Brasil: a população de rua cresce exponencialmente, principalmente em momentos de crise econômica. No centro do Rio de Janeiro, por exemplo, existem pessoas que, sem dinheiro para passagem de ônibus ou aluguel na região, optam por dormir ali para que possam ficar perto do trabalho. Existe uma grande parte da população que, estando em situação de rua, não tem acesso a uma infraestrutura básica. Diante desse quadro, a questão apontada por Sarah é: por que não podemos aceitar um modo

de viver diferente do que o que queremos para nós? Por que o morador de rua não pode ocupar a cidade da forma que lhe convém? Sua solução pra esses questionamentos veio em forma de projeto arquitetônico: um espaço pensado para o morador de rua, mas que possa ser usado por qualquer cidadão. A existência de um espaço para essa população poderia vir a minimizar as tensões existentes na cidade decorrentes da relação entre morador de rua e outros habitantes.

1

hojeemdia.com.br

2

g1.globo.com

3

agenciabrasil.ebc.com.br

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IMAGEM: SARAH FERNANDES

Ao formar a concepção de seu projeto, Sarah partiu da forma de um cubo e criou diferentes módulos acopláveis para serem instalados em áreas urbanas subutilizadas. Os requisitos impostos por ela eram cinco: fácil montagem e instalação baixo custo de instalação e manutenção adaptabilidade a qualquer terreno com inclinação máxima de 10% garantia de acessibilidade em módulos sanitários específicos e no módulo de banho garantia de economia de recursos hídricos

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O primeiro e o segundo requisitos foram atendidos pela estrutura de steel frame, que é fácil de aprender e rápida de montar, além de ter fácil manutenção. A rigidez do módulo foi garantida com o uso de placas de concreto perfuradas, de modo a garantir a entrada de luz solar. A adaptabilidade aos terrenos foi obtida com a criação de uma peça de fixação, que corrige a inclinação do solo. Os módulos, que contam com uma unidade acessível à pessoas com baixa mobilidade, contam com reservatório próprio, garantindo sua independência, e descargas à vácuo, que diminuem o gasto de água.

A escolha da área de instalação também partiria de alguns pré requisitos: o entorno deve conter boa iluminação pública durante a noite, número considerável de pessoas, comércios e equipamentos públicos a área escolhida deve possuir alguma forma de acesso a água canalizada, esgoto e luz elétrica a instalação é indicada em locais públicos, como praças, parques e vazios urbanos, como baixos de viadutos e áreas residuais entre edificações Foram criados, para esse projeto, cinco módulos diferentes, que serão apresentados a seguir.


módulo sanitário simples

módulo lavatório

módulo banho

1m 1m

três cabines de uso individual cada cabine contém: bacia sanitária, cabideiro, papeleira e lixeira

pensado para ser acoplado aos módulos sanitários possui quatro estruturas de lavagem individual reservatório de 1000L

reservatório de 1000L

módulo sanitário pne

1m

duas cabines individuais área de apoio com banco e armário barras de apoio, para que seja acessível

módulo de manutenção

reservatório de 2000L garante 50 banhos sem necessidade de reposição de água banho com duração máxima de 5 minutos; a permanência do usuário não pode ultrapassar 20 minutos aquecimento de água por bomba de calor

1m

cabine individual contendo: bacia sanitária, cabideiro, papeleira e lixeira possui barras de apoio lavatório próprio reservatório de 1000L

1m

uso exclusivo de funcionários quatro compartimentos internos: DML, copa, vestiário e casa de bomba

funcionamento de 8 a 12h por dia acompanha o módulo de manutenção

sua associação aos demais módulos é indispensável

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IMAGEM: SARAH FERNANDES

Além dos módulos, foram criados equipamentos que, junto aos banheiros, tornam-se um mobiliário urbano completo e com diversas possibilidades de uso. São eles:

módulo de segurança (cabine policial) peça de fixação (corrige a inclinação do terreno)

bicicletário bancos lixeira

bebedouro

IMAGEM: SARAH FERNANDES

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Esse espaço atenderia as necessidades de um público marginalizado e, com o uso, poderia expor, também, a expressão desse grupo: existe a intenção de que as placas de concreto possam servir de “telas urbanas”, um espaço de apropriação artística por parte dos cidadãos. A criação de um equipamento voltado especialmente para moradores de rua, onde eles possam, de fato, ocupar o espaço, acompanha um desejo de que o olhar sobre eles mude. Espera-se que os habitantes de Belo Horizonte possam enxergar essa população tão vulnerável como parte integrante da cidade onde vivem.


IMAGEM: SARAH FERNANDES

IMAGEM: SARAH FERNANDES

os diagramas dos módulos usados nessa matéria são de autoria de Sarah Fernandes

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grotão - fábrica de música, por urban-think tank

espaço para a cultura


IMAGEM: FABIO KNOLL

O atual desafio de arquitetos e urbanistas consiste em projetar para um espaço existente ao contrário do urbanismo modernista, que trabalhava com territórios vazios. O projeto de uma cidade, hoje, tem como ponto de partida espaços já construídos, sejam eles formais, consolidados pela implementação de parcelamentos legais, ou informais, caracterizados pela implementação de loteamentos irregulares, as favelas. Atualmente, são quase 11,5 milhões de brasileiros vivendo em favelas. Isso se dá, essencialmente, pelo aumento da concentração da população do país em grandes cidades. Em 1970, 55,9% dos brasileiros vivia em centros urbanos. De acordo com o censo de 2010, hoje 84,36% da população brasileira é urbana¹. Esse processo vem acompanhado de uma demanda por moradia, serviços e infraestrutura, tão pouco

acessíveis para uma grande parcela da população. Diante dessa realidade, arquitetos e urbanistas tem muito a contribuir para o preenchimento dessas lacunas, tão importante na favela quanto na cidade formal. Grande parte das favelas, instaladas em regiões periféricas, se vêem carentes de espaços públicos, que deveriam agir como centralizadores de atividades sociais de populações locais. Esses locais são essenciais para que os moradores de ocupações irregulares se vejam como parte integrante da cidade e da sociedade.

1

O urbanista suíço Hubert Klumpner acredita que o sucesso de um espaço público depende apenas de uma infraestrutura mínima. Além disso, ele afirma que, para elaborar um projeto desse tipo, basta observar o que já é utilizado espontaneamente pelas pessoas. “A maior parte das ideias já existem nas cidades. Você não pode tê-las numa mesa de trabalho porque elas estão nas ruas. Perceba como as pessoas de diferentes idades usam o que é oferecido e construído para elas e, principalmente, como não usam da maneira como se esperava.”

Paradoxos da política de intervenção em favelas em São Paulo: de como a prática virou política… Suzana Pasternak e Camila D’Ottaviano

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IMAGEM: URBAN-THINK TANK

IMAGEM: URBAN-THINK TANK

grotão - fábrica de música Paraisópolis, em São Paulo, é um dos maiores assentamentos informais do mundo, com uma população de mais de 100 mil habitantes. Apesar de sua localização central, a área está separada do centro formal da cidade e, portanto, de sua infraestrutura social e cultural. Além disso, o território é palco de deslizamentos de lama e erosões, sendo considerado uma área de risco e de difícil acesso. Como consequência, houve remoção de diversas moradias, resultando no surgimento de um vazio em meio a um denso tecido urbano. Em visita a São Paulo, um grupo de alunos da Universidade de 48

Columbia, Nova York, decidiu contribuir com ideias para estimular o desenvolvimento da comunidade de Paraisópolis, dando início ao projeto do Grotão - Fábrica de Música1. Liderado pelos arquitetos Alfredo Brillembourg e Hubert Klumpner, do escritório venezuelano UrbanThink Tank, o projeto se tornaria um dos poucos espaços de convivência para os moradores da região. Sua prioridade era equipar essa área da cidade com infraestrutura, serviços e espaços públicos. Além disso, o modelo previsto visava promover acesso a moradias, empregos, tecnologia e educação.

De acordo com Wagner Rebehy, diretor do Urban-Think Tank no Brasil, o projeto, por ser inicialmente acadêmico, era mais ligado à sustentabilidade e ao meio ambiente. Entretanto, quando a Prefeitura de São Paulo afirmou que sua construção seria viável, o edifício se destacou por conter diferentes intervenções dentro de um só projeto. Infelizmente, apesar do incentivo da Prefeitura, o plano de construir o Grotão - Fábrica de Música, previsto para ficar pronto

1

portal.aprendiz.uol.com.br


IMAGEM: URBAN-THINK TANK

Rebehy ainda afirma que o objetivo do projeto era ocupar uma área de risco, que nunca havia proporcionado um espaço útil. “Os únicos espaços abertos que vemos nessas comunidades vulneráveis são os campos de futebol, que de certa forma são espaços sagrados para essas pessoas. Fora isso, é tudo ocupado, metro a metro. Há uma carência enorme de espaço público, de espaço verde, de áreas para se reunir”.

Um dos maiores desafios do projeto era conter as erosões e os deslizamentos de lama. Para

IMAGEM: URBAN-THINK TANK

em cerca de dois anos, não foi adiante.

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IMAGEM: URBAN-THINK TANK

IMAGEM: URBAN-THINK TANK


A implantação do edifício no terreno se dá da seguinte maneira: a parte mais alta do espaço foi destinada a habitações, com a intenção de substituir casas que seriam removidas para execução do projeto. Essas moradias se articulariam ao redor de uma praça, atuando como uma continuação da série de terraços, estabelecendo um eixo de circulação vertical. Na parte mais baixa do terreno, prevê-se o edifício, contendo uma estação de ônibus, um campo de futebol, um centro comunitário e a escola de música. A escola, por sua vez, englobaria salas de aula, salas de ensaio, estúdios de gravação e um pequeno auditório para apresentações - a ideia é que o Grotão proporcione infraestrutra e espaço físico para escolas de música e balé já existentes em Paraisópolis. Além desses espaços, foram propostos um sistema de gerenciamento de água da chuva e de reaproveitamento de águas residuais, como também um sistema integrado de ventilação, resfriamento e ar condicionado.

