Princípios, Práticas e Perspectivas Kátia Hanna Dennys Silva-Reis organizadores
quadrinhos.indd 6
01/12/2020 16:50
Princípios, Práticas e Perspectivas Kátia Hanna Dennys Silva-Reis organizadores
quadrinhos.indd 1
01/12/2020 16:50
Conselho Editorial Alípio Correia de Franca Neto Elisa Duarte Teixeira Fulvio Flores Guilherme Fromm Lajosy Silva Luciana Latarini Ginezi Marly D’Amaro Blasques Tooge Martha Mendes Nancy Gaviria-van Loenen Patrícia Gimenez Camargo Rozane Rodrigues Rebechi Yuri Jivago Amorim Caribé © Copyright: Kátia Hanna e Dennys Silva-Reis (org.), 2020 Editoras Vera Lúcia Ramos Telma São Bento Ferreira Capa Bruno Porto Imagens O Tico-Tico e outras HQs em domínio público Projeto Gráfico e Diagramação Joaquim Roddil Catalogação na Publicação T763 A tradução de quadrinhos no Brasil : princípios, práticas e perspectivas / Organizadores: Kátia Hanna, Dennys Silva-Reis. -- São Paulo: Lexikos, 2020. 316 p. Bibliografia. ISBN 978-65-992321-1-4 Acesso ao encarte com imagens: https://lexikos.com.br/download/encarte-quadrinhos/ 1. Tradução. 2. História em quadrinhos (análise). 3. Mangá. 4. Tradutores. I. Hanna, Kátia, org. II. Silva-Reis, Dennys, org. CDD 412.02 Bibliotecária responsável pela estrutura de catalogação da publicação de acordo com a AACR2: Brianda de Oliveira Ordonho Sígolo - CRB - 8/8229
[2020] Todos os direitos desta edição reservados à LEXIKOS EDITORA LTDA. www.lexikos.com.br e-mail para pedidos: comercial@lexikos.com.br Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou meio sem permissão expressa e por escrito da editora.
quadrinhos.indd 2
01/12/2020 16:50
Sumário
Apresentação...............................................................7 Kátia Hanna e Dennys Silva-Reis
Prefácio Sobre super-homens, homens-morcego e mulheres-maravilhas: prefácio para um fértil diálogo sobre tradução de quadrinhos.........9 Bruno Porto Como comecei a gostar de HQ e graphic novels…..................... 13 John Milton
Uma história em construção Histórias entrelaçadas: a indústria norte-americana e a tradução de quadrinhos no Brasil.................................. 19 Kátia Hanna e Waldomiro Vergueiro Um panorama da tradução de quadrinhos no Brasil em 2017......... 39 Érico Gonçalves de Assis Os estudos sobre tradução de quadrinhos no Brasil: pioneirismos e potencialidades.......................................... 61 Nilce M. Pereira e Paula G. Arbex
quadrinhos.indd 3
01/12/2020 16:50
As especificidades A tradução linguística nos quadrinhos: práticas de tradução e análise......................................... 91 Barbara Zocal Da Silva A tradução visual em história em quadrinhos no Brasil..............121 Dennys Silva-Reis Mangás em tradução no Brasil.........................................151 Renata Leitão
Scanlation nos mangás: de fã a tradutor.............................183 Sabrina Moura Aragão
Outros territórios A representação ficcional do tradutor e do intérprete: o sonho da comunicação universal e a visibilidade da tradução nos quadrinhos............................................207 Alessandra Matias Querido Tradução de HQs: uma proposta de ensino pautada na linguagem dos quadrinhos...........................................233 Elisângela L. Liberatti Quadrinhos traduzidos e acessibilidade...............................257 Aline Alkmin Camargo Spicacci Quadrinhos brasileiros no exterior: os desafios de publicação de traduções de graphic novels brasileiras no mercado editorial de língua alemã.....................275 Lea Hübner e Augusto Paim
quadrinhos.indd 4
01/12/2020 16:50
Posfácio Estudar tradução de quadrinhos? Para quê?..........................305 Augusto Paim
Dos organizadores......................................................309
Partícipes dos capítulos................................................311
quadrinhos.indd 5
01/12/2020 16:50
Apresentação
