Apartamentos com vista... para onde? - Revista Urbe

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CULTURA VISUAL URBANA E CONTEMPORANEIDADE

EFEMERIDADES URBANAS


Quando o tempo e o espaço são colocados entre parênteses: efêmero

Eu creio na eternidade da arte, única permanência da nossa transitória 1 individualidade.

A cidade é também tudo aquilo que eu não conheço. Já notou que sabemos tudo sobre o habitat ideal dos gorilas, girafas, chimpanzés e até dos ornitorrincos, mas que quase não temos conhecimento sobre o que seria um bom lugar para o homo sapiens viver?2 A cidade é lugar de partida. De retorno. De meio. De tudo e até de um pouco mais. Assim, dizem alguns, confirma-se a hipótese de que cada pessoa tem em mente uma cidade feita exclusivamente de diferenças preenchidas por cidades particulares3. Por vezes, redundantes. Por vezes, coincidentes. O fato é que viver em uma cidade significa

habitar o lugar. Ter presente a territorialidade. A maior e mais louvável invenção humana, “o passado, o presente, o futuro”, divide-se por camadas de tempo assimétricas e até em contrassenso. Mas o que é o efêmero? O tempo que passa? O tempo codificado em registros? A memória já saturada de informações? Eis o efêmero urbano: toda a novidade parece convencer de que é preciso esquecer de tudo para recomeçar. Impossível recomeçar o presente sem o passado porque a cada segundo já não se tem o primeiro. Então, será que tudo pode ser efêmero menos a imaginação?


1 Fundação Iberê Camargo., p. 7. São Paulo: Banco Safra, 2009. 2 Essa foi a questão que norteou a vida e o trabalho do urbanista dinamarquês Jan Gehl, inspirador do projeto Cidades para Pessoas. http://cidadesparapessoas.com 3 Calvino, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Cia. das Letras, 2012.

A revista URBE tem como missão editorial tornar pública as ideias, opiniões, interpretações sobre cultura visual urbana e contemporaneidade construídas do ponto de vista de críticos, pesquisadores, acadêmicos, especialistas e artistas, com textos de caráter reflexivo. A #4, que fecha o ciclo de edições por ano, traz o tema efemeridades urbanas para refletir sobre o que eu vejo e o que me vê como no artigo Apartamentos com vista... para onde? de LETÍCIA LAMPERT {04}. DÉBORA FANTINI {12}, em artigo intitulado Tchau, tchau, belo horizonte, apresenta o que acontece no meio ambiente urbano da capital mineira percorrendo as memórias que a cidade vai deixando com o avanço imobiliário e as intervenções promovidas por coletivos e artivistas. Em O meio digital como possibilidade de permanência do efêmero, a CASA DE CULTURA DIGITAL {20}, analisa como as ferramentas digitais proporcionam uma nova percepção do espaço e do tempo, o modo de viver e de se relacionar com o outro e com a cidade em que vivemos. A efêmera arte urbana como produto e o consumo na pós-modernidade é o artigo de CLARISSA EIDELWEIN e KELLEN LAZZARI {26} que propõe uma leitura sobre o efêmero urbano como resultado

CULTURA VISUAL URBANA E CONTEMPORANEIDADE

EFEMERIDADES URBANAS Curador editorial

Vitor Mesquita

Editora executiva

Clarissa Eidelwein

Produtora executiva

Andrea Costa

Produtor gráfico

JOÃO PEDRO QUADROS Revisora

Grace Prado

Editora de fotografia

Kátia Costa Tiragem

1000 exemplares produção e execução

também do consumo cada vez mais incentivado em nossa época. O tempo nunca vem para permanecer de VITOR MESQUITA {34} reflete sobre a possibilidade do efêmero como algo praticado e promovido pela constante expectativa ao novo. FABRIANO ROCHA {38} coloca em discussão o ideal transitório para todas as coisas e o conceito de imaterialidade no artigo A cidade real é imaterial. Como diria Montaigne: “Eu não observo a paisagem, eu observo a passagem”.

apoio e impressão

apoio cultural

financiamento

Vitor Mesquita


LETÍCIA LAMPERT

Apartamentos com vista... para onde? 4 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

Um olhar para as vistas, cada vez mais cegas, da cidade contemporânea.

A cidade muda, cresce, se transforma.

personalidade, são derrubadas e trans-

Como um organismo vivo, com suas cé-

formadas em altos edifícios, sempre

lulas/moradores em constante multipli-

iguais, ainda que tentem ser diferentes.

cação, ela vai aumentando para todos os

A cidade vai perdendo suas referên-

lados. E não apenas para os lados, cresce

cias, sua identidade e memória. Vai se

para dentro, para o alto, principalmen-

transformando numa cidade qualquer,

te. Afinal, todos querem estar na área

numa cidade cada vez maior.

central. É a lógica da metrópole, quanto

A paisagem, efêmera, se dissolve

mais gente por metro quadrado, melhor.

em concreto. Já não se identificam mais

Para dar conta disso, casas anti-

as referências geográficas que deram

gas de bairro, cheias de histórias e de

origem a sua fundação. Pra que lado


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serra naquela direção... ou seria para o outro lado? Desnorteados e desconectados da natureza, é a programação da TV que passa a anunciar as horas do dia. Assim como a paisagem se dissolve, a ideia de vista, de vista da janela, vai perdendo o sentido também. Mes-

Agora venha ver este lado: a gente já não tinha vista para o nascente, mas veja o novo telhado que apareceu; pois bem, agora o sol da manhã chega meia hora depois.

mo que ela tenha sido posicionada cuidadosamente no momento da construção, com o objetivo de dar ao morador

fato está mostrando. Na verdade, o que

uma bela paisagem, pontos turísticos

as fotografias sugerem é uma vista que,

ou marcantes da região, nada impede

um dia, existiu. Hoje, tapada, escondida,

que, de uma hora para a outra, sua vista

é uma vista que já não se pode mais ver.

seja tapada por outro edifício. A menos

Soterrada pelo concreto, foi relegada da

que você, precavido, já tenha compra-

visão ao âmbito da imaginação, ou da

do o espaço aéreo do terreno vizinho.

memória dos antigos moradores que

É a especulação imobiliária que torna o

um dia puderam apreciar alguma paisa-

que antes parecia coisa de religiões du-

gem daquele ponto.

vidosas, vender terreno no céu, questão

Esta antiga vista, possivelmen-

protegida por lei, que pode ser inclusive

te bela (já mal consigo imaginar como

assinada e lavrada em cartório.

pode ter sido), é hoje um feio paredão

Na série Vista para, que até o mo-

de concreto. Um paredão com muitas

mento foi realizada em Florianópolis,

outras janelas. Algumas, às vezes, pró-

Porto Alegre, Buenos Aires e São Paulo,

ximas demais. E aí, além da vista, outra

a impossibilidade de enxergar além de

questão entra em jogo, esta intimida-

alguns poucos metros, que é dividida

de forçada com vizinhos que é cada

pelas janelas fotografadas em cada uma

vez mais pungente nas cidades atuais.

das cidades, confunde a memória, ou a

E assim a vida dos outros passa diante

ideia que temos do lugar, fazendo com

dos nossos olhos, como se fosse mais

que dificilmente consigamos identificar

um canal da TV, aquela mesma que

a qual cidade pertence cada conjunto

indica as horas. Um canal, porém, que

de imagens. O único detalhe que de-

não conseguimos desligar ou trocar por

nuncia a localização é a legenda, dado

outro que tenha uma programação me-

que se torna incongruente se levarmos

lhor, quando a que estamos assistindo

em consideração o que a imagem de

não está agradando.

Vista para Florianópolis, Letícia Lampert

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fica o rio? Onde nasce o sol? Tem uma


LETÍCIA LAMPERT

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E a vida na cidade vai seguindo

tro lado dessas tantas paredes que me

nesses moldes, já entendidos como na-

circundam, que circundam cada um de

turais ou inevitáveis. Alguns se incomo-

nós, diariamente, pelas ruas da cidade.

dam mais com essas janelas tão próxi-

O que tem do outro lado?

mas, outros menos. Alguns olham com

Se as paredes de fora nada reve-

curiosidade, outros com receio. Amiza-

lam, é a janela que aparece como elo

des e inimizades surgem e se desen-

entre esses dois lados, como ponto de

volvem entre janelas. Quem será aque-

contato entre o que é público e o que

la pessoa que mora do lado de lá? De

é privado, o que deve ser escondido e o

quem é aquela janela que vejo todos os

que pode ser revelado. Afinal, é da na-

dias acender e apagar sua luz? Será que de lá eles também me observam?

tureza da janela que olhem através dela, Vista para Buenos Aires, Letícia Lampert

é para isso que ela existe. Mas se ela foi feita para olhar para fora, não tem como

Envolto no castelo de andaimes como

evitar que de fora se olhe para dentro

um amontoado confuso de tábuas, cor-

também. Toda moeda tem dois lados. E

das, baldes, peneiras, tijolos, massas de

esse pouco que vejo pela janela (onde

areia e cal, o edifício crescia no outono.

também me deixo ver, querendo ou

Sobre o jardim já tombava sua asa de

não) é a única pista que tenho de todos

sombra; o céu nas janelas da casa esta-

esses moradores, esses tantos vizinhos

va murado. Mas ainda parecia uma coi-

que dividem seu CEP comigo.

sa provisória, uma tralha que depois se

Entretanto,

essa

proximidade

abate assim como se ergueu; era desse

física não costuma se refletir na proxi-

modo que a mãe tentava considerá-lo,

midade das relações subjetivas. Pelo

concentrando o descontentamento em

contrário, parece que, para nos prote-

aspectos transitórios, como os objetos

ger dessa intimidade forçada com um

que caíam dos andaimes nos canteiros,

outro desconhecido, criamos mecanis-

ou a desordem das traves na rua, evitan-

mos e atitudes para nos afastar o má-

do considerar o edifício como edifício,

ximo possível, cultivando um neutro

algo que ficaria plantado ali para sem-

distanciamento. Por isto fechamos a

pre sob seus olhos.

janela, puxamos a cortina, baixamos a persiana, na busca por um pouco de

As fachadas e as paredes das ca-

privacidade, na tentativa de fugir de ruí-

sas e dos prédios passam a significar

dos incômodos ou dos olhares curiosos

um limite entre mundos, tão próximos

daqueles anônimos conhecidos que

e tão distantes ao mesmo tempo. Eu, de

passam a habitar nosso dia a dia. Des-

fora, pouco sei, ou nada sei, sobre o ou-

conhecidos já tão íntimos que muitas


7

sobre nossos hábitos mais banais. – Conhece o vizinho da frente? – pergunto a uma moradora. – Não, ela me diz. – Quer dizer, conheço de vista. Não sei o nome, mas sei, por exemplo, que todo dia de manhã ele toma seu café na sacada e gosta de comer um pãozinho junto. Vejo ele quase todo dia, mais ou menos no mesmo horário. Mas o pessoal dali é meio esnobe, sabe? Quando veem que tem gente na janela da frente, já entram novamente em casa, nem cumprimentam. Fato é que é mesmo difícil estabelecer esse tênue equilíbrio entre ver e ser visto, entre o que é bisbilhotice e o que é atenção, nessa intimidade forçada que a configuração da cidade estabelece. Esse distanciamento criado, na verdade, nunca consegue ser tão grande a ponto de não ser tocado pela existência do outro. Ele está ali, muito próximo, querendo ou não. E assim ouvimos barulhos, percebemos hábitos, trocamos olhares ou saudações. – Ali na frente mora uma senhora de idade, sozinha. Eu me preocupo com ela. Cuido dela daqui. Todo dia de manhã olho se ela abriu a janela. Então fico tranquila, sei que está tudo bem. Se um dia ela não abrir, é por que algo aconteceu – me conta outra moradora. Elas nunca se falam ou se encontram de fato. Na correria dos dias de hoje, só

Cria-se um paradoxo: se a vista é efêmera, a situação em si é uma constante.

