O encantamento de Bonífia

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O EncantamentO De Bonífia

GLÁUCIO FERNANDES ilustrações Mariana Tavares



GLÁUCIO FERNANDES

O EncantamentO De Bonífia ilustrações Mariana Tavares


O ENCANTAMENTO DE BONÍFIA

Copyright © 2021 Gláucio Fernandes Todos os direitos reservados.

Ilustrações: Mariana Tavares

Projeto gráfico e diagramação: Letícia Santana Gomes

Capa: Letícia Santana Gomes sob ilustração de Mariana Tavares Revisão: Cláudia Rezende – Bontexto Revisão de Texto

F363e

Fernandes, Gláucio. O encantamento de Bonífia. Belo Horizonte: Edição do Autor, 2021. 52p.: il. 20X20cm. ISBN: 978-65-00-26912-3 1. Literatura infantojuvenil. I. Autor II. Título

CDD: 028.5

Ficha catalográfica elaborada por Jussara Feitosa de Santana – CRB-6/1094


ApresentaÇão Lembro-me com muita clareza de, quando criança, me deitar na cama dos meus pais e de o meu pai me contar uma história. Eu quase nunca conseguia chegar ao final, pois pegava antes no sono. Lembro-me de ser aquela uma história que me cativava e me fazia querer ouvi-la sempre, fosse na tentativa de chegar ao final, fosse no ensejo de tornar mágico aquele momento que eu passava com o meu pai. Os anos se passaram, aqueles momentos em que meu pai me contava essa história se foram, veio a vida adulta, mas nunca me esqueci daquela história, ou pelo menos de parte dela. Pouco mais de 30 anos depois, sentados meu pai, minha mãe e eu aqui, na mesa da minha sala, relembrei a história de Bonífia, e meu pai, então, começou a contá-la. Naquele momento, me reportei ao meu tempo de criança, ouvindo o meu pai a repetir cada palavra, com a mesma entonação, a cantar cada música, com a mesma melodia, e senti sensações muito parecidas com aquelas que senti um dia. Essa foi a primeira vez que cheguei ao final da história. Ouvir aquela história, naquele momento, sentado junto aos meus pais, me fez perceber que, depois de tanto tempo, aquela simples narrativa só havia permanecido na minha memória porque era meu pai quem a desenvolvia. Era uma história que, para mim, mantinha em minha memória o cuidado e a atenção do meu pai. Nesse dia, meu pai me contou que a mãe dele costumava contar a mesma história para ele e os irmãos e irmãs, o que tornou aquela narrativa ainda mais especial. Talvez a minha avó também a tenha


ouvido da mãe dela, sob outro olhar, em outro tempo. Fiquei pensando na história por trás de uma narrativa. A que eu ouvia do meu pai era mágica, cheia de mistério, de aventura, mas possivelmente remetia à interpretação do meu pai frente à mesma história, contada pela minha avó. Da mesma forma, a história de que me lembro remete à minha interpretação frente à narrativa que o meu pai desenvolvia. Decidi, então, pôr no papel essa narrativa, não apenas sob o meu olhar, mas também sob o olhar do meu pai. É uma história simples, mas que remete à nossa memória. Nossa memória de criança, que ouviu a mesma história em tempos diferentes (anos 1950 e 1980). Nossa memória de adulto, ao trazer à tona lembranças dos momentos passados juntos àqueles que tanto amamos. Ter meu pai comigo, desenvolvendo essa narrativa, é algo que me enche de alegria e me reporta a um tempo simples, sem muitas preocupações, em que éramos apenas quatro (meu pai, minha mãe, meu irmão e eu) dividindo as noites na fazenda. Agradeço ao meu pai por ter me contado essa história e por ter deixado na minha memória essa marca de carinho e afeto. Te amo, pai.


