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PREFÁCIO
by Grupo Lidel
O livro Furtos em Residências: No Submundo do Crime, da autoria do Maj INF GNR (Doutor) Tiago Silva, é um texto ousado, por razões diversas, mas que aqui devem ser, de alguma forma, assinaladas.
Desde logo, porque o autor corre riscos. Riscos vários. Riscos assumidos. Riscos que são um compromisso. Riscos que exigem e exigiram um rigor para cumprimento das regras da arte de elaboração dos trabalhos científicos. Riscos que o Maj GNR Tiago Silva correu e que assume ao tornar pública a obra que inicialmente resultou de um trabalho institucional e que tinha como objetivo primeiro o cumprimento de um dos requisitos para aprovação numa edição do Curso de Estado-Maior Conjunto, que se leciona no Instituto Universitário Militar.
Como tão claramente ensina Max Weber, todo o saber será desmentido. Deste modo, o resultado deste estudo está – por isso – (e aqui não há qualquer novidade) sujeito à crítica, o que se espera e se deseja, porque otrabalho deixou agora de ser apenas seu para poder ser de uma comunidade científica que se reúne num fórum que se convencionou designar de “Estudos de Segurança”.
Os riscos que emergem resultam de parte das conclusões assentarem em algumas entrevistas que o autor efetuou a reclusos que cumprem medidas privativas de liberdade na região da Grande Lisboa. Ainda assim – há que o afirmar –, deve ser assinalada a coragem do autor em “rasgar” novos caminhos e de ter tido a tal ousadia para quebrar a regra rotineira habitual e, com isso, oferecer-nos um estudo com conclusões que nos devem obrigar a refletir profundamente sobre a temática em análise.
Assinalo aqui – para memória futura – a tal ousadia, os tais riscos que correu e corre, mas igualmente uma certa paixão que o autor, desde a primeira hora, demonstrou pelo tema e pela forma inovadora, mas fora – há que o reconhecer – de uma certa rotina metodológica, nem sempre percebida, por vezes repetida e seguida sem espírito crítico, o que publicamente me apraz registar.
José Fontes
Justificação do tema
Após entrevistar cerca de 50 reclusos nos estabelecimentos prisionais da região de Lisboa ao longo dos últimos três anos, este último foi muito importante e o mais produtivo, considerando que compreendi com maior profundidade a mente do assaltante em Portugal, e direcionei as entrevistas para as questões mais pertinentes, no sentido de aprender com estes “especialistas”.
O tema do presente livro surge de um problema real para as polícias em Portugal, devido à baixa taxa de deteção dos autores de furtos em residência, quando analisada comparativamente à de outros países, nomeadamente Espanha. Por outro lado, também representa um problema real para muitos portugueses que já sentiram pessoalmente os seus efeitos. Por fim, o presente livro destina-se ainda a todos aqueles que gostariam de evitar que um dia a sua casa seja alvo de furto por um “amigo do alheio”.
A criminalidade contra o património representa mais de metade do registo criminal total em Portugal e o furto em residência é um subtipo dessa criminalidade patrimonial. No entanto, a investigação académica sobre os furtos em residência é praticamente inexistente, contrariamente à que existe sobre o terrorismo ou a criminalidade organizada e, por isso, este livro contribui para uma melhor compreensão deste fenómeno em Portugal.
A mais-valia para as polícias do estudo dos furtos em residência, e dos furtos em geral, passa pela compreensão em profundidade deste tipo de criminalidade. Para o efeito, as informações extraídas das entrevistas aos reclusos condenados por este crime representaram um acréscimo de valor, tanto no âmbito da prevenção, como da investigação. Assim, em 2022, foram realizadas entrevistas presenciais a 21 reclusos a cumprir pena de prisão pelo crime de furto em residência nos estabelecimentos prisionais da região de Lisboa, os quais serviram como principal base para a escrita do presente livro.
Da análise das entrevistas efetuadas, os reclusos foram categorizados nos três níveis de criminalidade que considero existirem: a criminalidade local; a criminalidade itinerante; e o crime organizado. Esta categorização do crime diferencia-se, evolui e estrutura-se considerando a sofisticação do modus operandi, o grau de organização, o alvo do furto (se furtos de oportunidade, se residências de luxo) e o planeamento prévio para a execução do furto.