TERRAÇOS

SISTEMA DE RAMPAS PÚBLICO

AGRICULTURA URBANA

ÁREAS MOLHADAS

CAMPO ESPORTIVO

ESCOLA DE MÚSICA

INTEGRAÇÕES E CONEXÕES

ELEVADOR PÚBLICO

ACESSOS

Gilson Rodrigues, presidente da Associação dos Moradores e do Comércio de Paraisópolis (UMCP), afirma que a construção do Grotão criaria oportunidades educacionais, sociais e culturais para a comunidade, que por muito tempo foi privada do acesso a esses serviços. “Com a construção desse equipamento, poderemos ter acesso a oportunidades como qualquer outro morador da cidade”.

é responsabilidade dos membros da UMCP, que propõem diferentes intervenções. A participação dos moradores de Paraisópolis foi essencial para o desenvolvimento do projeto, que assume um caráter inclusor e integrador da sociedade por meio da cultura e da educação. Na opinião da arquiteta Raphaela Erena, essa integração leva à democratização da arquitetura ao criar espaços que propiciem o encontro e o dialogo entre os usuários. Ela afirma que, além de vencer barreiras sociais impostas, o Grotão colabora para amenizar barreiras físicas, como a topografia1.

Wagner Rebehy ainda acrescenta que parte do sucesso do Grotão

Todas essas características do Grotão - Fábrica de Música

IMAGENS: HOLCIMFOUNDATION.ORG

isso, a topografia do terreno foi mantida. Foram previstas plataformas escalonadas, que estabilizariam o solo e, adicionalmente, criariam terraços. Além disso, algumas dessas áreas foram reservadas para a prática de agricultura urbana.

colaboraram para que o edifício vencesse a premiação Holcim América Latina de Construção Sustentável 2010-2012. Esse prêmio apresenta seu diferencial ao não focar apenas em qualidades puramente arquitetônicas, mas sim possuir uma visão integral. São observados o compromisso social, econômico e sustentável para com a região em que cada projeto está inserido.

1

Fronteiras e limites urbanos Raphaela Erena 2013

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arquiteto formado pela Universidade Federal de Minas Gerais. Apesar de ter se formado em 1982, começou sua carreira no ano de 1974, ainda como estudante. Já foi professor nas Escola de Arquitetura da PUC Minas e da UFMG. Junto a Gaby Aragão, é sócio diretor da AP Cultural, editora que produz e publica livros, revistas e jornais nas áreas de arquitetura, meio ambiente e design. Hoje, Sylvio possui um ateliê de arquitetura em Belo Horizonte, onde trabalha sempre com equipes de, no máximo, seis pessoas, tamanho que considera mais fácil de administrar. Já fez projetos na Região Norte, em Brasília, São Paulo, Goiás e, principalmente, em Minas e seus interiores. Sylvio de Podestá foi escolhido para dar essa entrevista por sua opinião e, também, por sua trajetória no campo da arquitetura, mas não diretamente por sua atuação profissional.

sylvio de podestá

entrevista Sylvio de Podestá nasceu em Rio Verde, GO. É engenheiro


O arquiteto é um planejador, que trabalha com a ideia do futuro. Mas uma pessoa que vive em condições precárias pode não ter como se planejar, seja por prioridade, falta de oportunidade. Nesse contexto, quais os maiores desafios pra projetar para uma comunidade carente? Vou de encontro a essa visão. Um pobre não tem condições de se planejar? Eu acho que tem, e muitas. Veja por exemplo algumas situações onde ele tem cinco, seis filhos para poder criar mão de obra. Parece loucura, mas não deixa de ser algo planejado, mesmo dentro de uma precariedade absurda. Cada um vai ganhar só um pouco, mas no conjunto rende alguma coisa, permite financiamentos, etc. A precariedade aumenta, muitas vezes na moradia, um quartinho vai ter que aguentar quatro pessoas. Mas existe, sim, um planejamento. Um outro exemplo é a menina que trabalhou comigo um tempo aqui, a Shirlene. Ela teve um filho atrás do outro e queria o melhor para todos eles. O primeiro virou um traficante, foi o que ficou mais ou menos rico, mas tá preso. O segundo não gostava de estudar e achava que o dinheiro tinha que ser semanal porque ele não conseguia guardar o suficiente para chegar até o fim do mês. Então já foi pedreiro, hoje tá lavando carro, ganha o dinheiro por dia ou por semana e resolve aquele problema da semana dele. O terceiro filho está estudando, está fazendo economia e daqui a pouco pode ser que tenha que ajudar a família toda, mas tudo bem. Existe um olhar para as possibilidades. Então, eu acho que existe, sim, a ideia de que você pode sempre melhorar. Se você acompanhasse essa comunidade [Vila Estrela] como eu a acompanhei de 30 anos para cá, veria sempre melhorias acontecendo.

Temos que tirar da cabeça essa ideia de que a arquitetura resolve problema social. A arquitetura pode contribuir num processo geral, com as suas funções, pra poder amenizar algum tipo de situação que depende dela enquanto profissão. A arquiteta francesa Anne Lacaton, diz que não é possível que até hoje fiquemos fazendo projeto para pobre e para rico diferentemente. A arquitetura é a mesma. Arquitetura é a mesma coisa, para um ou para o outro.O dia que a gente começar a pensar no pobre e no rico com o mesmo olhar arquitetônico, aí vamos ser, realmente, arquitetos. Agora, problema social não se resolve com arquitetura, nem passa perto.

Antigamente você punha um pedaço de pau na rua, em dois minutos ele sumia porque ninguém conseguia viver sem a madeira como combustível. Não é isso mais. Todo mundo consegue seu gás, tem sua luz elétrica, e não é mais necessária a madeira da rua para gerar a energia principal. Hoje, se você oferece uma geladeira velha, ninguém quer. Eles vão na loja e compram uma nova. Pagam de 300 vezes, mas gastam menos energia. Mesmo que a casa, eventualmente, seja fulerinha, a geladeira é boa. Então, essa mudança toda, eu acho que não foi aleatória. Acho que foi planejada ou, pelo menos, é uma querência. E querência é planejamento. Se você tem uma visão do que você quer lá pra frente, é uma forma de planejar. O planejamento existe, sim. E na casa, também. A casa deles tem sempre chance de crescer. Até para resolver situações familiares de moradia. A Márcia, que trabalha aqui, por exemplo, está construindo em cima da casa dela a casa do filho, que casou e não tem lugar onde morar. Então, nunca foi previsto? Foi. Tanto que a fundação já estava ali. Então bota na cabeça que essa turma tem um olhar pro futuro bastante interessante. E eu gosto muito mais, aliás,

do planejamento de quem tá saindo da sobrevivência e pensando no futuro do que quem simplesmente leva isso de uma forma que, se errar, não vai ter problema nenhum. Por que você acha que não tem mais arquitetos trabalhando para atender a demanda desse público? Porque não existe a demanda. Quem é que tá precisando de arquiteto aqui no morro? Vai lá e pergunta se eles estão precisando. Eles não precisam de arquiteto, eles nem sabem para que que serve. Se bem que quase ninguém sabe. Você não acha que podem ter uma demanda diferente do arquiteto? O arquiteto teria uma demanda se ela estivesse, por exemplo, vinculada muito mais a órgãos de planejamento, Órgãos administrativos. São poucos os arquitetos atuando na área administrativa. Quando atuaram em grandes cidades como, por exemplo, o arquiteto Luiz Paulo Conde, como prefeito no Rio de Janeiro, ele não foi diferente de nenhuma outra pessoa. É certo que o sistema político também não está aberto para o arquiteto chegar lá e ficar chutando o balde. Tem os poderes todos ali,

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que não vão deixar, só porque você é arquiteto, tomar medidas urbanísticas geniais e tal. O Jaime Lerner, em Curitiba, só conseguiu fazer alguma coisa porque criou uma casta de substitutos. Durante umas quatro ou cinco gestões, ele praticamente mandou lá. De maneira geral, o arquiteto deveria ser necessário sem aparecer. Essas coisas que eles deveriam estar participando, como plano diretores, planejamento de todas as formas, deveria ser sem aparecer. A gente sabe que o médico cura, mas eu não fico lembrando toda hora qual que é o melhor médico de câncer de Belo Horizonte. Deve ter um, dois, mas deve ter um batalhão de médicos cuidando desse setor, inclusive com altíssimos bons resultados, que estão por aí. Acho que, com a arquitetura, deveria ser mais ou menos dessa forma. A arquitetura e as propostas deveriam estar acontecendo de tal forma, com tanta tranquilidade, ou com tanta pertinência, que fosse percebido só como resultado, não como dois, três carinhas que ficam aí querendo salvar, sozinhos, sua cidade. Então, eu não acredito que arquiteto esteja faltando no morro, não. Eles tem belas soluções por ali. Está faltando é equipamento urbano, infraestrutura, está faltando aplicação das mesmas valias que tem por outros lugares da cidade. Você acha que a universidade pode ter algum papel na preparação de arquitetos para trabalhar com isso ou na criação de programas já com a participação dos estudantes? Não. Isso é como se você estivesse criando um arquiteto especialista. Como se estivesse criando arquiteto para fazer hospital, arquiteto para fazer rodoviária, arquiteto para fazer habitação de baixo custo. Acho que arquitetura e urbanismo tem uma aplicabilidade sem que você precise ser, necessariamente, 54

Síndrome do quinto ano é o momento em que todo mundo começa a preocupar em fazer conjuntinho habitacional, interferir em favela, pra poder pagar a promessa de que, realmente, dentro da universidade, um dia pensou em fazer alguma coisa social. Mesmo que seus olhares sejam para Nova York, com a ideia de fazer um prédio de cento e tantos andares, todo de vidro. Isso sempre aconteceu ali dentro. Todo mundo quer ser mais Foster que qualquer outro arquiteto que esteja fazendo um trabalho mais anônimo.