Tradução e quadrinhos são, no Brasil, como super-heróis e vilões: inseparáveis. Desde nossa primeira revista em quadrinhos, O Tico-Tico, lançada em 1905, importamos material gráfico dependente de tradução. Ainda assim, pouco material em vernáculo tem colocado em discussão essa relação tão duradoura quanto conflituosa. Ampliar o arco de publicações sobre o tema é, portanto, o que faz este livro ao apresentar de forma inédita, pela soma de várias reflexões, um retrato do atual estágio de pesquisa na área, na busca de auxiliar os tradutores a refletir sobre a sua prática ou mesmo responder à curiosidade dos leitores mais críticos de como se traduz a peculiar e complexa linguagem dessa narrativa que envolve texto e imagem. Se por um lado os quadrinhos chegaram à academia com estudos mais sistematizados no que tange à linguagem, à cultura, à comunicação e ao mercado livreiro; por outro, o processo de tradução ainda é uma incógnita a ser estudada e equacionada. Parece-nos que tal estudo está favorável, especialmente, por três motivos: 1) o ápice dos quadrinhos alcançado pelo status de literatura e especialmente pela nomenclatura de romance gráfico – inclusive como parte dos estudos literários contemporâneos; 2) o fantasma da invisibilidade da tradução de HQs que ainda permeia os quadrinhos publicados no Brasil – em especial, quando se vê que estudos no âmbito deste produto cultural são totalmente feitos no Brasil sem levar em consideração o quesito “HQ traduzido”; e 3) o fato de os profissionais da tradução deste texto multimodal serem desconhecidos – notadamente, na supervalorização dos tradutores literários e juramentados em detrimento e marginalização dos que exercem este tipo de tradução, dentre outras consideradas “menores”. Dessa maneira, o objetivo central deste livro, edificado no preceito da autonomia da linguagem da narrativa gráfica sequencial, é o de suprir essa lacuna e oferecer um material de referência consistente e variado. Os artigos propostos descrevem e discutem vários aspectos que permeiam a tradução das histórias em quadrinhos no Brasil, bem como abrem perspectivas novas nos Estudos 7
quadrinhos.indd 7
01/12/2020 16:50
A Tradução de Quadrinhos no Brasil
de Tradução da narrativa gráfica. As partes em que este livro foi dividido são simples: (1) Uma história em construção, (2) Especificidades da Tradução de Quadrinhos e (3) Outros Territórios da Tradução de HQs. O primeiro eixo traz à tona um mapeamento historiográfico do processo de tradução de quadrinhos, sua história presente e uma reflexão sobre os estudos acadêmicos da área. O segundo eixo aborda algumas das especificidades da tradução de quadrinhos no que tange às questões linguísticas, visuais e de comunidade interpretante (em particular, o mangá). O terceiro eixo apresenta novas perspectivas quanto à representação da tradução e do tradutor de quadrinhos, à acessibilidade da narrativa gráfica a pessoas com deficiência, ao ensino de tradução de HQs e à produção brasileira traduzida no exterior. No Brasil, o crescente número de produção científica a respeito das histórias em quadrinhos reflete o interesse de pesquisadores e certa abertura nos meios acadêmicos, o que torna premente a publicação deste livro - até mesmo como uma espécie de reunião das pesquisas e pesquisadores na área. Ao mesmo tempo, nos Estudos da Tradução, as histórias em quadrinhos são hoje entendidas como um “caldeirão semiótico”, cujo sabor da tradução dependerá da harmonia de todos os ingredientes. Não é pretensão alguma desta obra dar conta da totalidade e da complexidade que a tradução de quadrinhos hoje representa no Brasil para o mercado livreiro, a cultura brasileira e o estudo acadêmico em vernáculo. Muitos outros temas poderiam ter sido investigados devido à própria natureza da narrativa gráfica, que não cessa de se reinventar e progredir diante das novas tecnologias, das novas comunidades consumidoras e do contato de variadas culturas. Entretanto, esperamos que os leitores da presente obra se sintam impulsionados, a partir dos capítulos aqui escritos, a desvendar as futuras aventuras dos estudos de tradução de HQs no Brasil, para além do bem e do mal. Kátia Hanna Dennys Silva-Reis
Para uma melhor visualização das imagens e, em alguns casos, visualização das cores, disponibilizamos um encarte virtual que pode ser acessado pelo QR code ao lado. Este ícone indica as imagens coloridas no encarte.
