Copyright © 2018 Letícia Lubke Azarias Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009. Edição Letícia Lubke Azarias Projeto Gráfico de capa e miolo Letícia Lubke Azarias Revisão Marina Luzzi Sergio Filho
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro) Cotidianos / Organização Letícia Lubke; ilustração Letícia Lubke – 1. ed. – Rio de Janeiro: Intrinseca, 2018. Vários autores. ISBN 85-1762-673-2 1. Contos Brasileiros – Lubke, Letícia. 04-73579
CDD - 869.9308
Índices para catálogo sistemático: 1. Antologia: Contos : Literatura Brasileira 2. Contos: Antologia: Literatura Brasileira
Todos os direitos desta edição reservados à Editora Intrinseca Ltda. Rua Marquês de São Vicente, 99 3º andar Gávea - Rio de Janeiro/RJ CEP: 22451-041 Tel: (21) 3206-7400 www.intrinseca.com.br
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SUMÁRIO Letícia Lubke Nota da Organizadora Bernardo Kucinski Joana
Daniel Galera Todas as rosas do balde Gustavo Pacheco As Formigas Ivana Arruda Leite Quatro Dolores Marcelino Freire Solar dos Príncipes
Michel Laub O Homem da Praia
Rubem Fonseca Passeio Noturno
Sérgio Sant’Anna O Corpo Sonia Coutinho Orquídeas para Clarice
Vanessa Barbara A Vizinha de Baixo
Nota da Organizadora
Cotidiano: “que acontece diariamente; que é comum a todos os dias; diário”. O que é cotidiano para você? Acordar cedo, tomar um banho e beber uma xícara de café? Acariciar o seu cachorro antes de sair de casa? Ouvir música a caminho do trabalho? Ou então fumar um cigarro depois do almoço? Talvez eu tenha acertado, talvez você prefira chá, ou nem tenha cachorro, quem dirá então ser fumante. A verdade é que a sua realidade não é a minha, e também não é a do seu vizinho ou até mesmo de um parente mais próximo. O cotidiano é uma singularidade de cada pessoa. E este presente livro tem o propósito de reunir essas rotinas, costumeiras e talvez até
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mesmo banais para quem as vive, mas muito provavelmente inusitadas, ou não, para você leitor. Sendo assim, essa coletânea reúne histórias que retratam diversos cotidianos de pessoas distintas, apesentando diversos nomes importantes da literatura brasileira contemporânea para tal. Todos os contos foram retirados de livros dos próprios autores, revistas virtuais ou de diferentes sites e portais da internet, sendo apenas uma primeira apresentação dos escritores aqui presentes, um impulso para que você busque as suas obras publicadas. Por fim, vale ressaltar que este livro é um trabalho acadêmico de conclusão de curso, sendo também o piloto de um projeto que poderá vir a se realizar. De qualquer forma, deixo o meu agradecimento a todos que me ajudaram a concretiza-lo, especialmente ao meu orientador Paulo Sandrini, por sempre me ajudar e incentivar, as minhas amigas Daiane Moro e Marina Luzzi por sempre estarem dispostas a dividir comigo seus conhecimentos sobre desenho e ilustração, e as minhas amigas Daiane Markati e Fabiane Paz por me apoiarem. Aos meus pais, eu dedico este livro.
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BERNARDO KUCINSKI
Jornalista e professor aposentado de jornalismo da Universidade de São Paulo Bernardo Kucinski, autor de obras sobre economia, política e jornalismo e assessor da Presidência da República entre 2003 e 2005. Sua estreia na ficção com K: Relato de uma busca deu-se quando já tinha 74 anos de idade.
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Joana
Observem aquela mulher de lenço preto na cabeça, caminhando na calçada. Concordam comigo que parece uma pessoa comum? Que só chama a atenção por vagar sozinha tarde da noite, sendo idosa? Pois saibam que há uma história por trás das peregrinações dessa mulher. Sim, suas andanças na madrugada fria são verdadeiras peregrinações. Ela se chama Joana e mora aqui perto. Passa por esta rua a caminho do centro da cidade, onde dormem muitos moradores de rua. É a eles que ela busca. Vejam também, um pouco adiante, o vulto estirado debaixo da marquise. Aquele é o Chico, um apanhador de papel. Como tantos moradores de rua, ele é alcoólatra. Quando fica sóbrio, some; depois recai e volta ao nosso quarteirão.
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Notem como ela vai se aproximar do Chico, abaixar-se e cumprimentá-lo. Às vezes ela lhe dá uma moeda. Agora estão trocando algumas palavras. O Chico faz que não com a cabeça. É como ele sempre responde. Mas Joana não desiste. Pronto, ela já se ergueu e retomou a caminhada em direção ao centro, como eu previa. Vocês nunca conhecerão a história dessa mulher, se eu não a contar, pois só sabem dela os indigentes, com quem vocês certamente não conversam e, no outro extremo social, alguns príncipes da Igreja e advogados ilustres, os quais vocês também não frequentam. Eu conheço a história dela porque fui um dos seus advogados, embora não tão ilustre. Não pensem que ela seja uma louca. Nada disso. É uma mulher normal, um pouco maltratada pela vida, como toda mulher pobre, mas rija, de cabeça boa, com dois filhos e quatro netos, todos saudáveis. Joana recebe uma pensão do Estado por tudo o que aconteceu. Foi justamente dos trâmites desse processo que eu tratei. Mas faz questão de trabalhar. Além de cuidar dos netos, é atendente de uma floricultura por meio período. O começo da sua história é trágico, mas não incomum. Aconteceu a ela o mesmo que a outras famílias naquele tempo. O que torna seu caso especial é seu comportamento único, sua perseverança, suas peregrinações noturnas. Ela faz isso há mais de duas décadas. Deixe ver… se o marido foi preso em 1969 e estamos em 1995, ela faz isso há vinte e seis anos. O marido era metalúrgico e se chamava Raimundo. Católico praticante como ela. Vieram do Nordeste em busca de uma vida um pouco melhor em São Paulo. Já tinham então os dois filhos. Aqui Raimundo se ligou a um grupo da Ação Popular que organizava operários nas fábricas.
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Um dia, bem cedo, a polícia foi à casa deles e levou Raimundo. Sem mandado de prisão, sem nada. Soube-se depois que ele foi espancado de modo tão brutal que morreu no mesmo dia. Seus gritos eram ouvidos em outras celas. Para ocultar o homicídio, no caso doloso e qualificado, pois acompanhado do crime acessório de abuso de autoridade, a polícia cometeu outro crime, o de ocultamento de cadáver. Sumiram com o corpo de Raimundo. Tudo isso foi comprovado, depois que acabou a ditadura, por documentos e depoimentos em várias comissões. Só não se sabe, nunca se soube, para onde levaram o corpo e como se desfizeram dele. Se foi enterrado como indigente ou incinerado, ou disposto de outra forma. Isso nenhuma das diligências conseguiu elucidar. Foi um dos casos mais impenetráveis de desaparecimento, um caso em que nenhuma pista surgiu. Embora o próprio cardeal tenha assegurado a Joana que o marido foi espancado até não restar nele sopro de vida, ela não aceitou que ele tivesse morrido. Cadê o corpo?, ela perguntou. E sempre pergunta. Diz que só vai se considerar viúva no dia em que trouxerem o atestado de óbito de Raimundo e mostrarem sua sepultura. Ela acredita que os espancamentos deixaram Raimundo desmemoriado, talvez até cego ou aleijado, e que desde então ele perambula pelas ruas, perdido, sem saber como voltar para casa. Não aceita como prova da morte o atestado de óbito fornecido pelo Governo, que não diz em que dia ele morreu nem onde, nem a causa mortis. De fato é um pseudoatestado, só serve para a família cuidar do inventário e seguir a vida. E Joana segue a vida, mas a seu modo. Uma ou duas noites por semana, ela junta algumas moedas e sai envolta em seu xale. Exibe a fotografia de Raimundo aos moradores de rua, pergunta se apareceu algum andarilho ou indigente desconhecido
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de mais idade e de tez branca. Se dizem que sim, ela quer saber debaixo de qual marquise ou em qual abrigo da Prefeitura ele está e vai atrás dele. No caminho vai deixando uma moeda aqui, outra ali. É como se uma força superior a fizesse se levantar automaticamente e sair errante pelas ruas à procura do marido. Quase como uma sonâmbula. Ou como se estivesse pagando uma promessa. Não sei definir, sou advogado, e não psicólogo, só sei dizer que é uma necessidade psíquica dela que todos respeitamos. Inclusive os filhos. Joana era jovem quando assassinaram Raimundo. Eu não a conheci nessa época. Dizem que era muito bonita e nunca quis outro homem. Sim, pensando bem, acho que essa é sobretudo uma história de amor, um desses amores intensos que nem o tempo nem a ditadura conseguiram extinguir.
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DANIEL GALERA
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TODAS AS ROSAS DO BALDE
DANIEL GALERA
Nasceu em julho de 1979 em São Paulo, de família gaúcha foi criado em Porto Alegre. Já adulto, viveu alguns anos em São Paulo e Santa Catarina, e hoje mora em Porto Alegre de novo. Publicou contos e textos diversos na internet de 1996 a 2001, com destaque para os três anos como colunista do mailzine Cardosonline (COL), e lançou seus dois primeiros livros pelo selo independente Livros do Mal, criado em 2001 por ele, Daniel Pellizzari e Guilherme Pilla. Além de escrever prosa de ficção, traduz autores de língua inglesa e de vez em quando publica resenhas, ensaios e reportagens.
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Todas as rosas do balde
A menina vai oferecendo as rosas opacas pelas mesas. Puxa a manga de um rapaz com cuidado, para ser notada, faz cara de choro e pergunta baixinho: “Dá uma rosa pra ela?”. “Não, ela destesta rosas, dá essa banda” responde o rapaz. A garota na mesa não diz nada, mas também não retoma a conversa. Talvez ela quisesse uma rosa, não seria nada mau. O balde ainda está cheio de flores. As ruas estão abarrotadas de gente, as mesas cheias, mas poucos compram flores, a menina sabe disso. Não estão interessados. As flores percorrem a madrugada no colo da menina, envelhecem e ninguém pretende pagar um real por elas, isso é que é a verdade.
