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Teoria e experimentação em cenografia Trabalho final de graduação L. Rolim Cabral
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Teoria e experimentação em cenografia Trabalho final de graduação Leticia Rolim Cabral Professor orientador Paulo Roberto Masseran Unesp - faac - daup Bauru jan 2018
Agradecimentos Aos pais, Meire e Carlos. Pois toda e qualquer conquista na minha vida só foi possível graças ao seu amor e amparo constantes. Aos dois, não há palavras para exprimir minha gratidão. Ao professor orientador Paulo Roberto Masseran e ao co-orientador Alexandre Suárez de Oliveira pelos direcionamentos. A Beatriz Avellar por ter me confiado o projeto pelo qual tem tanto carinho e a Luisa Juppe pela dedicação. A Luisa Zucchi pelas incríveis fotos, a Aline Sayuri e Giovanni Peixoto, pela parceria que trouxe à vida A Rainha. A Joyce Roma, Raphael Hubner e demais companheiros da Oficina Cultural Oswald de Andrade pela troca de conhecimentos. Aos amigos sempre presenres, principalmente ao Alecrim e a Pardinho por dividirem comigo esta caminhada. A Estela e Leite pelas opiniões valiosas. A Leticia Sakomura por me receber sempre de braços abertos em Bauru e às amigas designers pelas dicas. Às companheiras e companheiros do MuBE que me estimularam a crescer em 2017.
Sumário 9
REFERENCIAL TEÓRICO
ESTUDOS DE CASO
INTRODUÇÃO
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A CENOGRAFIA
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MUDANÇA DE PARADIGMA: O NASCIMENTO DO TEATRO MODERNO
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O teatro wagneriano Naturalismo Simbolismo A Bauhaus
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DEPOIS DA MODERNIDADE
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Teatro engajado Teatro experimento
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A CENA TEATRAL CONTEMPORÂNEA
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Teatro pós-dramático Relações espetáculo-espaço
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QUEER.DOC
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Premissa Processo criativo Planejamento e implementação
53 62 68 82
A RAINHA Premissa Processo criativo Planejamento e implementação Proposta final
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CONCLUSÕES
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BIBLIOGRAFIA
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Cena de A Rainha
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Introdução A cenografia teatral é uma área de expressão criativa referente à elaboração de cenários para espetáculos. Possuindo um longo histórico, quase tão antigo quanto o teatro em si, essa forma artística modificou-se de inúmeras maneiras ao longo dos séculos, tendo hoje uma abrangência que extrapola seu significado original: está ligada atualmente à concepção de elementos visuais que coordenam a cena como um todo, havendo se tornado uma arte híbrida em estreita conversa com a direção teatral. Nas últimas décadas, a cenografia tornou-se um campo fértil para experimentação com novas mídias e maneiras de investigar os limites do criar cênico. Este projeto tem como objetivo explorar tal linguagem, conectando a teoria a exercícios práticos de encenação. Através destes exercícios, pretende-se compreender a dimensão dos desafios presentes na montagem de um espetáculo independente na prática, incluindo suas limitações e potencialidades inventivas. Intenciona-se também que o projeto forneça registro sobre o processo criativo da concepção de uma cenografia - processo sobre o qual há, no geral, uma carência de documentação. Na primeira parte do caderno apresenta-se o referencial teórico utilizado, alusivo à cenografia em seu caminho da modernidade até as práticas das últimas décadas. Posteriormente, são analisados dois estudos de caso. Espera-se que o trabalho possa fornecer um breve panorama do modo contemporâneo de fazer cenografia e de suas origens mais recentes, tal como trazer a perspectiva de uma abordagem prática que contribua para o crescimento e discussão acerca dessa forma expressão artística.
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A cenografia
A palavra cenografia tem origem nos vocábulos grego skenographia e latino scenographia, traduzidos como desenho ou pintura de cena (URSSI, 2006). Pode ser utilizada no contexto de cinema, televisão, performances musicais ou eventos, dentre outras possibilidades, mas refere-se, neste trabalho, conforme seu sentido original, à criação de cenários para espetáculos teatrais. Esta definição simples a partir da etimologia traz, no entanto, a carga histórica de uma prática teatral que remonta no ocidente à antiguidade clássica, e cujos desdobramentos em seus mais de vinte e seis séculos de existência parecem ser tão amplos quanto o número de definições possíveis para a palavra cenografia hoje. Serroni (2013) a define elegantemente como a “dramatização do espaço, sempre complementada pela atuação”. Em sua obra “Cenografia Brasileira” o autor inclui também a explicação da cenógrafa neozelandesa Dorita Hannah, que fala em “um desenho de papel dinâmico que acontece no palco, orquestrando o ambiente sensorial e visual da performance”. Trata-se do empenho em compor 10
a narrativa visual do espetáculo teatral. Serroni, porém, não deixa de ressaltar o fato de que seria necessária a síntese de dezenas de definições para esboçar com precisão essa linguagem. A investigação realizada acerca do assunto, presente nos próximos capítulos, busca destacar momentos relevantes na evolução da cenografia desde o nascimento do teatro moderno até os dias atuais v, paralelamente à evolução da arte teatral em si, objetivando traçar um panorama para embasar a prática de criação cenográfica.
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“Cenografia é a mediadora visual da troca entre intelecto, espetáculo e público” Yannis Thavoris
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Território tênue Loïe Fuller em sua Danse Serpentine
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Mudança de paradigma: O surgimento do teatro moderno transição entre os séculos XIX e XX. Optou-se aqui por sublinhar alguns expoentes representativos dos caminhos do teatro moderno até a contemporaneidade; contudo, não se deve pensar nesta trajetória como uma série linear de inovações, na medida em que a ruptura que caracteriza o teatro moderno consiste num processo no qual as mesmas barreiras eventualmente devem ser quebradas diversas vezes – o que ocorre no caso das experimentações com a eletricidade.
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O surgimento do teatro moderno
Sendo o final do século XIX uma época que presenciou significativo avanço tecnológico, o teatro não poderia deixar de ser influenciado e transformado pelas mudanças que tais avanços acarretaram. Roubine situa neste período – finais do século XIX e início do século XX – o nascimento do teatro moderno, caracterizado pelo surgimento da figura do encenador. Dois fenômenos, segundo o autor, foram os principais responsáveis pelo acontecimento: a noção de dissolução de fronteiras entre países - no que se refere a teorias e práticas artísticas, o que ocorre sobretudo com a disseminação das correntes naturalista e simbolista - e a recém descoberta iluminação elétrica (ROUBINE, 1998), elemento que viria a se tornar chave não somente na cenografia, mas na concepção visual do espetáculo. O recurso chega a ser protagonista nas apresentações das danças serpentinas de Loïe Fuller, na
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O surgimento do teatro moderno
O teatro wagneriano
Deve-se considerar a importância da luz elétrica não só para a encenação, mas também ao se pensar a reformulação do edifício teatral. Richard Wagner, célebre compositor alemão, apoiou-se na possibilidade que a iluminação elétrica trazia de escurecer a plateia, monopolizando assim a atenção do espectador para o palco; na sua concepção de “obra de arte total” – Gesamtkunstwerk – pensou a unidade entre música, atuação, pintura e arquitetura, chegando a formular uma ideia de edifício teatral que foi concretizada no Festpielhaus (1876) em Bayreuth, na Alemanha, através do projeto de Otto Brückwald (URSSI, 2006). Criou-se o fosso para orquestra, aumentou-se a distância entre palco e plateia, e esta última tornou-se um anfiteatro de forma trapezoidal, eliminando os balcões do teatro à italiana, assim democratizando a visão que o público teria do espetáculo (MANTOVANI, 1989). Interior do Festpielhaus, foto de 1934
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Planta e corte do Festpielhaus
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O surgimento do teatro moderno
As mudanças idealizadas por Wagner representam o espírito de ruptura da época, e a presença de elementos do teatro wagneriano em edifícios contemporâneos mostra o quão significativa foi sua contribuição às artes cênicas. Roubine (1998) se dá conta de tal momento de ruptura quando aponta suas consequências no modo de encenar: o autor considera André Antoine o primeiro encenador - figura que considera os elementos da montagem teatral em sua totalidade - sendo o primeiro a assinar uma produção. Assim como a visão wagneriana pensou o teatro de maneira ampla ao tratar da relação entre edifício teatral e espetáculo, o encenador passa a ser o profissional com um olhar global que compreende texto, atuação, espectador e espaço.
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O surgimento do teatro moderno
O Naturalismo
A respeito do tipo de espetáculo encenado por Antoine, é notável sua concordância com os preceitos do Naturalismo - corrente que Roubine situa como representante de uma herança do passado ao buscar a mimese da realidade. “Se Antoine é moderno na sua concepção e na sua prática de teatro, ele não o é tanto por adotar como referência a verdade de um modelo que se trataria de captar e reproduzir” (ROUBINE, 1998, p. 25, grifo do autor). Presente em todas as linguagens artísticas, o Naturalismo surge alinhado ao espírito cientificista e positivista da época, em seu ensejo de compreender, mesurar e representar o mundo (MANTOVANI, 1989). O Théâtre-Libre, fundado por Antoine em 1887 serviu como palco para a experimentação de novos autores e cenógrafos. Estabeleceu-se uma nova relação de precisão entre cenário e espetáculo, pois o primeiro tentaria não mais invocar a ideia de determinado lugar, mas ser de fato o ambiente onde transcorre a vida das personagens: de acordo com tal premissa, um mesmo cenário não pode ser utilizado para peças diferentes, pois tratase de uma localidade específica. A busca pela coincidência fotográfica entre realidade e representação levou os naturalistas a valorizar a pesquisa histórica; Constantin Stanislavski, diretor russo, foi um dos grandes nomes dessa corrente e inovou ao criar o que hoje convencionou-se chamar de laboratório – no caso de uma atriz que representa uma moradora de rua, por exemplo, o laboratório consiste em visitar o local em que habitam essas pessoas, presenciando seu modo de viver para tentar transpô-lo aos palcos.
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É interessante ressaltar que Roubine enxerga, na procura naturalista pelo real, semelhança a uma “utopia demiúrgica que se propõe a provar que dominamos o mundo, reproduzindo-o” (ROUBINE, 1998, p. 25), realizando as pretensões do capitalismo industrial; e aponta o movimento como propulsor para o fim da representação figurativa, ao concretizar o sonho da “coincidência fotográfica entre a realidade e sua representação” (ROUBINE, 1998, p.24). Ao mesmo tempo, identifica a atitude renovadora de Antoine em sua denúncia às convenções teatrais anteriores, usadas como um estilo que se adota e depois se descarta, numa prática cristalizada por obediência a certas convenções. A postura do diretor permite uma definitiva tomada de consciência, fundamental para as experimentações dramáticas posteriores.
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O surgimento do teatro moderno
Montagem de Tio Vânia, de A. Tchekhov, dirigida por Stanislavski
O surgimento do teatro moderno
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O Simbolismo Diametralmente oposto ao Naturalismo em suas concepções estéticas, o Simbolismo é a outra principal corrente teatral a emergir com o nascimento da encenação moderna, ocupando o território não explorado pelo Naturalismo: aquele alusivo à “verdade do sonho, a materialização do irreal, a representação da subjetividade” (ROUBINE, 1998, p.27). O Théâtre d’Art, fundado por Paul Fort em 1890, colocou o Simbolismo nos palcos em uma reação às tendências naturalistas: “os cenários devem ser simples e deverão ser completados pela imaginação do espectador” (FORT, 1891, apud MANTOVANI, 1989, p. 26). A recusa da limitação ilusionista foi representada na suíça por Appia, em Londres por Craig, na Alemanha 18
por Behrens e Max Reinhardt, em Moscou por Meyerhold. Aqui, destaca-se o papel da luz elétrica na criação; uma cenografia realizada, potencialmente, apenas a partir de luzes implicava na possibilidade de abolição de painéis pintados e uma nova relação da atriz e do ator com a tridimensionalidade do palco. Em 1892, Adolphe Appia, diretor teórico e cenógrafo suíço, cria esboços e maquetes para Das Rheingold (O Ouro do Reno) e em 1896, para o Parsifal, óperas de Wagner. O emprego que faz de luzes e sombras para criar profundidade e distância constitui, para Berthold (2001), uma tarefa até então inédita para o teatro. Deve-se relevar em sua obra a importância que confere ao movimento corporal como elemento do espetáculo, influenciado pelos trabalhos sobre movimento e rítmica de JaquesDalcroze (URSSI, 2006). A inserção de escadas
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e múltiplos planos no palco, os quais poderiam ser percorridos, estão presentes em sua obra de forma a explorar as profundidades e alturas do espaço cênico.