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vezes poderiam tecer longas descrições


LETÍCIA LAMPERT

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sobra tempo para se cuidarem assim,

janelas dos prédios. A cidade do aves-

e contado na vida de cada um, receber

pela janela. Um olhar de carinho no

so. Já não me interessava mais pelas

um estranho em sua casa não é bem

meio de um entorno que se imagina

fachadas, pela vista de fora, conhecida

assim. Não seria um golpe, um assalto,

sempre mais hostil.

de longa data e compartilhada por to-

um louco com intenções diabólicas?

A obsessão por ver a cidade por

dos. Queria ver o outro lado, queria ver

A insegurança reina, com tantas notí-

dentro, por ver a vista da janela dos

como vê o morador lá daquela janeli-

cias de violência em todos os jornais.

outros, a estas alturas, já havia se trans-

nha que acaba de fechar a cortina. Será

Mas depois de algumas explicações e

formado em projeto (ainda bem que

que ele se incomoda com a janela do

de vencer olhares desconfiados e curio-

tudo pode virar arte!). Numa flânerie

vizinho tão perto? Será que são amigos

sos de porteiros e zeladores, eu própria

às avessas, passei a perambular pelos

ou pelo menos se conhecem?

me surpreendi com a receptividade da

apartamentos da cidade. Apartamentos

Nessas visitas e andanças, nem

maioria. Da maioria em uma certa re-

de gente que não conhecia, mas onde

todos são receptivos, é claro. Afinal,

gião da cidade, é interessante apontar.

identificava essa proximidade entre as

além do tempo, cada vez mais escasso

No centro e nas imediações, consegui


9 nível de desenvolvimento social de

um homem que sabe muito bem que

projeto. Já em prédios da Nilo Peçanha,

bairros e regiões. Dos mais luxuosos aos

se poderia pedir tudo à futura constru-

por exemplo, nem mesmo apresentar

mais simples, a vista de todos está cada

ção, menos que fosse bonita; aliás, era

a proposta ao síndico foi possível. A or-

vez mais comprometida.

preciso torcer para que fosse anônima,

dem para os porteiros é barrar qualquer

inexpressiva, que se confundisse com

estranho ou intrometido que queira se

Aquela frase sobre o prédio não muito

os edifícios mais anônimos do entorno,

aproximar. Eu era as duas coisas. A bar-

bonito tinha deixado a mãe alarmada.

marcando sua total estranheza em rela-

reira, pelo menos para os bem-intencio-

– Mas antes nós queremos ver o proje-

ção à casa deles.

nados, é quase intransponível.

to – disse – e ter o direito de aprová-lo.

No entanto, é interessante notar

O senhor sabe, vamos ter esse prédio

– Fique à vontade minha filha,

também que esta situação de janelas

sempre diante dos olhos... (…) Quinto

não repare na casa. A casa é velha, sabe?

próximas demais não acontece só em

fizera uma expressão ao mesmo tem-

Quer dizer, eu sou bem mais velha que

determinada faixa de apartamento ou

po de fatalismo e de altivez, como de

a casa. Com estas palavras, a senhora do

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diversas visitas e olhares simpáticos ao


LETÍCIA LAMPERT

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nono andar me convida para entrar. Ela

Não é apenas a vista da janela que

me conta que, da bela vista que tinha

se torna cada vez mais efêmera, com o

quando se mudou, há mais de 50 anos,

perigo eminente de uma nova constru-

já não resta mais nada. Tudo virou este

ção muito próxima surgir da noite para o

edifício sem graça (palavras dela) com

dia, mas as relações entre os vizinhos nes-

este monte de janelas que vemos a nos-

se microcosmos que os edifícios formam,

sa frente. E a senhora conhece alguém

também são cada vez mais passageiras.

do outro prédio? Pergunto. Não, tam-

Casas onde gerações e gerações de uma

bém, não para ninguém nestes apar-

mesma família passaram, deixando suas

tamentos, estão sempre se mudando.

marcas e histórias por todos os cantos,

Apenas ela permanece. Uma raridade

parecem hoje uma realidade distante,

no meio da cultura do inquilinato, do

incompatível com a cidade e seu fluxo

movente, do fugaz. E ela, quase anacrô-

sanguíneo, sempre corrente. Algumas

nica naquele contexto, já não consegue

relações ainda se equilibram neste con-

fazer amizade com as vizinhas como fa-

texto, como as senhoras que se cuidam

zia tempos atrás. Fechada em seu apar-

para conferir se uma e outra abriu a janela

tamento, vê o tempo passar pela janela,

todo dia de manhã. A maioria, no entanto,

sendo marcado agora pelos vizinhos

parece preferir voltar os olhos para o ou-

que vêm e que vão.

tro lado, para não ter que cumprimentar

Vista para São Paulo, Letícia Lampert


nota

1 Sigo coletando vistas e histórias entre janelas para este projeto, que foi selecionado pelo II Prêmio IEAVI e tem exposição prevista para junho de 2013. Se você se reconhece nessa situação e gostaria de compartilhar a sua, entre em contato pelo contato@leticialampert.com.br. Será um prazer contar com novas participações.

Referência

CALVINO, Ítalo. A especulação imobiliária. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Letícia Lampert é mestranda em Poéticas Visuais pelo PPGAV/UFRGS, bacharel em Artes Visuais – Fotografia pela mesma instituição (2009) e bacharel em Design – Programação Visual pela Ulbra (2000). Faz parte atualmente do grupo de pesquisa em artes .p.a.r.t.e.s.c.r.i.t.a., coordenado por Elida Tessler. Tem participado de diversos salões e exposições e, em 2010, recebeu o Prêmio Açorianos de Artes Plásticas na categoria Fotografia, sendo indicada também como Artista Revelação.

11 principal, falo a partir de Porto Alegre,

que, sabe-se lá até quando, vai morar ali.

mas muito mais por uma questão cir-

Se pensarmos que a vista da janela

cunstancial do que por ser um dado re-

é uma forma de ver e perceber a cidade,

levante ou um estudo de caso de uma

sua constante transformação demonstra

região específica. O lugar geográfico é o

o quanto essas referências facilmente se

que menos importa, é uma situação co-

esvaem. A maioria das fotografias ob-

mum não só a diferentes bairros, mas a

tidas, nas diferentes séries, poderia ter

diferentes cidades também.

sido tirada em qualquer cidade. A vista

Resta pensar como fica a percep-

já não localiza mais. As situações se re-

ção do tempo e do espaço em que vive-

petem, comuns a todos os lugares, num

mos quando as referências se apagam

mundo cada vez mais globalizado, cada

cada vez mais rápido. Se a configuração

vez mais padronizado. Cria-se um para-

da cidade é alheia a nossa vontade, se ela

doxo: se a vista é efêmera, a situação em

vai se transformando sem podermos in-

si é uma constante. Na série Vista para,

terferir, a forma de se relacionar e se po-

coloco em contraponto cidades diferen-

sicionar frente a determinadas situações

tes que poderiam ser entendidas como

ainda depende de nós. No fim, é tudo

sendo uma só. Neste novo projeto1, no

mesmo uma questão de ponto de vista,

qual a relação entre os vizinhos é o mote

basta não deixar que tapem o seu.

URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

mais um vizinho que se põe a sua frente e


débora fantinI

Tchau, tchau, belo horizonte 12

a capital mineira também é reconstruída em intervenções urbanas que podem não durar na paisagem, mas têm potência para se impregnar na memória de forma poética. Não tenho me cansado de repetir “tchau, tchau, belo”, para me despedir do horizonte da minha cidade, desaparecendo atrás de arranha-céus. Em Belo Horizonte, até o rio sumiu em alguns trechos, canalizado e coberto pelo asfalto que se alastra com a abertura e a ampliação de vias, num boom de obras que vêm modificando a paisagem da capital mineira na última década, sobretudo nos últimos cinco anos, na urgência do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e na iminência da Copa do Mundo de 2014, da qual BH é uma das cidades-sede. Essa Belo Horizonte (re)construída pela iniciativa privada e pela administração pública não corresponde à cidade desejada por alguns de seus habitantes, que partem para a criação de suas próprias intervenções na capital. Sem perseguir o caráter perene fundado sobre o conceito de propriedade, cidadãos comuns ou artistas adotam táticas de uso da urbe como interferências imagéticas, ocupações móveis, ações temporárias, por meio das quais se tenta escapar, mesmo que momentaneamente, ao controle do capital e do Estado. Essas intervenções urbanas não duram na paisa-

Foto: Dereco Machado

URBE | # 04/04 | efemeridades EFEMERIDADES URBANAS

Em paralelo ao boom de grandes obras,


13 praças “revitalizadas”, no jargão urba-

fato de se tratar de uma prática gregá-

nar na memória de forma poética.

nístico dominante.

ria para enquadrar pichadores no crime

A cada “tchau, tchau, belo” que re-

Mas a pele de vidro que revestirá

de formação de quadrilha – segue-se

pito, parafraseio minha amiga Dastenras,

o novo velho hotel não deve ofuscar a

traçando linhas de fuga por BH. “Teve

portuguesa que vive em Belo Horizonte

memória daquele que, até o início de

maluco que passou lá e deixou sua presa

há alguns anos. “Bye bye beautiful”, diz

2012, era considerado um dos maiores

de caneta bic no stencil!”, conta Cidadão

a legenda da fotografia de um inacaba-

elefantes brancos de BH. O artista Ci-

Comum em seu mural no Facebook.

do arranha-céu com a fachada coberta

dadão Comum reproduziu fielmente,

A menos de cinco quilômetros

de pichações, no centrão da cidade, ti-

“pixo” por “pixo”, a fachada principal do

dali, na Avenida dos Andradas, já na re-

rada por ela em 9 de outubro de 2011

prédio ainda inacabado em um estêncil,

gião leste da capital, será construído,

e publicada em seu Flickr . Espécie de

que foi aplicado em papel e grudado ao

anunciou-se recentemente, o mais alto

cartão-postal que ela deixou, aos amigos

lado do próprio edifício, localizado numa

prédio da América Latina, com 85 anda-

“beagaenses”, antes de uma viagem a

área “degradada” em vias de “revitaliza-

res, cinco vezes o número de pavimen-

Portugal. Em seu regresso a BH, um mês

ção”. Um antimonumento ao antimo-

tos de cada uma das Torres Gêmeas que

depois, o registro já se tornara histórico,

numento, não apenas por serem, tanto

hoje ocupam o terreno.

pois o motivo da foto não estava mais lá.

os “pixos” quanto o sticker, extraoficiais,

Esqueletos de edifícios, as torres

Após 30 anos largado no ostracis-

mas, sobretudo, por não terem, ambos,

ainda assim foram a moradia de 180 fa-

mo pela especulação imobiliária, o espi-

a pretensão de alcançar a posteridade,

mílias por quase 15 anos, até o despejo,

gão de 32 andares, em plena Avenida do

e, sim, o desígnio da efemeridade, sem

em 2010, em truculenta ação da polícia,

Contorno, uma das principais da capital

ilusão quanto à própria decomposição.

como tem sido a praxe em outras ocu-

1

mineira, vai cumprir sua vocação para

A despeito da repressão que a

pações pela cidade – talvez tenha che-

hotel de luxo. No entanto, nessas três

prefeitura e a polícia vêm adotando em

gado a Porto Alegre a notícia da prisão,

décadas de abandono pelo capital que

relação à pichação – aproveitando-se do

em BH, do rapper paulista Emicida, após

se criou o “belo” ao qual minha amiga se

o músico ter protestado, durante um

referia: a mais clássica “agenda” de “pixo”

show, contra o despejo de outra ocupa-

da cidade, com “prezas” garrafais.

ção, Eliana Silva, a oeste da cidade.

