O jornalismo investigativo durante o Regime Militar no Brasil

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Faculdade Estácio de Sá de Belo Horizonte Curso de Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo

O jornalismo investigativo no jornal impresso durante o regime militar no Brasil

Letícia Damasceno Murta Dezembro de 2008


Letícia Damasceno Murta

O jornalismo investigativo no jornal impresso durante o regime militar no Brasil

Monografia apresentada ao Curso de Comunicação Social da Faculdade Estácio de Sá, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Jornalismo,

sob

Magalhães.

FESBH Belo Horizonte 2008

orientação

do

mestre

Evaldo


LetĂ­cia Damasceno Murta

O jornalismo investigativo no jornal impresso durante o regime militar no Brasil

Aprovado em: (

Nota final: (

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Orientador: Evaldo MagalhĂŁes

nota: (

)

Avaliador: Marcelo Freitas

nota: (

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Dedico esta monografia a meus pais pela educação, compreensão e carinho e por terem me ensinado a amar os livros. À minha avó por acreditar tanto em mim. Ao meu irmão por alegrar minha vida. Ao Leandro pelo amor e paciência. À Helen pela amizade de sempre. À Mariana por ter me inspirado a ser jornalista. Ao Carlos Eduardo por me apoiar de diversas maneiras. Aos meus amigos de curso por terem me acompanhado durante toda a caminhada.


Agradeço ao

professor Evaldo pela confiança em

meu trabalho e a liberdade que me proporcionou para a conclusão do mesmo. Agradeço também aos professores que me transmitiram conhecimento durante os quatro anos de graduação. Em especial, agradeço aos professores Kátia Mássimo, Maria Amélia Ávila, Ricardo Bastos, Marcelo Freitas e Hila Rodrigues pelo carinho e dedicação.


“Jornalismo é publicar o que alguém não quer que seja publicado; todo o resto é publicidade” George Orewell


RESUMO Este estudo realiza uma análise do jornalismo investigativo publicado em jornais impressos diários no Brasil, durante o período do Regime Militar (1964-1985). A análise verifica a importância da prática investigava para o cumprimento da função social do jornalismo. O estudo delimitou as reportagens investigativas dentro do jornalismo e buscou bases para legitimar a prática como um gênero jornalístico.

PALAVRAS CHAVE: Jornalismo investigativo, reportagem, Regime Militar, Teoria do Newsmaking.


SUMÁRIO INTRODUÇÃO.................................................................................................08

1-REFERENCIAL TEÓRICO...........................................................................09 1.1 Função Social. do jornalismo...................................................................09 1.2 Jornalismo investigativo...........................................................................11

2-TEORIA DO NEWWSMAKING.................................................................15

3- CONTEXTO HISTÓRICO...........................................................................19

4- METODOLOGIA..........................................................................................32

5- ANÁLISE DE CONTEÚDO.........................................................................34 5.1 “Torturas em 1964”..................................................................................35 5.2.1 Critérios de noticiabilidade ............................................................36 5.2.2 Apuração.........................................................................................38 5.3 “Assim vivem nossos superfuncionário”.................................................41 5.3.1 Critérios de noticiabilidade.............................................................41 5.3.2 Apuração.........................................................................................43 5.4 “BNH favorece a Delfin em Cr$ 60bi”…………………………………46 5.3.1

Critério de noticiabilidade……………………………………....46

5.3.2

Apuração .....................................................................................47

CONCLUSÃO....................................................................................................50 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................52 ANEXOS 1 – “Assim vivem nossos superfuncionários”...................................................54 2- “BNH favorece a Delfin em Cr$ 60 bi”........................................................70 3 – “Torturas em 1964”.....................................................................................77


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Monografia Letícia Damasceno Murta

INTRODUÇÃO Levando em conta a função social do jornalismo de vigilância sobre as ações do Estado, este estudo avalia o jornalismo investigativo no período do Regime Militar no Brasil, que teve início com o golpe de estado de 1964. Para tanto, o estudo analisa três reportagens publicadas em jornais diários, em épocas diferentes do Regime Militar. Como recorte do material impresso brasileiro produzido no período, foram selecionadas as reportagens “Torturas em 1964”, publicada pela jornal Correio da Manhã, em 1964, “Assim vivem nossos superfuncionários”, publicada pelo jornal O Estado de São Paulo, em 1976, e “BNH favorece a Delfin em Cr$ 60 bi”, publicada pelo jornal Folha de São Paulo, em 1982. No primeiro capítulo foi feito um levantamento teórico para embasar o estudo sobre as práticas jornalísticas. Foi necessário traçar a função social do jornalismo para compreender a importância da sua atuação responsável. No mesmo capítulo, o estudo faz a conceituação do jornalismo investigativo e delimita qual a sua legitimidade dentro do jornalismo. No segundo capítulo, foi feita uma análise sobre os critérios de noticiabilidade que determinaram os focos dados às reportagens. Para tanto, a Teoria do Newsmaking serve de base para verificar quais os critérios adotados na seleção dos temas abordados e qual a importância dos mesmos para a sociedade. O período escolhido para a realização deste estudo causou impactos diretos à imprensa. A fim de verificar até onde o controle do estado pode impedir a atuação jornalística, o estudo apresenta no terceiro capítulo o contexto histórico em que as reportagens foram produzidas. A avaliação das reportagens foi feita por meio da análise de conteúdo, apresentada dentro da metodologia no capítulo quatro. No capítulo cinco, o estudo faz uma análise sobre os critérios de noticiabilidade que determinaram o foco dado às reportagens e quais elementos que caracterizam as matérias como jornalismo investigativo.


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1- REFERENCIAL TEÓRICO 1.1- FUNÇÃO SOCIAL DO JORNALISMO Para o entendimento da importância das reportagens investigativas, o estudo faz uma reflexão sobre a função social do jornalismo. Em sua atuação primordial o jornalismo “é considerado a profissão principal ou suplementar das pessoas que reúnem, detectam, avaliam e difundem as notícias; ou que comentam os fatos do momento.” (KOSZYK; PRUYS, 1976 apud KUNCZIK, 2001, p. 16). Junto a isso, podemos unir a afirmação de Lasswell (1948) que designa à comunicação três funções básicas. Segundo ele, a comunicação deve exercer

a vigilância

sobre o meio ambiente, a correlação das partes da sociedade e a transmissão da herança social de uma geração para a outra. Para Lasswell (1948), a vigilância diz respeito à coleta e a circulação de informações sobre os acontecimentos que pertencem a um grupo social. Ele ainda acrescenta que a função de vigilância deve servir como orientação para o grupo sobre assuntos de relevância e que são importantes para a estabilidade do mesmo. Kotscho (2001) reforça essa colocação dizendo que “em qualquer época, uma das funções principais do jornalismo é a de fiscalizar os poderes públicos e é o repórter o encarregado desta tarefa” (KOTSCHO, 2001, p. 34). A discussão sobre as responsabilidades da imprensa e seu papel na sociedade começam junto com o desenvolvimento da civilização, como explica Kunczik: À medida que cresceram as liberdades políticas, religiosas e econômicas com o advento do Iluminismo, também aumentaram as exigências de uma nova autoperpetuação da imprensa. Nasceu a teoria liberal, que chegou ao auge durante o século XIX. As pessoas eram consideradas seres racionais, capazes de distinguir entre a verdade e a mentira. A imprensa deveria ser, digamos assim, um sócio na busca da verdade, e não um instrumento do governo. A exigência de que a imprensa controlasse o governo surgiu com essa teoria. Tornou-se comum referir-se a imprensa como o “Quarto Poder”. Para isso, ela precisa estar livre da influência governamental e de controles externos. Na busca da verdade, era necessário ventilar todas as idéias. (KUNCZIK, 2001, p. 74-75).

A fiscalização de problemas relacionados ao bem estar coletivo está diretamente ligada à liberdade de imprensa. Conforme garante Kunczik, a luta pela liberdade de imprensa surgiu com a própria imprensa, pois “logo depois que Gutemberg inventou a máquina de imprimir com tipos móveis, institucionalizaram-se as medidas de censura, especialmente devido à publicação de folhetos anticleriais.” (KUNCZIK, 2001, p. 24).


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Dahl (2001) acredita que a liberdade de expressão é uma das instituições que a democracia exige e que os cidadãos têm o direito de se expressar sem risco de punições, incluindo a crítica ao governo, ao regime e à ideologia vigente. Ele ainda considera como instituições políticas do moderno governo democrático o direito do cidadão ter acesso a diversas fontes de informação e autonomia na formação de associações e organizações independentes. Segundo Robert Dahl: (...) para adquirir a competência cívica, os cidadãos precisam de oportunidades para expressar seus pontos de vista, aprender uns com os outros, discutir e deliberar, ler, escutar e questionar especialistas, candidatos políticos e pessoas em cujas opiniões confiem e aprender de outras maneiras que dependem da liberdade de expressão.(DAHL, 2001, p.110).

Para Thompson (2000), a administração da visibilidade é uma das características centrais da política moderna. Ele afirma que órgãos e pessoas públicas tentam dirigir a maneira como sua imagem vai ser exposta em veículos de comunicação. Mas, para o cientista político italiano Giovanni Sartori (1994), a comunicação de massa deve trabalhar contrária a essa tendência e precisa desenvolver a noção de vigilância e a função de cão de guarda, já que esta deve ser a atuação básica dos veículos de comunicação. Em meados do século XX, debates sobre a atuação e o papel da imprensa ganharam força nos Estados Unidos. As discussões

evidenciavam o modelo jornalístico que se

enquadra nas características do “watchdog role”, segundo o qual a imprensa exerce o papel de cão de guarda do Estado. A expressão “quarto poder”, que compara o poder da imprensa aos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, também foi amplamente difundida naquele país durante o período. A necessidade de atuação responsável da imprensa, objetivando o interesse público é uma discussão constante que envolve critérios éticos e responsabilidade social jornalística.


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1.2- Jornalismo Investigativo É necessário conceituar o jornalismo investigativo para a compreensão do gênero e sua importância no desenvolvimento do jornalismo como um todo. Para tanto, foi necessário realizar uma revisão bibliográfica, em busca de uma ponderação sobre o que significa o jornalismo investigativo. Estudiosos afirmam que, desde a segunda metade dos anos 50, o jornalismo investigativo vem sendo praticado nos Estados Unidos, mas foi em 1964 que o estilo ganhou destaque com a premiação de uma série de reportagens publicada pelo jornal Philadelphia Bulletin. As reportagens denunciavam a corrupção de policiais da Philadelphia que auxiliavam um esquema ilegal de uma rede de jogos. A partir da década de 60, as cobranças por uma imprensa independente do governo foram intensificadas nos Estados Unidos na busca por matérias que estavam voltadas para o interesse público. Gerald (1962) atesta que nesse período a publicação noticiosa visando a divulgação de fatos de interesse público ganha maior importância e passa a ser separada da notícia que serve a interesses particulares. Em 1972, o jornalismo investigativo ganhou destaque mundial depois da publicação da reportagem “5 Held in Plot to Bug Democrats' Office Here”1, pelo jornal norte-americano The Washington Post. O trabalho de investigação dos jornalistas Carl Bernstein e Bob Woodward desvendou o que ficou conhecido como

“Caso Watergate” e consolidou o

jornalismo investigativo como um gênero. Por meio de investigação, os jornalistas Carl Bernstein e Bob Woodward denunciaram um escândalo que começava com a prisão de cinco homens no edifício Watergate. O grupo, formado por ex-membros da Agência Central de Informações (CIA), foi preso fotografando documentos e checando aparelhos eletrônicos para escuta ilegal no comitê do Partido Democrata, oposicionista do governo do então presidente dos Estados Unidos, Richard Nixon. O jornal The Washington Post, dirigido por Katharine Graham, foi além da cobertura da invasão do prédio e, diferente dos demais jornais, investiu na investigação do caso, com apuração meticulosa. Os dois repórteres seguiram pistas e contaram com informações de uma fonte ligada à Casa Branca, que foi mantida em sigilo por cerca de trinta anos e ficou conhecida como “Garganta Profunda”. A investigação jornalística culminou na renúncia de Richard Nixon. O trabalho, 1

“Cinco pegos conspirando para grampear a sede Democrata”


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realizado por Carl Bernstein e Bob Woodward, mostrou como a apuração jornalística bem elaborada pode ser capaz de desvendar fatos encobertos, colocando o jornalismo na atuação da função de vigilância do estado. Para Ramonet, as denúncias do jornal The Washington Post reforçaram a necessidade da atuação responsável do jornalismo: O Caso Watergate, nos anos 70, e o papel que alguns jornalistas nele desempenharam vieram confirmar que até mesmo o homem mais poderoso do planeta – o presidente dos Estados Unidos – não podia resistir à força da verdade quando ela era defendida por repórteres sem mancha, incorruptíveis. Richard Nixon arruinado pelas revelações do Washington Post, teve que renunciar em 1974. (RAMONET, 1999, p.37).