À esq.: Cenário de Appia para Orpheu
É interessante ressaltar que Roubine enxerga, na procura naturalista pelo real, semelhança a uma “utopia demiúrgica que se propõe a provar que dominamos o mundo, reproduzindo-o” (ROUBINE, 1998, p. 25), realizando as pretensões do capitalismo industrial; e aponta o movimento como propulsor para o fim da representação figurativa, ao concretizar o sonho da “coincidência fotográfica entre a realidade e sua representação” (ROUBINE, 1998, p.24). Ao mesmo tempo, identifica a atitude renovadora de Antoine em sua denúncia às convenções teatrais anteriores, usadas como um estilo que se adota e depois se descarta, numa prática cristalizada por obediência a certas convenções. A postura do diretor permite uma definitiva tomada de consciência, fundamental para as experimentações dramáticas posteriores. O surgimento do teatro moderno
Appia possui papel de destaque na renovação do teatro moderno, assim como Edward Gordon Craig, ator, diretor, cenógrafo e artista plástico inglês; ambos inovaram ao destacar a função psicológica do espaço e da luz. Em seus croquis e maquetes nota-se um esvaziamento de elementos decorativos no palco; volumes, planos, luz, espaço e movimento bastam para suscitar reações do público. Berthold (2001) afirma que Craig concebeu seus cenários não apenas como iluminador, mas como arquiteto: com os imponentes biombos móveis de sua montagem de 1911 de Hamlet em Moscou, superou uma monumentalidade vazia ao enfatizar as ações da atriz e do ator e proporcionar ao mesmo tempo aberturas cambiantes para a luz, esculpindo o espaço em sua tridimensionalidade. Craig, montagem de Hamlet em 1912
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A interpretação dos signos no palco simbolista demanda a o engajamento da imaginação do público, convidado a criar e completar significados. A respeito do modo como o simbolismo utiliza estes elementos para repensar a própria natureza do espetáculo, Roubine afirma:
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O que o palco moderno deve essencialmente ao espetáculo simbolista é a redescoberta da teatralidade. A tendência ilusionista, que prevalecia desde o século XVIII, preocupava-se antes de mais nada em camuflar os instrumentos de produção da teatralidade, para tornar sua magia mais eficaz (ROUBINE, 1998, p.35).
Assim, procura-se expor elementos de teatralidade tal como são, em lugar de buscar camufla-los. Esta atitude será posteriormente intensificada por diretores como Brecht, que busca expor a espinha dorsal do espetáculo, porém operando a partir de intenções essencialmente políticas. No contexto das transformações ocorridas na passagem do século XIX para o século XX, naturalismo e simbolismo tiveram papel fundamental na exploração de campos opostos do território da teatralidade, contribuindo para a renovação da arte cênica. “A interrogação essencial que emerge do debate entre o naturalismo e o simbolismo é na verdade a questão basilar de toda encenação, a questão da qual nasce literalmente a figura do encenador: o que é um espetáculo teatral?” (ROUBINE, 1998, p. 39, grifo nosso). Segundo o autor, questões sobre a natureza do teatro eram costumeiramente formuladas por escritores e intelectuais, embora certamente profissionais do teatro indagassem sobre sua prática. Contudo, é a partir da mudança de paradigma do teatro moderno que se passa a pensar em termos de encenação e do profissional encenador. Esboço de Craig para Hamlet
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A Bauhaus
Avançando algumas décadas, escolheu-se aqui destacar a contribuição da Bauhaus na cena teatral, por sua importância tanto na inovação em cenografia e figurino quanto pelas propostas acerca da reformulação do espaço e do edifício cênico. A escola, em seu período de existência de 1919 a 1933, dedicou-se à pesquisa das artes em diversas frentes, do desenho industrial ao urbanismo, envolvendo também arquitetura, pintura, escultura e teatro - fundada por Walter Gropius num cenário europeu pós Primeira Guerra que presenciara a experiência das vanguardas artísticas do início do século XX (MANTOVANI, 1989). A renovação estética que acompanhou as artes plásticas não deixou de estar presente nas encenações de vanguarda; na Bauhaus, o Balé Triádico de Oskar Schlemmer, pintor, coreógrafo e professor, coloca o corpo da atriz e do ator em evidência e explora os limites da movimentação a partir de figurino (URSSI, 2006). Explora-se o uso rítmico da cor e o contraste de formas geométricas. Gropius, igualmente, coloca a intérprete no centro do espetáculo, e interessa-se pelo corpo inserido no espaço. 21
O surgimento do teatro moderno
Balé Triádico de Oskar Schlemmer
TerritĂłrio tĂŞnue
Montagem de Josef Svoboda
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Depois da modernidade
O pessimismo já presente na vanguarda dadaísta exacerbase num período marcado pela bomba atômica, pelo consumo da sociedade pós-industrial, pela vida transformada em espetáculo, prevista por Guy Debord1 (MANTOVANI, 1989). Continuam a surgir questionamentos em múltiplos campos da criação cênica, sucedendo as plurais experiências da modernidade. Em um século de intensas transformações, sucederam-se rapidamente formas de estilo e jogo teatral: “naturalismo, simbolismo, expressionismo, teatro convencional e teatro liberado, tradição e experimentação, drama épico e do absurdo, teatro mágico e teatro de massa” (BERTHOLD, 2001 p.452). Bertolt Brecht – em
seu pensamento político antecedido por Erwin Piscator – assim como Antonin Artaud, Judith Malina e Julian Beck e seu Living Theatre e Peter Brook foram alguns expoentes sublinhados a respeito deste período. transição entre os séculos XIX e XX. Optou-se aqui por sublinhar alguns expoentes representativos dos caminhos do teatro moderno até a contemporaneidade; contudo, não se deve pensar nesta trajetória como uma série linear de inovações, na medida em que a ruptura que caracteriza o teatro moderno consiste num processo no qual as mesmas barreiras eventualmente devem ser quebradas diversas vezes – o que ocorre no caso das experimentações com a eletricidade.
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1 Para Debord, o espetáculo é o conjunto de relações sociais mediadas pelas imagens. Em 1967, o autor discorre em Sociedade do Espetáculo sobre o processo de espetacularização do mundo polarizado em esferas econômicas opostas. Depois da modernidade
É prática comum situar o fim da modernidade em meados do século XX, após a Segunda Guerra Mundial. Inicia-se a era do pós – a qual, na arquitetura e em outros movimentos artísticos denominouse pós-moderna, embora não tenha se convencionado usar tal nomenclatura no teatro.
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Teatro engajado
Depois da modernidade
Embora cronologicamente pertencente à modernidade, o teatro – sobretudo o edifício teatral - político idealizado por Erwin Piscator surge como importante ponto de partida para experiências posteriores de teatro engajado. Para Piscator, diretor alemão fundador do Teatro Proletário (1920/21), o teatro é política e deve ser didático (MANTOVANI, 1989). Por didática, entende-se uma experiência teatral na qual são levantados questionamentos sociais, mantendo uma relação pedagógica com o público. Suas tendências políticas marxistas serão compartilhadas por Brecht, bem como a ligação de sua obra ao dadaísmo, que se observará também em Artaud, em décadas posteriores. Tal vocação política garante que os cenários preconizados por Piscator não sejam um “elemento decorativo, mas um elemento que mostra uma situação social, ensina, tem uma função didática e ao mesmo tempo é um elemento dramático” (MANTOVANI, 1989, p. 45). Partindo das premissas de transformação tecnológica acompanhando a transformação social, Gropius projeta para Piscator o Total Theatre (Teatro Total) em 1927, o qual nunca foi executado devido a limitações construtivas, mas representa um marco na reflexão sobre o lugar teatral. O Teatro Total busca abolir a separação entre cena e plateia - o espaço deveria ser compartilhado por todos numa arte para o povo, tal como proclamara Craig. Acerca deste estado de mudança relacionado a concepções arquitetônicas: A forma do palco dominante em nossa época é a forma sobrevivente do absolutismo, é o teatro da corte. Com a sua divisão em plateia, frisas, camarotes e galerias, ele reproduz as camadas sociais da sociedade feudal. Essa forma tinha que entrar em contraste com o Teatro no momento em que a dramaturgia ou então as condições sociais sofressem uma mudança (PISCATOR, 1968, apud MANTOVANI, 1989, p. 56).
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O teatro polivalente possuía uma flexibilidade em suas funções múltiplas, contando com dispositivos cênicos e palcos giratórios, tudo para garantir uma experiência imersiva na qual todo o edifício é espaço de representação. O espetáculo, didático, seria dirigido às massas. Water Gropius, Teatro Total, 1927
Há uma evidente congruência entre os raciocínios de Piscator e Bertolt Brecht - diretor, dramaturgo e teórico alemão, com quem colaborou. O princípio do didatismo para fins políticos permeia também a obra de Brecht no Teatro Didático e no Teatro Épico – o primeiro esquematizado nos “Dramas didáticos” (1928/33) e o segundo em seus “Escritos teatrais” – sendo a direção considerada fator chave no teatro revolucionário (BERTHOLD, 2001). O foco não é despertar as emoções do espectador, mas antes leva-lo a tomar consciência de acontecimentos sociais, despertando sua inteligência crítica. A fim de que não existam efeitos ilusionistas no palco, Brecht procura expor a maquinaria para que a plateia esteja ciente de como são realizados os efeitos de cena (MANTOVANI, 1989), distanciando-se o máximo possível dos ideais miméticos naturalistas. Acerca de tal característica expositiva: 25
Depois da modernidade
A figura acima ilustra três tipos de tipologias possíveis no edifício de Gropius: a primeira da esquerda para a direita, a tipologia frontal, viabiliza um teatro à italiana, com caixa cênica e urdimento; na segunda, o proscênio avança em direção à plateia configurando um teatro Elisabetano; na última, o palco é trazido ao centro da plateia numa tipologia de arena (ZILIO, 2010).
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Depois da modernidade
O cenário [...] não é crucial para a ação. Brecht está empenhado em fazer derivar de um ato individual a validade geral. O caráter “exposicional” de seu teatro é um terminus que Brecht insistiu em reiterar. Refere-se a uma forma dramatúrgica específica, ao princípio do teatro épico. Suas características externas são: comentários inseridos na ação, feitos por um narrador, títulos de “capítulos” em grandes cartazes, máscaras e imagens projetadas (BERTHOLD, 2001, p. 505).
Brecht opõe-se radicalmente a qualquer tipo de efeito ilusionista no palco. O cenário, com seu esqueleto exposto, é completado por objetos reais e “tratados conforme o drama. Como por exemplo em Mãe Coragem, a carroça e tudo que havia em cena era verdadeiro e carregava o peso do tempo” (MANTOVANI, 1989, p. 68). A luz não possui efeitos, usada apenas para garantir a visão. Brecht trabalhou em parceria com o cenógrafo e pintor Theo Otto em Mãe Coragem; outros dos principais cenógrafos com quem o diretor colaborou incluem Kaspar Neher, que contribuiu para a concepção de cenários no Teatro Épico, e Karl von Appen, no teatro Berliner Ensemble, fundado por Brecht em 1949. Montagem de Mãe Coragem no Berliner Ensemble, 1949
A natureza exposicional e a ênfase no artístico do Teatro Épico são, segundo o próprio diretor, aparentados ao antigo teatro asiático, não representando uma inovação pela perspectiva estilística (BERTHOLD, 2001). Conquanto, sua intencionalidade política e os parâmetros que sugere para a prática no momento histórico no qual está inserido fazem com que Brecht seja cuidadosamente revisitado até os dias de hoje. 26
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Teatro experimento Workshop do grupo novaiorquino Living Theatre
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Mantovani (1989) situa Antonin Artaud junto a Brecht como um dos nomes que edificou as bases do teatro no período pós-Segunda Guerra. A importância de Artaud, ator, diretor, poeta e teórico francês, nas artes cênicas é inegável: suas obras que teorizaram sobre a prática teatral, propondo uma reconstrução a partir do zero, influenciaram teatrólogos como Peter Brook e Jerzy Grotowski. Destacam-se entra elas o “Manifesto do Teatro da Crueldade”, de 1932 e “O Teatro e seu Duplo”, de 1938. Seu conceito de Teatro da Crueldade indica, segundo Berthold, “o uso irrestrito de todos os meios teatrais, entregando o palco a um vitalismo eruptivo que transforma a ação cênica num foco de inquietação contagioso e ao mesmo tempo curativo” (BERTHOLD, 2001, p.500). Os meios
teatrais referidos são aqueles que extrapolam a palavra: Artaud busca no teatro oriental, de cunho metafísico, inspiração para articular a linguagem cênica de modo a atingir múltiplos sentidos e planos de consciência no público, chegando a um nível pré-verbal – ao contrário do que ocorre na prática ocidental tradicional, de teor psicológico, fortemente sedimentada sobre a leitura do texto dramatúrgico. A primazia, aqui, é dada ao corpo e seu movimento (MANTOVANI, 1989). Artaud, ao priorizar a componente física do teatro, nega o uso de cenários. Todavia, o autor teoriza sobre o lugar teatral ao sugerir o abandono dos edifícios convencionais em função de locais como um barracão ou um 27
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celeiro. Propõe, em “A cena”, uma sala com paredes nuas em que o público, sentado em cadeiras giratórias ao centro, deixa-se envolver pela ação – que possui caráter ritualístico, afastando-se do entretenimento.
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2 As origens do modelo de negócios de entretenimento presente na Broadway são mais antigas, remontando ao século XIX; o gênero musical encontrou representação nas Ziegfeld Follies, inauguradas em 1907. Ver Berthold, 2001, p.262-263.
