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capítulo 4. A longa e permanente ação de cuidar

cessários para o enfrentamento de seus problemas (FEUERWERKER, 2016).

Para abranger as dimensões que envolvem o processo de envelhecimento, é fundamental que a equipe desenvolva um trabalho interdisciplinar. Não é tarefa simples. A interdisciplinaridade enovela o pressuposto da integração entre as disciplinas e a intensidade de trocas entre os profissionais, que incorporam seus conhecimentos em um novo modo de agir e na forma como se produz o cuidado em saúde, evitando a ótica da individualidade e, consequentemente, da fragmentação do cuidado (BERTAZONE et al., 2016).

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O objetivo deste capítulo é, a partir de um caso clínico que se desenvolveu em um hospital público, discutir como a abordagem multidisciplinar com ações interprofissionais da geriatria e da gerontologia permitiu promover melhoria da qualidade de vida a uma idosa de 70 anos com evidências de comprometimento cognitivo.

Fisiopatologia e diagnóstico

A cognição é um dos desafios no atendimento de pessoas idosas. Trata-se de uma das áreas mais exploradas em neurociências e neurologia comportamental nas últimas décadas. Seu amplo espectro inicia-se no indivíduo cognitivamente normal, passa pelas alterações cognitivas sutis, segue com o comprometimento cognitivo leve (CCL) e pode culminar nos quadros demenciais.

Com o envelhecimento populacional revelado pelas estatísticas oficiais, o CCL vem despertando interesse em pesquisas, uma vez que sua evolução para demência trará repercussão na qualidade de vida dos indivíduos (SCHIMIDT et al., 2020; PETERSEN; NEGASH, 2008; SARASIN; DUBOIS, 2002). Desde o século XX, estudiosos reconhecem a importância do diagnóstico precoce do CCL em função da interferência na autonomia, um dos fundamentos da saúde e da própria constituição do indivíduo.

Petersen (2000; 2003) o classifica como estágio intermediário entre envelhecimento cognitivo normal e a demência. O referido autor aponta que, na maioria das vezes, o CCL evolui para um quadro demencial franco, embora exista a possibilidade de reversão para um estágio de funcionamento cognitivo normal. O CCL pode afetar qualquer domínio da cognição, com maior prevalência de prejuízo de memória, atenção, linguagem, funções executivas e habilidades visuoconstrutivas. Seus critérios clínicos podem ser observados no Quadro 1.1. Em 2014, a American Psychiatric Association o incluiu no DSM-5 como transtorno neurocognitivo menor.

Quadro 1.1: Critérios clínicos para diagnóstico de comprometimento cognitivo leve

Queixa subjetiva de prejuízo ou declínio cognitivo. Evidência objetiva de comprometimento cognitivo. Funcionalidade normal nas atividades da vida diária.

Ausência de demência.

Desde a década de 1980, construiu-se um modelo baseado na hipótese amilóide de mudanças dinâmicas sequenciais dos biomarcadores para explicar a Doença de Alzheimer (DA), propondo uma cascata prototípica com duração de anos, durante a qual o acúmulo da proteína β-amilóide cerebral e a hiperfosforilação da proteína tau impulsionam a neurodegeneração e acarretam os sintomas cognitivos associados (SNITZ; BRICKMAN, 2019). Para Thomas e colaboradores (2020), a deposição de amilóide ocorre muito antes do declínio cognitivo e, para o diagnóstico de DA, a presença de déficit da cognição não deve preceder as taxas de acumulação de deposição de amilóide. Os mesmos autores observaram que adultos mais velhos sem demência, mas com dificul-

dades cognitivas sutis identificadas de forma objetiva em testes neuropsicológicos, têm aumento da deposição de amilóide no cérebro em imagens de PET SCAN.

As demências podem ser classificadas de diversas formas. Para a finalidade deste capítulo, os autores as dividem entre primárias e secundárias. No primeiro grupo, encontram-se as demências irreversíveis (p. ex., Demência de Alzheimer, Demência de Lewy, frontotemporal) e, no segundo, aquelas potencialmente reversíveis (p. ex., hidrocefalia normobárica, hipotireoidismo e hipovitaminose B12).

A maioria das demências combina fatores de risco modificáveis e não-modificáveis. A abordagem dos primeiros impacta o indivíduo de forma diferente em fases distintas de seu curso de vida. Modificar obesidade e hipertensão arterial em uma pessoa de 60 anos não terá o mesmo impacto do que fazê-lo em outra de 90 anos - à medida que uma pessoa envelhece, tende a perder peso, estabilizar e até reduzir a pressão arterial. Quanto mais precoce a intervenção nesses fatores de risco, maior a possibilidade de proteção cognitiva. Avaliar e propor abordagens em tais fatores exige observação clínica e decisões terapêuticas que contemplem a heterogeneidade do envelhecimento (LIVINGSTON et al., 2020).

Cabe destacar também a importância dos achados laboratoriais no diagnóstico diferencial da etiologia das disfunções cognitivas. Hiperhomocisteinemia e diabetes mellitus, bem como outras alterações metabólicas, têm associação com maior incidência de disfunção cognitiva (LEE et al., 2021).

O caso a seguir motiva a discussão das intervenções disponíveis.

