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CAPÍTULO 4

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PREFÁCIO

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Enquadramento Conceptual

Considerando o objectu de estudo que se pretendeu desenvolver, importa destacar alguns conceitos-chave para se compreender o que são furtos. O primeiro, o furto, está tipificado no artigo 203.º do Código Penal (CP) português, que o descreve como “quem, com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel ou animal alheios, é punido…”1. Desde logo, é de realçar que a ilegitimidade do ato de subtração de uma coisa móvel numa residência por alguém ocorre com o desconhecimento e sem a autorização do(s) proprietário(s) da residência onde se verificou essa subtração. O furto em residência, em particular, encontra-se mencionado no n.º 1 da alínea f) do artigo 204.º do CP, considerando que este tipo de furto é qualificado, na maioria dos casos. Não é despiciendo, por sua vez, referir que o conceito de residência ou habitação assume especial importância na lei, e, para o efeito, aludir ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 11 de julho de 2012, no qual se considera que a introdução em espaço fechado, só por si, não representa um dano acrescido que justifique a previsão da qualificação proposta para a ação do furto, isto é, “o conceito que reclama uma tutela penal reforçada é a habitação e, para esse efeito, incluem-se também os espaços limítrofes ou anexos à habitação”2.

1 Código Penal Português, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, com a última alteração introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro. https://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=109&tabela=leis.

2 Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, n.º 774/11.3GAVNF.P1, de 11 de julho de 2012. http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/745dda7ded5c020f80257a4100370fcd?OpenDocument.

A habitação é o espaço fechado onde as pessoas residem, podendo ser de dois tipos: a residência própria e permanente; ou a secundária. Contudo, a mera introdução ilegítima no jardim de uma residência/habitação não preenche os requisitos que a lei atribui para o crime de furto em residência, assim como a introdução ilegítima por um meliante numa residência/ /habitação sem ter sida subtraída coisa móvel também não pode ser consubstanciada como tal.

As entrevistas aos reclusos das prisões da região de Lisboa tiveram como objetivo principal conhecer o seu ambiente familiar e social, os padrões criminais de execução do crime, ou seja, o modus operandi do furto em residências, e o seu perfil criminal.

No que respeita à diferença conceptual entre a investigação criminal e a prevenção criminal, a primeira, nos termos do artigo 1.º da Lei de Organização de Investigação Criminal (LOIC), compreende o “conjunto de diligências que, nos termos da lei processual penal, se destinam a averiguar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a sua responsabilidade e descobrir e recolher as provas, no âmbito de um processo”3 criminal. Já a segunda visa a tomada de medidas (as quais podem assumir diferentes abordagens) que pretendem evitar que determinado crime ocorra, enquanto a investigação criminal se inicia depois da ocorrência do crime.

Outro conceito a frisar é o de profiling criminal que, para Konvalina-Simas, “em contexto investigativo, procura interpretar todas as pistas comportamentais relacionadas com uma ocorrência, quer sejam de cariz social, biológico ou psicológico”, e adianta: “a triangulação destas características é que vai permitir a construção de um perfil aproximado do ofensor e fornecer pistas para direcionar a investigação criminal” (Konvalina-Simas, 2012, p. 16).

3 Lei de Organização de Investigação Criminal (LOIC), Lei n.º 49/2008, de 27 de agosto, com a última redação introduzida pela Lei n.º 73/2021, de 12 de novembro. https://www. pgdlisboa.pt/leis/lei _mostra_ articulado.php?nid=1021&tabela=leis&so_miolo=.

4.1 Base jurídica do furto em residência

O crime de furto em residência é da competência investigatória da GNR, na sua área de responsabilidade, desde a origem da notícia do crime até à conclusão do inquérito-crime, exceto se a mesma configurar um crime de associação criminosa, cuja competência cabe à PJ, segundo a LOIC4 .

Os furtos em residência em Portugal estão inseridos, em termos de classificação de legislação penal, em “Crimes contra o património”, e a tipificação penal encontra-se sob a epígrafe de “Furto Qualificado”5. No entanto, existe um pormenor referido no n.º 4 do artigo 204.º do CP que indica que “não há lugar à qualificação [do furto] se a coisa ou animal furtados forem de diminuto valor” – o valor considerado diminuto é de até uma unidade de conta (cerca de 102 euros) –, e, nesse caso, será tipificado como um furto simples, nos termos do artigo 203.º do CP6. No caso de furto simples, enquanto crime semipúblico7, o procedimento criminal iniciar-se-á com a apresentação de queixa pelo ofendido, sendo a tentativa de furto também punível por este artigo.