As pichações começaram a ser

Na capital mineira, o déficit habi-

apagadas das fachadas, deixando-se

tacional é de 62 mil moradias, segundo

apenas ler “PAVOR” no heliponto, refe-

levantamento de 2011 da Companhia

rência geográfica no skyline belo-ho-

Urbanizadora de Belo Horizonte (Urbel),

rizontino. “Apenas nos resta o Pavor”,

menos da metade dos 150 mil lares es-

comenta minha amiga a respeito de

timados pelo Movimento de Luta nos

outra foto . Pavor da gentrificação que

Bairros (MLB). Isso abrange quase 1 mi-

nos persegue, tentando calar quem

lhão de pessoas, parte das quais busca

deseja se expressar na pele da cidade,

abrigo nas ruas, onde não são bem-

com verniz antipichação, aplicado nas

-vindas pela prefeitura, que as recebe

2

URBE | # 04/04 | efemeridades EFEMERIDADES URBANAS

gem, mas têm potência para se impreg-


débora fantinI

14 URBE | # 04/04 | efemeridades EFEMERIDADES URBANAS

com pedras pontiagudas, como as que

Aarão Reis5, foi visitada por meninos que

Lourdes, bairro nobre na região centro-

foram instaladas debaixo de um viaduto

acabaram dormindo lá dentro. E aí, como

-sul de BH. Uma delas foi projetada por

na Avenida Cristiano Machado, ligação

desmontar a “obra”? Mais fácil é descons-

Raphael Hardy Filho, nome relevante da

entre o centro e a região nordeste.

truir a ideia de arquitetura, que se torna

arquitetura moderna em Minas Gerais,

Diante das várias manifestações

sinônimo de “(…) pertencimento e não

embora sua assinatura não faça dessas

artivistas em contrário, acabei me lem-

mais uma estrutura, uma forma de conter

construções mais importantes do que

brando de que, sete anos atrás, quan-

física ou concretamente um espaço. (…)

outras, anônimas, em bairros onde o me-

do o espaço comum em BH era menos

Em vez de nossos corpos se adaptarem

tro quadrado é menos valorizado.

controlado, viadutos da cidade foram

à geometria dada realizada no espaço, o

O velório das casas, realizado na

mobiliados e decorados com stickers,

corpo produz seu mundo, suas formas,

noite seguinte à demolição por dezenas

representando cômodos como cozinha,

sua casa”, como observou Davi Pantuzza,

de pessoas, incluindo integrantes do

sala de TV e quarto de criança, na inter-

outro integrante do Obscena.

Movimento SalveoVHS e Partidomeio, foi uma intervenção que acabou sendo

venção Ambientes , realizada pelo cole3

tivo Pão com Durex durante o 3º Fórum

Mortes das casas

chamada “A Minha Vela Apagou”, frase

de Arte das Américas, em 2005.

Ressignificar a arquitetura não quer dizer

que encerra a fala de um dos presentes

Além de abordar o problema da

desprezar o patrimônio arquitetônico

em vídeo que registra a ação6.

falta de moradia, ao conceber-se a rua

de Belo Horizonte. “Beagaense” adoti-

A morte das casas de Belo Horizon-

como casa, resgata-se a ideia desse es-

va, nasci e cresci em cidades coloniais

te também é tema da intervenção “Era

paço público como lugar de convívio

mineiras (Sabará, Mariana e Ouro Preto),

Uma Casa...”, na qual imagens das cons-

e não apenas de circulação. Localizada

acostumada ao fato de que estragos em

truções ainda de pé foram projetadas

entre esses dois territórios, a Kasa Kian-

imóveis do século XVIII virassem notícia

nos tapumes dos terrenos onde seriam

da, construída desde 2011 em diferentes

em rede nacional. Já na capital, debu-

erguidos os edifícios que as substituirão.

pontos de BH, tem marquises como te-

lhei-me (e ainda me debulho) em lágri-

Fantasmas a chamarem a atenção de vi-

lhado, calçadas como piso e é mobiliada

mas introvertidas diante de casas e até

zinhos e passantes, que não haviam tido

com cama, mesa, assentos e utensílios

predinhos de três andares demolidos.

tempo de fazer um reparo pela última vez nos imóveis, antes que fossem ao chão.

domésticos recolhidos em derivas pela

Meu choro foi compartilhado em

cidade por seus criadores, os artistas Le-

um velório de quatro casarões, que, mes-

O projeto, realizado pelo artista Fá-

andro Acácio e Saulo Salomão, integran-

mo em processo de tombamento, foram

bio Batista desde o início de 2011, também

tes do Obscena .

derrubados na surdina, numa madruga-

inclui um site7, com imagens de casas de-

Pode causar estranhamento o fato

da de um final de semana de agosto de

molidas captadas no Google Street View,

de seus habitantes não aparentarem o

2005, pela Igreja Universal do Reino de

num esforço de guardá-las antes que, com

estereótipo de moradores de rua, mas

Deus, para a construção de um estaciona-

uma atualização da ferramenta, sejam

a Kasa Kianda é aberta a estes e a quem

mento para seu megatemplo na Avenida

perdidas para sempre. O inventário vem

mais quiser entrar, para um café, um dedo

Olegário Maciel.

sendo criado de forma colaborativa, com

4

de prosa, um descanso no meio da cor-

As casas datavam de 1946 e re-

reria cotidiana. Certa vez, armada na Rua

presentavam o início da ocupação de

indicações de outros belo-horizontinos de endereços de casas recém-demolidas.


15 URBE | # 04/04 | efemeridades EFEMERIDADES URBANAS

Foto: Fรกbio Batista


débora fantinI

16 URBE | # 04/04 | efemeridades EFEMERIDADES URBANAS

Enquanto quarteirões são “revita-

grantes do coletivo Os Conectores8 e do

Surgiu como mais um questionamen-

lizados” em cima de escombros, o ribei-

já citado Obscena – lançou suas linhas

to da gentrificação pela qual BH passa,

rão Arrudas, principal curso d’água da ci-

para fisgar quem passava de carro sem

expressa no decreto municipal10, já re-

dade, é enterrado. Em vez de despoluir o

se lembrar de que ali, debaixo das novas

vogado, proibindo “eventos de qual-

rio, que já era um canal com margens de

pistas da avenida, existe um rio.

quer natureza” na Praça da Estação, que havia sido criada, 10 anos antes, com a

concreto, o poder público optou por sepultá-lo de vez, em um caixão chamado

Praia sazonal

transformação de um estacionamento

Bulevard, e abrir pistas para mais carros

E não apenas rio, em Belo Horizonte

em esplanada dotada de infraestrutura

– crescente em ritmo acelerado há cinco

também existe praia. Neste estado in-

para manifestações culturais com gran-

anos, a frota da Grande BH apresenta o

terior que é Minas Gerais, as praias são

des aglomerações.

maior aumento por habitante do país.

como as ondas, vêm e vão, numa série

Ficando entre uma ação direta,

Por mais sujo e fétido que o Arru-

de experimentações que foi identifica-

festiva e lúdica e um evento espetacula-

das se encontre hoje, há quem deseje

da como uma “tradição praieira insur-

rizado, a Praia da Estação conseguiu pro-

que o rio continue a fazer parte de Belo

9

gente” pelo Conjunto Vazio.

mover alguns encontros, articulações e

Horizonte, e bem vivo, com suas águas

A Praia da Estação é a mais recen-

pensamentos em torno da construção

apropriadas para nado e pesca. Num

te, reunindo banhistas vestidos a ca-

do comum, respingando em outras

trecho que ainda estava descoberto em

ráter para curtir sábados de sol e água

ações até hoje, quase três anos após sua

2011, uma turma de pescadores – inte-

fresca, de fonte ou de caminhão-pipa.

primeira edição, em janeiro de 2010. Foto: Rogério Araújo


17 Cidade-jardim

ção da população, o prefeito da época,

sido colocado em questão na Rotatória

Uma das primeiras cidades planejadas

Jorge Carone Filho, usou a justificativa

Praia da Estação, com shows de Retrig-

da América Latina, cuja construção se

de que as árvores estavam contamina-

ger , Monster Surf e banca de cartazes

iniciou na última década do século XIX,

das por uma praga. Ironicamente, quase

e livros do grupo 4e25 , que também

Belo Horizonte até hoje ostenta o título

50 anos depois, essa lenda urbana vol-

imprime suas criações em muros e fa-

de “cidade-jardim”. Mas ainda nos anos

tou a ser evocada em um telejornal para

chadas. Realizadas entre 2005 e 2009, as

de 1930, quando Carlos Drummond de

denunciar uma (falsa) ameaça de derru-

rotatórias foram ocupações relâmpago

Andrade podia “debaixo de cada árvore”

bada dos fícus centenários e tombados

desses não lugares em “festas feitas na

fazer sua cama, “em cada ramo” pen-

da Avenida Bernardo Monteiro, no Bairro

rua com intuito de tornar realmente pú-

durar seu paletó, iniciou-se a poda dos

Santa Efigênia (centro-sul).

blico o espaço urbano”, segundo o cole-

frondosos fícus da Avenida Afonso Pena,

Em maio de 2011, as árvores ama-

tivo Azucrina , que as promoveu.

que acabariam sendo totalmente corta-

nheceram com placas em seus troncos

Rotatórias, além de canteiros cen-

dos, em 1963, assim como árvores em

anunciando sua extração para exporta-

trais de avenidas e praças, também fo-

muitas outras avenidas e ruas da cidade,

ção pela Vecana15, apresentada como

ram ocupados para ações banais, como

ao longo daquela década.

uma empresa de “corte e venda de ma-

11

12

13

tomar banho de sol, na série de interven-

O real motivo era o alargamento

deiras nacionais”, mas, na verdade, um

ções A Ilha , que o já citado Conjunto

das vias para comportar a explosão de

empreendimento de terrorismo poético,

Vazio realizou em meados de 2008.

automóveis, mas, diante da desaprova-

articulado por uma rede de colaborado-

14

URBE | # 04/04 | efemeridades URBANAS

Um mês antes, o decreto já havia

Foto: João Perdigão

Foto: Luiz Navarro


débora fantinI

18 Foto: Daniel Silva

URBE | # 04/04 | efemeridades URBANAS

res e grupos de arte autônomos, que se apresentam como Ajuricaba (ajuntamento de marimbondo), um pseudônimo compartilhado, como Luther Blissett. Se conseguiu enganar mídia, prefeitura e polícia por um lado, por outro, a ação provocou a mobilização de pessoas que “denunciaram a ação da empresa, sentiram de certa forma que são capazes de lutar contra as forças dessas megaestruturas empresariais”, segundo afirmou Ajuricaba em entrevista ao site Ah!Cidade16. Também acirrou o debate, em redes sociais e em bares, sobre a flexibilização do Código Florestal, cujas alterações – como a conversão de multas para crimes ambientais cometidos até julho de 2008 em serviços ambientais – àquela época acabavam de ser aprovadas na

Façanha di Latell, advogado aposentado

mento da então nova capital, que subs-

Câmara dos Deputados. No âmbito lo-

de 85 anos.

tituiria Ouro Preto.

cal, engrossou as discussões sobre arbi-

Tem árvores frutíferas – limão-ca-

Na região onde Belo Horizonte foi

trariedades que prefeitura e vereadores

peta, graviola, jabuticaba e até pêssego

implantada, ficava um arraial chamado

vêm praticando, a favor de interesses

– e flores – antúrio, beijinho, camarão,

Curral del Rei, nome emblemático de

privados, como a desapropriação de

manacá e orquídea. E qualquer um

um passado rural não tão distante – a ci-

matas e a venda de ruas e mercados pú-

pode pegar mesmo, não precisa nem

dade completa 115 anos em 2012 – com

blicos para a construção de empreendi-

bater. Mas seu Ernani não se incomoda

o qual os belo-horizontinos costumam

mentos imobiliários.

se um neófito na jardinagem quiser di-

lidar de forma controversa. Ainda ouço

cas sobre como plantar as mudas para

ou leio, com frequência, BH ser chamada

semear seu gesto.

de “roça grande”, ora com desprezo, ora

Entre um tropeço e outro em tocos de árvores cortadas pelos passeios do meu bairro, Anchieta (centro-sul), é

O epíteto de “cidade-jardim” não

com orgulho.