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Um próximo bar, muitas mesas na calçada, a menina vai de pessoa em pessoa, já cansada. Então encontra o senhor aquele. Seus pequenos olhos se arregalam e cintilam de satisfação, ele está ali, na mesinha do fundo, a mesma de sempre. A menina se aproxima, chega do lado do homem. Este abre um sorriso e diz: “Olá menina”. Ela só responde “Quer uma rosa?” por puro hábito. Ela sabe que ele quer uma rosa. Todas as rosas do balde. “Quero todas as rosas!”, diz o homem, com sua voz alta. “Todas do balde!”. Numa mesa próxima, meia dúzia de jovens bebem sua cerveja, fumam cigarros Camel e comem polenta frita salpicada com queijo ralado. A menina passou nesta mesa há alguns segundos, e foi rapidamente escorraçada. O rapaz de casaco azul, inclusive, enunciou o seguinte comentário: “Putaquepariu, já não dá pra beber em paz aqui na Cidade Baixa!”. Os outros concordaram, indignados. Mas agora o mesmo rapaz percebe que o homem da mesinha do fundo, sozinho com sua dose de destilado, vai comprar todas as rosas da menina. O rapaz pensa sobre isso, e chega à conclusão de que comprar uma rosa, de vez em quando, não seria nada mau. Para ajudar a menina. Há até mesmo alguma beleza neste gesto. Uma menina, rosas, por que as tratamos como coisas tão indesejáveis? O rapaz comunica seus pensamentos aos amigos: “Olha ali, gente, o véio aquele tá comprando todas as rosas da guriazinha. Que afudê”. “Todas?”, surpreende-se uma das garotas. “Que maluco”. “Maluco nada”, discorda o rapaz. “É afudê isso. Esse cara tá sempre aí. Deve ter o quê, uns cinquenta anos. Quase todo dia vem aqui tomar sua dose de destilado, fica na mesinha ali do fundo, não fala com ninguém. E assim, do nada, o cara compra todas as rosas da criança. Pô, quando eu for velho eu vou ser assim, vou andar por aí bem chinelo, vou tomar minha ceva todos os dias no mesmo bar,
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na mesma mesinha. E vou fazer coisas deste tipo, comprar todas as rosas das crianças que aparecerem.” “É bem coisa tua isso”, diz a garota, olhando de lado para o rapaz. Enquanto isso, a menina se aproxima mais da mesa do homem, ficando meio de costas pra ele, entre a mesa e a parede. O homem abre bem a mão e agarra a bunda pequenina da criança. A carne mole enche a mão, e por alguns segundos o homem fica ali, apertando. Com a outra mão, gira os cubos de gelo no copo e bebe mais um gole do destilado. A menina olha para a rua com uma expressão de espera. Já satisfeito, o homem solta a bunda dela, tira algumas notas da carteira e pega todas as rosas do balde. A menina se afasta pela calçada, pra longe dos bares agitados. Numa parada de ônibus perdida no meio da avenida vazia, Umberto espera. Está sentado sozinho na calçada, com a cabeça apoiada na coluna de metal da placa, bêbado e quase dormindo. O medo de ser assaltado é incentivo pra que ele se mantenha acordado. Há apenas mais uma pessoa na parada, uma mulher baixinha, discreta. Uma criança chega, um menino de uns doze anos, com um balde de rosas. Começa a conversar com a mulher. Logo chegam mais duas crianças, uma menina de uns dez anos e um outro piá, com no máximo cinco. Todos com baldes na mão. “Vendeu quantas”, pergunta a mulher. “Vendi nove”, responde o guri maior. “Doze”, canta o pequeno, pra quem o balde, ainda contendo algumas flores, parece enorme e pesado. A mulher toma o balde da mão deles, irritada. “E o resto? Por que não venderam as outras? Ficaram de brincadeira por aí?” “Vendi vinte e quatro, mãe. Todinhas”, diz a menina, entregando o balde vazio para a mãe. Veste uma blusa de lã rosa, toda furada, uma calça jeans e tênis sem cadarço. Umberto acha a menina bonitinha.
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Tem cabelos pelo ombro, lisos, esfiapados. O rosto um pouco encardido, olhos fundos, um jeitinho maduro demais pra idade. “Quero os três baldes vazios amanhã”, pragueja a mulher. Um ônibus aparece na curva lá adiante. Umberto sabe que ainda não é o seu. A mulher faz sinal, entra com as crianças e desaparece. Umberto tem uma vontade enlouquecedora de que a menina dê uma olhadinha pra trás ao subir na escada do ônibus, mas isso não acontece. Umberto vomita na calçada. Só quer chegar em casa.
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GUSTAVO PACHECO
Gustavo Pacheco nasceu no Rio de Janeiro em 1972. É doutor em antropologia pelo Museu Nacional/UFRJ. Diplomata de carreira, trabalhou nas Embaixadas do Brasil em Buenos Aires e na Cidade do México. Traduziu Águas-fortes cariocas, de Roberto Arlt (Rocco, 2013) e Prosas apátridas, de Julio Ramón Ribeyro (Rocco, no prelo). Publicou contos nas revistas Lado 7 (Rio de Janeiro), Coyote (Londrina) e na virtual Flaubert.
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As formigas
1. Uma longa fila de formigas da espécie Linepithema humile está prestes a ser dizimada. Elas não sabem, mas seu algoz é um menino louro sorridente de quatro anos de idade, chamado Miguel. Mesmo que as formigas soubessem, não faria diferença. 2. Passei meu aniversário de quinze anos trabalhando. Foi um dia como outro qualquer. A única diferença é que as outras moças que trabalhavam comigo na mansão me deram os parabéns. Eu me lembro bem. Foi uma quarta-feira.
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O Florentino trabalhava na mansão como vigia, foi assim que nos conhecemos. Me lembro das meninas dizendo a ele: “Você não vai dar os parabéns pra Ana?”. Ele tinha dezoito anos e sorriu pra mim. Ele é alto, de olhos claros, quase louro. Nunca achei que fosse olhar pra mim, baixinha e moreninha. 3. Miguel é uma das dezenas de crianças que, nessa manhã de sol, brincam na Praça Vicente Lopez, no bairro da Recoleta, na cidade de Buenos Aires. Se fosse em algum outro bairro da cidade, talvez as crianças estivessem acompanhadas por suas mães, ou talvez nem estivessem em uma praça, e sim em uma creche. Mas as pessoas que moram na Recoleta gozam de alto poder aquisitivo e podem pagar babás e outros serviçais. Quase todas as crianças que estão nessa manhã na Praça Vicente Lopez estão acompanhadas por babás. Uma das babás nasceu em um povoado do interior da província de Jujuy, no norte da Argentina, e outra nasceu em La Matanza, na Grande Buenos Aires. Com exceção dessas duas, todas as outras babás nasceram no Paraguai. 4. Tem anos que não falo com minha mãe. Sei que, se eu ligar pra ela, ela vai me pedir dinheiro. Mas na verdade não é nem por isso que eu não ligo pra ela. Eu não ligo é porque, se eu ligar, vou acabar falando o que eu sinto e vou machucar ela. Aí eu prefiro nem ligar. Quando eu tinha seis anos minha mãe me deu a uma senhora casada com um militar. Me deu, como se eu fosse um cachorrinho. O nome dela era Ña Teresa. Primeiro eu cuidava da filhinha dela,
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que tinha um ano de idade. Depois ela foi me ensinando a limpar a casa, a lavar roupa... A televisão ficava na sala. Eu morria de vontade de ver televisão, mas não podia, tinha que arrumar a casa. Então quando eu ia arrumar a sala eu sempre demorava mais um pouco, pra ficar espiando a televisão. 5. Linepithema humile é o nome científico da espécie conhecida popularmente como “formiga argentina”. Originária do noroeste da Argentina, é uma das mais nocivas e beligerantes espécies invasoras de que se tem notícia. Uma vez introduzida em um novo habitat, a formiga argentina expulsa todas ou quase todas as formigas nativas. Linepithema humile quer dizer “coisa amaldiçoada humilde”. 6. Ña Teresa mandou tirar uma carteira de identidade pra mim. A gente ia viajar de carro, ia cruzar a fronteira e pra fazer isso eu precisava da identidade. Isso foi quando eu tinha uns nove anos de idade. Foi mais ou menos nessa época que o filho mais velho de Ña Teresa começou a ir atrás de mim quando eu estava sozinha. Ele sempre encontrava um jeito. Ele dizia que não adiantava eu contar nada, que ninguém ia acreditar em mim. Quando eu tinha treze anos, minha mãe foi me buscar pra passar o natal. Eu levei minha carteira de identidade. Quando chegou na hora de voltar, eu disse que não ia. Minha mãe ficou brava, Ña Teresa ficou brava. Ña Teresa disse que ia mandar os soldados me buscarem. Mas eu não voltei.
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7. Uma das grandes vantagens evolutivas das formigas é o seu comportamento social. Ao formarem colônias em que cada indivíduo desempenha uma tarefa especializada, as formigas conseguem suprir suas necessidades básicas de sobrevivência (alimentação, moradia, procriação, defesa etc.) com mais eficiência do que os insetos não-sociais. Uma colônia de formigas é composta de três tipos de indivíduos: fêmeas reprodutoras (“rainhas”), fêmeas nãoreprodutoras (“operárias”) e machos reprodutores. As operárias se encarregam de todas as tarefas, exceto a reprodução. As rainhas, ao contrário, se dedicam apenas a se acasalar e por ovos, e só realizam outras tarefas esporadicamente. Os machos só fecundam a rainha, sem assumir nenhuma outra tarefa. Nem a rainha nem qualquer outra formiga diz às outras o que é preciso fazer; cada formiga conhece seu lugar. Os termos “rainha” e “operária” aplicados aos insetos sociais foram cunhados pelo naturalista inglês Charles Butler em 1609, cento e oitenta anos antes da Revolução Francesa. 8. Sou paraguaia de raça pura, o Florentino não. A avó dele era paraguaia, casada com um boliviano. Esse boliviano tinha sido prisioneiro durante a Guerra do Chaco e depois que a guerra acabou ele ficou no Paraguai. Então a mulher dele engravidou de um alemão, um menonita. Quando a criança nasceu, era uma menina loura de olhos claros. Mesmo assim, o boliviano registrou como se fosse sua filha legítima. Essa menina é a minha sogra. Por isso meus filhos têm sobrenome boliviano.
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9. Observe a formiga, preguiçoso, reflita nos caminhos dela e seja sábio. 10. Sempre tive muito carinho pela Mercedes. Foi a Mercedes quem convenceu o Florentino a se casar comigo. Eu estava grávida de três meses. A família dele não queria nada comigo. Queriam que ele arranjasse uma mulher com mais estudo. Foi a Mercedes quem convenceu ele. Ela é a irmã mais velha dele. Ela sempre foi um espelho pra mim. Tinha educação, tinha negócios. A Mercedes não foi criadita como eu. Só aos treze anos começou a trabalhar. Era empregada doméstica, mas trabalhava em uma família muito boa, que tratava ela como se fosse uma filha. Depois ela se casou com um motorista de ônibus que trabalhava no terminal rodoviário de Asunción, na empresa Brújula. Ele ganhava bem e podia sustentar ela. Ela parou de trabalhar e voltou a estudar. Estudou pastelaria. Fez muito dinheiro vendendo tortas, bolos... Depois entrou na faculdade, e lá ela conheceu uma senhora que vendia joias. Começou a vender joias também. Depois, abriu uma lavanderia. Quando o Hugo nasceu, fomos morar em um quarto na casa da Mercedes. Era uma casa linda, de dois andares, com pátio. Eu perguntava ao Florentino como era possível que a Mercedes tivesse avançado tanto na vida em tão pouco tempo, ela que tinha começado tão pobrezinha. Eu sabia que o marido dela ganhava bem, mas tanto assim? Um motorista de ônibus ganha tanto assim? Ele usava um monte de anéis de ouro. Não era prata, era ouro mesmo. O Florentino dizia que o marido da Mercedes só podia estar metido em contrabando. Eu nunca conversei com a Mercedes sobre isso.