8
quadrinhos.indd 8
01/12/2020 16:50
Sobre super-homens, homens-morcego e mulheres-maravilhas: prefácio para um fértil diálogo sobre tradução de quadrinhos
Dentro da dinâmica da cultura de massa do nosso mercado editorial, Moacy Cirne aponta a revista O Tico-Tico – publicada de 1905 ao início dos anos 1960 – como o primeiro dos momentos mais expressivos na evolução formal das Histórias em Quadrinhos no país por popularizar criações brasileiras de autores como J. Carlos, Luis Sá, Max Yantok, Nino Borges e Alfredo Storni, entre outros1. A publicação semanal, entretanto, se destacou também por tornar conhecidos no país dezenas de personagens estrangeiros como Mickey Mouse, Krazy Kat, Popeye e Felix The Cat, rebatizados, respectivamente, como Ratinho Curioso, Gato Maluco, Brocoió e O Gato Félix. Essa combinação de produção nacional – original ou reapropriada – e reedição estrangeira – ininterrupta e principalmente de origem estadunidense – se mostrou presente em todas as etapas da formação do mercado brasileiro de HQs. Em diversos momentos, observa-se a tendência dos editores brasileiros de ajustar, adaptar ou recriar o material gráfico estrangeiro para este mercado. Estas ações vão desde o decalque e a eliminação de quadros, diálogos e páginas – pelos mais variados motivos – até a tradução de nomes próprios de personagens. Foi a partir deste último item que se deu meu ponto de entrada no universo dos estudos da tradução de Histórias em Quadrinhos. Meu interesse mais recorrente como pesquisador tem recaído sobre os diferentes aspectos do Design Gráfico no campo das HQs. Ao realizar uma análise gráfica de logotipos das revistas em quadrinhos publicadas no Brasil no século passado, propus-me identificar em que contexto o logotipo Superman teria sido redesenhado como Super-Homem. O que sempre me intrigara, desde criança, era a engenhosidade de se inserir cinco letras – e um hífen! – em um espaço pensado originalmente apenas para três, quando Batman e Aquaman, por exemplo, mantiveram seus nomes, e logos, originais. 1 CIRNE, Moacy. A Linguagem dos Quadrinhos: O universo estrutural de Ziraldo e Maurício de Sousa. 2ª edição. Petrópolis: Editora Vozes, 1971, p.10.