Passei grande parte da minha vida profissional a refletir sobre o que motiva uma pessoa a enveredar pelo mundo do crime. Apesar de conhecer vários motivos, explicados em diversa literatura científica, julgo que faltava dar o salto de conhecimento ao nível prático do submundo do crime, o que exigiu a minha deslocação às prisões para aprender como pensa o criminoso. O resultado da investigação que aqui apresento pretende contribuir para responder a essa questão. Apesar de este livro se focar num tipo de crime, o furto em residência, o leitor ficará com uma ideia muito clara da forma de pensar e de atuar de um criminoso, bem como as razões que levam a que, para alguns deles, o crime compense mesmo depois de cumprirem pena de prisão.
Após muitos anos de estudo e investigação sobre o crime em geral, a realização de entrevistas semiabertas aos reclusos que cumprem pena de prisão por, pelo menos, furtos em residência (tipificado na lei penal por “furto qualificado”) permitiu-me “entrar” na mente (duma maioria) de jovens que decidiram seguir o caminho do crime enquanto modo de vida. Alguns deles, passados alguns anos, tornaram-se mestres na intrusão em residências, seja por estroncamento ou arrombamento de portas ou de janelas, seja por escalamento de prédios ou introdução através de chave falsa (como a utilização de gazua), e até de abertura de cofres de alta segurança nas residências de luxo.
Alguns dos reclusos ganharam o suficiente em alguns furtos para abandonar essa vida e viver pacatamente num sítio tranquilo, longe do crime. Contudo, noutros casos, a ganância e as regras associadas à lealdade a grupos de crime organizado não permitem que a saída seja tão fácil quanto parece em teoria. Como o leitor verá, existe uma enorme quantidade de indivíduos toxicodependentes nas prisões (80% deles; n=18) que furtou com o objetivo de obter dinheiro para o consumo de droga. Este facto explica a razão de o furto em residências ocorrer, na maioria dos casos, por uma questão de oportunidade/descuido, mais do que por planeamento e reconhecimento da moradia/apartamento prévios ao furto.
O presente livro baseia-se em conhecimentos práticos, não em conceitos teóricos de compreensão complexa. Todos nós temos o receio de que as nossas residências sejam alvo de intrusão, ainda que possamos não pensar muito nisso, a não ser quando as habitações são alvo de um furto, aplicando-se a velha máxima “casa roubada, trancas à porta”. A mera intrusão numa residência, mesmo no caso de os ladrões nada subtraírem, gera um impacto psicológico nos proprietários que, em alguns casos, pode originar um trauma. Por conseguinte, pretende-se aqui fornecer conhecimentos aos agentes das forças e serviços de segurança, aos juristas, aos magistrados do Ministério Público e aos judiciais que lidam diariamente com este tipo de criminalidade, bem como a todos os alunos de criminologia e de estudos de segurança. Por sua vez, os conhecimentos aqui transmitidos têm também o cariz profilático de prevenção de furtos em habitações, com algumas dicas simples e eficazes – transmitidas pelos reclusos.
Um ladrão não nasce, cria-se. Cria-se pelo seu ambiente de infância, pelo tipo de relacionamento que manteve com os pais (se existiu) durante a sua juventude e pelo tipo de amigos que firmou ao longo do tempo. Cria-se também pela “pressão” do ambiente social de onde nasceu e pela forma como foi educado, ainda nas fases de criança, adolescente e até na juventude. A esmagadora maioria dos ladrões em residências são muito jovens, característica inerente a quem pratica este tipo de crimes.
Este livro resulta após três anos de entrevistas nos estabelecimentos prisionais da região de Lisboa, com cerca de meia centena de reclusos entrevistados, além de vários anos de investigação e de experiência empírica, que permitiram desenvolver um conhecimento muito aprofundado deste fenómeno. Contudo, a investigação mais aprofundada foca-se nas 21 entrevistas a reclusos, realizadas em 2022 em alguns estabelecimentos prisionais da região de Lisboa. O salto exigido de conhecimento acerca deste fenómeno, para melhor prevenir e investigar os furtos em residência pelas polícias, passava por entrevistar os “verdadeiros especialistas”, isto é, os que praticaram estes crimes. Foi também entrevistado um Comissário da Polícia de Investigaciones (PDI) do Chile que se dedica ao estudo e investigação dos Lanzas Internacionales, o melhor grupo organizado de ladrões em residências ao nível mundial.