um especialista formado pela academia. A academia não detém o saber sobre a cidade, ela é parte de um grupo que discute e produz informações. Existem muitas outras instituições, fundações trabalhando nesta área. O que era preciso é que elas se juntassem mais, talvez num um conselho. A universidade podia estar funcionando e se apresentando com uma participação efetiva, por exemplo, como a OAB faz. O CAU também deveria agir assim. Essa presença pode sair da universidade, sim, mas não dá pra falar que “de agora pra frente vamos criar pessoas que vão ser representativas nessa área”. O arquiteto tem que ter essa visão geral e, dependendo de como vai se desenrolar sua vida profissional, ele toma uma direção. Veja o Peter Zumthor, por exemplo, eu nunca ouvi falar que ele tenha feito qualquer coisa que possa ser especificamente social. Seus projetos são caríssimos, com uma qualidade impressionante. Temos o chileno, Alejandro Aravena, que comanda todo estes projetos do Grupo Elemental. Não quer dizer que está resolvendo problemas sociais, mas pelo menos tem um Pritzker que foi premiado por, um dia, pensar em habitação de baixo custo. A escola, a universidade, a academia deveriam entrar como

os grandes parceiros opinativos, que pudessem ter voto ou voz na sociedade. Você falou sobre o morro não precisar de arquiteto, mas você projetou a casa da Shirlene. Será que você pode explicar um pouquinho como foi o processo? Tem que entender bem que quando eu falo que o morro não precisa de arquiteto, é no sentido de que, se você botar lá um escritoriozinho e ficar esperando serviço, não vai dar. Eu acho que todo mundo, na verdade, precisa do pensamento arquitetônico e urbanístico das pessoas que estão aí, se preparando para isso. Se a gente conseguir captar a informação de um lado e fornecer a contrapartida da pessoa que tá começando a compreender pAra que que você pode ser acionado, aí tudo bem, acho que todo mundo vai precisar. No momento, acho que não precisa, não. Eles resolvem lá suas questões, pelo menos nesse ponto de vista inicial, com bastante razoabilidade. O que eles precisam é de serviços, de ser parte real da sociedade. Quando compreenderem o que é arquitetura, ou pra que serve, aí sim o morro pode precisar, ou até entender que já a está usando. Na hora que uma creche é bem projetada, na hora que você vê uma escola com um acabamento melhor…


ação individual, mesmo que tenha algumas ajudas externas. Isso foi bom para a Shirlene, que melhorou um pouquinho a casa dela, mas, de maneira geral, não me senti orgulhoso de fazer isso, não. Me senti muito mais triste porque não consegui continuar. A única coisa interessante é a alegria dela de ver a casa desenhada antes de ser construída. Ela falou que nunca imaginou que ia ver a casa dela, antes, num risco.

IMAGEM: SYLVIO DE PODESTÁ

Toda cidade acima de 20 mil habitantes - deveriam ser todas - tem a obrigação de ter uma espécie de SUS arquitetônico. É lei, mas não existe isto. O máximo que eles te fornecem é uma plantinha vagabunda de uma casa de até 50 m2 que você não precisa aprovar e algumas condições para facilitar esse procedimento todo de construir sua casa própria sem estar na ilegalidade. Fora isso, não tem nada lá, a gente podia estar muito mais adiantado em relação a isso. É como ir ao SUS apenas para buscar remédio, sem ter contato com um médico. A Shirlene foi uma tentativa fracassada nossa de construir

casas para pelo menos umas cinco famílias que eu conheço aí no morro, usando de restos de reformas que as pessoas faziam por aí, principalmente de decorador. Não consegui por falta de mão de obra. Não consegui captar grana, só material. Então a gente tinha material de alto nível, pisos de granito, armários, telhados, mas não tinha mão de obra para terminar. Fizemos uma casa de sessenta e poucos metros quadrados, que está lá, sólida, não chove, dá pra morar, mas não está tão boa quanto a gente queria. E, quanto às outras quatro famílias, não aconteceu nada. Isso não é nem bom nem ruim, é só para mostrar que não adianta, simplesmente, uma

Você vê mais formas de viabilizar projetos tipo esse da Shirlene, essas intervenções menores? Eu tive um tio que era prefeito em uma cidade pequena de Goiás. Ele conseguiu um terreno urbano e decidiu o seguinte: toda demolição de prédios institucionais que não fossem privados, ou de privados que não queriam vender sua demolição, a prefeitura ficaria com o material. Qualquer reforminha que alguém fizesse, sobrou meio saco de cimento, era só ligar para a prefeitura, que ela passaria lá e pegaria esse material. Então, com isso, e junto com um trato que ele fez com uma fábrica de cimento, ele montou um estoque de material que pudesse dar início a um processo de fabricação

Algumas escolas criaram essas escolas modelo pra ver se podiam já ir exercitando esse tipo de coisa, fazendo uma creche aqui, reformando um troço ali, mas você vê que a mentalidade de quem tá formando continua a mesma de quando eu saí da escola, de quando a arquitetura ficou glamurosa. Essa ideia de fazer uma super formatura, com vestidos longos, num clube, gastando uma grana danada. A Gaby, minha companheira, sempre quis, e propôs para algumas turmas, que esse dinheiro pudesse ser usado pra construir a primeira coisa coletiva da classe, que poderia ser uma praça, uma creche. E, em vez de produzir um convite, você produziria um livro, que teria o seu primeiro projeto publicado com um texto discutindo essa ação, com os personagens que estivessem envolvidos naquilo, todos os procedimentos que foram feitos para que aquela coisa pequenininha se mostrasse em toda sua complexidade. Isso que seria, realmente, uma primeira ação. Enquanto a turma estiver aí comprando vestido longo, mandando quinhentos convites, fazendo gracinha, eu duvido muito que nós vamos chegar num ponto onde as pessoas vão estar dispostas a serem anônimas e trabalhar a arquitetura como muita gente, em outras profissões, faz por aí.

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de casas para as pessoas que estavam morando mal ou não tinham casas. Ele conseguiu este terreno, que era um antigo pasto, sem fazer nenhum tipo de terraplanagem, já que ninguém tinha carro. Você entrava e andava na grama. Ele construiu umas 60 casas com custo quase zero. Cada uma era de um jeito, cada janela, cada telha eram de um jeito, o que criou diversidade, tipologias. As únicas coisas que ele exigia é que o marido não batesse na mulher e que eles tivessem, no fundo do quintal, um pé de limão, um pé de mamão e uma pequena horta. Claro que isso é um evento isolado, essa experiência não dá pra repetir. Mas é uma amostra de uma abordagem que você pode ter. E ele não era nem arquiteto nem urbanista. Primeiro, não gastou com infraestrutura ou terraplanagem desnecessária. Segundo, todo o saneamento foi implantado sem precisar de meio fio. Nenhuma árvore foi tirada do lugar. Onde tinha mais árvores, ele montou uma pequena escolinha, que dava para ter aula inclusive do lado de fora. Todo mundo tinha uma hortinha mínima de sobrevivência. Imagine isso dentro de um planejamento maior! Pode-se tirar algo destas experiências. Então, valorizar esse tipo de coisa,

valorizar as hortas urbanas, dar condição para o cara estudar ali sem precisar andar demais, ter as mesmas condições de educação, de saúde… Eu estou agora com um neto. Aquele menino não sabe nada, não sabe fazer nada. Mas aí você tem um cuidado aqui, não deixa passar frio… daqui a um tempo ele está aí tomando suas decisões. Você deu comida, um livro para ele estudar, uma roupa para ele sair vestido, um teto para ele dormir… São coisas basicíssimas, né? Se todo mundo recebesse essas coisas básicas, eu acho que o próximo passo seria muito mais fácil de ser dado. Não existe isso. As coisas básicas ainda são muito difíceis de ser conquistadas. Aí o arquiteto, o seu trabalho, um dia, ou vai ser reconhecido e ele poderá vir a ser chamado para atuar, e até individualmente, por que não? Vamos fazer uma casa, ou um escritoriozinho, academia, ou ajudar numa ventilação melhor da casa. Por meio de programas de habitação social, como o Minha Casa Minha Vida, como você acha que o arquiteto pode atuar para melhorar a situação? Não pode atuar para ajudar nada. Já nasceu falido, esse negócio. Por que? Porque você continua

criando guetos afastados da cidade, da área que já está urbanizada. Ali é o lugar que interessa à sociedade, é longe de seu habitat protegido. Pergunte se alguém aqui na Vila Estrela quer mudar lá pro conjunto X na beira do Anel Rodoviário. Nunca! Quer descer a pé para a Savassi, ver um show, sabe? Ele pega aqui um ônibus e vai para Ouro Preto, se quiser trabalhar num festival lá ou qualquer coisa assim. Então não existe projeto de solução de habitação social a partir desse modelo. Não existe. Com isso aí, nós estamos criando guetos sociais, estamos separando pessoas que a gente “não quer perto da gente” e mandando lá pro fim do mundo. Nós estamos repetindo isso desde que eu li o primeiro livro da minha vida. Nós estamos repetindo isso há muitos anos. Acho isso uma das coisas mais terríveis que está sendo feita nos últimos 40, 50 anos. O arquiteto não pode fazer nada, principalmente porque o programa não serve para nada. O que ele pode é tentar dar um exemplo via revistas, mídias e participar de qualquer forma dessas mídias todas, fazer ouvir o IAB, o CAU, discutir soluções que não sejam essas. Mostrar que podem existir outras soluções. Mas alguém tem que tomar a decisão para que essas soluções sejam aplicadas.

O que temos que mudar é como pensar a cidade. Existe uma proposta de que todo prédio que você faz, em qualquer lugar da cidade, 20% tem que ser de habitação social. Aí você faz um prédio chique em Lourdes, com 10 apartamentos de 350 m², cobertura de 1000. Mas aí você tem que incorporar, ao lado, pelo menos 2 apartamentos para habitação social. Isso aqui seria genial. Melhor ainda se fosse exigido ali do lado, ainda, três lojinhas e dois escritórios, você começaria a construir uma cidade nova. O próximo prédio logo ali, mais três lojinhas, aí dez apartamentos chiquérrimos, mais três sociais, e a cidade ia virar o que é uma cidade: um mix de diversos tipos de pessoa, de habitações e de serviço. Não tem que esperar a classe “mais baixa” ganhar tanto dinheiro para participar desses locais escolhidos pelos ricos. Ela devia estar ali, já. Por que? Porque aqui do lado tem um supermercado, tem uma escola boa, tem a igreja, tem a orquestra sinfônica, tem o parque, tem o metrô. Aí, sim. Ou você faz isso, ou coloca o cara mais pobre próximo da infraestrutura urbana. Senão, não tem jeito. Senão, não é cidade.