PrefáciO Há muitos escritores, especialmente na literatura infantil e juvenil, que encontram nos filhos a inspiração para seus textos. Eles os observam, encantam-se com suas proezas, divertem-se com sua linguagem pitoresca e depois decidem eternizá-los em suas obras. Este livro segue um caminho reverso. Gláucio Fernandes retorna à infância e busca inspiração em seu pai, seu Ladinho, ao recriar uma narrativa contada em sua família para embalar o sono de diferentes gerações de crianças. O autor nos emociona ao contar, na apresentação, essa história por trás da história e nos faz lê-la imaginando não só as cenas narradas no texto, mas também um amoroso pai contando incansavelmente todas as noites a mesma história para fazer o filho dormir. Para nós, adultos, a narrativa nos remete às leituras que fizemos (ou que fizeram por nós) na nossa própria infância, ao trazer a estrutura de um conto de fadas cuja protagonista, Bonífia, assim como Rapunzel, é uma moça que tem poderes cuja verdadeira essência é


incompreensível pelas pessoas que a rodeiam. A mãe, por excesso de zelo e por temer pela segurança da filha, mantém-na isolada da sociedade. Mas isso não impede que o amor lhe ofereça um destino diferente da clausura, mesmo que a heroína precise sofrer até que possa vivê-lo plenamente. Para nossas crianças, a leitura certamente encantará pela fantasia, pelo toque de suspense, pela narrativa do amor alcançado arduamente depois de se lutar contra os revezes da vida, mas, principalmente, se outro pai amoroso, como seu Ladinho, se dispuser a ler todas as noites este ou outros livros para fazer seu filho dormir, porque o que realmente importa é o afeto. Boa leitura!


Para minha avó, Lili, e meu pai, Ladinho, pela nossa história sem fim...


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Bonífia era o nome de uma jovem que vivia com os pais em um pequeno vilarejo. Em casa, a família plantava e colhia tudo o que era necessário para a subsistência. Bonífia sempre foi muito protegida pelos pais, principalmente pela mãe, que a mantinha em casa, ocupada com os trabalhos domésticos. Tinha medo de que a filha pudesse, algum dia, deixá-los. Havia uma razão para esse medo. Bonífia tinha poderes que a tornavam uma menina muito especial. Esses poderes eram guardados e protegidos pela mãe, que não queria compartilhálos com as pessoas que viviam naquele vilarejo, talvez por medo, talvez por querê-los guardados exclusivamente para o bem da própria família. Bonífia nunca havia se percebido como uma pessoa diferente por ter poderes especiais, já que os usava apenas para o bem dos pais.

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Bonífia não se ausentava de casa e quase nunca era vista no vilarejo. Os vizinhos sempre a viam na parte da frente da casa, limpando o terreiro, cuidando dos animais, plantando e colhendo. Uma bela jovem, fazendo os afazeres da casa e que tinha muito carinho e respeito pelo lugar onde vivia, pela natureza e pelos animais que a rodeavam. O carinho e o respeito dela por todos a tornavam uma pessoa ainda mais especial.

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Próximo à casa onde morava a família de Bonífia, havia um casebre abandonado. Certo dia, as portas e janelas daquele casebre se abriram, e surgiu de dentro daquela pequena casa um rapaz. O nome dele era Manezinho, um jovem de uma terra muito distante e que havia chegado há pouco ao pequeno vilarejo. Nada se sabia a respeito dele, de onde era e quem era a sua família, o que deixava os moradores do vilarejo receosos com a presença do jovem.

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Certo dia, Manezinho, trabalhando na limpeza e na capina em frente ao seu casebre, viu Bonífia, ao longe. Ele, então, decidiu se aproximar, para se apresentar. Bonífia, num primeiro momento, se pôs assustada e apreensiva, por não conhecer aquele rapaz. Mas, depois de uma primeira conversa, percebeu haver algo diferente em Manezinho, que o tornava único. Bonífia conseguia enxergar o interior dos seres, humanos ou não, e notar a beleza dentro de cada um. Ela havia visto muita beleza naquele rapaz, algo que a intrigava, algo que não havia sentido em toda a vida, até aquele momento. A mãe de Bonífia, ao ver a filha conversando com o rapaz desconhecido, mais que depressa foi até a frente de casa e ordenou que a filha entrasse e terminasse os serviços. Muito nervosa e assustada com aquela situação, a mãe, então, questionou Manezinho, de onde era, quem era a sua família, por que estava vivendo naquele casebre, mas o jovem, ao perceber que estava sendo interrogado, apenas disse o nome e logo voltou aos afazeres no casebre. Aquela situação só havia servido para deixar a mãe de Bonífia desconfiada.