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Eu considerava ela uma segunda mãe pros meus filhos. Eu considerava ela superior a mim. Foi muito duro perder sua amizade. 11. Ó formigas, entrai na vossa morada, senão Salomão e seus exércitos esmagar-vos-ão com seus pés, sem que disso se apercebam. 12. Antes mesmo do Hugo nascer, o Florentino já tinha outras mulheres. Ele era vigia, trabalhava à noite. Eu não sabia de nada. Um dia, ele me contou que tinha outra mulher. Não sei bem por que ele me contou. Talvez porque estivesse arrependido mesmo. Quando a Mercedes ficou sabendo, deu uma bronca tremenda nele. Disse que ele era um sem-vergonha. Ela botou ele pra fora de casa. Fiquei morando com ela, eu e o bebê. Essa foi a primeira separação. Eu não tinha dinheiro nenhum. O Florentino não me dava nada. A Mercedes me disse: “Vamos botar a Justiça atrás dele”. Ela me levou até o Palácio de Justiça, ela resolveu tudo. Saímos de lá com um papelzinho carimbado pelo juiz. Entregamos o papelzinho na empresa onde o Florentino trabalhava. Ele foi obrigado a me pagar uma pensão. Eu não tinha voz própria. Não era dona da minha vida. Me deixava levar. Um dia a Mercedes me disse que precisava do quarto em que eu estava morando. Ela disse que eu tinha que dar um jeito na minha vida. Ela encontrou um quarto de aluguel pra mim e levou minhas coisas pra lá. Quando o Florentino ficou sabendo que eu tinha saído da casa da
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Mercedes, ele foi me procurar. Veio morar comigo no quarto de aluguel. Pouco tempo depois, fiquei grávida do Hernán. Ele ficou furioso comigo. Dizia: “Como é que você não se cuidou?”. Ele foi embora e me deixou sozinha, com o Hugo pequenininho e outro bebê na barriga. Essa foi a segunda separação. Eu não tinha dinheiro nenhum, não sabia o que fazer. Ficava esperando ele na saída da firma onde ele trabalhava. Ele ficava furioso e gritava comigo. Aí fui morar com a mãe dele no interior. Foi lá que nasceu o Hernán. Quando o Hernán tinha oito dias de vida, o Hugo teve uma pneumonia. Ficou muito doente. Emagreceu, dava pra ver as costelas dele. Os olhos afundaram. Eu achei que ele fosse morrer, todo mundo achou que ele fosse morrer. Eu fiquei esperando a morte dele. No interior é assim. Mesmo que você vá ao hospital e o médico te dê uma lista de remédios pra tomar, com que dinheiro você vai comprar? Os remédios são caros. A vida é muito dura no interior. Uma vizinha veio ver o Hugo e se assustou com ele. Viu que ele ia morrer. Essa vizinha, não sei como, tinha o telefone de uma amiga da Mercedes em Asunción. A vizinha caminhou quilômetros até achar um telefone e ligou pra Mercedes. Por sorte, a Mercedes estava na casa da amiga quando ela ligou. A vizinha disse à Mercedes que o sobrinho dela estava morrendo. A Mercedes se desesperou e quatro horas depois ela chegou de carro. Levamos o Hugo pro hospital em Asunción. No caminho, a Mercedes brigava comigo e dizia: “Você não tem vergonha do que fez?”. Me humilhou muito. Eu não dizia nada. O Hugo ficou internado oito dias. Eu não podia dar de mamar pro Hernán, porque não deixavam entrar bebês no hospital. Então a Mercedes levou o Hernán e cuidou dele. Até hoje a Mercedes diz pro Hugo que, se não fosse ela, ele tinha morrido. E ela tem razão.
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Depois que o Hugo saiu do hospital, voltei pro interior. O Florentino encontrou um trabalho que pagava melhor, alugou uma casa e me levou pra lá. Aí fiquei grávida da Heidi. Ele ficou furioso de novo. Me deu uns comprimidos pra abortar. Eu tomei, mas não funcionou. A Mercedes dizia: “Você parece um coelho! Basta olhar pro meu irmão, que você engravida dele!” Quando eu estava grávida da Heidi, o Florentino batia muito em mim. Uma vez me deixou cheia de manchas roxas. Uma vizinha viu e me disse: “Se você não der queixa na polícia, eu vou dar”. Então eu dei queixa na polícia. Fui até a delegacia e voltei com um papel com a intimação. Ele e eu tínhamos que estar no juizado no dia seguinte às oito e meia da manhã. Eu cheguei em casa e mostrei o papel pra ele. Ele me disse: “Um policial uma vez me disse que a gente não deve bater em mulher. A gente tem é que matar logo de uma vez.” Ele pegou uma faca e achei que ele fosse me matar mesmo. Mas ele não fez nada. No dia seguinte, fui sozinha no juizado. A juíza perguntou onde estava o Florentino. Eu disse que ele estava em casa, dormindo. A juíza mandou buscar ele. Quando os policiais chegaram com o Florentino, a Juíza perguntou o que eu queria que ela fizesse. Ela disse que podia meter o Florentino na cadeia, mas perguntou: “Se ele estiver preso, quem vai te sustentar? Ele vai perder o emprego.” No final, eu disse que preferia que ele me pagasse um dinheiro todo mês. Ele ficou um tempo sem me bater, depois voltou a me bater. E me dizia que se eu desse queixa de novo ele me matava. O Florentino não vivia em casa. Vivia por aí, com outras mulheres. Quando brigava com elas, voltava pra casa. Foi assim que fiquei grávida da Heidi, e depois do Henry.
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Os dois nasceram nessa casa. Eu tive os dois praticamente sozinha. Só quem me ajudou foi uma velhinha parteira que morava perto da minha casa. Se não fosse ela, não sei o que teria acontecido. Quando o Henry fez quatro anos, voltei a trabalhar. Deixava as crianças com a irmã caçula do Florentino. Ela tinha quinze anos. Fui trabalhar como empregada. Um dia, não sei bem porque, me deu vontade de visitar Ña Teresa. Voltei ao bairro onde ela morava. Ela tomou um susto quando me viu. A filha dela também. A gente não se via há quase dez anos. Conversamos. A filha dela me mostrou as fotos da festa de quinze anos dela. No final, Ña Teresa me ofereceu trabalho em uma fábrica de tecidos que ela tinha. Ela disse que eu ia levar um tempo pra aprender a mexer nas máquinas, mas que o salário era muito melhor do que o de empregada doméstica. Em um mês eu aprendi a usar as máquinas. Eu ganhava bem. Eu gostava de trabalhar lá. Se eu tivesse continuado, eu hoje seria uma profissional, quem sabe eu não teria a minha própria fábrica. Eu já estava trabalhando lá há uns seis meses quando a irmã caçula do Florentino conseguiu um emprego. Agora não tinha ninguém pra ficar com os meus filhos. O Florentino botou uma menina lá em casa. Ela era amante dele, mas eu não sabia. O Hugo já era crescidinho, quando eu chegava em casa ele me dizia que tinha visto o pai beijando ela, que tinha visto os dois deitados na cama. Eu falei com eles, eles negaram. Tive que ver com meus próprios olhos. Encontrei os dois na cama. Eu disse pra ela ir embora da minha casa na mesma hora. Ela se levantou, abriu o armário – eu tinha separado um pedaço do armário pra ela – pegou suas coisas, meteu numa bolsa e foi embora.
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O Florentino começou a gritar comigo. Eu tinha um nó na garganta, não conseguia dizer nada. Ele saiu e foi atrás dela na rua, mas não encontrou. Ele voltou, abriu o armário, colocou minhas roupas numa sacola e me botou pra fora de casa. Não consegui fazer nada. Peguei a sacola e fui pra casa do meu pai. Ai, você não sabe o que eu passei. 13. As pessoas que moram na Recoleta gozam de alto poder aquisitivo e podem pagar babás e outros serviçais. Assim, não precisam fazer tarefas domésticas como cozinhar, limpar a casa ou levar as crianças para passear na praça. Isso permite que os moradores da Recoleta tenham mais tempo para fazer o que quiserem: trabalhar, estudar, dormir, não fazer nada, ou até mesmo dedicar-se a atividades artísticas como escrever livros. 14. O primeiro da minha família que veio pra Argentina foi o meu irmão mais velho. Isso foi há uns sete anos. Depois veio a Aurora, a irmã que nasceu antes de mim. Nessa época eu trabalhava em casa de família em Asunción. Eu trabalhava a semana toda e no sábado até quatro horas da tarde. Quando eu chegava em casa, tinha toda a roupa acumulada da semana inteira pra eu lavar. E no domingo à noite eu tinha que voltar pra casa onde eu trabalhava. Isso me deixou doente dos nervos. Eu não aguentava mais. Eu disse pra minha patroa que não estava aguentando. Ela disse que ia diminuir um pouco o trabalho e me deu um mês de férias.
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Foi aí que a Aurora perguntou se eu não queria trabalhar na Argentina. Eu juntei um dinheirinho que eu tinha, comprei passagem e fui. Sozinha. Buenos Aires não me impressionou. Eu já conhecia outras cidades grandes e bonitas. O que me impressionou foi o lugar onde a Aurora morava, em Quilmes. Que lugar sujo! As ruas de terra... A terra lá no Paraguai não é que nem aqui, lá a terra é como se fosse de areia. Aqui não, é uma terra que quando chove fica um barro só, tudo sujo. Aquele barro que gruda nos sapatos e não sai. Quando eu cheguei eu vim pra ficar no lugar da minha sobrinha, que cuidava de uma senhora. O bebê da minha sobrinha estava pra nascer e ela não podia mais trabalhar. Aí eu fui trabalhar com essa senhora. Era uma velhinha bem doente. Ela vivia sozinha, com duas enfermeiras cuidando dela. A senhora era judia, tinha vindo da Europa criança, fugindo da guerra. Ela era tranquila. Já estava velhinha, não tinha voz nem voto. O problema era a filha dela. Não morava lá, mas estava sempre lá, com a mãe. Ela era muito bruta. Vivia zombando de mim. Nos sábados, ela não podia escrever porque os judeus não podem fazer nada nos sábados. Então ela me pedia pra escrever alguma coisa, e ficava me gozando dizendo que eu escrevia muito devagar. Eu só estudei até a quarta série. Fiquei lá três meses, até minha sobrinha voltar a trabalhar. Aí fiquei um mês sem trabalho. Aí você ligou pra Aurora e perguntou se ela não conhecia ninguém pra trabalhar na casa de vocês. Aí eu vim pra cá. 15. O patrão de Ana, enquanto escreve estas linhas, pensa na conversa que teve com ela no dia anterior. O patrão de Ana acredita que
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AS FORMIGAS
a pesquisa detalhada é um elemento importante para dar credibilidade à ficção. Ele pediu a Ana que contasse sua história. Ana sentou-se à mesa da cozinha e falou sem parar durante mais de três horas. Falou com tranquilidade, como se aquilo fosse parte de seu trabalho. Sentado em frente a Ana, o patrão fazia poucas perguntas e tomava notas. Pensou em muitas coisas enquanto escutava Ana. Pensou que a maioria das pessoas está sempre disposta a contar sua vida aos outros. Pensou que a situação em que estava se parecia a uma sessão de psicanálise. Pensou em uma frase que o escritor W. G. Sebald dizia a seus alunos: “Nada do que você inventar será tão horripilante como as coisas que as pessoas contarem a você.” Pensou que, no fundo, no fundo, estava mais interessado nas palavras que ela usava do que nela mesma. 16. – Cantavas? Pois dança agora! 17. Um dia recebi uma mensagem do Florentino no celular dizendo que não queria mais nada comigo, que não existia futuro pra nós. Chorei muito. Nunca mais falei com ele. O que eu sabia dele era o que meus filhos às vezes me contavam. O Roberto, eu conheci em um show do Bronco. Antes se chamava Bronco, agora é El Gigante de América. É um grupo mexicano. Tocava no El Rincón Paraguayo. É uma discoteca paraguaia. Uma das três que tem ali em Constitución.