outra placa que me chama a atenção:

alude necessariamente aos atributos

Mas eis que um dia as vacas liber-

“Mudas: jardim e pomar. É sua, pode le-

paisagísticos de Belo Horizonte. A ex-

taram-se do curral, do rei e saíram tro-

var”. A tabuleta está fixada, ao lado de

pressão traduz mesmo é o ideário do-

tando pelo asfalto belo-horizontino. Tão

vasos, alguns improvisados em emba-

minante de higienização, atrelado ao de

inusitadas quanto animais de verdade

lagens, no muro da casa do seu Ernani

modernização, presente desde o surgi-

num ambiente urbano, as artesanais va-


NOTAS 1 2 3 4 5

www.flickr.com/photos/dastenras/6242847143/in/photostream www.flickr.com/photos/dastenras/6743109745/in/photostream www.flickr.com/photos/paocomdurex/872589485/in/set-72157601485946895/ obscenica.blogspot.com.br Aarão Reis (1853-1936), engenheiro e urbanista paraense, foi o chefe da comissão que construiu Belo Horizonte, entre 1894 e 1897. A rua que leva seu nome, talvez a única ainda hoje calçada e não asfaltada, está localizada entre a Avenida dos Andradas e os trilhos da ferrovia e do metrô, próximo à Praça da Estação e ao Viaduto Santa Tereza (famoso pelos arcos), numa região tensionada entre a gentrificação para a criação de um polo histórico-cultural e manifestações de resistência. 6 www.youtube.com/watch?v=s-GvvgctYiw 7 www.eraumacasa.blog.br 8 www.osconectores.ato.br 9 comjuntovazio.wordpress.com/2011/05/28 10 portal6.pbh.gov.br/dom/iniciaEdicao.do?method=DetalheArtigo&pk=1017732 11 retrigger.net 12 4e25.org/ 13 www.blog.azucrina.org 14 comjuntovazio.wordpress.com/2011/05/28 15 www.grupovecana.com 16 ahcidade.com/2011/06/marimbondo-na-cena-do-crime 17 www.overmundo.com.br/banco/vacas-magras-a-cow-parodia

Débora Fantini é jornalista e especialista em Artes Plásticas e Contemporaneidade pela Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). Estuda e pratica artivismo relacionado à urbe e ao feminismo em Belo Horizonte, onde vive. É coeditora do zine Mixsórdia (mixsordia.com), agenda cultural on-line de BH. Em 2010, participou da realização do Vendendo Peixe (urubois.org/vendendopeixe), ocupação artivista no terceiro andar do Mercado Novo, no centro da capital mineira.

19

da intervenção, estava sendo realizado

que parecia bloco de Carnaval, mas fora

pela primeira vez no Brasil, em São Paulo.

de época.

Em uma cidade de horizontes

Cerca de 20 pessoas, artistas ou

cada vez menos belos e mais restritos,

não, fizeram vacas com materiais reci-

com praças e parques cercados e vi-

clados ou baratos e passearam com elas

giados, na qual, em detrimento da hu-

por ruas da cidade: havia esculturas,

manidade dos sujeitos, atitudes contra

fantasias, uma pessoa vestida de vaca

a ordem e o capital são criminalizadas,

doente em uma cadeira de rodas e outra

desde a pobreza de um sem-teto até a

empurrando um carrinho de mão com

liberdade de expressão de um picha-

esterco, como se estivesse à venda. No

dor, as vacas magras representam, para

final do trajeto, as vacas foram deixadas

mim, a liberdade. Inspiram-me a rumi-

pastando pelas ruas.

nar táticas para escapar do poder pelas

Realizadas duas vezes, em 2005 e

vias do artivismo urbano, juntando-me

2006, as Vacas Magras – Cow Paródia sa-

à manada dos que também se engajam

tirizavam o evento internacional Cow Pa-

com a cidade e opõem-se às políticas

rade, que, na ocasião da primeira edição

de controle.

17

URBE | # 04/04 | efemeridades URBANAS

Foto: Daniel Silva

cas irromperam num cortejo nonsense

festas feitas na rua com intuito de tornar realmente público o espaço urbano.


CCD POA

20

O meio digital como possibilidade de permanência do efêmero

URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

Este ano, Porto Alegre foi pre-

mos e com o próprio tempo. Gilberto

senteada com algumas intervenções

Gil, na época em que era ministro da

urbanas efêmeras, que ilustraram o mo-

Cultura, afirmou que:

mento artístico e questionador do atual contexto cultural que a cidade respira.

O uso pleno da internet e do software

Intervir usando a arte como meio

livre cria fantásticas possibilidades de

para expressar opiniões e indagações

democratizar os acessos à informação

sobre a cidade não é algo novo. Porém,

e ao conhecimento, maximizando os

a possibilidade de articulação e de pro-

potenciais dos bens e serviços culturais,

pagação das causas que estamos viven-

amplificando os valores que formam o

do através do meio digital é recente e

nosso repertório comum e, portanto, a

de um alcance que ainda não temos

nossa cultura.1

condições de mensurar. O advento das tecnologias digitais e a sua popularização, somado a

interferindo positiva e efemeramente no dia a dia da cidade.

Já os pesquisadores Bianca Santana e Sergio Amadeu da Silveira cita-

uma nova geração criativa que enxerga

A interferência cultural na cida-

e não se conforma com os problemas

de pode ser transitória na ação, mas,

ou a falta de opções na cidade, pro-

ao usar o meio digital em seu processo

(...) a cultura digital é uma realidade de

porciona um ambiente extremamente

– para criação ou registro – acaba por

uma mudança de era. Como toda mu-

favorável para a criação de novas redes

ressignificar a questão de efemeridade,

dança, seu sentido está em disputa, sua

de contatos. E são a partir dessas redes

já que, de alguma forma, o digital deixa

aparência caótica não pode esconder

que surgem as ideias para as manifesta-

rastros, memórias on-line e oportuniza

seu sistema, mas seus processos, cada

ções urbanas.

conexões entre pessoas que podem

vez mais auto-organizados e emergen-

continuar a ter contato ou até mesmo a

tes, horizontais, formados como des-

criar novas intervenções.

continuidades articuladas, podem ser

O movimento Occupy Wall Street foi um dos precursores dessa tendência,

ram que:

com suas atividades ganhando força

É aí que as intervenções urbanas

assumidos pelas comunidades locais,

pela rede social Facebook, e conseguin-

cruzam com a cultura digital, reforçando

em seu caminho de virtualização, para

do reunir milhares de pessoas presen-

os conceitos de compartilhar e construir.

ampliar sua fala, seus costumes e seus

cialmente num protesto contra a de-

E o impacto dessas ações – meio físicas,

interesses. A cultura digital é a cultura

sigualdade econômica e social. Assim

meio digitais – é sentido em real time.

da contemporaneidade.2

como essa iniciativa, outras surgiram e

Diversos pensadores e autores se

utilizaram o meio digital para sua co-

empenham em definir o que é exata-

Percebe-se que tanto a realida-

municação e organização. Porto Alegre

mente a Cultura Digital, como ela vem

de vivenciada no espaço físico quanto

é uma das capitais do Brasil que abriga

modificando nosso comportamento e

a realidade vivenciada no ciberespaço

vários coletivos criativos com o propósi-

nossa maneira de se relacionar com as

estão interligadas. Essa conexão estrei-

to de promover ações culturais e sociais

pessoas, com o ambiente em que vive-

ta torna mais difícil separar o digital das


21 e álbuns de imagens digitais têm in-

fluxo de pessoas e em outros, às ve-

bam sendo onipresentes nas interações

fluenciado o processo como um todo e

zes, invisíveis aos olhos dos habitan-

que acontecem no nosso cotidiano.

alterado a percepção de permanência,

tes. A ideia era tornar mais prazeroso

cristalizando na web essas intervenções

o trajeto apressado e rotineiro de mi-

urbanas efêmeras.

lhares de pessoas, transformando o

A partir dessa ótica, em que as ferramentas digitais disponíveis modificam comportamentos e abrem dife-

URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

nossas vidas. E as novas tecnologias aca-

começo da semana em algo especial,

rentes possibilidades, serão apresen-

Poesia para quem tem pressa

além de lançar foco a lugares esqueci-

tadas algumas intervenções urbanas

Dez amigos, organizados pelo grupo

dos da cidade.

realizadas em Porto Alegre durante o

RUA – Rastro Urbano de Amor, saíram

O grupo selecionou 11 locais

ano de 2012. A larga utilização das re-

num domingo à noite para realizar a

para a ação, entre eles: as escadarias do

des sociais, documentos de edição co-

intervenção Poesia Ex-Pressa , “distri-

viaduto Otávio Rocha, na Avenida Bor-

laborativa, grupos de discussão on-line

buindo” poesias em locais de grande

ges de Medeiros; o Mercado Público; a

3

Foto: Felipe Rosso


CCD POA

22 Fotos: Felipe Rosso

URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

Cinemateca Capitólio; o Cine Coral; o

Para escrever, foram usadas las-

tes questionaram onde poderiam en-

Bar Ocidente; a Lancheria do Parque e

cas de gesso (cal), que não agrediram

contrar os registros do trabalho que

algumas faixas de segurança, como a

as superfícies. A escolha deste material

estavam vendo naquele momento,

do cruzamento da Rua 24 de Outubro

aciona a efemeridade da ação, já que

nascendo a necessidade da ação estar

com a Rua Hilário Ribeiro.

as frases irão apagar-se com o passar

presente também no meio digital. O

Poemas de Carlos Drummond

do tempo, seja pela água da chuva,

desejo daquelas pessoas era acessar,

de Andrade, Caetano Veloso, Arnaldo

pela limpeza das calçadas ou pelo sim-

pela internet, o conteúdo da interven-

Antunes, Cartola e até letras de mú-

ples caminhar das pessoas que ali cir-

ção, tanto para ver e entender o proje-

sicas, foram escritos no chão e em al-

culam. Os interventores usaram as re-

to como um todo, quanto para divul-

guns muros dos locais escolhidos. As

des sociais como plataforma de apoio,

gá-lo em suas redes pessoais.

frases se relacionavam com os espaços.

criando um grupo fechado no qual foi

Esse comportamento ilustra a ân-

A Cinemateca Capitólio, por exemplo,

discutida a ideia da ação, sua organiza-

sia de participação, mesmo que passiva,

fechada desde 1994 e sem data para

ção, referências, trocas de materiais de

de indivíduos que não estão envolvidos

reabertura, recebeu o trecho de um

pesquisa e a seleção dos poemas.

diretamente nas intervenções urbanas.

poema de Drummond, “Tenho razões para sentir saudades de ti” .

Durante a execução da inter-

Essas ações provocam diálogo entre os

venção, os observadores e transeun-

habitantes e a cidade – entre o coletivo


23 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

e o individual – mostrando que todos,

cavaletes estilizados por seus amigos.

Em Porto Alegre, a ideia foi aco-

de certa forma, querem participar como

A ideia era recolher os cavaletes irre-

lhida por uma parceria entre a Casa da

divulgadores ou até mesmo interferin-

gulares, que ficavam nas ruas depois

Cultura Digital POA (CCD POA), um es-

do na concepção dessas ações.

das 22h ou que atrapalhavam a circula-

paço e rede de trabalho colaborativo, e

ção de pedestres, e estilizá-los a gosto.

o Núcleo Urbanoide, um coletivo de ar-

Quando a poluição visual

Nascia assim a Cavalete Parade , que

tistas urbanos. Nas redes sociais, combi-

virou arte

misturou subversão, protesto, diver-

naram-se saídas para o recolhimento de

Durante as eleições de 2012, veio das

são, arte urbana e cultura digital.

cavaletes irregulares e oficinas de pintura

4

redes sociais a inspiração para outra

Com essa química, o evento se

orientadas por artistas que aconteceram

intervenção. Após observarem que

multiplicou rapidamente, dando vazão

na sede da Casa de Cultura Digital POA5,

artistas urbanos, num ato de protesto,

à revolta com a poluição visual que

localizada na Casa de Cultura Mario Quin-

modificaram alguns cavaletes de pro-

acompanha o período de campanhas

tana. Os cavaletes foram expostos no dia

paganda eleitoral, dois jovens paulis-

eleitorais. Várias cidades aderiram ao

29 de setembro, próximos à Usina do Ga-

tas decidiram criar um evento no Fa-

projeto: Porto Alegre, Florianópolis,

sômetro, e recolhidos no mesmo dia.

cebook para reunir e expor em local

Curitiba, Rio de Janeiro, Belo Horizonte,

público, com data e horário marcados,

Salvador, Cuiabá, Recife e João Pessoa.