Segundo Ramonet (1999), depois da investigação jornalística de Carl Bernstein e Bob Woodward, o modelo de jornalismo guardião do Estado ganhou visibilidade e “a maioria dos jornais pelo mundo afora, em particular nos grandes países desenvolvidos e democráticos, tentaram imitar o tom ou o estilo jornalístico, valorizado por ocasião do Watergate.” (RAMONET, 1999, p.43). A afirmação da existência do jornalismo investigativo como um gênero jornalístico provoca polêmica entre os profissionais. Muitos autores consideram a investigação uma obrigação para a elaboração de qualquer reportagem. Fortes alega que “à primeira vista, o termo 'jornalismo investigativo' dói no ouvido, soa redundante.” (FORTES, 2005, p.82). Ele explica que existe uma concordância entre os jornalistas de que para se chegar a qualquer conclusão, o repórter deve investir na apuração, investigando cuidadosamente os fatos. De toda maneira, o autor defende o jornalismo investigativo como um gênero, pois “o que diferencia o ‘jornalismo investigativo’ dos demais setores da atividade são as circunstâncias, normalmente mais complexas dos fatos, sua extensão noticiosa e o tempo de apuração que, necessariamente, deve ser maior (...).” (FORTES, 2005, p. 35). A maioria dos autores que defende o jornalismo investigativo como um gênero jornalístico baseia a afirmação nos critérios de apuração. Para Bucci, o jornalismo investigativo não pode ser um gênero jornalístico já que não é uma categoria e sim “uma conseqüência de manobras realizadas pelo Estado para ocultar informações do cidadão.” (BUCCI, 2000, apud FORTES, 2005, p.15). Cotta também concorda que o jornalismo investigativo não existe como um gênero à parte dos demais, uma vez que “jornalista não é policial, nem investigador. Apura, simplesmente. É o discreto e correto apurador de fatos, não o formulador de hipóteses ou veículo de mirabolâncias” (COTTA, 1997, p. 35).


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O repórter Diego Escoteguy, em artigo publicado no livro “Jornalismo Investigativo”, de Leandro Fortes, define o jornalismo investigativo como a “produção de reportagens que combinam denúncia e apuração em níveis excepcionais (...)”. (ESCOTEGUY, 2005, apud FORTES, 2005, p.90). Lage (2004) acredita que o jornalismo investigativo é uma forma de atuação política dos jornalistas na tentativa de conter abusos políticos e apontar injustiças sociais. Considerando os métodos de produção, Sequeira (2005) também conclui que existe uma distinção, já que o jornalismo investigativo requer atuação diferente, pois exige um “processo de trabalho do profissional, métodos e estratégias operacionais.”(SEQUEIRA, 2005, p.15). Sequeira ainda afirma que: A finalidade do jornalismo investigativo é aprofundar as informações para o leitor e levar informações que grupos de poder querem omitir ou sonegar da sociedade, explicando-a na sua complexidade, sem simplificações e sem tentar neutralizar seu impacto perante a sociedade. (SEQUEIRA, 2005, p.59).

Embora concorde com a obrigatoriedade da investigação e apuração detalhada em qualquer tipo de jornalismo, o jornalista Andrei Meirelles também acredita que existe um modelo diferenciado. Ele considera a conceituação de jornalismo investigativo inapropriada, mas de toda maneira para ele “o fato é que existe um grande campo de atuação jornalística, qualquer que seja o nome dado a ele, que é a cobertura mais aprofundada dos poderes (...). Assim, o jornalismo pode cumprir um dever essencial junto à sociedade - fiscalizar os poderes (...)”(MEIRELLES, 2005, apud, FORTES, 2005, p.89). Para Quesada o que individualiza o jornalismo investigativo são as “estratégias que ele utiliza na fase de apuração.” (QUESADA, 1987, apud, SEQUEIRA, 2005. p.74). Segundo ela, um texto contendo riqueza de dados não garante um trabalho de jornalismo investigativo, já que as informações podem ser obtidas por meio de uma fonte oficial. Quesada acredita que os objetivos do jornalismo investigativo são: Averiguar como operam as instituições públicas que afetam a vida dos cidadãos; mostrar como funcionam os mecanismos burocráticos do sistema, que o cidadadão comum não tem como desvendar num mundo cada vez mais complexo e burocratizado, e como se produzem os fatos que o afetam diretamente. (QUESADA, 1987, apud SEQUEIRA, 2005. p.74-75).


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Williams (1978)2 alerta para a produção da reportagem investigativa e aponta algumas etapas pelas quais deve passar. De acordo com ele, depois da escolha do tema é necessário verificar a viabilidade do estudo e realizar o planejamento da matéria. Diante disso, o repórter tem que buscar documentos que comprovem a denúncia e também recorrer à observação direta e à pesquisa de campo. A apuração também deve incluir a busca de fontes. A apuração detalhada embasa o jornalista na produção de uma reportagem responsável e verdadeira. É necessário buscar inúmeras fontes para apoiar as denúncias de uma reportagem jornalística. Além das entrevistas que devem ser realizadas, a fim de confrontar os depoimentos, o repórter deve estar atento para a busca de documentos que comprovem o que está sendo denunciado. A apuração consiste na pesquisa de um assunto, preocupada em buscar comprovações de hipóteses. Os autores que defendem o jornalismo investigativo como um gênero consideram que a apuração criteriosa é o grande diferencial das reportagens. Por meio da investigação é que o repórter vai solidificar a denúncia, transmitindo credibilidade e evitando possíveis danos à sociedade. Sobre a apuração jornalística, Wilians afirma que: (...)um jornalista não pode simplesmente denunciar uma situação corrupta só porque lhe parece que é incorreta ou porque alguém lhe sugeriu isso, mas deve ter em mãos provas documentais, assim como toda a informação que lhe permite converter-se momentaneamente em especialista no assunto. (WILLIAMS, 1978, apud SEQUEIRA, 2005, p. 146).

A pesquisadora espanhola Montserrat Quesada realizou um estudo, em 1987, levantando as técnicas usadas pelos repórteres na produção de reportagens investigativas. Quesada concluiu que não há “uma metodologia de trabalho rígida no jornalismo investigativo, já que cada reportagem é única e o profissional precisará de muita criatividade para descobrir, em cada caso, qual a melhor técnica de apuração a ser usada.” (QUESADA, 1987, apud SEQUEIRA, 2005, p. 149-150). Sequeira defende a diferença do gênero tanto na produção, quanto na escolha dos assuntos. De acordo com a autora, as reportagens investigativas no Brasil começaram a se desenvolver nos veículos de jornal impresso durante a década de 70, quando o presidente general Ernesto Geisel dá início ao processo de abertura política. Durante o período, algumas matérias foram produzidas com base em investigação sobre questões políticas e sociais, já que a abertura política proporcionou “maior ousadia da imprensa” (SEQUEIRA, 2005, p.12). 2

WILLIAMS, 1978, apud SEQUEIRA, 2005, p. 146-149- Em seu estudo sobre o jornalismo investigativo Cleofe Sequeira cita o jornalista americano Paul Wilians, que realizou um trabalho de pesquisa sobre o processo de trabalho no jornalismo investigativo.


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2- TEORIA DO NEWSMAKING Parte deste trabalho se embasa na Teoria do Newsmaking para analisar o conteúdo das reportagens investigativas.

A Teoria do Newsmaking aborda as rotinas produtivas dos

veículos de comunicação, levando em conta as exigências para a produção de notícias. Segundo a teoria, os jornais não divulgam todos os acontecimentos de uma sociedade, mas elegem alguns fatos para que sejam evidenciados. Desta forma, o jornalismo faz um recorte que fragmenta o conteúdo, realizando uma construção da realidade. A Teoria do Newsmaking se contrapõe à Teoria do Espelho, que define o jornalismo como um reflexo da realidade. Uma vez que o jornalismo seleciona os fatos para serem apurados e publicados, ele não pode ser considerado uma tradução fiel da realidade, mas sim uma construção da mesma. Por fazer um recorte e delimitação do acontecimento no espaço e no tempo, Pena afirma que "a imprensa não reflete a realidade, mas ajuda a construí-la." (PENA, 2005, p.128). Pena (2005) acredita que "embora o jornalista seja participante ativo na construção da realidade, não há uma autonomia incondicional em sua prática profissional, mas sim a submissão a um planejamento produtivo." (PENA, 2005, p.129). Tuchman (1983) afirma que os veículos de comunicação devem reconhecer, dentre os tantos fatos ocorridos em uma sociedade, aqueles que possuem relevância. Segundo o autor, a imprensa cria uma metodologia para que os fatos com as características necessárias se enquadrem no perfil. Assim como as matérias divulgadas na imprensa diária, distribuídas dentre as diversas editorias, o jornalismo investigativo também realiza um recorte na realidade. Em meio aos inúmeros acontecimentos que estão ocultos da população, somente alguns são eleitos para serem aprofundados e publicadas em formato de reportagens investigativas. Para organizar esse planejamento produtivo e estabelecer critérios metodológicos, Wolf (1994) afirma que a imprensa utiliza critérios de noticiabilidade, responsáveis por guiar os profissionais na seleção dos assuntos. A noticiabilidade de um fato denota o grau de relevância que ele tem para a sociedade. Por meio da noticiabilidade os profissionais do jornalismo estabelecem uma rotina na seleção dos acontecimentos. A respeito da noticiabilidade, Wolf afirma que: Pode também dizer-se que a noticiabilidade corresponde ao conjunto de critérios, operações e instrumentos com os quais os órgãos de informação enfrentam a tarefa de escolher, cotidianamente, de um entre um número imprevisível e indefinido de fatos, uma quantidade finita e tendecialmente estável de notícias. (WOLF, 1994, p.170).


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Wolf (1994) considera os valores/notícia como elementos da noticiabilidade de um fato. Para o autor, os valores/notícia são critérios que permitem selecionar os fatos que devem ser noticiados. Esses critérios acompanham a produção da reportagem desde a seleção do assunto, até a redação da matéria. Segundo Wolf (1994), “os critérios devem ser fácil e rapidamente aplicáveis, de forma que as escolhas possam ser feitas sem demasiada reflexão. (...) Os critérios devem ser flexíveis para poderem adaptar-se à infinita variedade de acontecimentos disponíveis.” (WOLF, 1994, p.197). Pereira (2003) acredita que Os valores/noticia contribuem para tornar possível a rotinização do trabalho jornalístico. São contextualizados no processo produtivo onde adquirem o seu significado, desempenham a sua função e se revestem daquela aparência que os torna elementos dados como certo. É o chamado senso comum das redações. (PEREIRA, 2003, p.83).

Wolf (1994) defende que a cultura profissional dos jornalistas exerce influência na escolha das notícias. Ele também ressalta a influência da viabilidade para os veículos de comunicação, a disponibilidade das fontes e o tempo exigido para a produção da notícia. No entanto, o autor leva em conta os fatos extraordinários que exigem maior elaboração na produção jornalística e, por isso, considera que os veículos de comunicação possuem flexibilidade na eleição dos fatos que podem se tornar notícia. Os assuntos que são transformados em reportagens investigativas podem ser considerados como fatos extraordinários, já que, na maioria das vezes, outros fogem dos assuntos de cobertura diária. Por este motivo, determinados assuntos exigem maior elaboração na produção, como é previsto por Wolf (1994). Os acontecimentos que serão apurados com maior profundidade exigem flexibilidade do veículo, por demandarem mais tempo no levantamento dos fatos. De acordo com Wolf, “os valores/notícia são qualidades dos acontecimentos ou da sua construção jornalística cuja presença ou ausência os recomenda para serem incluídos num produto informativo” (WOLF, 1994, p.205). Segundo o autor, os valores/notícia decorrem de aspectos relacionados ao conteúdo do acontecimento propriamente dito, à disponibilidade do material para a produção da notícia, à audiência e à concorrência. Os valores/notícia norteiam os produtores de notícia e um dos parâmetros que ajuda a defini-los é chamado por Wolf (1994) de critérios substantivos. O jornalismo investigativo também passa pela seleção dos critérios de noticiabilidade. É por meio dos valores/notícia que os jornalistas realizam a seleção dos assuntos que receberão tratamento especial e serão transformadas em um produto de jornalismo


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investigativo. Os mesmos critérios que guiam na triagem dos assuntos de um jornal diário também direcionam os jornalistas na eleição de pautas que merecem maior dedicação na apuração. Dentro dos critérios substantivos, Wolf (1994) afirma que a noticiabilidade se divide entre a importância do fato e o interesse do mesmo. A importância de um assunto pode ser delimitada por quatro variáveis que ajudam a definir a importância de um acontecimento. Wolf (1994) chama essas variáveis de critérios substantivos de importância. Os acontecimentos que se enquadram dentro dos critérios substantivos de importância são tidos como fatos imprescindíveis para serem noticiados. A primeira variável diz respeito ao grau e nível hierárquico das pessoas que estão envolvidas em dado fato. Essa variável vai conferir notoriedade ao acontecimento. Conforme afirmam Galtung e Ruge, “quanto mais o acontecimento disser respeito às pessoas de elite, mais provavelmente se transformará em notícia.” (GALTUNG; RUGE, 1965, apud WOLF, 1994, 201). A segunda variável trata do impacto do assunto para o país. Wolf atribui a essa variável à característica de significatividade. De acordo com Galtung e Ruge a notícia deve ser “susceptível de ser interpretada no contexto cultural do ouvinte ou do leitor.” (GALTUNG; RUGE, 1965, apud Wolf, 1994, p.202). Junto a essa variável entram fatores como a localização geográfica e a proximidade dos acontecimentos com os receptores do veículo de comunicação. Na terceira variável, o autor relaciona o número de pessoas envolvidas em um acontecimento. Essa variável confere visibilidade a um fato. Relacionada a esta variável também está a afinidade cultural e de distância, já que “um desastre aéreo ou uma catástrofe natural - que envolve um número limitado de pessoas mas que ocorre nas proximidades, é mais noticiável do que o mesmo tipo de acontecimento, que envolve mais vítimas mas que ocorre bastante mais longe.” (WOLF, 1994, p. 203). A última variável considera a relevância do fato para o acompanhamento de eventos futuros. Nesta variável, o autor considera acontecimentos como o acompanhamento de fatos que terão repercussão e embora inicialmente não sejam de maior importância, não podem deixar de ser noticiados. Wolf ressalta que: A importância de uma notícia pode ser diferentemente realçada, sublinhada ou acentuada em relação, por exemplo, aos valores/notícia relativos à concorrência (....) ou em relação àqueles que dizem respeito ao produto e às características técnicas. Isto é, existe uma variabilidade


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inerente ao valor/notícia importância, associada a outros factores de noticiabilidade. (WOLF, 1994, p.205).