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IMAGEM: SYLVIO DE PODESTÁ

Alguns arquitetos defendem a ideia de que já tem muito edifício vazio construído no centro. Tem 700 ou mais apartamentos vazios no Belvedere, especulando, esperando. O centro tem, pelo menos, 50 prédios de 12 andares vazios. Se você ocupa os vazios da cidade, não precisa mandar ninguém pra fora. “Ah, mas a propriedade é privada”. Privada? Como que um cara tem um prédio ali que tá fechado há 10 anos, passa esgoto de primeira, água de primeira, transporte de primeira e ele mantém esse troço fechado? O arquiteto carioca Sérgio Bernardes pensava muito na cidade, soluções para a cidade. Ele discutiu o potencial do terreno vazio no meio urbano. Se o terreno estava ali, com toda a infraestrutura urbana pronta, ele se perguntava o que esse terreno podia render se fosse plantada ali abobrinha, por exemplo. Aí, ele taxava em cima desse rendimento. “Ah, mas o terreno é meu, eu faço o que eu quiser”. O terreno não é seu. Tudo bem, você herdou esse terreno, mas você faz parte de um complexo urbano,

humano e social, e você tem que pensar não só sob o seu ponto de vista. Você não pode ter um terreno desse tamanho enquanto mandamos gente lá pra Cidade de Deus, lá pra baixada fluminense, e você segurando esse troço pro resto da vida. A gente vai falar um pouco agora sobre o projeto do Muquifu. Primeiro, sobre o edifício, você pode falar de onde veio a demanda? Eu não sei como me acharam. Já existia uma espécie de centro cultural comandado pelo Padre Mauro, onde ele tinha fracassado, por exemplo, com aulas de costura à noite, bordado, e não deu certo, não sei porquê. Também não havia dado muito certo usar o local para discutir as coisas com a comunidade. Tinha uma cozinha e um salão de encontros, mas não estava dando certo. Com uma bolsa para estudar sobre museus em Bolonha, ele virou um doutor ou mestre em museografia, principalmente ligado a áreas culturais. Voltou e resolveu aumentar esse projeto. Descobriu

que ele poderia abrir um pouco o interesse para aquele lugar a partir da contagem da história das pessoas do lugar pelas próprias pessoas que tinham construído aquela comunidade. Claro que muita gente chegou depois, mas a comunidade se iniciou quando BH estava sendo feita, essa cidade murada. Essa turma eram ex quilombolas, dentro outros, quase todos negros que vieram do sul da Bahia e do norte de Minas, que vieram para cá trabalhar, construir a nova capital. Largados, vieram para este morro e ali construíram suas casinhas, sua vida. Estão lá até hoje, cento e poucos anos. O padre resolveu contar a história deles. Para contar a história, ele queria dar uma geral nesse espaço. Me chamaram. Não sei quem que me indicou, estou perto aqui da Vila Estrela, alguém deve ter lembrado de mim. Eu, de cara, quebrei a cara. Participei de dois ou três eventos lá e falei “a gente devia não só mexer no Muquifu, mas botar disponível aqui dentro alguns arquitetos que pudessem ajudar, por exemplo, ajudar a melhorar 57


as casinhas, a iluminação, a fortalecer a estrutura”. Levantou uma figura: “não queremos ninguém enchendo o saco da gente, das nossas casas. Isso aí nós resolvemos. Nós estamos querendo é tudo que os ricos têm. Escola boa, creche boa.” Outra ação proposta, além disso, era que a história poderia ser contada utilizando, também, das infraestruturas dos núcleos já existentes - centros comunitários, igrejas, creches, escolas, etc - comandados, talvez, pelo Muquifu. Só ao Muquifu não caberia todas as questões a serem discutidas. Eu fiz um desenho, o padre Mauro deu algumas opiniões, entre elas a de tirar o muro da frente, permitir a entrada - que lá, como aqui, no bairro, todas as casas são muradas, tudo é fechado, você quase que vive para dentro. Esse museu tinha por ideia, dentro outras, dar visibilidade e ligar os pontos que já tinham sido conquistados. Propusemos criar uma malha virtual que desse visibilidade a todas as ações.

O Muquifu, com o padre Mauro, vai estar sempre alerta e fortalecendo esse tipo de discurso: “não queremos esmola, nós queremos ter os direitos que os outros têm”, diz ele. Acho que é muito mais uma ação do que uma construção em si. A construção é só para ter mais um espaço, uma vista. Pode funcionar, como tá funcionando, sem precisar do projeto que a gente fez. O projeto do edifício tem alguma relação direta com esse acervo do museu? Era necessário manter uma área de culinária, principalmente para poder permitir pate do projeto da valorização da comida do morro, das receitas, da apropriação das coisas que estavam esquecidas e das próprias hortas urbanas. Um salão para esses encontros e pequenas exposições. Um acervo

IMAGEM: SYLVIO DE PODESTÁ

No museu, hoje, são realizadas algumas exposições que, depois, viram material acessível na Internet. E as discussões vão

ampliando. É um museu um pouquinho diferente do que a gente está acostumado a ver, com grandes obras do passado, não é nada disso. O máximo que você, um dia, vai ver lá é a cafeteira do primeiro que chegou, por exemplo. Mas a ideia não é só colecionar objetos, é colecionar histórias. Histórias verbais, histórias a partir de fotografias, de depoimentos.

permanente, que é parte dessa história, que vai ser formado por pequenos objetos, alguma coisa verbal, oral, algumas fotos. Então você não iria lá e passaria um dia inteiro olhando o museu. Você ia ver que existe, ali, um ponto de ação. Seria um museu superativo. E, se a gente conseguisse fazer essa ligação com todos os outros eventos que estavam acontecendo, seria interessante, dinâmico, um centro de informação de todas as ações que estavam acontecendo na comunidade. Você acha que esse edifício poderia vir a ter outros usos além de museu? Na parte de baixo, projetamos uma micro-arquibancada para encontros, inclusive para o pessoal queimar fumo sem tomar chuva, como uma pracinha, que você pudesse simplesmente encostar ali e conversar fiado, trocar ideia. Acho que seria um ponto desse tipo. Só que esses pontos você não faz, você não fabrica. Você abre e vê se acontece. Você pode fazer alguma indução, alguma coisa assim. Se virar um lugar para fofocar e conversar fiado, seria ótimo, aí justifica tirar o muro. A coisa era muito mais simbólica, você não está atravessando um portão para entrar no museu, para saber sua história. Já não tem o muro, então, mesmo que você não suba, você já atravessou e está ali. Isso dá um certo pertencimento. Não gosto muito dessa palavra, que é meio de moda, mas parece que, pelo menos, uma parte te pertence, ou pertence ao bairro. E, se pertence ao bairro, é de todo mundo. A ideia era ter esse simbolismo, igual igreja com porta aberta. Acho que o padre Mauro devia estar querendo uma coisa parecida com isso, da igreja - ou do museu - estar sempre com essa cara de disponível, aberto. Faz parte do projeto aquela

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passarela saindo do museu. Qual a sua intenção com ela? A grande conquista de estar nesse lugar, o grande prazer de estar ali, são as vistas. São incríveis. O sol bate ali do lado, dá pra ver a cidade lá embaixo, a cidade de longe é sempre bonita de se ver. A passarela seria uma espécie de ampliação dessa praça, dobrar o piso dela. Cria um sombreamento embaixo e alguma chance de estar participando das vistas todas em cima. Não tinha nenhum problema de estar iluminando nenhuma salinha, nem nada disso, porque as casas já estão todas fora dali. Teria então um sombreamento, porque não tem árvore, não tem nada. E, em cima, uma esplanada. Criava uma espécie de espaço vazio com chances de ter um som, uma dança, uma festa. E podia ir ampliando. Mais uma passarela, mais um espaço ali. E, provavelmente, seria mais bem cuidado porque você não joga lixo em um lugar que tem um bom uso. A ideia era mais ou menos essa. Tinha que, talvez, abrir uns buracos, coisas assim. Ver exatamente onde o sol não tá entrando, recortar, mas a ideia era essa. Ampliar a quantidade de áreas disponíveis, vazias, com essa chance de ter vistas incríveis, sombrear onde poderia ser sombreado. E sempre estar ligado, no caso, ao museu. E, então, simplesmente sentar ali e ver o pôr do sol. Você tinha me falado, também, sobre uma proposta de cobertura fotovoltaica. Como você acha que fica isso? Porque algumas pessoas tem muita ligação com a laje da casa. Mas não a última. Quase sempre, a que vai ser completada. Então, por exemplo, numa laje de 15, 20 m² se você conseguisse colocar 10 m² de fotovoltaica, você resolveria todos os problemas daquela casa de baixo. A energia ia pra rede, mas 30% ia ser como

Você vê que nós falamos tudo isso aí sem precisar falar de arquiteto atuando. O arquiteto está no meio desse negócio. Não precisa ser o elemento principal, não. Ele tem que estar ali. Na hora que ele não for necessário como arquiteto, ele é como cidadão, como vizinho, como morador. Se precisar fazer um som, se ele souber tocar um violão, ele toca um violão, independente de ele ser arquiteto ou não. Acho que dá pra fazer uma entrevista sobre arquitetura sem precisar falar do arquiteto, ou falar exatamente da função imediata dele. Olha meu escritório, por exemplo. Se eu não saísse por aí conversando com os outros e ficasse só aqui dentro projetando, não servia pra nada, não. Não tem razão nenhuma de existir. Tem um complementar que a gente faz na rua, aí, como cidadão, como vizinho, ou amigo. Isso é mais importante.

pagamento desse custo, ali. Seria uma grande usina fotovoltaica, claro que negociada. Toda vez que você fosse colocar uma placa ali, teria que saber se o cara não ia fazer um segundo andar. Tem que estar disponível, já ter chegado no limite dele. Teria que dar um tratamento de superfície, impermeabilizar, dar um cuidado para os pluviais não se atrapalharem. Se, por acaso, o cara fosse fazer algum tipo de crescimento no futuro, talvez pudesse já colocar essas placas um pouco mais altas. Cada caso poderia ser estudado de uma forma. Mas, o lugar é incrível, O nível de insolação, é fantástico. Para a CEMIG, seria um marketing social incrível. E aí, os arquitetos, por exemplo, ou as escolas de arquitetura, poderiam ir em cada casa, conversando com as pessoas, explicar que elas iam ganhar de graça - duvido que alguém não queira ganhar eletricidade de graça -, que o teto ia ser reformulado de alguma forma, e essas plaquinhas estariam ali, sob o cuidado dele. Acho que eles topariam. Pelo menos uma boa parte toparia. Eu ia até chegar nesse ponto que você falou do mercado. Com a viabilização do projeto do

edifício do museu, eu consegui enxergar duas possibilidades: ou vai dar uma brecha pro aumento da pressão do mercado, ou então aumentar o senso de comunidade ainda mais. Nas vezes que eu fui lá, só foi discutido isso. Tem uma ideia de que eles estão à procura de uma melhoria visual, uma melhoria de poder aquisitivo. O Muquifu talvez não cuide exatamente do poder aquisitivo mas, dessa melhoria, tenho certeza que ele vai. E com a consciência de que isso pode ser feito ali, sem precisar sair dali. Melhorando seu próprio espaço, melhorando sua própria vida e reivindicando, votando direitinho.