No sentido de clarificar o furto em residência ou habitação, importa destacar o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 27 de novembro de 2007, o qual defende que se torna perfeito o furto assim que a coisa móvel entre na esfera patrimonial do agente, ficando à sua disposição “logo que o agente passe a controlá-la, passe a tê-la sob o seu domínio, não se exigindo que este domínio se exerça com sossego e tranquilidade”8 . E adianta que, tendo-se “o arguido já retirado do interior da habitação e colocado num terreno ali próximo, os bens furtados da habitação, com o intuito de os transportar num veículo”9, ao ser detido em flagrante delito por uma patrulha da GNR, na opinião dos juízes desembargadores, é inquestionável que o arguido já controlava as coisas móveis, “já as tinha sob o seu domínio durante um período mínimo de tempo e de estabilidade, pelo que acordaram que deve entender-se que o furto se consumou efetivamente”10. Situação diferente do caso anterior seria se a patrulha da GNR detivesse o arguido no interior da habitação que estava a ser alvo de furto. Nesse caso, existiria um concurso real de violação de domicílio nos termos do artigo 190.º do CP e de furto, na forma tentada, conforme nos é indicado pelo n.º 2 do artigo 203.º e pelo artigo 204.º conjugado com artigo 23.º do CP. Se, no mesmo caso anterior, a patrulha da GNR detivesse o arguido num anexo de uma residência estaríamos perante um concurso real de crime de introdução em lugar vedado ao público, tipificado no artigo 191.º do CP e o furto na forma tentada. Nestes casos, no que respeita à atuação policial, em termos de eficácia e de segurança pessoal para a patrulha da GNR, sempre que possível, deverá privilegiar-se a intervenção policial aquando da saída do assaltante do interior da habitação para o espaço público com os bens furtados, para que a consumação do furto seja efetivada.

4 Idem.

5 Código Penal Português, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, com a última alteração introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro. https://www. pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?artigo_id=&nid=1021&tabela=leis&pagina=1&ficha=1&so_miolo=&nversao=#artigo.

6 Idem.

7 Crime semipúblico é aquele “cujo processo apenas se inicia mediante a apresentação de queixa por parte do ofendido ou de outrem, que seja titular do direito de queixa, nos termos da lei” (n.º 1 do art.º 49.º do Código de Processo Penal).

A lei estabelece diferenças entre o pressuposto “colaboração de bando” e o do “modo de vida”, sendo que a distinção entre os dois, apesar de ambos qualificarem o crime de furto, refere-se a penas de prisão diferentes. No sentido de ser qualificado como “bando” – categorizado, neste livro, de criminalidade itinerante –, exige-se a prática do crime de furto por, pelo menos, dois indivíduos membros de um bando, ao passo que o “modo de vida” é referente à prática do crime, de forma reiterada, por

8 Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, n.º 110/07.3GASPS.C1, de 27 de novembro de 2013. http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/642b251b20f98f9880257c3 80053b32ª?OpenDocument.

9 Idem.

10 Idem.

O presente livro pretende contribuir para a compreensão mais aprofundada da fenomenologia dos furtos em residência em Portugal, tanto numa perspetiva de prevenção como numa de investigação. Partindo da questão central que serviu de fio condutor a toda a investigação – “Quais são os padrões de interesse para as polícias para se prevenir e investigar com mais eficácia os crimes de furto em residência em Portugal?” –, desenvolveu-se a construção de uma grounded theory, através de 21 entrevistas a reclusos das prisões da região de Lisboa. Contudo, em boa verdade, esta investigação teve uma duração de cerca de três anos, de 2020 a 2022, até ficar concluída. Para tal, houve um esforço em procurar padrões que pudessem ser verificáveis nas respostas dos vários reclusos, no sentido de encontrar soluções ao problema dos furtos em residência.

A resposta à questão central apoia-se na resposta às duas questões derivadas da mesma: como aumentar a prevenção dos furtos em residência em Portugal e como aumentar a eficácia da investigação aos furtos em residência em Portugal pelas polícias?

Assim, importa destacar que a prevenção não recai unicamente sobre a responsabilidade da polícia. Para o efeito, deve assumir-se uma resposta multivariada, assente em quatro categorias de prevenção:

■ A realizada através do desenvolvimento social;

■ A comunitária;

■ A situacional;

■ Os programas de reintegração social.

No que concerne ao desenvolvimento social e à prevenção comunitária, é de realçar que a esmagadora maioria da amostra total de reclusos são indivíduos jovens, com uma média de 24 anos (idade da primeira

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