Sob a égide da contribuição do diretor, outro eixo pelo qual é possível explorar as manifestações teatrais da segunda metade do século XX é em relação ao teatro comercial, enquanto show business, oposto àquele não comercial, cujas propostas naturalmente favorecem a experimentação. Com a capitalização sobre o teatro para divertimento – modelo cristalizado sobretudo nos espetáculos musicais da Broadway nova-iorquina2 – surgem em resposta companhias como o Living Theatre, cuja proposta anarquista busca a unificação entre teatro e vida. Fundado em 1951 por Judith Malina e Julian Beck em Nova York e tendo como primeira sede um apartamento, o Living sofreu influências de Artaud em seu modo de encarar o espetáculo como rito, criando uma comunidade de atores cujo palco pode estar em qualquer lugar. Materiais pobres são utilizados na confecção de cenários e figurinos, uma vez que sua beleza emana da criação, não do material usado (MANTOVANI, 1989); aos poucos, a cenografia se dissolve e o cenário torna-se o local escolhido - por exemplo, a rua – de maneira a se destacar a atriz e o ator. Nas montagens de The Brig - nome de uma prisão de militares - em 1963 e 1966, o lugar cênico é delimitado por grades e arame farpado; a violência mostrada deveria suscitar a indignação da plateia, conferindo ao texto uma importância secundária em relação à experiência física. Outros grupos emergem na cena norteamericana em reação aos circuitos comerciais; o Bread and Puppet em 1962 como um grupo de protesto, o Teatro Campesino, cuja proposta didática assemelha-se à de Brecht.
Encenação de The Brig pelo Living Theatre
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Também em Peter Brook, diretor e cenógrafo inglês, nota-se a influência de Artaud em espetáculos realizados com a Royal Shakespeare Company – como na montagem de Marat-Sade de 1964, onde o palco está praticamente nu. Outras montagens de destque do diretor incluem Sonho de uma noite de verão, de William Shakespeare, em que a cenógrafa Sally Jacobs lança mão de elementos simples e funcionais, como trapézios e escadas, além de cores primárias, para atingir um efeito singular. Em Brook, fica evidente como direção e cenografia devem atuar com coesão.
Repensar o local teatral e questionar a própria utilidade da cenografia foram atitudes de teoria e experimentação recorrentes durante todo o século XX. Constatou-se a necessidade de um edifício flexível, capaz de atender as demandas das novas encenações: Mantovani (1989) afirma que as salas transformáveis são o lugar teatral correspondente à época atual, como no caso do Teatro Experimental da Universidade de Miami e do Teatro Mars em São Paulo, com sua tipologia polivalente. Estreitaramse as relações entre direção e cenografia, sendo ambas as funções concentradas muitas vezes no mesmo indivíduo, como ocorre por vezes com Brook. Não findaram os esforços para aliar inovações tecnológicas à prática teatral no que se refere à visualidade – um bom exemplo sendo o cenógrafo tcheco Josef Svoboda, que dá continuidade a questões levantadas por teóricos do início do século e as interpreta com o auxílio de recursos audiovisuais, iluminação e mecanismos cinéticos. De fato, o teatro acompanha as mudanças sociais e tecnológicas de sua época. 29
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Peter Brook, montagem de Sonho de uma noite de verão com cenografia de Sally Jacobs
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A cena teatral contemporânea
A cena teatral contemporânea
Para referenciar aqui o teatro contemporâneo, foi delimitado um recorte temporal que surge especificamente a partir do termo pós-dramático. Embora seja pertinente identificar uma mudança radical de paradigma do fazer teatral no final do século XIX, transformações expressivas continuaram a acontecer no decorrer do século seguinte até os dias de hoje acarretadas também por novos recursos tecnológicos, mas não deixando nunca de investigar a natureza do teatro em seu cerne, na busca pelos limites do que pode ser considerado encenação e das maneiras que o público possui para experimentá-la.
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Território tênue Cena de montagem de Frank Castorf
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A cena teatral contemporânea
Teatro Pós-dramático
Ao se falar sobre teatro contemporâneo, a expressão teatro pós-dramático aparece de maneira muito útil para balizar a discussão. O termo foi introduzido no vocabulário da crítica por Hans-Thies Lehmann, em 1999 (LEHMANN, 1999 apud CARLSON, 2015, p.578). Foi, desde então, amplamente aplicado por teóricos de teatro, a ponto de seu significado extrapolar a definição original e ganhar novos contornos na tentativa de abarcar as ricas e plurais experiências cênicas dos últimos anos. Para entende-lo, é preciso esclarecer a acepção da palavra drama no âmbito crítico: Desde que os Estudos Teatrais se estabeleceram como disciplina acadêmica no início do século XX, estudiosos ingleses do teatro, em geral, fizeram clara distinção entre teatro e drama – drama como referência ao texto literário e sua história, e teatro, à realização desse texto no palco (CARLSON, 2015, p. 578).
O pós-dramático implica, portanto, na superação do texto literário, ou ao menos da relação de dependência que a performance mantém com ele. A mimese proveniente da dramaturgia é rejeitada. Acerca do drama mimético, em seu artigo “Teatro Pós-dramático e Performance Pós-dramática”, Carlson aponta: “a ideia do teatro, sobretudo, como realização visual de um texto escrito pré-existente predominou durante a maior parte do século XX e ainda predomina em muitas culturas teatrais” (CARLSON, 2015, p.578). Existe uma tensão histórica acerca do papel da dramaturgia na atividade teatral, referente à importância que se concede a ela. A premissa de que a representação emana do texto dramático esteve amplamente presente no início do século XX, evidenciando uma hierarquia na qual o autor supera o encenador – que apenas nessa época começa a ser de fato um agente criativo (ROUBINE, 1998). Como afirma Roubine, a arte da encenação nesta época demandava o apoio de um bom texto – muito embora este paradigma estivesse em 32
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vias de sofrer uma reformulação em meados do século. É pertinente apontar que um teatro não baseado na textualidade dramatúrgica já fora praticado e teorizado no ocidente por autores como Artaud e por grupos que levaram adiante sua filosofia do Teatro da Crueldade – destacando-se, no Brasil, o Teatro Oficina entre 1967 e 1972, com montagens como O Rei da Vela e Roda Viva, dirigidas por José Celso Martinez (TEATRO da Crueldade, 2017, s.p.).
Embora os dois termos tenham conotações diferentes, eles compartilham uma estratégia básica fundamental: a de que a performance se desenvolve não por meio da visão artística de um único mestre, mas por meio do trabalho coletivo de um grupo [...]. Hoje esses grupos geralmente são ainda mais variados, reunindo [...] atores e vários membros da produção, incluindo os tradicionais cenógrafos, os criadores de vídeo e filme e os designers de computação (CARLSON, 2015, p. 582).
Companhias representativas deste modo coletivo de operar incluem, na década de 1970, o Théâtre du Soleil de Ariane Mnouchkine – com montagens como 1789 - e Peter Stein, na França e na Alemanha, respectivamente. A criação coletiva revela um novo horizonte para as possibilidades de invenção do cenógrafo. Neste caso, a denominação como tal torna-se mesmo insuficiente, visto que sua colaboração excede o papel tradicional da cenografia. Porventura ainda mais interessante seja uma tendência que Carlson situa a partir da década de 1960 em grupos tidos como pós-dramáticos: o uso de mídias diversificadas para romper com a interpretação tradicional de textos clássicos - embora isto se distancie de uma das características principais atribuídas por Lehmann ao pós-dramático, o abandono da mimese. Nos que se refere à incorporação de novas mídias, fala-se aqui sobretudo na captura de vídeos ao vivo. Há diversas maneiras de utilizar estes vídeos 33
A cena teatral contemporânea
Assim, quando se fala em teatro pós-dramático, a questão da performance emancipando-se do texto – e, por conseguinte, a cenografia, visto que os aspectos performativo e visual do teatro passam para o primeiro plano - é um tema central; porém, não o único capaz de definir essa forma de teatro. Carlson identifica experiências no mundo cênico que, mesmo acontecendo antes do termo ser cunhado, estão filosoficamente alinhadas ao conceito. Uma delas é a chamada criação coletiva ou teatro colaborativo, forma de teatro das décadas de 1960 e 1970. Segundo o autor:
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no espetáculo; o diretor alemão Frank Castorf o fez transmitindo ao vivo os bastidores da cena e posteriormente introduzindo o uso de câmeras portáteis no palco, cujas imagens eram projetadas em telões à vista do público (CARLSON, 2015).
A cena teatral contemporânea
A diretora britânica Katie Mitchell experimenta, ainda segundo Carlson (2015), desde 2007 com um método totalmente único que busca desconstruir a ideia de ilusão, expondo no palco uma grande tela com filmagens que podem ser consideradas convencionais, simultaneamente a todo o processo necessário à captura destas imagens; praticamente um esqueleto de um set de filmagens é exposto sobre o palco, com atrizes e atores entrando a saindo do personagem e contrarregras circulando. Desta forma, a diretora expõe a realidade como uma construção. Os cenários, na lógica de Mitchell, ainda são miméticos. Buscam, em última instância, uma representação figurativa da realidade. Entretanto o modo como sua construção apresenta-se ao público difere completamente dos processos tradicionais de encenação.
Cena de Waves, dirigida por Katie Mitchell no National Theatre de Londres
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Carlson disserta, finalmente, sobre uma apropriação completa do real pelo teatro. Chegando às últimas consequências do pós-dramático como rejeição da mimese em prol da performance, pode-se falar em uma equivalência deste com a teoria fenomenológica: o teatro enquanto realidade. De fato, o único requisito para que a realidade se transforme em cena é a apresentação desta como tal. Performances autobiográficas nas quais atrizes e atores discorrem sobre suas vidas em seus próprios corpos foram associadas aos movimentos gay e feminista nos Estados Unidos. Quando até mesmo o corpo desaparece da experiência teatral, como na experiência da produção Remote Berlin do grupo alemão Rimini Protokoll - em que foram distribuídos fones de ouvido ao público com instruções remotas para que este perambulasse pela cidade de Berlim - pode-se falar em uma dissolução completa da cenografia.
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A cena teatral contemporânea
Acima foram elencadas apenas algumas das realizações que podem ser contidas no extenso leque de possibilidades do teatro pós-dramático. É importante ressaltar que, embora o teatro contemporâneo possa superar o texto escrito, ser criado coletivamente, experimentar com diferentes mídias, eliminar a necessidade de imitação ou dispensar até mesmo as atrizes e atores, ele pode ao mesmo tempo não fazer nenhuma destas coisas. Relevante aqui é dar-se conta do fato de que estas portas foram abertas, para que cada escolha acerca de tais modos de proceder torne-se consciente.
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Relações espetáculoespaço
A cena teatral contemporânea
À dir.: Cena de Sleep No More, da companhia Punchdrunk
O termo espaço, aqui, busca explodir a noção de caixa cênica para incorporar quaisquer localidades nas quais seja possível interpretar. Uma das denominações para o teatro que, segundo Carlson (2015), rejeita a separação convencional entre palco e público, é a de teatro imersivo. Tal separação, consolidada pelo teatro à italiana, pode ser percebida nas palavras de Urssi: “A sala italiana apresenta um edifício retangular dividido em duas partes distintas – a cena e a plateia – privilegiando-se a separação, pelo proscênio e a ribalta, entre área de representação e espaço destinado ao público” (URSSI, 2006, p. 35).
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Fala-se em imersão, portanto, quando este distanciamento é rompido e o público aproxima-se das atrizes e dos atores. É fácil associar encenações deste tipo àquelas que ocorrem fora do edifício teatral: uma vez que a performance é deslocada para um local não habitual, torna-se mais difícil traçar a linha entre espaço de atuação e espaço de espectador. Carlson identifica três maneiras com que o espetáculo imersivo trata o público, sendo elas:
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b)
c)
Promenade theatre
Performance em um ou mais locais
Coleção de espaços
Uma das formas mais conservadoras, na qual um público pequeno é conduzido por uma série de espaços em ordem determinada, presenciando o acontecimento de uma cena mimética com um texto convencional;
A performance ainda é mimética e se prende a um texto, mas ocorre em possivelmente mais de um local, por onde o espectador é livre para transitar e observar, ou não, as ações. Um exemplo desse tipo de produção são as Roman Tragedies, do diretor belga Ivo van Hove;
Não há mais uma performance padrão com texto. O público pode percorrer uma série de espaços, interagindo ou não com os atores, que podem fornecer material textual. A vivência de cada espectador torna-se especialmente distinta. Isso ocorre, por exemplo, no espetáculo Sleep No More da companhia britânica Punchdrunk. As cenas são compartilhadas por intérpretes e público, o qual distingue-se pelo uso de máscaras.
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a)
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A cena teatral contemporânea
Ivo van Hove, montagem de La clemenza di Tito em Varsóvia
Uma questão importante que se entremeia a esses modos de fazer teatro é a da especificidade do local em que é realizada a peça. Nesta discussão emerge o termo site-specific – proveniente do campo da arte, porém passível de ser atribuído ao teatro, referindo-se à montagem que se apropria de um contexto espacial singular, fora do edifício teatral. De acordo com Wilkie, embora públicos e criadores de teatros tenham por séculos explorado possibilidades espaciais de sítios específicos, “não foi até a década de 1980 que o termo site-specific, já bem estabelecido nas artes visuais, foi primeiramente aplicado com consistência a um crescente corpo de práticas teatrais na Grã-Bretanha” (WILKIE, 2004, p.1). O teatro site-specific pode ser muitas coisas: inventado ou com script; promenade ou estático; ao ar livre ou interior; experimental ou mainstream. Ele possui, no entanto, algumas características principais elencadas pela autora, conforme se segue: a)
Uso de localizações não-teatrais (‘espaços encontrados’);
b)
Influência do sítio na criação da performance;
c)
Noção de ‘referência’ – a performance se refere ao sítio de alguma maneira, seja trabalhando ‘com’ ele, reagindo ‘contra’ ele ou se estabelecendo em algum lugar entre estas posições polares. 38
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A questão da nomenclatura emerge ao se perguntar o quão específico é o site-specific, e se este sítio seria, portanto, exclusivo. Segundo Wilkie (2004), há duas maneiras de lidar com tal questionamento, sendo elas traçar distinções entre níveis de especificidade ou criar novas nomenclaturas. A companhia britânica Wrights & Sites propôs uma linha na qual situar diferentes práticas teatrais de acordo com estes níveis de particularidade em relação ao lugar, descritos no quadro abaixo:
A cena teatral contemporânea
A classificação acima pode servir não apenas para enquadrar espetáculos já existentes, mas para nortear a criação de novas montagens que busquem um tipo não convencional de relação com seu entorno físico. Afinal, o espetáculo teatral terá sempre uma relação com o espaço que o suporta – seja ao nega-lo ou tomar partido de suas características.