O entrosamento e adesão à proposta foram tão bem-sucedidos que,


CCD POA

24 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

Porto Alegre, gerando ambientes propícios para novas experiências e aprendizados entre a comunidade. Projetos semelhantes já acontecem em países como Estados Unidos e Espanha, in-

Alterando nosso modo de viver, de se relacionar com o outro e com o local em que vivemos, as ferramentas digitais proporcionam uma nova percepção do espaço e do tempo.

clusive com parceria do poder público, como é o caso da cidade de Sevilha. No Brasil, o projeto Lotes Vagos aconteceu nas cidades de Belo Horizonte e Fortaleza entre os anos de 2005 e 2008. Louise Ganz, uma das idealizadoras, explica que a intenção foi “gerar uma dinâmica urbana, transformando lotes privados de uma cidade em espaços públicos de uso coletivo”. Os formatos das ocupações foram os mais diversos: estruturas de redes para descanso,

além da Cavalete Parade POA, os grupos

praia artificial, espaços para oficinas,

organizaram uma segunda edição no

grandes mesas para refeições coletivas

dia das eleições, com um número maior

e palco para apresentações.

de cavaletes, que transformou pontos da

Em sintonia com o Lotes Vagos,

cidade que sofreram com lixo eleitoral

o Projeto Vizinhança pretende resgatar,

em canteiros de arte urbana.

mesmo que de maneira efêmera, algo

Embora tenha acontecido no

que se modificou consideravelmente

meio físico, foi pelo meio digital que a

em tempos de cultura digital: o encontro

intervenção, num curto espaço de tem-

presencial de vizinhos e amigos, compar-

po, ganhou sobrevida, reverberando

tilhando experiências e troca de saberes.

em novos possíveis formatos como ex-

As atividades desenvolvidas proporcio-

posições em museus e, inclusive, leilão

nam uma análise de como podemos in-

de algumas peças.

teragir com os espaços urbanos e, consequentemente, reconfigurá-los visando

Novas experiências no espaço ao lado

a um melhor aproveitamento. A primeira edição do Projeto Vizi-

Idealizado pela arquiteta Márcia Braga,

nhança aconteceu em agosto de 2012.

o Projeto Vizinhança6 propõe ocupar

Uma casa, disponível para locação no

temporariamente espaços ociosos em

bairro Boa Vista, foi gentilmente cedida


notaS

1 Citação de Gilberto Gil, na época em que era ministro da Cultura, em aula magna proferida na Universidade de São Paulo (2004) 2 Citação dos pesquisadores Bianca Santana e Sergio Amadeu da Silveira, no “Seminário Internacional sobre Diversidade Cultural: Práticas e Perspectivas” (2007) 3 https://www.facebook.com/RUApoa 4 http://www.cavaleteparade.com/ 5 https://www.facebook.com/ccdpoa 6 http://projetovizinhanca.wordpress.com/

Referência

GANZ, Louise e SILVA, Breno. Lotes Vagos 1ª ed. Belo Horizonte: Instituto Cidades Criativas ICC, 2009.

Casa da Cultura Digital (CCD) é um espaço e rede de trabalho colaborativo que desenvolve projetos sociais e culturais em diversos pontos do país. O artigo para a presente edição da revista URBE foi escrito colaborativamente (e virtualmente) por diversos membros da CCD de Porto Alegre. A proposta da CCD POA é ser um encontro de trocas e convívio, com atividades formativas e muito tempo livre. Seus integrantes vêm participando ativamente de projetos digitais e presenciais na cidade, alguns deles de intervenções urbanas efêmeras.

25 Esse olhar, que no espaço físi-

da temporariamente. Durante aproxima-

co durou um tempo limitado, ganhou

damente um mês, uma galeria de arte

memória permanente ao ser registrado

virtual expôs suas obras pelos cômodos,

nos meios digitais. O que foi passagei-

ocorrendo mais uma vez o cruzamen-

ro ou teve fruição para apenas alguns

to entre o digital e o “real”, já que uma

transeuntes, tornou-se vivo e disponível

galeria de arte antes só visitada virtual-

a todos na web, possibilitando sua visi-

mente, tinha ganho um suporte físico.

tação contínua, disseminação e repro-

Nos finais de semana, a casa abriu suas

dução, além de prolongar e maximizar

portas para as crianças participarem de

a existência de uma intervenção urbana

oficinas de desenho e pintura com ar-

que parecia isolada e condizente ape-

tistas locais.

nas a uma cultura local.

Na segunda edição, que aconte-

O processo criativo das interven-

ceu no mês de outubro, os locatários de

ções fica mais rico quando acontecem

uma casa no bairro Petrópolis empres-

as trocas de experiências das ações

taram dois quintais para as atividades

urbanas nacionais e internacionais, co-

do Projeto Vizinhança. Durante nove

nectando grupos ou indivíduos e esti-

dias, várias oficinas para adultos e crian-

Ao usar o meio digital para am-

mulando novas criações ou reprodu-

ças, almoços coletivos, pocket shows,

pliar sua divulgação, o Projeto Vizinhança

ções. Nada surge de uma ideia banal,

contação de histórias e palestras deram

pôde atingir um público maior do que

mas de somatórias de inspirações e re-

vida a espaços antes ociosos.

os moradores dos bairros em que foram

ferências. É indiscutível o quanto a web

Boa parte da articulação dos

realizadas as ocupações efêmeras. Os

e suas ferramentas potencializam essas

parceiros e mobilização da comunida-

participantes se sentiram acolhidos pela

trocas de conhecimento e fomentam o

de ocorreu através do Facebook e de

proposta de reunir a comunidade de ma-

surgimento de novos agentes interven-

documentos colaborativos do Google.

neira simples, e demonstraram interesse

tores e/ou coletivos.

Sem a facilidade proporcionada por

em expandir para outros locais da cidade.

tais ferramentas, a intervenção teria seu

A intervenção urbana física é catalisada, em sua grande magnitude,

alcance bastante limitado. A cada ima-

O efêmero revisitado

pelo meio digital, em que todas essas

gem compartilhada, novos interessa-

Vale ressaltar que nenhuma dessas in-

ações ganham outra dimensão tempo-

dos apresentavam-se para participar da

tervenções tiveram fins lucrativos. A

ral e espacial. O compartilhamento vir-

ação. Por meio de um formulário on-li-

proposta dos grupos e indivíduos que

tual dos registros realizados pelos parti-

ne, foram inscritas as atividades que se-

as conceberam era oferecer aos habi-

cipantes ou observadores, enquanto as

riam realizadas nos quintais. Um segun-

tantes um outro olhar da cidade e seus

ações ocorrem, permanece depois que

do formulário foi disponibilizado para o

elementos, algumas vezes mais poético

as intervenções findam, congelando

cadastro daqueles que quisessem ceder

e artístico, outras vezes mais agregador

aqueles momentos e tornando o que

seus espaços para outras edições.

e comunitário.

foi efêmero, permanente.

URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

pela proprietária para que fosse ocupa-


Clarissa Eidelwein e Kellen Lazzari

A efêmera arte urbana como produto e o consumo na pós-modernidade 26 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

Foi-se o tempo do durável, do herdei dos meus pais essa geladeira, esse equipamento fotográfico ou essa máquina de escrever. Hoje, as coisas têm prazo de validade, tempo de consumo, de duração, ficam obsoletas ou simplesmente não resistem à passagem dos anos. Penso que já se pode falar em meses, estamos na era dos descartáveis, na era do lixo – mesmo que para alguns o produto ainda funcione, esteja inteiro, tenha vida útil dentro da validade, simplesmente, não importa –, porque a tecnologia apresenta algo novo, com mais funções ou apenas com um design moderno, mesmo que sejam as arestas arredondadas.

Glory 2, intervenção de Slinkachu em Grottaglie, Itália, 2009 http://little-people.blogspot.com.br/

Para não ser obsoleto, é neces-

Vive-se como se o que importas-

sário estar atento a mudanças e inova-

se fosse só o presente, no qual predo-

ções. O consumismo deixou de ocorrer

mina o instantâneo, a velocidade das

“O caminho da loja à lata de

pela satisfação das necessidades, pas-

informações. A efemeridade do mundo

lixo deve ser curto e a passagem, rá-

sou pelo desejo – mais efêmero – e hoje

– fala-se até no seu fim, será? – traz in-

pida” (Bauman, 2007, p. 108), sem re-

é fundado na noção do querer, um que-

certezas, e o momento atual passa a ser

morsos, com a predominância da cul-

rer simplesmente, sem nenhuma inten-

o mais importante e o desejo é vivê-lo

tura hedonista, sem estabilidade, sem

ção subliminar, um querer instantâneo.

com qualidade. A preocupação pela so-

passado, com possibilidades ilimitadas

Conforme Maria Rita Kehl (2007, p. 303),

brevivência impede o pensar, o refletir

para o desejo, valorizando o novo em

sobre qualquer coisa, a temporalidade

detrimento do durável. É assim que se

as referências produzidas através da

faz com que o agir, o modo de ser, o

descartam as coisas e a sede por novos

transmissão entre as gerações perde-

querer mude constantemente, incenti-

produtos, por nova vida, aumenta cada

ram sentido sob o império da novidade,

vado, muito, pela sociedade de consu-

vez mais. Pelo medo de ser considerado

da obsolescência programada das mer-

mo, que bombardeia a todo instante

anormal, entra-se no ciclo do consumo.

cadorias que obriga o sujeito, sempre na

mensagens para consumir indiscrimi-

Mas como manter esse ciclo, essa eter-

posição de consumidor, a renovar conti-

nadamente. Kehl fala em uma socieda-

na insatisfação do consumidor, como

nuamente os objetos e as atitudes asso-

de que aposta na euforia como valor

torná-lo, sempre, disposto a enfrentar a

ciadas a eles (pois são os objetos que co-

agregado a todos os bens em oferta no

selva do capitalismo? Para o sociólogo

mandam nossas atitudes e não o inverso).

mercado. Tem-se, então, a eterna insa-

polonês, com o excesso de ofertas, com

tisfação do ser humano, neste caso, do consumidor.


27 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS Glory 1, intervenção de Slinkachu em Grottaglie, Itália, 2009 http://little-people.blogspot.com.br/


Clarissa Eidelwein e Kellen Lazzari

28 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

(...) todas as formas se mudam, decaem, e perecem ou se transformam, todas são efêmeras e caducas, ao passo que a ideia ou substância é 1 sempre viva, verde e eternal.

a temporalidade ou sem nenhuma cor-

ta, que hoje vive, e bem, da sua arte, e

ruas, na cidade. “Cidade é, sobretudo,

respondência das expectativas, com a

para o Estado. Em países como os Esta-

materialidade erigida pelo homem, é

desqualificação do produto logo após

dos Unidos, a participação da cultura na

ação humana sobre a natureza. Cidade

ele ser alcançado, enfim, essas são al-

economia é próxima, por exemplo, a da

é, pois, sociabilidade: comporta atores e

gumas das formas que os produtores e

indústria farmacêutica, em posição de

relações sociais, personagens, grupos,

comerciantes prendem o consumidor

destaque. Claro que o cinema abocanha

classes, práticas de interação (...)” (Pesa-

na constante busca pelo novo.

uma fatia grande nesta estatística.

vento, 2002, p. 23). A arte entra como

A era do consumo, da tecnologia

O movimento pós-moderno trou-

um dos canais de comunicabilidade e,

da informação, vida de consumo, não só

xe a democratização da arte, exemplo

como sabemos, ela pode se manifestar

levou o indivíduo a desvalorizar o perma-

disso é a arte urbana. “Nada há a dese-

de diversas formas.

nente, as tradições, a valorizar o relativis-

jar para além de uma arte sem preten-

mo, mas produziu, também, uma cultura

sões, sem elevação nem pesquisa, livre

De transgressão a objeto

local ligada, por meio da globalização, à

e espontânea, à imagem e semelhança

de consumo

cultura internacional. A arte deixou de se

da sociedade narcísica e indiferente”,

Por volta de 1980, o ex-policial civil To-

preocupar com o original, passou a mis-

como escreve Lipovetsky (1989, p. 116).