Wolf fala dos critérios substantivos que permitem nortear o jornalista na produção de notícias interessantes. Os valores/notícias que definem esse segmento estão relacionados com o interesse humano na notícia. A imagem que os jornalistas fazem do público do veículo auxiliam na definição desse critério. Os critérios que elegerão uma notícia dentro do interesse humano são mais subjetivos. Segundo Wolf, “são interessantes as notícias que procuram dar uma interpretação de um acontecimento baseada no aspecto do interesse humano, do ponto de vista insólito, das pequenas curiosidades que atraem a atenção.” (WOLF, 1994, p. 205). Desta forma, notícias de interesse humano são aquelas que, por curiosidade em determinados assuntos ou pelo inusitado do fato, vão despertar o interesse do público.


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3- CONTEXTO HISTÓRICO O período escolhido para realização deste estudo é marcado pelo cerceamento da liberdade de expressão, que atingiu diretamente os veículos de comunicação e inibiu a divulgação de fatos importantes para a compreensão dos acontecimentos políticos. A fim de compreender de que maneira o Regime Militar atuou no governo do Brasil, o estudo faz uma contextualização histórica desde o início da década de 60 até a promulgação da Nova Constituição, em 1988. Em outubro de 1960 Jânio Quadros foi eleito presidente do Brasil, com apoio do extinto partido político União Democrática Nacional (UDN ). Segundo Fausto (2004), o expresidente se elegeu com 48% dos votos válidos. Na época, a legislação permitia que o eleitor votasse em candidatos de um partido para presidente e em outro para vice-presidente. Desta forma, com apoio da classe operária, João Goulart, popularmente chamado de Jango, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) foi eleito vice-presidente da República. De acordo com Fausto (2004), o favoritismo de Jânio Quadros se mostrou claro desde o período da campanha. O autor afirma que “ele reunia as esperanças da elite antigetulista; do setor da classe média que esperava a chamada moralização dos costumes políticos e se via atingida pela alta do custo de vida; assim como da grande maioria dos trabalhadores.” (FAUSTO, 2004, p. 436). Com a Revolução Cubana de Fidel Castro, em 1959, e a possibilidade de adesão de outros países ao regime comunista, os Estados Unidos intensificaram o controle à subversão interna nos países latino-americanos. De acordo com Domingues e Fiusa, “a ajuda econômica dependia da garantia aos interesses econômicos dos poderosos grupos capitalistas.” (DOMINGUES; FIUSA, 1996, p. 309). Domingues e Fiusa (1996) explicam que Jânio Quadros assumiu a Presidência do Brasil tendo que administrar graves problemas financeiros herdados do governo anterior, com uma dívida externa de dois bilhões de dólares, que deveria ser quitada durante o seu mandato. “Em vista disso, Jânio colocou em execução um rigoroso programa antiinflacionário. Foi assinada a Instrução 204 da Sumoc [Superintendência da Moeda e do Crédito] com diversos dispositivos: o sistema cambial foi reformado e o cruzeiro desvalorizado em 100%.” ( DOMINGUES; FIUSA, 1996, p. 312). As medidas foram bem aceitas no exterior e permitiram a renegociação com o Fundo Monetário Internacional (FMI). No entanto, Jânio Quadros adotou uma política externa independente, que não seguia as normas norte-americanas estabelecidas em função da Guerra


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Fria. Conforme afirma Domingues, “o interesse de Jânio Quadros era expandir nossas relações comerciais com todo o mundo, inclusive com as nações socialistas, libertando o Brasil do tradicional mercado consumidor norte-americano.”(DOMINGUES; FIUSA, 1996, p. 312). A política externa de independência também contrariou interesses internos e foi criticada “pela Igreja Católica, pelos setores reacionários das Forças Armadas, pelos políticos do centro e da direita e pelos jornais conservadores (...)”. (DOMINGUES; FIUSA, 1996, p. 313). Indiferente às críticas, Jânio continuou realizando a política externa independente, dando seguimento ao intercâmbio cultural e comercial e foi acusado pelos jornais de “estar levando o país rumo ao comunismo.” (DOMINGUES; FIUSA, 1996, p.313). Em 24 de agosto de 1961, Carlos Lacerda, então governador do Estado da Guanabara, fez um pronunciamento transmitido pelo rádio e pela televisão, denunciando Jânio Quadros de estar organizando um golpe de Estado. Lacerda, que havia apoiado Jânio Quadros, afirmou “ter sido duas vezes convidado por Oscar Pedroso Horta, ministro da Justiça, para apoiar o golpe.” (DOMINGUES; FIUSA, 1996, p. 314). Na manhã seguinte, Jânio Quadros renunciou à presidência da República. A Constituição determinava que nesse caso o vice-presidente, João Goulart, era o novo presidente do Brasil. Jango estava na China firmando acordos comerciais e provisoriamente o presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, assumiu

a

presidência do Brasil. Um aparato militar foi montado, alegando que estavam sendo tomadas medidas para garantir a segurança do presidente da República. No entanto, Domingues e Fiusa afirmam que:

(...) a posse de Goulart causava inquietação, pois, desde sua campanha à vice-presidência (1960), ele defendia a necessidade de mudanças constitucionais e um amplo projeto de reformas. Entre aqueles que não admitiam sua posse estavam congressistas, ministros militares, a cúpula da Igreja Católica e outros setores conservadores da sociedade brasileira que se sentiam ameaçados. (DOMINGUES; FIUSA, 1996, p. 315).

De acordo com Sodré (1999), a imprensa não apoiou a tentativa de golpe de estado, para impedir a posse de João Goulart, em 1961 mesmo com grande parcela da sociedade concordando. De acordo com o autor,

“a tentativa de golpe de Estado (...) motivou o

desencadeamento de feroz censura à imprensa, saindo jornais com espaços em branco, forma de resistência e de denúncia.”(SODRÉ, 1999, p.409). Apesar da tentativa de impedimento da posse de João Goulart, o Congresso se negou a aprovar o veto. A Emenda Constitucional nº 4 foi aprovada pelo Congresso, mudando o


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sistema de governo de presidencialista para parlamentarista. Com isso, João Goulart assumiu a Presidência dividindo o Poder Executivo com o Conselho de Ministros. O regime durou até janeiro de 1963, quando “cerca de 9,5 milhões de um total de 12,3 milhões de votantes responderam ‘não’ ao parlamentarismo. Retornava assim o sistema presidencialista, com João Goulart na chefia de governo.” (FAUSTO, 2004, p. 455). Em 1963, vários setores da sociedade brasileira estavam contra o governo de João Goulart, que incluía a reformulação das estruturas administrativa, bancária, fiscal e agrária. Na tentativa de colocar em prática a reforma agrária, Goulart foi acusado pelos parlamentares de “estar planejando destruir a propriedade privada e instalar o comunismo no Brasil.” ( DOMINGUES; FIUSA, 1996, p. 322). Em março deste ano o projeto foi reprovado pela Comissão Especial da Câmara. Embora limitado legalmente, João Goulart conseguiu desapropriar terras malaproveitadas e baixar o decreto que regulamentou o Estatuto do Trabalhador Rural, que oferecia ao trabalhador do campo os mesmos benefícios da Previdência Social concedidos ao trabalhador urbano. Além das reformas rurais, o presidente colocou em prática outros planos de ação social, como projetos de alfabetização, a concessão de incentivos fiscais à indústrias farmacêuticas nacionais e a criação do Código Brasileiro de Telecomunicações, que nacionalizou o setor. Para Domingues e Fiusa, as ações intensificaram os conflitos políticos e alarmaram parcelas da sociedade, já que “todas essas medidas contrariam os interesses de poderosos empresários e grupos estrangeiros, particularmente os norte-americanos. Acusavam Goulart de estar ‘comunizando’ o país.” (DOMINGUES; FIUSA, 1996, p. 323). Segundo Sodré, houve uma articulação para que o golpe fosse aceito pela sociedade e a opinião pública. Ele afirma ainda que: Toda a grande imprensa articulada em coro, participou dessa preparação psicológica, como o rádio e a televisão. Os editoriais do Correio da Manhã, nos últimos dias de março-aqui à guisa de exemplo, foram esclarecedores até nos títulos:’Basta!’ e ‘Fora!’, indicando ao presidente João Goulart a saída, como se fora ele, não o mandatário do povo, mas o empregado relapso. (SODRÉ, 1999, p.410).

Para Abreu, a imprensa "foi, sem dúvida, um dos vetores de divulgação do fantasma do comunismo, que foi utilizado como uma das justificativas para derrubada do governo." (ABREU, 2004. p.15). Ela ressalta ainda a atuação da imprensa na divulgação da tese de que havia uma desordem administrativa e se fazia necessária a intervenção militar para restabelecer a ordem. Exemplo disso são os polêmicos editoriais, “Basta” e publicados pelo Correio da Manhã dias antes do golpe militar.

“Fora”,


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Em 30 de março de 1964 João Goulart fez um pronunciamento durante a festa de aniversário da Associação dos Suboficiais e Sargentos da Polícia Militar da Guanabara e disse que embora estivesse sendo pressionado, iria continuar executando as reformas de base. O discurso repercutiu e o golpe, que já estava sendo articulado, foi antecipado pelo General Olímpio Mourão Filho. Tropas militares foram enviadas de Juiz de Fora, em Minas Gerais, para o Rio de Janeiro e em 31 de março de 1964 o presidente João Goulart foi deposto. Silva ilustra que: O regime militar implantado em 1964 instituiu uma forma de governo bastante autoritária, com algumas características de fascismo, mas que mantinha estreitos laços diplomáticos e comerciais com a democracia representativa americana, introduziu o país na fase da acumulação monopolista do capital e tinha um caráter de modernidade (...). (SILVA, 1991, p. 90).

Os militares alegaram que o golpe havia ocorrido “para livrar o país de corrupções e do comunismo e para restaurar a democracia, mas o novo regime começou a mudar as instituições do país através de decretos, chamados de Atos Institucionais.” (FAUSTO, 2004, p. 465). O primeiro Ato Institucional (AI-1) foi baixado pelos comandantes do Exército da Marinha e da Aeronáutica, no dia 9 de abril de 1964, ampliando o Poder Executivo. O decreto permitiu uma manobra que favorecia a aprovação de projetos de lei do Executivo. Com o AI-1, o Senado e a Câmara tinham 30 dias para apreciar os projetos e se estes não fossem votados dentro do prazo, eram aprovados automaticamente. Fausto explica que “como era fácil obstruir votações no Congresso e seus trabalhos normalmente se arrastavam, a aprovação de projetos do Executivo ‘por decurso de prazo’ se tornou fato comum.” (FAUSTO, 2004, p.466). O AI-1 permitia ao chefe de estado decretar estado de sítio, cassar mandatos de parlamentares, suspender direitos políticos por dez anos e aposentar funcionários civis e militares. O AI-1 também determinou a escolha de um presidente provisório. Por meio de eleições indiretas, o general Humberto de Alencar Castello Branco foi eleito presidente do Brasil em 15 de abril de 1964. Segundo explica Fausto (2004), o Ato Institucional permitia maiores poderes aos militares e também acabou desencadeando prisões aos adversários políticos, mas o sistema ainda não estava totalmente fechado, pois “existia a possibilidade de se utilizar do recurso de habeas corpus perante os tribunais, e a imprensa se mantinha relativamente livre.”(FAUSTO, 2004, p.467). Fausto atribui à imprensa, em especial ao jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, papel fundamental na tentativa de controle do Estado e resguardo da população civil a partir de 1964:


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Foi sobretudo graças às denúncias do jornal carioca Correio da Manhã que o presidente Castello Branco determinou uma investigação sobre a prática de torturas, a cargo do então chefe da Casa Militar, general Ernesto Geisel. A investigação foi arquivada ‘por insuficiência de provas’, mas de qualquer forma a tortura deixou de ser uma prática sistemática. (FAUSTO, 2004, p.467).