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No dia seguinte, ao sair à porta do casebre, Manezinho viu Bonífia ao longe, acenou para a jovem e recebeu um aceno de volta. Ambos não conseguiam parar de pensar um no outro. Os dois jovens haviam sentido que algo os conectava e gostariam de conversar novamente, de se conhecerem melhor. Manezinho havia percebido que a mãe de Bonífia não iria permitir que ele se aproximasse da moça, mas, ainda assim, decidiu ir até a jovem. Conseguindo que a mãe dela não o visse, combinou com Bonífia de conversarem à beira do rio que cortava o vilarejo. Ela não sabia como iria fazer para encontrar Manezinho, mas aceitou o convite. Todos os dias, após o almoço, o pai de Bonífia saía para apanhar lenha, e a mãe tirava um cochilo. A moça aproveitou o momento para encontrar Manezinho à beira do rio. Lá, conversaram sobre o que esperavam da vida, dos planos que haviam traçado ou que poderiam vir a traçar.

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Os encontros à beira do rio se repetiam dia após dia. Bonífia e Manezinho construíram uma grande e bela amizade. Os dois possuíam sonhos e desejos em comum, e um carinho muito grande surgiu de um pelo outro. Aos poucos, o carinho foi se transformando em amor, e, certo dia, sentados à beira do rio, observando a natureza que os rodeava, os jovens decidiram namorar. Mas Bonífia, certa de que a sua mãe não aceitaria o namoro dela com uma pessoa desconhecida, pediu que o namoro fosse segredo dos dois. A cada dia que passava, mais a cumplicidade entre os dois jovens aumentava. Ainda que Manezinho se mostrasse disposto a conversar com os pais de Bonífia, ela se via muito apreensiva. Sabia que a mãe os separaria de alguma forma, pois aceitar o namoro dos jovens era aceitar o distanciamento da filha e o compartilhamento dos poderes que a mãe tanto protegia e mantinha em segredo.

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Numa manhã, Manezinho se levantou e decidiu colocar a melhor roupa que tinha, colher algumas flores que havia na cerca do casebre e ir à casa de Bonífia. Tinha o intuito de pedir Bonífia em namoro, mesmo sabendo que a mãe da jovem não o via com bons olhos. A mãe estava na porta da casa, como se já previsse a chegada do rapaz. Quando ele já se aproximava, antes que pudesse sequer iniciar o pedido de namoro, a mãe ordenou que Manezinho se afastasse de Bonífia, proibindo-o de chegar perto da moça novamente.

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Manezinho ficou arrasado, pois sentia que nunca mais veria Bonífia novamente. Nos dias que se seguiram, ele foi até a beira do rio, mas Bonífia não apareceu. Ele sequer podia pedir desculpas à jovem por ter decidido ir pedir a mão dela em namoro mesmo com os alertas que ela havia feito, de que conversar com a mãe era em vão. Manezinho achava estranho tanto cuidado vindo da mãe, a ponto de impedir que a filha se aproximasse de qualquer pessoa que fosse.

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Os dias se passavam, e todos os dias Manezinho ia à beira do rio, na esperança de se encontrar com Bonífia. Um belo dia, enquanto ele aguardava sentado à beira do rio, Bonífia apareceu. Ela havia conseguido sair de casa por um instante. Os jovens não podiam mais ficar separados e, sabendo que a mãe de Bonífia não aceitaria o namoro, decidiram fugir para ficarem juntos. Manezinho, ao sugerir a fuga, convidou a jovem para ir com ele para o reino de seu pai, num lugar muito distante, onde poderiam viver felizes e alcançar todos os planos que viessem a traçar. Bonífia ficou encantada com a ideia, com o fato de poder compartilhar momentos felizes com Manezinho. Eles combinaram a fuga para o dia seguinte, antes do nascer do sol.