niolo começou a pichar seu nome por

turar estilos, hibridizando-se. Dessa for-

O pós-modernismo ou hipermodernis-

muros e paredes da cidade de Porto

ma, a cultura deixou de ser um acessório

mo, como prefere o filósofo francês, é

Alegre como “um grito contra a falta de

para ganhar dinheiro, para ser a principal

um período de expressão para todos e

liberdade para se expressar”2. Transfor-

atividade. A afirmação vale para o artis-

nada melhor do que se expressar nas

mado em lenda urbana, Toniolo é con-


29 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

Giacometti, Coisas do Cotidiano, 2012. Projeto fotogrรกfico de Leandro Selister


Clarissa Eidelwein e Kellen Lazzari

30 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

siderado o precursor da arte de rua na capital gaúcha. Manifestação, esta, que surgiu efêmera, transgressora, com caráter de protesto ou mesmo denúncia. Logo, incomodava e não tinha vida longa. As pichações foram promovidas a grafites, ainda uma atividade marginal, até atingirem na última década do século 20, consolidando-se nos anos 10 do terceiro milênio, o patamar de arte urbana. O que começou como um movimento que aflorou das ruas gerou ícones, entre eles, os ingleses Banksy e Stik, o francês Space Invader, SpY, de Madri, OsGêmeos, do Brasil, que hoje têm suas obras espalhadas pelo mundo inteiro – exemplo disso é uma intervenção em um muro da Faixa de Gaza atribuída a Banksy, o mais anônimo e misterioso dos artistas pós-modernos. As institui-

Hanging on 2, intervenção de Slinkachu em Mong Kok, Kowloon, Hong Kong, 2011 http://little-people.blogspot.com.br/

ções, atentas, passaram a promover

dios públicos e viadutos em capitais

de uma exposição em uma importante

ações para perpetuar esta arte, que

como São Paulo e Porto Alegre tornam-

galeria londrina. O americano Shepard

passou a produto de consumo, chegou

-se suportes oficiais para obras de artis-

Fairey, autor de um dos cartazes de di-

às galerias, ganhou preço, deixando de

tas de rua, com autorização e tudo.

vulgação do movimento Occupy Wall

ser de rua.

Com a transformação da antes

Street3, recentemente foi alvo de críti-

A institucionalização da arte ur-

marginal arte urbana em produto de

cas grafitadas sobre suas obras acusan-

bana também ocorre por parte do po-

consumo, os artistas passaram a colher

do-o de fazer parte do 1% da população

der público. A prefeitura de Londres,

os louros dessa mudança de comporta-

que concentra grande parte da riqueza

para preservar uma obra de Banksy,

mento da sociedade. Porém, há quem

dos Estados Unidos, a quem se desti-

determinou o tombamento do muro

questione a postura “capitalista” de al-

na o protesto pacífico antiglobalização

de um prédio condenado à demolição

guns artistas. Stik, um ex-morador de

considerado por Lipovetski o grande

para construção de um grande empre-

rua para quem a arte urbana é o maior

acontecimento do século 21 até então.

endimento. No Brasil, na tentativa de

movimento de arte da história huma-

A longevidade das intervenções na

humanizar as cidades cada vez mais

na, foi criticado por alguns fãs por ter

rua em forma de grafite, stêncil, stickers,

frias e sem identidade, muros de pré-

se “vendido ao sistema” na abertura

colagens já é uma realidade; entretan-


31 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

Hanging on 1, intervenção de Slinkachu em Mong Kok, Kowloon, Hong Kong, 2011 http://little-people.blogspot.com.br/

to, há outro tipo de arte com data de

há como a obra ser mais efêmera, já que

ou o que melhor preenche os requisitos

validade próxima do vencimento des-

dura o tempo que a lesma leva para se

do seu desejo, vence quem convencer o

de a sua produção. O artista londrino

deslocar, a ave voar ou as moscas to-

cliente da indispensabilidade do seu pro-

Slinkachu em seu projeto Little people

marem conta, o que pode até formar

duto ou serviço ou quem oferecer uma

in the city , desde 2006, realiza instala-

outra obra. Tudo é registrado em foto-

promoção imperdível em que realmente

ções que são fragmentos do cotidia-

grafia, em plano fechado, intermediário

não há tempo para pensar, ou ainda pelo

no em miniatura. A partir de qualquer

e aberto. As imagens geram exposições,

cansaço. Existe até ferramenta para tal.

elemento da cidade, uma poça d’água,

livros, catálogos etc.

São os programas utilizados pelos prin-

4

uma bagana de cigarro, uma casca de

cipais anunciantes da internet que, pelo

bergamota, uma pomba, um inseto, um

A sociedade contra-ataca

IP do consumidor, rastreiam suas poten-

copo de Mac Donald’s ou um osso de

Se os consumidores – a ideia era falar em

ciais aquisições e bombardeiam o cliente

frango do KFC, o artista cria um cenário

população, sociedade, mas a palavra re-

a cada site patrocinado com a imagem

em que pequenos bonecos interagem,

trata melhor como somos vistos e trata-

daquele tênis, skate, som, batedeira pla-

muito frequentemente, com o lixo ur-

dos na era do consumo – não têm tem-

netária, panela elétrica para arroz, i-tudo

bano, o excedente do capitalismo. Não

po de decidir o que de fato necessitam

que é coisa e segue a lista. Difícil é encon-


Clarissa Eidelwein e Kellen Lazzari NOTAS

1 RIBEIRO, João apud FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, p. 715. Curitiba: Positivo, 2004. 2 Frase retirada de uma entrevista produzida para o curta Quem é Toniolo?, de André Moraes e Caco Pacheco (2010). http://www.youtube.com/watch?v=vkUaoEnzTjc 3 “Occupy Wall Street é um movimento de resistência pacífico, sem líderes, formado por pessoas de muitas cores, gêneros e convicções políticas. A única coisa que temos em comum é que somos os 99% da população que não vai mais tolerar a ganância dos outros 1%.” Tradução livre de texto do site http://occupywallst.org/ 4 Little people in the city, de Slinkachu, http://little-people.blogspot.com.br/ 5 Entrevista concedida ao site Planeta Sustentável e publicada em setembro de 2012. A íntegra está em http:// planetasustentavel.abril.com.br/noticia/cidade/entrevista-enrique-penalosa-defensor-bicicletas-sistemadiversificado-onibus-702248.shtml

32 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

trar espaço pra tudo que se vende (e se

não existe apenas porque consome. Vi-

Na maioria das ações de resgate

compra) nos apartamentos de 87 metros

ver não é consumir. Na contramão da

da solidariedade nas cidades, as inter-

quadrados com três quartos. Assim como

oferta da vida em condomínios, minici-

venções urbanas estão inseridas no

nas cidades, a parte social fica relegada a

dades, como solução de segurança para

contexto de humanização dos espa-

um segundo plano.

proteger seus bens vendidos como

ços. Aliás, em Londres, bem antes da

A cidade, que desde a Antiguidade

imprescindíveis, uma parcela da popu-

administração prever que a maior par-

foi espaço de convivência e porto segu-

lação está se organizando para ocupar

te dos investimentos para a Olimpía-

ro para seus habitantes, no fim do século

os espaços públicos, parques, praças,

da de 2012 seria no lado leste, o mais

20, passou a ser mero local de passagem

auditórios, antes que sejam cercados

deteriorado, os artistas de rua, empur-

de um lugar privado para outro, do traba-

e repassados para a iniciativa privada

rados pelos altos preços da moradia

lho para o condomínio para o shopping,

explorar. Alguns já foram. O objetivo é

na parte mais nobre, de forma espon-

cada um em seu carro. A vida dos sonhos

uma retomada da vida em comunida-

tânea, já tinham iniciado a revitaliza-

idealizada pelas grandes corporações. Ah,

de, de conhecer os vizinhos, resgate

ção, senha para que a especulação

nos condomínios, além de toda a segu-

de um velho hábito já experimentado

imobiliária termine o trabalho, torne o

rança ainda há grande áreas de convivên-

por moradores de apartamentos que

preço dos imóveis impraticáveis para

cia para suprir a falta de espaço nas casas

passeiam com seus cães pelas ruas dos

pessoas comuns e faça com que os

coladas uma as outras. Claro que existem

bairros, de tornar as áreas públicas hos-

verdadeiros autores da revitalização,

outros tipos de condomínios, espaçosos

pitaleiras, espaços de convivência.

migrem para outro local, iniciando

e confortáveis, só que custam bem mais

Em Porto Alegre, entre muitos

novamente o processo.

caro. Para Bauman (2007, p. 78), numa

outros movimentos, destacam-se os pi-

Há cidades, porém, que a inicia-

curiosa mudança de seu papel histórico

queniques noturnos nos parques com

tiva de torná-las mais aprazíveis parte

e em desafio às intenções originais de

o objetivo de chamar a atenção para a

dos próprios governantes, como deve-

seus construtores e às expectativas de

necessidade de iluminar e ocupar em vez

ria ser ao natural. Estas servem de ins-

seus moradores, nossas cidades se trans-

de cercar. Iniciativas como estas atraem

piração aos criadores dos movimentos

formaram rapidamente de abrigos contra

até mesmo os moradores de condomí-

sociais urbanos, como a Massa Crítica,

perigo em principal fonte desse mesmo

nios, desejosos por atravessar a cerca no

que não se conformam com o rumo

perigo. “As cercas têm dois lados. O que

sentido contrário depois de perceberem

que grande parte das cidades seguiu,

está ‘dentro’ para as pessoas de um lado

que só o que têm em comum com seus

distante da solidariedade. Copenhage,

da cerca está ‘fora’ para pessoas do outro

vizinhos é o que Bauman chama de para-

na Dinamarca, é um exemplo emble-

lado. Os moradores dos condomínios se

noia mixofóbica. Para ele, se a segregação

mático. Nos anos de 1960, o prefeito

cercam ‘fora’ da vida da cidade.”

é oferecida e aceita como a cura radical

anunciou que fecharia o tráfego para

Mas se o consumismo como uma

para os perigos representados pelos es-

veículos em uma das principais aveni-

espécie de terapia é a alternativa para

tranhos, conviver com estes se torna cada

das da cidade, incentivando o convívio

combater a insatisfação gerada pelo

vez mais difícil. “Os medos contemporâ-

proporcionado por pessoas a pé ou de

próprio sistema, uma parcela da popu-

neos mais assustadores são os que nas-

bicicleta. A população esbravejou con-

lação está empenhada em mostrar que

cem da incerteza existencial.” (2007, p. 97)

tra a iniciativa, alegando que o clima


Referências

BAUMAN, Zygmunt. Vida líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. ______. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. ______. Tempos líquidos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. ELIAS, Norberto. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994. FISCHER, Rosa Maria Bueno. Mídia e produção do sujeito: o privado em praça pública. IN: FONSECA, Tania Mara Galli e FRANCISCO, Deise Juliana. Formas de ser e habitar a contemporaneidade. Porto Alegre: Ed. Universidade UFRGS, 2000. LIPOVETSKY, Gilles. A era do vazio. Lisboa: Relógio D’Água, 1989. PESAVENTO, Sandra Jatahy. Memória, história e cidade: lugares no tempo, momentos no espaço. Uberlândia: Art Cultura, 2002, Vol. 4, p. 23. KEHL, Maria Rita. Depressão e imagem do novo mundo. IN: NOVAES, Adauto (orgs). Mutações: ensaios sobre as novas configurações do mundo. São Paulo: Edições SescSP, 2007. KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo contemporâneo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1997.

Clarissa Eidelwein é jornalista e editora das revistas Arte Sesc – Cultura por toda parte e Urbe – Cultura Visual Urbana e Contemporaneidade. Kellen Lazzari é bacharel em Direito com especialização em Direito do Consumidor (UFRGS) e mestranda em Memória Social e Bens Culturais (Unilasalle).