9
quadrinhos.indd 9
01/12/2020 16:50
A Tradução de Quadrinhos no Brasil
O personagem foi o primeiro do gênero Super-Herói a batizar uma revista em quadrinhos com seu nome – tanto nos Estados Unidos como no Brasil – rompendo com a prática dos títulos temáticos das antologias, como Fun Comics, Detective Comics, Mirim ou O Gury. Em versões graficamente mais rudimentares que a atual, o logotipo Superman acompanha o personagem desde o primeiro quadro da primeira página do primeiro número da revista em quadrinhos Action Comics, onde fez sua estreia em 1938. No Brasil, ele foi denominado Superhomem (sem hífen) desde sua primeira aparição, no número 445 do suplemento A Gazetinha, datado de 17 de dezembro de 1938. Se nas capas de O Lobinho, no início dos anos 1940, a grafia alternava-se entre Superhomem e Super-Homem (o hífen só seria adotado permanentemente em 1952), nas capas dos primeiros números da sua revista publicada pela EBAL entre 1947-1983, as designações nos dois idiomas conviveram em contradição: em tamanho maior, o logotipo Superman identificava visualmente o título da publicação, enquanto uma versão traduzida Superhomem adornava o estratégico canto superior esquerdo acima da icônica vinheta do herói quebrando correntes. As pesquisas sobre tradução de Histórias em Quadrinhos não apenas me sustentaram nessa investigação sobre super-dualidade visual como me conduziram a muitas outras descobertas que, acredito, podem exemplificar um pouco da amplitude da contribuição que estes estudos oferecem a várias áreas do conhecimento. Por exemplo: para analisar as características gráficas dos logotipos de revistas em quadrinhos brasileiras batizadas com nomes de super-heróis estrangeiros, me amparei em trabalhos sobre as variadas técnicas de tradução usadas nas HQs e sobre os valores conotativos e descritivos essenciais à narrativa imbuídos nos nomes próprios dos personagens. Os resultados demonstram como as decisões de tradução impactaram o trabalho realizado nos departamentos de arte das editoras, atribuindo aos letreiristas a função de designers de logotipos: cerca de 30% dos projetos analisados passaram por processos de tradução visual mantendo as características gráficas dos logotipos-fonte (como no caso do Super-Homem), e mais de 40% foram alterados significativamente das matrizes originais, sofrendo redesign completos (como na maioria dos mais de vinte logos que o Homem-Aranha teve em suas passagens pelas editoras EBAL, Bloch, RGE e Abril)2. Essa produção substancial de logotipos não é a única prática do mercado editorial nacional que vem à luz com o auxílio das investigações sobre tradução 2 PORTO, Bruno. SUPERLOGOS: Identidade gráfica dos logotipos das capas de revistas em quadrinhos brasileiras de Super-Herói. Brasília: UnB, 2017, p.95.
10
quadrinhos.indd 10
01/12/2020 16:50
A Tradução de Quadrinhos no Brasil
de Quadrinhos. Os frequentes cenários de coexistência de diferentes nomes próprios de personagens oferecem ainda indícios das práticas de licenciamentos para publicação de HQs estadunidenses no Brasil. Apesar de veiculado no país desde 1940 pelo Grande Consórcio Suplementos Nacionais com o nome em sua forma original, Batman foi simultaneamente rebatizado como HomemMorcêgo nas histórias publicadas na revista O Guri na segunda metade dos anos 1940, e como Morcego Negro no tablóide O Globo Juvenil, entre 19441948, e na revista Biriba, entre 1948-1951. Entre as décadas de 1920-1980, a maioria das negociações não era feita entre as editoras brasileiras e estrangeiras, mas com os representantes dos Syndicates e, em um segundo momento, com agências de distribuição e empresas de licenciamento. Isso resultou no Grande Consórcio Suplementos Nacionais obter as HQs publicadas na revista Detective Comics, o jornal Diário da Noite (proprietário d’O Guri) a ficar com as da revista Batman, e o jornal O Globo (que publicava O Globo Juvenil e Biriba), com as tiras dos jornais. Nesta situação, a tradução converte-se também na faceta mais aparente de um campo de poder – o mercado editorial – “definido em sua estrutura pelo estado da relação de forças entre formas de poder”3, segundo o discurso de Pierre Bourdieu. Alguns casos ocorridos na década de 1970 ilustram isso com clareza. Detentora dos direitos de publicação das HQs da revista Daredevil entre 1969-1971, a EBAL publicou 31 números da revista do super-herói rebatizado como Demolidor. Quando a editora GEA adquiriu os direitos de publicação 3 BOURDIEU, Pierre. La nobleza de estado: educación de elite y espíritu de cuerpo. Tradução de Alicia Beatriz Gutiérrez. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2013, p.369.