Idosa, 70 anos, cozinheira e jardineira, aposentada por invalidez, com escolaridade de 5 anos, casada, residindo com o esposo de 75 anos; mãe de quatro filhos que moram distantes de sua casa; dedicada à religião kardecista e amante de música. Encaminhada ao ambulatório de geriatria após o 4º episódio de Acidente Vascular Encefálico (AVE) isquêmico com perda importante de funcionalidade após esse evento. Caminha em casa somente com auxílio de terceiros e usa cadeira de rodas em via pública. Apresentou crises convulsivas e, por tal motivo, faz uso regular de anticonvulsivantes. Tem diagnóstico de hipertensão arterial sistêmica, dislipidemia e doença coronariana com infarto agudo do miocárdio prévio.

Após o AVE mais recente, evoluiu com sequela motora (hemiplegia em dimídio direito), incontinência urinária noturna, disartria, afasia e perda da memória recente, com dependência funcional para todas as atividades instrumentais (AIVD) e básicas da vida diária (ABVD), exceto alimentação. Na primeira avaliação de rastreamento cognitivo, apresentou mini-exame do estado mental (MEEM) de 5/30.

Após 3 anos, retornou ao ambulatório com MEEM de 3/30 e perda funcional completa. Além da avaliação geriátrica, foi submetida a investigação diagnóstica com exame de imagem. Da equipe gerontológica, foram solicitadas as avaliações da fisioterapia (reabilitação funcional/motora), da fonoaudiologia (estimulação cognitiva e melhora da linguagem), do serviço social (orientação acerca dos direitos da idosa, a fim de melhorar a condição financeira para prover os cuidados), da terapia ocupacional (orientação de adaptações para melhoria da funcionalidade) e da psicologia (abordagens com os familiares para promover adesão ao cuidado proposto).

Em reunião subsequente de equipe, houve a proposta de abordagem cirúrgica da grave obstrução carotídea, cuja correção traria possibilidade de reversão, ainda que parcial, das disfunções cognitivas e funcionais. A família resistiu à intervenção cirúrgica, o que demandou repetidas conversas com membros da equipe, até que o procedimento foi autorizado e realizado.

Seis meses após endarterectomia e reabilitação intensiva pela equipe psicofuncional, a repetição da avaliação cognitiva da paciente registrou MEEM de 13/30, recuperação parcial da continência e da comunicação. Ela voltou a se alimentar sozinha e a fazer solicitações simples. Também conseguia andar com menos auxílio. A partir dessa consulta, indicou-se início de estimulação cognitiva por meio da musicoterapia, além das demais atividades já em curso.

A abordagem interdisciplinar

As demências são condições complexas que exigem abordagens múltiplas, porém coordenadas, divididas por propósito didático em farmacológicas e biopsicossociais (ou não-farmacológicas).

O tratamento farmacológico visa o controle dos sintomas cognitivos e comportamentais e inclui medicamentos diversos, como anticolinesterásicos, antagonistas dos receptores N-metil-D-aspartato (NMDA), antidepressivos, antipsicóticos e psicoestimulantes. No caso em questão, por se tratar de demência por doença cerebrovascular, o uso de antiagregante e estatina é fundamental para prevenção secundária de novos eventos isquêmicos, mas não impacta na síndrome demencial já instalada. Em uma fase poste-

rior, com total dependência e impossibilidade de reversão do prejuízo funcional, tais medicamentos devem ser reconsiderados.

Os anticolinesterásicos (rivastigmina, donepezila e galantamina) aumentam a concentração de acetilcolina na fenda sináptica e podem melhorar a cognição ou atenuar o declínio cognitivo nas fases inicial e moderada de demência de Alzheimer, demência por corpos de Lewy e demência na doença de Parkinson (O’BRIEN et al., 2017). Não há evidência para seu emprego na demência vascular pura, apenas para as formas mistas. Em geral, os anticolinesterásicos são bem tolerados e constituem tratamento de primeira linha também para o controle das alterações comportamentais na demência. Contudo, podem agravar a agitação em pacientes com demência frontotemporal e não devem ser usados nestes. Ademais, convém conhecer seu extenso perfil de efeitos colaterais, que incluem perda de apetite e peso, bem como arritmias e indução ou piora de incontinência urinária.

A memantina atua como antagonista dos receptores de NMDA. Uma metanálise recente demonstrou benefício do uso da memantina na cognição e na funcionalidade de pacientes com demência de Alzheimer em estágio moderado a avançado, independente do uso concomitante ou não de anticolinesterásico (McSHANE et al., 2019). Entretanto, o mesmo não foi observado na demência de Alzheimer na fase inicial. Portanto, apesar de prática comum, não há qualquer suporte para o uso da memantina na fase inicial. Questiona-se o benefício na demência vascular leve a moderada, com poucas evidências, que são ainda mais limitadas em outros tipos de demência (Lewy, Parkinson, frontotemporal e relacionada à AIDS). Importante ressaltar que anticolinesterásicos e memantina não estão indicados para pacientes com comprometimento cognitivo leve.

Antidepressivos, especialmente os serotoninérgicos e, dentre eles, o citalopram, possuem crescente utilidade no tratamento de sintomas de agitação na demência (WILKINS; FORESTER, 2016), apesar de não serem eficazes para tratamento da depressão secun-

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