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GUSTAVO PACHECO
Começamos a sair juntos. Foi nessa época que começaram as dificuldades pra mandar dinheiro pro Paraguai. Na Western agora te cobram os olhos da cara, de imposto ou sei lá o quê, é impossível continuar mandando dinheiro. De qualquer jeito, desde que trouxe o Henry e a Heidi pra Buenos Aires eu já não mandava muito dinheiro. Liguei pro Hugo e pro Hernán e eles disseram que estavam trabalhando e não precisavam do dinheiro, podiam se virar sozinhos. Comecei a juntar dinheiro pra festa de quinze anos da Heidi. Comecei a preparar a festa uns cinco meses antes. A Aurora me ajudou muito. Me ajudou com o vestido, com a comida. Era comida que não acabava mais! A torta, foi a Mercedes que fez. Ela veio do Paraguai especialmente pra festa. Tanta gente! Estava tudo bem até a hora em que começou a dança. O Roberto me tirou pra dançar. A Mercedes me viu dançando com ele e começou a gritar. Disse que eu era uma sem-vergonha. Que eu era uma mulher casada, que não podia fazer aquilo, que meus parentes eram uns degenerados. Eu não sabia o que fazer. Não queria que a Heidi visse aquilo acontecendo. Não queria estragar a festa dela. Fui pro quarto e não saí mais de lá. Chorei, chorei. Eu tinha um nó na garganta. Não conseguia dizer nada. 18. Antes que Miguel possa esmagar com os pés a longa filade formigas à sua frente, Ana o segura pelo braço e diz, com doçura: – Não mate as pobrezinhas. Elas são muito trabalhadoras.
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SÔNIA COUTINHO
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IVANA ARRUDA LEITE
Ivana Arruda Leite nasceu em 1951, em Araçatuba (SP); é mestre em Sociologia pela Universidade de São Paulo. Publicou livros de contos, uma novela e os romances Hotel Novo Mundo, finalista do prêmio São Paulo e Alameda Santos. Participou de importantes antologias, como 25 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira. É também autora de livros infantis e juvenis e de inúmeras adaptações de clássicos infantis.
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IVANA ARRUDA LEITE
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Quatro Dolores
DOLORES 1 Quando as pessoas me olham na rua, são capazes de apostar: lá vai uma mãe e esposa exemplar. Engraçado isso de parecer o que não se é. Eu também diria se não soubesse quem sou. Conhecendo-me como conheço fico pensando de onde vem essa impressão. Talvez da docilidade e submissão que aparento ter. Na verdade, a docilidade nunca esteve entre as minhas virtudes. Muito menos a submissão. Perguntem a Miguel se sou esta santa que aparento e ouvirão uma gargalhada. Garanto que ele fará tantas reclamações que parecerá tratar-se de outra pessoa. Ele dirá que sou péssima dona de casa,
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QUATRO DOLORES
não sei passar suas camisas, não lavo minhas calcinhas e os móveis vivem cobertos de poeira. Além de não cuidar dos nossos filhos como toda mãe deveria. Diferente de Miguel, eu diria que o que me impede de ser esposa e mãe exemplar é o meu temperamento. Tenho um gênio terrível. De manhã acordo de um jeito, na hora do almoço estou de outro e à noite pior ainda. Nenhuma mãe ou esposa exemplar pode ser tão imprevisível. Pode ser porca, relaxada, preguiçosa, péssima cozinheira, mas imprevisível não. Faço padecer os que vivem ao redor. Já pedi que me deixem sozinha, que procurem mãe e esposa melhor por aí. Mas eles preferem continuar me azucrinando. Deixem-me a sós, eu lhes peço de coração. Outro dia fui me confessar. Não sei por que, mas, de repente, me deu uma culpa danada por querer afogar os meus filhotes no vaso sanitário, dar-lhes toddy com formicida. Quando o padre me viu chegar foi logo abrindo os braços e dizendo: que pecados pode ter você, uma mãe e esposa exemplar? Dei-lhe as costas e saí pisando duro. Meus passos ecoavam pela igreja toda. Na rua, ouvi alguém comentar: que mulher boa é a Dolores! Este inferno não tem fim. Pra falar a verdade, acho que nasci com vocação pra puta. Me vejo livre e feliz sem marido nem filhos, solta na vida e no mundo. Pois não é que eu estava encostada no balcão do posto de gasolina, com cigarro no canto da boca, batom vermelho e radinho de pilha no ouvido quando ouvi um motorista comentar: dizem que é uma excelente mãe de família. Todo vagão descarrilha um dia, por que só eu tenho que andar na linha? DOLORES 2 O que me aborrece nessa vida de puta é esse maldito ar de mulher séria. Onde quer que eu vá, as pessoas me olham, olham meu corpo,
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meu jeito de andar e comentam: lá vai uma mulher séria. Se ao menos fosse verdade, vá lá. Mas não é o caso. Nunca foi. Gosto de andar sem rumo, sentar em botecos, sem eira nem beira, ouvindo radinho de pilha. Tem garota que vira puta pra pagar remédio da mãe, cachaça do pai, droga pro namorado. Essas, pobrezinhas, não têm escolha, quando vêem já estão. Meu caso é diferente. Sempre fui moça bonita, bem feita de corpo, lindos cabelos, olhos amendoados, cinturinha de pilão, coxas grossas, canela fina, bonita da cabeça aos pés. Fui até convidada pra ser miss na cidade onde nasci. O problema era o meu temperamento, insuportável. Essa menina acaba com meus nervos, minha mãe dizia à beira da loucura. Maldito gênio tem essa menina, dizia meu pai, vai acabar solteira, não tem homem que agüente mulher assim. Na base do grito, eu ia conseguindo tudo que queria. Menos namorado. Aí não tinha jeito. Eu via aquelas meninas feinhas, magrinhas, todas se casando e eu nada. E minha mãe me atazanando, você vai ficar pra tia, não tem homem que te agüente. Era gozação pra tudo que é lado, solteirona, solteirona, e o enxoval embolorando na prateleira. Aquilo foi me dando tanto ódio que eu resolvi ser puta. Certa vez, no baile da primavera, depois de tomar chá de cadeira a noite inteira, eu chamei de lado o moço mais feio da cidade e lhe propus casamento. O pobre começou a rir um riso de boca torta e bater a cabeça no pilar feito um pica-pau. Seu corpo balançava sacudido por um riso ardido, fininho, mais parecendo um ataque epilético. Quando sossegou, me olhou com olhinhos vesgos e perguntou: – Por que comigo, você nem me conhece? – Porque fui com a sua cara, respondi. Topa ou não topa? Só eu sabia de onde vinha a força daquela decisão. Casar com Alfeu seria subir ao Olimpo das putas e lá ser coroada a maioral. Era
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isso que eu queria. Alfeu ia toda noite a minha casa, ficávamos no terraço folheando revistas, aos domingos íamos à missa de braço dado. Quando os amigos perguntavam como ele me agüentava, respondia: ela é uma boa moça. Em três meses eu estava casada. Me plantava na janela da casa que ele me dera, punha um vestido bem decotado, fincava os cotovelos no batente e passava a tarde fumando e ouvindo radinho de pilha, uma puta perfeita. Com o pobre do Alfeu eu sempre tive paciência. Como brigar com um homem bom como aquele? O tempo passou, Alfeu foi transferido pra São Paulo, mês que vem completamos bodas de prata. Nem no enterro da minha mãe eu voltei àquela merda de cidade. De vez em quando encosto num balcão de padaria e bebo uma cerveja. Sozinha. Nunca perdi a virgindade, mas tenho certeza que sou puta. Sei que sou. DOLORES 3 Maldita hora que minha mãe me jogou nesse orfanato. A vaca embarrigou mas não quis saber da criança. Seu negócio era botar a perna no mundo. Me deixou aqui nas mãos destas freiras que me deram casa e comida, mas me privaram do melhor. Mesmo sem conhecer, sei que o melhor está lá fora. O melhor está no que os homens trazem no meio das pernas. E eu aqui, com este vestidão enorme, preto, calorento, parecendo um urubu. Fiz meus votos há vinte anos. O que sei do mundo, escuto num radinho de pilha que levo escondido pra onde vou. Passei a vida atrás destes muros, se é que isso é vida. Vida mesmo têm as putas, que dormem cada noite com um homem diferente, num lugar diferente,
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beijando boca diferente. E eu aqui, ferindo meus joelhos, passando fome, esfregando chão, cercada por essas malucas que nunca deram beijo na boca. Se Deus me desse uma chance, uma outra vida pra eu viver, juro que pedia pra ter ido com minha mãe. Seríamos putas as duas, eu numa cama, ela na outra, eu com um homem, ela com outro. Depois a gente trocava e comparava qual dos dois foi melhor. Era isso que eu queria pra mim e Deus sabe que eu não estou mentindo. DOLORES 4 Meu nome é Dolores e eu sou puta. Que destino infeliz o meu. Dormir cada noite com um homem, numa cama diferente, agüentar bafo de bêbado, homem banguela, fedido, mal educado, triste sina a minha. Quem dera ser dona de casa, destas bem comportadas, com maridão do lado, filho pedindo toddy, roupa pra passar, comida pra fazer, radinho de pilha pendurado na janela. Quem dera abrir as pernas prum homem só a vida inteira. Ou não abrir se não tivesse vontade. Mas Deus quis que meu destino fosse outro. Aliás, Deus, que é pai e me criou, sabe que meu sonho mesmo, de verdade, era ter sido freira. Passar a vida toda dando só pra Nosso Senhor. Mas era tanto remédio pra mãe, tanta cachaça pro pai e droga pro namorado que não teve jeito.
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MARCELINO FREIRE
Nasceu em 1967, em Sertânia, PE. Viveu no Recife e, desde 1991, reside em São Paulo. É autor, entre outros, dos livros “Angu de Sangue” (Ateliê Editorial) e “Contos Negreiros” (Editora Record – Prêmio Jabuti 2006). Em 2004, idealizou e organizou a antologia de microcontos “Os Cem Menores Contos Brasileiros do Século” (Ateliê). Alguns de seus contos foram adaptados para teatro. Participou de várias antologias no Brasil e no exterior. Criou a Balada Literária, evento que, desde 2006, reúne escritores, nacionais e internacionais, pelo bairro paulistano da Vila Madalena.