33 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

nórdico não era convidativo. Conforme a expectativa do autor da polêmica solução, a avenida virou um efervescente ponto de interação entre as pessoas e, hoje, a capital dinamarquesa orgulha-se de ser a de maior número de usuários cotidianos de bicicletas. Para o prefeito de Bogotá no período de 1998 a 2001, Enrique Peñalosa, conhecido pelas soluções ousadas que adotou, entre elas, a restrição do estacionamento no centro da capital colombiana, além da construção de 300 quilômetros de ciclovias e da instalação de um sistema de ônibus rápido semelhante ao de Curitiba, é a sociedade quem deve decidir o que quer da sua cidade; no entanto, os setores fundamentais não são consultados. Segundo ele, a igualdade está no centro do problema. “Por que há mais bicicletas na Holanda ou Dinamarca que na Espanha ou Itália, onde o clima é melhor, não faz tanto frio e não neva em boa parte do ano? Porque são sociedades muito mais igualitárias. A cidade, da maneira como é desenhada, reflete os valores e a estrutura de uma sociedade. Uma ciclovia diz que ela é mais igual, que se preocupa com os mais pobres, com quem não tem um carro.”5 igualitária e solidária, e as intervenções urbanas – não apenas elas – contribuem para que estas qualidades não sejam efêmeras.

Intervenção em um muro de Ipanema, Rio de Janeiro, 2012

Foto: Carolina Eidelwein

A cidade que queremos é mais


VITOR MESQUITA

O tempo nunca vem para permanecer 1

34 URBE | # 04/04 | efemeridades EFEMERIDADES URBANAS

Ser é estar-no-mundo... ser é ter consciência do mundo3.

Como é que 24 horas Às vezes parecem escorregar dentro 2 do dia.

Colagens de imagens efêmeras fazem parte do concreto urbano como lugares desdobrados. Lugares e antilugares. Imagens, peso e superfície concorrendo com as pessoas sempre “em obras”. O todo está nas paredes e as paredes estão no todo. É preciso olhar a cidade. Ela também possui suas efemeridades. A cidade nos dá signos. É um lugar onde a referência não cessa e há a

O que é efêmero, aquilo que é de pouca duração, transitório, o que passa ou o desejo de que queremos que passe?

possibilidade de reflexão. E o lugar? Será que é próprio da pouca durabilidade das coisas da nossa época o

Pensar sobre efemeridade tem

convencimento ao desejo de que elas

essa coisa da visão em perspectiva res-

passem? Assim, se cria a expectativa do

ponsável pelo futuro e de outro pelo

novo. Essa expectativa – talvez empres-

passado. Há sempre um quarto vazio

tada do mundo do consumo “essencial-

à espera. Há sempre um estado de es-

mente urbano” que se encontra oculta

pera. Uma constante expectativa para

no cotidiano – pode ser um lugar do

o fim. E a sensação de que também va-

fictício, do simultâneo. Uma metáfora

mos perdendo a espessura; “um vento

feita por sobreposição de camadas de

que não sente soprar senão pela pró-

tempo como uma tentativa de manter

pria direção”. Eis uma agonia tipica-

por mais tempo as mesmas 24 horas.

mente urbana: negar o efêmero, mas não ao ponto de eliminá-lo, pois tudo

economia de expectativas:

está fora e se torna reflexo na medida

Um mal-estar urbano

em que tentamos uma rotina. A todo

O modelo capitalista de produção ba-

custo desejamos impor durabilidade ao

seado na propriedade (espaço) e na

tempo. Vive-se dentro do tempo, con-

produção, distribuição e circulação de

ta-se dentro do tempo. Mas ele pode

mercadorias (tempo) foi potencializa-

permanecer em exílio por conta de não

do com a tecnologia. Reduziu distân-

olharmos o entorno. O que há de trá-

cias (comprimiu o espaço) e ampliou

gico no efêmero é que existe em dois

o lucro baseado no consumo (compri-

extremos: o início e o fim. Nada menos.

miu o tempo).


35 URBE | # 04/04 | efemeridades EFEMERIDADES URBANAS O Apagador de Mem贸rias. Coisas do Cotidiano, 2012. Projeto fotogr谩fico de Leandro Selister


VITOR MESQUITA

36 URBE | # 04/04 | efemeridades URBANAS

Com isso, vamos reproduzindo o efêmero em tudo o que vemos. Cada vez mais o sentido de algu-

vazio será uma droga em falta! Perceber

vertical. Daí a necessidade da interven-

o efêmero e lidar satisfatoriamente com

ção sensível para realizar a desintegra-

ele são coisas bem diferentes.

ção poética do peso. Colocar o senso em

ma coisa se deduz mais da época a que

É preciso também não estar pron-

crítica. Reconhecer diferença entre pro-

se reporta do que daquela em que surge.

to para o sol e não estar pronto para a

ximidade e distância. E ver não é ape-

Talvez por isso esteja tão em moda uma

chuva. Porque se o efêmero nos dá a

nas a apreensão da materialidade da

vanguarda terapêutica. Na contempora-

sensação de fim também proporciona

obra; é também penetrar na tessitura

neidade, tudo possui discurso, mas ope-

o percurso até a memória do começo.

de significados na qual cores, linhas,

ra sem o tempo necessário para a escala

Uma espécie de assimetria perfeita.

formas, transparências e texturas são

humana de cognição. A falta de reflexão

veículos.4

leva ao efêmero por incompreensão.

Todos começamos com o realismo ingê-

O efêmero é a força invisível que

Como medida estimulante do transitó-

nuo, isto é, a doutrina de que as coisas

torna possível o devir. Aparentemente

rio, temos o ctrl+S e HDs externos.

são aquilo que parecem ser. Achamos

incondicionada e abstrata em sua essên-

As memórias virtuais como apên-

que a grama é verde, que as pedras são

cia, a efemeridade pertence a todos e a

dices de nossa própria memória dão

duras e que a neve é fria. Mas a física

ninguém. Mas a cidade não conta o seu

aporte para que executemos mais coisas

nos assegura que o verdejar da grama,

passado, ela o contém como as linhas

em menos tempo para que sobre mais

a dureza das pedras e a frieza da neve

da mão, escrito nos ângulos das ruas.5

tempo e assim executemos mais coisas

não são o verdejar da grama, a dureza

Em tudo o que é urbano se es-

em menos tempo para que sobre mais

das pedras e a frieza da neve que conhe-

conde uma parcela de desamparo e

tempo e assim...

cemos em nossa experiência própria, e

sensação efêmera. A cidade não ensina

sim algo muito diferente (Russel, apud

como explorá-la. Se você não conhece

Mlodinow, 2009, p. 14)

o lugar em que vive, e este lugar não te

Para evitar o escape de todas as coisas, chegará o momento em que o

proporciona como explorá-lo, passa a

NUMA SOCIEDADE QUE REVERENCIA UM BANCO DE DADOS DE INFORMAÇÕES É EXIGIDA UMA NOVA DIREÇÃO.

Com todas as crises e fissuras do

não habitá-lo. Torna a sua relação com

contemporâneo em nosso ambiente

o espaço urbano tão efêmera que não

urbano, qualquer instante de ordem en-

estabelece momento de memória. Re-

che de inquietação. Talvez, pelo fato de

conhece apenas a transitoriedade das

praticarmos cotidianamente o fim do

coisas. Repetindo necessidades inédi-

dia. Ou, ainda, por estarmos saturados

tas que dizem tudo, mas não explicam

de informações somos exigidos a colo-

nada. É por meio da sobreposição de

car o mundo mínimo em movimento.

imagens que se constrói o sentido ur-

Convidar o tempo a ser espaço, a ser

bano e efêmero do contemporâneo

peso, a ser transcurso, porque o tempo

baseado em cinética e o consumo. Uma

não existe sozinho, o tempo somente

espécie de sinestesia com inflação de

existe quando uma coisa se movimenta.

informações, imagens e sons que não

A cidade se movimenta. Revela um peso

significam informações a mais, pois o


NOTAS 1 2 3 4 5 6

BELTING, Hans. O Fim da História da Arte, p.182. São Paulo: CosacNaify, 2003. TEA FOR ONE (Led Zeppelin. Tea for one, Presence, Swan Song Records, 1976) How come twenty-four hours Sometimes seem to slip into day Giacoia, Oswaldo Jr. Mutação: As duas mutações de Nietzsche, p, 171. São Paulo: Ed. Boitempo, 2008. Heidegger apud Sartre, p. 156, 2005. Sâo Paulo: CosacNaify. CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis, p.17. Biblioteca Folha. Leopoldo e Silva, Franklin. Mutações. In: Mutação. São Paulo: Agir, 2008. Vitor Mesquita é formado pela UFRGS em Artes Plásticas – História, Teoria e Crítica de Arte com especialização em Economia da Cultura PPGE/UFRGS. Designer gráfico e editorial na Ideativa Cultural. Diretor editorial da Pubblicato Editora e coordenador do projeto Pubblioteca (direito autoral/domínio público).

REFERÊNCIAS

BELTING, Hans. O Fim da História da Arte. São Paulo: CosacNaify, 2003. FERREIRA GULLAR. Relâmpagos: dizer o ver. São Paulo: CosacNaify, 2008.

37 URBE | # 04/04 | efemeridades URBANAS Passatempo para dias chuvosos. Coisas do Cotidiano, 2012. Projeto fotográfico de Leandro Selister

tempo para transformá-las em compre-

pectativa se torne um hábito. Evitar o

Então, como as pessoas podem ser

ensão não aumenta proporcionalmen-

consumo indiferente do que é sempre

alheias às mudanças e ao mesmo tempo

te, gerando uma saturação cognitiva.

novo e sempre igual. O que no efêmero

ter toda a sua vida pautada por elas?

Por enquanto as intervenções no ambiente urbano parecem ser a

se pode admirar é que é um trânsito e um ocaso.

É sempre bom “lembrar” que a memória é também um vasto conjunto

palavra-que-falta e que provoca o ato

de experiências subjetivas.

de habitar o lugar em que vivemos. Um

O desaparecimento do espaço comu-

Sugiro: pratique a cidade.

hiato extemporâneo.

nitário e da intersubjetividade política

Pratique o efêmero.

Medimos o tempo que passa

configura o vazio que nos separa do

Mas pratique com calma para que

pela quantidade de coisas que nos são

valor que poderia conferir base sólida à

tudo tenha a devida narrativa, ocupe lu-

oferecidas. Precisamos evitar que a ex-

dignidade humana.

gar e relevância.

6


FABRIANO ROCHA

38

A cidade real é imaterial

URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

A afirmação de que a cidade real é

A ideia básica é esta: se vejo alguma coi-

A fatalidade consiste também na impos-

imaterial – assim como este texto a

sa, uma mesa, por exemplo, o que vejo

sibilidade de se fazer uma mesa ideal.

que tal afirmação serve como título

é a madeira em forma de mesa. É verda-

– surgiu da tentativa de responder a

de que essa madeira é dura (eu tropeço

Reduzida a afirmação de Flusser a

uma dúvida suscitada pela leitura de

nela), mas sei que perecerá (será quei-

seus termos constitutivos, “a mesa ideal

um trecho do livro O mundo codifica-

mada e decomposta em cinzas amorfas).

é uma impossibilidade material”, preci-

do: por uma filosofia do design e da

Apesar disso, a forma “mesa” é real e o

samos saber se tal impossibilidade se

comunicação, de Vilém Flusser. No

conteúdo “mesa” (a madeira) é apenas

deve ao fato de que os ideais mudam

capítulo intitulado Forma e material,

aparente. Isso mostra, na verdade, o que

conforme mudam os tempos e os in-

em que se propõe a, seguindo uma li-

os carpinteiros fazem: pegam uma forma

divíduos, ou se, como acreditavam os

nha de raciocínio fundamentalmente

de mesa (a “ideia” de uma mesa) e a im-

filósofos platônicos, ao fato de que os

idealista, “recuperar o conceito, atual-

põem em uma peça amorfa de madeira.

artífices humanos são incapazes de ma-

mente distorcido de imaterialidade”1,

Há uma fatalidade nesse ato: os carpin-

terializar o ideal.