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Dois bons exemplos de montagens teatrais que reagem às especificidades do sítio são as obras BR-3 (2006) e Bom Retiro 958 metros (2012), do coletivo brasileiro Teatro da Vertigem. Resultantes de longos processos de pesquisa artística e social, ambos os trabalhos respondem a inquietações trazidas pelo espaço urbano e apresentam-se como uma experiência sensorial intrinsecamente conectada aos locais de apresentação: as margens e o leito do rio Tietê em BR-3; ou diversas áreas de um bairro, no caso de Bom Retiro 958 metros. Tais montagens retiram o foco do espetáculo teatral enquanto produto final e colocam-no sobre o processo de criação, consistindo em experiências performativas de caráter híbrido, conforme relata Fernandes (2014). A autora aponta a estética da imperfeição presente nesta forma de teatro, ocasionada pela “vontade explícita de contaminação com a realidade social mais brutal, em geral explorada em um confronto corpo a corpo com o outro, o diferente, o excluído, o estigmatizado” (FERNANDES, 2014, p.128). De fato, o modo de elaboração destes dois espetáculos conflita diretamente com os circuitos fechados de produção e distribuição teatral; tratam-se de trabalhos temática e geograficamente marginais. 3 A deriva é uma prática da psicogeografia preconizada por membros da Internacional Situacionista (IS) como ferramenta de reinterpretação do espaço.
Para a elaboração de Bom Retiro 958 metros, o grupo recorreu a investigações in loco - derivas de inspiração situacionista3 serviram como instrumento exploratório do bairro paulistano. O reconhecimento de questões sociais locais permeia o resultado das cenas, em um exemplo do que pode ser considerado teatro site-specific: A encenação associa a mão de obra dos imigrantes das confecções e do comércio de roupas, característico do bairro, às formas atuais de exploração – os serviços e ocupações flexíveis que dão corpo à lógica estrutural de precarização do trabalho […]. Replicando essa zona de incerteza, o roteiro-percurso movimenta a trama cênica por meio de ocupações e desocupações de espaço, com o auxílio de movimentos corporais, sons, luzes e ritmos (FERNANDES, 2014, p.130).
A encenação, que constitui uma experiência promenade noturna – caracterizando-se também como teatro imersivo – se inicia nos corredores de um shopping center e desenrola-se por algumas ruas do bairro até chegar a um teatro em ruínas; daí volta novamente à rua, em um desfile de moda que decorre em meio aos carros e transeuntes, até encerrar-se perante uma caçamba de entulhos. As personagens da trama espelham fixações e frustrações da sociedade de consumo; entre elas a compradora 40
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obcecada por um vestido vermelho, a manequim defeituosa à procura de emprego, a costureira boliviana entrevada em sua máquina e o morador de rua usuário de crack. Nesse caso, a cenografia dissolve-se em meio à imersão da performance. “No centro de compras, a encenação sublinha os fetiches da mercadoria em um roteiro de tensões entre a teatralidade do mundo de consumo e a performatividade da cidade real” (FERNANDES, 2014, p.130). Inclusa no percurso está uma parada pelo Teatro de Arte Israelita Brasileiro (TAIB), no qual a companhia ocupa um palco italiano, abandonado, em um exercício de resgate de memória do que fora um espaço de resistência à ditadura militar. Ao ocupar locais de memória, o teatro encontra novas camadas de significação norteadas por seu relacionamento com o meio circundante. A cena teatral contemporânea
Cenas de Bom Retiro 958 metros, do coletivo Teatro da Vertigem
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Cena de QUEER.DOC
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Projeto cenográfico Estudos de caso
Projeto cenográdico: Estudos de caso
Para fins de comparação, foram registrados dois exercícios realizados pela autora a fim de empregar os conhecimentos teóricos na prática, sendo o segundo e principal deles o de elaboração mais complexa.
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Projeto cenográdico: Estudos de caso
QUEER.DOC Premissa
Processo criativo
Como parte de um curso de direção de arte para teatro realizado pela Oficina Cultural Oswald de Andrade em São Paulo, foi realizada uma montagem de curta duração envolvendo participantes de cursos de dramaturgia, direção teatral e atuação. O intuito foi aliar os conhecimentos de cada workshop ao encenar um texto produzido no curso de dramaturgia, contando com direção e atuação dos participantes das respectivas áreas. A direção de arte deveria cuidar de todos os aspectos visuais da representação, incluindo caracterização cenográfica, figurino e demais adereços, buscando criar uma unidade conceitual. O curso foi ministrado por Joyce Roma nos meses de novembro e dezembro de 2017, e a apresentação única ocorreu no dia 8/12/2017 às 12h, na Oficina Cultural Oswald de Andrade, aberta ao público geral.
O texto encenado, QUEER. DOC, simula a gravação de um documentário que relata a internação de um jovem cristão em uma clínica de “cura gay”, e que acaba por suicidar-se. Os espaços da Oficina Cultural Oswald de Andrade estavam à disposição para serem utilizados para a apresentação. Assim, foi decidido em uma conversa inicial com a diretora que a cena se passaria em um banheiro, devido a sua associação a práticas marginalizadas da sexualidade masculina – o “banheirão” – e por sua similaridade a um espaço de hospital/clínica por conter pias e superfícies azulejadas; após uma análise dos espaços disponíveis no prédio, encontrou-se o banheiro de um conjunto anexo de salas que atendia às demandas da montagem.
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QUEER.DOC
O ambiente escolhido possuía características físicas distintas a partir das quais foram explorados significados, e as cores de seu piso acabaram por influenciar na escolha da paleta de cores dos figurinos: tons de verde e vermelho/bordô, sendo as demais cores neutras, como preto e cinza. O espaço também determinou as ações desenvolvidas pelos atores. Surgiram as ideias de usar as cabines como coxia, e, conjuntamente com a diretora, foi estipulado que Marcos, o personagem principal, escreveria versículos da bíblia nos espelhos do banheiro com batom vermelho vivo, associado à sensualidade – inicialmente pensou-se em projetar os versículos na parede, mas os grandes espelhos logo se revelaram um bom suporte. O local também foi decisivo ao influenciar a disposição do público, que ficaria muito próximo ao elenco, eliminando a separação entre plateia e palco, em uma experiência imersiva. Segundo a classificação proposta por Wilkie (2004), trata-se de um espetáculo site-generic, concebido para uma série de espaços similares, no caso, um banheiro público; no entanto, possui também as três características atribuídas pela autora ao teatro site-specific: uso de um local fora do edifício teatral, influência deste local sobre a performance e a encenação fazendo referencia ao sítio – o que ocorre, por exemplo, numa fala em que as “médicas” aludem à retirada dos mictórios da clínica enquanto tentam disfarçar a presença dos mictórios reais do banheiro. Foi realizada uma breve pesquisa sobre as clínicas de “reorientação sexual” e logo percebeu-se que não existem muitos registros ou referências visuais acerca destes locais; optou-se então por recorrer a imagens de fácil associação que o público poderia reconhecer, como médicos vestindo branco. Uma inspiração para a atmosfera desejada foi a pintura Nighthawks de Edward Hopper, pelos tons de cores que possui. Edward Hopper, Nighthawks
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Projeto cenográdico: Estudos de caso
Planejamento e implementação O curto tempo da atividade e seu caráter de exercício demandaram soluções rápidas e simples. Os figurinos e objetos de cena foram emprestados de participantes da oficina a pedido da direção de arte, e apenas alguns objetos de menor custo foram comprados, como batom e luvas verdes. Na primeira cena, há uma interação de Marcos com a Morte. A diretora orientou que a personagem que personaliza a morte deveria ser sensual, seduzindo Marcos ao suicídio, então foi pensado em uma saia ou short curtos, salto alto e um body de cor preta. Foi muito importante que as roupas permitissem amplos movimentos corporais; a princípio a personagem usaria meias calça ou meiasarrastão, o que foi descartado pois em dado momento ela subiria descalça em uma das cabines do banheiro e poderia escorregar com as meias. Marcos usaria um terço vermelho e conseguiu-se uma bíblia de tom rosa, dentro da qual foram colocados alguns versículos que escreveria no espelho. Por decisão da direção, Marcos estava sem camisa com frases escritas no 46
corpo. Ele deveria usar uma calça cinza e sapatos de tom neutro. Em seguida entram em cena o irmão de Marcos e sua esposa, responsáveis pela internação de Marcos na clínica, que representam um casal tradicional e deveriam usar roupa social e estar alinhados. A mulher usaria um vestido de tom avermelhado. Na cena seguinte, para as duas “médicas” da clínica foram pensadas roupas brancas e verdes, verde de um tom específico usado em ambiente hospitalar, que se destacaria dentre as outras cores, sendo complementar ao vermelho no círculo cromático. Foram compradas luvas de limpeza desse tom específico, que também trariam uma conotação caricata de limpeza à caracterização daquelas personagens. O namorado de Marcos na clínica aparece em seguida em diálogo com uma das médicas, usando uma camiseta vermelha que serviria como conexão visual ao vermelho do terço de Marcos e ao batom, e calça de tom neutro.
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Cenas de QUEER.DOC
QUEER.DOC
Durante todo o tempo estão presentes membros da equipe de filmagem do documentário, usando preto. Durante um diálogo em que são fornecidas estatísticas sobre a população LGBT+, os personagens passam batom e uma delas usa um leque. No momento final, após Marcos ser levado pela Morte, há um depoimento de Jesus, que a princípio seria gravado por uma atriz transexual convidada e transmitido em um projetor em uma das paredes; por questão de logística não foi possível fazer a gravação, e Jesus foi interpretado por uma atriz que leu o texto por trás de uma janela. Todas as personagens, exceto pela Morte, usaram batom vermelho - elemento que gerou forte sincronia temática e serviu para distinguir elenco e público, que estavam muito próximos. 47
Projeto cenográdico: Estudos de caso
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Cenas de QUEER.DOC
Ficha técnica Direção e dramaturgismo: Erica Montanheiro Direção de arte: Leticia Cabral e Raphael Hubner Dramaturgia: Paulo Ribeiro Neto Elenco: Lucas Lentini, Gabriela Segato, Evas Carretero, Letícia Miranda, Natalia Tainã, Michel Nader, Bianka Bélaváry, Bruno Pupe e Ana Elisa Mattos 48
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Cena de A Rainha
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A RAINHA Premissa
O trabalho foi desenvolvido ao longo de alguns meses durante o ano de 2017, sendo que a dramaturgia sofreu vários tratamentos no decorrer do tempo. O projeto final ganhou novas definições devido à decisão de adiar o espetáculo completo para ganhar tempo, o que resultou no trancamento do trabalho de
conclusão de curso de Beatriz. Tal medida mostrou-se necessária, pois o último tratamento da dramaturgia foi finalizado no mês de outubro, não havendo tempo hábil para ensaiar todas as cenas até o prazo estabelecido inicialmente no mês de novembro. Foi estipulado que seria realizada apenas uma cena do texto e a apresentação integraria a Semana de Artes Cênicas 2017, , do Instituto de Artes da Unesp, entre os dias 6 e 11 de novembro. A peça foi nomeada A Rainha e o trecho escolhido para encenação foi a cena final, apresentada no dia 8/11/2017 no Teatro Reynúncio Lima do Instituto de Artes da Unesp, às 16h, aberta ao público geral. Foram realizados figurino e maquiagem, além da cenografia, em um projeto de direção de arte. Desta forma, todos os elementos visuais da narrativa puderam ser coordenados com maior coesão. 53
Projeto cenográdico: Estudos de caso
Para a realização do segundo estudo de caso e principal projeto cenográfico deste trabalho, optou-se por procurar uma montagem em processo de criação, junto à qual a cenografia pudesse ser concebida de modo colaborativo. A peça encontrada foi um trabalho de conclusão de curso em andamento – um monólogo sobre a rainha francesa Maria Antonieta, escrito e dirigido pela aluna do curso de Licenciatura em Arte-Teatro da Unesp, Beatriz Avellar.
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A apresentação da cena serviu como um experimento a partir do qual puderam ser avaliados pontos positivos e negativos, usados como parâmetro para a elaboração de um projeto final, ainda não executado, que consta ao final deste capítulo.