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Solar dos Príncipes
Quatro negros e uma negra pararam na frente deste prédio. A primeira mensagem do porteiro foi: “Meu Deus!” A segunda: “O que vocês querem?” ou “Qual o apartamento?” Ou “Por que ainda não consertaram o elevador de serviço?” “Estamos fazendo um filme”, respondemos. Caroline argumentou: “Um documentário”. Sei lá o que é isso, sei lá, não sei. A gente mostra o documento de identidade de cada um e pronto. “Estamos filmando.” Filmando? Ladrão é assim quando quer sequestrar. Acompanha o dia-a-dia, costumes, a que horas a vítima sai para trabalhar. O prédio
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MARCELINO FREIRE
tem gerente de banco, médico, advogado. Menos o síndico. O síndico nunca está. De onde vocês são? Do Morro do Pavão. - Viemos gravar um Longa-metragem. - Metra o quê? Metralhadora, cano longo, granada, os negros armados até as gengivas. Não disse? Vou correr. Nordestino é homem. Porteiro é homem ou não é homem? Caroline dialogou: “A ideia é entrar num apartamento do prédio, de supetão, e filmar, fazer uma entrevista com o morador.” O porteiro: “Entrar num apartamento?” O porteiro: “Não.” O pensamento: “Tô fodido.” A ideia foi minha, confesso. O pessoal vive subindo o morro para fazer filme. A gente abre as nossas portas, mostra as nossas panelas, merda. Foi assim: comprei uma câmera de terceira mão, marcamos, ensaiamos uns dias. Imagens exclusivas, colhidas na vida da classe média. Caroline: “Querido, por favor, meu amor.” Caroline mostrou o microfone, de longe. Acenou com o batom, não sei. Vou bem levar paulada de microfone? O microfone veio emprestado de um pai-de-santo, que patrocinou. O porteiro apertou o apartamento 101, 102, 108. Foi mexendo em tudo que é andar. Estou sendo assaltado, pressionado, liguem para o 190, sei lá . A graça era ninguém ser avisado. Perde-se a espontaneidade do depoimento. O condômino falar como é viver com carros na garagem, saldo, piscina, computador interligado. Dinheiro e sucesso. Festival de Brasília. Festival de Gramado. A gente fazendo exibição no telão da escola, no salão de festas do prédio.
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MARCELINO FREIRE
Não. A gente não só ouve samba. Não só ouve bala. Esse porteiro nem parece preto, deixando a gente preso do lado de fora. O morro tá lá, aberto 24 horas. A gente dá as boas-vindas de peito aberto. Os malandrões entram, tocam no nosso passado. A gente se abre que nem passarinho manso. A gente desabafa que nem papagaio. A gente canta, rebola. A gente oferece a nossa coca-cola. Não quer deixar a gente estrear a porra do por teiro. É foda. Domingo, hoje é domingo. A gente só quer saber como a família almoça. Se fazem a mesma festa que a nossa. Prato, feijoada, guardanapo. Caralho, não precisa o síndico. Escute só. A gente vai tirar a câmera do saco. A gente mostra que é da paz, que a gente só quer melhorar, assim, o nosso cartaz. Fazer cinema. Cinema. Veja Fernanda Montenegro, quase ganha o Oscar. - Fernanda Montenegro não, aqui ela não mora. E avisou: “Vou chamar a polícia.” A gente: “Chamar a polícia?” Não tem quem goste de polícia. A gente não quer esse tipo de notícia. O esquema foi todo montado num puta dum sacrifício. Nicholson dei xou de ir vender churro. Caroline desistiu da boate. Eu deixei esposa, cadela e filho. Um longa não, é só um curta. Alegria de pobre é dura. Filma. O quê? Dei a ordem: filma. Começamos a filmar tudo. Alguns moradores posando a cara na sacada. O trânsito que transita. A sirene da polícia. Hã? A sirene da polícia. Todo filme tem sirene de polícia. E tiro. Muito tiro. Em câmera violenta. Porra, Johnattan pulou o portão de ferro fundido. O porteiro trancou-se no vidro. Assustador. Apareceu gente de todo tipo. E a ideia não era essa. Tivemos que improvisar. Sem problema, tudo bem. Na edição a gente manda cortar.
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MICHEL LAUB
Nasceu em Porto Alegre, em 1973, e vive em São Paulo. Escritor e jornalista, publicou sete romances, todos pela Companhia das Letras. Seus livros saíram em 13 países e 10 idiomas. Recebeu os prêmios JQ – Wingate (Inglaterra, 2015), Transfuge (França, 2014), Jabuti (segundo lugar, 2014), Copa de Literatura Brasileira (2013), Bravo Prime (2011), Bienal de Brasília (2012) e Erico Verissimo (2001), além de ter sido finalista dos prêmios Dublin International Literary Award (Irlanda, 2016), APCA (2016), Correntes de Escrita (Portugal, 2014), São Paulo de Literatura (2012 e 2014), Portugal Telecom (2005, 2007 e 2012) e Zaffari&Bourbon (2005 e 2011).
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O homem da praia
Primeiro embaixo, ele diz. A água da banheira é morna, os sabonetes têm formato de coração e morango. Quantos anos você tem? Quarenta, eu respondo. Quando Sérgio toca meus pés, tenho trinta e cinco. Mais adiante, no máximo trinta. Estou a caminho da idade em que usarei biquíni, e o calçadão estará cheio, e irei até a praia de bolsa e batom. Sérgio não estará por perto, mas sei que é questão de tempo até ele também surgir em cena. A água da banheira é verde por causa dos sais, ouço apenas os pingos esparsos, e quando chego aos vinte e cinco anos me deixo submergir, o corpo inteiro distendido, cada músculo, cada fibra. Sinto apenas a mão de Sérgio, a voz grave falando das minhas
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MICHEL LAUB
pernas. Ele sempre faz questão de falar das pernas, é nessa hora que devo entrar, dizer que peguei sol e fiz exercício a tarde inteira. Tinha muita gente na praia?, ele pergunta. Alguém mexeu com você? Tenho vinte anos quando conto que um homem mexeu comigo. Um homem, Sérgio murmura. Sim, um homem que estava sentado no quiosque e perguntou aonde eu ia com tanta pressa. O homem levantou e começou a me seguir, contou que morava perto, num prédio a duas quadras dali. E disse mais alguma coisa? Respondo que não, mas sei que Sérgio não acredita. Ele vai insistir até que eu confesse. É para isso que me pôs na banheira, que me deu uma taça de vinho. Faz muito tempo que Sérgio sabe: não há ninguém mais fraca para bebida do que eu. Aos dezoito anos, uma mulher é fraca para quase tudo. Ela é incapaz de ouvir o convite do homem da praia sem prestar atenção. É o que digo para Sérgio enquanto ele ensaboa meus tornozelos. Ele sobe os dedos pelas canelas, pelos joelhos, e as perguntas se tornam tão incisivas, me obrigando a descrever com tantos detalhes a conversa com o homem da praia, eu entrando no apartamento, ele apanhando as taças no armário, propondo o primeiro brinde, que às vezes chego a embaralhar a história. No momento em que Sérgio toca minhas coxas, eu chego a confundir as datas e esquecer que tenho dezesseis anos quando o homem senta ao meu lado, nós dois no sofá do apartamento, eu já bastante tonta, e me pergunta se estou com calor. Sérgio sabe o que o homem queria. Mesmo assim, faz questão de insistir: ele pediu para você tirar o biquíni? Ele convidou você para tomar banho? Minhas respostas são as mesmas de sempre: eu não sabia o que fazer ali, aos quinze anos não imaginava que o homem me levaria pela mão. Estava um dia úmido, tão úmido quanto está hoje, Sérgio
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sem camisa ao meu lado, as gotas de vapor sobre a testa dele. Sérgio sobe os dedos pelas minhas coxas, é o momento em que mudamos de tom, em que passo a falar quase num sussurro: sim, o homem pediu que eu entrasse na banheira. Aos catorze anos, você não tem ideia de como pode ser intenso o contato com a água. Você deixa que o homem a ensaboe, e a sensação é tão diferente que pode até mudar sua vida. Naquele momento a minha vida começou a se tornar o que é hoje: não tive filhos, não trabalho, de tarde faço compras ou vou ao cinema ou arrumo algo para me distrair até a hora em que fica escuro, e preciso voltar, e tenho de ser rápida porque Sérgio me espera com impaciência. Já se vão décadas nisso, mas ainda há dias em que Sérgio pede para eu entrar no banho logo que ponho os pés em casa. Em dois minutos já estou ali, pronta para conduzi-lo, os dedos dele percorrendo meu corpo até encontrarem o lugar certo. Então eu fecho os olhos, e respiro fundo, e me preparo para morrer e nascer de novo comandada pela voz de Sérgio, como se o tempo houvesse parado desde que a ouvi pela primeira vez, assim, agora, para sempre, em frente ao quiosque da praia.
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RUBEM FONSECA
José Rubem Fonseca (Juiz de Fora MG 1925). Contista, romancista e roteirista. Nasce em Juiz de Fora, mas aos 8 anos vai morar com a família no Rio de Janeiro. Em 1963, estréia com o livro de contos O Prisioneiro e dois anos depois lança A Coleira do Cão. Durante as décadas de 1960 e 1970, dedica-se quase exclusivamente ao gênero conto, mais especificamente o conto policial, tendo publicado apenas um romance em 1973, intitulado O Caso Morel. É na década de 1980 que o escritor retoma o romance, recebendo o Prêmio Jabuti logo na primeira publicação, em 1983, de A Grande Arte.
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Passeio Noturno
Cheguei em casa carregando a pasta cheia de papéis, relatórios, estudos, pesquisas, propostas, contratos. Minha mulher, jogando paciência na cama, um copo de uísque na mesa de cabeceira, disse, sem tirar os olhos das cartas, você está com um ar cansado. Os sons da casa: minha filha no quarto dela treinando impostação de voz, a música quadrifônica do quarto do meu filho. Você não vai largar essa mala?, perguntou minha mulher, tira essa roupa, bebe um uisquinho, você precisa aprender a relaxar. Fui para a biblioteca, o lugar da casa onde gostava de ficar isolado e como sempre não fiz nada. Abri o volume de pesquisas sobre a mesa, não via as letras e números, eu esperava apenas. Você não pára de
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RUBEM FONSECA
trabalhar, aposto que os teus sócios não trabalham nem a metade e ganham a mesma coisa, entrou a minha mulher na sala com o copo na mão, já posso mandar servir o jantar? A copeira servia à francesa, meus filhos tinham crescido, eu e a minha mulher estávamos gordos. É aquele vinho que você gosta, ela estalou a língua com prazer. Meu filho me pediu dinheiro quando estávamos no cafezinho, minha filha me pediu dinheiro na hora do licor. Minha mulher nada pediu, nós tínhamos conta bancária conjunta. Vamos dar uma volta de carro?, convidei. Eu sabia que ela não ia, era hora da novela. Não sei que graça você acha em passear de carro todas as noites, também aquele carro custou uma fortuna, tem que ser usado, eu é que cada vez me apego menos aos bens materiais, minha mulher respondeu. Os carros dos meninos bloqueavam a porta da garagem, impedindo que eu tirasse o meu. Tirei os carros dos dois, botei na rua, tirei o meu, botei na rua, coloquei os dois carros novamente na garagem, fechei a porta, essas manobras todas me deixaram levemente irritado, mas ao ver os pára-choques salientes do meu carro, o reforço especial duplo de aço cromado, senti o coração bater apressado de euforia. Enfiei a chave na ignição, era um motor poderoso que gerava a sua força em silêncio, escondido no capô aerodinâmico. Saí, como sempre sem saber para onde ir, tinha que ser uma rua deserta, nesta cidade que tem mais gente do que moscas. Na avenida Brasil, ali não podia ser, muito movimento. Cheguei numa rua mal iluminada, cheia de árvores escuras, o lugar ideal. Homem ou mulher? Realmente não fazia grande diferença, mas não aparecia ninguém em condições, comecei a ficar tenso, isso sempre acontecia, eu até gostava, o alívio era maior. Então vi a mulher, podia ser ela, ainda que mulher fosse menos emocionante, por ser mais fácil. Ela caminhava
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PASSEIO NOTURNO
apressadamente, carregando um embrulho de papel ordinário, coisas de padaria ou de quitanda, estava de saia e blusa, andava depressa, havia árvores na calçada, de vinte em vinte metros, um interessante problema a exigir uma grande dose de perícia. Apaguei as luzes do carro e acelerei. Ela só percebeu que eu ia para cima dela quando ouviu o som da borracha dos pneus batendo no meio-fio. Peguei a mulher acima dos joelhos, bem no meio das duas pernas, um pouco mais sobre a esquerda, um golpe perfeito, ouvi o barulho do impacto partindo os dois ossões, dei uma guinada rápida para a esquerda, passei como um foguete rente a uma das árvores e deslizei com os pneus cantando, de volta para o asfalto. Motor bom, o meu, ia de zero a cem quilômetros em nove segundos. Ainda deu para ver que o corpo todo desengonçado da mulher havia ido parar, colorido de sangue, em cima de um muro, desses baixinhos de casa de subúrbio. Examinei o carro na garagem. Corri orgulhosamente a mão de leve pelos pára-lamas, os pára-choques sem marca. Poucas pessoas, no mundo inteiro, igualavam a minha habilidade no uso daquelas máquinas. A família estava vendo televisão. Deu a sua voltinha, agora está mais calmo?, perguntou minha mulher, deitada no sofá, olhando fixamente o vídeo. Vou dormir, boa noite para todos, respondi, amanhã vou ter um dia terrível na companhia.