Para conhecer mais sobre o trabalho de Sylvio de Podestá, acesse: podesta.arq.br

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morar indígena: uma experiência extensionista na universidade federal de minas gerais

seção técnica


Autores: Artur Borges Lisboa Maria Soalheiro Wilson André Camargo Hirle Prof. Frederico Canuto Profa. Juliana Torres de Miranda Profa. Marcela Silviano Brandão Prof. Marcos Felipe Sudré Saidler Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG

Introdução São vários os índios. Mas apesar dos vários estudos antropológicos e etnográficos relacionados à especificidade da vida indígena, advindos tanto da Europa como de países da América Latina, isso não significa que tal diversidade apareça de fato. Há muitos estudos sobre etnias isoladas na Amazônia, mas proporcionalmente pouco se fala sobre outras etnias não isoladas e não amazônicas, que há muito sofrem influência com o contato do homem branco. Se, como coloca o antropólogo carioca Eduardo Viveiros de Castro no seu texto “No Brasil todo mundo é índio, exceto quem não é” (SZTUTMAN, 2008), a identidade indígena - entendida não como reificação de si, mas produção de alteridades pelo encontro com a diferença - só pode ser reconhecida se tal reconhecimento vier amparado pela

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coletividade indígena já existente, saber ver as diversidades de índios - assim como do que significa ser índio, em contato com o branco inclusive - amplia não apenas o estatuto do índio, mas também seu significado cultural. Isso pode até mesmo fazer, do Brasil, um país de índios, como provocativamente afirma o autor. E se ser índio implica não apenas traços étnicos, mas um modo de viver, como também afirma Viveiros de Castro nesse mesmo texto e em outros, saber conhecer e reconhecer modos de vida e cosmologias praticadas que só podem ser expostas no cotidiano espacialmente vivido e conflituoso urbano - torna-se tarefa primordial e central para a própria sobrevivência dos índios. Tais encontros e produções de si - elaboradas pelos indígenas e não mediadas, estudadas ou visíveis por estarem em áreas de pouca visibilidade midiática e mesmo acadêmica fora da Amazônia - transformam-se em invisíveis conflitos por terra, lutas por recursos naturais e, principalmente, desaparecimento das idiossicracias culturais absorvidas no urbano, tanto do ponto de vista espacial como cultural. Em Minas Gerais, tal produção indígena e de seus diversos espaços ainda fica mais patente e específica a cada etnia, tornando-se necessários estudos caso a caso. Trabalhos de origem pública foram produzidos, como o de Izabela Mattos intitulado “Povos Indígenas de Minas Gerais”, produzido pela Assembleia Legislativa do estado, mas há ainda muito a fazer, especialmente levando em consideração a constante

transformação dos próprios índios em seus modos de viver, tendo em vista a realidade contemporânea urbana1. Há etnias com histórias que passam pela posse legal da terra desde o século XVIII, como os Xacriabás, no norte do estado, até etnias como os Pataxó Muã-Mimatxi, que tem pouco menos de 10 anos de existência, inclusive com posse de terra e área demarcada. Há etnias sobreviventes apesar dos inúmeros massacres promovidos por fazendeiros e latifundiários e pelas condições críticas naturais do território onde hoje se encontram, como o caso dos Maxacali, moradores do Vale do Mucuri, no nordeste mineiro, assim como outras que somente sobreviveram porque abriram mão de sua relação com a terra para fundar novos assentamentos em áreas precárias, mas sem perigo à vida devido a “fuga” dos conflitos latifundiários. O Estado de Minas Gerais abriga hoje doze etnias indígenas de acordo com a FUNAI, com uma população total de 8600 pessoas, distribuídas em 22 municípios, em Terras Indígenas (TIs) homologadas ou mesmo em áreas ainda em processo de demarcação territorial. Além das dificuldades e conflitos enfrentados nos processos de delimitação dessas terras, a condição de vulnerabilidade revelada na precariedade de muitos dos assentamentos desses grupos é um desafio que precisa ser enfrentado. A universidade pública brasileira tem se deparado com tal precariedade da vida indígena e tentado agir, aproximando-se

Muitas aldeias estão sendo, na atualidade, impactadas pelo fenômeno de extensão do tecido urbano. Tal fato, se por um lado é capaz de carregar consigo o germe da prática política e da cidadania - anteriormente exclusivo aos grandes centros -, também é indutor de transformações no cotidiano que subjugam os saberes tradicionais à lógica hegemônica. Para uma discussão sobre a extensão do tecido urbano, ver MONTE-MÓR, 2014.

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desses outros saberes de forma a se deixar contaminar e, ao mesmo tempo, incisivamente procurando ajudar numa melhoria da qualidade de vida destes povos, no todo então diversificando ou expandindo as epistemologias do saber contidas e disseminadas pela academia (SANTOS, 2005). Exemplos disso estão em diversas ações, desde programas específicos, como ocorrem na Universidade Federal de Minas Gerais com a criação e sucesso do FIEI (Formação Intercultural de Educadores Indígenas) e o curso de Formação Transversal de Saberes Tradicionais, até o reconhecimento oficial do conhecimento indígena não apenas em seus espaços mas também de sua influência na produção do conhecimento acadêmico, como na outorga a Aílton Krenak do título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Juiz de Fora, em 19 de fevereiro de 2016. Dado tal quadro, foi criado em 2014 o Programa de Extensão Morar na Minas Indígena da Escola de Arquitetura da UFMG com o objetivo promover Projetos de Extensão, em parcerias com grupos não governamentais, comunidades locais ou o próprio Estado, para pensar o espaço indígena e sua especificidade a partir de suas próprias narrativas, com o intuito de gerar e aplicar tecnologia social e metodologias de assessoria técnica em arquitetura e urbanismo para a gestão territorial, construção de espaços coletivos e de habitação da população indígena de Minas, dentro dos princípios de sustentabilidade social e ambiental, visando contribuir para a melhoria da qualidade de vida desses grupos e para a diferenciação cultural do devir indígena. O programa cada vez mais se justifica pela falta de uma sistematização do conhecimento sobre o espaço indígena numa perspectiva da Arquitetura e do Urbanismo no estado de Minas 62

Gerais especificamente, onde os territórios e seus habitantes carecem de visibilidade política. Até meados de 2015, as ações do Programa foram centralizadas unicamente junto ao projeto Morar na Minas Indígena, de autoria da engenheira Adélia Aparecida de Resende Maia, sediado na COHAB/MG (Companhia de Habitação do Estado de Minas Gerais). Esse projeto buscava desenvolver um modelo de habitação indígena, com conceitos de sustentabilidade ambiental e adequação cultural, através de um projeto piloto para aldeia da Reserva Xakriabá, no norte de Minas Gerais. Embora com pouca participação na concepção desse projeto, a equipe da UFMG vinha desenvolvendo uma metodologia de abordagem mais colaborativa para a próxima etnia a ser atendida, partindo das limitações e sucessos da experiência citada: a etnia Pataxó Muã-Mimatxí, situada no município de Itapecerica. Entretanto, o desenvolvimento de tais estratégias de colaboração projetuais foram interrompidas pela COHAB/MG. Assim, ao longo do segundo semestre de 2015 o Programa Morar Indígena iniciou a busca por novos parceiros e pela ampliação de seu espectro disciplinar, através da aproximação com os grupos da UFMG citados anteriormente, bem como pela abertura de novas frentes de trabalho.

Metodologia Considerando o que foi posto acima, o Programa criou uma metodologia endógena de trabalho. Procurou criar redes de trabalho junto ao contexto próximo e já institucionalizado dentro ou a partir da UFMG.

Fazem parte dessas redes, em especial: (1) a produtora Filmes de Quintal - responsável por um dos principais festivais de cinema etnográfico mundial; (2) o FORUMDOC - sediado em Belo Horizonte e que conta com a participação de professores da FAFICH/UFMG, o que permite criar condições para que o programa se torne parceiro na exposição, divulgação e criação de eventos voltados para a discussão das narrativas do espaço indígena; (3) a Formação Transversal de Saberes coordenada pelo professor César Guimarães da FAFICH/UFMG, a partir da qual busca-se auxílio na formação de parcerias para a formulação de disciplinas que possam ser criadas e exercidas dentro de território indígena como forma de catalisar e aumentar o trânsito de conhecimento relativo à produção do espaço entre comunidade indígena e acadêmica; (4) a inserção dentro do conjunto de ações de extensão da UFMG focados no território da etnia Maxacali, no Vale do Mucuri, chamado de Observatório Maxacali, iniciado pela, hoje, professora da Universidade Federal do Sul da Bahia, Rosângela Pereira de Tugny, e que congrega pesquisadores e extensionistas das Faculdades de Educação, Medicina, Comunicação e Arquitetura e Urbanismo, conduzindo a uma reversão da relação pesquisaextensão, no qual a pesquisa amplia o campo de abertura de possibilidades extensionistas ao invés do contrário. Assim, o programa Morar Indígena alcança identidade não pela sua especificidade, mas na tentativa de dar suporte a possibilidades de expansão pela universidade de saberes construídos juntos ou a partir da comunidade indígena, pela sua qualidade suplementar, ampliando condições de trabalho que não haviam sido pensadas. Tendo em vista tal nova disposição, a escolha por iniciar


o trabalho não com uma etnia, mas várias, não se torna estranho, assim como não trabalhar apenas com a dimensão projetual, mas multi facetada relacionada ao conhecimento espacial.

pesquisa em órgãos e entidades, a fim de saber o contexto institucional da questão indígena em termos federativos, estaduais, municipais e étnicos;

indígena de maneira colaborativa.