Projeto cenográdico: Estudos de caso
Como ponto de partida do projeto, realizou-se uma pesquisa histórica. Foi necessário debruçar-se sobre o universo de Maria Antonieta, buscando dados biográficos e material textual acerca da sociedade francesa do século XVIII, além de referencias visuais da época. O objetivo desta pesquisa foi o de formar um repertório imagético que pudesse auxiliar no processo criativo, provendo embasamento para as decisões tomadas. Assim, os tópicos a seguir focam na contextualização histórica da personagem da peça.
Maria Antonieta e a sociedade de corte Maria Antonieta foi a última rainha a ser coroada, antes da revolução que culminou na França em 1789. Figura polêmica, foi alvo de inúmeras difamações e mitos circundando seu nome tanto em vida como postumamente, acarretando a ira popular em sua época devido a seu modo opulento de vida e gastos excessivos. Nascida Maria Antónia Josefa Joana de Habsburgo-Lorena, a futura monarca veio ao mundo em 2 de novembro de 1755 em Viena, Áustria, como a décima quinta filha da imperatriz Maria Teresa de Habsburgo e do Imperador Francisco I. Com a conclusão da Guerra dos Sete Anos em 1763, intentou-se criar uma aliança entre Áustria e França pelo casamento da então arquiduquesa com o herdeiro do trono francês, Luís Augusto. Em 16 de maio de 1770, Maria Antonieta chega a Versalhes e casa-se, aos 14 anos, com Luís Augusto, tornando-se delfina. “Mas a cerimônia principal, na qual se concentrava simbolicamente a aliança francoaustríaca, ainda estava por vir. Era a ida do jovem casal para a cama, a ser seguida, esperava-se, pela consumação física do matrimônio” (FRASER, 2001, p. 91). Consumação esta que não ocorreu de imediato e de fato demoraria anos para acontecer, gerando tensão quanto à estabilidade política da união. Cinco após o casamento, com a morte de Luís XV, Maria Antonieta é coroada rainha da França, aos 19 anos, sendo novo 54
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casal de monarcas recebido com entusiasmo pelo povo francês. Em 1777, o casamento finalmente é consumado e Maria Antonieta dá à luz Maria Teresa Carlota no ano seguinte – frustrando, no entanto, as expectativas da imperatriz sua mãe, que desejava um herdeiro para o trono real. A partir de 1780, a consorte passa a frequentar o Petit Trianon, seu palacete privado nos jardins de Versalhes, encomendado pelo rei. As personalidades de ambos diferiam em vários aspectos, sendo o monarca introspectivo enquanto a rainha era a afeita a bailes e jogatinas. Por volta da mesma década de 1780, iniciaram-se rumores de um caso extraconjugal da rainha com o diplomata sueco Conde Axel von Fersen; e com a instabilidade econômica do país, o estilo de vida extravagante da regente acarreta a reprovação popular – sendo esta apelidada de “Madame Déficit”. Em 1786, se inicia a construção da Hameau de la Reine, ou “aldeia da rainha”, um extravagante retiro bucólico próximo ao Petit Trianon.
O falecimento de Maria Antonieta aconteceria após o de Luís XVI, condenado à morte e executado na guilhotina em 1793. A “Viúva Capeto”, como ficou conhecida na época, foi submetida a um julgamento de dois dias e mandada à guilhotina em outubro daquele ano. Em sua última carta, adereçada à cunhada Madame Isabel, preocupa-se com o destino dos filhos. “Minha tristeza mais profunda é a ter de abandonar os nossos pobres filhos; sabe que só segui vivendo por eles e por ti, minha boa e terna irmã” (FRASER, 2001, p.481). Lamenta também separar-se dos amigos, além de pedir perdão a Deus pelos pecados cometidos. Ao estudar personagens históricas, faz-se necessária uma análise sociológica no âmbito de sua época e local, para que não se crie acerca da figura em questão uma narrativa isolada de contexto. No caso de 55
A Rainha
Maria Antonieta ainda daria à luz mais três filhos – uma menina e dois meninos, dos quais um morreria ainda na infância – antes da revolução que acometeu a França em 1789. Em outubro daquele ano, Versalhes foi invadida por uma multidão de dez mil cidadãos enfurecidos exigindo que o casal real fosse levado a Paris. No Palácio das Tulherias, a rainha assume a frente de assuntos diplomáticos, despachando cartas a outros regentes europeus em busca de ajuda política. Após uma tentativa frustrada de fuga do país em 1791, Luís XVI cede à pressão para promulgar uma nova constituição, redigida pela Assembleia Nacional Constituinte, retendo poder simbólico como rei. No ano seguinte, contudo, após terríveis massacres em Paris, ocorre a queda da monarquia e o estabelecimento da nova república pela Convenção Nacional, com a prisão do casal real.
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Projeto cenográdico: Estudos de caso
Maria Antonieta, o ambiente encontrado é a sociedade de corte francesa do século XVIII; olhar para o funcionamento bastante particular desta sociedade pode lançar uma nova luz sobre algumas ações da rainha. Os desembolsos vultuosos feitos por ela, por exemplo, estão contidos dentro de uma lógica social que contempla gastos por prestígio e consumo sob a pressão de uma concorrência por status (ELIAS, 2001). Esta lógica destaca-se, principalmente, quando confrontada com o cânone de comportamento burguês visto em sociedades industriais. Embora nestas ainda seja observável a pressão social para o consumo em função do status e a concorrência pelo prestígio, prevalece em última instância o princípio da poupança em virtude de ganhos futuros. Deve ser salientado que a poupança era um ato censurável entre os nobres cortesãos, bem como o trabalho – proibido entre a nobreza. Em tal conjuntura: Alguém que não pode mostrar-se de acordo com seu nível perde o respeito da sociedade. Permanece atrás de seus concorrentes numa disputa incessante por status e prestígio, correndo o risco de ficar arruinado e ter de abandonar a esfera de convivência do grupo de pessoas de seu nível e status. Essa obrigação de gastar de acordo com o nível social requer uma disciplina no uso do dinheiro que é diferente da burguesa (ELIAS, 2001, p.86).
O autor ilustra o raciocínio acima com uma passagem sobre o duque de Richilieu relatada por Taine, em que o duque presenteia seu filho com uma bolsa de dinheiro para ensiná-lo a gastar como um nobre, e, quando o filho retorna com a bolsa cheia, o pai atira-a pela janela. Para compreender o porque da ostentação de riquezas estar diretamente ligada à obtenção de prestígio, é preciso observar que a posição social de um cortesão francês é determinada por dois fatores. Primeiro, por seu título oficial. Simultaneamente, porém, “modificando essa ordem hierárquica e agindo sobre ela, estabelecia-se uma ordem infinitamente mais efetiva e nuançada [...], que era determinada pelo favor do rei” (ELIAS, 2001, p.107), o que se refletia na posição de cada pessoa envolvida nesta escala de valores. Em outras palavras, a posição social de um indivíduo era determinada diretamente por sua relação com o outro. É fundamental apontar que essa segunda ordem, a do favoritismo, era cristalizada, em última instância, pela etiqueta. É notável que, na sociedade de corte francesa, mais do que em outras cortes europeias, a etiqueta tenha se estabelecido como parâmetro absoluto tanto para indicar as relações sociais existentes, quanto para fortalece-las e manipula-las. Neste contexto, 56
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servir diretamente à rainha e ao rei, assistindo em seus afazeres cotidianos, é uma tarefa apenas para nobres de casas ilustres – que podem usufruir da companhia real, reafirmando assim sua posição. Este sistema foi habilmente estabelecido e manipulado por Luís XIV, o “Rei Sol”, encontrando seu auge em meados do século XVII. “Como logo aprendeu Maria Antonieta, as minúcias desse sistema de exibição tinham importância espantosa”, aponta Fraser (2001). Segundo a autora: [...], o que já fora um método de controle exercido por Luís XIV se transformara numa luta pelo poder dentro da nobreza, travada no campo da etiqueta. Quando o Duque de Coigny entregava a vela ao rei durante o coucher, fazia mais do que realizar uma tarefa aparentemente inferior: posicionava-se literalmente junto ao centro de influência (FRASER, 2001, p.95).
Outra consideração importante que deriva é a de que, quando o poder social está diretamente ligado à vida particular, as barreiras entre público e privado acabam por dissolver-se. “A distinção conceitual rigorosa entre as esferas da vida ‘pública’ e ‘particular’, usada de modo corriqueiro nas sociedades industriais, não tem muito cabimento quando aplicada aos cortesãos” (ELIAS, 2001, p.93). O palco sobre o qual se dão as encenações de papeis sociais – o palácio de Versalhes – é o local em que centenas de 57
A Rainha
Porém, na época de Luís XVI, já esvaziada de sentido, a etiqueta tornarase um procedimento engessado ao qual os monarcas e cortesãos não tinham opção senão aderir, de modo a manter o frágil equilíbrio dos arranjos sociais. “Sem dúvida o cerimonial era um grande fardo para todos os envolvidos”, aponta Elias (2001), completando que “se todos cumpriam a etiqueta contrariados, não podiam romper com ela; e não só porque o rei exigia sua manutenção, mas porque a existência social dos indivíduos envolvidos estava ligada a ela”. Um episódio emblemático da etiqueta levada às últimas consequências é o do lever de Maria Antonieta - cerimônia do despertar da rainha, em que, certa vez, a soberana, esperando para ser vestida por sua dama de honra, teve que aguardar nua ao presenciar a chegada da duquesa de Orléans, nobre de posição mais elevada que tinha o privilégio de realizar esta tarefa ao adentrar o recinto. O processo foi interrompido novamente com a chegada da condessa de Provence, nobre de nível superior ao da duquesa, que só então vestiu a rainha em sua camisa (ELIAS, 2001).
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cortesãos residem e realizam suas atividades diárias. Viu-se, portanto, que os gastos para ostentação de riqueza na sociedade de corte da França eram de certa maneira compulsórios, estando contidos na lógica da concorrência por status. O status podia ser obtido ou perdido através do favoritismo do rei e de nobres de altas casas, sendo exprimido através de uma auto-apresentação rígida em forma de etiqueta. Maria Antonieta em diversas ocasiões desrespeitou normas deste arranjo hierárquico – por exemplo, convidando nobres ao Petit Trianon para usufruir de sua companhia, não por critério de nível social, mas de afeição pessoal. Tais ações despertavam a ira dos cortesãos, que viam nelas uma ameaça a seu status, ao mesmo tempo em que se enfadavam com a necessidade de cumprir à risca as tradições. Projeto cenográdico: Estudos de caso
Nenhuma das pessoas pertencentes a essa figuração tinha a possibilidade, individualmente, de liderar uma reforma de tradições. Para cada uma delas, a menor tentativa de reforma, de alteração da precária estrutura de tensões, trazia inevitavelmente um abalo, uma redução e até uma extinção de determinados privilégios [...]. Violar ou abolir tais condições de poder era uma espécie de tabu na camada dominante. Tal tentativa teria provocado a oposição de amplas camadas privilegiadas que temiam, talvez com razão, [...] a ameaça ou destruição da estrutura de dominação que lhes concedia privilégios. (ELIAS, 2001, p.104).
Mesmo os monarcas absolutos encontravam-se reféns nesta trama de relações, incapazes de modificar costumes sob o risco de romper o sistema de privilégios que era a base da existência do indivíduo da classe nobre. A corte estava em um delicado e instável equilíbrio, que se revelou insustentável. Maria Antonieta enquanto personalidade histórica é uma personagem nuançada, sobre a qual podem ser feitos inúmeros recortes; e, definitivamente, existem várias camadas de complexidade para entender o modo como viveu. Sendo uma estrangeira transportada à corte mais extravagante da Europa, um universo que pode parecer a princípio insondável, é fundamental tentar enxerga-la como um indivíduo com vontades e desejos, mas também como uma peça em um intricado jogo de relações sociais e políticas.
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Território tênue
Arquitetura e decoraçãp: o clacissismo barroco Cabem aqui as referências visuais utilizadas para compreender o momento histórico em que viveu a rainha, a começar pela arquitetura da época. O chamado Classicismo Barroco tornara-se o “estilo real” na arquitetura francesa desde o início do reinado de Luís XIV, em 1661 – sendo o Palácio do Louvre o primeiro expoente deste estilo finalizado em seu reinado ( JANSON; JANSON, 2009). A corrente preconizava antes o estudo das formas clássicas, conforme o espírito do Renascimento, do que a adoção da profusão decorativa barroca, constituindo um estilo que se contrapunha sobretudo ao Barroco italiano (KOCH, 1996). No que se refere à vida de Maria Antonieta, o cenário arquitetônico por excelência é o Palácio de Versalhes, a morada real, situada a dezessete quilômetros do centro de Paris. O projeto da majestosa edificação foi iniciado por Louis Le Vau, arquiteto da corte, e sofreu posteriormente diversas ampliações. 59
A Rainha
Pierre Patel, Château deVersailles, 1668
Projeto cenográdico: Estudos de caso
Território tênue
Quarto de dormir da rainha em Versalhes
Todo o bloco central do palácio foi destinado ao notório Salão dos Espelhos; o destaque do conjunto arquitetônico-paisagístico está, no entanto, no extenso parque que se desenrola por vários quilômetros a oeste da Fachada do Jardim, projeto de André Le Nôtre. A respeito do projeto: Como o interior de Versalhes, pretendia-se que esses jardins formais, com seus terraços, fontes, cercas vivas aparadas e estátuas, constituíssem um cenário à altura das aparições públicas do rei. A regularidade geométrica imposta a toda uma região nos arredores do palácio revela, de forma ainda mais impressionante no palácio em si, o espírito do Absolutismo. ( JANSON; JANSON, 2009, p.281).