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SÉRGIO SANT’ANNA
O poeta, contista e romancista Sérgio Sant’Anna nasceu no Rio de Janeiro em 1941 e iniciou sua carreira em 1969, com o livro de Contos “O Sobrevivente”, que o projetou no cenário acadêmico. A grande marca de sua obra é o caráter experimental, abordando temas urbanos de formas diversificadas e transgressoras. Venceu quatro vezes o prêmio Jabuti, três vezes o APCA e uma vez o prêmio da Biblioteca Nacional. Sua obra foi traduzida para o alemão, o italiano, o francês e o tcheco, além de ter sido adaptada para o cinema.
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O Corpo
Eram quinze para as seis da manhã, a claridade apenas despontando e Fernando Antônio levantou-se sem hesitação ao som do despertador do celular, tão baixo que Ana Lívia apenas estremeceu na cama. Fernando Antônio gostava de sentir o corpo de Ana perto do seu, mas não o tocou, para ela não acordar. Ele foi ao banheiro, depois voltou para o quarto e vestiu o short e a camiseta, calçou as meias e o par de tênis, para correr à beira da praia, a tempo de retornar e preparar-se para sair antes de oito horas da manhã e dos engarrafamentos. Sempre chegava cedo à corretora, a fim de conferir as cotações das bolsas da Europa e do fechamento na Ásia, antes de abertura do mercado em São Paulo. Poderia fazer isso no próprio
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SÉRGIO SANT’ANNA
celular, mas não queria misturar as coisas: o seu apartamento, Ana Lívia, o exercício físico, com o trabalho. Fernando foi à cozinha, bebeu um pouco d’água, descascou e partiu pedaços de mamão, que pôs no liquidificador. Café da manhã completo, ele deixava para tomar na volta, talvez em companhia de Ana Lívia, quando a empregada já tivesse chegado. Com o copo com o suco na mão, caminhou até a janela da sala, no oitavo andar, que passava a noite fechada, por causa do vento que vinha do mar. Abriu-a, sentiu o ar fresco da manhã, o cheiro da maresia, ouviu o barulho das ondas quebrando, mais nítido a essa hora, e também notou que onde uma onda se formava havia algo parecido com um corpo negro boiando, mas, com a luz ainda insuficiente, não podia identificar se era um afogado, ou um surfista madrugador, ou alguém nadando. Fernando bebeu o último gole do suco e dirigiu-se à porta do apartamento. Tomou o elevador e, ao chegar à rua, notou que algumas das pessoas que vinham cedo para correr ou caminhar no calçadão haviam parado do outro lado da Avenida Vieira Souto e olhavam em direção ao mar. Resolveu então atravessar a avenida e certificou-se de que havia mesmo o cadáver de um negro que era jogado de um lado para outro, e para cima e para baixo nas ondas. E Fernando não pôde deixar de filosofar como todo mundo diante de um cadáver, filosofia que podia ser reduzida à sua expressão mais simples com as palavras: o homem negro está morto, eu estou vivo, mas também vou morrer. Sentiu-se levemente deprimido e iniciou imediatamente sua corrida. Naquele momento três rapazes carregando pranchas de surfe vinham chegando pelo calçadão e um deles disse: “Vamos chegar lá perto para ver.” Outro respondeu: “Que isso, mermão, defunto a
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O CORPO
uma hora dessas? Vamos pro Arpoador.” E o terceiro surfista disse para o segundo, em voz bastante alta, de modo a ser ouvido pelo primeiro, o que fizera a proposta e já pulara para a areia: “Olha lá o Juninho, olha lá: vai pegar onda com o defunto.” * A senhora Carlota Macedo, viúva, 68 anos, viera descendo às seis e meia daquela manhã a Rua Joana Angélica e acabara de chegar à Avenida Vieira Souto. Vestida com um moletom, um biquíni por baixo e usando tênis, a senhora Macedo queria mostrar-se, inclusive para si própria, como uma caminhante igual às outras, mas seus passos eram nervosos, sem ritmo. Carlota tomava comprimidos contra a depressão e a insônia, mas seu sono não costumava passar das quatro e meia, cinco da manhã. Ela virava de um lado para outro na cama, mas não dormia mais e, compulsivamente, se ligava em algum pensamento depressivo, que levava a outro e mais outro e mais outro. O seu psiquiatra já lhe dera permissão para telefonar para ele a qualquer hora, mas quando ela ligava assim tão cedo, invariavelmente a chamada caía numa secretária eletrônica ou caixa postal. O psiquiatra, ou os poucos amigos de Carlota, ou os seus filhos, impacientes, aconselhavam-na a não ficar parada e sim fazer ginástica, ou caminhar, tomar sol e banhos de mar, o que ela pretendia fazer naquela manhã mesma, embora lhe custasse muita coragem, principalmente para mergulhar. Carlota caminhava como se pudesse fugir de si mesma, da sua mente, mas apesar do exercício aeróbico, dentro dela era um labirinto sempre conduzindo ao medo, ao pânico e a um desejo de morrer durante o sono. E o pior era quando o sol, iluminando a praia, tornando o céu completamente azul, feria a sua vista, contrastava com
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SÉRGIO SANT’ANNA
o cinza que ela trazia dentro de si. Mas ela não ia desistir assim tão fácil e, cruzando a avenida, começou a caminhar em direção ao Arpoador. Aproximando-se da Rua Vinicius de Moraes, Carlota se deu conta de duas pequenas aglomerações, uma no calçadão, outra na beira do mar, no lado oposto à Rua Farme de Amoedo. O coração dela disparou, mas ela sentia a esperança de que não fosse um afogado e sim, por exemplo, uma baleia aproximando-se da praia, o que não era assim tão raro. Depois de fixar seus olhos no oceano e não ver baleia alguma, Carlota pensou em dar meia-volta e caminhar na direção contrária. Mas era perto do Arpoador, cuja direção ela tomava, que o mar era mais calmo para entrar na água. E Carlota prosseguiu e, bem próximo à Farme de Amoedo, viu o corpo do homem negro no mar, que era jogado todo desengonçado pelas ondas e com toda a certeza estava morto. Não podia haver cena mais tétrica do que essa e, andando com passos mecânicos, Carlota viu ainda mais nitidamente o corpo. No instante seguinte, ele estava no topo de uma onda e Carlota julgou ver seus olhos abertos. E disse para si própria, antes de virar-se e andar o mais depressa possível no rumo da Rua Joana Angélica e de casa: “Esse já não sofre mais.” * Mas, afinal, o que aconteceu com esse? Um banhista que se afogou tão cedo? Quando, depois de ser, por fim, depositado na areia, viu-se que havia um buraco de bala em sua testa. Isso devia ter acontecido havia não muito tempo e perto dali, porque o corpo não exibia sinais visíveis de decomposição, disse um cabo da PM que chegou ao local, com um soldado da corporação, que estacionou a viatura próximo à calçada. Depois de puxar o cadáver um pouco mais para
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O CORPO
a areia, o cabo verificou que no bolso da bermuda, única vestimenta do morto, não havia nenhum documento nem dinheiro. O outro policial trouxe do carro-patrulha um plástico negro e com ele cobriu o cadáver. “É capaz de ele ter sido morto lá nas pedras do Arpoador”, disse o cabo. Sentado num banco da calçada, um senhor aposentado, vendo a cena, lembrou-se de uma história que lera numa coluna de jornal, havia alguns anos, sobre os cadáveres de dois afogados amarrados por cordas por algumas horas num barco do Serviço de Salvamento, no Mourisco, à vista de pessoas que almoçavam numa churrascaria em frente ao mar. E várias delas iam embora, é claro. * Por volta das oito horas, horário em que as mães traziam as crianças pequenas para a praia, o corpo sob o plástico ainda continuava lá. Os banhistas matutinos guardavam uma boa distância do defunto. Afinal, ninguém quer pegar praia perto de um morto. Mas um pregador bíblico, vestido com um velho terno, sem gravata e surgido não se sabia de onde, aproximou-se do cadáver e pronunciou, elevando a voz, a seguinte prédica, tirada do Livro da Sabedoria: “Pois do nada somos nascidos e depois desta vida seremos como se nunca tivéramos sido. Pois a respiração de nossos narizes não passa de fumaça e a razão é como faísca para mover nosso coração.” * Quando chegou em casa às 7 horas, Fernando Antônio já encontrou a mesa arrumada para o café da manhã para duas pessoas. Mas Fernando não sabia se Ana Lívia ia acordar a tempo de tomar
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O CORPO
café junto com ele. Ela costumava dormir ali duas ou três vezes por semana e às vezes só se levantava depois que ele saía. Fernando foi ao banheiro, fez a barba, tomou uma chuveirada e depois, já no quarto, começou a vestir o terno. Pôs a camisa, os sapatos, a gravata, mas o paletó deixou para depois. Ana Lívia sonhava com uma centopeia que lhe subia pela perna. Pronunciou algumas palavras aflitas e incompreensíveis, abriu os olhos e viu Fernando Antônio. “Me abraça”, ela disse. Ele sentou-se na cama, abraçou-a e disse que tinha de ir, mas ainda dava tempo de tomarem o café juntos. Ela disse para ele ir na frente, que ela já ia indo. Ana Lívia entrou na sala vestida com uma camisa de Fernando, de mangas compridas e a calcinha por baixo. Cumprimentou Ifigênia, a diarista, e sentou-se. Era bem jovem, morena e bonita. Fernando preferiu não comentar sobre o homem morto na praia. Com o pé direito acariciou a coxa de Ana Lívia sob a mesa, mas logo teve de levantar-se para sair. Ana Lívia saiu uma hora mais tarde, para a faculdade onde fazia mestrado. No acostamento da pista da praia, lá pelas dez horas, chegou o rabecão. Sem maiores cuidados, dois funcionários do Instituto Médico-Legal trocaram o plástico da polícia por um do Instituto e depois puseram o morto coberto num caixão de metal e o levaram para um furgão em que estava escrito: IML — Transporte de Cadáveres. Na carroceria do furgão, havia mais dois corpos, além do corpo do homem negro, cada um em uma gaveta, restando uma gaveta vaga. Nenhum ser humano vivo ali naquela parte do veículo. No entanto, havia vida ali, inconsciente, dos vermes que já haviam começado a devorar os cadáveres. Que vermes são esses? Nós, os leigos, não sabemos, mas já os trazemos dentro de nós, à espera de tomarem conta do nosso corpo. 93
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SONIA COUTINHO
Sônia Coutinho (Itabuna, 1939 — Rio de Janeiro, 2013) foi escritora, jornalista e tradutora. Em 1968, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde iniciou a carreira jornalística. Pela sua obra literária, ganhou o Prêmio Jabuti em 1979 e 1999 (“Os Venenos de Lucrécia” e “Os Seios de Pandora”, respectivamente) e o Prêmio Clarice Lispector, em 2016 (“Ovelha Negra e Amiga Loura”).