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No dia seguinte, Bonífia levantou antes do nascer do sol e pegou uma maleta que guardava no fundo de um baú que havia em seu quarto. Nessa maleta, havia uma varinha mágica, um objeto que a mãe nunca lhe havia permitido usar. Essa varinha deveria ser mantida em casa e, assim como Bonífia, nunca poderia deixar a família. Como a moça estava certa de que deixaria a casa dos pais, decidiu levar consigo aquela varinha mágica. O que ela não sabia é que aquela varinha estava na família havia séculos e que a mãe tinha os mesmos poderes. Era um segredo que a mãe nunca havia dito à filha. Bonífia decidiu usar os poderes na fuga. Um deles era conseguir prever o acontecimento das coisas e, assim, ter a chance de fazer com que tudo corresse como ela desejava. Assim, prevendo que a mãe descobriria a fuga no raiar do dia, Bonífia teve uma ideia. Foi até o fogão a lenha que havia na cozinha, deu três cuspes dentro do fogão e deixou a casa, acompanhada por Manezinho. 24


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O dia amanheceu. Ao acordar, a mãe percebeu que a casa ainda estava silenciosa. Àquela hora, Bonífia já deveria estar na cozinha, preparando o café da manhã. Não ouvindo nenhum movimento, a mãe gritou do quarto: — Bonífia! Bonífia! E, da cozinha, veio a resposta: — Senhora, minha mãe! A mãe não sabia, mas a resposta vinha do fogão, do primeiro cuspe dado por Bonífia. A mãe, então, comentou com o marido: — Bonífia já está na cozinha preparando o nosso café. Mas um silêncio permanecia em toda a casa.

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A mãe gritou pela segunda vez: — Bonífia! Bonífia! E, pela segunda vez, veio da cozinha a resposta: — Senhora, minha mãe! Passou mais um tempo, e nada de o café ficar pronto. A mãe gritou pela terceira vez: — Bonífia! Bonífia! E, pela terceira vez, veio da cozinha a resposta: — Senhora, minha mãe!

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Bonífia havia dado os três cuspes no fogão para que eles atendessem aos chamados da mãe. Dessa forma, a mãe pensaria que a filha estava na cozinha, o que daria o tempo suficiente para que a jovem e Manezinho pudessem fugir. A mãe, então, gritou pela quarta vez: — Bonífia! Bonífia! Porém, dessa vez, nenhuma resposta veio da cozinha. A mãe, então, preocupada, decidiu ir à cozinha para verificar o que estava acontecendo. Não encontrando a filha, começou a procurar pela casa, mas também não a viu. Então, percebeu que Bonífia não estava em casa, havia fugido na companhia de Manezinho. Na casa onde a família morava havia três cavalos — Pensamento, Corta-Vento e Rompe-Ferro. A mãe pediu ao marido que arriasse o Pensamento, fosse atrás de Bonífia e trouxesse a filha de volta. O marido montou no Pensamento e foi à procura da jovem e de Manezinho.

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Já a alguns quilômetros de distância do vilarejo, Bonífia pressentiu que, àquela altura, a mãe havia dado pela sua falta em casa e enviado o pai a procurá-la. Teve, então, uma ideia: com a varinha mágica, transformou Manezinho em um beija-flor e ela mesma, em uma linda roseira. O pai, ao chegar a determinado local da estrada, deparou-se com uma roseira repleta de rosas e um beijaflor beijando as flores. Não encontrando a filha, retornou. Ao chegar em casa, relatou à esposa: — Eu, montado no Pensamento, não encontrei nada, apenas um beija-flor beijando as rosas de uma linda roseira.