11
quadrinhos.indd 11
01/12/2020 16:50
A Tradução de Quadrinhos no Brasil
em 1972, optou por mudar o nome do personagem para Defensor Destemido pois a EBAL era dona do registro para publicações intituladas Demolidor – que não é nem tradução de um substantivo comum, nem adaptação morfológica de Daredevil. Demonstrando mais intensamente o conceito de campo formulado por Pierre Bourdieu – em que sua estrutura é determinada pelos agentes em proporção do volume de seu capital4 – as estreias na TV Globo das séries de animação Superamigos – estrelando, entre outros, a Mulher-Maravilha – e Os Quatro Fantásticos, respectivamente em 1975 e 1977, resultaram em mudanças nos nomes dos personagens nas revistas em quadrinhos – onde eram conhecidos como Miss América e Quarteto Fantástico. Esses desdobramentos das traduções visuais e linguísticas dos nomes dos personagens nos contextos sócio-culturais do mercado editorial estão correlacionados apenas a alguns dos desafios com que se deparam os profissionais de tradução de Quadrinhos no Brasil. Há ainda uma imensa pluralidade de questões de ordens culturais, tecnológicas, éticas, históricas e mercadológicas, muitas das quais são abordadas nos capítulos deste livro. Portanto, não são apenas as reflexões elaboradas sobre a confluência multimodal tão característica aos Quadrinhos que tornam esta obra vital no cenário atual das pesquisas científicas, mas principalmente a qualidade e a importância dos diálogos travados por esta área dos estudos da tradução com a construção ininterrupta da cultura brasileira. Neste mundo globalizado regido pela abordagem transmidiática, em que o suporte digital come o papel pelas beiradas – alterando a linguagem e os modelos de produção das HQs como quando estas se libertaram dos jornais e derramaram-se pelas páginas das revistas em quadrinhos – compreendermos o que o outro diz, sente e quer, torna-se cada vez mais imprescindível. Boa leitura. Bruno Porto
4 BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: Por uma sociologia clínica do campo científico. Tradução de Denice Barbara Catani. São Paulo: Editora UNESP, 2004, p. 24.
12
quadrinhos.indd 12
01/12/2020 16:50
Como comecei a gostar de HQ e graphic novels…
Como todo menino li bastante gibi infantil quando tinha cinco, seis, sete anos, mas depois me tornei rato de biblioteca, e me concentrei na leitura de livros, nunca desenvolvendo gosto pelas histórias em quadrinhos. No King Edwards School, o “melhor” colégio para meninos de Birmingham, Inglaterra, não tivemos contato com HQs, e até Tolkien (que estudou no mesmo colégio) foi considerado baixa literatura. Entrei lá em 1967, com onze anos, e fiquei até 1974, quando fui estudar Letras na Universidade do País de Gales, em Swansea. Ainda era a época em que as histórias em quadrinhos tinham pouco prestígio. Após a influência de Dr. Frederic Wertham com Seduction of the Innocent (1954) e o Comics Code, as histórias em quadrinhos não eram mais cheias de violência e sexo, mas continuavam não sendo respeitadas em círculos acadêmicos. Não consigo me lembrar de ter visto em nenhuma ocasião um colega de classe lendo HQ, e nas aulas de literatura inglesa nenhum professor ousaria falar de HQ! A influência do crítico F. R. Leavis estava no auge. Os grandes romancistas ingleses eram Jane Austen, George Eliot, Henry James, D. H. Lawrence, e Joseph Conrad; e para Leavis os grandes poetas eram Gerard Manley Hopkins, William Butler Yeats e T. S. Eliot (Leavis não gostava dos Românticos). Essa grande literatura canônica havia herdado uma parte da grandeza de Shakespeare, a Bíblia da literatura inglesa. E eu seguia essa religião. Tínhamos que respeitá-la e adorá-la, e ignorar a literatura mais popular, que não merecia consideração. Vim para o Brasil no começo de 1979. Uma das muitas coisas que me chocou foi ver homens adultos no ônibus lendo gibis de Donald Duck e Mickey Mouse da Disney! Que país é esse?! Entrei na PUC-SP em 1981, e na USP em 1984, e dei aulas dos grandes autores de língua inglesa. Naquela época ninguém em Letras escrevia tese sobre histórias em quadrinhos, e os estudos sobre HQ ainda estavam engatinhando na ECA… 13