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Orquídeas para Clarice
Conto com minhas palavras a história de Vera, tal como ela me contou, no dia em que foi internada. Acorda muito cedo, como costuma fazer agora. Sim, agora que estou quase velha, pensa Vera, com uma naturalidade que jamais imaginaria alcançar, apenas poucos anos atrás, com relação a esse assunto. Mas, de repente, numa longa situação de divorciada sem filhos, está chegando aos 57 anos. (E, o pior, sem se livrar dos resíduos de uma Dolorida Paixão por um homem dez anos mais novo e casado, o belo Henrique.) Ainda está escuro, Vera acende a luz do abajur. Dá uma rápida olhada no despertador, cuja campainha jamais toca (ela sempre acorda antes da hora), e vê que são quatro da madrugada.
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SÔNIA COUTINHO
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ORQUÍDEAS PARA CLARICE
Na mesinha de cabeceira, junto do relógio, está o romance “A maçã no escuro” e, com a ponta presa embaixo dele, um pedaço de papel com anotações feitas por ela, dias atrás. Vera pega o papel, lê: “Encontrei Van Gogh, esta manhã, no Jardim Botânico. Foi perto do Rio dos Macacos, que corre paralelo à Pacheco Leão. Dali dá para ver os carros passando na rua, mas não há nenhum ruído de trânsito, apenas o doce murmúrio da água correndo. Fiquei algum tempo de olhos fechados, ouvindo. Quando abri os olhos, levei um susto: havia um homem parado à minha frente. À primeira vista, não o identifiquei. Vi apenas que era um tipo estranho e estrangeiro: pele muito clara, nariz adunco, barba ruiva, usando um chapéu com as abas bem voltadas para cima. Quando fixei a atenção em seu olho direito, ligeiramente arregalado, o olho que ele usou como eixo de vários dos seus auto-retratos, tive a certeza: era Van Gogh. Usava um casaco de um azul escuro mas vivo, resplandecente; e, notando que eu o observava, Van Gogh disse: - O azul cobalto é uma cor divina, não há nada tão belo para colocar em torno dos objetos. E prosseguiu, como se divagasse: - Já o carmim é o vermelho do vinho, e é quente e estimulante como o próprio vinho.” Vera esconde rapidamente o papel entre as páginas do livro. E pergunta a si mesma se deve conversar a respeito com o Dr. Fabiano. Vai ao consultório dele na próxima quarta-feira. Talvez deva tomar coragem, afinal, e contar tudo. Sim, sobre as aparições.
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A leitura da anotação sobre Van Gogh a deixou com uma sensação esquisita, como se saísse de um sonho pesado - sim, esse sonho intenso que chamam de realidade, pensa Vera. Dá um pulo da cama e, usando apenas uma velha camiseta comprida, vai até o quarto que chama de “meu gabinete” e se senta diante do computador. Acessa a internet, mas não há e-mails novos, o que aumenta sua sensação de solidão. Segue para a cozinha, prepara um café com leite, pega umas torradas do tipo que já vem pronto e embalado e uma caixa de queijo cremoso. Enquanto toma o café, pensa outra vez em Henrique. Não é um pensamento saudável, mas não consegue evitá-lo. Na véspera, um pintor de paredes lhe falara dele. Uns dois anos antes, Seu Simão tinha pintando o teto do seu banheiro, que a umidade deixara cheio de bolhas e descascado. Foi indicado por Henrique, para quem costumava trabalhar. Vera agora chamara Seu Simão para conversar sobre a pintura da sua sala, manchada por um vazamento. Fora um vazamento esquisito. Ela estava no quarto, deitada, quando sentiu aquele repentino cheiro de coisa molhada. Correu ao banheiro, viu que havia um líquido escuro no piso. Na sala, uma parede já estava coberta por grandes borrões avermelhados. Agora, quando acorda antes do amanhecer e vai até a sala, tem certeza de que são manchas de sangue. Sim, alguém foi assassinado no apartamento de cima e seu sangue escorreu rapidamente do teto até o chão da sua sala. - Quero toda branco neve - ela disse a Seu Simão. Estava praticamente tudo combinado, quando ele perguntou: - E o Doutor? Com um choque, Vera percebeu que se referia a Henrique.
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Como ousava? Mas concluiu que devia ser por causa do indevido tom afetivo com que tratava aquele pintor, e só porque ele fora indicado por Henrique. Enquanto pintava seu banheiro, Seu Simão encontrara Henrique mais de uma vez em seu apartamento - e devia ter tirado suas conclusões. Embora ultrajada, Vera respondeu à pergunta dele. - Não falo com Henrique há muito tempo. Diante disso, o pintor, animado, continuou: - Trabalhei para ele no mês passado. Henrique deixou a mulher, está morando com uma moça bonita, muito nova. E acrescentou: - Ela tem o mesmo nome que a senhora, Vera. Desde que pararam de fazer amor, sempre doía um pouco pensar em Henrique, mas não uma dor tão forte como ela sentiu com a revelação do Seu Simão. A paixão por Henrique fora substituída por uma amizade-capaz-deprovocar-lágrimas. As palavras do pintor foram como uma punhalada, de punhal-que-não-pode-ser-arrancado. Vera voltou atrás quanto à pintura da sala, mentiu que talvez os proprietários do apartamento de cima, que pagariam tudo, já tivessem falado com outro pintor. Verificaria isso e telefonaria para Seu Simão no dia seguinte, disse já abrindo rapidamente a porta para que ele fosse embora. Quando acaba de tomar o café, aproxima-se da mesa da sala, onde está todo o seu material de artesanato. Tubos de tinta, pincéis enfiados numa garrafa plástica cortada pela metade, godês, pequenos recipientes, um trapo. Desde que se aposentou como professora de francês, é o que anda fazendo. E seu apartamento deixou de ter um aspecto civilizado, transformou-se num desarrumado ateliê.
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Senta-se perto da mesa, na cadeira de plástico branco onde trabalha, o chão coberto por jornais estendidos. Pega uma caixa de madeira crua e começa a lixá-la. Depois, despeja um pouco de tinta branca PVA numa tigela e, com um pincel e um rolinho, vai pintando a caixa e alisando a tinta. Separa tubos de tinta - azul ftalocianina, azul turquesa, rosa meio lilás, amarelo limão, laca gerânio, sombra natural. Na tampa, colará o xérox da foto de Clarice Lispector. Na caixa anterior, tinha usado a reprodução de um auto-retrato de Frida Kahlo. A esta altura, o dia já clareou, Vera apaga as luzes. Põe a caixa meio trabalhada na mesa, em cima de um plástico. Termino quando voltar do Jardim Botânico, pensa. Quer chegar cedo para sua caminhada diária, para aproveitar enquanto aquilo não está cheio de gente. Toma um banho rápido, enfia umas calças de moleton, uma camiseta, uns tênis, desce pela escada mesmo até a garagem, entra em seu velho carrinho. Com o trânsito escasso das seis da manhã, chega ao Jardim em dez minutos. Tem sempre o mesmo espanto, quando entra aqui. É lindo. O frescor da manhã, o canto dos pássaros. Vai caminhando. No Jardim Japonês, espia as gordas carpas, manchadas de vermelho, branco e preto. Mas sua favorita é a dourada, que procura com o olhar. Segue adiante, pisando nas folhas avermelhadas, porque é outono, que cobrem a terra batida das veredas. Parada agora na margem do Lago, observa a água caindo perpetuamente da jarra que a estátua de Tétis tem nas mãos.
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Agora, está bem embaixo de um grupo de macacos, que pulam de um galho para outro. São bichos saudáveis, pêlos limpos e luzidios, suas caras quase humanas. Quando chega ao orquidário, a porta está inesperadamente aberta, embora o guarda que fica ali de vigia ainda não tenha chegado. Aproxima-se da porta e, antes mesmo de entrar, vê uma mulher lá dentro, em meio às orquídeas. Na vazia solidão da manhã, a mulher magra, elegante, o rosto bem maquilado, com as maçãs salientes. Seu vestido de seda estampada com pequenas flores, Vera observa. Decote quadrado, cintura justa, saia na altura dos joelhos, parecidos com os que sua mãe usava, lá pelos anos 60. Ficam as duas ali, se encarando. Claro, é ela, pensa Vera, é ela com a aparência que tinha, quando era jovem e casada com um diplomata. - Clarice... - diz Vera, num sussurro. Aproxima-se da outra com uma sensação de encontro inevitável, que mais cedo ou mais tarde teria de acontecer. E Clarice diz, com sua voz rouca, que parece ter um leve sotaque estrangeiro (mas Vera sabe que a alteração é causada por um defeito em sua língua): - Não se sabe de onde se vem, nem se sabe para onde se vai, mas que experimentamos, experimentamos! E é isto o que temos. - Eu queria tanto entender - diz Vera. - É tolice não entender - responde Clarice. - Só não entende quem não quer. Porque entender é um modo de olhar. Porque entender, aliás, é uma atitude. Como se, estendendo a mão no escuro e pegando uma maçã, a gente a reconhecesse, nos dedos tão desajeitados pelo amor uma maçã. Não peço mais o nome das coisas. Basta reconhecê-las, no escuro. E me rejubilar, desajeitada.
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- Você sente esse júbilo, essa alegria? - pergunta Vera. - Às vezes me basta tanto ser uma pessoa que acorda de manhã. Bastam-me a terra enevoada e as árvores frescas. A corrente da graça é forte, de manhã, e ter um corpo que vive me basta. Apesar de tudo, morremos estranhamente felizes: submissos à perfeição que nos usa. Vera pronuncia palavras ao acaso. - Amor, morte, mistério. E Clarice diz: - Quem aceita o mistério do amor aceita o da morte; quem aceita que um corpo que se ignora cumpra o seu destino, então aceita que o nosso destino nos ultrapassa, isto é, morremos. Clarice se cala e Vera percebe que ela se movimenta, vagarosamente, em direção à saída do orquidário. - Clarice... - fala Vera, baixinho, com uma vontade imensa de lhe oferecer algumas orquídeas, escolhendo amplamente entre as brancas, amarelas, lilases, pintalgadas, de todos os formatos. Mas fica paralisada, muda. E, quando sai do orquidário, vê que Clarice desapareceu. Caminha para o estacionamento do Jardim, entra em seu carro e segue para seu apartamento, onde o cotidiano se reinstala. Vera volta a pensar em Henrique. Uma longa história. Que se passou, mais do que em qualquer outra parte, em sua imaginação mesmo. Agora, tem um forte impulso e nem pensa em resistir - vai até o telefone e liga para o celular dele, o que não fazia há muito tempo. Pergunta: - É verdade que você se separou da sua mulher e se casou de novo? - Mas que idéia, de onde você tirou isso? - diz Henrique. - Seu Simão, o pintor, me contou.