Embora Maria Antonieta participasse frequentemente de eventos em Paris, suas atividades cotidianas decorriam nas dependências do palácio, sobretudo no quarto de dormir da rainha, aposento que compunha, junto a outros, a ala da rainha - onde passava a maior parte de seu tempo. 60
Território tênue
O quarto era o cômodo no qual dormia, frequentemente acompanhada pelo rei, e onde recebia convidados para realizar a cerimônia do lever; também foi onde deu à luz os herdeiros da coroa. Anteriormente ocupados pelas rainhas consortes Maria Teresa da Espanha e Maria Leszczyńska, os apartamentos da rainha possuem até hoje intervenções decorativas feitas por cada uma das monarcas que lá residiram, como o monograma de Maria Antonieta bordado na cabeceira da cama da suíte real. A opulência decorativa dos aposentos reais foi representada em elementos como tapeçaria, papeis e molduras de parede – as boiseries – mobiliário, balaustrada e roupas de cama. O tema floral mostra-se associado ao universo feminino, embora apareça de forma sutil em outros ambientes. A rainha também frequentava assiduamente as dependências do Petit Trianon, refúgio neoclássico no qual encontrava maior liberdade para cercar-se de companhias sem obedecer a hierarquia social à risca. A Rainha
Interior do Petit Trianon
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Território tênue
Indispensável ao se trabalhar com temas históricos, a pesquisa foi útil para mergulhar no universo da personagem e auxiliar no processo de transpor sua realidade ao palco de uma maneira pertinente aos dias atuais.
Projeto cenográdico: Estudos de caso
Desta forma, foi possível pensar sobre as premissas que pautaram o início do processo criativo.
Processo criativo Desde o início, Beatriz se mostrou receptiva a ideias sobre o produto final, embora em relação a alguns pontos específicos tivesse uma visão definida do que buscava – por exemplo, no referente ao tipo de atuação, em que utilizou o método das ações físicas de Stanislavski. O próprio método trazia uma abertura para que a atriz pudesse criar ao longo dos ensaios, em um trabalho que envolveu diversos exercícios antes de chegar à leitura do texto.
Ao se iniciar o processo criativo, pensou-se nos seguintes fatores: a)
O monólogo seria sobre Maria Antonieta, se passando momentos antes de sua decapitação, enquanto a rainha revisita sua vida;
b)
O ambiente seria a cela na qual ela viveu seus dias finais, embora não necessariamente precisasse constituir uma representação figurativa deste espaço;
c)
A apresentação aconteceria no Teatro Reynúncio Lima do Instituto de Artes da Unesp, unidade situada no bairro Barra Funda em São Paulo, no mês de novembro.
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Território tênue
O primeiro esboço da dramaturgia marca o início do desenvolvimento criativo, no final do mês de abril de 2017. A partir desta data, foram realizados ensaios com a atriz Luisa Juppe e reuniões de brainstorming de ideias para a encenação. O processo mostrou-se colaborativo desde o início, porém uma das dificuldades encontradas foi saber qual seria o tom que a montagem assumiria, pois muitos parâmetros foram deixados em aberto pela falta de um texto definitivo. Algumas propostas iniciais de cenografia foram sugeridas tendo em mente a o deslocamento da personagem pelo palco como uma forma de comunicar algumas ideias chave relacionadas à vida de Maria Antonieta. Nos exemplos abaixo, um dos croquis retrata um praticável com níveis que poderiam representar o movimento de “ascensão e queda” da vida da rainha, e o outro, painéis com diferentes níveis de transparência remetendo a diferentes níveis de privacidade e exposição. Croquis de ideias inicias
A Rainha
Enquanto delineavam-se os contornos do espetáculo, houve intenso diálogo com a diretora, por vezes na forma de perguntas formuladas para tentar esclarecer suas intenções. A presença nos ensaios foi fundamental para estabelecer uma troca de ideias com a atriz, também aluna do curso de artes cênicas.
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O lugar cênico
Projeto cenográdico: Estudos de caso
O teatro Reynúncio Lima, local estipulado para a apresentação, representa um modelo de edifício teatral flexível, graças às suas arquibancadas móveis. Divididas em 6 módulos bipartidos, as arquibancadas permitiram grande liberdade na hora da estipular a organização espacial, fornecendo alternativas fáceis ao palco frontal; a maior limitação ao arranjo da plateia foi o posicionamento das varas cenográficas e de iluminação. A partir destas informações, foram realizados testes de posicionamento da plateia, que iriam determinar o tamanho e a orientação do palco.
Estudos de posicionamento da plateia
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Território tênue
Teatro Reynúncio Lima – DACEFC/IA/UNESP escala 1:100
17,77m 103 104 105 82
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106 107 108 85
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116 117 95
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101 102
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17,51m
15,63m
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A Rainha
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15,96m
As varas são motorizadas LEGENDA Vara de Cenografia Vara de Iluminação
Altura padrão de trabalho: 6m Altura do urdimento: 11m Afinação dos equipamentos com plataforma elevatória
Ponto/Tomada na Vara
PLATÉIA:
Rampa de Acesso (Entrada Público)
Arquibancada com 6 módulos bipartidos (gaveteiro), com rodízios,
Coluna do Ar Condicionado
independentes entre si, com aproximadamente 1,9m de largura,
Acesso ao Camarim
3,6m de profundidade e 2m de altura cada (sem o guarda-corpo)
Escada Marinheiro com Guarda-Corpo (2m de altura) Passarela (3m de altura)
Planta do Teatro Reynúncio Lima
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Construção de repertório imagético
Projeto cenográdico: Estudos de caso
Referências audiovisuais foram importantes parâmetros de como a vida de Maria Antonieta foi representada na mídia, e, portanto, de como a maioria do público deve percebê-la. Dois filmes analisados foram “MarieAntoinette, La Véritable Histoire”, 2006, filme de Francis Leclerc e Yves Simoneau produzido para televisão, e “Maria Antonieta”, também de 2006, filme de Sofia Coppola.
Cenas de “Maria Antonieta” e “Marie-Antoinette, La Véritable Histoire”
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Território tênue
Além disso, para constituir o repertório de imagens que pautaria a arte da peça, foram identificadas palavras-chave que representam partes da dramaturgia, e a elas associadas uma série de imagens, parte de um fluxo de pensamento. O exercício pode ser visualizado na imagem abaixo:
A Rainha
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Território tênue
Planejamento e implementação
Projeto cenográdico: Estudos de caso
Para a cena apresentada no dia 8 de novembro, na qual a rainha reflete sobre sua vida antes de sua execução, buscou-se evocar a atmosfera da cela onde Maria Antonieta passou seus momentos finais, na prisão da Conciergerie em Paris. Para este fim, foram idealizados três elementos principais: a)
Itens de mobiliário presentes na cela: os móveis deveriam ser sugeridos através das formas de seus contornos delineadas com arame, indicando a desconexão da rainha com seus arredores imediatos e conferindo a estes um caráter fantasmagórico. A escolha do material ocorreu por conta da associação do arame com cercas e grades, ligadas à restrição. Sendo o arame um material frio e não convidativo, este deveria contrapor-se à madeira originalmente utilizada nos móveis. A opção de usar o próprio arame e não um material que representasse arame foi uma escolha devida tanto à praticidade do material e sua reatividade à luz quanto à vontade de que as estruturas estivessem expostas, não disfarçadas, como ocorre, por exemplo, em montagens brechtianas. O palco está quase nu, as estruturas estão à mostra e são perfeitamente visíveis, salientadas ainda mais pela proximidade do público à cena. Finalmente, a ideia de contorno de uma estrutura traria uma ligação com o figurino, para o qual foi concebida a estrutura de um pannier francês, explicado mais adiante;
b)
Cruz: o símbolo cristão é visto em diversas fotos da cela reconstituída de Maria Antonieta, e aqui é exagerado em tamanho para representar a imponência da religião como tema da cena;
c)
Tule: o tecido foi pensado a partir de algumas associações principais que sua materialidade evoca – um véu de noiva, um mosqueteiro de berço, o véu sobre o caixão em um velório - refletindo temas centrais do texto – casamento, filhos, morte. O tule deveria envolver os elementos do cenário, pendurado à cruz.
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Território tênue
Pensados estes elementos, foi desenvolvida a ideia do cenário com auxílio de desenhos e maquete, retratados abaixo. A luz seria de tom rosa avermelhado, tom quente constituindo um clima fantasioso.
A Rainha
Maquetes e croqui da proposta de cena
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Território tênue
Situar as arquibancadas próximas às paredes do teatro deveria diminuir o espaço do palco, trazendo uma sensação claustrofóbica. A intenção aqui também era aproveitar a textura de tijolos aparentes do teatro, que no imaginário popular poderia remeter a uma cela. Para os móveis, usou-se aço galvanizado bitola 12, torcidos com ajuda de alicate e fixados com fita transparente. Madeira pintada foi pensada como alternativa, mas ao fim decidiu-se pelo aço por conta de sua aparência geral, reflexividade na luz, preço e praticidade.
Projeto cenográdico: Estudos de caso
Croquis e teste para móveis
A cadeira onde Maria Antonieta se sentaria se diferencia por possuir traços de uma cadeira Luís XV. Remete aos contornos de um trono cuja existência não passa de uma sombra, uma memória. Foi feita com uma estrutura de aço fixada a um cubo de madeira preto de 40x40cm.
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Território tênue
Tratando-se do figurino, buscou-se usar uma paleta monocromática de brancos e beges para simbolizar a falta de requinte, uma vez que tecidos coloridos foram sempre associados com opulência devido ao preço de pigmentos. O teste com peças do laboratório de figurino da Unesp – Lafit - e do acervo pessoal da autora ajudaram a nortear essa decisão, pois estavam à mão uma camisa e um espartilho que se mostraram escolhas pertinentes de vestuário. As roupas retratam não uma versão fiel do que Maria Antonieta usava em seus momentos finais – camisola e gorro – mas antes uma parte da indumentária cotidiana da mulher do século XVIII. O figurino deveria representar ao mesmo tempo decadência e altivez, componentes do drama encenado, como indica a figura abaixo. Para isso, optou-se por deixar a atriz vestida com uma espécie de roupa de baixo.
A Rainha
Panniers do século XVIII
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Território tênue
O pannier foi uma peça de roupa feminina comum no século XVIII, colocada sob os vestidos para constituir a silhueta característica da época. Sua presença no figurino se deve principalmente por estar conectada à adequação social, condizendo com a moda vigente na segunda metade daquele século; além disso, por se tratar de uma peça grande que dificulta a locomoção e limita o movimento das mãos, serve como uma metáfora para restrição.
Projeto cenográdico: Estudos de caso
Croquis do figurino
Realizou-se um protótipo do pannier em papel paraná, a partir do qual criou-se o modelo final. Adicionaram-se ainda alguns adereços trazidos pela atriz: brincos, um anel e uma gargantilha; todos os adereços foram incorporados de forma pertinente à narrativa, relacionando-se às falas da atriz.
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Território tênue
Complementando a vestimenta, foi pensado um terço de cor vermelha vibrante que a atriz usaria no final da cena para rezar. A cor foi concebida de modo a simbolizar a paixão e a dor da monarca durante o ato, servindo também como contraponto visual para a paleta apagada dos trajes. Foi definido pela diretora que a atriz iniciaria a cena sem algumas peças e iria vestindo-se ao longo do texto, o que trouxe dinamismo à encenação e permitiu que adereços do figurino fossem dispostos pelo palco, integrando a composição espacial. A maquiagem e o cabelo foram decididos em conjunto com a atriz e a diretora.
A Rainha
Evolução do figurino
Considerando a premissa de que cada objeto do cenário deve estar em cena com um propósito, a presença de cada um dos itens de mobiliário deveria justificar-se através de ações da atriz, para que o cenário não se tornasse decorativo. Como não houve tempo hábil para construir uma interação da atriz com o mobiliário, a versão final foi sintetizada em apenas um assento e uma cruz. Houveram ensaios com o tule, porém a atriz e a diretora mostraram-se descontentes com o resultado obtido e optou-se por removê-lo. O projeto de iluminação foi discutido com a aluna de artes cênicas Aline Sayuri que coordenou a mesa de luz durante a peça, e optou-se por utilizar uma luz amarela comum, mais condizente com a atmosfera do espetáculo, com uma mudança para âmbar em alguns momentos. 73
Projeto cenográdico: Estudos de caso
Território tênue
Ensaios com o tule
Montagem do palco para apresentação da cena
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Território tênue
A apresentação ocorreu no dia 8 de novembro no teatro Reynúncio Lima. As arquibancadas foram montadas em semi-arena no meio do teatro para que houvessem mais opções de iluminação, determinando uma área circular como palco; a cruz, com 2,5m de extensão, foi pendurada em uma das varas de cenografia a 1m do chão, com uma lanterna iluminando-a do chão para que esta ficasse mais visível, do lado direito do palco, e a cadeira colocada à esquerda. Dispostos de maneira esparsa mais próximos às arquibancadas estavam os adereços no chão.