Assim, reorganizado, o programa construiu sua metodologia endógena em duas vertentes associadas e complementares: uma teórica e outra empírica. O encontro das duas vertentes faz reconhecer pontos de controvérsia entre o universo da concepção e das apropriações do espaço, podendo daí traçar outras possibilidades para ações compartilhadas de intervenção, construção e gestão espacial junto a etnias indígenas situadas no Estado de Minas Gerais, seja por meio de políticas públicas ou ações de extensão e assessoria técnica.

levantamento e análise de registros audiovisuais como filmes, fotografias e vídeos;

Dadas tais limitações, mudanças e redimensionamentos estruturais, hoje o programa se encontra estruturado em três projetos. O primeiro é o Artesanias Indígenas, cujo objetivo é produzir tecnologia social a partir do encontro dos saberes tradicionais e táticos dos indígenas, com o conhecimento técnico da arquitetura, da engenharia e da arte, para a sua replicação na produção autônoma dos espaços coletivos e habitacionais de aldeias indígenas. Essa tecnologia deve ser ambientalmente e culturalmente adequada para cada etnia e deve considerar sistemas de autoconstrução e autogestão. O segundo é o projeto Assessoria Técnica e Arquitetura Indígena, que consiste em investigar criticamente as políticas habitacionais atuais e metodologias de projeto participativas aplicadas à questão indígena, levantando os potenciais e destacando os aspectos conflituosos de forma a desenvolver estratégias metodológicas para os projetos de assistência técnica em arquitetura e urbanismo para aldeias indígenas de Minas Gerais. E o terceiro é o projeto Narrativas Espaciais Indígenas que busca investigar, produzir narrativas, registros e cartografias e criar contextos de discussão públicos sobre o habitar, o território e a paisagem indígenas e as imagens que destes são construídas no cinema, na oralidade, e na fotografia entre outros meios audiovisuais do ponto de vista do espaço e sua produção, relacionando aspectos das ocorrências construtivas e organização territorial com questões políticas, sociológicas, etnológicas, ambientais e simbólicas,

A vertente teórica inclui: pesquisa bibliográfica no que tange ao conhecimento já estabelecido sobre os ameríndios, seus espaços, suas artesanias, sua relação com as cidades existentes em campos de conhecimento próximos ou internos às ciências sociais; pesquisa de documentos a respeito das aldeias existentes em Minas Gerais, junto ao FIEI (Programa de Formação Intercultural de Educadores Indígenas da Faculdade de Educação da UFMG) e a partir de uma perspectiva dos próprios indígenas, e não apenas do Estado brasileiro e seus órgãos responsáveis. Nesse caso, a pesquisa sobre a relação entre os índios e a ditadura brasileira em termos de espaço se dará a partir de uma parceria com o FIEI, que vem construindo pela narrativa oral de seus alunos tal história esquecida;

levantamento de bases cartográficas, digitais ou não, da região dos três territórios indígenas a serem analisados. O material bibliográfico, documental e audiovisual levantado está sendo apresentado e discutido em seminários internos ao grupo de pesquisadores e extensionistas que participam tanto da pesquisa quanto dos projetos de extensão. Já a vertente empírica se baseia em visitas técnicas ao território indígena, que são constituídas de: registro (em vídeo, fotografia e desenhos) da paisagem, das aldeias, das construções e objetos em sua apropriação; coleta de dados via pesquisa qualitativa – através de entrevistas estruturais, observação participante e métodos etnográficos; workshop para mapeamento coletivo do espaço das aldeias; levantamento de dados e entrevistas junto aos órgãos governamentais dos municípios onde se localizam as terras indígenas; Tais visitas aos territórios indígenas não têm apenas a função de cumprir o papel de coleta de dados, mas principalmente, devem contribuir para estabelecer vínculos e criar condições para uma produção de conhecimentos sobre o espaços

Resultados e discussão

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com o intuito de discutir a especificidade do espaço indígena e suas correlações com a contemporaneidade. Como resultados, as frentes de trabalho criadas estão em desenvolvimento, levantando consequentemente uma série de questões: Quanto ao projeto Artesanias Indígenas, este atualmente se encontra em processo de mapeamento do espaço, cosmológico e geográfico Maxacali, no Vale do Mucuri, levantando e produzindo a partir de uma busca bibliográfica e digital, assim como com conversas com os habitantes e grupos de pesquisa e extensão que já atuaram na região, uma cartografia do território, tanto a partir de questões geográficas naturais e urbanas, assim como políticas, tendo em vista e foco, a Aldeia Verde (município de Ladainha-MG), uma das localidades da etnia, com problemas recorrentes e radicais relacionados a água - tanto pela qualidade, falta e origem. No que diz respeito a água, é sabido que a principal questão territorial envolvendo os índios dizem respeito a terra e a promulgação da posse da mesma pelo governo federal. Enquanto tal legalidade não é resolvida e o direito de posse não lhes é dado de forma aos mesmos poderem receber do governo federal todos os direitos relativos a uma urbanização específica da área envolvendo tratamento sanitário, energia, acessibilidade, alimentação, educação pós ensino fundamental entre outros, lhes falta todas as condições de sobrevivência territorial. Assim, mesmo sequestrando e obrigando

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funcionários públicos a beberem a água que eles bebem² como feito há cinco meses, a situação é tornada insustentável pelas próprias políticas federais da questão indígena. Desta forma e levando em conta que o ministério público atualmente é o responsável pela chegada de água e saneamento básico ao espaço da etnia, o projeto se vê como produtor de um dossiê cujo objetivo seria o empoderamento técnico indígena para discutir legalmente sobre a situação crítica das águas. Já o projeto Assessoria Técnica e Arquitetura Indígena vem pesquisando e procurando produzir uma cartografia que situe as políticas públicas voltadas aos índios e que tem como recorte o espaço. Indo desde políticas públicas mais específicas e numa escala urbana a esta população como o PNGATI (Plano Nacional de Gestão Ambiental das Terras Indígenas) até a mais generalistas e mais domésticas como o PMCMVR (Programa Minha Casa Minha Vida Rural) busca-se compreender o estado da arte atual. Ao mesmo tempo, é objetivo auxiliar na formação de parceiras para a formulação de disciplinas que possam ser criadas e exercidas dentro de território indígena como forma de catalisar e aumentar o trânsito de conhecimento relativo a produção do espaço entre comunidade indígena e acadêmica, num modelo inicialmente similar ao que ocorre na UFBA Universidade Federal da Bahia dentro do programa de Residência em Arquitetura dentro do curso de Mestrado Profissionalizante. Uma primeira ação nesta direção já ocorreu durante o 2o semestre

Cf. http://noticias.r7.com/minas-gerais/mg-record/videos/indiosmantem-refens-no-vale-do-mucuri-06102015

de 2015, no formato de uma disciplina dentro do semestre letivo formal, partindo do programa Formação Transversal de Saberes Tradicionais da própria UFMG, o professor Adriano Mattos Corrêa (EAD/UFMG) com os professores João Critelli (EBA/ UFMG) e Renata Moreira Marquez (EAD/UFMG) realizaram, junto aos mestres construtores tradicionais Xakriabás e as artistas pintoras de casas Xakriabás, Libertina e Lourdes, a disciplina Arquitetura Xakriabá, ofertada para alunos de diversas graduações como formação livre. Nesta foi construída à maneira tradicional da etnia uma casa típica, em que o processo de construção começou com a procura e retirada dos materiais no próprio campus da universidade e prosseguiu com a participação braçal dos estudantes, em contato intenso com a técnica e com o fazer dos mestres. Importante assinalar que o programa Morar Indígena compreende - mediante a experiência anterior junto a COHAB/MG e esta - criada dentro de pesquisas internas do projeto e auxilio em disciplinas, que os limites das políticas habitacionais indígenas é justamente a falta de empoderamento das próprias populações alvo dos projetos. Mais do que limitar ou condicionar de forma muito incisiva as formas de habitar como faz o PMCMVR, o que se necessita é dar poder de decisão subsidiados por um diálogo técnico do arquiteto e urbanista. Desta forma, a suspensão do projeto junto a COHAB/MG, ainda que tenha limitado o próprio escopo de impacto do programa, significou uma melhor compreensão do papel do próprio programa junto às realidades espaciais indígenas. O projeto Narrativas do Espaço Indígena, com o objetivo de divulgar e ampliar os interlocutores da pesquisa, suprir a necessidade de compreender


o indígena e seu espaço em sua perspectiva idiossincrática e compensar a não vivência regular em território indígenas de modo a saber suas peculiaridades, recorreu a criação de sessões públicas de exibição e discussão de filmes produzidos no contexto do programa governamental Vídeo nas Aldeias, na própria Escola de Arquitetura da UFMG, com a participação de debatedores convidados. Com tal evento, criou-se um espaço de discussão a respeito do território indígena a partir de suas práticas cotidianas envolvendo alunos. Uma das primeiras impressões que se pode tirar de tais sessões é o modo de produção de esteriótipos recorrentes que se faz do espaço indígena e como tal processo se desfaz na exibição de filmes destes espaços a partir de um cineasta indígena. Sublinha-se tal acontecimento, que inclusive é esperado, porque muito do que se sabe sobre a arquitetura e planejamento e gestão territoriais indígenas são normalmente através de livros didáticos muito informativos sobre tipologias e estrutura de ocas e outros tipos de habitações, mas que pouco revelam sobre a relação casa, espaço cotidiano e etnia que, por sua vez, significa compreensão de programa arquitetônico³. Pouco se sabe ou nada se discute sobre a relação cosmológica animais, espíritos e índio, por exemplo. Ao mesmo tempo, com tais sessões livres, uma parceria com a produtora Noctua - Ideias e Conteúdos⁴ se iniciou. Com as sessões livres e a possibilidade de se organizar eventos e mostras cinematográficas que tem como recorte o espaço indígena, suas

³

Ver, por exemplo, LENGEN, 2013.

http://noctua.art.br

cosmologias e conflitos com o que está em volta, o início dessa parceria aponta para uma relação cada vez mais profícua entre universidade e comunidade, pilar de qualquer projeto de extensão.