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ORQUÍDEAS PARA CLARICE
- Ele não sabe do que está falando. - É com aquela moça com quem vi você, outro dia, em Ipanema, que está casado agora? - Ora, quer saber de uma coisa? Quem me dera que eu estivesse mesmo casado com ela! Vera desliga, arrasada. E claro que jamais saberá se é verdade ou mentira, Henrique nunca lhe deu sequer seu endereço, tem apenas o número do seu celular. Vera vai para a cadeira de plástico branco, junto da mesa com o material de artesanato. Dá uns últimos retoques na pintura da caixa e depois cola na tampa o xérox de uma foto de Clarice Lispector. Mais tarde, antes de dormir, abre as últimas páginas de “A maçã no escuro” e lê: “E, quem sabe, a sua seria a história de uma impossibilidade tocada. Do modo como podia ser tocada: quando dedos sentem no silêncio do pulso a veia.” Não, claro que não dirá nada sobre isso ao Dr. Fabiano, quando for ao consultório dele, na quarta-feira.
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VANESSA BARBARA
Vanessa Barbara nasceu em São Paulo, em 1982. É jornalista, tradutora, cronista e colunista do International New York Times e da Folha de S.Paulo. Publicou o livro-reportagem O Livro Amarelo do Terminal (Cosac Naify, 2008, prêmio Jabuti de Reportagem), o romance O Verão do Chibo (Alfaguara, 2008, em parceria com Emilio Fraia) e o infantil Endrigo, o Escavador de Umbigo (Ed. 34, 2011), ilustrado por Andrés Sandoval. Foi selecionada pela revista Granta para a edição “Os melhores jovens escritores brasileiros”.
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A Vizinha de baixo
A princípio, era apenas levemente incômodo e um tanto engraçado. Quer dizer, não era como se tivéssemos um vizinho com uma suástica na piscina, nem como se morássemos no andar de baixo de um estúdio de sapateado. Não tínhamos nenhum baterista nas redondezas, nem um ponto de tráfico, nem um dono de papagaio. Nada de gente andando com salto alto de madrugada ou jogando Call Of Duty no volume 44. Outro dia li sobre um vizinho que perseguia seus desafetos com uma serra elétrica, passava o dia xingando em voz alta e chegou a golpear um outro vizinho – paraplégico – com um peixe. Ele foi preso 34 vezes. Nós não tínhamos nada disso. Éramos jovens, recém-casados e felizes proprietários do apartamento 103, que compramos com
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VANESSA BARBARA
a ajuda dos nossos pais e de uma poupança conjunta, e para onde nos mudamos assim que a pintura ficou pronta. Era um imóvel de “72 metros quadrados de área útil, dois dormitórios espaçosos com armários embutidos, banheiro social com box de acrílico, sala ampla, cozinha, área de serviço, uma vaga, nada para fazer, ótima localização”. É bem provável que tenhamos nos decidido a comprar esse apartamento em específico por causa da descrição “nada para fazer”, o que era, aliás, uma das nossas atividades prediletas. Nós também não sapateávamos, não tínhamos animais de estimação, não dávamos festas barulhentas, não tínhamos filhos; gostávamos, enfim, de passar os fins de semana montando quebra-cabeças e tomando chá. Conversávamos em voz baixa e não tínhamos o costume de convidar amigos para jantar. Por isso achamos estranho quando a vizinha do 93, uma professora aposentada, começou a reclamar do nosso barulho. Na primeira vez, foi numa noite chuvosa de domingo – eu já dormia no quarto enquanto, na sala, Alan estava lendo uma coletânea de contos de horror. A vizinha interfonou para se queixar do rangido da cama que não a deixava dormir, um barulho irritante que já durava quase meia hora, e ele respondeu que a reclamação não fazia sentido, pois estávamos no mais absoluto silêncio e, até onde ele sabia, eu não era sonâmbula. Ela desligou, incrédula. Levantei para saber o que havia ocorrido, e acabei perdendo o sono. Naquela época ainda éramos felizes. Na segunda vez, a vizinha interfonou para pedir que parássemos com “essa loucura de ficar batendo prego na parede”. Estávamos jantando na cozinha, quase sem conversar, e Alan mais uma vez informou a vizinha de que não havia um único martelo no apartamento. Ela resmungou um pouco, soltou um suspiro sentido e desligou.
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A VIZINHA DE BAIXO
Como eu disse, era apenas levemente incômodo e um tanto engraçado. Não era como ter um vizinho assassino que esconde o corpo da mulher no jardim – ao estilo de Lars Thorwald, de Janela Indiscreta – ou um casal de satânicos cujo único objetivo seria nos fazer parir o Anticristo em troca de êxito profissional – como Minnie e Roman Castevet em O bebê de Rosemary. Tratava-se apenas de uma vizinha excêntrica com alucinações auditivas, que ouvia camas rangendo e pregos sendo vigorosamente afixados à parede. Naquelas primeiras semanas, achamos graça nas reclamações e ficamos apostando sobre o que viria em seguida, quase que torcendo para que o interfone tocasse e fosse a vizinha de baixo com algum aparte ilusório. A reclamação do prego inclusive nos fez pensar em nossas paredes lisas, tediosas, e decidimos que já era hora de pregar alguns quadros com fotos nossas. (Compramos um martelo.) A reclamação seguinte envolveu um aspirador de pó excessivamente barulhento, numa manhã de sábado em que estávamos lendo o jornal e cortando as unhas do pé (Alan e eu, respectivamente), e, mais tarde, no mesmo dia, móveis imaginários sendo arrastados com escândalo. Essa queixa foi registrada por um Alan sonolento que teve de se levantar para atender o interfone – eu não estava em casa e ele já se deitara fazia um tempo. “Como assim, ‘qual barulho’?”, ela repetia, quase gritando. “Estou ouvindo vocês arrastando o sofá para o outro lado da sala, isso não é hora de arrastar o sofá”, exclamou, enquanto Alan tentava convencê-la de que ninguém estava fazendo nada àquela hora da noite, que o prédio estava em silêncio, que eu tinha ido dormir fora, que ela estava ouvindo coisas. No dia seguinte, quando foi me contar o que havia ocorrido, ele observou que até seria uma boa ideia empurrar o sofá para o lado direito da sala, assim poderíamos
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encaixar no espaço vago um pedestal de mármore com anjinhos esculpidos que a mãe dele nos dera de presente de casamento e ainda estava encaixotado por puro lobby da oposição (eu). Assim fizemos. O ruído dos móveis sendo arrastados ecoou pelo prédio, mas a vizinha não interfonou para reclamar, talvez porque já o tivesse feito. A história toda ficou ainda mais estranha quando, dias depois, ela interfonou pedindo que desligássemos o ar-condicionado – e nós percebemos que realmente seria interessante se tivéssemos um ar-condicionado, pois o clima ali andava muito sufocante. Encomendamos o aparelho logo em seguida, que foi instalado na janela bem acima do apartamento dela. Ficamos depois imaginando que ela podia ser uma vizinha com poderes paranormais que se antecipava aos nossos gostos e necessidades, e ficamos na expectativa das próximas chamadas. Certa vez, ela serviu de juíza (involuntária) para uma de nossas brigas mais acirradas: na mudança, eu desistira de trazer um enorme aquário de peixes, que ficou na casa dos meus pais, pois Alan dizia que não havia espaço no apartamento. Mas, conforme o tempo passava, comecei a ter saudade dos meus acarás e a insistir para que trouxéssemos o aquário, instalando-o na área de serviço, onde não incomodaria tanto assim – era só botar a secadora num suporte alto e montar uma bancada junto à janela. Um dia, a vizinha interfonou perguntando se tínhamos um aquário em casa, pois ela ouvia todas as noites o barulho do filtro de água em funcionamento, o que era realmente incômodo para uma senhora de idade com problemas de insônia. Fui eu que atendi o interfone naquele dia, e foi com grande alegria que ouvi a reclamação. Nem me dignei a responder, bati o fone no gancho e anunciei, exultante: “Vamos trazer o aquário!”.
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A VIZINHA DE BAIXO
Alan assentiu, como se fosse um desígnio do destino. (O aquário não mitigou a minha melancolia.) Ela também pediu que abaixássemos o som de algo que parecia “Bamboleo”, dos Gipsy Kings, em looping, que é realmente uma música contagiante e que decidimos escutar com mais frequência para ver se o clima lá em casa ficava menos pesado, e reclamou dos latidos do nosso cachorro inexistente – que demorou poucos dias para de fato existir, e materializou-se na forma de um filhote de labrador adotado em uma feirinha perto de casa. Gipsy Kings e o cachorro foram breves alegrias matrimoniais que não demoraram a se extinguir, como tudo lá em casa, e os dias foram ficando cada vez mais tristes, e os toques do interfone mais enervantes. Ainda assim, não era como se tivéssemos problemas de verdade com os vizinhos – nada como a história de um certo Michael Carroll, que construiu uma pista de corrida para carros no próprio quintal e passava as madrugadas promovendo rachas de automóveis, com direito a batidas e incêndios ocasionais. Ou como Paula Bolli, que despejou no jardim 30 metros cúbicos de esterco fresco de cavalo para adubar as plantas, atraindo fedor e ratos para as propriedades vizinhas. (O esterco nem estava sendo utilizado como adubo, pois a quantidade era tanta que Bolli não conseguia mais enxergar o solo. Em todo caso, ninguém sabia se aquilo poderia ser considerado ilegal sob qualquer ponto de vista.) Em suma, o nosso caso não era extremo, apenas envolvia uma vizinha idosa com problemas insólitos de audição. E um jovem casal em crise de relacionamento. Dia após dia, semana após semana, ela reclamava de tudo, menos do choro de um bebê – e foi por esse motivo, acima de tudo, que a vizinha logo começou a pedir que parássemos de brigar. Repetidas
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vezes. Ainda assim, passei a correr para atender os toques do interfone na expectativa de que logo viesse uma boa notícia, mas nada: só passos nervosos, portas batendo e brigas que se arrastavam pela madrugada, todos minuciosamente previstos pela vizinha de baixo com algumas horas de antecedência. Foi quando entendemos uma coisa: não era que ela estivesse se antecipando às nossas necessidades, era como se não tivéssemos chance. Ela previa o futuro – ou melhor: ouvia o futuro. Depois que nos demos conta disso, ainda tentamos resistir, mas tudo o que ela dizia se tornava real; tentativas de reconciliação terminavam em crises de choro, jantares românticos viravam brigas com pratos sendo arremessados, conversas em voz baixa eram concluídas aos gritos, então paramos de tentar. Não era como se tivéssemos um vizinho que ria alto demais, que acordava cedo para bater vitamina no liquidificador, ou que nunca segurava o elevador quando estávamos cheios de sacolas. Então, certo dia, ela interfonou apavorada perguntando o que foi aquele barulho horrível, se alguém havia se machucado, se queríamos que ela chamasse a polícia, e eu decidi que, se alguém ali fosse sair vivo, que fosse eu.
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Este livro foi composto em Adelle corpo 10 e impresso sobre papel Pรณlen Bold da Suzano Papel e Celulose, em Maio de 2018.