A Rainha
Durante a cena, Maria Antonieta começa apenas com as roupas de baixo e corpete. Os outros itens do vestuário estão dispersos pelo chão. Conforme fala, a rainha tira da roupa alguns acessórios (anel e um brinco) e vai se vestindo, usando o figurino para sublinhar falas do texto. Finalmente, tira do corpete o terço, ajoelha-se e reza. Anda em direção à cruz, então pega do chão o último item do vestuário - uma gargantilha, que amarra no pescoço que será decapitado em instantes. A rainha anda por um corredor de luz marcado no chão até sair de cena pelo lado da plateia, e uma música barroca festiva toca, marcando o final da apresentação. A cena durou cerca de quinze minutos e foi presenciada por alunos da Unesp, amigos convidados e familiares.
Planta do teatro para apresentação da cena
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Projeto cenográdico: Estudos de caso
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Cenas de A Rainha
Ficha técnica Direção e dramaturgia: Beatriz Avellar Direção de arte: Leticia Cabral Elenco: Luisa Juppe Iluminação: Aline Sayuri Produção: Giovanni Peixoto
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Cena de A Rainha
A Rainha
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Cena de A Rainha
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Cenas de A Rainha
A Rainha
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Cena de A Rainha
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A Rainha
Cenas de A Rainha mobiliário de arame
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Projeto cenográdico: Estudos de caso
Proposta final Realizada a cena, procedeu-se uma análise dos pontos positivos e negativos da apresentação, servindo como parâmetro para uma proposta de encenação final. Dentre os aspectos a serem melhorados estava a visibilidade do arame, da cruz em particular, o que poderia ser resolvido com algumas linhas a mais de arame (os objetos foram feitos com duas voltas de arame) para garantir maior espessura. No geral, a cenografia foi tímida e poderia ter sido mais expressiva. Um dos pontos positivos foi o aspecto do figurino e a maneira como integrou a ação de forma orgânica, além de ter servido para ocupar o espaço do palco. O contraste do bege com o vermelho do terço ocorreu de fato, expandindo-se na luz. Talvez a maior dificuldade encontrada tenha sido alinhar a propostas com as ideias da diretora, pois esta tinha em mente um espetáculo muito fiel aos acontecimentos históricos e possuía certa resistência ao uso de elementos como projeções, restringindo algumas possibilidades. Nesta proposta final, retomo 82
algumas ideias surgidas durante o processo criativo – em especial a de efetuar uma comparação entre a sociedade de corte francesa e a da época atual, tendo em mente o conceito de Sociedade do Espetáculo cunhado por Guy Debord em seu livro de 1967, uma crítica à organização social capitalista de consumo. Para a cena inicial, Beatriz tinha em mente trazer Maria Antonieta aos dias atuais transformando-a em uma youtuber que responde perguntas de seus seguidores. A vigilância constante do olhar público sobre a rainha em sua época assemelha-se àquela de algumas personalidades das redes sociais. O modo como a performatividade existia no cotidiano de cortesãos que realizavam seus rituais sociais para verem e serem vistos por todos encontra um curioso paralelo em um tempo presente no qual questionamentos sobre privacidade e imagem são amplamente pensados. Os conceitos de performance social e vigilância, aliados a indagações sobre o papel da mulher na sociedade pautaram a proposta a seguir, que foi organizada em cinco momentos.
Território tênue
1° momento: Maria Antonieta senta-se perante as arquibancadas dispostas em semiarena, fala para uma câmera posicionada em um tripé a sua frente; a transmissão é projetada ao vivo atrás de si em uma tela tela – um tecido branco fixado sobre o mobiliário de arame que será usado posteriormente (estrutura explicada mais adiante). Veste-se com pompa, com vestido conforme a silhueta da época e peruca, monocromáticos, na mesma paleta da cena apresentada. Ela responde a perguntas de seus seguidores. Uma alternativa ao tripé é a rainha utilizar um bastão de selfie tirado de sua peruca.
Planta do teatro para apresentação da proposta final
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A Rainha
Croqui do figurino
Território tênue
Projeto cenográdico: Estudos de caso
Croquis da estrutura de fixação da tela
A estrutura na qual será fixada a tela de tecido é composta pela cama e pela mesa colocadas na vertical, com os pés voltados para a plateia, sobre cujas extremidades é fixado o tecido branco, uma lona fina. A cadeira sobre a qual se senta Maria Antonieta é a “Ghost chair” de Philippe Starck - inspirada pelo design de cadeiras estilo Luís XVI - translúcida sem cor. A cadeira mantém o mesmo conceito dos demais móveis, de imaterialidade, contornos, intangibilidade. Croquis da cadeira “Ghost”
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Território tênue
2° momento: A rainha vai se despindo conforme fala sobre as acusações sobre sua sexualidade, até ficar somente de camisola. Ao falar, interage com projeções ao fundo de panfletos pornográficos, ou libelles4, imitando as poses retratadas. Em certo momento, luzes vindas de trás ressaltam sua silhueta, expondo seu corpo.
4 Geralmente impressos como pequenas histórias, peças ou panfletos, os libelles possuíam conteúdo vulgar e difamatório sobre figuras públicas, comumente visando Maria Antonieta por volta de 1789 em Paris.
A Rainha
À esq.: Croqui representando o efeito de luz À dir.: Exemplo de libelle
3° momento: A monarca reconstitui o ambiente da cela da Conciergerie onde passou seus últimos momentos, com o mobiliário de arame, enquanto relata momentos desde a queda da bastilha. Posiciona a lona no chão.
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Território tênue
Projeto cenográdico: Estudos de caso
Croquis da do mobiliário antes e depois da deformação
4° momento: Enquanto questiona-se sobre quem foi ela em vida, Maria Antonieta interage com o mobiliário, deformando-o. Conforme fala, faz poses similares à deformação dos móveis, de aparência animalesca.
Croquis da ação proposta
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5° momento: Tal como na cena apresentada, neste momento final a rainha prepara-se para morrer, vestindo-se apenas com fragmentos de seu traje, aparentando roupas de baixo de uma vestimenta do século XVIII. Após colocar a gargantilha, enfatizando seu pescoço, a rainha deita-se no chão, ao centro, e se cobre com o tecido branco – sobre a qual é projetada luz vermelha, marcando sua morte. O cenário acaba com os móveis deformados.
Os momentos descritos acima são proposições que buscam pensar a encenação de maneira mais ampla, explorando a relação entre o corpo da atriz e tudo que existe em cena, incluindo a luz. A proposta afasta-se do teatro realista e busca explorar o sugestivo, simbólico.
A Rainha
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Território tênue Peter Brook, montagem de A Flauta Mágica
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Território tênue
Conclusões
A cenografia teatral é uma arte híbrida: incorpora diversas outras formas artísticas e contamina-se sempre pelos avanços tecnológicos. Seu significado é redefinido conforme evolui o edifício e a noção de lugar teatral, a um mesmo tempo sendo moldada e ajudando a moldar as mudanças sociais. Com o advento da modernidade na transição entre os séculos XIX e XX, a cenografia elevou-se a novos patamares, principalmente ao incorporar a luz elétrica, e passou a atuar em duas correntes cuja oposição se perpetua até os dias atuais – naturalismo e simbolismo, revelando tendências ao realismo ou ao simbólico, sugestivo. Embora, reconheça a importância do realismo, Serroni afirma, comparando as duas vertentes: “Os cenógrafos que me instigam são aqueles que falam por signos, permitindo que o público ‘monte’ suas relações, faça suas próprias leituras” (SERRONI, 2013, p.31). Às cenógrafas e cenógrafos, não importa qual inclinação possuam, é valioso sobretudo cuidar da unidade do espetáculo, através da coordenação dos elementos visuais presentes no palco, o que demanda uma estreita colaboração, nem sempre fácil, com a direção.
Ao realizar durante este projeto experiências práticas, pude ter noção de alguns dos desafios do processo de se montar uma cenografia, principalmente por conta de tempo e recursos; mas ser capaz de idealizar encenações que foram executadas e exibidas ao público mostrou-se uma experiência gratificante. No caso de A Rainha, como a peça final ainda será encenada, a abertura de processo constituiu uma etapa importante de avaliação de possibilidades, oportunidade de testar na prática algumas ideias, para que estas possam ser incorporadas à montagem completa em 2018. O pensamento arquitetônico envolve competências de raciocínio espacial essenciais à cenografia: transposição de escalas, representação gráfica de projeto, sabedoria sobre materiais e, especialmente, sensibilidade sobre percepção ambiental, lançando mão de recursos como luz, cor e disposição de layout. O que muda é acima de tudo a relação com o tempo – o espaço arquitetônico pertence à permanência e ao retorno; o espaço teatral, à experiência presente, efêmera e transitória. Território tênue que existe num momento e não mais no outro.
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Bibliografia
BERTHOLD, M. História Mundial do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001. CARLSON, M. Teatro Pós-dramático e Performance Pós-dramática. Rev. Bras. Estud. Presença, Porto Alegre, v. 5, n. 3, p. 577-595, set./dez. 2015. ELIAS, N. A Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 2001. FERNANDES, S. Experiências de performatividade na cena brasileira contemporânea. Art Research Journal / Revista de Pesquisa em Arte, São Paulo, v.1/1, p.121-132, jan./jun. 2014. FRASER, A. Maria Antonieta. Rio de Janeiro: Editora Record Ltda., 2001. JANSON, H. W.; JANSON, A. F. Iniciação à História da Arte. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. KOCH, W. Dicionário dos Estilos Arquitetônicos. São Paulo: Martins Fontes, 1996. MANTOVANI, A. Cenografia. São Paulo: Editora Ática S.A., 1989. ROUBINE, J. J. A linguagem da encenação teatral, 1880-1980. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda., 1998. SERRONI, J. C. Cenografia Brasileira: Notas de um cenógrafo. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2013. URSSI, N. J. A Linguagem Cenográfica. 2006. 122 f. Dissertação
(Mestrado em Artes) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2006. WILKIE, F. Out of Place: The Negotiation of Space in Site-Specific Performance. 2004. 262 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – School of Arts, University of Surrey, Guildford, Inglaterra. 2004. ZILIO, D. T. A evolução da caixa cênica: Transformações sociais e tecnológicas no desenvolvimento da dramaturgia e da arquitetura teatral. Pós, São Paulo, v.17, n.27, p.154-173, jun. 2010. Editores Biography.com. Marie Antoinette Biography.com, 2017. Disponível em < https://www.biography.com/people/marieantoinette-9398996 >. Acesso em: 28 ago. 2017. TEATRO da Crueldade. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2017. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo13540/teatro-da-crueldade>. Acesso em: 29 de Out. 2017. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7
Apêndice APÊNDICE 1 – Dramaturgia QUEER.DOC APÊNDICE 2 – Dramaturgia A Rainha (trecho encenado)
APÊNDICE 1 – Dramaturgia QUEER.DOC Durante as cenas, Marcos escreve versículos no espelho com batom e/ou os recita em voz alta. PRELÚDIO (A Morte entra e provoca Marcos, que está atormentado. Ela joga palavras e ele responde como se estivesse rezando). — Menino. Bonito. Olho. Fechado. Coração. Disparatado. Mão. Suando. Frio. Barriga. Toque. Abraço. Boca. Beijo. Quente. Pele. Quente. Amor? Amor. Segredo. Medo, medo, medo... Esconde. Mente. Armário. Escuro. Deslize. Pequeno. FAMÍLIA! (pausa) Desculpa! Culpa, culpa, culpa, culpa, culpa... Amor. Horror, horror, horror, horror, horror... Pecado! Diabo, diabo, diabo, diabo, diabo... Tortura. Cura, cura, cura, cura, cura, cura, cura, cura... @marcos3016 “Atende ao meu clamor; porque estou muito abatido. Livra-me dos meus perseguidores; porque são mais fortes do que eu”. Salmos 142:6 CASAL (1/2) 1 — Eu não vou dizer que foi fácil porque... Bem, porque não foi mesmo. Nem pra mim, nem pra ela. Não é amor? 2 — Não, definitivamente. 1 — Mas a gente queria ajudar de alguma forma. Sempre quisemos o melhor pra ele, então... 2 — É. 1 — E ele é meu irmão, né? 2 – É, seu caçula. Não se pode virar as costas pra família. 1 — Pra família não. Jamais. 2 – E se esse era o único jeito... 1 – Foi o que eles disseram, né? 2 — É, os médicos. 1 — O único jeito. Tinha que ser com alguém que ele conhecesse, em que ele confiasse... (pausa desconfortável)
3 — Desde que o mundo é mundo eu estou aqui. Essa história de que eu apareci agora, de que me inventaram... Eu não fui inventada por ninguém. 1 – Hoje ele tá namorando a... Como é o nome dela mesmo, amor? 2 – É Lúcia, não é? 3 — Quem diz? 1 — Lúcia ou Leandra. Acho que é. 2 — Pode ser Leandra. Nós não a conhecemos ainda. 1 — Ele disse que vai trazer ela aqui em casa pra apresentar. 3 — Essas crianças acham que sabem de tudo. Só eu sei o que eu vivi. 2 — Eu quero fazer o meu ensopado quando eles vierem. Será que ela gosta? 1 — Acho que sim. Acho que gosta. 2 — Ele gosta, então ela deve gostar também. Estão noivos, os dois. 3 — Eu posso estar mais aparecida agora, mais visível, mais forte, mas eu sempre estive aqui. 1 — Eles vão casar. 3 — Escondida nas sarjetas, nos quartos escuros, nos acampamentos de batalha, mas sempre presente. 2 – Foi o que ele falou pra gente. 3 – E é aqui que vou continuar. 1 — É, pelo menos foi o que ele falou. CLÍNICA (O namorado entra e agarra Marcos. Começam a se beijar ao fundo). 4 — Essa aqui é a nossa sala de convivência. Tem videogame, revistas, cervejas... Tudo que os homens gostam. Os meninos não estão aqui agora, foram para o estádio de futebol. Acho que foram ver Grêmio e Palmeiras. 5 — A nossa filosofia é que, se você quer de verdade e tem fé, Deus proverá essa mudança na sua vida. 4 — Os quartos ficam nessa ala. São todos individuais, sim. 5 - É pra evitar, né? Nós já tivemos dormitórios conjuntos, mas não dava muito certo. (ouvem-se gemidos ao fundo) 5 — (Nervosamente)Não cabe ao Estado decidir isso. Só faz a terapia quem quer. É uma decisão pessoal. Eles não falam tanto de liberdade? Cadê a liberdade dessas pessoas, que querem se livrar desse mal.