Considerações finais Tendo em vista as questões colocadas acima, o programa ainda tem muito a trilhar, tanto em termos de financiamento e parcerias e também no quesito ações práticas de extensão ansiadas pelo grupo, além da própria produção de documentos úteis a serem disponibilizados aos indígenas e à Universidade para complementação e/ou crítica de dados oferecidos por órgãos oficiais. Ao mesmo tempo que a própria universidade está cada vez mais ciente de tal fato a ponto de, dentro de suas limitações, promover e incentivar a criação de institucionalidades específicas para o trato das questões indígenas, tal ação ainda está em seu início. A existência de uma abertura da Universidade a outros saberes, ainda que de forma difusa e tímida - haja visto a criação do grupo de extensão na Escola de Arquitetura e outas atividades como as citadas anteriormente - é um sinal de avanço no tratamento de questões outrora relegadas ao esquecimento ou falta de prioridade e aponta novos rumos de interação academia/ sociedade. Entretanto, ainda que tratado como atividades extensionistas ou de pesquisa, há espaço para que estes outros saberes penetrem e adentrem o cotidiano institucionalizado da universidade formado na sala de aula, na atividade de ensino mais especificamente.

positivos, existe a dificuldade de visitas às aldeias causadas pelas grandes distâncias geográficas a serem percorridas e devido aos atuais cortes de verbas federais para custeio de projetos, além do problema notório relacionado a necessidade de conciliar períodos letivos às viagens a campo - que podem se estender por dias consecutivos incluindo o deslocamento. Além disso, há o período inicial de construção de um relacionamento baseado em encontros periódicos e sistemáticos que demanda apoio de vários setores internos e externos à comunidade acadêmica. E há de se colocar a dificuldade de contato com os próprios indígenas. Muitas vezes objetos de políticas e projetos que teoricamente os beneficiariam, tais ações sempre acabam sendo relegadas ao esquecimento por uma falta de construção de uma parceira cujo interesse venha também do lado das etnias indígenas. Isso significa uma resistência por parte deles em confiar e iniciar processos de trabalho conjuntos devido a uma longa história de ações iniciadas mas não completadas e outras, muitas vezes, maldosamente usando-os como ativo ou tratando-os como objetos inanimados de pesquisa, a serem observados a distância. Sendo assim, há de se ter em mente que o trabalho demanda um tempo diferenciado envolvendo negociação e construção cuidadosa de uma relação de confiança, o que é totalmente compreensível.

No que tange em especial ao programa de extensão Morar Indígena, apesar de sinais 65


Referências ALMEIDA, Maria Inês de. Desocidentar-se: aberturas e caminhos para o outro (entrevista com Maria Inês de Almeida). Revista Em Tese. Belo Horizonte, FALE/UFMG. V.19, n.03, set-dez 2013. p.178-180. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 1994. CLASTRES, Pierre. Sociedade contra o Estado. São Paulo: Cosac Naify, 2005.. CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012. LATOUR, Bruno. Políticas da Natureza. Como fazer ciência na democracia. Bauru: EDUSC, 2004. LEFEBVRE, Henri. The Production of Space. Oxford: Blackwell, 1991. LENGEN, Johan Van . Arquitetura dos Índios da Amazônia. B4 Editores, 2013. LEVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. LUCIANO, Gersem dos Santos. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas no Brasil hoje. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade; LACED/Museu Nacional, 2006. MATTOS, Izabel Missagia de; et al. Povos Indígenas de Minas Gerais. Belo Horizonte: Assembléia Legislativa de Minas Gerais, 2000. MONTE-MOR, Roberto Luis de Melo. Urbanização Extensiva e Lógicas de Urbanização. Fonte: http://www.ufpa.br/epdir/images/ docs/paper34.pdf, Acessado em:13 de abril de 2014.

66

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IMAGEM: CELIA SANTOS

“O Morar Indígena é um programa de extensão da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que busca promover projetos na área de arquitetura e urbanismo, visando contribuir para a melhoria da qualidade de vida dos povos indígenas, assim como a ampliação da autonomia em relação à gestão de seus territórios. Articuladas à pesquisa e ensino, as ações de extensão do Morar Indígena se estruturam a partir de quatro eixos de atuação, caracterizados pelos Projetos de Extensão: Narrativas do Espaço Indígena, Artesanías Indígenas, Assessoria Técnica em Arquitetura Indígena e Cartografia Social Indígena.”

67


por camila nascimento

perspectiva


Camila Nascimento, recém graduada em Arquitetura e Urbanismo na UFMG, escreveu para seu trabalho final uma análise crítica da aplicação do IQVU (Índice de Qualidade de Vida Urbana) em um recorte do hipercentro da cidade de Belo Horizonte. A seguir, ela apresenta um resumo de sua monografia, destacando os principais pontos abordados no trabalho.

As tomadas de decisão acerca das políticas públicas são realizadas através de uma análise de demandas, apresentadas por índices que quantificam e qualificam a disponibilidade de serviços para o atendimento à população, na busca de garantir o bem estar de determinada comunidade. Estão presentes nas grandes cidades algumas deficiências no fornecimento de infraestrutura e itens considerados indispensáveis para a garantia da qualidade de vida à população, mesmo que esses sejam critérios de análise dos índices indicadores. O estudo “Análise Crítica da Aplicação do Índice IQVU (Índice de Qualidade de Vida Urbana num Recorte do Hipercentro de Belo Horizonte” traz, então, uma reflexão acerca da escala adotada para a aplicação do IQVU, apresentando diagnóstico de uma área caso o índice, que foi aplicado pela Prefeitura de Belo Horizonte em escala regional, fosse aplicado na escala do quarteirão. Após o mapeamento de um recorte do hipercentro da capital mineira, e análise comparativa dos resultados apresentados, foi realizada uma proposta para um dos itens mapeados, identificando a potência desse levantamento para o estabelecimento de políticas públicas que atendam mais diretamente à população

envolvida e residente de determinada área. A proposta apresentada objetiva dar fim às edificações vazias e subutilizadas na área estudo de caso deste trabalho, já que um dos índices insatisfatórios está relacionado ao caráter habitacional da área, e considerando que o caráter habitacional é potente no sentido de estimular a presença de outros tipos de ocupação relacionadas ao caráter de permanência que passará a existir. Com a finalidade de tornar viável essa implantação, sugere-se o estabelecimento de programa locacional de habitação de interesse social.

O conceito de “qualidade de vida urbana”, segundo Nahas (2002), vem se construindo, historicamente, a partir dos conceitos de bem-estar social, qualidade de vida, qualidade ambiental, pobreza, desigualdades sociais, exclusão social, vulnerabilidade social, desenvolvimento sustentável e sustentabilidade, e, desta maneira, sua história encontra-se estreitamente vinculada à história dos indicadores formulados com base nestes enfoques. De fato, o conceito de “indicadores sociais” e o movimento que levou este nome tiveram origem nos anos 60, quando os primeiros trabalhos na linha de Indicadores Sociais ganharam forma, inicialmente nos Estados Unidos. O movimento de indicadores sociais que então emergiu representava uma tentativa governamental de enfrentar a situação social do país, onde dominava o descontentamento cívico. A situação evidenciava o fato, hoje amplamente assumido, de que o progresso econômico, por ele mesmo, não é capaz de gerar o que era então chamado “bem-estar social”. Tornava-se necessário enfocar novos ângulos

e buscar novos indicadores – indicadores sociais – para revelar aspectos que não podiam ser captados pela abordagem estritamente econômica dominante na concepção de desenvolvimento vigente. A partir de então, condições e pressões sociais análogas acompanharam, na Europa e na América Latina, a emergência dos trabalhos de Indicadores Sociais. Muitos esforços foram empreendidos pela Comunidade Econômica Europeia, Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, e posteriormente, pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, visando dimensionar os impactos sociais do desenvolvimento, bem como a proposição de programas de estudos e temas para construção de indicadores na área social (NAHAS, 2002).

Intervenções pontuais mais efetivas à população podem ser feitas com a implementação de políticas na escala do quarteirão elaboradas a partir de diagnósticos que tratem recortes menos heterogêneos do tecido urbano. Como previsto na Constituição Federal e reafirmado no Estatuto da Cidade, toda edificação deve cumprir sua função social. Além disso, o uso residencial é capaz de impulsionar a instalação de outros usos na região, uma vez que o caráter de permanência atrairá serviços associados a ele como, por exemplo, comércios locais como padarias e mercearias, comércios varejistas de pequeno porte, que podem ser estabelecidos em galerias e lojas vazias, também encontradas no mapeamento realizado pela autora. Segundo o Art 2 do Estatuto da Cidade, Lei 10.257 de 2001, a política urbana deve garantir 69


aos cidadãos o direito a cidades sustentáveis. Sabe-se, então, que não somente o estado deve prover moradia, como também abranger o planejamento urbano como um todo. Portanto, ao abordar os programas habitacionais, deve-se considerar, além da quantidade de habitações construídas, a sua inserção urbana (PONTES, 2006). Parte-se do pressuposto que o estabelecimento do caráter habitacional é desejável especialmente quando a área em questão apresenta degradação e esvaziamento de seus usos. “As experiências provam que a melhor alavanca para a recuperação de áreas centrais é o estabelecimento de programas de moradia.” (MARICATO, 2001; p.141). Jane Jacobs afirma que, para se garantir a vitalidade de ruas deve “... haver densidade suficientemente alta de pessoas, (…). Isso inclui alta concentração de pessoas cujo propósito é morar lá.” (JACOBS, 2000; p.165). Segundo o plano para o hipercentro, está prevista “(...) a criação de condições para preservar a paisagem urbana e manter o patrimônio cultural; a valorização urbanística do hipercentro, visando a resgatar a sua habitabilidade e a sociabilidade do local” (BELO HORIZONTE, p. 01-11, 1996) Com o fim de alcançar as características previstas, fica indicada a criação de “(...) instrumentos e incentivos urbanísticos para a promoção de sua recuperação, restituindolhe a condição de moradia, lugar de permanência e ponto de encontro; revitalizar os marcos, as referências e os espaços públicos, históricos, turísticos e culturais” (BELO HORIZONTE, p. 11-49, 1996). Portanto, o incremento do uso residencial é diretriz prevista para a área de estudo, porção da zona 70