Já em 1964 a imprensa começou a sentir os efeitos diretos do regime que havia apoiado. Caldas relata que a primeira conseqüência do Regime Militar na imprensa foi financeira. “Como não precisava dos donos de jornais para veicular, prender e censurar, a ditadura de 64 começou a abolir doações financeiras e privilégios de jornalistas e obrigou os órgãos de imprensa a buscarem independência econômica.” (CALDAS, 2003, p. 27). A imprensa sofria com a censura e o severo controle das publicações. As ações de domínio rígido e a proximidade do Estado na produção de notícia dificultaram a atuação do jornalismo e a imprensa do período é marcada pela divulgação de notas oficiais e atuação como porta-voz do governo. Nesse contexto, a imprensa serviu como instrumento para que o regime fosse legitimado, aceito pela população e para reforçar os conceitos instaurados pelo sistema. A desaprovação ao regime foi sentida durante as eleições para definição de governadores de estado, com a vitória de governadores oposicionistas ao governo. O primeiro Ato Institucional promulgado pelo Regime Militar não regulava as eleições estaduais e “apesar do veto a determinados candidatos por parte da chamada linha-dura das Forças Armadas, a oposição triunfou em Estados importantes.3” (FAUSTO, 2004, p.474). Pressionado, o general Castello Branco baixou os Atos Institucionais 2 e 3, que se referiam às eleições. O AI-2, decretado em 17 de outubro de 1965, decidiu que as eleições presidenciais seriam definidas pelo Congresso Nacional e acabou com o voto secreto, determinando sessão pública e voto nominal na votação. O AI-2 também ampliou os poderes do presidente, permitindo a criação de atos complementares aos Atos Institucionais ou decretos de lei em defesa da segurança nacional. Conforme explicam Domingues e Fiusa (1996), o AI-2 serviu para restringir o Poder Judiciário, que não tinha controle sobre o Poder Executivo, nem o sobre o Legislativo e não podia julgar crimes contra a segurança nacional. O decreto extinguiu os partidos políticos existentes, já que “os Militares consideravam que o sistema multipartidário era um dos fatores responsáveis pelas crises políticas.” (FAUSTO, 2004, p.474)

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Negrão de Lima venceu as eleições na Guanabara e Israel Pinheiro foi eleito governador de Minas Gerais


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Desta forma, foram criados o partido que coligava os favoráveis ao governo, a Aliança Renovadora Nacional (Arena), e a oposição foi agrupada no Movimento Democrático Brasileiro (MDB). O partido contrário ao regime foi criado já que “a existência de um partido oposicionista era necessária para não se configurar um regime autoritário unipartidário, o qual poderia ser facilmente identificado como totalitarismo.” (DOMINGUES; FIUSA, 1996, p.344). O AI-3, baixado em 5 de fevereiro de 1966, também fortalecia o Regime Militar, uma vez que dava ao governo federal comando sobre as eleições estaduais. Este ato estabeleceu as eleições indiretas, por meio das Assembléias estaduais, para a escolha dos governadores de estado, “evitando assim que a oposição pudesse vir a conquistá-los por via eleitoral direta.” (DOMINGUES; FIUSA, 1996, p.344). O resultado do AI-3 foi a vitória da Arena nas eleições estaduais de 1966, com 63,9% dos votos válidos para a Câmara dos Deputados. Em 20 de outubro de 1966 o Congresso entrou em recesso forçado por um mês. Esse fato permitiu ao governo federal a elaboração de uma nova Constituição. No entanto, era necessário que a carta fosse aprovada pelo Legislativo, e para tanto, o AI-4 foi baixado para reconvocar o Congresso e abrir uma sessão extraordinária. A aprovação da nova Constituição restringiu as funções do Congresso e ampliou ainda mais a atuação do Executivo. De acordo com Domingues e Fiusa: A nova Constituição incorporou grande parte do caráter autoritário dos atos institucionais e complementares. O Poder Executivo, já fortalecido pelas medidas excepcionais, reafirmou-se como poder máximo e independente dos demais. Ao Executivo cabia: o direito exclusivo de legislar sobre segurança nacional e finanças públicas; intervir nos estados e municípios ; fazer a coleta e a distribuição de todos os impostos recolhidos no país; conceder a exploração dos recursos minerais a empresas nacionais ou estrangeiras. (DOMINGUES; FIUSA, 1996, p.344).

A nova Constituição também delegou ao Conselho Nacional de Segurança (CSN), órgão criado pela Presidência da Republica, o julgamento de questões relacionadas à segurança nacional. Ao CSN também cabia a definição de quais cidades poderiam ser consideradas como municípios de segurança nacional. Por esse motivo, esses municípios teriam a escolha dos prefeitos determinada pelo governador do estado. Em março de 1967 Artur da Costa e Silva, escolhido em eleição indireta pelo Congresso, tomou posse da Presidência da República, com vice-presidência de Pedro Aleixo. A política de aproximação de Castello Branco com os Estados Unidos desagradou alguns militares mais conservadores e como o grupo “castelista”, não conseguiu eleger um sucessor,


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o presidente “Costa e Silva concentrava as esperanças da linha-dura e dos nacionalistas autoritários das Forças Armadas.”(FAUSTO, 2004, p. 476). Durante o governo de Costa e Silva, a oposição ao Regime Militar começou a crescer no país. Respondendo à censura e à violência da atuação do Regime Militar, em junho de 1968, os estudantes, organizados pela União Nacional dos Estudantes (UNE), lutavam contra o regime. O assassinato do estudante Edson Luiz Lima Souto por militares no Rio de Janeiro, durante uma manifestação, desencadeou uma séria de protestos. Fausto afirma que a violência do Regime Militar criou “condições para uma mobilização mais ampla, reunindo não só os estudantes como setores representativos da Igreja e da classe média do Rio de Janeiro.” (FAUSTO, 2004, p. 478). A UNE organizou a “Passeata dos Cem Mil”, no Rio de Janeiro, em junho de 1968, reunindo não só estudantes, mas também vários setores da sociedade insatisfeitos com o governo. As greves de operários em Osasco e Contagem, em julho do mesmo ano, também mostraram a insatisfação da sociedade. Grupos armados começaram a atuar pelo país em ações que incluíam seqüestros e assaltos para arrecadar fundos que seriam usados para afrontar o regime. Conforme garante Fausto: “Todos esses fatos eram suficientes para reforçar a linhadura na sua certeza de que a revolução estava se perdendo e era preciso criar novos instrumentos para acabar com os subversivos.” (FAUSTO, 2004, p.479). Em 13 de dezembro de 1968, o Ato Institucional nº 5 (AI-5) foi baixado pelo presidente Costa e Silva, sem prazo para terminar. O AI-5 fundamentou a repressão, uma vez que atribuía ao Poder Executivo a capacidade de cassar mandatos eleitorais, fechar o Congresso Nacional, nomear interventores nos estados e municípios e interromper direitos políticos, além de suspender o direito ao habeas corpus em caso de crimes contra a Segurança Nacional. Com o AI-5 o Regime Militar endureceu a repressão no Brasil. Os efeitos do Ato Institucional foram sentidos diretamente pela imprensa que passou a produzir conteúdo sob forte controle e censura. Conforme explica Caldas, “foi principalmente a partir do AI-5, em 1968, que os militares decidiram intervir diretamente na imprensa e controlar as notícias proibindo a publicação de assuntos que eles elegiam de acordo com seus interesses específicos.” (CALDAS, 2003, p. 13). Segundo Skidmore (1988), o AI-5 permitiu que a censura à imprensa fosse mais severa e as punições aos profissionais de jornalismo, intensificadas. Com o ato institucional, as publicações sofreram maior controle e a qualidade foi ainda mais comprometida. Ele afirma que “acobertada pelo novo instrumento militar legal, a censura atingiu a imprensa, não poupando nem mesmo os jornalistas de mais prestígio.” (SKIDMORE, 1988, p. 166).


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Quando o AI-5 foi decretado, o Congresso foi fechado e ficou em recesso até 30 de outubro de 1969. Segundo afirma Domingues e Fiusa (1996), neste período o Executivo baixou mais 12 Atos Institucionais, 40 atos complementares e 20 decretos-lei. De acordo com as autoras, o Serviço Nacional de Informação (SNI) e o Conselho de Segurança Nacional (CSN) centralizaram o poder político. O Departamento de Ordem Política e Social (DEOPS ou DOPS), o Centro de Informação da Marinha (CENIMAR), o Centro de Informação e Segurança da Aeronáutica (CISA), o Centro de Operações de Defesa Interna (CODI) e o Departamento de Operações Internas (DOI) eram organismos de repressão que estavam ligados ao SNI e ao CSN. Costa e Silva sofreu um derrame cerebral em agosto de 1969 que o impossibilitou de continuar seu mandato. Constitucionalmente, o vice-presidente, Pedro Aleixo, deveria assumir a Presidência, mas por meio do Ato Institucional nº 12, a Junta Militar, formada pelos ministros Lira Tavares, Augusto Rademaker e Márcio de Sousa, assumiu temporariamente o comando da República. A violência dos grupos armados, opositores ao regime, se intensificou e seqüestros foram realizados para negociar a libertação de presos políticos. Em resposta, a Junta Militar promulgou o Ato Institucional nº 13, para banir do território nacional os cidadãos considerados nocivos à segurança. O ato seguinte, o Ato Institucional nº 14, também punia os opositores, estabelecendo pena de morte para casos de subversão. Após dois meses , em outubro de 1969, a Junta Militar deu lugar a Emílio Garrastazu Médici, com vice-presidência de Augusto Rademaker. Médici intensificou a propaganda do Regime Militar, em busca do apoio popular. Na década de 70 a televisão já alcançava boa parte da população. De acordo com Fausto (2004), em 1970 cerca de 40% das residências urbanas tinham aparelho de televisão e Médici usou esse instrumento para disseminar a idéia de crescimento do Brasil. O governo Médici concentrou a publicidade na Assessoria Especial de Relações Públicas (AERP), chefiada pelo coronel Octavio Costa, para centralizar a propaganda do governo. Skdimore considera a ação a “operação de RP mais profissional que o Brasil já vira.” (SKIDMORE, 1988, p.221). Ele explica que: Uma equipe de jornalistas, psicólogos e sociólogos decidia sobre os temas e o enfoque geral, depois contratava agências de propaganda para produzir documentários para TV e cinema, juntamente com matéria para os jornais. Certas frases de efeito davam bem a medida da filosofia que embasava a AERP: ‘Você constrói o Brasil!’, ‘Ninguém segura este país!’, ‘Brasil, conte comigo!’.(SKIDMORE, 1988, p.221).


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O governo também usou elementos populares como o futebol e a música para fortalecer sua imagem. A vitória da Seleção Brasileira de Futebol na Copa do Mundo de 1970, no México, foi amplamente explorada. A conquista esportiva foi usada como alusão ao desenvolvimento do país com recursos como a marchinha “Pra Frente Brasil” e cartazes com imagens de Pelé o slogan “Ninguém segura mais este país”. A propaganda do governo, aliada ao “Milagre Econômico”, resultado da estratégia econômica do ministro da Fazenda, Delfim Neto, cuja gestão no Brasil registrou crescimento médio anual do Produto Interno Bruto (PIB) de 11,2%, foi responsável por um estado de satisfação na população. As informações de crescimento eram tantas que “muitos brasileiros lamentavam não ter condições biológicas para viver até o novo milênio, quando o Brasil se equipararia ao Japão.” (FAUSTO, 2004, p. 485). Skidmore considera a melhora da economia brasileira como um fator de apoio ao Regime Militar e afirma que muitos cidadãos consideraram o sucesso econômico e o aumento do poder nacional como conseqüência do regime autoritário. Segundo afirmação de Skidmore: A tirada de Médici de que o destino do Brasil era se tornar potência mundial feriu uma corda sensível no íntimo dos brasileiros eufóricos com o aumento cada vez maior de suas renda. Por isso, muitos deles alistaram-se fervorosamente na defesa do regime. (SKIDMORE, 1988, p.215-216).

Atuando junto com a propaganda governamental, a censura bloqueava qualquer notícia que pudesse abalar as informações produzidas pela AERP. De acordo com Skidmore, “o trabalho dos censores era impedir que a mídia lançasse qualquer dúvida sobre o quadro apresentado pela AERP de uma nação dinâmica e eficientemente governada sob liderança de militares, avidamente apoiados pela cidadania.” (SKIDMORE, 1988, p. 267). Em 1972, os censores passaram a enviar por escrito o que poderia ser escrito ou não. Em março de 1974, o general Ernesto Geisel assume a presidência e em seu primeiro discurso afirma o desejo de colocar fim ao regime de exceção. Fausto (2004) explica que o período de distensão militar é o início da abertura política definida pelo presidente como “lenta, gradual e segura”. A estratégia de distensão, formulada pelo presidente e pelo chefe do gabinete da Casa Civil da Presidência da República, general Golbery do Couto e Silva, pretendia evitar que a oposição chegasse ao poder. A distensão foi aos poucos modificando a postura do governo militar e influenciando os diversos setores que haviam sido prejudicados com o autoritarismo do regime.


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Em 1975, a imprensa brasileira começa a sentir os efeitos da distensão com a retirada dos censores das redações. De acordo com Sequeira, “em meados dos anos 70 quando a censura imposta pela ditadura militar já havia deixado as redações depois de uma longa e tenebrosa temporada de arbítrio.” (SEQUEIRA, 2005, p.19). Oliveira (1994) afirma que dentro do projeto de distensão, a primeira atitude planejada por Geisel e Golbery era o retorno da liberdade da imprensa. Segundo o autor, o planejamento para diminuir o controle sobre a imprensa também visava favorecimento ao governo. Oliveira afirma que: O primeiro passo do abrandamento dos mecanismos de controle político foi o relaxamento seletivo da censura prévia da imprensa. A sociedade civil se apropriou dos benefícios desta medida que possibilitava uma margem mais ampla de expressão da opinião e do dissenso. O governo Geisel igualmente se beneficiou, na medida em que passou a veicular, em busca de apoio político, a natureza e os mecanismos do projeto de distensão. (OLIVEIRA, 1994, p.83).