4 — Temos alguns banheiros nos espaços comuns também. É, nesses tiramos os mictórios. Parece que nesse meio acontece muita coisa nos banheiros... Então a direção ordenou a retirada. Tudo pra que não haja tentação. @marcos3016 “Vigiai e orai para que não entreis em tentação... 5 — (Gemidos intensos ao fundo) A nossa taxa de sucesso é altíssima (voz aguda, nervosa). Eu diria que hoje é de 95%. 4 — Eu não vou mentir, já vi sim. Tem meninos que são criativos, encontram cada jeito! Mas eles monitoram pelas câmeras, então evita. @marcos3016 ...na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca” Mateus 26:41 5 — Normalmente é a família que traz os jovens aqui, mas isso não quer dizer que eles não queiram. Muito pelo contrário, a maioria quer muito mudar. Até porque, quem iria gostar de permanecer assim, desviado?! (Mais gemidos) 4 — Eu gosto de trabalhar aqui, os meninos são bons. A gente se apega, né? Eu fico com dó porque às vezes o brilho no olhar deles some, mas eu sei que é pro bem deles. E se é pro bem, a gente faz. 5 — Eu tenho orgulho de dizer (discussão ao fundo entre 4 e 1) que nós atendemos pessoas de todo tipo. Como o nosso tratamento é especial (mais alta) então vem gente... Você pode me dar licença por favor? (aos fundos, 4 tenta controlar 1, sem sucesso. Uma nova cena se inicia simultaneamente com 5 e 6, este ultimo o namorado de Marcos). 4— Ela tenta me controlar, mas não consegue. 5 — Você faz mal pra ele. Eu tento colocar a vida no eixo, mas assim não dá. 1 — (aos fundos) doutora, eu preciso falar com você. Ela disse que eu não podia, mas eu tenho que falar com você. 4 — (aos fundos) ok, respira... vamos pra um lugar mais reservado...
6 — Eu faço mal? Eu só quero que ele seja feliz, deixar ele conhecer o mundo. 1 — (aos fundos) não tem Leandra, Lúcia, não tem ninguém. 5 — Ele não foi feito pra esse mundo em que você quer enfiar ele. 1 — (aos fundos) O Marcos mentiu pra gente. Ele não tá bem. 4 — (aos fundos) se acalma... 6 — Ela é muito conservadora, sabe? Caxias demais. 5 — O que tem de errado em ser mais tradicional? Se você me ouvisse, ele seria mais feliz. Você não quer que ele seja feliz? 4 — (aos fundos) se acalma que a gente vai resolver... 6 — Como ele pode ser feliz sem amar?! Não tem como, você não percebe? 5 — Ele podia sentir isso de outro jeito. 1 — (aos fundos) eu ofereci a minha mulher, doutor. 6 — Você não pode me mudar. Tenho meus próprios desejos e necessidades. 1 — (aos fundos) você disse que ele ia melhorar... 5 — Está vendo como funciona? Ele quer destruir tudo que eu faço de bom. 6 — Ela só me atrapalha. Fica pensando demais. 5 — É meu trabalho pensar. 1 — (aos fundos) que ele ia melhorar se a gente concordasse 6 — Mas o garoto tem que sentir também. Ele precisa disso na vida dele. 5 — Ele vai acabar surtando se você não parar. 1 — (aos fundos) a gente fez tudo que você pediu. 6 — Mas ele não pode viver sem mim. 4 — (para a câmera) Você pode desligar isso, por favor? @marcos3016 “Atende ao meu clamor; porque estou muito abatido. Livra-me dos meus perseguidores; porque são mais fortes do que eu”. Salmos 142:6 ESTATÍSTICA 7 e 8, membros da equipe de filmagens. 7 — Então vamos falar de números. Em média, uma em cada dez pessoas são homo ou bissexuais no Brasil. 8 — Menos na cidade do Rio de Janeiro, onde duas em cada dez
pessoas não são heterossexuais. 7 — Sim, menos no Rio de Janeiro. Mas, ainda assim, estamos falando, claramente, de uma minoria. 8 — Depende. 7 — Depende? 8 — Em uma pesquisa recente com a Geração Z, menos da metade dos entrevistados se identificou como totalmente heterossexuais. 7 — Isso entre os jovens? 8 — Sim, nascidos a partir de 1995. 7 — Mas essa pesquisa foi feita no Brasil? 8 — Não, na Inglaterra. 7 — Então não podemos generalizar. Até porque, o Brasil é um país de maioria cristã. Quase 90% da nossa população tem essa fé. 8 — Nove em cada dez pessoas? 7 — É, nove em cada dez. Logo, podemos concluir que quem não é cristão, é gay ou é bissexual. 8 — Como assim? 7 — Segundo os dados, em cada 10 pessoas: 9 são cristãs e 1 é LGBT. 8 — Mas existem gays que são cristãos. 7 — Existem? 8 — É claro. Assim como cristãos que possuem fantasias que vão contra a própria fé. Sabia que o Brasil é maior consumidor de pornografia com transexuais no mundo? Você acha que só 10% da população faria isso sozinha? 7 — Mas não é também o que mais mata transexuais?! 8 — Exatamente. E também onde, para cada dez jovens LGBTs: oito já desejaram “sumir”, cinco pensaram em “não viver mais” e um tentou tirar a própria vida. Uma propensão ao suicídio cinco vezes maior que aquela registrada entre jovens heterossexuais. 7 — Essa pesquisa foi feita no Brasil? 8 — Essa foi. Infelizmente. @marcos3016 “Porque eu declararei a minha iniquidade; afligir-me-ei por causa do meu pecado”. Salmos 38:18. MORTE Tem gente que acha que o meu trabalho é ruim, que é penoso e muitas vezes é mesmo, eu demorei pra acostumar. A maioria das
pessoas chora, pede mais tempo, diz que não quer, que não pode... É difícil! Mas tem dias que é diferente. Tem gente que me olha com alívio quando eu chego. Esse menino que você tá perguntando foi um desses. Ele olhou pra mim com um brilho enorme no rosto e perguntou “Acabou?”. Eu respondi que sim. Então ele me abraçou forte, me beijou e depois chorou no meu colo. Mas não foi um choro triste, não. Foi um choro de alívio. Lágrimas de alegria. CASAL (2/2) 1 — O que eu escrevo na lápide dele? 2 — Eu não sei. 1 — Escrever que ele foi um anjo é mentira. 2 — As pessoas mentem nas lápides, eu acho. 1 — Pensei em colocar: “Aqui jaz um anjo que Deus levou cedo demais”. 2 — Mas não foi Deus que levou. 1 — O quê? 2 — Não foi Deus que levou. Ele decidiu sozinho que era a hora, por conta própria. 1 — Você não disse que eu poderia mentir? 2 — É verdade. Desculpa, amor. Coloca o que você quiser. @marcos3016 “Porque aquele que está morto está justificado do pecado”. Romanos 6:7 1 — Você acha que ele vai pro céu? 2 — Ahn? 1 — Você acha que o Marcos vai pro céu? 2 — Não sei. Ao menos ele não pecou. 1 — Não de um jeito, mas de outro. 2 — Não entendi. 1 — Suicídio não é pecado? 2 — É, mas pelo menos ele não viveu em pecado, né? Só morreu em pecado. 1 — Quem você acha que Deus prefere? Um suicida ou um homossexual? 2 — Que pergunta, Jorge! 1 — Quem você acha que ele perdoa? 2 — Eu não posso responder por Deus.
JESUS Pô, cara, eu só aceitei fazer essa entrevista pra esclarecer isso de uma vez por todas. Ninguém nunca chegou em mim e perguntou: “Meu irmão, o que é que você acha disso”, entendeu? Nunca. Porque se tivessem, eu teria falado: “Tão fazendo mal pra alguém? Se não tão, tá tudo bem”. Porque pra mim é isso. Se tem amor é o que importa. A minha mensagem sempre foi essa, sacou? O amor. E a minha parte do livro é a segunda, entendeu? A segunda. Esquece a primeira. Eu só me arrependo de não ter escrito aquela porra. Eu mandei os caras anotarem o que eu falava e aí deu no que deu. Agora eu tenho que ficar dando entrevista em documentário pra dizer que vocês entenderam tudo errado. Me deixa puto, sabe? Puto, mas com amor. Era só isso que eu queria dizer.
APÊNDICE 2 – Dramaturgia A Rainha (trecho encenado) Mas agora afinal... Quem sou eu? QUEM SOU EU? Quem sou eu,aqui, agora? Rainha.. Ex rainha.. Viúva Bourbon.. Viúva Capeto.. Mãe... Mulher..Esposa... Adorada... Odiada... Pelo menos algumas dessas coisas eu fui, ou pelo menos tentei dar o melhor de mim pra ser. Duas palavras selaram meu destino: Eu aceito. Palavras que praticamente nunca saíram da minha própria boca, eu me tornei uma rainha porque casei com um rei, me casei com um rei por que precisavam que eu fizesse isso. Acho que nunca ninguém pediu minha opinião pra nada, principalmente em relação a decisões que marcariam minha vida para sempre. Como uma garota de 12 anos poderia recusar a decisão de uma mãe rígida? Eu a temia e não teria como evitar uma decisão que poderia marcar a paz entre nações, eu era uma criança. Eu tive que me adequar para poder casar com o Delfin, minha mãe achava minha aparência agradável, mas não o bastante. Não foi fácil ter que fazer tantas mudanças, negar a cultura do meu país, para agradar pessoas que eu sequer conhecia. Deixar o mundo que eu vivia para ir rumo ao desconhecido. Eu não me arrependo da vida que tive, só talvez tivesse um fim diferente se tivesse tomado outras decisões, ou se minimamente eu tivesse feito escolhas. As poucas vezes que decidi mudar algumas coisas na minha própria vida, ter uma vida pessoal, ter privacidade, as pessoas me odiaram. Eu não podia vestir roupas mais leves porque uma rainha não se veste assim, eu não poderia ter amizades por empatia, só por hierarquia. Eu também fiquei cega, cega pelas minhas distrações, pelo luxo, pelo tédio, pela vontade de mudar a minha vida e não a do povo. Nesse momento, que eu paro pra pensar nessas coisas, eu vejo que eu nasci pra obedecer e obedeci muito bem, eu fiz tudo pra cumprir com deveres que me deram, e cumpri, se eu cumpri, então por que irei morrer? Estou sendo condenada
por absurdos que nunca fiz, por boatos, por tentar ter uma vida pessoal? Não importa mais nada, me falta um dever, só mais um, morrer como uma rainha, não me faltou coragem por toda minha vida, como ver o meu lar ser invadido com pessoas pedindo minha cabeça, ou apontando armas a mim e a meus filhos, não é agora que vou me ver livre de todo sofrimento que já vivi, que não serei corajosa. Ajoelha-se para rezar: Eu fui condenada, não a uma morte sem honra, destinada a criminosos, mas condenada a reencontrar o rei. Inocente como ele, espero poder mostrar a mesma firmeza nos meus últimos momentos. Estou calma, como alguém cuja consciência se reaproxima do nada. Eu me sinto muito triste de deixar minhas pobres crianças. Deixe que ambos aprendam a lição que eu nunca deixei de frisar, a de que os princípios e o total desempenho de suas funções são a base da vida; e que o afeto mútuo e confiança um no outro é que irá constituir sua felicidade. Deixe que eles, resumindo, sintam que, não importa em que posição estejam, eles nunca serão verdadeiramente felizes se não por meio da união. Deixe que meu filho nunca esqueça as últimas palavras de seu pai, que eu repito com força; Impeça-o de buscar vingança por nossas mortes. Morro na religião Católica Apostólica Romana, que foi a de meus pais, que me trouxe a vida e que sempre professei. Não havendo nenhum consolo espiritual para procurar, e nem ao menos sabendo se existem nesse lugar padres dessa religião (realmente o lugar onde estou os exporia a perigo demais), eu sinceramente imploro o perdão de Deus por todos os pecados que eu possa ter cometido durante a minha vida. E perdôo todos os meus inimigos pelos maus que me causaram. Levanta e vai em direção as luzes no chão, ao som de tambores, rezando baixinho em alemão o pai nosso, some na escuridão, os tambores param.
Território tênue
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