quadrinhos.indd 13
01/12/2020 16:50
A Tradução de Quadrinhos no Brasil
Depois de fazer o mestrado na PUC-SP sobre o uso da forma interrogativa “DO” nas peças de Shakespeare, comecei a estudar a teoria da tradução. Meu livro O Poder da Tradução (depois Tradução: Teoria e Prática) está dentro do paradigma da tradução literária, mas meus estudos subsequentes me levaram para O Clube do Livro, que publicou livros mensais baratos, dos quais 50% eram traduções, para um público que não costumava comprar livros, a preços bastante baratos. A distribuição era feita pelo correio. O crítico mais importante para meu estudo foi André Lefevere, que criou o conceito de “refração”, uma obra canônica vai ser “refratada” de diferentes maneiras: Wuthering Heights (O Morro dos Ventos Uivantes), de 1847, foi adaptado para o cinema várias vezes — o filme mais famoso sendo a versão de 1939 com Laurence Olivier e Merle Oberon, que usou somente a primeira parte do livro. Há versões condensadas em muitas línguas; peças de rádio; a canção “Heathcliff” de Kate Bush (1978) e hoje em dia videogames. E, claro, hoje em dia há graphic novels de todas as obras clássicas. Mas eu ainda não lia HQs. E não participei enquanto leitor do crescimento de popularidade das novelas gráficas nos anos de 1990, continuava embrulhado em Shakespeare e Co.. Me lembro com clareza da primeira vez que li uma graphic novel. Estava na casa do meu filho Thomas em Barcelona, uns seis ou sete anos atrás. Thomas nunca fora fã dos clássicos, mas lia graphic novels. Vi Maus. E li. Quase 50 anos depois da última vez que havia lido uma história em quadrinhos. Não tive uma epifania, mas a semente fora plantada, e entendi que uma graphic novel pode ser uma narrativa interessante. Pouco a pouco comecei a mudar de opinião. Li mais algumas narrativas gráficas longas. Participei de bancas de tese sobre a tradução de HQs; li os livros de Waldomiro Vergueiro e Paulo Ramos; aproveitei as ofertas na Feira de Livro da USP para adquirir várias graphic novels; aprendi um pouco sobre a sua história e tradição; e apresentei um trabalho em 2019 nas Jornadas Internacionais de Histórias em Quadrinhos, na ECA-USP, sobre às adaptações das obras de Monteiro Lobato, D. Quixote das Crianças, Hans Staden, e Peter Pan, para HQ, cujos originais havia analisado em meu livro sobre as adaptações de Lobato, Um País se Faz com Tradutores e Traduções (2019). Comecei a me entrosar na área das HQs. E tenho muito orgulho de apresentar este leque de trabalhos de estudiosos brasileiros. Há uma variedade impressionante de artigos que demonstra a maturidade dos estudos sobre HQ no Brasil. Kátia Hanna e Waldomiro Vergueiro fazem um resgate histórico do desenvolvimento da tradução de histórias em quadrinhos no Brasil e seu relacionamento com os Estados Unidos. Outro estudo histórico é de Nilce Maria Pereira e Paula Godoi Arbex, detalhando os principais acontecimentos na tradução de HQ no Brasil. Érico Assis, um tradutor praticante de HQ, descreve o 14
quadrinhos.indd 14
01/12/2020 16:50
A Tradução de Quadrinhos no Brasil
mercado atual e as perspectivas para o futuro. Uma parte desse mercado que está em pleno crescimento é a tradução e produção de mangás no Brasil, o assunto do artigo de Renata Leitão. Os fãs têm um papel de suma importância nos mangás, e Sabrina Moura Aragão analisa a importância de scanlation, as traduções produzidas por fãs. Dennys Silva-Reis mostra que a tradução de mangás não é só tradução linguística e descreve os outros elementos como inscrições, letreiramento, reconfigurações de imagem, coloração, e compilação, que são muito importantes na produção e tradução desse tipo de narrativa. Bárbara Zocal da Silva analisa as questões