hipercentral, no Plano Diretor do Município que, além de mencionar o uso habitacional, trata sobre a recuperação do espaço como lugar de permanência. Acredita-se que as políticas habitacionais não podem se limitar a programas que visem à propriedade privada, mas devem ser oferecidas possibilidades, em que cada família possa eleger a que estiver mais de acordo com sua realidade. Portanto, em busca de soluções para os problemas com habitação para camadas de baixa renda, o estudo em questão traz à discussão, para atender ao déficit habitacional, a utilização dos vazios da área urbana mapeada, destinados a instalação de habitação de interesse social através de programa locacional. Para JACOBS, “(...) há quatro condições indispensáveis para gerar uma diversidade exuberante nas ruas e nos distritos: O distrito, e sem dúvida o maior número possível de segmentos que o compõem, deve atender a mais do que uma função principal; de preferência, a mais de duas. Estas deem garantir a presença de pessoas que saiam de casa em horários diferentes e estemas nos lugares por motivos diferentes, mas sejam capazes de utilizar boa parte da infraestrutura A maioria das quadras deve ser curta, ou seja, as ruas e as oportunidades de virar esquinas devem ser frequentes O distrito deve ter uma combinação de edifícios com idade e estados de conservação variados, e incluir boa porcentagem de prédios antigos, de modo a gerar rendimento econômico

variado. Essa mistura deve ser bem compacta. Deve haver densidade suficiente alta de pessoas, sejam quais forem seus propósitos. Isso inclui alta concentração de pessoas cujo propósito é morar lá.” (JACOBS, 2000, p.165) É evidente que nem toda cidade ou bairro tem todas essas características. A área central de Belo Horizonte tem condições similares às indicadas, outras são a grande oferta de comércio, instalações culturais, espaços e serviços públicos e, por conseguinte, isso se torna a principal razão pela qual os edifícios subutilizados devem entrar no planejamento de habitação de interesse social, sendo uma alternativa para moradias de baixa renda bem localizadas na cidade. Conclui-se, então, que a inclusão de edifícios subutilizados ou abandonados no Plano Municipal de Habitação de Belo Horizonte é também uma alternativa para a redução do déficit habitacional. Faz-se necessária a elaboração de outro programa que contemple os projetos de habitação de tais edifícios em área urbana com finalidade de habitação social, uma vez que os elaborados até então não contemplam esses edifícios.

O Programa Locacional é caracterizado pela locação de imóveis públicos ou privados a valores menores dos encontrados no mercado, em regiões que garantam para seus moradores o direito à cidade. Sendo assim, o poder público se dispõe a auxiliar as famílias que ainda assim não sejam capazes de manter-se nesses empreendimentos. “O programa visa a Locação Social


Pública, baseado na Política Nacional de Habitação que propõe a criação de programas e linhas de financiamento” (2004, p.45). O imóvel pertence ao poder público, que se torna responsável por sua gestão, por meio da prefeitura ou por via de empresa terceirizada. No Plano Municipal de Habitação (PMH) há vários programas descritos, porém, não existe programa para edifícios subutilizados/abandonados como alternativa para o combate ao déficit habitacional. Entretanto, esses edifícios podem ser uma opção potente para habitações de interesse social devido a sua localização, cuja área possui saneamento básico, energia elétrica, água, além de serviços públicos de qualidade, não se fazendo necessário o investimento em novas áreas, reduzindo o preço das moradias. De caráter municipal, o Programa Locacional para Habitação de Interesse Social será desenvolvido para contemplar esses edifícios especificamente nesse estudo, para a área eleita, podendo ser aplicado também em demais edifícios situados na região hipercentral da cidade em concomitância à Lei 810/06. O programa objetiva atender famílias que se enquadrem em Habitação de Interesse Social e Habitação de Mercado Popular, com renda de até 3 (três) salários mínimos, uma vez que são essas as faixas com maior presença no déficit habitacional de acordo com levantamento realizado pela Fundação João Pinheiro (FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO, 2006). A partir disso, foi escolhida uma estratégia para melhor adequação aos programas do município e à legislação existente, contando também com a utilização dos instrumentos de intervenção urbana.

Alguns aspectos facilitam a inserção de edifícios subutilizados/abandonados como possíveis locais para receber empreendimentos para habitação de interesse social:

usuários, mas estabelecer a habitação de interesse social em edificações que não estão cumprindo sua função social ou estejam parcialmente esvaziadas, identificadas no levantamento.

Estar em condições para a aplicação de instrumentos de intervenção urbana previstos no Plano Diretor, minimizando os custos de sua incorporação ao patrimônio público;

As políticas de Habitação Social desenvolvidas até hoje no Brasil têm como premissa principal a questão econômica, dando menos relevância às questões como inserção e infraestrutura urbana, que influenciam diretamente na qualidade desses processos e vem produzindo uma cidade cada vez mais segregada.

Possuir custos mais baixos para reabitação com aproveitamento do corpo edificado se comparado a demais alternativas para habitações de interesse social; A presença de plantas que possibilitam o uso misto, principalmente o uso comercial nos térreos com galerias corriqueiros na área, já que o aluguel para outros usos que não o habitacional pode contribuir para a gestão do condomínio; A possibilidade de disponibilidade para a ocupação de movimentos sociais, como o Programa Minha Casa Minha Vida/ Entidades.

A qualidade da moradia é influenciada por vários fatores que devem ser considerados ao estabelecer-se uma política de habitação de interesse social, como a mobilidade, serviços públicos, acesso à educação, lazer, trabalho, entre outros. Dessa forma, a região escolhida mostra-se ideal para esse estabelecimento, já que possui um elevado grau de infraestrutura urbana. Diante da atual cidade capitalista, pensar outros modos de ocupar a cidade, alternativos à propriedade privada é uma forma de intervir no modelo estabelecido, onde a desigualdade se faz necessária.

A partir dos entraves encontrados nos modos de Habitação de Interesse Social realizados até hoje no Brasil, vemos que uma alternativa é a Locação Social em edifícios subutilizados ou abandonados nas regiões infra estruturadas das cidades, na região do baixo centro de Belo Horizonte, no caso deste trabalho. Algumas ações de desapropriação de edifícios para fim de habitação social vêm ocorrendo no país hoje em dia, sendo os mais conhecidos nas grandes cidades, como Rio de Janeiro e São Paulo, a fim de diminuir o déficit habitacional. Vale destacar que esse projeto não visa retirar eventuais 71


por letĂ­cia sother

opiniĂŁo


sobre quem sai e quem fica uma reflexão a respeito da fuga de talentos Diébédo Francis Kéré é um arquiteto nascido em Burkina Faso. Depois de completar o estudo básico nas escolas locais, conseguiu uma bolsa para cursar arquitetura na Alemanha. Frente a este privilégio, ele decidiu voltar para seu país natal e usar os conhecimentos adquiridos para melhorar as condições de vida da população de sua vila, levando técnicas de construção acessíveis. Além de possibilitar a construção de uma escola e uma biblioteca adequadas ao clima do país, Kéré colaborou com a formação de mão de obra, gerando empregabilidade, e com o crescimento de um orgulho por parte da comunidade.¹ Diante dos relatos de Kéré, pode-se colocar em pauta a atual situação de recém formados no Brasil. É grande o número de pessoas que pretendem sair do país, assim que tiverem a chance, em busca de uma vida melhor. E não é para menos - o Brasil se encontra no pior momento que essa geração já viveu, incapaz de proporcionar o que um país de primeiro mundo pode oferecer. E o que outro país pode oferecer? Transporte público de qualidade, variedade de espaços públicos, moradia digna para quase toda a população, baixo índice de criminalidade - de fato, coisas que não encontramos por aqui. É compreensível essa vontade de sair em busca de maior qualidade de vida. Entretanto, constato que um arquiteto urbanista, com sua formação, pode se engajar em projetos e movimentos que direcionem a mudanças estratégicas. Junto a outros

profissionais, pode elaborar um plano de transporte público mais eficiente. Pode, também, planejar mudanças na cidade que proporcionem maior autonomia para o pedestre, assim como pode propor novos espaços públicos. Boas condições de vida ao alcance de toda a população - acesso a moradia, educação e saúde - levam, enfim, a um baixo índice de criminalidade. E não cabe ao arquiteto sugerir alterações nos planos habitacionais? Ou propor novas alternativas para moradias, outras formas de morar? Dentro de planos coordenados pelo poder público, é papel do arquiteto propor intervenções em assentamentos precários, é papel do arquiteto abrir caminho para que pequenas comunidades possam prosperar. É papel do arquiteto, até mesmo, sugerir mudanças no sistema prisional vigente ou possibilitar que um morador de rua tenha acesso a condições básicas de higiene, o que também colabora com a diminuição da criminalidade.

materialização de novos planos para o país que, em algum momento do futuro, nos ajudarão a alcançar a tão sonhada qualidade de vida do europeu. Para os descrentes a respeito da melhoria do país, há de se considerar que, há pouco mais de 500 anos, tomou-se uma decisão de começar o Brasil do zero. Não se pode esperar que uma sociedade tão recente seja tão evoluída quanto povos milenares. Temos, em nossas mãos, um país por fazer. Se todos formos embora, estaremos optando por não fazê-lo aqui.

¹

Para entender mais sobre a história de Diébédo Francis Kéré, assista a dois depoimentos do arquiteto [em inglês]:

Sendo assim, voltamos à questão: que motivos uma pessoa tem para ficar no Brasil? Ao optar por viver e trabalhar aqui, um arquiteto tem a chance de elevar as condições de vida de toda uma população. Essa foi a escolha feita por Kéré, que obteve sucesso. O retorno não é instantâneo - o que, em uma sociedade imediatista e impaciente, é, inicialmente, um problema -, mas pode levar a um resultado permanente. O arquiteto urbanista pode colaborar com a 73


IMAGEM: RAQUEL BYRRO



RUAR TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS ESCOLA DE ARQUITETURA LETÍCIA CUNHA ALENCAR


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