Inicialmente, somente o jornal Estado de S. Paulo foi beneficiado. Em janeiro de 1975 o governo suspendeu a censura prévia no jornal, mas manteve o recurso de controle nos demais veículos. Geisel anunciou que não revogaria o AI-5 enquanto não houvesse confiança na segurança nacional. O presidentel também “desencadeou uma retórica digna dos melhores linhas-duras, atacando uma suposta infiltração comunista na mídia, na burocracia e especialmente nas instituições de ensino.”(SKIDMORE, 1988, p. 344). Skidmore ainda afirma que a torturas continuavam a ser realizadas e que os militares divergiam sobre a liberalização do regime. A morte do jornalista e diretor da TV Cultura Vladmir Herzog, em outubro de 1975, provocou grande comoção. O jornalista foi convocado para depoimento pelas forças de segurança do Segundo Exército, em São Paulo. O comando do Segundo Exército informou, no dia seguinte, que o jornalista assinou uma confissão de pertencimento ao Partido Comunista e se enforcou em uma cela. O Sindicato dos Jornalistas e a Ordem dos Advogados exigiram abertura de inquérito e Geisel ordenou investigação por meio de uma comissão de militares. O laudo oficial atestou a morte de Vladmir Herzog como suicídio. No final de outubro cerca de 10 mil pessoas participam de um culto ecumênico na Catedral da Sé, em São Paulo, e muitos oposicionistas acreditaram que Geisel “nunca tivesse assumido real compromisso com a liberalização.” (SKIDMORE, 1988, p. 347). A morte do sindicalista metalúrgico Manoel Fiel Filho, em janeiro de 1976, também divulgada oficialmente como suicídio,

fez com que Geisel demitisse o comandante do

Segundo Exército, Ednardo d’Ávila Melo, contrariando os militares “linha-dura”.


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A imprensa se posiciona diante dos fatos. Mesmo ainda sob o controle do Estado, os jornais publicaram matérias sobre tortura e violação dos direitos humanos. Para Skidmore, “ao criar uma atmosfera ligeiramente menos rígida para a imprensa, o regime Geisel tornou possível uma opinião pública mais bem informada e mais facilmente mobilizada.” (SKIDMORE, 1988, p. 369). O governo Geisel oscilava entre medidas de liberalização do regime e de manutenção do mesmo. Em 1976, uma apresentação na televisão do Balé Bolshoi, uma companhia de dança russa, foi censurada pelo governo. No mesmo ano entrou em vigor a “Lei Falcão” proibindo o uso do rádio e da televisão para fins de campanha política. Os candidatos dos partidos Arena e MDB não podiam falar nada, somente aparecer mostrando o número para votação. No final do mandato de Geisel, em outubro 1978, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional nº 11, cumprindo a promessa do presidente de eliminar os elementos de estrutura autoritária. O AI-5 foi revogado e, com isso, finalizado o poder dado à autoridade presidencial para colocar o Congresso em recesso, cassar parlamentares e suspender direitos políticos. O habeas corpus também foi restabelecido, as penas de morte e prisão perpétuas eliminadas e a censura prévia retirada da imprensa. Geisel também revogou decretos de banimento de mais de 120 exilados políticos, em troca de diplomatas seqüestrados. Para sua sucessão Geisel apoiou o general João Batista Figueiredo, tendo como vicepresidente Aureliano Chaves, que assumiu a presidência em março de 1979. Figueiredo foi chefe do Gabinete Militar no governo de Médici e chefe do Serviço Nacional de Informação no governo Geisel. Figueiredo deu continuidade ao processo de abertura política e em agosto de 1979 a Lei da Anistia foi aprovada pelo Congresso. A lei beneficiou os presos políticos e também os militares, já que “abrangia também os responsáveis pela prática de tortura.” (FAUSTO, 2004, p.504). Em dezembro de 1979, o Congresso aprovou a Nova Lei Orgânica dos Partidos, permitindo, assim, a criação de novos partidos políticos. Fausto afirma que a lei foi elaborada “para tentar quebrar a força da oposição (…).” (FAUSTO, 2004, p.506). Com as medidas que estavam sendo tomadas, o país caminhava para a abertura política, mas, conforme afirma Skidmore (1988), atos violentos começaram a surgir, demonstrando desagrado à liberalização do regime. Skidmore assegura que: Nas bancas de jornais os jornaleiros recebiam bilhetes ordenando-lhes que parassem de vender publicações esquerdistas. Os que se recusavam tiveram suas bancas destruídas a bomba durante a noite. Atemorizados com tanta violência, dezenas de donos de bancas de jornais


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suspenderam as vendas das publicações vetadas, cuja circulação (…) caiu verticalmente. (…). Muitas delas jamais se recuperaram do golpe financeiro, e não tardaram em desaparecer. O terror anônimo (oriundo do SNI ou da inteligência militar, segundo a maioria dos jornais) obteve o que a censura não conseguira. (SKIDMORE, 1988, p.442).

Em 1º de maio de 1981 uma bomba explodiu dentro de um carro onde estavam um capitão e um sargento do Exército, pertencentes ao DOI-CODI. A bomba explodiu no complexo de entretenimento Riocentro, no Rio de Janeiro, onde estava sendo realizado um show do Dia do Trabalho, com manifestações esquerdistas. As evidências indicam que os militares estavam conduzindo a bomba, que seria explodida visando o pânico dos participantes e da população. De acordo com Skidmore, o atentado do Riocentro pode ser considerado “um gesto desesperado dos militares da direita que achavam ter perdido o controle do processo político, isto é, que a abertura estava se aproximando de um ponto irreversível.” (SKIDMORE, 2004, p.443). O governo Figueiredo também enfrentou graves problemas econômicos. Delfin Neto, novamente como ministro do Planejamento substituindo Mário Henrique Simonsen, agiu para conter a inflação. De acordo com Fausto, “a expansão de moeda foi severamente limitada; os investimentos das empresas estatais foram cortados; as taxas de juros internos subiram e o investimento privado também declinou.” (FAUSTO, 2004, p.502). A recessão e o desemprego resultaram em forte desaprovação da população ao governo. Os partidos políticos de oposição se uniram em uma campanha pela aprovação da emenda constitucional, proposta pelo deputado do PMDB Dante de Oliveira,

para o

restabelecimento da eleição direta para a presidência da República. O movimento, que ficou conhecido como “Diretas Já”, ganhou adesão popular “convertendo-se em uma quase unanimidade nacional.” (FAUSTO, 2004, p. 509). Estudantes, artistas, intelectuais, religiosos e a opinião pública se uniram em torno da campanha “Diretas Já” mobilizando a população em um sentimento nacionalista. Fausto acredita que: (...)a população punha todas as suas esperanças nas diretas: a expectativa de uma representação autêntica, mas também a resolução de muitos problemas (salário baixo, segurança, inflação) que apenas a eleição direta de um presidente da República não poderia solucionar. (FAUSTO, 2004, p. 509).

Os principais jornais e artistas também aderiram à campanha. Por instruções do governo, algumas emissoras de televisão, em especial a Rede Globo, não divulgavam os comícios em favor das eleições diretas. De acordo com Skidmore, quando as emissoras


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passaram a divulgar a campanha, significou “uma dramática demonstração de que o prestígio do governo estava declinando.” (SKIDMORE, 1988, p.469). Mesmo com toda demonstração popular e oposicionista, a emenda não foi reprovada em 25 de abril de 1984 no Congresso Nacional. Do total de 479 votos dos congressistas, 298 votaram a favor da emenda, que precisava de 320 para ser aprovada. Fausto afirma que “de qualquer forma, tendo em vista a composição do Senado, era muito problemático que a emenda passasse no Senado, caso fosse aprovada pela Câmara.” (FAUSTO, 2004, p. 510). As eleições presidenciais foram realizadas pelo Colégio Eleitoral. Aureliano Chaves perdeu a indicação pelo PDS para Paulo Maluf e organizou o Partido da Frente Liberal (PFL). O PFL aproximou-se do PMDB, formando a Aliança Democrática, em oposição a Paulo Maluf. O PMDB indicou Tancredo Neves para a Presidência da República e o PFL indicou José Sarney para vice-presidência. Em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves foi eleito presidente do Brasil, tendo como Vice-presidente José Sarney. Tancredo foi o primeiro presidente civil eleito desde 1964, mas não assumiu a Presidência. O presidente foi internado em 14 de março, às vésperas da posse, vítima de uma doença intestinal, e Sarney tomou posse como Presidente da República. A morte de Tancredo foi divulgada em 21 de abril de 1985. A nova Constituição foi promulgada em 1988, ratificando o estado de direito no país. A primeira eleição direta para presidente da República foi realizada em 1989 elegendo Fernando Collor de Mello como presidente do Brasil, com vice-presidência de Itamar Franco.


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4- METODOLOGIA A pesquisa teve início com uma extensa revisão bibliográfica, que forneceu dados sobre a função social atribuída ao jornalismo e o jornalismo investigativo como um gênero de reportagem. Como o estudo também leva em conta as matérias sob o ponto de vista das condições de produção, fez-se necessário pesquisar o período em que o Brasil viveu governado pelo Regime Militar (1964-1985). Para Lakatos e Marconi: Toda pesquisa implica o levantamento de dados de variadas fontes, quaisquer que sejam os métodos ou técnicas empregadas. Esse material-fonte geral é útil não só por trazer conhecimentos que servem de background ao campo de interesse, como também para evitar possíveis duplicações e ou esforços desnecessários; pode, ainda, sugerir problemas e hipóteses e orientar para outras fontes de coleta. (LAKATOS; MARCONI, 174)

Segundo Lakatos e Marconi, “a pesquisa bibliográfica, ou de fontes secundárias, abrange toda bibliografia já tornada pública em relação ao tema de estudo, desde publicações avulsas, boletins, jornais, revistas, livros (...).” (LAKATOS; MARCONI, 2001, p. 183). Diante da complexidade do tema e da dificuldade para o resgate do material jornalístico publicado no período, optou-se por fazer uma pesquisa qualitativa, selecionando três reportagens publicadas no livro “10 reportagens que abalaram a ditadura”, organizado por Fernando Molica. O livro “10 reportagens que abalaram a ditadura” oferece um recorte das matérias produzidas na época e por meio deste instrumento, foi possível eleger reportagens que abordam temas polêmicos. As reportagens têm em comum a dificuldade para apuração dos fatos, visto o regime de exceção e a censura imposta pelo Regime Militar. De acordo com Lakatos e Marconi (2001) o método científico é “o conjunto das atividades sistemáticas e racionais que, com maior segurança e economia, permite alcançar o objetivo – conhecimentos válidos e verdadeiros –, traçando o caminho a ser seguido, detectando erros e auxiliando as decisões do cientista”. (LAKATOS; MARCONI, 2001, p. 83). Este estudo escolheu o modelo de análise de conteúdo como método científico para sistematizar a investigação do assunto. Como afirma Bardin (2004), a análise de conteúdo procura a resposta para as causas dos enunciados e para as intenções da mensagem. Para a realização, a autora indica a preparação do material, a dedução do conteúdo e a interpretação. Segundo Bardin (2004):


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A análise de conteúdo é um conjunto de técnicas de análise de comunicação que visam, através de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, a obter indicadores quantitativos ou não que permitem a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção destas mensagens. (BARDIN, 2004, p.37).

Por meio da análise de conteúdo, o estudo formula um texto crítico, enfocando os critérios de noticiabilidade abordados nas reportagens. A perspectiva teórica do newsmaking forneceu a base necessária para a compreensão da maneira como o jornalismo investigativo se configurou no Brasil.


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5- ANÁLISE DE CONTEÚDO A análise de conteúdo das reportagens foi embasada nos critérios de noticiabilidade, conferidos pelos valores/notícia, da Teoria do Newsmaking. Foi feita uma verificação sobre quais os fatores foram responsáveis por transformar um acontecimento em algo noticiável dentro do jornalismo investigativo. De acordo com a revisão bibliográfica, que ajudou a conceituar o gênero jornalístico, a maioria dos autores atribui à apuração o principal diferencial para definir uma reportagem investigativa. Avaliando as reportagens selecionadas e também por meio dos depoimentos dos repórteres no livro “10 reportagens que abalaram a ditadura”, organizado por Fernando Molica, foi possível identificar de que maneira as pautas surgiram e quais foram os métodos de apuração adotados para cada reportagem.