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A mãe, então, lhe disse: — Oh, meu marido. Se você tivesse trazido uma pétala daquela rosa, teríamos Bonífia de volta à nossa casa. A mãe, mesmo não sabendo como, havia pressentido que a filha usaria os poderes da varinha mágica para se esconder do pai. Pediu ao esposo que voltasse a procurar a roseira e o beija-flor, mas, dessa vez, com o cavalo Corta-Vento. O pai arriou o Corta-Vento e partiu à procura da filha. Bonífia, prevendo que o pai voltaria a procurá-la, disse a Manezinho: — Meu pai está voltando. Vou me transformar em uma igreja e transformarei você em um padre.

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O pai, ao chegar a determinado local da estrada, já não encontrou a roseira nem mesmo o beija-flor. À sua frente, o pai avistou uma igreja e um padre parado à porta. O pai perguntou ao padre: — A benção, senhor padre. O senhor por acaso viu uma moça e um rapaz passando por aqui? — Dominus vobiscum. — Disse o padre, pronunciando uma frase que, em latim, significa “O Senhor esteja convosco”. O pai perguntou novamente: — O senhor não viu uma moça com um rapaz passando por aqui? O padre repetiu: — Dominus vobiscum.

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O pai, sem entender o que o padre dizia e por não encontrar a filha, voltou pra casa e, ao chegar, relatou à esposa, muito enraivecido, o que encontrou pelo caminho. Ele informou que, montado no Corta-Vento, não havia encontrado a roseira, mas, sim, uma igreja e um padre. Disse que havia perguntado ao padre sobre a filha, no entanto, não havia entendido uma palavra do que o padre falava.

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A mãe, então, lhe disse: — Oh, meu marido. Se você tivesse trazido um tijolo dessa igreja, teríamos Bonífia de volta à nossa casa. A mãe havia previsto que a filha faria alguma magia na tentativa de se esconder, novamente, do pai. Pediu ao marido que voltasse à procura da filha, mas agora com o cavalo Rompe-Ferro. Ela já estava aflita por não ter Bonífia de volta, mas confiava que, dessa vez, o esposo a encontraria.

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Bonífia, prevendo que o pai voltaria novamente a procurá-la, disse a Manezinho: — Meu pai está voltando. Dessa vez, vou me transformar em uma lagoa e transformarei você em um cisne. O pai, ao chegar a determinado local da estrada, deparou com uma linda lagoa e um belo cisne, mas, não encontrando nem a igreja nem o padre, retornou para casa. Ao chegar, relatou para a esposa que, montado no Rompe-Ferro, não havia encontrado nada pelo caminho, que não achou a igreja, mas viu no caminho uma lagoa e um cisne. A mãe lhe disse: — Oh, meu marido. Se você tivesse trazido um pouco da água daquela lagoa, teríamos Bonífia de volta à nossa casa.

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A mãe, já muito nervosa por não ter a filha consigo, foi à procura de Bonífia, montada no cavalo Pensamento. Fez o caminho por onde o esposo havia passado. Pelo trajeto, a mãe não encontrou roseira, igreja ou lagoa, mas, ao chegar próximo ao mar, avistou a filha e Manezinho, em um barco, já ao longe. A mãe gritou: — Volta, Bonífia, volta o barco pra trás!

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Manezinho lhe respondeu, cantando: Não volto o barco pra trás, nem pra lá quero olhar, lá no reino de meu pai, com Bonífia, vou casar. A mãe, muito nervosa, voltou a gritar: — Volta, Bonífia, volta o barco pra trás! Manezinho, mais uma vez, respondeu cantando: Não volto o barco pra trás, nem pra lá quero olhar, lá no reino de meu pai, com Bonífia, vou casar.

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Vendo que Bonífia não voltaria, a mãe, fazendo uso de seus poderes, rogou uma maldição à filha: Então, Bonífia, já que você não vai voltar, você há de viver cem anos catando pedrinha e jogando no mar.

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Ao chegar do outro lado do mar, Bonífia não conseguiu seguir com Manezinho para a casa da família dele. Acatando as ordens da mãe, ela não podia sair da beira do oceano e se pôs a catar pedrinhas e jogá-las no mar. Bonífia se pôs a cumprir o que a mãe lhe havia imposto. Nem mesmo a varinha mágica era capaz de quebrar aquela maldição.