Flusser atribui ao termo “imaterial” –

teiros não apenas informam a madeira

Antes de seguir, seria útil estabe-

como já o faziam os antigos filósofos

(quando impõem a forma de mesa),

lecer um significado e um alcance para

gregos – o mesmo sentido que ao de

mas também deformam a ideia de mesa

a palavra “ideal”. A noção de “ideal”, atri-

“ideia” e “forma” para concluir dizen-

(quando a distorcem na madeira).

buto daquilo que é desejável, sinônimo de modelo, de meta a ser alcançada,

do que imaterialidade não é o oposto de materialidade. Em suas palavras, a

Transcrevo esse parágrafo para

de objetivo a ser realizado, é uma das

“‘imaterialidade’ ou, no sentido estri-

contextualizar a sentença que o encer-

mais resistentes heranças da tradição

to, a forma, é precisamente aquilo que

ra e que suscitou a dúvida que originou

filosófica grega para o pensamento e

faz o material aparecer.”2

este artigo:

para a cultura ocidental. Na raiz dessa antiga concepção, situa-se o princípio platônico de que, subjacente ao mundo material, existe outro mundo que lhe é anterior, que lhe dá origem e que é constituído de ideias primordiais. Importa

ter

esse

significado

em mente para que não se confunda “ideia” com “ideal”. Se ideal fosse sinônimo de ideia, uma mesa não precisaria ser material para existir, porque o

A cidade ideal não é verdadeira nem falsa, é apenas mais um limite a ser transposto na direção do real.

que caracteriza uma mesa não é a sua configuração formal nem a matéria de que é feita, nem mesmo a ideia que lhe indica a forma, e sim o melhor uso que


39 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

Foto: Fabriano Rocha


FABRIANO ROCHA

40 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

dela se pode fazer – este será sempre

última levemente diferente daquele

nome totalmente novo, ou, ainda,

o ideal transitório para todas as coisas.

de uma apenas “mesa”. Portanto, uma

como é costumeiro fazer, empregar-

Lançando mão do primeiro dicionário

mesa que fosse usada para, por qual-

-se-ia para designá-la um nome de em-

que encontramos, lá está: “mesa: móvel

quer motivo, flutuar sobre a água, por

préstimo, já usado para designar outro

comumente de madeira, sobre o qual

exemplo, e, a partir de então, tivesse

artefato, com outra configuração, mas

se come, escreve, trabalha, joga etc.”

3

esse uso como sendo o seu definidor,

que tivesse o mesmo uso. Talvez fosse,

Esta definição, ainda que possa gerar

deixaria de ser “apenas mesa”, e, por

então, neste caso, a antiga mesa, por

discordâncias, se for aceita como váli-

conseguinte, dever-se-ia ou adaptar

causa do seu novo uso, chamada de

da, ajudará a sustentar a tese de que o

o seu nome para algo como “mesa-

“barco”. E o ideal deste artefato seria

que define uma mesa é o uso que dela

-de-flutuar” ou criar-se-ia para ela um

flutuar sobre a água.

se faz, e não a sua configuração ou sua mente de madeira” nos diz que poderia muito bem ser de qualquer outro material, desde que o artefato correspondesse ao que sobra da definição, ou seja, o uso que dela se faz. Ideal, então, será a satisfação de uma necessidade, e ideia, a solução apresentada para que se satisfaça essa necessidade. Aqueles que afirmam não ser possível determinar de antemão o uso de determinado artefato terão que concordar que, em se ampliando seus usos indefinidamente, ter-se-ia que, mais ou menos obrigatoriamente, a partir de certo ponto, mudar sua designação – como se faz com uma mesa de cabeceira, por exemplo, que naquele mesmo dicionário se grafa “mesa-de-cabeceira” e se define como “pequeno móvel, com o feitio de armário, que se tem rente à cabeceira da cama, e dentro do qual e sobre o qual se põem objetos utilizáveis durante a noite.”4 Essa definição se faz necessária por ser o uso dessa

Foto: Fabriano Rocha

materialidade – a formulação “geral-


41 samente, espaços relacionais virtuais

ideal será aquela que, sem ser material,

(espaços de relações desmaterializadas)

nem ter uma configuração específica,

tipo Facebook e afins se constituem, re-

ainda assim possua a capacidade de

velando as mesmas problemáticas das

ser usada para a mesma finalidade que

relações físicas, pelos mesmos motivos

se usaria uma mesa material com qual-

que se constituem as cidades.

quer configuração. Nos termos da defi-

O mundo virtual deixa de ser

nição do nosso dicionário, seria “móvel

imaginação e se mostra tão real quanto

que, sem ser material ou ter configura-

o mundo material. Para Hannah Arendt

ção particular, permite que sobre ele se

(se ela tivesse tratado do assunto), seria

coma, escreva, trabalhe, jogue etc.”

provavelmente um “artefato condicio-

Quando se pensa na efemerida-

A cidade é um habitat humano que

nante da mundanidade da existência

de das cidades e no infindável ciclo de

permite que pessoas formem relações

humana”, algo como um enclave vir-

materialização e desmaterialização dos

umas com as outras em diferentes níveis

tual da vida pública no espaço priva-

espaços urbanos, os problemas do ideal

de intimidade, enquanto permanecem

do concreto, repleto de divergências,

e da imaterialidade se introduzem natu-

inteiramente anônimas.5

violências, isolamentos, silêncios, into-

ralmente. À tendência natural à desagregação que desafia as iniciativas de pro-

lerâncias e, claro, repleto também do E também:

longar a permanência e a durabilidade

contrário disso tudo. Enquanto para Flusser, um sítio

da matéria urbana somam-se a violência,

(...) estrutura material e conceptual, com

virtual de relacionamento não será ima-

a delinquência e o vandalismo, que esca-

dimensionamento e dinâmica próprios,

terial, será, sim, um espaço de relações

pam a toda tentativa de controle estatal,

que estrutura aglomerações populacio-

desmaterializadas – relações que, para

inviabilizando qualquer pretensão de se

nais, conferindo-lhes um sentido, uma

Bauman, se tornam descomprometidas

concretizar uma cidade ideal. Amplian-

função e uma finalidade.6

pela liquidez do tempo presente7. Seriam, assim, os espaços virtuais de rela-

do a formulação de Flusser ao ponto de abarcar a cidade toda – incluindo as me-

Sendo assim, desde o ponto de

cionamento, embriões de cidades des-

sas que porventura se fizerem presentes

vista da finalidade, poderemos aceitar

materializadas, igualmente suscetíveis à

– ela sugere que jamais viveremos fisica-

que a cidade ideal, materializada ou

efemeridade que assola a urbe material.

mente em uma cidade ideal.

não, será preferencialmente um espa-

Pela ótica idealista, uma cidade

A fim de verificar se é mesmo as-

ço de relacionamentos – afinal, tudo na

seria, antes de tudo, apenas uma “for-

sim, enfrentemos o problema de saber

cidade parece existir para favorecer ou

ma” passível de materialização. Dessa

o que seria uma cidade ideal.

impedir relações.

afirmação, decorre-se que a cidade

Começaremos buscando uma de-

Entretanto, a cidade física cons-

ideal, seja qual for a sua configuração,

finição de “cidade”. Na Wikipédia, é pos-

tantemente recomenda a fuga como

ou materialização, seria primeiramente

sível encontrar definições mais atualiza-

alternativa à dura realidade: fuga para

imaterial e, por não ser mais que um

das do que no nosso velho dicionário:

as férias, para casa, para o virtual. Curio-

ideal, essa cidade se revelaria pelo me-

URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

Enquanto isso, a “apenas mesa”


FABRIANO ROCHA

NOTAS

1 2 3 4 5 6 7 8

Flusser, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: CosacNaify, 2007, p. 23. Flusser, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: CosacNaify, 2007, p. 32. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988, p. 150. Dicionário Aurélio Básico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1988, p. 150. In http://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade, acessado em 10/11/2012. In http://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade, acessado em 10/11/2012. Bauman, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. Bauman, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

42 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

lhor uso que dela se fizesse, ou seja:

Por que, então, os indivíduos ten-

pela satisfação que pudesse propor-

dem a materializar espaços de relação?

cionar aos seus cidadãos. Aceitar que

Enquanto o cinema e a literatura

tância, que dirá ampliá-la, está fora de

existe uma ideia anterior à constituição

têm com frequência exibido assustado-

questão: nosso movimento em torno

de uma cidade é o mesmo que aceitar

ras possibilidades de uso para os espa-

da superfície esférica acabará redu-

que a cidade é a materialização das re-

ços virtuais, a resposta para os espaços

zindo a distância que pretendíamos

lações potenciais dos futuros cidadãos,

materiais, segundo Bauman, foi apre-

alargar. E assim die volkommende

e que o aspecto imaterial da cidade

sentada já no século XVIII:

bürgeliche Vereinigung in der Mens-

será o resultado daquelas mesmas rela-

pre na vizinhança e companhia de outros. A longo prazo, manter a dis-

chengattung (a perfeita unificação

ções. (Dizer que uma cidade não é mais

Mais de dois séculos atrás, em 1784,

da espécie humana por meio de uma

que uma forma a ser materializada, não

Kant observou que nosso planeta é

cidadania comum) é o destino que a

define o que é uma cidade, posto que,

uma esfera, e extraiu conseqüências

Natureza nos reservou ao nos colocar

do mesmo modo, qualquer artefato,

desse fato reconhecidamente banal:

na superfície de um planeta esférico.

descartadas as suas diferentes configu-

como permanecemos na superfície

A unidade da humanidade é o derra-

rações e possíveis materializações, não

dessa esfera e nela nos movemos, não

deiro horizonte de nossa história uni-

é, igualmente, mais do que possibilida-

temos outro lugar para ir e portanto

versal. Um horizonte que nós, seres

des de uso.)

estamos destinados a viver para sem-

humanos, estimulados e guiados pela


Referências

Flusser, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: CosacNaify, 2007. Bauman, Zygmunt. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

Fabriano Rocha é artista plástico, designer gráfico, ilustrador e mestrando em design no programa de pós-graduação do Centro Universitário Ritter dos Reis. Edita, desde 2001, com periodicidade irregular, a revista de cultura MaisUmasCoisas. Como artista plástico já realizou três exposições individuais e participou de diversas coletivas..

43 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS Fotos: Fabriano Rocha

razão e pelo instinto de autopreserva-

Considerado o fator natureza, so-

rial das relações, essa é a fatalidade im-

ção, estamos destinados a perseguir e,

mente será possível aceitar o ponto de

posta pela persistência da concepção

na plenitude do tempo, alcançar. Mais

vista idealista para a cidade quando, de

idealista que se reflete gravemente nas

cedo ou mais tarde, advertiu Kant, não

algum modo, ela for projetada. Caso con-

ações transformadoras empreendidas

haverá uma única nesga de espaço va-

trário, parecerá sempre que as cidades

pelas sociedades mercantilistas e indus-

zio onde possam procurar abrigo ou

se formam simplesmente por impulsos

triais. O ideal de uma cidadania comum

resgate os que considerem os espaços

relacionais inconscientes. Dito isso, quem

para a espécie humana somente será

já ocupados muito apinhados, inóspi-

projetará a cidade? Quem a programará

viável quando, conforme ele mesmo

tos, inconvenientes ou inadequados. E

se os temas se pulverizam em milhares de

sustentava, for possível se promover

assim a Natureza nos obriga à visão da

problemas e soluções possíveis?

uma “conversação” capaz de constituir

hospitalidade (recíproca) como o pre-

Não importa tanto saber como

ceito supremo que precisamos – e aca-

chegamos a esse ponto, mas, sim,

baremos sendo forçados a – abraçar e

como vamos prosseguir impondo for-

Da cidade ideal pode-se dizer o

obedecer para pôr fim à longa cadeia de

mas a uma cidade dividida entre tantos

mesmo que Baudrillard disse da Dis-

tentativas e erros, às catástrofes causa-

interesses particulares.

neylândia, que não é verdadeira nem

das por esses erros e às devastações que elas deixam em sua esteira.

8

Retomando Flusser, a cidade material é a deformação da cidade imate-

a realidade para os cidadãos, sem lhes impor a felicidade como obrigação.

falsa, é apenas mais um limite a ser transposto na direção do real.



44 URBE | # 04/04 | EFEMERIDADES URBANAS

CULTURA VISUAL URBANA E CONTEMPORANEIDADE

edição virtual | www.revistaurbe.com.br email | revistaurbe@revistaurbe.com.br fone | +55 51 3013.1330 PORTO ALEGRE | RS | BRASIL Editada e impressa em dezembro de 2012. O conteúdo dos artigos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores.

Se você não se encaixa em categorias estritamente definidas: você é urbano! Demasiado urbano!





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