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5.1 Torturas em 1964 A imprensa, em sua maioria, apoiou o golpe militar

acreditando que o regime

representaria uma boa opção para o desenvolvimento do Brasil, como foi descrito no capítulo três. O jornal Correio da Manhã foi um dos mais efusivos e ao publicar, em março de 1964, os editoriais “Basta” e “Fora” deixou claro seu posicionamento com relação ao governo João Goulart. A participação da imprensa foi de fundamental importância na divulgação da idéia de que havia desorganização administrativa no governo Goulart e que existia risco iminente da entrada do comunismo no país. A imprensa fortaleceu a alegação de que a intervenção militar era necessária para reorganizar o gerenciamento do Brasil. O golpe militar foi concretizado em 1 de abril de 1964. Pouco tempo depois do golpe militar, denúncias de torturas começaram a chegar às redações. Segundo o repórter Márcio Moreira Alves (2005), a primeira informação concreta foi divulgada no jornal Correio da Manhã em 18 de abril de 1964, já no governo do presidente Castello Branco, que havia tomado posse em 15 de abril de 1964. A notícia era sobre um operário que teria pulado do prédio da Polícia Central, no Rio de Janeiro, onde estava sendo mantido para prestar esclarecimentos políticos. Algumas notícias sobre as torturas foram publicadas, mas, conforme afirma o repórter Marcio Moreira Alves, “continuávamos antolhados pelo nojo de encararmos a possibilidade de torturas sistemáticas.” (ALVES, 2005, in MOLICA, 2005, p.18). As evidências de que torturas estavam sendo cometidas por órgãos policiais não puderam mais ser ignoradas e as notícias começaram a ser publicadas com mais freqüência. Alves afirma que “um quadro geral das torturas, praticadas em larga escala por quase todo o Brasil, se foi formando pouco a pouco. Íamos publicando notícias, mas nenhuma providência era tomada.” (ALVES, 2005, in MOLICA, 2005, p.18). A pauta para a realização da série de reportagens “Torturas em 1964” foi definida em uma reunião de editoria, depois que o jornal recebeu mais uma vez uma carta contando as torturas sofridas por um estudante angolano, no Presídio Naval da Ilha das Cobras (RJ). Diante de tantas notícias sobre tortura os jornalistas concluíram “que os leitores já estavam cansados de relatos de torturas (...)”(ALVES, 2005, in MOLICA, 2005, p.18).


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Visto o número de casos isolados que já estavam sendo noticiados, os repórteres optaram por fazer uma grande reportagem para verificar o que estava sendo praticado pelo Regime Militar. De acordo com Alves (2005), ele havia denunciado o fato às autoridades, que não tinham tomado nenhuma providência. Diante da suspeita de morte por tortura do sargento Manuel Alves de Oliveira, no Hospital do Exército de Triagem (RJ), Alves decidiu pedir providência para o ministro da Guerra, general Costa e Silva. O presidente Castello Branco enviou o chefe da Casa Civil, general Erneto Geisel, para uma investigação no Nordeste, de onde surgiam o maior número de denúncias de torturas. Formou-se uma Comissão de Investigações e o repórter foi junto para levantar os fatos. A apuração gerou a série de reportagens “Torturas em 1964”, que foi publicada nos dias 18, 20, 22 e 23 de setembro de 1964, pelo Correio da Manhã. Esta foi a primeira reportagem investigativa que denunciava as torturas realizadas pelo Regime Militar e representou importante papel na tentativa do controle das práticas abusivas contra prisioneiros contrários ao regime. A narrativa da reportagem é toda feita em primeira pessoa e muitas vezes o repórter se posiciona de maneira opinativa, realizando um papel de testemunha ao narrar os casos de tortura que foram apurados. 5.1.1- Critérios de noticiabilidade Ao ser definido, durante a reunião de editoria, que os casos de tortura deveriam ser apurados em maior profundidade, foi levado em conta o número de denúncias que chegavam à redação. Podemos verificar que os jornalistas foram guiados pelo critério substantivo de importância, apontado por Wolf (1994), na terceira variável da Teoria do Newsmaking, que diz respeito ao número de pessoas envolvidas em determinado acontecimento e confere visibilidade ao fato. De acordo com a teoria, para um assunto ter importância e ser considerado algo noticiável, uma das variáveis dos critérios substantivos deve estar presente no tema abordado Enquanto as informações de tortura eram enviadas à redação em números menores, foram transformadas apenas em “algumas linhas, partidas no fundo das seções de polícia dos jornais (...).”(ALVES, 2005, in MOLICA, 2005, p.17). Ele ainda acrescenta que “algumas notícias iam sendo publicadas, sem destaque maior.” (ALVES, 2005, in MOLICA, 2005, p.17-18).


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Alguns artigos foram escritos por Márcio Moreira Alves, demonstrando o posicionamento contra a tortura, mas foi somente com a possibilidade de realizar uma matéria mostrando um grande número de pessoas sofrendo torturas, que o fato se transformou em um assunto com critérios de noticiabilidade. Alves afirma que a partir da definição da pauta de reportagem “todos os recursos foram concentrados na obtenção de informações, em sua triagem e confirmação e na exposição dramática do imenso painel de bestialidade que cobria o Brasil inteiro.” (ALVES, 2005, in MOLICA, 2005, p.19). Foi necessário que um número considerável de denúncias de torturas chegasse ao conhecimento dos jornalistas para que a reportagem fosse realizada. Até então, as informações sobre tortura eram transformadas em notícias, como se nota na declaração de Alves. As primeiras notícias concretas de Pernambuco foram publicadas a 15 de maio e versavam sobre o espancamento de que foi vítima o ex-delegado Gildo Rios, àquela altura internado já há três semanas no Hospital do Exército de Recife com os tímpanos rompidos por golpes de “telefone”4. Outras notícias e informações foram se somando a estas. (ALVES, 2005, in MOLICA, 2005, p.18).

Alves faz menção ao número de pessoas vítimas de torturas ao longo de toda matéria. O repórter deixa claro no texto que não se tratavam de casos isolados, mas sim de um quadro amplo, como pode ser conferido no trecho selecionado de uma das reportagens da série, publicada em 22 de setembro de 1964. Após cuidadosas averiguações, após conversar com dezenas de torturados e suas famílias, após ouvir a confirmação dos maus-tratos infligidos a um preso da boca do próprio coronel Antônio Bandeira, chefe da Segunda Seção do IV Exército, tenho firmes elementos de convicção para assegurar – é verdade límpida e indiscutível - que algumas dezenas de presos políticos foram submetidos a torturas nos quartéis e delegacias de Recife, capital de Pernambuco. (ALVES, 2005, apud MOLICA, 2005, p.29).

Na última reportagem, publicada em 23 de setembro de 1964, Alves relaciona a eficiência da apuração ao número de casos que conseguiu comprovar. Segue a seleção do texto: Acredito ter feito um levantamento bastante amplo – 39 nomes, com as indicações necessárias à sua localização. Deixei de citar alguns casos comprovados que conheço porque os torturados, que já estão em liberdade, me preveniram que negariam as torturas caso tivessem de depor oficialmente. ( ALVES, 1964, apud MOLICA, 2005, p.37).

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Tortura aplicada com tapas em formas de conchas nos dois ouvidos ao mesmo tempo, que provocava forte dor e podia danificar o tímpano.


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Ao constatar que as torturas alcançaram um número elevado, o jornal se posiciona e exige providências do governo, da seguinte maneira: Volto a insistir que a honra do Exército foi maculada por um grupo de sádicos. Qualquer complacência para com eles seria uma deturpação do espírito de corporação, que deve, realmente, existir nas Forças Armadas. Conservando-os na impunidade, os chefes militares estarão faltando ao seu papel de liderança e afrontando os sentimentos da esmagadora maioria de seus comandantes. Punir criminosos não é vergonha, é dever. ( ALVES, 1964, apud MOLICA, 2005, p.37).

De acordo com a terceira variável, que atribui visibilidade ao fato, ou o assunto envolve um grande número de pessoas ou é algo que acontece na proximidade do público do veículo de comunicação. O jornal Correio da Manhã era localizado no Rio de Janeiro, e embora outras informações sobre as torturas cometidas na mesma cidade estivessem chegando ao conhecimento da equipe do jornal, o veículo optou por fazer um levantamento na cidade de Recife (PE), de onde vinham denúncias em maior quantidade. O próprio caso que deu início à reunião de pauta tratava de um estudante angolano, que estava no Presídio Naval da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro e, no entanto, não foi feito um levantamento das torturas no Rio de Janeiro. Tal fato fortalece a tese de que a quantidade dos envolvidos influenciou na realização da reportagem. Alves (2005) afirma que em 18 de abril de 1964 a primeira notícia com denúncia de tortura de um preso político no Rio de Janeiro foi publicada no Correio da Manhã. A denúncia de torturas no Recife chegou ao conhecimento do jornal em 15 de maio, mas como afirma Alves “tratávamos as denúncias de torturas com um certo automatismo de rotina.” (ALVES, 2005, in Molica, 2005, p.18). A série de reportagens “Torturas em 1964” começou a ser produzida somente em 17 de setembro de 1964. Foram necessários vários meses e dezenas de denúncias para que houvesse um investimento maior do jornal e fosse realizada uma apuração, que gerou uma reportagem detalhada sobre os métodos empregados por oficiais do Exército. 5.1.2- Apuração O repórter Márcio Moreira Alves foi para o Recife junto com a Comissão de Investigações, comandada pelo general Ernesto Geisel, para apurar de perto de que forma os presos políticos estavam sendo tratados. Ele afirma que “logo que soube da projetada viagem do general Geisel a Pernambuco, percebi uma oportunidade talvez única de apurar a veracidade das muitas denúncias que de Recife recebíamos.” (ALVES, 2005 in MOLICA, 2005, p.20)


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Mesmo acompanhando a Comissão de Investigação, o repórter não se limitou a seguir os responsáveis pela investigação oficial, como é relatado na reportagem, na seleção que segue abaixo. Obtive ainda, consentimento para acompanhar os trabalho e passarei aos membros escolhidos a substancial massa de denúncias de que já disponho. Temos, portanto, pela frente, um levantamento a ser feito com minúcia, diferente da vistoria sumária procedida pelo general Ernesto Geisel que, nas poucas horas aqui passadas, não se dignou sequer mandar um representante visitar o HGE5, onde se encontram Vladir Ximenes, com três vértebras fraturadas por pacadas; o jornalista Milton Coelho da Graça, com menos dois dentes; e o prefeito de Natal, Djalma Maranhão, 25 quilos mais magro. Também não visitou o asilo de loucos da Tamarineira, one me informaram estar o camponês José Antônio de Albuquerque, de Vitória de Santo Antão, e o funcionário da Secretaria de Segurança Pública Edval Freitas, ambos enlouquecidos após alguns dias de prisão. Esqueceu-se ainda de entrevistas-se com Gildo Rios, de quem ouvi o coronel Bandeira dizer ter passado 26 dias no HGE em virtude de haver tido os tímpanos furados por golpes de telefone. ( ALVES, 1964, apud MOLICA, 2005, p.24).

Como pode ser conferido no próximo parágrafo, retirado da reportagem publicada em 22 de setembro de 1964, por não ter vinculado sua apuração à investigação oficial, o repórter conseguiu apresentar ao leitor o verdadeiro quadro das torturas, diferente do que seria apresentado pelo Regime Militar. O general Ernesto Geisel viu muita coisa em sua rápida passagem por Pernambuco. Ao sair, no entanto, fez uma declaração incompleta. Disse que os presos políticos estavam sendo normalmente tratados, dentro das circunstâncias excepcionais que atravessamos. Acredito que isto seja verdade. Como já escrevi, o único caso de espancamento que conheço posterior a junho é o do repórter José Carlos Rocha. Mas não é a verdade inteira. O general Geisel não disse que levava na pasta as radiografias e os laudos médicos, inclusive de médicos militares, sobre Valdir Ximenes, nem que tinha ouvido , da boca das vítimas, minuciosas descrições de torturas, com acusações precisas aos torturadores e as datas em que foram realizadas. ( ALVES, 1964, apud MOLICA, 2005, p.30-31).

A apuração jornalística não foi feita somente com os relatos de torturados, que poderiam não ser verdadeiros. Para embasar a denúncia e transmitir credibilidade à reportagem, Alves ouviu também médicos para ter comprovação das torturas, como pode ser comprovado na seleção do texto: Os casos de torturas comprovadas com testemunho médico em Pernambuco são pelo menos cinco: Valdir Ximenes, já referido; Gildo Reis, que passou 26 dias no Hospital Geral do Exército, com os tímpanos furados e que preferiu sair do Estado a viver sob medo de ser novamente torturado; José Antônio Lopes Albuquerque, camponês do engenho Galiléia, preso em Vitória de Santo Antão, atualmente internado no Manicômio Judicial da Tamarineira. Este homem diz apenas seu nome, o da mulher e dos filhos e pergunta por que está ali, já que não é maluco. Recusa-se a responder a qualquer pergunta, passando os dias em completa apatia, exceto quando vê alguma farda, quando se põe a tremer e berrar; Edval Freitas, também internado na Tamarineira, onde deu entrada mediante um documento firmado pelo coronel Hélio Ibiapina e, finalmente, Manuel Messias da Silva, torturado em Caruaru, onde foi atendido pelo médico do SAMDU6, Dr. Honório Florença. (ALVES, 1964, apud MOLICA, 2005, p.31). 5 6

Hospital Geral do Exército Sistema de Assistência Médica Domiciliar de Urgência


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A série de reportagens “Torturas em 1964”, do jornal Correio da Manhã, pode ser considerada um produto de jornalismo investigativo, pois levanta questões ocultas e realiza fiscalização do poder público. O repórter fez uma apuração de campo, ouvindo os envolvidos e buscando a comprovação do que estava sendo contado. De acordo com seu relato, que segue abaixo, outros jornalistas estavam cientes das torturas cometidas, mas preferiram não investir na apuração, por acreditarem que teriam dificuldades. Segue o texto de Alves: Desembarquei em Recife (...), cheio de pressa em tomar providências, dar telefonemas, marcar encontros, procurar cada uma das pessoas cujos nomes levava no bolso. Os jornalistas de Recife garantiram que eu não conseguiria entrar nas prisões e que os torturados que já haviam sido libertados recusavam-se a falar. (ALVES, 1964, in MOLICA, 2005, p.31).