Não é despretensioso afirmar que os reclusos possuem um conhecimento do submundo do crime que a maioria dos polícias desconhece, tendo em conta que vivenciaram e experienciaram esse submundo como ninguém. Assim, apesar de nos encontrarmos em lados opostos da “barricada”, não podia, nem quero, deixar de agradecer a todos os reclusos entrevistados nos estabelecimentos prisionais da região de Lisboa pelas suas “partilhas de conhecimento”, as quais representaram, sem dúvida, um manancial de informação que, de outra forma, nunca se obteria, no sentido de se compreender com maior amplitude o furto em residências, assim como o furto a estabelecimentos comerciais.
No submundo do crime vale tudo pelo poder, pelo dinheiro e pela droga, sendo esta última a fiel irmã do crime. A droga é um negócio multimilionário e arrasta consigo tanto os “peixes miúdos” (os consumidores e traficantes-consumidores) como os “tubarões” (os grandes traficantes, muitos deles empresários com bom nome na “praça”). A droga tem uma relação direta com a prática da maioria dos furtos praticados (e com o crime em geral) não apenas em Portugal, mas também ao nível internacional.
O polícia mais eficaz na sua atividade é aquele que consegue entrar na mente de um criminoso. Quando um polícia entra num cenário de furto numa residência (ou de um crime em geral), deve pensar como o ladrão pensou quando ali entrou. Em muitos casos, vemos um polícia seguir um raciocínio que, com base na sua cultura policial e lógica, lhe “parece” o móbil do crime. Contudo, o cenário do crime “fala” muito sobre o seu autor e, por vezes, desvia-se do que consideramos ser lógico.
O cenário de um furto numa residência demonstra desorganização ou organização? Esse facto fornece uma explicação sobre o perfil do ladrão. Deste modo, é interessante denotar que existe uma aproximação casuística na definição do perfil de “organizado” ou “desorganizado” dos assassinos em série (serial killers), classificada pelo Federal Bureau of Investigation (FBI), com o perfil dos assaltantes dos furtos em residência. O facto de um assaltante ser mais organizado explica que é mais especializado e sabe o que e onde procurar. O desorganizado é aquele que se caracteriza pelo assaltante que “anda ao descuido”, como é referido na gíria do submundo do crime, isto é, quem procura uma oportunidade: uma janela aberta ou destrancada, ou uma casa de fácil intrusão. Quem “anda ao descuido” é mais desorganizado porque é aquele ladrão que se encontra a ressacar da droga e necessita de dinheiro com urgência para a dose seguinte, e, por isso, espalha tudo na habitação, desesperado por encontrar dinheiro ou ouro.
O estudo do crime de furto é a base para o estudo de vários crimes, sendo, com certeza, dos mais complexos de serem investigados pelas polícias. Regra geral, é mais fácil investigar um homicídio do que um furto. A execução de um roubo, ou seja, a subtração de coisas móveis de alguém com violência ou ameaça de seu uso, é como uma progressão na “carreira” do criminoso, a qual se iniciou nos furtos – a legislação penal portuguesa diferencia o crime de furto do crime de roubo. De forma sucinta, o furto é a apropriação ilegítima de uma coisa móvel sem ter sido utilizada qualquer tipo de violência ou ameaça de seu uso para com a vítima na apropriação da coisa. Por sua vez, o roubo tem a particularidade de utilizar a violência ou a ameaça de seu uso, por parte do ladrão, na apropriação ilegítima da coisa móvel, isto é, coloca em perigo a vida ou a integridade física da vítima, ou impossibilita-a de resistir. Em muitos casos, o furto é a opção racional de um ladrão para evitar ser preso por um crime de maior gravidade, como é o caso do roubo. Assim, a esmagadora maioria dos ladrões pretendem praticar furto em vez de roubo.
Bem-vindo ao submundo do crime em Portugal pela perspetiva dos “verdadeiros especialistas”, os ladrões.