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Vendo a situação, Manezinho aceitou a condição em que Bonífia se encontrava e ao lado dela ficou. Os dias passavam. Manezinho ia à casa da família, buscava comida e tudo o mais de que ele e Bonífia precisavam, e ali passavam o tempo. Manezinho fazia o que podia para convencer a amada a ir com ele para o reino de seu pai, mas, por causa da maldição, ela tendia a acatar a ordem imposta pela mãe, de catar pedrinhas e jogá-las no mar.

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Os anos se passavam, e Manezinho começou a ir para a casa da família e não retornar ao encontro de Bonífia. A volta para a beira do mar começou a acontecer cada vez com menos frequência, até que um belo dia Manezinho não mais voltou. Bonífia presumiu que Manezinho, já cansado daquele infortúnio, havia se esquecido dela. A jovem não o culpava pela decisão que havia tomado, de não mais voltar para a beira do mar, pois a sina era dela, ela é quem deveria cumpri-la, e não ele. Assim, Bonífia se viu só, a beira-mar.

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Certo dia um fazendeiro, ao passar com seus bois pela beira-mar, observou aquela jovem tão triste, a catar pedrinhas e jogá-las no mar. Percebendo a solidão da moça, decidiu deixar um dos boizinhos para lhe servir de companhia. Bonífia ficou extremamente grata ao fazendeiro ao receber como presente aquele lindo animal. O boizinho passou a ser o fiel companheiro da jovem. Numa manhã de domingo, o céu estava azul-turquesa. Não havia uma nuvem sequer. Os pássaros gorjeavam como se dissessem algo a Bonífia. De repente, ao se aproximar do mar para jogar uma pedrinha, a jovem se deparou com um lindo peixe dourado. Ao olhar para o peixe, uma luz incandescente lhe tomou a alma, e o amor que Bonífia sentia por Manezinho veio à tona. O peixe fora enviado pela mãe de Bonífia, arrependida do que havia feito à filha, libertando-a daquela maldição e dando a ela espaço para que assumisse as próprias vontades e quereres.

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Eis que Bonífia, então, decidiu ir ao encontro de Manezinho. Fazendo uso da varinha mágica, descobriu o caminho que a levaria ao reino onde o rapaz vivia. Bonífia montou no boizinho e partiu na direção indicada pela varinha. Porém, além do caminho até Manezinho, a varinha mágica também lhe trouxe uma imagem: havia uma grande festa, com muitos convidados, e Manezinho estava prestes a se casar. A jovem se entristeceu, mas prosseguiu na viagem até aquele reino para encontrar com o seu grande amor, ainda que pela última vez. No trajeto, montada no boizinho, Bonífia se pôs a cantar: Anda, anda, meu boizinho, não se esqueça de andar, não faz como Manezinho, que esqueceu Bonífia lá no mar. E foi repetindo essa canção enquanto ia ao encontro de Manezinho.

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Ao chegar ao vilarejo, Bonífia escutou, ao longe, o acontecer da grande festa. Ao se aproximar, a moça percebeu que possivelmente se tratava de uma cerimônia religiosa. Era mês de junho, e acontecia naquele reino a festa do santo padroeiro. Muitas eram as pessoas ali reunidas. Havia barraquinhas, fogos e foguetinhos de bengala, música… Em frente à igreja, podiam-se ver alguns violeiros, e havia homens e mulheres dançando em uma grande roda. Eles dançavam uma quadrilha. Ao centro, era possível ver Manezinho e uma jovem moça vestida de branco. Eles faziam o papel de noivos. Bonífia se encheu de felicidade, pois o casamento que havia sido mostrado pela varinha mágica era apenas uma encenação, parte da dança, da quadrilha. Naquele momento, a jovem, montada no boizinho, aproximou-se e pôs-se novamente a cantar a canção: Anda, anda, meu boizinho, não se esqueça de andar, não faz como Manezinho, que esqueceu Bonífia lá no mar. 48