Diferente dos outros repórteres Alves investiu na apuração e encontrou meios de conseguir as entrevistas. Enquanto os demais veículos e jornalistas desistiram o repórter Márcio Moreira Alves acreditou ser possível apurar os fatos e teve consciência da responsabilidade social do jornalismo.


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5.2 Assim vivem nossos superfuncionários Como foi detalhado neste estudo, no capítulo que aborda o contexto histórico, quando o presidente general Ernesto Geisel assume a Presidência da Republica, em março de 1974, assume também o compromisso de liberalizar o regime com uma abertura política lenta, segura e gradual. O projeto de distensão previa a redução do controle do Estado sobre a imprensa. A primeira providência foi a retirada da censura prévia, em janeiro de 1975, do jornal Estado de São Paulo. A princípio, somente este veículo foi beneficiado, continuando os demais sujeitos à análise dos censores antes da publicação das matérias. A extinção da censura prévia só foi uma realidade para todos os veículos de comunicação com a revogação do AI-5, em outubro de 1978. O afrouxamento do controle governamental no Estado de São Paulo refletiu na produção de reportagens mais consistentes sobre as questões políticas no Brasil. A censura provocou um esvaziamento nas reportagens políticas e, aos poucos, o jornal voltou a publicar matérias mais críticas. Seguindo essa tendência, a série de reportagens “Assim vivem nossos superfuncionários”, organizada por Ricardo Kotscho, foi publicada nos dias 1, 2 e 4 de agosto de 1976. As reportagens denunciavam a maneira como os funcionários do alto escalão brasileiro faziam uso dos recursos públicos. De acordo com relato do repórter Ricardo Kotscho no livro “10 reportagens que abalaram a ditadura”, a pauta da reportagem foi inspirada em uma matéria da revista “New Yorker”. A reportagem trazia ao conhecimento do público os privilégios dos funcionários estatais do alto escalão da Ex-União Soviética. O então diretor de redação do Estado de São Paulo, Fernando Pereira,

propôs que Ricardo Kotscho fizesse um levantamento sobre os

gastos de funcionários do alto escalão brasileiro e apurasse de que maneira viviam. 5.2.1- Critérios de noticiabilidade Como em outra reportagem qualquer, a seleção do assunto da pauta para a série de reportagens “Assim vivem nossos superfuncionários” passou

pelo crivo dos critérios

substantivos de importância, descritos na Teoria do Newsmaking, que conferem noticiabilidade à um fato.


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Na série de reportagens “Assim vivem nossos superfuncionários” foi possível identificar predominantemente a primeira variável, proposta por Wolf (1994). A variável confere notoriedade ao tema, levando em consideração o nível hierárquico dos envolvidos em determinado assunto. Os valores/notícia, conferidos pelos critérios de noticiabilidade, foram responsáveis pela seleção do tema, desde o planejamento da pauta até a redação da matéria. No momento em que ficou definido entre o diretor de redação e o repórter responsável pela matéria que o alvo da investigação jornalística seriam os funcionários de alto escalão do governo militar, a importância dos envolvidos para a sociedade foi o ponto atrativo para a realização da reportagem. Certamente outro foco poderia ter sido dado à reportagem, já que a apuração gerou informações que mostram “esquemas de regalia” entre funcionários que ocupavam cargos inferiores, porém, como podemos comprovar no seguinte trecho da reportagem, casos de mordomias de funcionários de nível mais baixo serviram apenas para

complementar a

matéria: De certa maneira, contudo, o carro oficial foi aos poucos deixando de ser um símbolo do ‘status’ dos superfuncionários. Hoje, qualquer funcionário subalterno pode ter um à disposição e essa facilidade tirou a sua imponência. (KOTSCHO, 1976 apud MOLICA, 2005, p.163).

A constatação de que as regalias atingiam diversos cargos estatais foi obtida e citada na série de reportagens. No entanto, só serviram de ilustração para mostrar o abuso do dinheiro público e não como foco central. Ao optar por dar ênfase às mordomias de funcionários do primeiro escalão, o repórter, guiado pelos critérios de noticiabilidade, acreditou que desta maneira a reportagem teria mais força. Como pode ser comprovado no parágrafo a seguir: Para as noites em Brasília, só há uma opção melhor que as festas: as sessões privadas de cinema, um hobby que já faz parte das melhores tradições da cidade. As sessões mais concorridas-e disputadas- são as promovidas por Reis Velloso, Armando Falcão, Ney Braga7, Itamarati, Presidência da República, EMFA8, BNDE e outras siglas menos votadas. Com uma atração que nenhum outro cinema pode apresentar: os filmes não são censurados. (KOTSCHO, 1976 apud MOLICA, 2005, p.153).

A primeira reportagem da série “Assim vivem nossos superfuncionários” começa com o relato de uma mulher que ao ver o trinco da geladeira quebrado manda comprar uma nova

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Nota do autor: “João Paulo dos Reis Velloso, então ministro do Planejamento; Armando Falcão, ministro da Justiça; Ney Braga, ministro de Educação”. 8 Nota do autor: “Emfa: Estado-Maior das Forças Armadas”.


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geladeira. O fato não teria importância se a mulher referida não fosse a esposa de um diretor do Banco do Brasil e os gastos não fossem financiados pelo governo. O trinco da geladeira quebrou e a mulher não teve dúvidas, chamou um mordomo, pago pelo governo, e deu-lhe ordens para requisitar imediatamente uma geladeira nova, paga pelo governo. Afinal, para quem é mulher de um diretor do Banco do Brasil, pago pelo governo, é mais fácil comprar uma geladeira nova do que mandar consertar a velha de dois meses de uso. (KOTSCHO, 1976 apud MOLICA, 2005, p.152).

No próximo parágrafo selecionado Kotscho cita o nome de ministros e de empresas que abusam das vantagens, ressaltando a notoriedade dos envolvidos no esquema de corrupção. Se a festa for na casa do ministro das Minas e Energias, Shigeaki Ueki, os convidados poderão dar um mergulho na piscina, até mesmo nas noites mais frias do ano: ela é térmica. Mas, se por algum motivo, preferirem bebidas nacionais às estrangeiras, terão de ir à casa do ministro da Saúde, Almeida Machado – um dos poucos locais onde ainda se serve uísque nacional, um produto raro em Brasília. Para os que gostam de ser bem servidos, a melhor opção ainda é a casa do ministro do Trabalho, Arnaldo Prieto, que dispõe de uma criadagem fixa de 28 pessoas. (KOTSCHO, 1976 apud MOLICA, 2005, p.154).

A gravidade das denúncias tem ligação direta com a importância dos atores da notícia dentro da sociedade. O recorte realizado pela reportagem demonstra que a seleção dos fatos é direcionada por critérios de noticiabilidade, que possibilitam ao jornalista filtrar, dentre os numerosos fatos, quais devem receber destaque. 5.2.2-Apuração Tendo como ponto de partida algumas fontes sugeridas pelo diretor de redação, Kotscho iniciou o processo de apuração. Segundo declaração do repórter no livro “10 reportagens que abalaram a ditadura”, alguns fatos foram citados na matéria, sem que o nome dos envolvidos fosse dito, pois muitas pessoas tinham medo de contar o que sabiam. Kotscho (2005) afirma ter usado o “Diário Oficia” como fonte para levantar os benefícios destinados aos funcionários estatais. De acordo com ele, muitas das informações estavam descritas no jornal oficial do governo, que ajudou durante toda a apuração. Por meio do “Diário Oficial”, Kotscho descobriu uma lista com a declaração de alguns dos benefícios de alimentação e cartões de créditos que tais funcionários detinham. A partir daí, foi elaborada uma pauta, distribuída entre as sucursais e os correspondentes do jornal, para que um grande levantamento fosse realizado. Ao todo, 40


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repórteres estiveram envolvidos na apuração dos fatos e levantamento de dados que foram transformadas na séria de reportagens. Segundo Kotscho: Durante dois meses, repórteres desta rede me mandaram relatórios e, a partir deles, fiz várias viagens pelo país, checando dados, levantando fatos novo. Ao final do trabalho de apuração, juntei dezenas de pastas e fui escrever a matéria em casa. (KOTSCHO, 2005, in MOLICA, 2005, p.144).

O trabalho foi sustentado com provas que legitimaram a denúncia. No texto que antecede a reportagem, o jornal deixa claro que “se algumas informações coletadas para esta série de reportagens pecarem por imprecisão, o fato deve-se exatamente ao sigilo que cerca as atividades dos superfuncionários e a impossibilidade de acesso a documentos oficiais.” (KOTSCHO, 1976, apud MOLICA, 2005, p.151). Apesar disso, é possível verificar que o trabalho de apuração encontrou brechas para poder sustentar a reportagem, como pode ser confirmado no trecho abaixo. De qualquer forma, apesar de todo o sigilo erguido em torno dos salários dos superfuncionários, algumas informações começaram a vazar, permitindo que se monte um quadro o mais aproximado possível da realidade. Alguns, como os dirigentes da Companhia de Eletricidade do Ceará – que atende pela sigla COELCE – chegaram a alegar ‘segredo de Estado’ para sonegar as informações pedidas pelo repórter, sustentando que ‘sobre esse assunto, o presidente e os diretores somente devem satisfações ao Conselho de Contas, pois é um assunto estritamente confidencial, uma vez que não interessa ao grande público. (KOTSCHO apud MOLICA, 2005, p.169).

No texto de Kotscho é possível encontrar várias pistas da maneira como a apuração foi feita. Muitas das provas foram conseguidas por meio de instrumentos do próprio governo. Como podemos confirmar nos trechos a seguir, mesmo com as barreiras impostas por um Regime Militar a reportagem foi realizada com bases em apurações cuidadosas.

Recentemente, no Senado, foram feitas denúncias de que o presidente da Petrobrás ganha mais de Cr$ 200.000,00 por mês e que o Banco do Brasil distribuiu, só no ano passado, cerca de Cr$ 7.000.000,00 aos seus diretores, sob a forma de participação nos lucros. (KOTSCHO apud MOLICA, 2005, p.168). (...) O Tribunal de Contas do Distrito Federal ficou sabendo que, em curto período, a mordomia do governador Elmo Serejo Farias comprou 47 vidros de laquê, por Cr$ 2.309,90. A inspetora Elza da Silva Guimarães , do TCDF, achou também ‘estranhável’ a quantidade de gêneros alimentícios adquiridos num só dia: 17 quilos de meção, 23 quilos de uva, 14 quilos de ameixa, 11,3 quilos de mamão, 21 caixas de pêssego e 16 dúzias de bananas. Mais estranhável ainda, ela considerou a compra do dia 15 de maio de 74, quando foram adquiridos para a residência do governador Elmo Serejo Farias 6.825 pães franceses, 280 litros de leite e sete pacotes de pão de forma, todos de uma só firma. Ao que se saiba a única medida concreta adotada pelo Tribunal de Contas do Distrito Federal, diante de tantas ‘estranhezas’, foi a abertura de um inquérito para apurar a responsabilidade do servidor que forneceu à imprensa os autos do processo de tomada de contas da mordomia do


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governador de Brasília – descuido que permitiu ao público ter uma idéia do consumo nas residências oficiais. (KOTSCHO, 1976 apud MOLICA, 2005, p.159).

A reportagem produzida pelo jornal O Estado de São Paulo e organizada por Ricardo Kotscho denunciou os excessos de funcionários estatais do Regime Militar e cunhou o termo “mordomias”, como sinônimo de abuso do dinheiro público. “Assim vivem nossos superfuncionários” recebeu o Prêmio Esso, na categoria principal, em 1976, como a melhor reportagem do ano. Alguns autores consideram a série de reportagens um marco para o jornalismo investigativo do Brasil. A série demonstra que o jornalismo realizado com eficiência e responsabilidade pode atuar como um vigia do estado, controlado e fiscalizando os órgãos de poder.