específicas de oralidade, nomes próprios, topônimos, jogos linguísticos e humor. Alessandra Querido Matias examina como os próprios tradutores são apresentados, de máquinas automáticas de tradução a tradutores humanos. Augusto Paim e Lea Hübner, que trabalham na Alemanha, discutem a publicação de graphic novels brasileiras no mercado alemão. Neste mercado pequeno os próprios tradutores também acabam trabalhando como seus próprios agentes. Aline Alkmin Camargo Spicacci discute os problemas de como a comunidade surda, especialmente as crianças, pode acessar uma história em quadrinhos. E, last but not least, Elisângela Liberatti faz uma proposta de como um curso em tradução de HQ pode ser integrado dentro de um curso de bacharelado no Brasil Os preconceituosos Leavis e meus professores de King Edwards School se revirariam nos seus túmulos se soubessem sobre a popularidade dos estudos sobre HQ, até na universidade, e que está devidamente sendo reconhecida como a Nona Arte! John Milton
15
quadrinhos.indd 15
01/12/2020 16:50
A Tradução de Quadrinhos no Brasil
16
quadrinhos.indd 16
01/12/2020 16:50
A Tradução de Quadrinhos no Brasil
Uma história em construção
17
quadrinhos.indd 17
01/12/2020 16:51
quadrinhos.indd 18
01/12/2020 16:51
Histórias entrelaçadas: a indústria norte-americana e a tradução de quadrinhos no Brasil Kátia Hanna Waldomiro Vergueiro
Introdução No Brasil o sistema de quadrinhos teve como elemento formador e modelador a tradução de produtos vindos sobretudo dos Estados Unidos. A importação de quadrinhos foi responsável por introduzir gêneros (aventura, super -heróis, horror, entre outros), formatos (comic book, livro ou álbum), tipos de narrativas (como a graphic novel), de formas de distribuição (os syndicates, agências de distribuição de quadrinhos e outros produtos), mudanças nos pontos de venda (das bancas para as lojas especializadas e livrarias) e, de modo geral, pela criação de um mercado editorial que se assemelha (guardadas as devidas proporções de tamanho e faturamento) ao norte-americano. Do mesmo modo registramos a importação de histórias em quadrinhos de outros países, em especial europeus e asiáticos. Nossa primeira revista de quadrinhos, O Tico-Tico, lançada no início do século passado, indica a influência europeia, acomodando em suas páginas passatempos infantis diversos, além da arte sequencial. Já nestas primeiras décadas do século XXI a presença de peso de mangás em nossas bancas e livrarias anuncia que os quadrinhos asiáticos conquistaram os leitores brasileiros, sobretudo os jovens. Este capítulo busca destacar a influência dos quadrinhos estrangeiros no desenvolvimento da produção nacional não apenas no que se refere à sua linguagem, mas igualmente na sua forma de produção, distribuição e recepção. O que se pretende é apresentar os acontecimentos que colaboraram na urdidura dessa trama, destacando as circunstâncias e os personagens principais, realizando uma pesquisa histórica que destaque os pontos de contato com o produto estrangeiro, sua tradução e assimilação.
19
quadrinhos.indd 19
01/12/2020 16:51
O que se oferece neste livro ao leitor, especialista ou não, é um rico conjunto de textos de estudiosos das histórias em quadrinhos ligados ao campo da tradução. Os autores buscam discutir e refletir acerca das ferramentas disponíveis e dos procedimentos teóricometodológicos envolvidos no processo tradutório dos quadrinhos. Mais do que simplesmente priorizar aspectos técnicos, a ênfase dos trabalhos da coletânea recai sobre a construção de sentidos que perpassam uma tradução. Há ainda espaço para um panorama abrangente de trabalhos realizados por profissionais da tradução de quadrinhos, bem como um exame sobre a figura do tradutor no mercado editorial brasileiro de HQs. A amplitude e a ousadia destas reflexões vêm preencher lacunas ainda existentes, bem como contribuir para o estímulo de pesquisas na área. Márcio dos Santos Rodrigues