Os violeiros cessaram as violas, os casais pararam de dançar a quadrilha, e Manezinho, ouvindo a canção ao longe, reconheceu aquela voz. Era, sim, a voz de Bonífia. Ele não podia acreditar nos próprios olhos. Tomado por um impulso, seguiu em direção a Bonífia. Fazia muitos anos que os dois não se viam, já não eram os mesmos jovens de anos atrás, mas eles tinham o mesmo brilho nos olhos, a esperança de um dia se reencontrarem não havia se perdido. Ali, à frente de Manezinho, estava Bonífia, a sua bela amada, totalmente livre daquela maldição que um dia havia sido lançada sobre ela. Manezinho se pôs a chorar ao ver a jovem. O rapaz não havia esquecido Bonífia no mar e se arrependia muito por não ter conseguido lutar contra a situação imposta à moça no passado. A maldição o afastou de Bonífia, mas não foi capaz de minar o amor que ele sentia por ela.

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As pessoas que estavam naquela festa pararam, olhando para aquela cena. Era nítido o olhar apaixonado de um para o outro. Era verdadeiro. Manezinho, então, se voltou para aquelas pessoas e disse: Lá, distante, Bonífia encontrei, mas não consegui com ela ficar, por uma maldição, eu a perdi, de pedrinha em pedrinha, pra dentro do mar. Hoje, com Bonífia, de novo topei, bem onde sempre quis com ela estar. Volto meu barco todinho pra trás, olhando pra ela e pra mais cem anos ficar.

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Manezinho não havia se casado. Era com Bonífia que ele sempre quis estar. A jovem desceu do boizinho enquanto todas aquelas pessoas voltavam a celebrar, festejando o amor dos dois. Ela, então, olhou-o fixamente e disse: — Naquele momento, a beira-mar, não pude dar vez ao meu querer. Mas agora, livre daquela maldição, aqui estou. Manezinho, percebendo o pulsar nas palavras e no olhar de Bonífia, abraçou-a fortemente. Apesar de toda a tristeza pela qual haviam passado, o que os jovens sentiam um pelo outro não havia se apagado. A quebra da maldição significava que Bonífia havia conseguido assumir o que ela realmente queria e podia tomar as próprias decisões, escolhendo viver aquela felicidade junto a Manezinho naquela terra distante.

Fim 52


Sobre o Autor Gláucio Geraldo Moura Fernandes é natural de Presidente Bernardes/MG, cidade também conhecida por seu antigo e estimado topônimo, Calambau, e vive hoje em Belo Horizonte onde é professor de Língua Inglesa no Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFETMG). Possui Graduação em Letras pela Universidade Federal de Viçosa, Mestrado e Doutorado pela Universidade Federal de Minas Gerais. Em 2020 resolveu dar voz às suas memórias de infância e se aventurar na escrita de seu primeiro livro infantojuvenil “O Encantamento de Bonífia”. A escrita sempre chamou sua atenção, talvez pelo fato de que transpor para o papel o que se pensa seja uma forma de tornar visível aquilo que se sente.

Sobre a Ilustradora Mineira de Belo Horizonte, publicitária de formação, especialista em Marketing Estratégico e em Livros para Infância, mestre em linguística aplicada, e artista plástica desde que se entende por gente, Mariana Tavares começou a ilustrar em 2018. De lá para cá, já são mais de 40 livros publicados como ilustradora, sendo um deles, “A menina que não se encaixava”, também como autora. Saber contar com imagens o que as palavras não dizem é o seu maior desafio, captar a essência dos textos e transformar em arte.


Este livro foi produzido nas tipografias Paciencia e Nature Gleen durante o inverno de 2021.



Manezinho convida Bonífia a ir com ele para o reino de seu pai, e em meio a essa viagem, muita magia acontece. Os jovens estabelecem vínculos, transformam e são transformados pelo ambiente que os cerca. No caminho dos jovens surgem algumas pedras, situações que os fazem mudar os planos. O que será que acontece com Manezinho e Bonífia?


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