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5.3 BNH favorece a Delfin em Cr$ 60 bi Funcionários que foram demitidos pelo Banco Nacional da Habitação (BNH), por serem contrários a um acordo entre o banco e o Grupo Delfin, procuraram a equipe de reportagem do jornal Folha de São Paulo para fazer uma denúncia. Os ex-empregados “discordaram dos critérios sem precedentes de avaliação dos terrenos oferecidos pela Delfin. Foram, porém, ignorados.” (ASSIS, 2005, in MOLICA, p.311). Impondo a condição de que seus nomes seriam mantidos sob sigilo, os ex-funcionários entregaram documentos que comprovavam a negociação com os terrenos do Grupo Delfin, avaliados em cerca de Cr$ 10 bilhões, para quitar uma dívida com o BNH de Cr$ 70 bilhões. Um dos funcionários demitidos pelo BNH conhecia o repórter Ricardo Gontijo, do jornal Folha de São Paulo, e o procurou para entregar as provas. O jornalista, que atuava em outra editoria, passou o caso para o repórter José Carlos de Assis, que tinha conhecimento da área econômica. Com base nas provas e em entrevistas, José Carlos de Assis produziu a reportagem “BNH favorece a Delfin em Cr$ 60 bi”, que foi publicada em 30 de dezembro de 1981 . Mesmo com todo o escândalo que a denúncia provocou e com a adesão de outros jornais na publicação do fato, o proprietário do Grupo Delfin, Ronald Guimarães Levinsohn, conseguiu bloquear as ações que foram movidas contra o grupo. De qualquer maneira, de acordo com Assis (2005), “do ponto de vista político, a denúncia tinha produzido um efeito extraordinário: o escândalo abalou o governo Figueiredo e, de alguma forma, ajudou a liquidar as perspectivas presidenciais de Andreazza, que poderia ser o sucessor militar, ou anfíbio” (ASSIS, 2005, in MOLICA, 2005, p.307). 5.3.1- Critérios de noticiabilidade Diante da possibilidade de denunciar que o Banco Nacional da Habitação havia feito uma transação para beneficiar o Grupo Delfin, o repórter José Carlos de Assis se viu diante de uma informação de grandes proporções. De acordo com o repórter, sua reação ao procurar o editor foi dizer que “temos uma caixa de nitroglicerina pura. Podemos explodir uma negociata de mais de 200 milhões de dólares.”( ASSIS, 2005, in MOLICA, 2005, p. 304) O repórter tinha a dimensão de que fato apresentava critérios de noticiabilidade. Ao pedir a autorização do responsável pela editoria para o desenvolvimento da pauta levou em


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conta o envolvimento de pessoas e empresas de relevância no cenário nacional na denúncia que acabara de receber. Por este motivo é possível identificar a variável que confere notoriedade a um fato, de acordo com o grau e nível hierárquico dos envolvidos. Esta variável motivou a produção da reportagem, guiando os jornalistas na apuração do fato. Os altos valores financeiros e a importância das partes envolvidas na negociação conferem notoriedade ao acontecimento. A reportagem mostra que a decisão foi arbitrária ao posicionamento de setores internos do Banco Nacional da Habitação, como pode ser lido no parágrafo selecionado da reportagem. Contra parecer técnico de sua Diretoria de Terras, contra avaliações de uma comissão oficial, a despeito de recomendações contrária de seu próprio presidente e à custa das demissões de um de seus diretores e de um assessor deste, o BNH – Banco Nacional de Habitação aceitou quitar as dívidas do Grupo Delfin, de cerca de Cr$70 bilhões, em troca de terrenos avaliados oficialmente em cerca de Cr$ 9 bilhões. (ASSIS, 2005, apud MOLICA, 2005, p. 309)

O acordo feito entre o banco e o grupo imobiliário envolvia não só os interesses de ambos. A reportagem denuncia também o envolvimento de ministros na operação fraudulenta, como pode ser comprovado no trecho abaixo. A operação foi concretizada há duas semanas, aparentemente sem aprovação formal da diretoria do BNH (sete diretores mais o presidente José Lopes de Oliveira). Para contornar a relutância da diretoria, ela limitou-se a “tomar conhecimento” de uma decisão em nível ministerial – ministros Mário Andreazza, do Interior; Delfin Neto, do Planejamento, Ernane Galvêas, da Fazenda –mas antes disso demitiu-se o diretor de Poupança e Empréstimo, Lycio de Faria. (ASSIS, 2005, apud MOLICA, 2005, p. 309).

O Grupo Delfin representava uma importante empresa privada. Na data em que a reportagem foi publicada, o Grupo Delfin era “a maior sociedade independente de crédito imobiliário do país, mantendo a maior rede de captação de poupança depois da Caixa Econômica Federal.” (ASSIS, 2005, apud, MOLICA, 2005, p.318). Certamente uma notícia envolvendo um grupo deste porte ganha mais notoriedade. 5.3.2-Apuração Ao receber a denúncia, com documentos que comprovavam a negociação que favorecia o Grupo Delfin, o repórter José Carlos de Assis realizou um trabalho de análise das provas para constatar que a acusação era verdadeira. Marquei um encontro com um dos denunciantes anônimos, em local reservado ( a pedido dele), onde ouvi o resumo da história. Fiquei impressionado, mas era preciso conferir os documentos. Mergulhei neles um dia inteiro. (ASSIS, 2005, in MOLCIA, 2005, p. 304).


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A política interna do jornal Folha de São Paulo determinava que todas as partes envolvidas deveriam ser ouvidas. O repórter possuía provas documentais e temeu que, ao entrevistar os atores da negociação, sofresse veto à matéria, conforme explica: Qual era a minha restrição a ouvir Ronald Guimarães Levinsohn, o dono da Delfin, antes da publicação da matéria? Simplesmente, seu poder. Ronald era íntimo dos ministros militares e tinha boas relações, ou dizia ter, com os ministros Mário Andreazza (Interior), Ernani Galvêas (Fazenda) e Delfin Neto (plenipotenciário do Planejamento). Mantinha boa parte da grande imprensa literalmente no bolso. (ASSIS, 2005, in MOLCIA, 2005, p. 305).

De qualquer maneira, todas as partes foram ouvidas. O repórter afirma que abordou o assunto sem contar que continha provas que denunciavam a transação: Liguei para a assessora de imprensa do BNH e, sem dizer uma frase sobre os documentos que eu tinha, perguntei pelo acordo da Delfin com o BNH. Ela disse ter consultado o presidente José Lopes e que, por se tratar de um acordo com uma empresa privada, só esta deveria falar sobre o assunto. (...). Liguei então para Levinsohn. Não o conhecia, ele não me conhecia, mas assim mesmo atendeu prontamente a meu telefonema. Entendi imediatamente que a assessora da presidência do BNH o havia avisado de meu pedido de informação sobre o acordo. (ASSIS, 2005, in MOLCIA, 2005, p. 305).

A atitude do jornal em exigir que todos os envolvidos fossem ouvidos e a competência do repórter para confrontar a versão oficial com as provas, demonstra que é possível atuar com ética na denúncia de assuntos de interesse público. Como pode ser visto na seleção abaixo, o repórter usou o que foi dito oficialmente para fortalecer a denúncia. O presidente do BNH, José Lopes de Oliveira, confirmou a operação – consolidação da dívida contra ação em pagamento de terrenos – através de sua assessora Lúcia de Biasi, consultada por telefone. Ainda através dela, sugeriu que maiores informações fossem obtidas junto ao Grupo Delfin. O próprio dono da Delfin, Ronald Guimarães Levinsohn, também consultado por telefone, confirmou igualmente a operação – que não quis definir como renegociação da dívida –, classificando-a como um negócio bom para todo mundo. Ao contrário do que informou Ronald Levinsohn, esta é, na verdade, a terceira tentativa de consolidação das dívidas do Grupo Delfin (...). O grupo propôs dar em troca ao BNH – numa operação totalmente estranha às finalidades deste – imóveis de sua propriedade, que entraram na operação pelo seu “valor potencial” de mercado e não pelo seu valor real, se imediatamente comercializados. (ASSIS, 2005, apud MOLCIA, 2005, p. 305).

Além de garantir que as denúncias do acordo eram verídicas, Assis ainda procurou outras fontes para se assegurar da interpretação dos dados. Uma vez publicada a denúncia, era necessário sustentar seus fundamentos. Antes de mais nada, era preciso desmistificar o “valor potencial”9. Fiz isso ouvindo especialistas da área e,

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Os imóveis foram avaliados, pela Empresa Brasileira de Estudos do Patrimônio (Embraesp) e pelo perito judicial Wilson da Silva Maia, a um valor acima do valor real, chamado de valor potencial. Nesta avaliação o valor considerado é o que valeria dentro de oito ou dez anos, se projetos habitacionais previstos fossem realizados.


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sobretudo, entrevistando João Fortes, então presidente de uma associação de construtores e conselheiros do BNH. (ASSIS, 2005, in MOLCIA, 2005, p. 304).

O repórter foi cauteloso ao apurar a denúncia e procurou se resguardar para poder seguir adiante com a reportagem. A matéria pode ser considerada um produto do jornalismo investigativo, pois mesmo tendo surgido de uma denúncia, não se limitou a publicar somente o que continha nos documentos. Foi necessário que o repórter realizasse um levantamento dos dados sobre o acontecimento para que a a matéria não se transformasse em uma denúncia vazia. Nesta reportagem, além de enfrentar os poderes políticos, o jornalista confrontou-se com um empresário poderoso, Ronald Guimarães Levinsohn, que após a denúncia mobilizou recursos legais para retirada dos processos e investiu na mídia para diminuir a repercussão do caso.


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CONCLUSÃO

O jornalismo investigativo é uma prática que exige a liberdade de imprensa e o comprometimento dos jornalistas na atuação responsável dos veículos de comunicação. Para a realização de uma reportagem investigativa, o jornalista precisa ter em mente seu papel dentro da função de vigilância sobre as ações do Estado. No período estudado foram verificadas as dificuldades de atuação da imprensa em meio a um regime de exceções. Contudo as limitações impostas pelo Regime Militar não impediram que reportagens investigativas, contendo denúncias graves ao regime, fossem produzidas. Em cada reportagem analisada, foi possível perceber que, embora os métodos de apuração se diferenciassem, foram realizados de maneira criteriosa e prudente. Na série de reportagens “Torturas em 1964”, o repórter Márcio Moreira Alves, realizou uma apuração presencial, indo até a cidade de Recife, em Pernambuco, para entrevistar presos políticos que denunciavam torturas. Além de ver pessoalmente as condições de vários presos políticos, o repórter buscou comprovação médica de que tais abusos militares estavam verdadeiramente sendo praticados. Já na série “ Assim vivem nossos superfuncionários”, Ricardo Kotscho realizou um levantamento inspirado por uma publicação sobre a ex-União Soviética. Kotscho não recebeu nenhuma denúncia e começou a levantar dados para verificar uma suspeita. Ele realizou entrevistas em busca de informações sobre os privilégios conferidos aos funcionários do alto escalão do governo militar. Mesmo com recursos limitados para a apuração, o repórter também contou com as informações publicadas no “Diário Oficial”, que estava disponível a quem se interessasse a ver. A realização dessas duas reportagens apresentou dificuldades, por causa do medo imposto pelo Regime Militar. A insistência na investigação gerou resultados positivos e as informações foram todas obtidas, mesmo com a omissão de alguns nomes de fontes. As reportagens foram embasadas em provas documentais e depoimento de fontes. A reportagem “BNH favorece a Delfin em Cr$ 60 bi” surgiu de uma denúncia, contendo fontes e documentos. Embora o repórter tenha recebido as provas sem dificuldades, foi necessário um trabalho de pesquisa e análise em cima dos dados. Além disso, José Carlos de Assis acrescentou à documentação outras fontes necessárias para embasar a denúncia e delatar o acordo fraudulento.


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Em uma época na qual as informações eram restritas e os métodos de controle governamental eram baseados no medo e na privação, jornalistas provaram que é possível aprofundar um tema e levar ao conhecimento da população assuntos de interesse público. Como foi visto no estudo sobre a Teoria do Newsmaking, os jornalistas são guiados por critérios de noticiabilidade já que, além de dependerem de parâmetros para definição de assuntos a serem produzidos, contam com pouco tempo para a produção de matérias e espaço restrito para publicação. Contudo, a mesma teoria prevê que os veículos devem ser flexíveis para abordar temas especiais. Todas as reportagens analisadas foram publicadas em jornais impressos de publicação diária. Pelos motivos apresentados acima, é possível afirmar que a apuração detalhada e o esforço maior do repórter na descoberta de pessoas e documentos que comprovem algum assunto é possível, mesmo em veículos que exijam mais agilidade para publicação. Ao longo dos anos 80, ao mesmo tempo em que a imprensa se desvencilhava da censura e do controle governamental no Brasil, começava a sofrer intensificação na formação de conglomerados de comunicação. Hoje, o país vive em regime democrático, mas os veículos de comunicação estão atrelados a outros métodos de censura. O controle governamental ainda existe, mas o controle econômico foi intensificado. Por este motivo, Thompson (2000) defende uma legislação que regule os meios de comunicação, para desconcentrar os recursos da mídia e a separação desses veículos das instituições estatais, garantindo um pluralismo regulado. O sociólogo afirma que os avanços tecnológicos não garantem a diversidade de pontos de vista e a expressão dos interesses em conflito na sociedade já que os meios estão sob controle de conglomerados econômicos. Para Thompson: a defesa da liberdade de expressão e da pluralidade de pontos de vista não está garantida apenas pela independência da autoridade do Estado, pois a teoria liberal subestima o processo que resultou num declínio constante no número de jornais e numa concentração crescente de recursos nas mãos de conglomerados da multimídia e nas de empresários idiossincráticos. (THOMPSON, 2000, p.327)

As reportagens investigativas representam o papel de controle das ações governamentais e são instrumentos fundamentais para a manutenção da democracia. O jornalismo investigativo requer dedicação e esforço do repórter na obtenção de provas, sem que para isso falte com a ética e o profissionalismo.


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5-REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA ABREU, Alzira Alves de. A participação da imprensa na queda do governo Goulart. In: Anais do Seminário 1964-2004. 40 Anos do Golpe: ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: Faperj &7Letras, 2004. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 2004. CALDAS, Suley. Jornalismo econômico. São Paulo: Contexto, 2003. DAHL, Robert. Sobre a democracia. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2001. DOMINGUES, Joelza Ester e FIUSA, Layla Paranhos Leite. História: O Brasil em foco. São Paulo: FTD, 1996. FAUSTO, Boris. História do Brasil. 12 ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. FILHO, Ciro Marcondes. Comunicação e jornalismo: a saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker, 2000. FRANÇA, J. L.; VASCONCELLOS, A. C. de; MAGALHÃES, M. H. de A.; BORGES, S. M. Manual para normalização de publicações técnico-científicas. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2007. GERALD, Edward.

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